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maria tereza maldonado

desenhos manuela eichner


A facE
ocuLta
uma hiStoria DE buLLying
E cybErbuLLying
Maria Tereza Maldonado
ilustrações de Manuela Eichner

1a edição
2018
Copyright © Maria Tereza Maldonado, 2009

Gerente editorial: ROGÉRIO CARLOS GASTALDO DE OLIVEIRA


Editora-assistente: KANDY SGARBI SARAIVA
Preparação de texto: MARCIA CECÍLIA VANUCCHI
Auxiliar de serviços editoriais: RUTE DE BRITO
Estagiária: MARI KUMAGAI
Revisão: HÉLIA DE JESUS GONSAGA (ger.), KÁTIA SCAFF MARQUES (coord.),
ROSÂNGELA MURICY (coord.), CÉLIA CARVALHO, GABRIELA M. ANDRADE
e LILIAN M. KUMAI
Gerência de arte: NAIR DE MEDEIROS BARBOSA
Projeto gráfico e produção: AEROESTÚDIO
Capa: AEROESTÚDIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maldonado, Maria Tereza


A face oculta : uma história de bullying e
cyberbullying / Maria Tereza Maldonado ; ilustrações
de Manuela Eichner. — 1. ed. — São Paulo : Editora
Todas as Letras, 2018.

1. Assédio nas escolas - Literatura infantojuvenil


2. Literatura infantojuvenil I. Eichner, Manuela.
II. Título.

18-17114 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

ISBN 978-85-68006-26-9 (aluno)


ISBN 978-85-68006-30-6 (professor)

1a edição, 2018

Todos os direitos reservados à


Editora Todas as Letras Ltda.
Avenida das Nações Unidas, 7221
1o andar – Setor C – Espaço 2
CEP 05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP
Caro leitor,
Quer saber o que me motivou a escrever A face oculta?
Ouvi centenas de histórias de pessoas que sofrem bullying
e cyberbullying, de quem pratica e de quem participa dessas
ações, apoiando quem faz e compartilhando mensagens ofen-
sivas. Vou contar uma coisa para vocês: eu sofri bullying quan-
do tinha dez anos. Naquela época, esse nome nem existia, e
a internet também não. Os adultos pensavam que aquilo era
brincadeira de crianças e não percebiam o sofrimento que isso
provocava. Bullying não é brincadeira! Porque brincadeira é
quando todos se divertem! Quando alguns se divertem ata-
cando, excluindo, depreciando outros, isso é um padrão de
agressão que pode se estender para outros relacionamentos.
A partir de centenas de histórias reais, surgiu A face oculta.
Os personagens sintetizam muitas pessoas que conheci com as
características de cada uma delas.
Luciana é uma adolescente que adora fazer amigos. Ela
é alegre, extrovertida, atraente, vai bem nos estudos e é muito
segura de si. Essa descrição poderia ser a de muitas outras ga-
rotas como ela e não teria nada de extraordinário se não fosse
por um detalhe: na verdade essa é a descrição de uma Luciana
que só existe no mundo virtual; no mundo real ela é intro-
vertida, tem poucos amigos, detesta atividades físicas, come
compulsivamente e esconde sua aparência com roupas largas
e escuras. Só uma coisa as “duas” Lucianas têm em comum:
a paixão pelo computador. Mas uma faceta nada atraente do
mundo virtual veio atormentar a garota: ela está sendo vítima
de cyberbullying e sente que não pode pedir ajuda a nenhum
adulto, pois teme ficar sem seu precioso computador.
Espero que goste de ler A face oculta tanto quanto eu
gostei de escrever!
Maria Tereza Maldonado
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SumArio
A inimiga do sol 7
O real mundo virtual 13
Perseguição implacável 22
Ataques torturantes 28
Comemorando a vitória 36
Os ataques continuam... 43
...E as famílias são chamadas 52
Redimensionando o problema 58
Ameaças e novas ideias 65
Vítimas e algozes 73
Confronto e consequências 81
Epílogo 90
Glossário 93
Sobre a autora e a obra 95
Sobre a ilustradora 96

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A inimiga Do SoL
O domingo de Carnaval começou radiante: calor, mar com poucas ondas,
água transparente, céu azul. Alzira e Leandro acordaram às
seis da manhã para fazer uma caminhada a passos rápidos no
calçadão de Copacabana. Para eles, esse era o melhor modo
de começar o dia, mesmo em fins de semana e feriados. Mas
não para a filha deles, Luciana, de 13 anos, que toda noite fi-
cava até tarde entretida com jogos on-line, conversando com
os amigos pelo computador, e detestava acordar cedo.
Quando voltaram da caminhada, a mãe de Alzira, que
viera de Belo Horizonte passar a semana de Carnaval com
eles, já estava acordada, preparando suco de laranja para o
café da manhã. Sabia que a filha e o genro chegariam para
tomar uma chuveirada, vestiriam as fantasias de odalisca e
de pirata e pegariam o metrô até o centro da cidade, onde,
às 9 da manhã, aconteceria a concentração de um bloco que
tocava marchinhas tradicionais.
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Foi o que aconteceu. Lá, os dois, animadíssimos, encon-
traram alguns amigos e se divertiram observando fantasias
criativas: a mulher-bomba enrolada em panos negros com o
cartaz “Vou explodir de alegria!”, a jovem com uma bunda de
plástico por cima da bermuda, o senhor careca e barrigudo
com uma tiara na cabeça e roupa de bailarina, a senhora com
um chapéu enorme imitando uma caneca de cerveja, a mu-
lher com uma saia feita de tubos de papel higiênico. Muitas
crianças no colo dos pais, algumas assustadas com o som de
bumbos, trombones e tubas e com a multidão que rapidamen-
te lotou a rua estreita, antes de o bloco começar a circular pelo
centro da cidade. Gente de todas as idades, com perucas co-
loridas, óculos enormes, colares, pulseiras e muita animação.
— Oi, tia, cadê a Luciana?
Alzira surpreendeu-se quando Bruna a pegou pelo bra-
ço. Não a tinha visto no bloco, com a avó que adorava sambar.
— Você não conhece sua amiga, Bruninha? Ela detesta
Carnaval!
— Falei com ela ontem. Já faz um tempão que a gente não
se vê, já cansei de convidar para um monte de programas, ela
sempre inventa uma desculpa para não sair de casa! Na ver-
dade, o único convite que ela aceita de vez em quando é se
encontrar comigo na padaria do papai para comer aquele pão
doce irresistível...
— É, a gente também insiste para que pelo menos ela vá à
praia nos finais de semana, mas nem isso, em pleno verão está
branca como a neve, parece inimiga do sol!
Por volta de uma da tarde, caminharam até a estação de
metrô mais próxima. Estava lotado, com gente fantasiada indo
para os blocos da Zona Sul e muitas pessoas com roupa de
praia, os termômetros marcando 35 graus. Ao descer, ainda
andaram mais três quadras, as ruas de Copacabana cheias, a
praia colorida com uma barraca ao lado da outra, os ambulan-
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tes fazendo a festa com as vendas de bebidas, bonés, cangas e
enfeites carnavalescos. Entraram em casa felizes, suados e can-
sados. Leandro foi direto para o chuveiro, para depois entrar
na cozinha com a mulher e preparar um peixe assado com le-
gumes para o almoço.
— E aí, mãe, Luciana já acordou?
Dona Vera olhou para Alzira sobre os óculos, parando de
picar maçãs e peras para a salada de frutas:
— Claro que não, ainda é cedo para ela! Não conhece sua
própria filha?
Alzira deu um longo suspiro:
— Não sei mais o que dizer nem o que fazer para con-
vencer essa menina de que está perdendo os melhores anos
da vida dormindo até tarde e enfiada nesse maldito computa-
dor! Precisava ver a animação da garotada no bloco: havia até
criancinhas de 2 anos dançando no colo dos pais!
— Cada um aproveita a vida do seu jeito, minha filha!
Luciana acha a maior graça no computador, é lá que ela se di-
verte, paquera, faz amigos. Mas nem você nem o Leandro con-
seguem entender isso...
— Gosta de computador e de comida... Reparou como
engordou desde o Natal? Vive comendo bobagens: pipoca, bis-
coitos, balas, bolos, tudo o que não presta. Faz várias coisas ao
mesmo tempo: tecla, come, ouve música, fala pelo celular e,
ainda por cima, jura que consegue se concentrar para fazer o
dever de casa no meio dessa confusão toda!
— Calma, minha filha, você, desde pequena, tem mania
de fazer drama! Luciana não está gorda, está cheinha. Você
também, nessa idade, não gostava de fazer os deveres e tirava
notas baixas! Não precisa se preocupar tanto! Chegou do bloco
tão alegre, agora está com essa cara...
— Eu não faço drama, mamãe, você é que acha que nada
é grave, que tudo se resolve com o tempo! O Leandro também
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se preocupa. A Luciana é impermeável aos nossos argumentos,
diz com a maior convicção que o mundo virtual é muito mais
interessante do que essa nossa vidinha real, vê se pode?
— Talvez ela tenha razão... — disse dona Vera, pensativa.
Ainda vestindo a camisola cor-de-rosa estampada com
coelhinhos saltitantes, Luciana entrou na cozinha, os olhos se-
micerrados, os passos cambaleantes, como se fosse sonâmbula:
— Oi... bom dia...
— Boa tarde! Já passa das duas e você ainda não acabou
de acordar, menina? — Leandro olhou sério para a filha en-
quanto abria a porta do forno para colocar um pouco mais de
azeite em cima do peixe, o delicioso cheiro das ervas se espa-
lhando pela cozinha.
Luciana foi direto para a geladeira, abriu o congelador,
pegou o pote de sorvete de goiabada com queijo e encheu sua
caneca com uma generosa porção.
— A comida já está praticamente pronta, minha filha!
Que ideia é essa de comer a sobremesa antes da refeição? Além
do mais, sua avó fez uma salada de frutas deliciosa, que não
engorda tanto! — A voz de Alzira estava no tom de censura
que mais irritava Luciana.

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— Ai, mãe, que porre! O dia mal começou e você já está
reclamando!
— Em primeiro lugar, o dia começou há muito tempo, me-
nina! Seu pai e eu já fomos à praia, pegamos o metrô até o centro
da cidade, sambamos no bloco e encontramos muitos jovens se
divertindo, inclusive a Bruna, que mandou um beijo para você.
Em segundo lugar, você deveria se olhar bem no espelho para ver
que está gorda e pensar duas vezes antes de se entupir de sorvete!
Luciana voltou para o quarto resmungando:
— Não sei quem inventou essa regrinha idiota de comer
sobremesa depois da refeição! Com esse calor, sorvete é muito
melhor do que peixe assado!
Começou a ler as mensagens e os blogs dos amigos que
estavam se divertindo no Carnaval, alguns com várias fotos já
colocadas. Um dos amigos inventou uma fantasia de preto ve-
lho: ele e mais cinco tiveram a paciência de pintar todo o corpo,
cabelos e sobrancelhas, e desfilaram com cachimbo no canto
da boca e cajado. Hilário. Outro saiu fantasiado de mendigo,
as roupas esfarrapadas, todo sujo como se tivesse ficado uma
semana sem tomar banho. Hilário também. Ela escreveu al-
guns comentários engraçados, mas pensou: “Odeio Carnaval,

