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CESAR BR AVO

RUA D’ARGONNEL, 1896


CESAR BR AVO

The Vatican said, “Woe, the Lord has come”


Hollywood rushed out an epic film
And Ronnie the Popular said it was a communist plot*

“It Came Out of the Sky” — Creedence Clearwater Revival

— …se você ficar falando junto eu não consigo ouvir direito!


O menino voltou a grudar a cabeça no rádio, como já vinha fazendo
desde que captou a primeira interferência. E o que esperavam que ele
fizesse? E o que mais ele poderia fazer?
A notícia sobre estranhas vozes aparecendo nos rádios começou a
se espalhar por Terra Cota em meados de outubro, discretamente, e,
sessenta dias depois, o menino já tinha plena certeza de que era tudo

* O Vaticano disse, “Oh! O senhor está vindo!” / Hollywood apressou um filme épico /
E Ronnie, o Popular, disse que era uma conspiração comunista.

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verdade. Mas ele era um dos poucos. Mesmo o melhor amigo ao seu
lado, Jaime Távora, não acreditava muito naquela história. Para Jaime e
muitos outros, o melhor da vida é que ela fosse simples. Começo, meio
e fim. Nada de reprises.
— Só pra você saber, eu continuo não gostando nadinha desse ne-
gócio — Jaime reforçou.
À frente dele, Cisco voltou a mover o botão de sintonia.
O som que saía do alto-falante era confuso, embaralhado e, mesmo
que não trouxesse nada de sobrenatural, era repugnante o suficiente
para arrepiar a pele. Se por um descuido Cisco fechasse os olhos, muitos
rostos que já se foram tomariam conta de sua mente. Seu tio Cardoso
dentro de uma camisa suja de graxa, o avô Fernando e seu cabelo tingi-
do de cinza, a prima Elizandra que foi enterrada com um vestido flori-
do novinho; toda aquela gente que foi embora sem se despedir direito,
toda aquela agonia. Quando pensava neles, também pensava na pele
desbotada, nos olhos opacos, nas pernas frouxas e cabelos quebradiços;
aquelas coisas terríveis que só os mortos podem ter. Era um pouco di-
ferente quando pensava em seu pai.
Com mais um toque no botão de sintonia, o velho Philco pareceu
soltar um suspiro.
— Que foi isso? — Jaime perguntou. Já sentia o coração pular feito
um cabrito.
Não o impediu de chegar mais perto.
De todos os vícios humanos, o mais poderoso parece ser mesmo a
curiosidade. É essa substância que faz as crianças escalarem as janelas
dos prédios, que as induz a engolirem produtos de limpeza coloridos,
é a mesma curiosidade que as torna presas fáceis para uma porção de
doentes lunáticos e igualmente curiosos.
À medida que Jaime se aproximava, um som semelhante ao ar escoado
lentamente por uma garganta, um arrastado gemido humano, tentava
emergir pelo alto-falante do rádio. Logo se perdeu. O Philco não era
grande coisa, não foi grande coisa nem mesmo quando foi concebido.
Ele tinha a banda AM que parecia funcionar melhor naquele tipo de…
culto, mas a sintonia fina era uma piada.

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Com mais um movimento no dial, novos ruídos surgiram.
— Tá conseguindo entender alguma coisa? — Jaime perguntou.
Cisco não se moveu perceptivelmente, mas seus dedos alteraram
o botão da sintonia com a delicadeza de um cirurgião. Apenas quan-
do um forte apito de microfonia substituiu os ruídos confusos, ele
respondeu:
— Não deve ser na nossa língua.
— Credo. Não deve é ser coisa de Deus.
— E o que é coisa de Deus, Jaime? O povo da igreja chamando quem
não é da igreja de demônio? O cemitério que não tem mais lugar pra
enterrar gente? Oh, não… coisa de Deus deve ser as criancinhas que
passam fome.
Jaime ficou calado. Ultimamente, essa era uma ótima estratégia com
seu amigo. Silêncio instaurado, apenas a chiadeira do rádio preenchia a
sala. A vizinhança também parecia calada naquela noite, mesmo os cães
da rua estavam silenciosos. O bar da esquina estava fechado, o vento
soprava morno e fraco.
BÁÁÁÁÁÁÁÃÃÃ!, a campainha de cigarra berrou de repente. Cisco tirou
as mãos do rádio como quem leva um choque. A Jaime, coube travar as
próprias pernas, na tentativa de frear um vazamento de urina. Ele conse-
guiu evitar o pior, mas apostava que tinha deixado escapar algumas gotas.
Os meninos se entreolharam, como se o toque da campainha fosse
um atestado da presença do outro mundo.
— Sou eu! Sofia! Eu sei que vocês tão aí, a bicicleta do Jaime tá aqui
encostada na porta.
Jaime se adiantou.
— Vão abrir ou não? — ela pressionou.
— Nossa, como você é ansiosa — ele disse assim que destrancou
a porta.
— Viram o que aconteceu na tv? — Sofia foi entrando.
— Não tem tv aqui em casa. Minha mãe não deixa, lembra? —
Cisco disse.

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Sofia revirou os olhos. Por mais que soubesse da situação do amigo, ain-
da parecia impossível que algum ser humano conseguisse viver sem uma
tela. Na casa de Cisco não tinha tv, não tinha computador, nem mesmo
um celular. Aliás, a casa toda parecia um showroom dos anos quarenta.
Aproveitando a abertura da porta, um gato rajado se esgueirou e to-
mou seu posto no sofá. Começou a lamber a pata assim que se deitou.
— O que tem na tv? — Cisco quis saber.
— Ninguém sabe, mas apareceu um rosto de gente no intervalo
do jornal.
— E não é isso que a tv faz? — Jaime disse.
— Deixa de ser tonto! Não era bem um rosto de gente, era… estranho.
E não tinha boca. Ninguém sabe o que era, mas quem viu deu um grito.
— Um grito? — Cisco repetiu.
— Foi o que falaram.
E o rádio sussurrou novamente. Não foi um som discernível, mas
algo distorcido, rachado. Ainda assim, a coisa pareceu emitir uma sí-
laba. Um shiiiii que pareceu o guizo de uma cascavel. Mas que também
pareceu um ciiisssssss.
Cisco tocou o aparelho com as duas mãos.
— É você? Se for você, fala comigo.
— Ai, meu Deus… — Sofia acabou dizendo baixinho, só para Jaime
ouvir. O garoto fez uma careta e sacudiu a cabeça. Cisco havia perdi-
do seu pai há menos de um ano, e todos sabiam que ele e o velho eram
unha e carne. Sabiam tanto que nunca o deixavam sozinho.
— Sou eu, o Francisco. Fala comigo, pai.
Por mais que parecesse loucura, tirar as esperanças do amigo parecia
crueldade, o que era bem pior que a loucura.
Como se aquela sala já não estivesse cheia de tensão o bastante, a
luz da cozinha, que fazia ligação com o cômodo, oscilou, variando seu
brilho algumas vezes. O gato Tenório, até então concentrado nas patas
dianteiras, se postou de pé e gemeu, como se quisesse falar.
— Gente, o que tá acontecendo aqui? — Sofia tremeu a voz. Jaime
já a enlaçava pelo braço.
— Fala comigo, por favor — Cisco implorou ao rádio.

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Gruuuaaaaaeennlll, Tenório voltou a reclamar. O gato olhava fixa-
mente para o aparelho, estava rígido como concreto. De tão tenso, sua
coluna parecia dobrada em um ângulo reto.
Alguém gritou na vizinhança, um grito rápido e apavorado, que
não se repetiu.
— Você não devia tá fazendo isso, não é bom, ainda mais tão per-
to do Natal!
— E no Natal a gente lembra de quem, Jaime? De um homem morto,
não é? Ou Jesus ainda tá vivo? — Cisco devolveu.
Sofia e Jaime não eram muito religiosos, mas doeu um pouco ouvir aquilo
sobre Jesus. Podiam não ser dois coroinhas, mas eles eram cristãos, frequen-
tavam a igreja, os dois tinham sido crismados e tudo. Além disso, Jesus tinha
sido ressuscitado, coisa que um rádio não conseguiria fazer por ninguém.
No aparelho, o sinal espúrio voltou a se diluir na estática chuvo-
sa de algumas estações. Por mais que o menino movesse o botão se
sintonia, não conseguiu nenhum avanço. Ainda de costas, no chão,
ele disse:
— Desculpa, gente, eu queria ouvir ele de novo, mesmo que fosse
só uma vez.
Sofia se descolou de Jaime e sentou ao lado do outro menino.
— Ele não está mais aqui, Cisco. Seu pai foi morar no céu, pertinho
de Deus.
— Você acredita nisso? Acredita mesmo? De verdade? — Cisco a en-
carou. Havia um leve tremor em sua voz, mas nada que pudesse chegar
ao choro. Seu pai sempre dizia que homem não chorava, e ele precisava
ser o homem daquela casa agora.
— Eu acredito, sim.
O rádio continuava chiando baixinho, o brilho da lâmpada estava
estável e Tenório havia relaxado de novo.
— O povo dessa cidade fala pelos cotovelos — Jaime disse. — Alguém
deve ter inventado essa história, do mesmo jeito que inventaram as ou-
tras. É fake news daqui, fake news dali, não dá pra acreditar em mais
nada. E esse negócio do rádio, sem querer desrespeitar o seu pai… essa
é a maior invenção de todas.

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— Mas que tá acontecendo alguma coisa em Terra Cota, isso tá —
Sofia disse e se levantou. — O computador lá de casa deu problema no
mês passado. Sabe o que era? Ninho de formiga. Elas fizeram casinha lá
dentro e ninguém sabe o motivo. Aí, minha mãe ficou sabendo que um
monte de gente da rua das torres tinha o mesmo problema. Sem falar
nas abelhas que caem no chão e ficam agonizando, como se tivessem
bebido veneno. E tem também os cachorr…
Sofia nunca terminou aquela frase. Sem mais nem menos, o gato
Tenório saltou do sofá e desembestou pela sala com pavor em cada pelo
do corpo. Ele parecia enlouquecido, pulando e gritando como se estives-
se sendo perseguido por três cães. Saltava sobre si mesmo e arranhava
o ar violentamente. Do sofá, ele foi para o meio da sala e se embolou
em um tapete de crochê, depois se livrou da peça e escalou a estante,
de onde jogou uma Bíblia e dois vasos no chão. Correu para perto da
parede e começou uma guerra com a cortina, deixando rasgos com suas
unhas afiadas. Sofia abriu a porta e o gato disparou pela abertura, como
se escapasse de uma frigideira.
— Caceta… o que deu nele? — Jaime perguntou. Assim como os ami-
gos, foi seguindo o rastro do gato, até o lado de fora da casa.
Havia um cheiro estranho tomando toda a vizinhança, algo parecido
com o perfume de damas da noite, só que bem mais doce, meio podre.
Ladeada nos fios de alta tensão da rua, havia uma porção de pombos se
remexendo, pombos adoecidos e com olhos vermelhos. O chão sob o
poste de luz próximo às aves estava forrado de besouros, de tal forma,
que seria impossível dar um único passo sem esmagar dois ou três deles.
Besouros metalizados, castanhos e cascudos; grandes como azeitonas.
No horizonte distante, havia uma cor ferruginosa borrando a escuridão
do céu estrelado, como se um deserto estivesse se erguendo.
Do outro lado da calçada, em uma casa com um carro vermelho na
garagem, uma mulher saía com o mesmo espanto nos olhos. Na casa
ao lado, um homem de chinelo de couro e meias saiu e atravessou
seu portão. O cachorro do homem saiu em seguida, mas o fox pau-
listinha não avançou um único passo, preferindo ficar latindo aos
pés do dono.

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Com a maior coragem daquela rua, Sofia caminhou sobre os inse-
tos até chegar ao meio do asfalto. Crec, crec, crec. A alguns metros dela,
Tenório, o gato, rosnava no teto de um Opala laranja, junto de outros
dezesseis ou dezoito gatos espremidos no mesmo espaço. O rádio do
carro estava ligado, fora de sintonia, mas havia algo naquela frequência
que parecia perturbar a paz do mundo.
Cisco caminhava direto pra ele quando ouviu o Philco de sua casa
sibilar:
— Cissssssscccoooooooooo…

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Essa história faz parte do universo do romance 1618, de Cesar Bravo,
publicado pela DarkSide Books® em novembro de 2022.

cesar bravo conquistou o gênero horror em 2017, com o reconhecimen-


to dos leitores, livreiros e da crítica especializada. Desde então, o autor
já publicou pela DarkSide® Books: Ultra Carnem (2016), VHS: Verdadeiras
Histórias de Sangue (2019), DVD: Devoção Verdadeira a D (2020). Em no-
vembro de 2022, Cesar publicou seu trabalho mais criativamente ousa-
do e transgressor, o romance 1618.
TALI GR ASS
CANÇÃO PARA
UM ANFÍBIO
TALI GRASS

Nas últimas semanas, Natália estava se sentindo cansada demais.


Refém de uma fome incontrolável, precisava levantar duas ou três
vezes durante a noite para fazer pequenos lanchinhos, também já ha-
via esvaziado os armários em que guardava uma infinidade de doces e
chocolates, que eram devorados em poucas horas. Sem compreender
o próprio corpo, perdera noites de sono tentando espantar os pensa-
mentos nervosos.
Ela até queria não se assustar com as pontadas metálicas que sen-
tia na barriga, mas eram tão frequentes que causavam náusea. Natália
temia uma gravidez — ainda não se sentia pronta para a maternidade
—, mas tinha certeza de que nenhuma camisinha fora rompida nas úl-
timas relações casuais que manteve nos poucos dias de folga que con-
seguia na loja. Era final de ano, a cidade inteira borbulhava de pessoas
ensandecidas por presentes e artigos de decoração.