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não entendo como meus pais e meus amigos gostam de ficar
dançando no meio da multidão com esse calor horroroso!”.
Em seguida, entrou na comunidade virtual “Meus pais
não me entendem!” para ler as novas mensagens postadas por
centenas de participantes cujos pais também os chamavam de
“zumbis” e “inimigos do sol”, travando intermináveis batalhas
entre “certo e errado”, “verdade e mentira”, incapazes de per-
ceber a riqueza dessa rede de trocas de ideias, confidências e
informações que, para Luciana, eram mais importantes do que
tudo aquilo que ensinavam na escola e que, segundo ela, não
servia para coisa alguma na vida.
— Filha, a comida está pronta, venha almoçar! — Lean-
dro gritou lá da cozinha, esperando que Luciana ouvisse.
Silêncio. A porta do quarto fechada, ela com os fones
ouvindo as músicas preferidas que baixava da internet. Assim
que viu o pai entrar, minimizou as telas para que ele não visse
nem as mensagens dos participantes da comunidade nem as
fotos dos amigos carnavalescos: com certeza, ele a censuraria,
mais uma vez, por não gostar de sair de casa.
— Não estou com fome, pai! Muito calor para comer coi-
sas quentes! Já almocei o sorvete.
— Tudo bem, você não é obrigada a comer, mas pelo me-
nos fique conosco. Sua avó vai embora daqui a dois dias, de-
pois só na Semana Santa se a gente for para Belo Horizonte, e
você quase não conversou com ela. Quando não está dormin-
do, desaparece nesse buraco negro cibernético e mal olha para
a cara da gente!
— Tá bom, tô indo... — resmungou, bocejando. Levan-
tou-se e foi se arrastando até a sala, onde a mesa estava posta.
Entediada, a mão no queixo, ela aparentemente acompanhava
a conversa, mas na verdade planejava a cidade que estava cons-
truindo em um jogo do computador, em que não havia escolas
nem estudantes de coisa alguma.
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O rEaL munDo
virtuaL
Todas as manhãs, Luciana saía da cama sacudida pelo pai, mal conseguia
acordar com a xícara de café quente e ia para a escola como
um zumbi. Zumbi. Era assim que o pai a chamava quando
se chocava com sua palidez de inimiga do sol e das ativi-
dades ao ar livre, quando a criticava pelo excesso de peso,
quando não entendia por que ela não queria sair com os
amigos.
Sempre que percebia o pai exasperado por vê-la recusar
os convites para sair, Luciana respondia calmamente:
— Não quero fazer o que todo mundo faz! Estou me
lixando para o que os outros pensam, não gosto de sair de
casa e pronto!
— Mas isso não é normal na sua idade, Luciana!
— E daí? Não quero ser normal!
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— Pois deveria querer ser uma adolescente normal e sau-
dável, sem essas olheiras de poucas horas de sono, sem ir para
a escola se arrastando e se arriscando a repetir o ano!
— Eu odeio a escola, você sabe! E pouco me importa se
eu for reprovada! Vai ser até bom! Quem sabe vocês desistem
de me fazer estudar e me deixam ficar em casa, fazendo o que
eu mais amo, que é ficar plugada no computador!
— Você pode repetir o ano duzentas vezes, mas da es-
cola você não vai sair! E não adianta fazer essa resistência
absurda, a ponto de mal falar com seus colegas! — Leandro
gritava, impaciente.
— Não estou a fim de conversar com ninguém daquela
escola! Meus amigos virtuais são muito mais interessantes!
Pai e filha cansavam de repetir os mesmos argumentos,
mas um não conseguia aceitar o ponto de vista do outro. Da
turma de Luciana, Alzira e Leandro conheciam apenas duas
colegas que, às vezes, se reuniam para fazer trabalhos em gru-
po. Convites para ir ao cinema, fazer um lanche ou ir a festas,
de tanto ser recusados, tornaram-se praticamente inexistentes:
os amigos desistiram de insistir.
Entretanto, a menina tinha mais de quinhentos amigos
na rede de relacionamentos, com os quais trocava mensagens,
conversava animadamente e passeava nos ambientes virtuais
dos jogos on-line. O conceito de amizade era um tema recor-
rente de conversa entre ela e seus pais, mas as opiniões eram
tão divergentes que eles não conseguiam chegar a um denomi-
nador comum.
— Para que serve ter quinhentos amigos na rede se você
não sai com nenhum deles, não os convida para vir aqui em casa
e não é convidada para ir à casa deles? — questionava Leandro.
— Quando eu tinha a sua idade, andava em bando, mi-
nha casa era o ponto de encontro do grupo. Sua avó já cansou
de comentar isso com você. Combinávamos de fazer piqueni-
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que na praia, passear à tarde no parque, andar de roda-gigante,
montanha-russa e trem-fantasma. Nos divertíamos pra valer!
— agregava Alzira.
— Eu também me divirto muito com meus amigos da
rede, vocês não entendem porque só usam o computador para
trabalhar! — retrucava Luciana.
— Amizade com gente que você nem conhece? Amigo é
a pessoa com quem a gente se encontra, conversa, troca confi-
dências... — a mãe insistia.
— Amizade de verdade a gente cultiva, sabe que pode
contar com a pessoa nos momentos difíceis, não dá para ser
amigo de quinhentas pessoas! — completava Leandro.
— Ai, caramba, essa definição de amizade é antiga, de an-
tes de criarem o computador! Eu me encontro com meus ami-
gos no ambiente virtual, viajamos, vamos a shows, sentamos na
lanchonete para jogar conversa fora, tudo o que se faz com os
amigos na vida que vocês insistem em chamar de real! Aliás,
para nós, amigo nem precisa ser uma pessoa de verdade, pode
ser um avatar que interage com o nosso, aí a gente conversa, pas-
seia pelos cenários dos jogos, cria intimidade, mesmo que seja
tudo inventado! — argumentava Luciana, impaciente com a di-
ficuldade dos pais para entender a realidade do mundo virtual.
Os avatares que Luciana construía para representá-la
eram muito diferentes dela: magros, altos, cabelos curtos com
cores e cortes exóticos, roupas ousadas e coloridíssimas. Em
sua foto no site de relacionamento, ela estava irreconhecível:
sorridente, com uma blusa vermelha e brincos de argola, os
cabelos longos penteados para trás, realçando o rosto... Muito
diferente da Luciana das roupas escuras e largas com que ela
procurava esconder os quilos a mais, do cabelo desalinhado
encobrindo as orelhas e a testa, do sorriso raro e contido.
Em seu perfil, descrevia-se como simpática, sociável, de bem
com a vida. Outra pessoa. A filha que os pais adorariam ter.
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Era na rede que Luciana revelava o que ocultava no cha-
mado mundo real, era onde ela despertava, ria, se emocionava,
interagia, se apaixonava, começava e terminava namoros, se
divertia, era espirituosa, sedutora; no mundo virtual, estava li-
vre do medo da violência nas ruas e da insegurança que sentia
no contato com as pessoas de carne e osso; passeava com os
amigos pelos cenários fantásticos dos jogos a qualquer hora
do dia ou da noite, frequentava festas empolgantes e assistia a
shows virtuais espetaculares, com suas bandas preferidas. Nem
seus pais nem seus professores a conheciam em sua outra vida,
não entendiam o fascínio de ser quem não se é, a face oculta
revelada no outro lado.
Essa “segunda vida” era muito mais fascinante do que a
primeira. A vida virtual era a sua vida real, nela encontrava
tudo o que desejava: informação, comunicação, lazer. O que os
outros chamavam de realidade era um cotidiano absolutamen-
te sem graça e entediante, que lhe inspirava o mais profundo
desprezo e a deixava mal-humorada. Queria mesmo ser um
zumbi nesse mundo desinteressante.
Difícil era respeitar o horário de dormir, com tantas atra-
ções no universo virtual: quase todas as noites, ela apagava a
luz no horário combinado, esperava os pais adormecerem e
ficava até altas horas construindo a cidade dos seus sonhos.
Em outro jogo, criava personagens, famílias de várias gerações
e até o próprio universo, desde a célula mais primitiva até a
vida em outras galáxias. Em alguns jogos, criava sozinha essas
diferentes realidades; em outros, elaborava enredos fantásticos
com mais de noventa usuários, enquanto trocava mensagens
com outros.
Pela manhã, na escola, não adiantava lutar contra o
sono. As pálpebras de Luciana ficavam pesadas, ela tentava
disfarçar a cara sonolenta colocando a mão na testa e cobrin-
do o rosto com os longos cabelos, procurava sentar-se no
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meio dos melhores alunos, para os quais os professores não
olhavam com censura. Misturada a eles, esperava passar des-
percebida, embora recentemente tivesse sido acordada pela
mão da professora de Português em seu ombro: a pergunta fa-
tal, que ela não tinha conseguido ouvir e muito menos respon-
der, custou-lhe um ponto a menos na média. Apesar do risco
de notas baixas, Luciana não se importava: a atração irresistí-
vel pelo computador era muito mais forte do que o medo de
que os pais restringissem ainda mais seu horário on-line. Mes-
mo em véspera de prova, ficava até tarde na rede.
“E aí, Zumbi de Botafogo, tudo em cima?”
“Fala, Zumbi de Copacabana!”
Uma da manhã: assim começava a troca de mensagens
entre Luciana e Paulo, filho de uma amiga de Alzira. Os dois se
comunicavam diariamente pelo computador e passaram a se
chamar de zumbis para implicar com Leandro. Paulo também
mergulhava no “buraco negro cibernético” e se desinteressa-
ra dos estudos, para desespero dos pais, que compartilhavam
com Alzira e Leandro suas preocupações.
Para Paulo, também era um sacrifício acordar cedo, e ele
quase sempre dormia na sala de aula. Pegava o bermudão e a
camisa que a mãe colocava na cadeira na noite anterior, ajeitava
o colar de contas de madeira que nunca saía do pescoço mes-
mo nos dias em que tomava banho, escovava precariamente o
cabelo, bebia uma caneca de chocolate quente que a empregada
preparava e deitava de novo para dormir mais dez minutos até
ser chamado aos gritos pela irmã estressada que ficava super-
preocupada de perder o ônibus escolar e chegar atrasada.
Paulo havia adotado a estratégia de Luciana para des-
pistar os professores: usava os longos cabelos encaracolados
cuidadosamente repartidos ao meio para esconder o rosto
quando adormecia nas aulas — que ele achava entediantes;
usava o cabelo também para disfarçar os minúsculos fones de
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ouvido, escondendo cuidadosamente os fios dentro da camisa,
para ouvir música enquanto os professores se esforçam para
dar a matéria. Conseguia parecer atento quando, na verdade,
estava mentalizando acordes de guitarra e imaginando novos
arranjos de suas músicas prediletas que poderia fazer no pro-
grama de composição assim que voltasse para casa. Porém, ao
contrário da amiga, comia pouquíssimo: o envolvimento com
o computador e com a guitarra lhe tirava o apetite, esquecia as
refeições e não encontrava tempo para tomar banho, escovar
os dentes e fazer xixi. Muito menos para estudar.
Arnaldo, o pai de Paulo, viajava muito a trabalho. Apesar
do pouco tempo para a família, procurava motivar o filho para
estudar as matérias escolares, além da guitarra que despertava
em Paulo um grande interesse. Deise, a mãe, trabalhava o dia
todo, e Paulo ficava em casa sozinho com a empregada, já que
Daiane, a irmã mais velha, tinha a agenda cheia de atividades
após o horário da escola.
O quarto de Paulo é o seu mundo, com tudo o que mais
ama: a guitarra e o amplificador de boa marca, o computador
com monitor grande para visualizar melhor os sintetizadores
virtuais que utilizava para compor músicas, TV, telefone fixo
que deixou de usar depois que ganhou um celular de última
geração. Com tantos atrativos à disposição, não sentia vonta-
de de sair de casa nem para encontrar os amigos nem para
passear com a família aos domingos. Nem sequer para fazer
esportes, estudar inglês ou dedicar-se a qualquer outra ativi-
dade que lhe tomasse o tempo precioso destinado à guitarra e
ao computador.
— Já jantou, meu filho? E terminou de ler o livro para
o teste de amanhã? — Deise entrou no quarto de Paulo assim
que chegou do trabalho, exausta depois de um longo dia de
reuniões com os consultores que vieram da matriz do banco
em que trabalhava como gerente.
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— Ainda não, mãe! — resmungou o rapaz, sem tirar os
olhos da tela do computador.
Deise tirou os sapatos de salto alto e se jogou na cama do
filho, ainda com a bolsa a tiracolo.
— Ai, que canseira! Já vi que meu dia ainda não termi-
nou, vou ter de ler esse livro com você e ajudá-lo a fazer o
trabalho... E ainda trazer um prato de comida para ver se você
come alguma coisa, está quase desaparecendo de tão magro!
— Não estou com fome, mãe! E o livro é um porre...
— Para você, tudo que não tem a ver com computador
e guitarra é um porre, menino! Não é possível que nada mais
desperte seu interesse, e também não é possível passar a vida
fazendo só o que você gosta! Todo mundo tem obrigações: seu
pai, sua irmã, a empregada, eu. Ou você acha que eu gosto de
ficar trabalhando até as sete da noite? Ou que seu pai gosta
de ficar longe da gente viajando a trabalho quase todas as se-
manas? Você acha que não há dias que eu adoraria ficar dor-
mindo até mais tarde ou ir ao cinema na primeira sessão de
segunda-feira?
— Ai, mãe, não começa! Já estou cansado desse papo...
— Eu também estou cansada de ficar no seu pé, sem ao
menos ter o direito de relaxar depois de um dia inteiro de tra-
balho! Também não aguento mais entrar em casa e ver você
sem tomar banho, sem comer e sem fazer os deveres. Ou você
acha que eu gosto de ficar no seu pé?
— Se não gosta, me deixa em paz!
— Ah, é? Esqueceu que, no ano passado, eu deixei você
de lado para ver se você tomava jeito e estudava sozinho? E o
que aconteceu? Repetiu o ano!
— Não vou repetir de novo...
Arnaldo tinha precisado insistir muito para Deise se
controlar e deixar o filho “quebrar a cara”, para ver se ele de-
senvolvia o senso de responsabilidade. Sempre que conversava
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com o filho sobre os estudos, percebia que ele se acomodava,
evitando estudar por conta própria porque sabia que a mãe o
ajudaria e sobraria mais tempo para se dedicar à guitarra.
— Querida, você precisa “desmamar” esse menino!
Daiane desde pequena estuda por conta própria; Paulo fica
esperando por você até hoje! Quanto mais você fizer por ele,
menos ele vai se mexer por iniciativa própria! E ele tem capaci-
dade de se virar sozinho, como acontece com a música!
— Na teoria você está certo, meu bem, mas na prática
acho que isso não vai funcionar. Paulo ama a música e não pre-
cisa de ninguém atrás dele para estudar. Mas na escola... E não
acho que valha a pena deixá-lo repetir o ano...
— Continuo pensando que seria a melhor maneira de ele
aprender a andar com as próprias pernas, mas, enfim, vamos
ver o que acontece...
— É, querido, você tem razão. Vou me esforçar para não
oferecer tanta ajuda, afinal não é fácil para mim chegar cansa-
da do trabalho e ainda ter de ficar estudando com ele.
No último bimestre, as notas cada vez mais baixas, Deise
capitulou e começou a supervisionar os estudos do menino e
até a fazer alguns trabalhos por ele, para evitar que fosse repro-
vado. Não adiantou: Deise ficou arrasada, como se ela própria
tivesse fracassado, com raiva de Arnaldo por ele não ter acre-
ditado que a única coisa que o filho conseguia estudar sozinho
era música. Quem menos se incomodou foi o próprio Paulo.
— Qual o problema de repetir o ano? Assim eu fico com
mais base para o ano que vem... — argumentou, com a espe-
rança secreta de não precisar fazer tanto esforço, já que não
haveria matérias novas, só a revisão do ano anterior.

21
PErSEguicao
impLacavEL
O shopping estava cheio naquele sábado chuvoso, muita gente subindo e
descendo pelas escadas rolantes, passeando pelos corredores,
olhando as vitrines e lotando a praça de alimentação. Marcelo
foi o primeiro a escolher o sorvete de manga na casquinha, en-
quanto Elisa, sua meia-irmã, não conseguia decidir entre seus
quatro sabores preferidos. Quando, finalmente, escolheu o de
maracujá e começou a saboreá-lo, Marcelo, que já estava aca-
bando o seu, discretamente esbarrou no braço dela, fazendo o
sorvete cair no chão.
— Mãeeee... o Marcelo fez isso de propósito! — recla-
mou, choramingando.
— Não fiz não, foi sem querer! — defendeu-se, a cara de
sonso revelando a mentira.