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Embora seu nome fosse uma clara referência ao Natal, ela não nutria
nenhum apreço pela festividade. No entanto, há quase dois anos, durante
o mês de dezembro, Natália trabalhava nessa loja de decoração natalina
— um trabalho que considerava medíocre, mas que salvou seu orçamen-
to e não deixou que a geladeira ficasse vazia. Outro motivo para temer
a maternidade. Sustentar uma criança e prover todas as necessidades de
um pequeno ser humano com o que recebia? Impossível.
Faltando pouco menos de três semanas para o Natal, em meio aos
corredores da loja cheios de luzes piscantes, bolinhas prateadas e laços
vermelhos, as fisgadas metálicas voltaram a atacar sua barriga. Natália
suou frio, sentiu náusea; uma bile azeda subiu pela garganta e as can-
ções de versos repetidos e otimistas, tocadas em volume altíssimo nos
corredores da loja, lhe causaram uma forte vertigem. Sem saber como
agir, uma das colegas tentou segurar seu corpo já um pouco mole, en-
quanto outra secou seus lábios sujos da gosma que expelia. Em poucos
minutos de gritos, colegas agitados e clientes assustados, Natália per-
deu a consciência e derreteu no piso frio.
As luzes vermelhas da ambulância misturaram-se às lampadinhas
luminosas e aos laços rubros, naquela confusão toda não era possível
distinguir o que era decoração e o que era emergência, o que era festa
e o que era doença. Natália foi carregada na maca gelada e, aos poucos,
depois de alguns procedimentos iniciais, abriu os olhos. Os enfermei-
ros disseram algumas palavras de incentivo, perguntavam seu nome,
colocaram lanterninhas em seus olhos. Malditas luzes. Mesmo irritada,
Natália foi respondendo bem aos primeiros socorros.
Ampolas de sangue, aferições de pressão, exames de urina. Tudo dentro
da normalidade e sem nenhuma gravidez. Então aquilo só podia ser estres-
se. A médica plantonista, ainda um pouco desconfiada, pediu que Natália
ficasse mais algumas horas em observação. Ela acatou ao pedido e passou o
restante da tarde naquele hospital de paredes azuladas, que não deixava de
ser um respiro em e meio ao caos vermelho e luminoso das últimas semanas.
De volta em sua casa, já aconchegada na cama, pensou ter ouvido
um leve coaxar. Temendo ir ao banheiro e dar de cara com um sapo gi-
gante e gosmento pelo caminho, segurou o xixi até de manhã. Logo que

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acordou, andou devagarinho pela casa, mas não encontrou nada estra-
nho. O barulho ainda parecia ecoar, mas podia ser uma falsa impres-
são, Natália ainda se sentia um pouco zonza por efeito das medicações
do dia anterior. No chuveiro, fechou os olhos e deixou a água escorrer
pelo rosto. Estava tão cansada de tudo, das lojas, das movimentações,
das dores estranhas, das luzes vermelhas. Podia mesmo ser uma mons-
truosa crise de estresse, pensou enquanto enchia as bochechas de água
e cuspia tentando acertar o ralo do banheiro.
Nessa brincadeira, engoliu um pouco de água e sentiu o líquido mor-
no borbulhar em seu estômago, ouviu por dentro o mesmo som que os
garrafões de água fazem na cozinha no meio da noite, um glurp. Natália
ficou assustada, mas foi tão rápido que mais pareceu uma sensação,
aquelas coisas estranhas que as pessoas sentem quando estão ansiosas
demais. O mais difícil era que a cada dia tais sensações aumentavam,
inclusive aquele som de coaxar nas madrugadas. O desconforto já estava
atrapalhando sua rotina, fazendo ela duvidar da própria sanidade. Não
podia deixar que isso tudo piorasse. Se fosse preciso iniciar algum tra-
tamento, ela iniciaria, se fosse preciso tomar remédios, ela os tomaria.
Também decidiu que antes do Natal iria buscar um especialista e fazer
todos os exames necessários para descobrir as causas daquelas dores,
tonturas e apetite incontrolável.
Enquanto a médica escolhida realizava uma ecografia, Natália soltou
um leve suspiro ao sentir o geladinho do metal encostar em sua bar-
riga e o gel espalhar-se em sua pele. O aparelho começou a percorrer
seu abdômen inferior, mas a médica não apresentava qualquer preo-
cupação aparente. Assim que o aparelho passou ao abdômen superior,
o semblante da profissional mudou. E mudou um pouco mais quando
Natália ouviu a musiquinha natalina da recepção e ganhou novas pon-
tadas em sua barriga. Nos segundos finais do exame, Natália já estava
se contorcendo de dor.
Mesmo saindo em caráter de urgência, o resultado não foi conclusi-
vo e apenas registrou algumas anormalidades anatômicas na região. No
entanto, Natália foi encaminhada para realizar uma endoscopia — exa-
me chato e incômodo. Ela odiava pensar na sedação que a deixaria mole,

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no tubo de longos centímetros que entraria arranhando por sua garganta,
nas pessoas que invadiriam seu corpo enquanto ela estava desacordada e
impotente. Mas desistir não era uma opção, qualquer coisa seria melhor
do que viver mergulhada naquele pântano de sensações desconhecidas.
Engolindo a saliva com força e esfregando os olhos com a ponta dos de-
dos, Natália acordou sem qualquer lembrança do que havia acontecido. Ao
seu redor, uma junta médica havia se reunido enquanto aguardava o seu
despertar. A mulher baixinha, o senhor ruivo barbudo, o moço alto de lá-
bios grossos, todos eles estavam com o rosto tensionado, como se fossem
guardiões de uma informação dificilmente compreensível. Depois de al-
guns pigarros e anotações em planilhas, o senhor ruivo e barbudo deu um
passo em direção à maca. Os outros se mantiveram onde estavam, gratos
pela coragem do colega. O senhor ruivo narrou em detalhes todo o pro-
cedimento do último exame realizado, como se quisesse ganhar tempo e
fôlego para dizer o que precisava. Quando, enfim, explicou tudo, Natália
precisou pedir para que repetisse. Não era o tipo de notícia que ela esperava,
ou que pudesse considerar real. Em sua mente, a maior possibilidade é que
se tratasse de um sonho delirante causado pela sedação. Maldita sedação.
Mas ele repetiu várias vezes, explicando de outras formas para que
ela conseguisse entender o que nem mesmo eles entendiam.
Como foi parar lá ninguém soube dizer, mas uma vida anfíbia havia
se alojado nas entranhas estomacais da mulher. Esse tempo todo, o coa-
xar que ecoava pelo apartamento estava, na verdade, mergulhado em
seu suco gástrico e preso nas paredes de seu estômago — tão preso que
qualquer procedimento cirúrgico poderia colocar a vida de Natália em
risco. Com a explicação médica, ficou claro que algumas coisas entram
nas pessoas de tal forma que, para retirar, apenas arrancando a própria
carne junto. Além disso, o anfíbio parecia ter personalidade — disseram
os médicos —, porque se revirava apreensivo quando estava nervoso e
parecia adormecer quando se acalmava. A solução, então, era manter o
anfíbio o mais relaxado possível, uma vez que qualquer movimento in-
tenso ou alimentação inadequada poderia influenciar em seu compor-
tamento. Sem chances de uma remoção segura, não restava nenhuma
outra opção a não ser acolher o invasor.