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— A mim você não engana, rapaz! É claro que você fez
de propósito, só não sei por que você cisma de perseguir sua
irmã desse jeito! Esquece que já tem 14 anos e ela só 8?
— Não fiz de propósito! Você e o Vítor acham que eu sou
o culpado de tudo e só acreditam nessa pirralha que adora me
ferrar! — A voz de Marcelo estava muitos decibéis acima do
aceitável.
— Fale baixo, as pessoas já estão olhando pra você! —
advertiu Vítor, aproximando-se de Marcelo.
— Eu falo como eu quiser, e você não pode se meter por-
que não é meu pai!
— Marcelo, o Vítor é meu marido e pai de sua irmã, você
deve respeito a ele, sim! Eu vou comprar outro sorvete para a
Elisa e descontar da sua mesada!
— Hum, até parece... Você ameaça e depois esquece... —
retrucou Marcelo, irônico, indo para o outro lado da sorveteria
para atender no celular a ligação de um amigo do prédio:
— E aí, cara, tu não tá em casa, não?
— Não, tô no shopping, mas vou chegar daqui a pouco,
qual é a boa?
— Tá todo mundo a fim de bater uma bola, mas tá faltan-
do gente no nosso time. Pô, cara, tu devia estar aqui, acabamos
de soltar bombinhas na garagem, o segurança veio correndo, e
a gente se mandou a tempo!
No grande condomínio com três blocos de apartamentos
onde morava com a mãe, Vítor e Elisa, Marcelo e mais cinco
amigos “tocavam o terror”, implicando com as crianças na pisci-
na e nos brinquedos do parque, derrubando as lixeiras e deixan-
do a sujeira espalhada no chão para, escondidos, se divertirem
vendo a raiva dos faxineiros falando palavrões enquanto limpa-
vam a área uma vez mais. Como corriam rapidamente para os
esconderijos previamente combinados, nunca eram pegos, em-
bora todos os porteiros e os seguranças soubessem quem eram
os arruaceiros. E os vizinhos também, principalmente quando
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os garotos corriam para cima e para baixo pelas escadas depois
de grudarem chicletes ou pedaços de fita-crepe nas campai-
nhas dos apartamentos, fazendo-as tocar sem parar.
No prédio onde o pai de Marcelo morava com a atual mu-
lher e Tiago, seu meio-irmão da mesma idade de Elisa, havia
poucos apartamentos e uma pequena área de lazer, com pisci-
na, mas sem campo de futebol. E, mesmo que houvesse um, não
adiantaria, porque a maioria das crianças não passava dos 6 anos.
Da idade de Marcelo, só as gêmeas do andar de baixo, que ele
depreciava por serem “arrumadinhas demais”, preocupadas com
roupas, cabelos e maquiagem. Por isso, sua maior diversão nos
fins de semana em que passava com o pai era implicar com Tiago,
que considerava Marcelo seu ídolo e com quem dividia o quarto:
— Sai do computador, moleque safado, agora é minha
vez de jogar!
— Peraí, Marcelo, tô terminando essa fase. Quer jogar a
outra comigo?
— Claro que não, seu idiota, isso é jogo de neném!
— Então deixa eu jogar o seu?
— Tá maluco? Tu é muito burro pra jogar o que eu jogo!
— Não sou burro, sua besta! Sou muito mais novo que
você, mas se você me ensinar eu aprendo! — insistia Tiago.
— Aprende coisa nenhuma, tu é muito burro, nem quan-
do tu tiver a minha idade vai conseguir fazer o que eu faço!
Agora sai, anda!
— Então deixa eu ficar aqui vendo você jogar! — Tiago
não desistia de se aproximar do irmão.
— Tá bom, mas só se tu ficar de boca fechada, senão eu
não consigo me concentrar!
Tiago se entusiasmava com o jogo do irmão, que se
movia rapidamente pelos cenários, e não conseguia conter a
curiosidade, queria entender um pouco mais das personagens
e da história que estava sendo desenvolvida.
24
— E aí, o que esse cara vai fazer com o outro agora?
Marcelo logo perdia a paciência:
— Eu não disse pra tu ficar calado? Agora sai do quarto,
pentelho!
— O quarto é meu, sua besta, esqueceu?
— O quarto é teu coisa nenhuma, é o meu pai quem paga
tudo nessa casa, tua mãe não trabalha!
— Seu pai é meu também, idiota! E você não mora aqui,
então o quarto é mais meu do que seu!
Essa foi a gota-d’água: sempre que Tiago tocava esse pon-
to sensível, Marcelo se enfurecia e começava a chutá-lo, gritan-
do descontroladamente:
— Eu te odeio, moleque, quero mais é que tu morra! Um
idiota como tu não devia nem ter nascido! — Marcelo empur-
rava o irmão, que caía no chão, se encolhendo de dor e cho-
rando baixinho.
Cenas como essa se repetiam com frequência quando os
dois estavam juntos e terminavam mal para Marcelo, que não
se continha e agredia fisicamente o irmão. Ainda não tinha
conseguido digerir a grande mudança de sua vida: deixar de
ser filho único aos 6 anos para, com um intervalo de apenas
três meses, ter um irmão e uma irmã que moravam com pai
e mãe na mesma casa. Havia momentos em que até gostava
de brincar e de conversar com eles, mas, de repente, o ciúme
tomava conta, ele sentia-se o mais prejudicado de todos, recla-
mava que os irmãos eram protegidos e mimados, afirmava que
só ele levava bronca e ficava de castigo, acusava o pai e a mãe
de terem deixado de gostar dele. E explodia de raiva.
Naquela época, havia momentos em que a raiva de Mar-
celo, na escola, detonava dentro dele: em sua turma, havia um
“chefe”, ao qual todos os meninos obedeciam, que determina-
va quem participaria da brincadeira e quem ficaria de fora; os
dois “ajudantes”, tão altos e fortes quanto o líder, aplicavam os
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castigos a quem ousasse se rebelar contra as leis impostas, que
variavam entre xingamentos e humilhações a tapas, chutes e
socos. E nem adiantava reclamar com a professora, que consi-
derava tudo aquilo “natural” entre meninos de 7 anos e achava
que eles deveriam aprender “a se virar sozinhos”.
8, 9, 10 anos, e a história se repetia, Marcelo sempre excluí-
do do futebol na hora do intervalo por não saber jogar direito,
apelidado de “perna de pau” — também por ser magro, com as
pernas compridas e finas —, sem coragem para reagir e enfren-
tar os valentões, a raiva se acumulando dentro dele. Essa raiva
ele descarregava nos irmãos pequenos, feliz por sentir que saía
vitorioso das batalhas com eles, mesmo quando ficava de castigo.
Por fim, depois de muito tempo, incentivado pelo pai, criou
coragem para começar a ter aulas de futebol, vencendo o medo
de ser criticado pelos colegas. Resolveu se esforçar e, em poucos
meses, melhorou tanto que o “chefe” da turma consentiu que ele
fizesse parte do time. Assim que sentiu que havia conquistado
seu lugar no grupo, foi à forra: passou a maltratar e a ridiculari-
zar os colegas excluídos. Passando de perseguido a perseguidor,
esmerou-se como torturador, atacando os tímidos, inventando
apelidos depreciativos para os diferentes da maioria, as queixas
contra ele e o grupo se avolumando, as notas abaixando, os pais
que mal se falavam sendo chamados para reuniões na escola por
conta das observações dos professores no conselho de classe.
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— Estou achando melhor mudar o Marcelo de colégio,
já virou “figurinha carimbada”, mesmo que esteja quieto aca-
ba sendo acusado quando acontece alguma coisa de errado —
disse Heitor, em um dos raros telefonemas para a ex-mulher.
— Mas o pior é que ele tem realmente se comportado
muito mal, depois que se juntou a esse grupo de garotos que
perturbam a ordem. Está correndo o risco de repetir o ano de
novo e, também por isso, talvez seja melhor sair desse colégio.
Meu medo é ele escolher outro grupo de bagunceiros na nova
escola, já que agora ele está se sentindo poderoso — comple-
mentou Iracema, em uma das raras ocasiões em que concorda-
va com a opinião do ex-marido.
Heitor e Iracema acabaram decidindo mudar o filho de
escola. No início, Marcelo ficou enfurecido: “Por que não fize-
ram isso antes, quando eu estava levando a pior? Logo agora
que eu consegui me enturmar com a galera e estou até come-
çando a gostar da escola? Vou ter de começar tudo de novo!”.
Mas nem seus protestos nem seus argumentos foram sufi-
cientes para convencer os pais a voltar atrás. E foi assim que
ele passou a ser colega de turma de Luciana, escolhendo-a de
imediato para ser alvo de ataques: “Nunca zoei pesado uma
menina, deve ser muito divertido, vou experimentar!”, pensou,
assim que a viu encolhida e adormecida, escondendo os quilos
a mais sob um vestido preto e largo.
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AtaquES
torturantES
Luciana tinha acabado de sair da escola quando ouviu o som de mensa-
gem de texto em seu celular. Tirou-o rapidamente da bol-
sa, curiosa para ler o torpedo, pensando ser do garoto que
havia conhecido em uma festa de família a que os pais ti-
nham-na obrigado a ir.
“Goooooooooorda!”
Foi um choque: nunca havia recebido esse tipo de men-
sagem. E de quem? “Particular”: era o que aparecia no visor.
Sem pensar duas vezes, teclou, irritada: “Quem é você, idiota?”.
“Ha, ha!”, Marcelo riu, satisfeito. “Funcionou!” Mandou
outra: “Odeio menina gorda e feia como tu!”.
Luciana ficou com os olhos cheios d’água, lendo a men-
sagem várias vezes, sem conseguir entender o que estava
acontecendo. Um turbilhão de pensamentos e de sensações
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desagradáveis a invadiu: a voz da mãe ecoando dentro da cabe-
ça, dizendo que ela estava gorda e criticando-a por não resistir
à gula, a tristeza de se olhar no espelho e não gostar do que via,
a boa intenção de reduzir as calorias sempre adiada para a se-
gunda-feira seguinte, a vergonha de ir à praia ou à piscina sem
conseguir esconder as coxas grossas com celulite e a barriga
enorme. “E agora? Se eu responder, é capaz desse cara escrever
coisas ainda piores. Se eu não responder, talvez ele continue
me provocando!”. Confusa e angustiada, continuou andando
até o ponto do ônibus ainda pensando no que fazer.
Marcelo estava impaciente, esperando pela reação de Lu-
ciana. Dez, quinze, vinte minutos, e nada. Resolveu continuar
o ataque: “E aí, sua gorda, desistiu de reagir? Vai ficar mais pa-
rada do que um saco de batatas?”.
Sentada na janela do ônibus, Luciana não conseguiu con-
ter as lágrimas, que rolaram abundantemente pelo rosto, mo-
lhando a blusa e pingando no celular. Ficou paralisada, lendo
e relendo a mensagem cruel, a tristeza e a angústia apertando-
-lhe o peito, a certeza de que o garoto da festa jamais ligaria
para ela, por também tê-la achado gorda e feia.
“Será que algum garoto vai se atrever a me namorar, com
esse corpo horroroso que eu tenho?”, pensou, ainda chorando.
Do fundo da tristeza, foi crescendo a revolta contra esse des-
conhecido asqueroso que teclava verdades tão horríveis a seu
respeito: “Quem será?”, “Como conseguiu o número do meu
celular?”, “Será que é da minha escola?” ,“Será que é um dos três
garotos novos da turma?”, “Ou uma menina que resolveu impli-
car comigo?”. A revolta misturou-se à raiva; o medo de reagir e
piorar a situação brigava com a vontade de mandar uma men-
sagem bem desaforada. Por fim, digitou: “Vai pra !”.
Marcelo deu um risinho de satisfação ao perceber que
seu alvo estava reagindo exatamente como ele queria: “Fisgou
a isca, que menina burra!”. Pensou um pouco para dar uma
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resposta que a exasperasse ainda mais: “Não posso, porque
você já está lá ocupando todo o espaço, sua balofa!”.
Luciana tinha acabado de entrar em casa quando recebeu
essa mensagem. Largou a mochila no sofá da sala, trancou-se
no banheiro, o choro incontido ao ler e reler as palavras que a
machucavam profundamente, arrependida de ter caído na ar-
madilha do agressor que, provavelmente, estaria se divertindo
com suas respostas desaforadas. “Sou uma idiota mesmo!”, dis-
se olhando-se no espelho, socando a testa, o rosto vermelho,
os olhos inchados de chorar. Não queria que Dete, a diarista,
a visse assim, não queria contar para os pais, mas não sabia o
que fazer para colocar um ponto final nessas mensagens tor-
turantes. Ainda no banheiro, ligou para Paulo pedindo ajuda.
— Lu, lembra que eu deixei de falar com o meu melhor
amigo porque ele se juntou a um grupinho de idiotas que re-
solveu me zoar? Eu fingia que não era comigo, mas fiquei mui-
to perturbado com aquilo. Lembra que eu acabei me afastando
dele, porque ele nunca me pediu desculpas pelo que fez? No
seu caso, o pior é que você nem tem ideia de quem seja! Mas,
em todo caso, acho melhor você parar de responder as mensa-
gens e deixar o idiota falando sozinho. O cara vai acabar desis-
tindo de você e escolhendo outra vítima.
Depois de falar com Paulo, Luciana pensou em ligar para
Bruna, mas Dete bateu na porta do banheiro.
— Oi, Luciana, você está no banheiro faz tanto tempo
que a comida está esfriando. Você está passando mal?
— Não, Dete, está tudo sob controle! Daqui a pouco eu
almoço.
Lavou novamente o rosto, agora menos avermelhado, mas
com a ponta do nariz ainda mostrando o choro incontido. Ligou
para Bruna, que havia sido atacada por duas meninas da turma
que a invejavam por ser a queridinha dos professores. As meni-
nas tinham sido cruéis, chamavam-na de baleia, cochichavam e
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riam quando ela passava pelos corredores, espalharam boatos
para que Bruna ficasse mal perante as amigas e os professores.
— Lulu, querida, a gente tem de ser superior a quem nos
ataca! Silêncio total, combinado? Mesmo que você fique se
roendo de vontade de escrever mensagens desaforadas, resista
à tentação! Claro, eu sei que falar é fácil, na prática é mais com-
plicado. Quando aquelas imbecis começaram a me chamar de
baleia e a fazer fofocas a meu respeito, eu ligava pra você cho-
rando, totalmente derrubada, sem saber como reagir. Foi você
quem me alertou para o lance da inveja! Eu não tinha sacado
que elas queriam ser boas alunas como eu e não conseguiam,
então tentaram me destruir!
— E aí você começou a se achar gostosa mesmo gordi-
nha! — Luciana começou a rir lembrando como Bruna conse-
guiu fazer as pazes com o espelho.
— Pronto, agora você já sabe o caminho! Vai ver o cari-
nha tá a fim de você e não quer admitir isso!
— Ah, sei lá! Acho que não tem carinha algum de olho
em mim... Bem que eu queria ser como você, comer sem culpa
e ainda me achar uma deusa!
— Ih, Lulu, para com isso! Quando você não se esconde
nessas roupas que você cismou de usar ultimamente, você fica
linda! E, por falar nisso, o carinha da festa fez contato?
— Nada! Esperei um pouco, mandei uma mensagem
mas ele nem respondeu! Deve ter conhecido uma menina ma-
gra e resolveu ficar com ela...
— Deixa de ser boba, Lulu! Vai pintar outro mais interes-
sante! A fila anda!
Luciana sentiu-se melhor depois de falar com os amigos,
mas ainda estava um pouco tensa, por não saber o que viria
em seguida. Foi para a cozinha e comeu dois pratos cheios de
macarrão com molho de tomate, carne moída, arroz, feijão e
cenoura refogada. De sobremesa, duas porções de salada de
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32
frutas. A mãe compra sorvete só nos finais de semana para aju-
dá-la a controlar o peso. “Ainda bem que ela está no trabalho,
se visse o tanto que eu comi no almoço, era bronca na certa!”,
pensou, enquanto saboreava a salada de frutas, lamentando a
falta do sorvete de creme para fazer a combinação perfeita.
— Algum problema, Luciana? Está com cara de choro,
posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Dete, passando
pela cozinha com uma pilha de roupas para passar.
— Nada não, acho que vou conseguir resolver sozinha.
Mas você também está com cara de preocupada. Aconteceu
alguma coisa com o Maicon?
— Ai, um problemão... Vou até pedir à sua mãe para eu
chegar mais tarde na sexta-feira, me chamaram para conversar
na escola, descobri que ele anda matando aula para ficar horas
naquela maldita lan house que abriram lá perto de casa.
— Ih, um novo membro para o clube dos zumbis?
— Nem brinca, Luciana! O pior é que só aí eu entendi
por que andava sumindo dinheiro da minha bolsa. Pensei que
eu estivesse errando nas contas... É muito ruim pensar que
meu próprio filho não reconhece o sacrifício que eu faço para
criá-lo e ainda por cima tem coragem de roubar da própria
mãe! — Dete começou a chorar, visivelmente perturbada.
— Ai, Dete, conversa com ele, isso vai se resolver! — Lu-
ciana a abraçou com carinho.
— É... Não é fácil criar filho sem pai... Mas Deus há de me
dar força para resolver mais essa... Desculpe o desabafo, agora
vou cuidar da roupa e você também tem mais o que fazer...

Enquanto almoçava em sua casa, Marcelo maquinava os


passos seguintes para perturbar Luciana. Resolveu dar um tem-
po nas mensagens pelo celular e entrar no site de relacionamen-
tos para escrever, usando um perfil fake, uma mensagem no
perfil de Luciana.
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“Teus amigos também te acham uma gorda horrorosa!”
“Só queria estar lá na casa da baleia para ver a cara dela
lendo essa mensagem! É maneiro zoar menina! Vou cercar essa
garota por todos os lados, até ela ficar completamente pirada!”,
Marcelo ria sozinho, imaginando a reação de sua vítima.
Quando Luciana terminou de escovar os dentes, foi para
o quarto e ligou o computador, ansiosa para entrar na rede e
estar com os amigos. Mas, assim que leu as vinte primeiras
mensagens, deparou-se com a de Marcelo. Choque: o coração
acelerado, a boca seca, o suor frio nas mãos, a angústia lhe
contraindo o estômago cheio.
“Aqui também? Quem está passando meus dados para
esse terrorista? O ataque está vindo de todos os lados! Se não
adianta responder nem ignorar, o que me resta fazer?”
Encaminhou a mensagem para Bruna e Paulo. Ambos
tornaram a aconselhá-la a não responder, que assim o agressor
desistiria.
— E se ele não desistir, o que eu faço?
— Nesse caso, talvez seja melhor falar com seus pais...
— Só em último caso, Bruna! Aposto que eles iriam su-
gerir que eu desse um tempo com o celular e com o computa-
dor! E você sabe muito bem que eu não conseguiria viver sem
estar na rede!
— Você não tem mesmo a mínima ideia de quem está
fazendo esses ataques?
— Não! Mas mesmo que eu descobrisse, de que adianta-
ria? Você acha que eu deveria encher o cara de porrada?
— É amiga, tá complicado, mas a gente vai descobrir um
jeito de resolver essa parada!
Como nessa noite Leandro chegaria muito tarde do tra-
balho, Alzira e Luciana jantaram sozinhas.
— Estou achando você meio abatida, filha. Aconteceu al-
guma coisa na escola?
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— Não, mãe, nada. Acho que estou ficando gripada, só isso.
— Sabe, a Dete vai chegar mais tarde na sexta-feira. Pro-
blemas com o Maicon.
— Eu sei, ela me falou.
— Computador é muito bom, mas quando usado em ex-
cesso dá problemas...
— Ai, mãe, estou cansada desse papo, ainda mais hoje!
Boa noite, vou dormir mais cedo...
— Até parece... Nem doente você desgruda da telinha!
Novas mensagens dos amigos e mais uma mensagem
anônima: “Não sente pena de seus pais gastarem tanto dinhei-
ro no mercado pra te alimentar, baleia? Aposto que você come
por três!”.
Injuriada, Luciana quase socou o monitor. “Desgraçado!
E desgraçado também quem passou meus dados para esse in-
feliz! E se for alguém que eu conheço? Um amigo traidor? Uma
amiga invejosa? O carinha da festa?”
Aviso de mensagem de texto no celular: “Comeu muito
no jantar, gorda? Cuidado, barriga cheia dá pesadelo!”.
Uma hora depois, o aparelho toca: “Particular” no visor.
— Alô?!
Silêncio.
— Alô?!
Silêncio.
— Cara, qual é? Vai ficar mudo? Perdeu a língua?
Silêncio.
— Você é o idiota que está me torturando?
— Hi, hi, hi!
Luciana terminou a ligação espumando de raiva, deses-
perada por, mais uma vez, ter caído na armadilha do agressor.
Exausta, foi para a cama, porém custou a dormir: virava para
um lado e para o outro, com uma pergunta martelando a cabe-
ça: “O que eu fiz para merecer um inimigo assim?”.
35
ComEmoranDo
a vitoria
Na manhã seguinte à primeira “sessão de tortura”, Marcelo chegou à sala
de aula antes de Luciana. Ficou satisfeito ao vê-la entrar
abatida, com olheiras, revelando a noite maldormida. Sen-
tiu-se poderoso com o estrago que tinha causado: “Nunca
pensei que fosse tão fácil desmontar uma menina!”.
Disfarçando o olhar com os longos cabelos que lhe enco-
briam parte do rosto, Luciana tentava descobrir em seus colegas
algum sinal que revelasse o inimigo oculto. Como não gosta-
va da escola e estava quase sempre sonolenta, interagia pouco
com os colegas, com exceção de algumas meninas com quem
fazia trabalhos de grupo. Subitamente, lembrou-se de ter dado
o número do celular a uma menina com quem faria um des-
ses trabalhos pela primeira vez. “Será que meu inimigo ouviu
36
e colocou na memória do celular dele?” Mal conseguiu prestar
atenção às aulas. Além do sono, a preocupação de descobrir o
“homem-bomba” que queria detoná-la. “Acho que é assim que
as vítimas de um ataque terrorista se sentem: não sabem quem
é o inimigo, nem quando ocorrerá o próximo ataque nem de
onde ele partirá”. Insegurança total. E medo, muito medo.
Por sua vez, Marcelo ainda estava se adaptando à nova
escola. Sem muita facilidade de fazer amigos, interagia pouco
com os colegas, com exceção dos dois meninos novos que en-
traram junto com ele e que também se sentavam no fundo da
sala. Um deles, mais comunicativo, disse que estava pensando
em pegar os contatos de todos da turma para enviar alguns
links interessantes de um site de vídeos. “Ótimo! Assim vou
pegar com ele o da baleia para bombardeá-la por aí também!”,
animou-se Marcelo, pegando o celular na mochila para, dis-
cretamente, digitar a primeira mensagem do dia: “Com essa
roupa preta, você fica com cara de bruxa gorda!”.
Ouvindo o som de mensagem de texto, Luciana abriu
o celular, apreensiva: “Cara, se sabe que eu estou com roupa
preta, está me vendo, se está me vendo, está aqui na sala, é
a primeira pista. Quem será?”. Virou-se para olhar em volta,
mas Marcelo, atento à reação de sua vítima, disfarçou fingindo
prestar total atenção à aula para não revelar que estava rindo
por dentro, comemorando mais uma vitória no jogo de perse-
guição. Satisfação igual só quando enrolava Tiago e Elisa nas
brincadeiras, confundindo-os para depois acusá-los de esta-
rem roubando nos jogos e desrespeitando as regras, o que os
deixava perturbados e enraivecidos. Marcelo achava tão diver-
tido atormentar os irmãos e implicar com eles que nem se im-
portava com as broncas que levava quando se queixavam dele.
Assim que entrou em casa, de volta da escola, Luciana ligou
o computador para trocar mensagens com Paulo, desejando que
ele lhe desse outras pistas para desmascarar o “menino-bomba”.
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“Lu, vou falar com você em seguida. Minha mãe hoje veio
almoçar em casa e eu preciso resolver umas paradas com ela!”
Mãe e filho viviam empacados no jogo de gato e rato:
quanto mais Deise insistia com Paulo para estudar e terminar
os trabalhos da escola, mais ele resistia; quando Deise tirava-
-lhe o computador e a guitarra para que ele cumprisse as tare-
fas, Paulo ficava deitado na cama durante horas, olhando para
o teto, aparentemente sem se importar com o castigo; Deise
se desesperava achando que nada adiantava para estimular o
filho a estudar, nem que fosse para tirar as notas mínimas para
evitar nova reprovação. A guitarra e o computador retorna-
vam, e Deise pedia socorro ao marido para que chamasse o
filho à ordem. Entre uma viagem e outra, Arnaldo conversava
com Paulo sobre a importância dos estudos, mas o rapaz argu-
mentava que só queria estudar música e não percebia a utilida-
de que as matérias da escola teriam em sua vida.
E, assim, Deise terminava presa no circuito “reclama,
mas faz”. Desgastada com a resistência do filho e preocupada
com as reclamações dos professores, acabava estudando com
ele, fazendo trabalhos, arrumando a mochila para supervisio-
nar o material, certificando-se das tarefas a serem feitas e da
matéria que precisava ser estudada para as provas. Além dos
argumentos do marido que não desistia de insistir que ela pre-
cisava “desmamar” Paulo, aturava as críticas da filha, respon-
sável e muito exigente consigo mesma, que a acusava de “dar
mole” para Paulo, tratando-o como um menino mimado que
nunca iria crescer e tornar-se alguém na vida.
Verdade seja dita: Paulo adorava essa mordomia. Podia
passar horas praticando com a guitarra, sonhando com sua
banda de rock, que o tornaria famoso e traria rios de dinheiro...
Depois de mais uma conversa infrutífera com o filho,
Deise voltou ao trabalho, e Paulo escreveu uma mensagem
para a amiga.
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39
“E aí, Lu? Finalmente, consegui convencer a mãe a não
me tirar o computador, e agora podemos falar com calma. O
idiota parou de perturbar?”
Luciana relatou em detalhes os acontecimentos das últi-
mas 24 horas.
“Cara, agora é trabalho de detetive! Tente ir por exclusão:
descobrindo quem não é, sobra quem é, sacou?”
“E quando eu descobrir, o que faço?”
“Aí é outra parada: a estratégia depende de quem é o ini-
migo. Se o cara for muito forte, não dá pra meter porrada, né?
Vai ter de destruir de outro jeito. E se for uma menina...”
“Não sei, não, mas acho que é menino...”
“No momento, não dá para se prender a uma única hi-
pótese, Lu! Meninas também gostam de zoar outras meninas.
Cabeça aberta, fique ligada!”
Em seguida, uma surpresa que deixou Luciana curiosís-
sima:
“E aí, querida? Estou morrendo de saudades de você!
Esse negócio do seu pai trabalhar até em feriados atrapalhou
nossa Semana Santa e eu agora não sei quando poderei ir ao
Rio ver vocês!”
“Vó, que novidade é essa? Você no computador?!”
“Pois é, quis que você fosse a primeira a saber! Comecei
a ter aulas com uma turma de maiores de 60 e estou aprenden-
do a navegar pela internet! Agora poderemos conversar pelo
computador!”
“Cara, que incrível! Está gostando?”
“Estou adorando! Acho que estou correndo o risco de
ficar mais viciada do que você!”
“Vó, você é o maior barato! Se meus pais tivessem a ca-
beça aberta assim como você... Mas agora não vou poder ficar
conversando porque estou morrendo de fome e tenho de ligar
para uma amiga minha. Beijos, tchau!”
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Antes de falar com Bruna, Luciana foi almoçar. Dete
havia preparado panquecas de camarão com molho de to-
mate, delícia total. Comeu seis e ficou furiosa consigo
mesma ao se lembrar da mensagem em que seu inimigo a
acusava de aumentar a despesa do supermercado. Camarão
custa caro!
— Lulu, pensei demais em você hoje! Teve uma palestra
sobre bullying lá na escola! — disse Bruna à amiga, mais tarde,
ao telefone.
— Bu o que, Bruna? Que raio de palavra é essa?
— B-u-l-l-y-i-n-g! A psicóloga que deu a palestra expli-
cou que não conseguiram encontrar uma palavra em portu-
guês que traduza corretamente o conceito.
— E o que é isso, Bruna?
— É o que o carinha está fazendo com você! É o que aque-
las idiotas fizeram comigo implicando sem parar até me dei-
xarem maluca!
Bruna resumiu para Luciana o que ouvira na palestra:
bullying é um comportamento de agressões físicas ou verbais
feitas de modo repetitivo com o objetivo de ferir moral e até
fisicamente a pessoa escolhida como alvo; e o cyberbullying usa
a tecnologia para bombardear a vítima 24 horas por dia, sete
dias por semana, desespero total!
— E o que a sua escola vai fazer com isso?
— Estão pensando em começar uma campanha antibullying
para conscientizar os alunos de que é errado se divertir fazendo
os outros sofrerem!
— Na minha escola não se fala sobre isso...
— Agora, Lulu, é o seguinte: das cinquenta mensagens que
você recebe por dia, aposto que só se lembra das que o inimigo
manda, verdade?
— Pô, Bruna, pior que é...
— E por que você está dando tanta importância a isso?
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Parece que a mensagem do carinha tem efeitos especiais, bri-
lha, dança na tela!
— Ora, por que será? É óbvio que esse idiota conseguiu
atingir meu ponto fraco, né? Estou com dez quilos a mais, me
acho um lixo quando me olho no espelho, prometo a mim
mesma que vou emagrecer; depois de duas semanas me sacri-
ficando, subo na balança e vejo que perdi só meio quilo: aí eu
desanimo, caio de boca na comida e engordo mais ainda...
— Entendi. Aí olha a mensagem no celular xingando
você de gorda e dá o maior desespero... E o carinha se sente
poderoso, controlando tudo!
— Pois é, ele não me dá descanso, nem consigo fugir de
mim mesma, evitando o espelho, me escondendo nas roupas
largas...
— Ah, estou me lembrando de outro detalhe da pales-
tra e que tem tudo a ver com o carinha que está te atacando:
a psicóloga disse que a pessoa que pratica bullying é insegura
e pouco criativa. Já reparou que tudo o que ele escreve é em
função do seu peso?
— É mesmo... Eu nem tinha pensado nisso...
— Então, pense! E deixe o carinha falando sozinho até se
cansar e escolher outro alvo. Se você continuar respondendo
às mensagens, ele vai ficar feliz, mas aposto que vai continuar
repetindo as mesmas besteiras!
— Só não sei o que eu fiz para ele me escolher entre tan-
tas pessoas...
— Lulu, o carinha nem precisa ser muito inteligente para
perceber que as meninas vivem em guerra com a balança! E,
além disso, você fica sozinha, sem um grupo para te defender,
aí vira alvo fácil, não acha?
— É, pode ser...

42
OS ataquES
continuam...
Duas semanas depois, Luciana, apesar de ter resistido à tentação de en-
viar outras mensagens desaforadas a seu agressor, conti-
nuou sendo torpedeada via celular e computador: “Bruna
tem razão, o carinha é um imbecil, só me chama de gorda!
Por que eu continuo dando a ele tanto poder para me ma-
chucar? Além de gorda, sou uma idiota por estar sofrendo
desse jeito! Esse desgraçado contaminou minha rede! O que
antes para mim era só prazer agora é sofrimento!”.
Abatida com os ataques e atormentada por uma enorme
raiva de si mesma, Luciana estava cada vez mais isolada. Não
conseguia nem mais falar sobre o problema com Bruna e Pau-
lo, que também não sabiam o que mais ela poderia fazer a não
ser falar com os pais e com a orientadora da escola. “Se ignorar
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as mensagens não está produzindo o efeito desejado, se não
descobriu quem a ataca e não consegue deixar de se incomo-
dar com isso, que alternativa resta a não ser pedir ajuda aos
adultos?”, argumentavam os amigos.
Sentimentos contraditórios se chocavam na cabeça de
Luciana: “Isso também não vai adiantar! Na escola, vão dizer
pra eu não botar pilha nesse idiota, meus pais já estão fazendo
um drama enorme com as dores de cabeça e de estômago que
eu ando sentindo e, com certeza, vão pensar que me tirar do
computador vai resolver todos os problemas! E o pior é que
eles vão cismar de conversar com a orientadora, ela vai falar
com a turma, todo mundo vai ficar sabendo que o carinha está
me zoando e que eu estou sofrendo com isso, muitos vão dizer
que são zoados e não estão nem aí pra isso, vão ficar rindo de
mim por transformar um probleminha à toa no maior proble-
mão, eu vou ficar morrendo de vergonha, me sentindo uma
idiota completa e aí vai ser o fim! Prefiro morrer!...”.
Enquanto isso, Marcelo tratava de ampliar os ataques,
que passaram a lhe dar enorme prazer. Adorava ver Luciana
toda encolhida, a cabeça baixa, o rosto abatido, sem sequer ir
para o pátio na hora do intervalo. Tornou-se “sócio” de Leo-
nardo, que acabou lhe revelando o que pretendia fazer com a
lista de contatos da turma:
— Cara, o lance é o seguinte: eu consegui convencer o
Gil a provocar uma briga com o Henry no pátio e imobilizá-lo
com uma “gravata”. Enquanto isso, você filma a cena no meu
celular. Depois a gente coloca na rede e encaminha para todo
mundo, só pra gozar com a cara do moleque!
— Irado! O veadinho vai ter um ataque! É bom pra ele
deixar de ser nerd gay, ridículo, combinando a cor da bermuda
com a camisa, o cabelinho todo penteadinho, sentadinho na
primeira fila, puxando o saco dos professores. Ele merece!
— Viu o que ele fez ontem quando a turma fez “Uh, uh!”?
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— Não! Acho que foi na hora em que eu saí da sala para
ir ao banheiro...
— O gayzinho virou pra trás e falou com a galera: “Ih,
gente, qual o problema? Só porque eu sei as respostas certas
e os professores gostam de mim?” — Leonardo afinou a voz e
exagerou nos trejeitos para imitar o colega.
— Não acredito! Ele fez isso? Esse moleque merece mor-
rer! Outro dia, entrou cheio de marra no carro da mãe, impor-
tado que nem ela!
— Ouvi falar que a mãe dele é inglesa. Mas não precisava
ficar metido a besta falando inglês com a professora! Já não
basta tirar dez em todas as provas?
— É, a mãe é inglesa e o pai é brasileiro. Parece que, em
casa, ele fala inglês com a mãe e português com o pai — acres-
centou Marcelo.
— Como é que você descobriu isso?
— Pô, cara, eu gosto de ouvir a conversa dos outros, as-
sim fico sabendo das coisas!
Porém, mesmo considerando-se “sócio” de Leonardo em
alguns ataques, Marcelo nada lhe revelou sobre Luciana. Que-
ria mantê-la como vítima particular: ser seu torturador secreto
dava-lhe especial prazer. No início, ficou frustrado quando ela
parou de responder com mensagens desaforadas. Depois, che-
gou à conclusão de que isso era desnecessário: apenas observar
as mudanças de comportamento já mostrava a dimensão do
estrago de seus ataques incessantes.
Luciana olhava desconfiada para todos os colegas, ten-
tando adivinhar quem seria seu inimigo oculto e o que ele fa-
ria em seguida. Quando um grupinho achava graça de alguma
coisa, ela logo olhava, aborrecida, possivelmente imaginando
que estariam rindo dela; tornou-se ainda mais calada do que
de costume, sem sorrir um momento sequer, o rosto tenso, a
musculatura contraída. Chegou a pedir licença algumas vezes
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para sair da sala e buscar um remédio na secretaria, queixan-
do-se de dor de cabeça.
Quando Marcelo começou a trocar ideias com Leonar-
do, que também era recém-chegado à escola, descobriu que
ele havia sido expulso da escola anterior por ter se metido em
muitas confusões: a pior foi ter agredido um professor na saí-
da da escola, inconformado por ter recebido uma nota menor
do que a da colega cujo trabalho ele havia copiado. Foi inútil
o pai dele ter discutido com a diretora, afirmando que o filho
ficara enraivecido por ter sido realmente injustiçado: embora
Leonardo tivesse um rendimento razoável, não houve possi-
bilidade de renovar a matrícula, e ele foi convidado a se retirar
por conta dos problemas de comportamento.
Com ossos largos, queixo quadrado, cabelos quase rapa-
dos e músculos bem definidos para seus 13 anos, Leonardo
intimidava muita gente, provocava brigas, desrespeitava a au-
toridade dos professores e humilhava os colegas que percebia
serem mais fracos que ele. Com inteligência aguçada e bem

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articulado, não precisava estudar muito para tirar notas razoá-
veis e passar de ano. Ainda estava “sondando o terreno” na
nova escola, planejando estratégias mais discretas, porém alta-
mente eficazes para realizar seus ataques.
Não queria correr o risco de ser expulso outra vez: seu
pai teve dificuldade em convencer a diretora a aceitá-lo como
aluno e havia recomendado vivamente ao filho que evitasse se
meter em confusões, pelo menos nos primeiros meses, para
não causar má impressão. Em sala de aula, Leonardo deixou
de desacatar os professores, mas questionava os ensinamentos,
interrompia a aula com frequência para fazer perguntas pro-
positalmente complicadas e apresentar argumentos contrários
ao que estava sendo dito. Enquanto isso, seus olhos de águia
estavam atentos para selecionar uma vítima.
Para despistar os colegas, Leonardo enviou alguns ví-
deos sobre temas variados, a partir do endereço eletrônico que
constava da lista da turma. Mas, quando arquitetou a cena da
briga em que Henry seria atacado por Gil e filmado por Mar-

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celo, espertamente ficou de fora argumentando que atuaria
como roteirista, diretor e editor da cena, pensando: “Minha
cara não pode aparecer na tela: se der problema, ninguém po-
derá provar que eu tenho alguma coisa a ver com isso!”.
Elaborou maquiavelicamente o roteiro: no pátio, na hora
do intervalo, Gil se aproximaria de Henry e lhe daria uma
cotovelada. Henry certamente reclamaria, e seria provocati-
vamente chamado de “veadinho escroto”: Marcelo já estaria
filmando de um ângulo em que o rosto de Gil não aparecesse
de frente. Este imobilizaria Henry para colocá-lo em posição
humilhante.
— E pronto! Depois é só colocar legendas, e o filme vai
ficar maneiro! — explicou Leonardo, reunido com Gil e Mar-
celo durante o intervalo.
— Cara, genial! Vamos destroçar esse moleque! — Mar-
celo estava entusiasmado.
— Pô, Marcelo, capricha na filmagem, minha cara não
pode aparecer, porque se der problema não quero me ferrar!
— Gil estava apreensivo.
— Ô, cara, esqueceu que eu vou editar essa parada? O
gayzinho nerd é quem vai ser o astro da superprodução! —
Leonardo falou rindo, procurando tranquilizar o colega.
E assim foi feito: tudo aconteceu como o planejado. As-
sim que Leonardo fez sinal para Marcelo parar de filmar, Gil
liberou Henry, que saiu vermelho de raiva, enxugando as lágri-
mas, direto para a sala de aula. Os três ficaram às gargalhadas,
rememorando cada detalhe da cena, comemorando o sucesso
da primeira fase da empreitada.
Quando começou a aula de Matemática, Henry olhava
fixamente para o professor, o corpo tenso, como se estivesse
segurando o choro. Nem ousou olhar para trás e encarar seus
algozes, que, ainda agitados, conversavam e riam alto, a ponto
de o professor ter de pedir silêncio.
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— Hi, hi, hi!
A risada ecoou nos ouvidos de Luciana. “Epa, é a risada
do carinha quando ele me ligou e não disse nada! Quem será?”
Virou-se rapidamente para ver se descobria quem era, mas Mar-
celo percebeu e tratou de ficar sério, para não ser descoberto.