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Natália fez o possível para que a criaturinha dentro dela ficasse cal-
ma. Então era mais ou menos assim que uma gestante se sentia? Ela não
imaginava que fosse tão difícil dividir o próprio corpo com outro ser. O
sono era intranquilo, o despertar era irritado, ela já havia ganhado peso
por devorar tantos doces na tentativa de acalmar o anfíbio, que logo nas
primeiras notas de qualquer musiquinha natalina já mostrava seu hu-
mor azedo. Nisso somos parecidos, Natália pensava. Por fim, afastou-se
da loja de decorações e passou os dias em casa, em silêncio, contando
com doações dos colegas piedosos para sobreviver ao pesadelo que ha-
via se instaurado em seu próprio corpo.
Na hora do banho, uma das mais desesperadoras, o bicho ficava
excitado ao ouvir o barulho da água, então iniciava-se uma sequência
de náusea, pontadas metálicas e incontáveis glurps que a faziam pare-
cer uma mulher possuída. Se ingerisse medicamentos para apaziguar
a dor, os desconfortos aumentavam — o anfíbio também não gostava
de cápsulas gelatinosas, antiácidos e xaropes. Todos os dias Natália
buscava por alguma explicação, sem conseguir compreender como ha-
via parado ali, praticamente gestando aquele sapo desgraçado. Desde
a chegada do anfíbio, sua vida havia se transformado por completo
e, olha só: ela chegava até mesmo a sentir saudade da loja, dos laços
vermelhos e das luzinhas piscantes que outrora irritavam tanto seus
olhos. Festas, banquetes ao redor da mesa, famílias reunidas, presen-
tes… nada disso era tão irritante quanto ser refém de um sapo pene-
trado em seu estômago.
Na manhã que antecedia a noite de Natal, Natália decidiu sair de
casa e ir ao mercado. Comprou uvas, panetones de frutas, espumante,
alguns legumes, castanhas açucaradas, fitas vermelhas. Na fila do cai-
xa, em uma gôndola lateral, apanhou uma caixinha de luzes piscantes.
O bichinho imediatamente tremelicou em seu estômago, a bile subia e
ela a engolia, fechando os olhos para apaziguar o gosto de ácido. Estava
decidido, nunca mais sentiria ódio daquela data.
Em casa, arrumou tudo com esmero. Os cômodos cheiravam a cas-
tanhas e frutas, na janela os laços e luzes coroavam a noite chuvosa.
Faltavam dez minutos para o Natal, e ela serviu uma generosa taça de

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espumante, sentou na poltrona da sala e começou a cantarolar. Brilha,
brilha, lá no céu. Bebeu um gole do líquido alcoólico e sentiu uma pon-
tada no estômago. A estrelinha que nasceu. A bile subiu. Logo outra surge
ao lado. Era tão azeda que precisou cuspir. Fica o céu iluminado. Mesmo
se afogando em tanto suco gástrico, ela não parou de cantar. Brilha,
brilha, lá no céu. O líquido amarelo escorrendo de sua boca, o anfíbio
derretendo por dentro e ela por fora, mas seus lábios nos últimos bal-
bucios. A estrelinha que nasceu.

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tali grass é escritora, revisora, preparadora de textos e editora. É forma-
da em Letras e trabalha com palavras há mais de 10 anos. Como prepara-
dora de textos e editora, cuidou de obras como Jim Jones Profile: Massacre
em Jonestown, Medicina Macabra 3, A Dama e a Criatura e a coleção dos
Livros de Sangue, todas publicadas pela DarkSide® Books. Como autora,
já publicou histórias na revista Café Espacial, na qual também é conse-
lheira editorial, e por sua publicação independente Cordélia, lançada em
2020, recebeu o 33° Troféu HQMIX na categoria Novo Talento Roteirista.
VERENA CAVALCANTE
FECHADURA
VERENA CAVALCANTE

Se não reconheci tia Lili de primeira, não foi por meus quinze anos de
andanças por aí, de todas as léguas e solas gastas, nem pelos contornos
decrépitos da casa, antes tão limpa e fresca, agora coisa esquecida, devo-
rada pelo tempo ou pela ausência, uma construção recoberta de folhas
secas, cercada de amoreiras jovens que pintavam o alpendre da casa de
grandes manchas violetas, parecidas com buracos de bala no concreto
branco. Tampouco foi por confundir o rosto dela com o de todas as mu-
lheres que se deitaram diante de mim de pernas abertas, receptáculos
do meu desejo contido, canções de ninar de carne e osso. Voltando para
casa homem feito, querendo passar as festas de fim de ano com a única
mulher que já chamei de mãe, encontrei tudo mudado. Dentro e fora.
— Você, meu filho...!
Tia Lili disse ao abrir a porteira, desse jeitinho, como se nossa dife-
rença de idade fosse grande, como se não me tivesse criado quando era
só menina-moça na casa de três cômodos da família; a única irmã de
meu pai, órfã e solteira, que mal contava 16 anos. Aproximou-se levan-
tando os braços magros e me abraçou de um jeito débil, trêmulo, sem
entusiasmo, enchendo minhas narinas de um cheiro salgado de pântano.

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Ergueu para mim os olhos amendoados, mostrou os dentes bonitos, re-
tinhos de tanto chupar macaúba, cujas cascas partíamos na dobradiça
da porta na falta de um quebra-nozes de verdade. Enxerguei entre eles
um lampejo vermelho, um estranho movimento, que tomei como jogo
de luzes, balançar de folhas a formar prismas, algum arco-íris solar.
— Vem entrando, vou passar um café fresquinho.
Passou por mim com movimentos ondulantes, balançando os qua-
dris arredondados que, antes, pareciam ancas de mula faminta. O
cabelo, outrora de matiz acinzentada, brilhava em tons de carmim,
cristal de cornalina. Sentia-me amordaçado, a língua adormecida,
enquanto ganhava o interior sujo da casa, desviando de entulhos,
caixas de papelão, embalagens velhas de alimentos, fezes de animais,
tentando disfarçar meu espanto diante da imundície que contrasta-
va com a vitalidade recém-ganhada de minha tia. Coando o café em
uma meia-calça usada, tia Lili tirou da geladeira uma jarra de alu-
mínio. Um cobertor de nata vedava a abertura do recipiente que re-
cendia a queijo velho.
— Quer leitinho no café, meu menino?
Eu era novo demais para lembrar como mamãe estrepou o pé no
terreiro em uma das viagens de meu pai, não sabem se em arame, es-
pinho ou dente de cobra, e na lida dos afazeres e do bebê novo de colo,
foi deixando e deixando pra lá, esfregando unguento e babosa, enquan-
to o pé inchava e escurecia, a pele se rompendo feito casca de manga
passada. Junto dela o leite também ia se esvaindo, pegando gosto de
podre, mudando de cor para um amarelo-escuro, gema de ovo, enchen-
do minha boca de um líquido frio e grosso, quase coagulado, vindo de
um coração que não batia mais. Tia Lili me encontrou debaixo de uma
nuvem de moscas-varejeiras, no leito sujo de pus e sangue, sugando o
seio do cadáver de minha mãe, já quase totalmente coberto de minús-
culas larvinhas. Então, ela me tomou para si. Como um parasita que se
aferra ao lombo de uma vaca, amarrado nas costas de tia Lili, apanhava
algodão na roça, cuidava da horta, dos bichos, ocupava todo o espaço
ao lado dela na cama que nunca viu homem nenhum exceto o menino
que crescia rápido e viril.

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Enquanto eu bebia o café amargo e escuro feito piche, evitando olhar
para as rachaduras nas paredes, para as tábuas quebradas no chão, tia
Lili se mexia de um lado para o outro, inquieta, coçando o dorso das
mãos, a curva do pescoço, levantando vergões vermelhos.
— Viu, meu bem... O banheiro tá quebrado. Se precisar usar, cê vai
ter que ir no peniquinho.
Tia Lili riu, abrindo demais a boca, mostrando a garganta, a úvula
inchada e obscena. Com as mãos úmidas, geladas, apertou meu joelho
debaixo da mesa, e se levantou em seguida, indo se fechar, com pressa,
atrás da mesma porta de madeira que tinha pedido que eu não aden-
trasse. Não saiu mais. Terminei o café e fui até o único quarto da casa
que, por muitos anos, dividimos.
Ela ainda dormia na cama de patente, na qual, na cabeceira de madei-
ra, enrolava um cinto de couro preto que, no terror noturno das madru-
gadas, eu enxergava como cobra raivosa assomando sobre mim, muito
ereta e rija, me fazendo molhar a cama, meu mijo quente encharcando
o colchão, a camisola da tia. Debaixo dela, junto a uma mala descascada
e dois pares de sandálias sem tiras, estava o velho penico de cerâmica
azul, onde uma noite, já quase adolescente, acometido de uma perigosa
meningite, chegando aos 41 graus de febre, me agachei sem forças e sol-
tei uma diarreia ardente, explosiva, expulsando centenas de lombrigas
fumegantes, imóveis, aglomeradas em uma mistura ensopada que, em
meu delírio convulsivo, parecia uma panela de macarrão. Tia Lili pulou
da cama, examinando o penico e tocando em mim, encostando a testa
na minha, aferindo a temperatura do único jeito que sabia.
— Estão mortas. Você está tão quente que fritou as lombrigas.
Entrando no mesmo banheiro de onde eu agora ouvia saírem gemidos
abafados, tia Lili me carregou nos braços apesar do tamanho, despin-
do-se e entrando comigo debaixo da água gelada, enquanto eu berrava
de frio e dor, tremendo até os dentes virarem castanholas, quase arran-
cando o bico do peito macio que ela enfiou na minha boca, revirando
os olhos debaixo d’água, com os cabelos escorridos pelo rosto, como as
imagens de santas. Mamei aquele seio seco como se vertesse leite em
abundância, meu pau jovem se enchendo de sangue, enquanto, do ralo

 6
improvisado debaixo do chuveiro, surgia um aglomerado de vermes do
lodo, uma bola rubra e buliçosa, que volta e meia eu encontrava no la-
maçal perto da lagoa onde as meninas nadavam, nas poças de água suja
de beira de estrada perto dos puteiros, nos cantinhos do azulejo sempre
que espiava tia Lili tomando banho, pelo buraco da fechadura.
Foi por ali que enxerguei a cena. O banheiro coberto do chão até o
teto do que parecia um musgo vermelho, um tapete movediço de ver-
mes de lodo, minhocas finas e encarnadas, que pareciam balançar como
fios de cabelos ao sabor da brisa, ninhos e pelotas infindáveis de para-
sitas, que tia Lili cultivara ao longo de todos aqueles anos de solidão,
de espera e de saudade. No corpo simultaneamente maduro e virginal,
as pequenas criaturas se aderiam como uma segunda pele, uma pelúcia
púrpura, roçando nos bicos duros dos seios, nas voltas dos lábios úmi-
dos de saliva, acariciando a genitália casta, com corpos melífluos como
pequenas línguas, suaves como plumas, doces como dedinhos minús-
culos de matéria quase incorpórea.
Tia Lili gemia, suspirava, enternecida, devorando mãos cheias de
vermes, esfregando o vão entre as pernas, enfiando para dentro dele
montes e montes de bichos vivos, dançarinos, esperando que cresces-
sem na escuridão quente dentro dela como fungo, moldando estalacti-
tes e estalagmites de gozo eterno. Quando abri a porta e desci o zíper
das calças, só emitiu um choro baixo e emocionado, abrindo os braços
sarapintados de amor proibido.

 7
verena cavalcante é tradutora, revisora de textos e escritora. Autora
das coletâneas Larva e O Berro do Bode, em 2021 lançou seu terceiro
trabalho literário, Inventário de Predadores Domésticos, publicado pela
DarkSide® Books. As histórias de Verena transitam entre os pavores da
infância e as assombrações rurais e urbanas, perpetrando os diferentes
horrores do universo feminino.
ENÉIAS TAVARES
LUZ, CÂMERA E SANGUE!
Um conto natalino de Brasiliana Steampunk

ENÉIAS TAVARES

I
O Milagre do Natal Chegou!!!
Venha conhecer o Ultrafuturista

CINEMATÓGRAPHO FALANTE!

Theatro Luxuosamente Mobiliado!


Ventilação Mecanizada, Reposteiros Finos e Poltronas
Leito-Reclináveis!
Sessões especiais e fechadas à ilustre Sociedade Porto-Alegrense!
Vasto Repertório de Cenas em Movimento:
Dramáticas, Cômicas, Trágicas, Mágicas e Históricas!

 4
Na Ilustríssima Estreia deste Espetáculo de Som e Luzeiros
Venham ao Theatro São Pedro!
Enchentes de Público têm Comprovado seu Sucesso!

Criado pelos cientistas Augusto Pataco & Henrique Sombreiro


Estrelando o Fenômeno Internacional Azza Nalimova!

Aviso: Proibida a entrada de Animais e Crianças.

 5
II
Porto Alegre dos Amantes, Theatro São Pedro,
24 de dezembro de 1901.

Do noitário do Dr. Antoine Louison

Segundos depois das luzes se apagarem e o projector iniciar sua moderna


magia, o corpo despencou na frente da imagem, envergando a corda e
deslocando o pescoço do suicida.
Na plateia lotada, as damas exclamaram em horror, enquanto os se-
nhores demoraram a chamar por ajuda, achando que o ato fazia parte
do espetáculo macabro.
Em meio ao caos, anunciei minha profissão e saltei até o palco, em
direção ao enforcado. Retirei a lâmina oculta da bengala e degolei a
corda esticada, fazendo o corpo despencar.
Desfiz o nó que prendia o homem e tentei reanimá-lo. Infelizmente,
sem sucesso.
Reconheci-o de pronto: Henrique Sombreiro, um dos criadores do
Cinematógrapho Falante, que eu, Beatriz e toda a sociedade gaúcha
viéramos ver naquela infeliz noite natalina.
O Theatro São Pedro havia noticiado nos últimos três meses esta
noite de gala, dedicada ao novo aparato que “revolucionaria as artes
dramáticas”, ao menos era o que os dois inventores e o atual diretor do
theatro, Ésquilo Peixoto, não paravam de repetir.
Após abandonar a massagem cardíaca e a respiração boca a boca,
atentei ao pandemônio que acometia os presentes, que se avolumavam
horrorizados ao redor do palco.
Ao meu lado, de joelhos, Azza Nalimova — atriz e amante de Som-
breiro — pranteava o falecido, enquanto Peixoto tentava acalmar a
populaça enlouquecida.
“Por que fizeste isso, Luís?! Por quê?!”, chorava a mulher.