Ao entrar em casa, Leonardo encontrou o irmão no com-


putador.
— Aí, Pedro, me ajuda a editar uma parada que um cari-
nha filmou no meu celular!
Para Leonardo, seu irmão mais velho era um ídolo: com
ele aprendeu a mexer no computador, a visitar sites pornôs,
entrar em salas de conversa, falar de sexo e de meninas e dar
golpes de artes marciais, já que Pedro, com 17 anos, está bem
mais adiantado do que ele. Apaixonado por fotografia e cine-
ma, Pedro já havia ensinado o irmão a fazer edição de vídeos
e a colocar legendas, mas resolveu se divertir ajudando-o a
“montar a bomba para detonar o gayzinho inglês”. Editaram
trechos da filmagem para compor uma história em que Henry
parecia estar sendo dominado e abusado por Gil; nas legendas,
fizeram várias referências depreciativas ao menino e ainda in-
seriram animações pornográficas.
— Cara, ficou genial! — Leonardo estava ansioso para
enviar o link para Marcelo e Gil, sugerindo como título “To-
mou e gostou!”. Queria saber a opinião deles antes de enviar
para toda a lista.
Marcelo e Gil aprovaram a montagem sem restrições e
trocaram mensagens entusiasmadas, mal podendo esperar
pelo dia seguinte, para ver a cara de Henry e ouvir os comen-
tários dos colegas. Cuidadosamente, Leonardo, orientado pelo
irmão, criou um novo endereço eletrônico, para enviar o link
aos colegas sem risco de ser facilmente identificado.
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No dia seguinte, zum-zum-zum na sala, todos curiosos
para saber quem havia sido o autor do vídeo. Henry não estava
presente. Porém, logo antes do intervalo, a coordenadora en-
trou na sala chamando Marcelo e Gil para uma reunião com
a diretora.
Os dois saíram cabisbaixos, cochichando:
— Por que só a gente? E o Leonardo, vai ficar fora dessa?
— perguntou Marcelo.
— Cara, sacou? Nessa de ser o diretor, o espertinho tirou
o corpo fora e deixou a gente no meio do tiroteio!
— Então a gente tem de entregar ele!
— Com que provas? Só com a nossa palavra? Quem vai
acreditar? — Gil estava assustado e arrependido de ter caído
na armadilha de Leonardo.
Terry, a mãe de Henry, havia enviado o link à diretora
assim que o filho, arrasado, mostrara-lhe o vídeo. De manhã
cedo, Celso, o pai, ligou para marcar uma reunião de emergên-
cia devido à gravidade do caso e exigir providências rigorosas
para punir os culpados. Rosa, a diretora, ficou chocada: era
o primeiro episódio desse tipo que presenciava na escola nos
mais de vinte anos em que trabalhava lá.
— E agora quero saber o que levou vocês dois a cometer
um erro tão grave, difamando e humilhando o colega! — Per-
guntou Celso, o rosto contraído de raiva.
Gil permaneceu calado, olhando para o chão, as mãos
geladas, balbuciando desculpas por ter achado que era apenas
uma brincadeira.
— Como é que você pode ter pensado que era apenas
uma brincadeira um vídeo tão ofensivo, que pode ser acessado
por internautas do mundo inteiro? — Terry olhou firme para
Gil, as veias saltando do pescoço, os olhos azuis arregalados de
indignação, a voz esganiçada, pronunciando as palavras com
sotaque carregado.
50
— Foi a primeira vez que eu participei de um negócio
desses, não pensei que fosse tão ruim, peço desculpas a todos
vocês! — Os olhos de Gil estavam marejados, os joelhos ba-
tiam um no outro, de tão nervoso que estava, só de pensar na
reação da mãe quando fosse comunicada.
Marcelo também estava tenso, a ponta do pé esquerdo
batendo repetidamente no chão, mordendo a unha do dedo
mindinho na tentativa de articular os pensamentos para me-
lhor se defender.
— Não fomos nós que tivemos a ideia, foi o Leonardo!
Henry logo reagiu:
— Mas foi você quem filmou quando o Gil me provocou
e me imobilizou, Marcelo!
— Como assim? A ideia foi do Leonardo e só vocês dois
foram vistos? E quem fez a montagem, as legendas e a anima-
ção? Quem colocou na rede? — inquiriu Rosa.
— O Leonardo! — Gil e Marcelo responderam em unís-
sono.
— Bem, mesmo que ele tenha tido toda essa participação
que vocês estão dizendo, isso não isenta vocês dois da respon-
sabilidade pelo que aconteceu! — disse Rosa e, pelo interfone,
solicitou à orientadora que chamasse Leonardo.
Leonardo saiu da sala protestando, argumentando que
não havia provas contra ele, apenas um complô para incrimi-
ná-lo, que os dois meninos o culpavam apenas para diluir a
própria responsabilidade. Repetiu brilhantemente a mesma
argumentação diante de Rosa, deixando Marcelo e Gil boquia-
bertos. A pedido de Celso e Terry, foi marcada para a manhã
seguinte uma reunião com os responsáveis pelos três, que tam-
bém estariam presentes e não poderiam retornar à sala de aula
até que o problema fosse devidamente solucionado. Ficou de-
cidido também que o vídeo deveria ser retirado do site naquele
mesmo dia.
51
...E aS famiLiaS
Sao chamaDaS
— Ih, cara, sujou? Então vamos logo tirar esse negócio do ar! — Pedro foi
o primeiro a saber do ocorrido, ao ver o irmão chegar agitado.
— Foi o que a diretora exigiu, mas ela gravou o vídeo no
computador e nós também, então nosso trabalho não vai de-
saparecer assim... E eu afirmei na moral que não tinha nada
a ver com isso!
— Mas, cara, é a tua palavra contra a daqueles dois, ca-
pricha na defesa! E o pai também vai te dar apoio, fica frio!
Mas agora deixa eu te contar o que aconteceu ontem na festa
de aniversário da Bibi!
Pedro contou ao irmão que se aproximou de uma menina
de quem ele estava a fim dando-lhe uma mordida no ombro.
— E aí, ela te deu um tapa na cara? — Leonardo adorava
ouvir as aventuras do irmão.
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— Que nada! Ela fingiu que tinha ficado ofendida, mas
até gostou. Aí a gente ficou de pegação até o final da festa!
— Aí, lembrei daquela outra menina que você pegou de-
pois de puxar os cabelos dela numa boate! Ela xingou você,
mas também acabou gostando, né?
Pedro soltou uma gargalhada:
— Acho muito maneiro ser o homem das cavernas!
Ivan, pai de Leonardo e Pedro, chegou na hora do jantar,
mais cedo que a mulher. Envolvida em uma reunião de traba-
lho com a equipe, ela não tinha horário para voltar.
— E aí, filhão, tudo certo?
— Mais ou menos, pai — respondeu Leonardo, esten-
dendo o papel em que a diretora solicitava a presença dos res-
ponsáveis na manhã seguinte e contando em detalhes tudo o
que havia acontecido.
— E, pai, vamos combinar de deixar a mãe fora dessa,
certo? Senão ela vai ficar preocupada e vai me encher o saco...
— Combinado! Gostei de saber que você construiu um
raciocínio correto e tirou o corpo fora para não ser incrimina-
do! — Ivan ficou orgulhoso com a esperteza do filho. — Não
há provas de sua participação: essa será a nossa defesa amanhã!

Na casa de Marcelo, assim que Iracema recebeu a notícia,


ameaçou retirar o computador do quarto do filho por tempo
indeterminado.
— E, ainda por cima, marcaram essa reunião para ama-
nhã cedo? Vou ter de ligar para o meu chefe avisando que vou
chegar atrasada. E nem vou contar para o seu pai, até porque
não adianta falar nada mesmo... Nem quando estávamos casa-
dos ele ia às reuniões da escola, quanto mais agora...
— Pô, mãe, reconheço que foi mau, mas não tem nada a
ver eu ficar sem computador por causa disso...
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— Bom, o negócio é o seguinte: disseram que você fez
coisa errada, não foi? Posso até discordar da conduta da di-
retora, mas você tem de ser punido de algum modo, concor-
da? Se bem que eu acho um exagero fazer esse escândalo todo
por causa de uma brincadeira de crianças. Na minha época, o
pessoal chamava os meninos mais delicados de “mariquinhas”,
apelidava quem era gordo de “rolha de poço”, quem usava ócu-
los era “quatro-olhos”, e ninguém morreu por causa disso!
— Tá vendo? Até você acha que esse negócio não foi tão
grave assim... Se os pais do nerd não tivessem reclamado, a
gente só teria se divertido, sem essa confusão que aconteceu!
— Marcelo, os pais do menino reclamaram porque ele
se incomodou com o que vocês fizeram. Acho melhor vocês
pararem com essa brincadeira de mau gosto! Imagine se eles
tivessem feito isso com você?
Na realidade, Iracema sempre ficava em dúvida se deve-
ria censurar o filho ou deixá-lo livre para fazer o que ela consi-
derava “besteiras normais da adolescência”.
— Se eu tivesse o jeitinho dele e falasse com aquela voz,
a galera ia fazer o mesmo comigo, com certeza! Além de gay,
é nerd, todo certinho, só três meninas conversam com ele,
nenhum garoto chega perto. Ele merece, mãe, a gente não
atacou assim, do nada!

A mãe de Gil ficou furiosa, em parte por causa do prejuí-


zo financeiro: como era dentista, precisou desmarcar os clien-
tes da manhã para comparecer à reunião. Havia ficado viúva
quando Gil acabara de completar nove anos, acumulando a
responsabilidade de sustentar a família e educar o filho.
— Mas, mãe, por que você está reclamando tanto? Você
nunca vai às reuniões da escola...
— E como é que eu posso ir, menino? E o meu trabalho?
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Se eu não estiver lá no consultório atendendo os clientes, não
ganho dinheiro!
— Quando as reuniões são à noite, você também não vai...
— À noite eu estou exausta! Você me vê saindo de casa
para alguma coisa durante a semana? Trabalho em pé o dia
inteiro e depois ainda tenho de cuidar da casa. Agora, amanhã
não tem jeito mesmo, não é? Vou ter de ir, não vou?
— É, mãe, senão não vou poder entrar na escola... — Gil
estava quase chorando de remorso.
— E quem vai pagar meu prejuízo? Você? Vai ficar sem
mesada e sem sair nos finais de semana durante um mês para
pagar pelo menos em parte o que eu vou deixar de ganhar para
ir a essa reunião! E, ainda por cima, estou com vergonha de ter
um filho otário que se deixa enrolar por um espertinho qual-
quer! Onde você estava com a cabeça, menino? Não pensou
nas consequências?
— Pô, mãe, o Leonardo falou com tanta segurança que o
plano ia dar certo que eu acreditei...
— Ah, você é muito bobo mesmo! Mas foi bom ter acon-
tecido isso, vamos ver se pelo menos agora você aprende a não
se deixar influenciar por quem não presta...

No dia seguinte, a reunião com a diretora foi tensa. Cel-


so, Terry e Henry foram os primeiros a chegar. Marcelo estava
com ódio de Leonardo e de Henry: “Que droga eu ter me as-
sociado a esse mau caráter, covarde, que não tem coragem de
assumir o que fez! E esse gayzinho nerd vai me pagar! Quem
mandou sair correndo, chorando, pedindo socorro pra papai
e mamãe? Vai virar mais uma vítima particular da minha co-
leção! Vou torturá-lo até ele morrer de um ataque de coração,
soltando gritinhos, ui, ui, ai, ai!”.
Assim que a diretora começou a falar sobre o motivo da
convocação, Ivan tomou a dianteira para defender o filho:
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— Professora Rosa, para início de conversa, eu vim aqui
para protestar contra a suspensão do Leonardo, punido sem
provas concretas, apenas porque a senhora apressadamente
acreditou na palavra dos dois verdadeiros culpados!
— Mas foi ele quem fez o plano e nos deu toda a orienta-
ção! — argumentou Marcelo.
— Juro por Deus que não estou mentindo! Foi o Leonar-
do quem montou o vídeo e criou as legendas, nem eu nem o
Marcelo sabemos fazer isso! — complementou Gil.
— Eu não fiz coisa alguma! Não sei por que vocês cisma-
ram de me meter nessa encrenca! Só porque eu sou novo na
escola? — A voz de Leonardo soava incrivelmente firme. Com
cara de vítima e pronunciando cada palavra olhando nos olhos
da diretora e dos colegas, era um perfeito ator, capaz de con-
vencer qualquer um de que estava dizendo a verdade.
— Bem, na realidade, não há provas... Henry só viu Mar-
celo e Gil, mas, considerando que Leonardo foi expulso do co-
légio anterior por má conduta...
— Professora Rosa, a senhora não tem o direito de fazer
acusações infundadas baseadas em fatos passados que, aliás,
não se justificaram! No outro colégio, meu filho também foi ví-

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tima de perseguições indevidas! Pelo visto, o mesmo está acon-
tecendo por aqui! É caso de entrar na Justiça com uma ação por
danos morais! — bradou Ivan, levantando-se e olhando duro
para Rosa, com a intenção de intimidar todos os presentes.
Duas horas depois, após a professora Rosa tentar esfriar
os ânimos contemporizando que o vídeo já havia sido retirado
do site, onde havia permanecido por menos de 24 horas, o epi-
sódio foi encerrado com um pedido formal de desculpas por
parte de Marcelo e de Gil. Rosa também fez os dois prome-
terem que não tornariam a provocar esse tipo de ataques sob
pena de uma punição mais severa.
Na saída, Marcelo lançou um olhar de puro ódio para
Leonardo e se aproximou dele, xingando-o baixinho:
— Canalha! Cínico!
— O que é isso, cara? Eu não fiz nada, vocês é que inventa-
ram essa história! — respondeu Leonardo, falando alto, o queixo
empinado, confiante em seu talento de mentiroso convincente.
Ivan deu um abraço forte no filho antes de entrarem no
carro:
— Vencemos! E você se defendeu brilhantemente! Para-
béns, filhão!

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REDimEnSionanDo
o ProbLEma
Luciana ficou chocada ao ver o vídeo que haviam feito com Henry e imedia-
tamente enviou o link para que Bruna e Paulo vissem tam-
bém. “Perto da vergonha que esse menino está passando,
podendo ser visto literalmente pelo mundo inteiro, o meu
problema ficou pequenininho! Meu agressor não deve estar
sozinho nessa, é muita crueldade, e ele não é tão criativo
assim!”
Meia hora depois, ligou para Bruna:
— E aí, já viu? O que você achou?
— Vi o quê, Lulu? Estou na padaria, ajudando papai.
Quer vir até aqui? Acabou de sair aquele pão doce que a gente
ama, cheio de creme amarelo!
— Ai, já me deu água na boca só de ouvir você falar! Da-
qui a meia hora estou aí, tchau!
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Esse era um dos raros convites que, ocasionalmente, Lu-
ciana aceitava. Bruna, que morava com o pai e a avó sambista,
adorava ir à padaria depois da escola, para ver o pessoal da
cozinha trabalhando e sentir o cheiro delicioso dos pães e dos
biscoitos saindo do forno. Gostava também de ficar ao lado do
pai no balcão atendendo os fregueses e conversando com os
que passavam todos os dias nesse horário para comprar pão
para o lanche da tarde. Só deixava de ir para lá quando a mãe,
que trabalhava como aeromoça, ficava em casa descansando
entre um voo e outro e, então, Bruna aproveitava para passar
algumas horas com ela.
Luciana caminhou lentamente as duas quadras de sua
casa até a padaria. Só conseguia vencer a preguiça de fazer
qualquer tipo de atividade física quando era incentivada pela
tentação do pão doce e dos biscoitos amanteigados. Entrando
na “Flor de Copacabana”, logo sentiu o cheiro do frango assa-
do temperado com orégano que rodava nos espetos do forno
bem na entrada da padaria. Um grupo de jovens estava no
balcão tomando refrigerante e comendo coxinha, ainda mo-
lhados e com os pés cheios de areia da praia. “Argh! Detesto
pisar na areia e ficar torrando no sol! Pensar que um monte de
gente daria a vida para morar perto da praia e eu, que posso,
nunca vou...”
Bruna surgiu no balcão e abraçou a amiga:
— Que bom que você veio logo! Quero saber das novi-
dades!
Ao ouvir Luciana contar os detalhes do vídeo, Bruna
lembrou outro episódio de que tinha conhecimento, mais ter-
rível ainda:
— E aí o cara, inconformado porque a garota terminou
o namoro, fez uma fotomontagem colocando o rosto dela no
corpo de uma mulher pelada, criou um anúncio como se ela
fosse uma garota de programa, colocou o número do celular
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dela e divulgou para uma lista enorme de amigos e de amigos
dos amigos! Pode uma coisa dessas? A garota começou a re-
ceber milhares de propostas e ligações de um monte de mar-
manjos falando baixarias! Ela ficou desesperada, acho que até
tentou se matar!
— Eu entendo, também passei por essa de ter vontade de
sumir e até de morrer...
— E sabe outra que uma amiga me contou que aconteceu
na escola onde ela estuda? Um grupinho combinou de provo-
car a professora de Inglês que já é meio estressada até ela per-
der o controle e gritar com a turma. O plano era um carinha
filmar a explosão da pobre coitada e colocar o vídeo na rede
para pressionar o diretor a substituí-la!
— Nossa, que loucura! — Luciana arregalou os olhos,
espantada.
— Lu, mudando de assunto: conseguiu localizar o cari-
nha pelo “hi, hi, hi”?
— Ainda não, mas, sinceramente, já comecei a desen-
canar. Você tem razão: o carinha é pouco criativo. Continua
me mandando as mesmas mensagens, mas agora isso já deixou
de me atormentar. É claro que ainda fico chateada, mas, pen-
sando bem, o que eu preciso mesmo é perder peso. Com esse
pão doce quentinho e cheio de creme, vai ser difícil — Luciana
falou com a boca cheia, mordendo a metade do terceiro pão
doce da tarde.
— E o que você acha que vai acontecer, Lulu? Será que os
carinhas vão continuar atormentando o coitado do Henry, ou
a conversa com a diretora conseguiu acabar com essa história?
— Não sei. Se for um grupinho, acho que eles vão conti-
nuar de modo mais discreto, talvez não desistam tão facilmen-
te. O que mais me impressionou foi a rapidez com que os pais
do Henry agiram e a coragem, ou o desespero dele, de repente,
de contar para a mãe no mesmo dia.
60
— É mesmo... E os caras pegaram pesado com o menino...
— É, esse lance do vídeo é muito pior do que o que acon-
teceu comigo. E eu ainda não tenho vontade de falar sobre isso
com meus pais e muito menos com a orientadora. Isso vai aca-
bar se resolvendo dentro de mim mesma...
Depois de devorar o quinto pão doce, Luciana se despe-
diu de Bruna. Queria voltar para casa, entrar no jogo on-line
com seus parceiros e saber a impressão de Paulo sobre o vídeo.
“Ah, tem a pesquisa de Ciências, amanhã é o dia de entregar e
eu não estou com a menor vontade de começar o trabalho... A
gente deveria ter um tempo entre as aulas para fazer todos os
deveres, e ficar em casa só para se divertir...”
Ela e Paulo pensavam exatamente a mesma coisa nesse
aspecto. Por mais que Deise e Arnaldo tentassem convencer o
filho a aceitar a regra “primeiro os deveres, depois os prazeres”,
para Paulo a diversão era o mais importante; com tanta coisa
interessante para fazer no quarto, os deveres ficavam para de-
pois e, sempre que possível, para nunca!
Mais duas quadras para caminhar de volta para casa.
“Argh! Não sei como meus pais acham tanta graça em andar
quilômetros pelo calçadão, junto com essa galera que acha
saudável fazer isso. Bom, pelo menos dá para queimar algu-
mas calorias de tudo que comi...”
Quando pequena, os pais a obrigavam a fazer natação
como “recurso indispensável para a sobrevivência”, embo-
ra Luciana nunca tivesse gostado de banho de piscina nem
de mar. Depois, insistiram para que ela fizesse balé, ginásti-
ca olímpica, tênis. A menina cumpria o combinado de ficar
pelo menos seis meses em cada atividade para experimentar
e aprender alguma coisa, mas, logo depois, desistia. Até que
mergulhou de cabeça na realidade virtual e passou a recusar
qualquer compromisso além da escola. Não praticava esportes
nem em sua vida virtual.
61
62
Ao entrar em casa, foi direto para a cozinha beber água
e encontrou Dete com cara de choro descascando legumes
para a sopa do jantar de seus pais, que tomavam o maior cui-
dado com o peso (“E ainda dizem que o exemplo dos pais é
importante... há filhos que, como eu, não ligam a mínima
para isso...”).
— Oi, Dete, o que aconteceu? O Maicon outra vez?
— É... Fui chamada na escola de novo, porque ele faltou
quase uma semana, as notas estão péssimas, acho que ele gas-
tou naquela maldita lan house todo o dinheirinho que ganhou
dos avós e dos tios pelo aniversário. Essa atração pelo compu-
tador é mesmo tão forte assim, Luciana?
— É irresistível, Dete, sinto muito dizer isso. Os adultos
não conseguem entender que esse mundo é muito mais inte-
ressante e divertido. Quando a gente entra, não dá a menor
vontade de sair!
— Mas a vida não é só diversão, Luciana, tem de estudar,
depois tem de trabalhar...
— Ai, você está repetindo o papo dos meus pais, não
quero saber disso não...
Entrou no quarto e ligou o computador para trocar men-
sagens com Paulo:
“E aí, zumbi? Viu o vídeo?”
“Na mesma hora! Por coincidência, logo depois recebi
outro, mostrando cenas com três meninas da minha escola e
um marmanjo pedindo votos para eleger a mais baranga!”
“O quê?! Espero que na minha ninguém tenha a ideia de
eleger a mais gorda... Não quero ganhar esse concurso... Mas
qual é, Paulo? Os caras agora só querem saber de humilhar os
colegas?”
“A tal ponto que eu ouvi dois professores comentando
que a diretoria está pensando em proibir o uso de celulares na
escola. Com a facilidade de fotografar e filmar, a situação está
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ficando fora de controle. Mas isso não vai resolver o problema:
tem uma garota na minha turma que quer ser popular mas é
tão pegajosa que ninguém aguenta: aí criaram uma comunida-
de num site de relacionamento chamada ‘A Adriana é a mais
chata da escola’. Ela ficou supermagoada!”
“Não há limites para a crueldade humana...”
“Ih, Lu, resolveu filosofar hoje?”
“É, estou inspirada! Agora, sério: quem faz isso é muito
covarde, porque se esconde no anonimato da rede.”
“Concordo. Agora, voltando ao vídeo do Henry: aqui-
lo foi serviço de profissional, hein? Descobriram mais alguma
coisa?”
“Sei lá. Os que foram chamados para a reunião não qui-
seram comentar coisa alguma com a turma. E a orientadora
também não conversou com a gente. Só sei que retiraram o
vídeo do site no mesmo dia. Aí resolveram o problema...”
“Nada a ver. Os caras podem tornar a colocar quantas
vezes quiserem. Depois que entra na rede, é difícil sair...”

64
AmEacaS
E NovaS IDEiaS
Depois do intervalo, de volta à sala de aula, Henry viu um bilhete na cadeira
em que ia se sentar, escrito em letras vermelhas: “Da próxi-
ma vez que se queixar pra mamãe, eu vou quebrar você de
verdade, seu veadinho escroto!”.
Ele ficou atordoado, sem saber como reagir: “Levo isso
para casa e falo com meus pais? Me levanto, encaro a turma
e pergunto quem foi? Mostro para o professor? Se foram os
mesmos, ainda não aprenderam que eu tenho o direito de ser
respeitado?”.
Enquanto lia o bilhete pela terceira vez, o jovem profes-
sor de Biologia entrou na sala. Impulsivamente, Henry levan-
tou-se e lhe entregou o papel, dizendo em voz alta:
— Quero saber quem escreveu isso! Eu não aceito ser
ofendido nem ameaçado!
65
— Ohhhhh! — o coro ecoou pela sala.
“Esse garoto sofre, coitado, mas é muito corajoso! Eu ja-
mais peitaria a turma desse jeito, como é que ele consegue?”,
pensou Luciana, sem participar da zoação.
O professor leu e ficou hesitante: “O que faço com isso?
Saio da sala, entrego o bilhete para a orientadora e peço que
ela venha conversar com a turma? Ou é melhor eu mesmo ten-
tar resolver o problema agora? Tenho tanta matéria para dar...
Mas isso não pode ficar para depois...”. No meio desse turbi-
lhão de pensamentos, resolveu intervir:
— Silêncio, pessoal! Alguém se comportou mal escre-
vendo essa mensagem, e o colega está fazendo uma reclama-
ção justa! Será que o autor desse bilhete vai ter a coragem de
se apresentar?
A turma ficou agitada, todos falando ao mesmo tempo.
Henry ficou vermelho, tentando conter o choro.
— Chora, belezinha, chora! — a voz de falsete se desta-
cou no falatório, e a turma caiu na gargalhada.
O rosto de Henry ficou ainda mais vermelho, a vergonha
se misturando com raiva e indignação, as lágrimas escorrendo.
— Professor, peço licença para sair da sala e falar com
a orientadora! — disse Henry, soluçando e pedindo o bilhete
de volta.
— Pode ir, se você se sentir melhor assim, Henry. Eu vou
conversar com a turma.
— Ai, que sensível! — a voz de falsete, vinda do fundo da
sala, fez-se ouvir novamente.
A conversa foi tensa, as opiniões divididas. Os poucos
que viram quem estava falando com a voz de falsete não tive-
ram coragem de delatar, por medo de serem os próximos alvos
de ataques. Alguns, mais ousados, revelaram seus preconcei-
tos; outros defenderam a censura à falta de respeito:
— Homem que é homem não fica chorando por qual-
quer coisinha!
66
— Se fosse macho de verdade não sairia correndo pra
se queixar, tem de resolver o problema metendo porrada em
quem fica zoando desse jeito!
— Gente, mas isso é falta de respeito, não está certo hu-
milhar as pessoas!
— Não precisa fazer tanto drama, garotos brincam as-
sim, chamando uns aos outros de gay!
— Ficar assim, ofendidinho, já denuncia...
— Brincadeira que machuca é agressão, não dá para acei-
tar como coisa normal, porque não é!
Após a aula, o professor foi à sala da diretora para relatar
o ocorrido e soube que Henry ainda estava conversando com a
orientadora. Rosa contou em detalhes os antecedentes do caso
e esclareceu que havia convocado um encontro com a coorde-
nadora e a orientadora para planejar ações mais amplas com o
objetivo de evitar a intensificação dos ataques. Explicou que,
como se observa em todas as escolas, condutas de azucrinar
colegas, zoar, colocar apelidos pejorativos, excluir do grupo,
discriminar os diferentes, bater e ameaçar sempre aconteceram
e que se deve lidar com isso conversando com os agressores e
as vítimas e, quando necessário, também com os responsáveis.
— No entanto, professor, estamos preocupados com o
aumento dos episódios de cyberbullying. Os ataques são mais
pesados, cruéis, e ultrapassam as fronteiras da escola, é muito
mais difícil de controlar. Os pais também estão preocupados
com a dificuldade de monitorar a navegação dos filhos pela in-
ternet e muitos se surpreendem quando nós os chamamos para
confrontá-los com o material impresso que comprova as trocas
de mensagens ofensivas ou as ameaças feitas via computador.
— Pois, então, professora Rosa, sugiro convocar uma
reunião com os professores. Precisamos criar um consenso so-
bre a conduta que devemos ter quando surgem essas situações
em sala de aula.
67
— A reunião com os professores será apenas uma parte
de um projeto maior que, na verdade, envolverá toda a co-
munidade escolar. Nossa coordenadora trouxe o material de
uma pesquisa que foi feita recentemente com mais de dois
mil alunos de escolas públicas e privadas sobre a prática do
bullying e entrou em contato com uma colega de outra escola
que iniciou uma campanha antibullying que está sendo mui-
to eficaz para conscientizar os alunos de que é inaceitável se
divertir à custa do sofrimento dos outros.
— Ótima ideia! Meu pai também é professor e às vezes
conversamos sobre esses desafios da sala de aula. Ele comen-
tou que, quando se começou a falar de bullying, a maioria dos
diretores dizia que isso não acontecia nas escolas deles, e mui-
tos alunos se queixavam de que os professores faziam vista
grossa quando presenciavam essas cenas de violência.
— É verdade, professor. Eu lembro até hoje que, quando
tinha uns 8 anos, um garoto sempre sentava atrás de mim para
puxar meu rabo de cavalo; quando eu reclamava, ele me pro-
vocava dizendo “Pocotó, pocotó, pocotó”! Ele me atormenta-
va! E não adiantava eu me queixar com a professora, ela dizia
que isso era brincadeira de crianças...
68
— E eu, com 10 anos, por ser muito magro e tímido,
virei saco de pancadas de um valentão da turma que me cer-
cava nos corredores da escola para me chutar, socar minha
cabeça e derrubar meu material escolar no chão. Ele adorava
me ridicularizar e fazer com que os outros ficassem rindo de
mim. Tinha vergonha de falar com meus pais, porque eles me
mandariam reagir e bater de volta. Cheguei a adoecer com
dor de estômago de tanto medo de ir para a escola... E isso era
considerado normal entre os meninos.
— Pois é, professor, antigamente espancar os filhos,
aterrorizá-los com ameaças e castigos violentos também era
considerado um jeito de educá-los. Hoje, isso é violência do-
méstica, e os pais que insistem em agir assim podem ser de-
nunciados ao Conselho Tutelar. Da mesma forma, a agressão
repetitiva que antes era considerada brincadeira de criança
hoje é bullying, uma conduta inaceitável.
— É verdade, professora Rosa, os conceitos mudaram.
Novos tempos...
— Por isso, estamos pensando em chamar nossa campanha
antibullying de “Agressão não é diversão”. O que o senhor acha?
— Excelente ideia!
69
No final das aulas, Luciana resolveu falar com Henry
pela primeira vez. Sentia pena por ele estar sofrendo como ela
e admiração pela coragem de pedir ajuda, mas, ao mesmo tem-
po, não sabia bem o que dizer nem como sua aproximação se-
ria recebida. Arriscou:
— Oi, Henry, acho muito ruim o que estão fazendo com
você, mas pode contar comigo para o que precisar, tá?
— Valeu, Luciana, obrigado pela força. Mas acho que a
direção da escola tem que punir os responsáveis. Isso não está
certo! — Henry estava abatido e com os olhos ainda vermelhos
de tanto chorar, mas, ao mesmo tempo, determinado a pedir
ajuda e exigir o devido respeito.
— Você tem razão! É muito legal sua coragem de se ex-
por em vez de sofrer em silêncio — disse. “Como eu”, pensou.
— Minha mãe me ensinou que a gente nunca deve se
calar diante de agressões e de injustiças, senão elas continuam
crescendo, e os culpados ficam impunes!
Luciana voltou para casa cheia de dúvidas: “Será que é
melhor falar com a orientadora? Será que há outros colegas
sofrendo em silêncio? Se todos tivessem a atitude do Henry,
os agressores ficariam acuados! Quando a gente se cala, eles
deitam e rolam! E por que ninguém defendeu o Henry quando
ele mostrou o bilhete para o professor? Se a turma toda repro-
vasse a agressão, talvez os ataques terminassem... Os que não
gostam disso precisam se unir para inibir esses terroristas! E se
eu contasse para os meus pais, agora que já não estou sofren-
do tanto quanto antes? Poderia começar dizendo que eles não
precisam se preocupar em me afastar do computador... Ai, não
consigo imaginar desgraça maior na minha vida do que ficar
sem entrar na rede!”.
Em casa, almoçou um suculento bife malpassado, creme
de espinafre gratinado e batatas ao forno cobertas com uma
grossa camada de queijo parmesão.
70
— Uau, Dete, hoje você caprichou geral! E está com cara
de feliz, arrumou namorado novo?
— Ai, quem me dera! Os homens estão cada vez mais
complicados, Luciana, ninguém quer compromisso... Tenho
mais é que cuidar do meu filho. Tenho rezado muito para que
Deus ilumine o Maicon e ele tome juízo. Essa semana ele está
indo à escola direitinho, mas ainda vai à lan house.
— E qual é o problema? Você precisa entender o barato
do computador!
— Entendi um pouco mais depois que tivemos uma con-
versa séria e ele me explicou que na lan house ele não fica jo-
gando o tempo inteiro, também faz pesquisas para os trabalhos
da escola e se comunica com os colegas, assim como você faz.
Quando Luciana estava terminando de se deliciar com a
comida da Dete, tocou o celular:
— Lulu querida, vou falar rapidinho com você porque
tenho de fazer uma pesquisa enoooorme de História e tenho
prova de Matemática amanhã! E, ainda por cima, levei uma tre-
menda bronca do papai por causa da conta do celular... Vai des-
contar da minha mesada, ai, ai, ai... E aí, como estão as coisas?
— Tudo bem, Bruna! Quer dizer, mais ou menos, né? O
coitado do Henry foi atacado de novo por um moleque, recla-
mou na frente de todo mundo exigindo respeito e saiu da sala
chorando. E eu estou na maior dúvida se falo sobre o que está
acontecendo comigo ou se continuo calada...
— Lulu, me diga uma coisa: afinal, o que o pessoal da sua
escola vai fazer com essa praga do cyberbullying?
— Sei lá, depois daquela reunião, não soube de mais
nada. Hoje, o professor de Biologia tentou conversar com a
turma, todo mundo ficou falando ao mesmo tempo, e nin-
guém se entendeu.
— A novidade é que na minha escola começou a tal cam-
panha de combate ao bullying. Nós já havíamos respondido ao
71
questionário da pesquisa para ver quais os comportamentos
de bullying mais comuns na escola. Depois de analisarem as
respostas, fizeram uma cartilha explicando o que é bullying,
as ações mais comuns, os efeitos sobre o agressor, a vítima e as
testemunhas e o que podemos fazer para acabar com isso. Vou
ver se consigo uma cópia para você. De repente vai ser uma
boa você levar para sua escola!
— Você acha que isso vai adiantar alguma coisa? Os
agressores vão achar engraçado receber uma cartilha dessas...
— Acho que vai ser legal, Lulu! O tema está em evidência,
ainda mais agora que tem até filmes e programas de TV com
personagens sofrendo e praticando bullying. Eles conversaram
com todas as turmas explicando como vai funcionar a campa-
nha, que vai ser feita com toda a comunidade escolar e com as
famílias também. Os inspetores vão ficar de olho nos corredo-
res e no pátio para agirem quando presenciarem agressões.
— E os alunos?
— Vamos ter reuniões na sala multimídia para ver vídeos
sobre o cyberbullying e trocar ideias sobre o tema. Os professores
vão incluir o assunto na matéria deles, os representantes de tur-
ma vão ser estimulados a dar ideias para reforçar a cooperação
entre os colegas, e os alunos vão ser encorajados a denunciar
quando sofrerem ataques ou virem alguém sendo maltratado.
— Denunciar, Bruna? Quem vai querer ser visto como
dedo-duro? Quem se atrever a fazer isso depois pode ficar na
pior, não acha?
— Não acho, não! O que eles disseram é que o silêncio
encoraja o agressor a ser ainda mais violento. Principalmente
no cyberbullying, em que o covarde se esconde no anonimato
da rede. Quem cala consente, conhece esse ditado, né? Agora,
tchau, preciso estudar, beijos!
Luciana ficou pensativa: seu silêncio começava a inco-
modá-la.
72
VitimaS
E aLgoZES
Elisa chegou da escola chorando e foi logo se aninhar no colo do pai, que
havia chegado mais cedo do trabalho. Quando Marcelo saiu
do quarto para ir à cozinha pegar um pacote de biscoitos,
não perdeu a oportunidade de implicar com a irmã:
— Qual é, maria-mijona e chorona?
— Para, Marcelo! — choramingou Elisa, fazendo careta.
— Você é quem tem de parar de chorar que nem bebezi-
nho, sua idiota!
Vítor se irritou:
— Pare de maltratar sua irmã! Você nem sequer se inte-
ressa em saber qual é o problema!
— Aí, qual é?
— Minha melhor amiga arrumou uma amiga nova que
73
não quer que ela seja minha amiga, aí ela disse que não ia mais
brincar comigo, e agora eu fico sozinha no recreio! — Elisa
desatou a chorar abraçada ao pai.
— Hum... Frescura de menina...
— Marcelo, você esqueceu que ser excluído dói? Não
lembra que você passou por isso quando aquele “chefinho” da
turma não deixava você jogar bola no intervalo?
— Isso já era faz muito tempo! Eu aprendi a jogar melhor
e passei a fazer parte do time.
— E, além disso, passou a excluir os mais fracos, exata-
mente como faziam com você, não foi?
— É claro! É melhor eu fazer do que sofrer!
— Não é possível que você não se incomode em causar
sofrimento tendo sentido isso na própria pele!
— Quer saber, Vítor? Acho engraçado ver os outros so-
frendo. Agora estou me divertindo vendo essa bobinha cho-
rando no seu colo...
— Bobo é você, seu feio chato! Vai embora! — Elisa fez
uma careta para o irmão.
— E vou mesmo, tenho coisas mais interessantes pra fa-
zer! — Marcelo entrou no quarto e bateu a porta.
Elisa abraçou o pai com força para confessar o que estava
difícil dizer:
— E sabe o que mais aquela idiota fez comigo? Espalhou
para a turma inteira que eu gosto de comer meleca! Agora
todo mundo fica rindo de mim...
— Liga não, filhinha! Seus amigos não vão acreditar nes-
sa mentira, eles sabem que você é uma menina bonita, limpi-
nha e cheirosa!
— Pai, me tira dessa escola, por favor! — Elisa afundou o
rosto no peito de Vítor, chorando copiosamente.