 6
Eu coloquei a mão em seu ombro, para informá-la e também investigá-la.
“Isso não foi suicídio, senhorita Nalimova, e sim assassinato”, falei
um tom abaixo.
A mulher olhou-me perplexa, questionando aquela afirmação, para
depois cair num renovado choro, enxugando lágrimas dos olhos secos
com um lenço de seda.
Inicialmente, eu mesmo achei tratar-se de um suicídio, até notar nos
pulsos do falecido marcas de amarras que evidenciavam captura e apri-
sionamento. Se eu não estivesse errado, tratava-se de um assassinato
ignóbil disfarçado de um teatral suicídio. Um drama demoníaco mais
que apropriado àquela casa de mentiras e verdades.
A audiência estava em estado de choque.
Peixoto não mais conseguia controlá-la. Sugeri-lhe que indicasse aos
presentes o caminho da saída, uma vez que não haveria modo de man-
ter todos ali, presos e confinados.
À medida que os geriátricos e adultos foram saindo, alguns lamen-
tando o calor e o crime daquela noite natalina e outros por não poderem
conferir o incrível cinematógrapho.
Em meio a tudo aquilo, percebi que Beatriz, minha parceira na vida,
permanecia sentada, avaliando a cena com sua costumeira superiori-
dade de escritora investigativa.
Como costumava fazer quando testemunhava algum fato digno de
nota, retirara sua caneta portátil e sua caderneta pessoal e dedicava-se
ao registro de alguma história ou ideia.
Seus talentos criminalísticos seriam úteis. Desde que fizera fama
com seus contos de mystério, mantinha atenção redobrada a informes
policiais, a base para a sua ficção.
Eu amava aquela mulher, assim como amava sua falsa persona mas-
culina, a persona que havia inventado para iniciar-se no meio literário
gaúcho, em tudo misógino e racista. Quando a conheci, ela vestia-se de
homem e atendia pela alcunha de Dante D’Algustine.
Meu olhar fitou o sócio do morto, Augusto Pataco, coinventor do
cinematrógrapho, que agora chegava ao palco mais irritado com o fim
do show do que com a morte do amigo.

 7
“Senhor Peixoto! Eu havia avisado ao senhor que deveria triplicar a
segurança!”, disse o homem, com o dedo em riste, ignorando o corpo e
inquirindo o diretor do theatro.
Ao redor de nós, a equipe do São Pedro testemunhava a discussão,
tão perplexa quanto a multidão de antes, mas também curiosa com o
desfecho daquele enredo imprevisto.
“Seu porco!”, gritou Nalimova, levantando-se e pulando no pescoço
de Pataco, “Foi você! Ele me disse que vocês tinham discordado sobre o
futuro! E você o matou! Por ciúme!”
O que tinha uma coisa a ver com a outra?, perguntei a mim mesmo,
e então fitei o olhar perspicaz de Beatriz, que tinha chegado à mesma
conclusão que eu.
“Ciúme, sua cínica?! Não seja ridícula! Eu disse a ele que depois de
vendermos nossa tecnologia aos americanos, iríamos separar os negó-
cios! Não minta, atriz de quinta!”
“Ele fez um testamento”, replicou a mulher, agora se colocando em
pé. “E tenho direitos sobre seus bens, inclusive sobre o Cinematógra-
pho... e sobre a bilheteria desta noite!”
Pataco respondeu a ela com uma risada. Todos nós olhávamos, en-
quanto Beatriz retornava suas anotações. Será que algum dos dois se
importava com o defunto? Minhas inquirições de assassinato acabavam
de ganhar dois bons suspeitos. E enquanto tudo isso sucedia, o espetá-
culo do Cinematógrapho Falante continuava, com a imagem de Nalimova
dançando na tela ao som da música de cabaré, acima da bailarina real.
Na balbúrdia que sucedera ao enforcamento, ninguém lembrará
do projector.
“Pelo amor de deus, apaguem essa gerigonça!”, gritou o diretor da casa.

 8
III
O Theatro São Pedro dos Alcântaras foi fundado em 1858, depois de
quase trinta anos de obras, interrompidas pela Revolução Maragata.
Seu terreno foi doado por Manuel Galvão, que via na casa de espetá-
culos um potencial de elevar Porto Alegre a uma “capital das artes”.
Desde sua fundação, o theatro teve vários diretores e vivia basica-
mente de doações e espetáculos de gosto duvidoso para pagar as contas
— como comédias populares sobre maridos traídos, filhas rebeldes e
cães adestrados. Em 1873, depois que um jumento que atuava como
figurante escoiceou um dos atores, achou-se por bem interromper a
participação equina.
Desde que assumira a direção há mais de quinze anos, Ésquilo Peixoto
tinha se dedicado a propor montagens de obras dramáticas clássicas,
até então ignoradas em nossos palcos. Graças ao homem, tivemos um
festival de obras gregas, latinas e europeias.
Agora, todo esse esforço era colocado em risco por um crime brutal
que ameaçava o theatro justamente no apogeu da tecnologia que pro-
metia revolucionar as artes dramáticas.
A polícia chegou em vinte minutos. Eram quatro policiais e seis ro-
bóticos que foram colocados nas saídas do theatro para não deixar que
ninguém saísse sem ser interrogado.
Liderando-os, um inspetor alto e possante, quase rústico, de voz
firme e autoritária. Carregava consigo uma velha pistola que há muito
não se via nas forças armadas republicanas, mais afeitas às modernas
armas eletrostáticas.
Eu mostrei ao inspetor as marcas nos pulsos da vítima e sugeri que
ele interrogasse com atenção a senhorita Nalimova e o sócio do fale-
cido. O policial não perdeu tempo e passou a interrogar a eles e também
a mim e Beatriz, o que achei compreensível.
Em seguida, conversou com o diretor do theatro, que narrou o
ocorrido a partir de onde estava, dos bastidores, onde supervisionava
o andamento do espetáculo.

 9
Quanto a Nalimova, disse estar nos bastidores também, uma vez que
havia combinado de ver a projeção ao lado de Sombreiro. Falou que havia
o esperado até ouvir a queda e os gritos.
Já o mais suspeito era Pataco, que primeiro disse estar na sala de
máquinas para depois mencionar a bilheteria. Fora conferir quantos in-
gressos tinham sido vendidos. Apesar de a equipe negar sua estada na casa
de máquinas, confirmaram que fora visto na bilheteria minutos antes.
Eu acompanhei esses interrogatórios ao lado de Beatriz, que parara
de tomar notas e passara a estudar cada um daqueles personagens.
“Em sua opinião, foi o sócio ou a amante?”, perguntei a ela, discre-
tamente, num dos cantos da plateia vazia, enquanto os outros policiais
interrogavam os funcionários do theatro.
“Ambos têm motivos, Antoine”, respondeu ela, “mas nem sempre mo-
tivos levam a crimes. Os dois são gananciosos e teriam a ganhar com a
morte de Sombreiro. Ademais, não devemos deixar de lado a hipótese de
que tenham sido os dois, juntos, e que a irritação do sujeito e as lágrimas
da moça não passem de encenação. Nessa arte, os dois são experientes.”
Concordei com Beatriz, apesar de supor que ainda faltava uma peça
naquele mystério. Em minha opinião, nenhum dos dois era lá grande
exemplo de profundidade de qualquer natureza. Mas se não foram os
dois, quem teria sido? Sombreiro não tinha inimigos, ao menos não
públicos. Fiquei ali, entre homens, mulheres e robóticos, estudando
e observando a cena, enquanto Beatriz caminhava pelo theatro, agora
iluminado, conversando com os presentes.
Como um investigador de casos policiais, fui em direção à dupla de
suspeitos, que continuavam a bater boca. Agora a discussão acalorada
era sobre o testamento do falecido.
Mal sabia eu que outra morte seguiria em minutos a primeira.