74
Trancado no quarto, Marcelo enviava uma enxurrada
de mensagens ofensivas para Luciana. Porém, pensando em
continuar implicando com a irmã, distraiu-se e acabou man-
dando as mensagens pelo endereço pessoal em vez de usar o
que tinha criado especialmente para atacar a colega.
A face oculta, finalmente, foi revelada: “O 'hi-hi-hi' é do
Marcelo! Esse filho da mãe é o meu inimigo!”, Luciana surpre-
endeu-se com a descoberta inesperada.
“Será o fim da lei do silêncio! Esse desgraçado vai ter o
castigo que merece!” Decidiu imprimir as mensagens, contar
tudo para os pais e levar o material para a orientadora. A ati-
tude de Henry e a conversa com Bruna tinham lhe dado força
para ser guerreira.
Alzira chegou em seguida e foi direto ao quarto da filha
dar-lhe um beijo. Encontrou Luciana enraivecida, imprimin-
do as mensagens.
— Que cara é essa, menina?
— Cara de raiva, mãe, muita raiva de mim mesma e des-
se infeliz que vai se arrepender de ter nascido!
E contou à mãe, chorando e abraçada a ela, toda a histó-
ria, tirando um enorme peso dos ombros.
— Querida, por que você passou esses meses todos so-
frendo sozinha, sem falar comigo e com seu pai? — Alzira,
com lágrimas nos olhos, acariciava o rosto da filha.
— Ah, mãe, vocês vivem me perturbando, dizendo que
eu estou gorda... Com certeza iam achar que o carinha estava
com a razão de ficar me atacando desse jeito!
— Meu amor, são duas coisas completamente diferentes:
seu pai e eu ficamos no seu pé para cuidar de você, a gente se
preocupa com a sua saúde, você come demais não só porque é
gulosa, mas por ansiedade, e aí a gente fala mesmo! Mas esse
garoto está te atacando, e ele não tem o direito de fazer isso
nem com você nem com ninguém! Quando seu pai chegar,
75
76
vamos conversar com ele e nós três iremos à escola amanhã
mesmo para falar com a diretora!
Quando Leandro chegou e ouviu a história, ficou in-
dignado:
— Isso é cyberbullying! Sabia que isso é crime? Esse ga-
roto não deve ter noção do que está fazendo, pensa que é
brincadeirinha e deve estar se divertindo muito com isso! A
diretoria precisa saber disso e tomar providências imediatas!
Vamos à escola mostrar essas mensagens. E, agora, precisa-
mos também ter uma conversa séria sobre o uso do compu-
tador, mocinha. Pelo visto, você não está sabendo se proteger
na rede...
Luciana ficou pálida.
— Não, pai, pelo amor de Deus, não me tire da rede, eu
não sei viver sem isso!
— Você não está vivendo como gente normal da sua ida-
de, e você sabe muito bem disso!
Luciana saiu do colo da mãe, levantou-se e começou a
gritar, completamente transtornada, sapateando pelo quarto:
— Viu, viu, mãe? É por isso que eu fiquei todo esse tem-
po calada! Pior do que ser atacada pelo carinha é vocês me
tirarem do computador! Vocês não entendem nada disso, ficar
na rede é a coisa mais importante da minha vida! Se vocês me
tirarem o computador, eu vou me matar!
— Pare de falar bobagens, menina! — Leandro segurou-
-a pelo braço com firmeza, e Luciana tentou se desvencilhar,
enfurecida.
— Ai, pra que eu fui confiar em vocês? Agora perdi mi-
nha razão de viver! — Luciana se atirou de bruços na cama,
chorando convulsivamente.
Alzira fez um sinal para Leandro sair do quarto e deixá-
-la a sós com a filha. Aproximou-se suavemente, sentou-se na
cama, acariciando os cabelos de Luciana.
77
— Calma, querida, não se trata de te tirar da rede, a gen-
te sabe o quanto isso é importante para você. Mas precisamos
cuidar melhor da sua proteção. Só isso.

Nessa mesma noite, Terry, por curiosidade, procurou no


site de vídeos pelos termos “Tomou e gostou!” e, horrorizada,
descobriu que o vídeo havia sido recolocado. Imediatamente,
chamou o marido e o filho.
— Nós três precisamos falar com a diretora amanhã
cedo! Isso é caso de polícia! Quem está fazendo isso é um psi-
copata sem coração! Precisamos descobrir quem é esse bandi-
do! — disse, indignada.
Celso concordou com a mulher:
— Vamos tentar esclarecer o caso com a escola. Se não
conseguirmos, iremos à polícia fazer uma denúncia. De lá, eles
poderão encaminhar o caso para a delegacia especializada em
crimes de informática. O problema é que isso vai envolver nosso
filho, que também terá de se apresentar para prestar depoimento.
— Eu vou, pai, sem problemas. O que não é possível é
esse bandido continuar sem punição!
Na manhã seguinte, antes de o portão da escola abrir, os
seis estavam à espera da diretora. Assim que Henry viu Lucia-
na com os pais, aproximou-se para falar com ela:
— Você também está com problemas?
Luciana abraçou-o:
— Estou, companheiro. Só que você foi mais corajoso do
que eu e, mesmo sem saber, me deu a maior força.
Leandro e Alzira ficaram chocados quando souberam
o que Henry estava passando. Decidiram entrar todos juntos
para perguntar como a escola estava planejando lidar com es-
ses episódios e criar uma rede de pais para proteger os filhos
dos crimes cibernéticos.
78
Rosa engoliu em seco quando a secretária anunciou a
presença das duas famílias que queriam entrar juntas para fa-
lar com ela. “O que será dessa vez? Esse menino de novo? E
com essa menina, o que terá acontecido? Meu Deus, essa cam-
panha precisava ter acontecido no ano passado, só espero que
agora não seja tarde demais! A situação está começando a ficar
fora de controle...”
A conversa acabou sendo muito produtiva. O clima era de
preocupação, mas terminou-se por decidir criar uma rede de co-
laboração envolvendo os professores, os demais funcionários da
escola, os próprios alunos e as famílias.
Leandro, Alzira, Terry e Celso se dispuseram a liderar
um grupo de pais para estimular o uso responsável da rede e
a proteção mais eficaz contra os perigos e os ataques. Luciana
se prontificou a levar a cópia da cartilha que havia sido distri-
buída na escola onde Bruna estudava. Rosa se comprometeu a
convocar uma reunião de emergência para dar início à cam-
panha o quanto antes, já que todos estavam com a sensação
de que não havia mais tempo a perder. Era preciso esclarecer
urgentemente que as ações de bullying e de cyberbullying são
inaceitáveis, estimular modos saudáveis de diversão, fortalecer
a cooperação entre todos e a cultura da paz e da não violência
na escola.
— Muito bem, professora Rosa. Espero que a campa-
nha “Agressão não é diversão” seja bem-sucedida. Porém,
precisamos cuidar dessas duas situações que se apresentam:
o agressor de Luciana já está identificado, mas o que faremos
com o de Henry? Quando o vídeo foi retirado do ar, ficamos
aliviados e não demos prosseguimento à investigação, mas o
problema retornou e, se não conseguirmos uma solução pela
escola, vamos denunciar o caso à polícia — disse Celso, com
voz enfática.
Rosa respirou fundo.
79
— Pode ter certeza de que vamos pesquisar isso a sério.
Vamos chamar o Marcelo agora, para confrontá-lo com o ma-
terial impresso e ver como ele poderá colaborar para elucidar
o caso do Henry.
— Honestamente, professora Rosa, não gostei nem um
pouco da atitude do Leonardo e do pai dele na nossa reunião
anterior! — disse Terry. — Tenho a impressão de que esse ga-
roto está envolvido, sim, e isso precisa ser investigado mais a
fundo. No meu entender, o pai estava claramente acobertando
o filho e tentando nos intimidar. Infelizmente, há famílias que,
em vez de educar, aplaudem condutas antissociais dos pró-
prios filhos!
— É isso mesmo! O Leonardo é um cara inteligente e
muito esperto, acho que ele apronta em segredo, joga os outros
na fogueira e sai de fininho! — agregou Henry.

80
Confronto E
conSEquEnciaS
Marcelo já havia percebido a ausência de Luciana, que nunca faltava à es-
cola, embora quase sempre adormecesse nas aulas. Saiu in-
trigado da classe, ao ser convocado para comparecer à sala
da diretora. “Putz! Só agora liguei uma coisa com a outra:
mandei e-mails pra baleia pelo meu endereço pessoal, e ela
deve estar se queixando dos meus ataques! Já me ferrei com
o veadinho, agora vou me ferrar com essa menina...”
Quando deparou com Luciana, Henry e os pais de am-
bos, seu coração disparou. Ficou sem saber o que fazer para se
defender.
— E, então, Marcelo, o que você tem a nos dizer com re-
lação a isto? — perguntou Rosa, olhando-o com o rosto sério, a
voz grave, entregando-lhe as folhas com as mensagens impressas.
81
Marcelo começou a suar frio, o olhar fixo nas folhas, sem
coragem de encarar os presentes. Balbuciou:
— Desculpe, foi mau...
Luciana bufou de indignação. Puxou a cadeira para perto
de Marcelo.
— Cara, olhe bem no meu olho. “Desculpe, foi mau” é
muito pouco! Você faz ideia da tortura que você está fazendo
comigo há meses? E, ainda por cima, na maior covardia, es-
condido na rede com uma identidade falsa? Enviando mensa-
gens de texto ofensivas ocultando o número do celular? Nunca
pensou como é desesperador a gente passar a ter um inimigo
que surgiu assim, do nada, que a gente não sabe quem é, onde
está e quando vai atacar? E, pior, sem ter feito coisa alguma
para merecer isso? Por acaso alguém, alguma vez na sua vida,
ficou cutucando sua ferida todo santo dia para não parar de
sangrar nem de doer?
— Pior que já... — Marcelo falou baixinho, desviando o
olhar para o chão.
— E, então, como é que você consegue sentir prazer em
me torturar tendo passado pelo sofrimento de ter sido agredi-
do? — Luciana se exasperou.
— Não sei, não pensei nisso... — murmurou Marcelo.
— A gente sabe que há pessoas agredidas que se tornam
agressoras — disse Rosa. — Mas, agora, o mais importante é
que você, Marcelo, assuma conosco o compromisso de parar
imediatamente de atacar Luciana. Amanhã vou conversar com
seus pais sobre as consequências cabíveis. E mais: Terry desco-
briu que o vídeo com Henry foi recolocado no site. Temos de
esclarecer totalmente essa história, que é muito grave, e quere-
mos ouvir sua versão.
Marcelo relatou, em detalhes, toda a trama proposta por
Leonardo. Todos ouviram atentamente.
— Obrigada por sua colaboração, Marcelo. Agora, vocês,

82
Henry e Luciana, podem retornar à sala de aula, quero conver-
sar em particular com os pais. — Rosa deu um longo suspiro.
Todos acharam a versão de Marcelo muito coerente e
concordaram que seria necessário investigar Leonardo mais a
fundo. Rosa decidiu trocar ideias naquele mesmo dia com a
diretora da escola da qual ele havia sido convidado a se retirar,
convocar para o dia seguinte, no primeiro horário, um encon-
tro com os pais do garoto e chamá-lo de imediato para uma
conversa particular.
Ao observar a ausência de Henry na sala e a saída de
Marcelo para falar com a diretora, Leonardo ficou inquieto
e resolveu pedir licença à professora para ir ao banheiro. Na
verdade, dirigiu-se ao laboratório de informática para retirar
o vídeo do site: “Caramba, eu só reenviei o vídeo pra ele fi-
car rodando pelo mundo, mas não falei pra ninguém. Quem
descobriu?”.
Enquanto isso, a orientadora entrou na sala para convo-
car Leonardo para conversar com Rosa, e a professora infor-
mou que ele estava demorando a retornar do banheiro. Ela,
então, pediu a um inspetor que encontrou no pátio que verifi-
casse se ele ainda estava por lá. “Ninguém no banheiro. Onde,
então?” Ainda olhando em volta, viu quando Leonardo saiu do
laboratório de informática. Foi até ele:
— Ah, até que enfim encontrei você! Podemos ir direto
para a sala da diretora!
— Para quê? Assim, sem mais nem menos? Tenho de as-
sistir à aula, não posso perder a matéria! — Leonardo empinou
o peito falando com voz firme para aparentar segurança.
— Parece que pode perder a aula sim, não é, rapaz? Caso
contrário, não estaria tão ocupado no laboratório de informá-
tica — retrucou ironicamente a orientadora.
Leonardo não respondeu, mas ficou preocupado: “Isso
não vai dar certo!”.
83
Quando ele e a orientadora entraram na sala, e Rosa sou-
be que ele havia sido encontrado saindo do laboratório de in-
formática, a diretora chegou a sentir-se aliviada: agora ficaria
mais fácil provar sua participação no ataque a Henry.
— E, então, Leonardo? Henry e os pais estiveram aqui
hoje cedo para me dizer que o vídeo ofensivo foi recolocado
no site. Quero ouvir você sobre isso.
— Por que eu? Não tinha ficado claro que eu não tenho
nada a ver com isso? Acho melhor a senhora chamar o Mar-
celo e o Gil, eu não sei nada sobre essa história! — Leonardo
tentava falar com voz firme, olhando diretamente para Rosa,
para aparentar segurança, mas, na verdade, estava assustado.
— Muito bem, então quero que você me esclareça o que
estava fazendo no laboratório de informática em vez de estar
assistindo à aula de Geografia.
— Fui resolver um probleminha urgente... — respondeu,
irônico.
— Ah, é? Um probleminha urgente... Por exemplo, tor-
nar a retirar o vídeo do site?
— A senhora está me caluniando! — Leonardo tentou
imitar o jeito prepotente do pai.
— Muito bem, rapaz. Quero lhe informar que já man-
dei um aviso para seus pais comparecerem à escola amanhã
para conversar comigo. E, agora, vamos ao laboratório de in-
formática para examinar o computador que você acabou de
utilizar.
— Mas, mas... — Leonardo começou a gaguejar, já de-
sarticulado.
— Vamos, rapaz! — Rosa levantou-se, abriu a porta e fez
um sinal a Leonardo para que a acompanhasse.
Não houve como negar a evidência: o técnico do labora-
tório prontamente indicou o computador que acabara de ser
utilizado e, no histórico do navegador, lá estava o site de vídeos
84
85
indicando o acesso recente. Leonardo coçou o queixo lenta-
mente, tentando articular as ideias.
— E então, Leonardo? Agora você pode me contar a ver-
dadeira história.
A versão de Leonardo coincidiu com a de Marcelo. Rosa
sentiu-se aliviada: “Agora a justiça será feita! Depois é desco-
brir como ajudar esse garoto a se regenerar”.
Na manhã seguinte, o pai de Leonardo, alegando uma
reunião de trabalho inadiável, não compareceu. Porém Már-
cia, a mãe, chegou dez minutos antes do horário marcado.
— Professora Rosa, devo lhe confessar que estou profun-
damente preocupada não só com meus filhos, mas também
com meu marido. Nenhum deles me falou sobre a reunião an-
terior, só ontem eu tomei conhecimento do problema, que é
gravíssimo.
— Bem, Márcia, eu quero entender melhor como você,
sendo a mãe, não soube do que aconteceu. Existe um pacto
secreto entre o pai e os filhos?
— Infelizmente acho que é isso mesmo, a senhora foi dire-
to ao ponto. Para se aproximar dos filhos, Ivan se transforma em
garotão, acobertando as besteiras que eles fazem. Já conversei
com ele milhões de vezes, tentando provar o quanto isso é pre-
judicial, mas ele não se convence. Ao contrário: tenta me provar
que é assim que se educa meninos, que é melhor eu não me me-
ter porque as mulheres não entendem que os homens precisam
desenvolver esperteza para sobreviver nesse mundo de hoje...
— Lamento lhe dizer, Márcia, mas é pior do que isso:
Ivan teve uma postura de defender e apoiar o erro do filho,
mentindo também e tentando nos intimidar. Isso é grave, pode
estimular em Leonardo condutas antissociais, aumentando
sua dificuldade de reconhecer os próprios erros.
— Ah, meu Deus! Vocês vão expulsá-lo também? —
Márcia estava aflita.
86
— Não, isso seria um último recurso que, sinceramente,
espero não utilizar. Mas quero que você avise a seu marido que
os pais de Henry estão pensando em denunciar o caso à polí-
cia. O que aconteceu não pode ser encarado como brincadeira
inconsequente: cyberbullying é crime!
— E na escola, o que vocês vão fazer com meu filho?
— Agora que as evidências não permitem mais que Leo-
nardo negue que foi o autor do vídeo, a penalidade será a se-
guinte: ele utilizará o talento e o conhecimento que adquiriu
sendo instrutor de uma ONG que oferece uma oficina de ví-
deos para adolescentes de uma comunidade do nosso bairro.
Ele terá uma carga horária de quatro horas semanais até o final
do ano letivo. Essa é a condição para ele continuar frequen-
tando a escola. Além de, naturalmente, se comprometer a não
atacar Henry ou qualquer outro colega.
— Muito justo, professora Rosa.
Quando Márcia saiu, a mãe de Marcelo já estava aguar-
dando na recepção, visivelmente contrariada.
— Bom dia, Iracema. Heitor está a caminho?
— Não, professora Rosa, embora desta vez eu tenha pe-
dido que ele comparecesse. Mas, infelizmente, ele quase nunca
participa da vida do filho...
— É, é uma pena que alguns pais não percebam a im-
portância de sua presença, mesmo depois de separados. Mas
vamos lá: como Marcelo chegou em casa ontem?
— Sinceramente, pela primeira vez tive a impressão de
que ele percebeu que esse tipo de comportamento é inaceitá-
vel. Sempre reclamo da maneira como ele trata a irmã, meu
atual marido também conversa com ele sempre que o encon-
tra mais receptivo. Marcelo trata o irmão da mesma forma, na
casa do pai. Heitor reclama, a mulher dele também, mas acho
que meu filho só consegue se aproximar dos irmãos implican-
do e provocando brigas.
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Iracema contou passagens marcantes da vida de Marcelo,
que permitiram a Rosa entender melhor como foi no menino
a repercussão da separação dos pais, do novo casamento de
um e de outro, do nascimento dos irmãos em um intervalo
de poucos meses, da exclusão que sofreu na escola anterior e
como tudo isso contribuiu para ele passar de vítima a agressor.
— Entendo que a vida do Marcelo tem tido períodos di-
fíceis, sei também que é comum que sentimentos de tristeza,
mágoa e ressentimento acabem se transformando em raiva,
desejos de vingança e comportamentos agressivos. Mas é a
tal coisa: isso explica, mas não justifica. Então, acho que um
trabalho de psicoterapia ajudaria muito o Marcelo e a todos
vocês.
— Eu já tinha pensado nisso, mas a senhora sabe como
é: a gente vai deixando para depois, esperando que o tempo
resolva os problemas... — a voz de Iracema soou desanimada.
— Veja bem, Iracema, não estamos falando em obstá-
culos intransponíveis. Na verdade, tenho muita esperança de
que Marcelo consiga superar essas dificuldades e até tornar-
-se um colaborador da nossa campanha antibullying. Para-
lelamente ao atendimento psicológico, estou pensando em
encaminhá-lo para algumas conversas com a orientadora.
Ela vai prepará-lo para o seguinte: juntamente com Luciana e
Henry, que estão dispostos a fazer o trabalho de sensibilização
dos colegas, Marcelo percorrerá as classes falando sobre o que
aconteceu e se comprometendo a ajudar outros agressores a
interromper o comportamento violento. Isso o ajudará a re-
fletir sobre o que fez, e, assim, ele dará uma ótima contribui-
ção ao nosso trabalho.

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89
EpiLogo
Dois anos depois...
Na festa de final de ano da escola, havia muito o que
comemorar: pelo segundo ano consecutivo, a pesquisa de re-
sultados da campanha “Agressão não é diversão” continuou
mostrando uma redução expressiva dos comportamentos
violentos entre os alunos.
Com o clima amistoso e de cooperação que se estabele-
ceu com as várias ações da campanha, o número de autores de
bullying diminuiu sensivelmente: à medida que se fortaleceu a
visão de que os ataques são inaceitáveis, os agressores deixa-
ram de ser populares e temidos.
As testemunhas que antes presenciavam as agressões
em silêncio, fingindo que nada viam e evitando tomar parti-
do por medo de se tornarem vítimas, passaram a pressionar
os agressores reprovando os ataques, fazendo com que eles se
sentissem constrangidos e envergonhados. Desse modo, mui-
tos episódios passaram a ser resolvidos entre os próprios alu-
nos, sem precisar sequer da intervenção dos professores ou da
direção da escola.
Houve redução na incidência de todos os tipos de ação
de bullying: exclusão, apelidos depreciativos, difamação, agres-
são física, ameaças. Como toda a comunidade escolar foi pre-
parada para participar ativamente da campanha a partir de um
manual especialmente elaborado para esclarecer os conceitos
e propor ações eficazes, a adesão foi ampla: os inspetores fi-
caram mais atentos para intervir sempre que presenciavam o
começo de um ataque nos corredores da escola, no pátio, no
refeitório ou no portão de entrada; os funcionários da cantina,
da limpeza, da secretaria e da administração também foram
90
preparados para encaminhar os casos que observavam à orien-
tadora; os professores fizeram projetos para incluir o debate
sobre o tema nas matérias que lecionavam.
O grupo de pais liderado por Alzira, Leandro, Terry e
Celso foi muito atuante. Eles elaboraram um folheto que foi
distribuído a todos os pais de alunos com sugestões de ações a
serem implementadas em casa e nas áreas de lazer dos prédios
para reforçar a campanha feita na escola.
Os representantes de turma, que eram eleitos a cada dois
meses e recebiam um treinamento em liderança, passaram a
ter reuniões quinzenais com a orientadora para criar novas
ações, tais como elaborar normas de convivência entre os co-
legas, reforçar a cooperação por meio de cartazes, lembrar os
colegas das datas de testes e do que precisaria ser estudado.
Também criaram medidas eficazes para inibir os provocadores
e organizaram grupos de estudos nas salas disponíveis da esco-
la. Algumas turmas criaram blogs para compartilhar textos de
interesse comum e trocar informações relevantes. Com isso,
encorajaram o uso responsável da rede e solidificaram os laços
de amizade que ajudaram a inibir as ações de cyberbullying.
Quando Luciana levou para a professora Rosa a cartilha
elaborada pela escola de Bruna, a diretora se surpreendeu com
a coincidência: era a mesma escola com a qual ela havia entra-
do em contato. As duas equipes acabaram fazendo uma parce-
ria para aperfeiçoar a metodologia da campanha e aumentar
a eficiência das intervenções. Os alunos de ambas as escolas
começaram a interagir e a organizar gincanas e campeonatos.
No início da campanha, a passagem de Luciana, Henry
e Marcelo pelas turmas para dar depoimentos pessoais sobre
a prática do bullying do ponto de vista do agressor e da pers-
pectiva da vítima teve um efeito muito positivo: os três torna-
ram-se amigos e conseguiram ajudar muitos colegas a sair do
circuito violento.
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Luciana ficou tão entusiasmada com as novas atividades
e os novos amigos que sua atração irresistível pelo computa-
dor diminuiu, embora a grande atração pela comida tenha se
mantido intacta! Marcelo deixou de recorrer à implicância
para entrar em contato com as pessoas e passou a se relacionar
melhor com os colegas. Henry expandiu seu círculo de amigos
e começou a participar de um grupo de jovens em uma ONG
que promove a luta contra as injustiças e a proteção aos direi-
tos humanos.
E Leonardo, que inicialmente havia ficado revoltado com
a tarefa de ensinar os adolescentes da oficina de vídeo, acabou
se oferecendo para filmar a festa de final de ano da escola e
decidindo fazer... cinema.

92
GLOSSaRIO
Avatar – ser de forma humana ou não criado pelo jogador
para representá-lo na realidade virtual dos jogos on-line.
Pode reproduzir ou não a aparência física do seu criador.
Blog – abreviatura de web log; site que permite atualização
rápida de notícias e de mensagens, incentivando a interação
dos leitores, que inserem comentários aos posts publicados
pelo autor do blog. O blog comporta textos, imagens e links
para outros blogs e sites de temas correlatos. Entre adoles-
centes, quase sempre assume a forma de um diário on-line.
Bullying – atos repetitivos de agressões físicas e/ou psicológicas
praticados por uma pessoa ou grupo para ameaçar, torturar e
desestabilizar um indivíduo ou grupo. As manifestações mais
comuns são: colocar apelidos depreciativos, humilhar, discri-
minar, excluir, aterrorizar, dominar, bater, ferir. Há muitas
repercussões no equilíbrio emocional dos autores, das víti-
mas e das testemunhas das agressões. Estas últimas muitas
vezes se calam por medo de se tornarem alvos.
Campanha antibullying – conjunto de ações coordenadas envol-
vendo professores e demais funcionários das escolas, alu-
nos e famílias com o objetivo de conscientizar as pessoas de
que comportamentos violentos não podem ser considera-
dos brincadeiras, criando uma cultura de paz e de aceitação
das diferenças.
Comunidade virtual – grupo de pessoas que, pela internet, trocam
informações e opiniões pessoais sobre temas de interesse co-
mum em sites de compartilhamento de conteúdo (fotos, ví-
deos, música) ou em sites de relacionamento e de colaboração.
Cyberbullying – é o bullying eletrônico; o termo foi criado pelo
pesquisador canadense Bill Belsey para descrever o uso da
tecnologia digital (celular, sites de relacionamento, e-mail,
93
blogs) para, de modo insistente e repetitivo, hostilizar, ofen-
der ou ameaçar alguém.
Histórico do navegador – navegação é o ato de visitar sites por
meio de um navegador. Geralmente, o navegador registra
os sites visitados pelo usuário, criando um histórico que
pode ser visualizado posteriormente.
Internauta – pessoa que navega pela internet.
Internet – rede mundial que interliga milhões de computa-
dores e permite o acesso a informações sobre os mais varia-
dos temas e o compartilhamento de dados.
Jogo on-line – jogo eletrônico que pode juntar um grande nú-
mero de jogadores que interagem em tempo real, em várias
partes do mundo, através da internet.
Lan house – estabelecimento comercial com computadores
ligados em rede e que fornece serviços diversos, sendo os
mais comuns os jogos em rede, que permitem que várias
pessoas joguem entre si, e o acesso à internet.
Link – recurso inserido em uma página da internet que, se cli-
cado, leva à outra, facilitando a navegação em diversos sites.
Perfil fake – recurso de criar um falso perfil em sites de re-
lacionamento com o objetivo de não revelar a verdadeira
identidade.
Site – conjunto de páginas na internet interligadas de forma
coesa, em um mesmo endereço, para apresentar temas, pes-
soas, empresas, produtos, serviços, etc.
Site de relacionamento – site que permite aos usuários construir
redes sociais para fazer e manter amizades, disponibilizando
fotos, vídeos, trocando informações e mensagens com pes-
soas conhecidas na vida real ou somente na realidade virtual.
Site de vídeo – site que permite a seus usuários compartilhar
vídeos de curta duração feitos em formato digital.
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Sobre a autora e a obra
Maria Tereza Maldonado nasceu em
Reprodução/Acervo da autora

1949, no Rio de Janeiro. Psicóloga de pro-


fissão, trabalha com projetos sociais volta-
dos a crianças e adolescentes. Ela atua de
forma intensa nas transformações sociais,
culturais e educacionais vividas ao longo
das últimas décadas, com inúmeros traba-
lhos voltados à convivência saudável e às
relações interpessoais. Possui mais de qua-
renta livros publicados e mais de 1 milhão de exemplares vendidos.
Maria Tereza estuda e sabe das dificuldades vivenciadas por crianças
e jovens da contemporaneidade: as redes sociais e o uso da tecnologia
fazem parte dessa geração desde a mais tenra idade.
As mudanças ocasionadas por novas formas de comunicação,
sobretudo na internet, precisam ser refletidas, e a boa conduta e o
comportamento não violento devem ser incentivados e incorpora-
dos às práticas sociais. A face oculta é uma obra que possibilita o
reconhecimento das relações típicas da cultura digital, identificando
vítimas e agressores do bullying e do cyberbullying. Através de uma
narrativa dinâmica, construída com situações de vida cotidiana dos
jovens, esta obra aborda a defesa dos Direitos Humanos no cotidiano
da escola e das famílias.
Entre 1978 e 1993, Dan Olweus deu início à Campanha Na-
cional Antibullying nas escolas norueguesas. As investigações dos
problemas de agressores e vítimas começaram na década de 1990. A
Europa intensificou pesquisas e campanhas de conscientização com
o intuito de minimizar a incidência de comportamentos agressivos.
Mas, com o desenvolvimento da cultura digital, as redes e as mídias
sociais tornaram-se importantes meios de comunicação e influên-
cia social, econômica e cultural, principalmente por trazer e integrar
comportamentos e tendências. A partir disso surge o cyberbullying,
estabelecendo novos fenômenos de violência, cuja abrangência não é
delimitada por status, gênero, idade ou posição geográfica.
A literatura, ponto de encontro da palavra e da reflexão, pode
propor a compreensão dos fenômenos através da leitura, análise

95
crítica, estética, social, histórica e cultural do fenômeno do bullying
e do cyberbullying. Por isso, a obra A face oculta se encaixa à te-
mática “Cultura digital no cotidiano do adolescente” e é destinada
aos alunos de 8o e 9o anos do Ensino Fundamental – Anos Finais.
O tema é abordado por meio da narrativa de Luciana, que localiza
a problemática, identifica agressores e vítimas, explora seus papéis
e motivações, apresentando ao jovem leitor um enredo cotidiano e,
muitas vezes, pouco perceptível.
O gênero literário desta obra é a novela, ou seja, uma narra-
tiva que mantém e atualiza sua estrutura ao longo do tempo: desde
os folhetins do século XVI à novela picaresca, histórica, policial ou
de mistério. A intenção do narrador do gênero novela é atrair o lei-
tor para o cenário desde o primeiro episódio, apresentando a ele um
enredo ágil, exibindo os personagens de forma linear e ajudando no
processo de relacionar os eventos com a vida cotidiana.
A cada capítulo, as expectativas do leitor são mantidas elevadas
pelo desejo de ingresso na continuidade da narrativa, no desvelamen-
to de cada ação: Luciana e Henry são vítimas, Leonardo e Marcelo, os
agressores do cyberbullying. A linguagem é explícita, despojada, com
vocabulário e gírias conhecidas dos jovens, o que mantém o interesse
na história, motivando uma atitude positiva em relação à leitura e à
atualização de repertório. O narrador é onisciente e direciona com
precisão o olhar do leitor para a temática. A face oculta traz uma
mensagem intencional, já que propõe reflexão e mudança de atitude
perante a violência do bullying e do cyberbullying.

Sobre a ilustradora
Manuela Eichner nasceu em Arroio do Tigre (RS) em 1984.
Ela vive e trabalha em São Paulo. Artista multimídia, bacharel em Ar-
tes Plásticas pela UFRGS e integrante do Coletivo de Arte Mergulho.
Como designer trabalhou em alguns projetos em parceria com Rodrigo
Rosa, nos livros Curdos, do fotógrafo Rogério Ferrari, e Diário de um
apaixonado, de Fabricio Carpinejar. Atualmente edita publicações de
arte independentes e trabalha em jornais, como a Folha de S.Paulo, e
revistas, como a Trip. Acesse: <www.manuelaeichner.wordpress.com>.

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Humilhação, hostilidade, ataque,
difamação e covardia é uma
fórmula que tem nome: bullying
ou cyberbullying.
Luciana sabe bem o que é isso.
Ela fica até altas horas em seu
computador, trocando mensagens
com muitos amigos de sua rede
de relacionamentos e interagindo
com outros usuários de jogos
on-line. Acha a realidade virtual
muito mais interessante do que
o “mundo real”. No entanto,
quando Marcelo a escolhe como
alvo e começa a bombardeá-la
com mensagens ofensivas pelo
celular e pelo computador,
Luciana fica transtornada,
sem saber como agir com esse
inimigo desconhecido. A situação
se agrava no colégio quando
Leonardo envolve Marcelo na
prática do cyberbullying para
difamar Henry, outra vítima desse
tipo de afronta.
Luciana e Henry são as vítimas.
Leonardo e Marcelo, os
agressores. Quem vai tomar uma
atitude para coibir essa guerra?

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