 10
IV
Eu e Beatriz nos colocamos à disposição da polícia, caso precisassem
de ajuda.
Como ainda era costume nestas cercanias sulistas, o inspetor ignorou
Beatriz, por ser mulher e por ser negra. Quanto a mim, fui levado ao camarim
que a polícia havia transformado em uma improvisada sala de interrogatório.
Fiquei em silêncio, afinal estava ali apenas como um convidado, dada
a minha posição social e também por ter sido o primeiro a tomar provi-
dências diante do enforcamento, o que conquistou ao menos o respeito
dos policiais e também do diretor do theatro.
Peixoto também estava ali, auxiliando a polícia. Quando perguntado
sobre qual foi a última vez que viu o morto, informou que fora cinco mi-
nutos antes da cortina ser aberta e das luzes serem apagadas. Sombrero
se despedira dele, dizendo que veria o espetáculo com Nalimova. Nesse
intercurso, Peixoto havia ido à sala de máquinas conferir o projector.
Agora, faltava averiguar onde estava Nalimova e Pataco naqueles
seis minutos que separavam a conversa de Peixoto com Sombreiro e o
seu assassinato.
Nalimova, no alto de seus sapatos, não parava de alisar os cabelos, às
vezes chorando, às vezes soluçando. Como estávamos em um camarim,
flagrei-a se olhando num dos espelhos.
“Eu o amava! Ele me amava!”, ficava repetindo a mulher.
“Como se conheceram?”, perguntei, enquanto a polícia inquiria Pei-
xoto e Pataco.
“Eu sempre quis ser uma atriz e vim a Porto Alegre para isso. Mas con-
segui poucos papéis e muitos deles envolviam tirar a roupa em theatros
de segunda linha. Foi quando conheci Sombreiro e nos apaixonamos.
Ele me falava de sua machinaria fantástica, que projetava sombras nas
paredes, depois imagens e então imagens em movimento! E ele me disse
que... que eu seria sua estrela”, dizia a mulher.
A cena parecia um melodrama barato, mas ao mesmo tempo a
origem humilde de Nalimova e o seu relato como um todo pare-
ciam coerentes. Ademais, ela não parecia capaz de cometer um crime

 11
desses, sobretudo pela força física necessária para levar um corpo até
o alto das coxias e jogá-lo de lá. Infelizmente, minha sympatia por
ela sumiu em seguida.
“Agora, eu terei de dar continuidade ao seu legado. Eu terei de con-
tinuar a administrar o cinematógrapho...”
“Só por cima do meu cadáver!”, vociferou Pataco, novamente indo
para cima dela.
“Socorro, ele vai me matar!”, gritou ela.
“Matilde! Pare com isso!”, disse Pataco, parando a alguns metros
da mulher.
“Matilde?”, perguntou o inspetor.
“Sim, Matilde da Silva”, respondeu a atriz. “Sombreiro disse que eu
precisava de um nome estrangeiro para fazer sucesso. É que no Brasil,
tudo o que é de fora vende mais e faz mais sucesso. Em função disso,
criamos o nome Azza Nalimova, uma estrela ítalo-russa.”
Dois policiais riram da revelação, até serem advertidos pelo inspe-
tor responsável. Ele então voltou-se para Pataco e lhe perguntou sobre
a invenção do cinematógrapho.
O engenheiro retirou do seu casaco uma pequena garrafa e entor-
nou o líquido. Depois disso, sentou-se numa das poltronas do camarim
e começou a falar.
“Sombreiro era um ilusionista de palco, tinha grandes ideias, algu-
mas percepções bem importantes sobre o público, o mercado, o futuro!”,
falou ele, revelando resquícios de algum sentimento. “Sonhava com um
mundo em que não houvesse mais theatros e sim casas de cinemató-
graphos! Casas que iriam lotar para ver produções com truques visuais
captados pela câmara. Eu achava aquilo tudo um delírio. Enquanto ele
sonhava alto, eu estava com os pés na terra, quebrando minha cabeça
para modificar a tecnologia que estava ao nosso alcance. Minha forma-
ção como engenheiro e meu gosto pela dimensão técnica da photografia
garantiram a criação do machinnario que tornou possível a magia do
cinematógrapho. Quanto ao brilhantismo de acoplar o phonógrapho,
foi ideia dele. Mas não importa! A grande invenção de nada valeria sem
um gênio mecânico que a executasse.”

 12
Ele se colocou em pé e foi em direção a Nalimova, que continuava
em falso estado de choque. Antes que falasse, porém, levou a mão ao
lado esquerdo do estômago, como faria um homem que estivesse so-
frendo de uma úlcera.
“Então, sua marafona”, berrou ele, “não pense que você herdará um
centavo dessa invenção que foi minha! Há mil Sombreiros por aí, lutáticos
cheios de ideias insólitas. Mas apenas um Pataco, capaz de concretizá-
-las no Brasil como os irmãos Lumière fizeram na França!”
Nalimova pôs-se de pé e agora mudava sua estratégia.
“Augusto, mas você precisa de alguém para ajudá-lo, você precisa de
uma amiga, de uma conselheira, de uma...”
A fala dela foi interrompida por uma forte tosse que assomou o enge-
nheiro. Esta foi aumentando até o homem vomitar sangue, com pingos
manchando a face da atriz.
Eu corri em sua direção, enquanto todos, inclusive Nalimova, olha-
vam chocados para o homem que caía de joelhos. Em minutos, os olhos
e ouvidos estavam sangrando e ele expirou. Quanto o examinei, o cora-
ção explodido denunciava um novo crime.
Naquele momento, a porta do camarim se abriu e entrou Beatriz,
discutindo com o policial que ficara do lado de fora, de vigia.
Depois de avaliar o renovado terror, que agora não acontecia no
palco, mas abaixo dele, ela informou-nos da resolução daquele crime.
“Vim justamente informar que Pataco não havia sido responsável
pela morte de Sombreiro. O engenheiro estava ocupado com outra
coisa, não é, Nalimova?”
A atriz desconversou, ignorando também o novo corpo que estava
à sua frente.
Beatriz se aproximou dela e perguntou:
“Há quanto tempo você estava com os dois? Pataco estava com você
na hora da morte de Sombreiro, não?”
A atriz deu de ombros, suspirou e por fim assentiu.
“Estão vendo, agora sim não há como questionar meu papel neste
drama”, disse ela. “Sou a viúva dos dois e legítima herdeira do Cinema-
tógrapho Falante!”

 13
Ignorando a cena, me abaixei sobre o corpo e retirei do seu casaco a
garrafa metálica. Pelo cheiro, identifiquei arsênio, além da aguardente
que ela continha.
“Envenenado”, informei.
Nisso, o inspetor deu um passo à frente e perguntou à atriz:
“Mas se vocês estavam juntos, então quem foi o assassino?”
Beatriz atropelou o policial e de forma um tanto teatral, como ado-
rava fazer quando interpretava o papel de Dante D’Augustine, perguntou:
“Apenas uma pessoa pode responder essa questão. Não é mesmo,
senhor Peixoto?”.
Surpresos, demoramos demais para impedir a terceira morte daquela
noite demoníaca!
Puxando da cintura uma pequena pistola, o respeitável diretor do
Theatro São Pedro estourou a cabeça do policial que protegia a porta e
tomou Nalimova como refém.
Peixoto saiu, levando consigo a mulher, que agora chorava de verdade, te-
mendo por sua vida. Eu, Beatriz e o inspetor saímos do camarim junto deles.
O diretor ordenou que parássemos e então jogou a mulher ao chão.
Em segundos, ele sumiu nas sombras do velho theatro. Depois de
traições imorais, homicídios teatrais e disputas financeiras, o que en-
cerraria aquele sórdido espetáculo?

 14
V
O assassino ganhou vantagem em sua fuga, pois conhecia a geografia
do theatro.
Enquanto corríamos, o inspetor perguntou a Beatriz como ela havia
decifrado o crime.
“O plano de Peixoto era perfeito”, disse ela, entre uma passada e
outra, “exceto por um detalhe: a corda. Um dos funcionários com quem
conversei, disse-me que há três noites ele viu o diretor subindo a coxia
levando consigo uma corda. Penso que ele planejou tudo e então levou
o corpo lá em cima em minutos, sabendo todos os espaços que teria para
produzir um álibi. Tendo jogado Sombreiro, poderia usar o elevador de
carga para estar na boca do palco segundos depois e assumir seu papel
em meio ao caos. Quanto ao veneno, não faço ideia.”
“Eu sim”, respondi, logo correndo atrás dela, por entre as fileiras da
audiência inferior, com o rastro do diretor à nossa frente. “Há duas hi-
póteses cabíveis. Peixoto pode ter tido acesso aos pertences de Pataco
ou, então, se uniu a Nalimova, mas suspeito que não.”
“Vocês formam uma bela dupla”, disse o inspetor, liderando a
perseguição.
“Eu sei”, respondi, piscando para Beatriz.
Depois de nos fazer correr por corredores tortuosos que levavam à
coxia, o diretor em fuga desceu as entranhas do theatro através de uma
escadaria secreta que ficava ao lado do camarote monárquico. Dizem os
historiadores que aquele túnel fora construído caso um dia o São Pedro
recebesse a visita de Dom João vi, conhecido por seus ataques de pânico.
Beatriz, que corria ao meu lado, tinha no passado investigado as his-
tórias do theatro, para um dos contos de Crimes Crassos, sua primeira
coletânea policial. Agora, nós e o inspetor de polícia tínhamos o mór-
bido privilégio de visitar aqueles ínferos túneis.
Para a nossa surpresa, que corríamos na escuridão portando lumi-
nárias, a fonte de luz que perseguíamos estacou, tendo encontrado o
túnel interrompido por uma parede de tijolos.

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Há mais de vinte anos, a prefeitura de Porto Alegre dos Amantes havia
anulado sua continuidade para construir parte do saneamento da cidade.
Peixoto jogou a tocha que trazia consigo ao chão e ficou lá, parado
e em lágrimas, esperando a nossa aproximação.
O inspetor retirou sua pistola do coldre e mirou no homem que ime-
diatamente jogou fora a arma que havia usado para matar o policial e
ferir Nalimova.
“Não atire, por favor. Não irei fazer a mal a nenhum de vocês”, disse
o patrono das artes dramáticas, encurralado no final do túnel sem saída.
“Não se mova!”, ordenou o inspetor, não perdendo-o de mira.
“Ficaste louco, diretor Peixoto? Entregue-se!”, perguntei, mantendo
distância.
“Louco? Louco?!”, respondeu o homem. “Louco ficou o mundo lá em
cima! Loucas ficaram as pessoas que não mais entendem a sacralidade!
Loucos ficaram todos vocês!”
O inspetor estava prestes a ordenar silêncio e prisão, quando foi
impedido por Beatriz. Como eu, ela estava mais do que interessada nas
razões que levaram Peixoto àqueles crimes!
Seguimos em direção ao homem, esperando que ele nos contasse
sua história.
Peixoto era a própria imagem do horror, segurando em uma das
mãos a tocha e na outra uma lâmina que sacara há segundos, uma lâ-
mina que nos afugentava.
“Por que mataste aquelas pessoas, diretor?”, perguntei.
“Porque elas estavam prestes a matar o theatro! Graças a elas, a arte
da representação, da atuação, estará perdida. E tudo pela ganância, pelo
lucro, pela insanidade daquela machinna maldita, criadora de falsos
deuses e vis demônios.”
O homem deu um passo atrás e foi interrompido pela parede atrás de
si. Insano ou desesperado, olhava ao redor, como se estivesse na com-
panhia de phantasmas e espectros.
“O rosto, o suor, a voz, o corpo... a presença do homem, da arte, de
sua mutabilidade... de sua sacralidade... Sófocles, Shakespeare, Mo-
lière... todos arruinados pelo machinnario maldito, pela gravação e pela

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reprodução, pela distância e pelo vazio da imagem gigantesca... Agora,
teremos luzes ao invés de sombras, reproduções tecnostáticas frias no
lugar da quente magia do palco e dos atores, da vida e das paixões...
Nossas artes, nossas cores...
Eu e Beatriz mantínhamos distância, pois temíamos que ele pudesse
nos ferir, uma vez que golpeava o ar enquanto dava seu solilóquio. Mal
poderíamos imaginar o que se seguiria.
“Até esta noite, nosso público pagava por espetáculo humano. A partir
de hoje, pagará por imagens frias e falsas, por vozes gravadas e desen-
contradas em falso movimento! A era dos falsos deuses chegou! E eles
maculam Dionísio, nosso pai, nosso senhor. Nosso único protetor! E é
por ele que eu faço este sacrifício!”
Quando vi o que iria acontecer, pulei em sua direção, mas já era tarde
demais. Peixoto golpeou um olho com a faca e rasgou o outro com um
golpe estabanado.
Consegui retirar a lâmina de sua mão, mas ele me empurrou para
longe. Precisava terminar a ignóbil tarefa, arrancando com os dedos
não apenas o que havia sobrado de seus glóbulos como espicaçando as
ensanguentadas feridas, até que nenhuma visão restasse!
Agora, satisfeito, ele deixava seu corpo cair de joelhos, como uma
trágica figura numa antiga peça grega, e nós não passávamos de impo-
tentes espectadores do drama hediondo!
“O cinematógrapho é o demônio apolínio, estraçalhando os últi-
mos vestígios da nossa origem terrestre, nascidos no ventre de Gaia e
no sumo de Dionísio!”, gritou o homem, com os lábios empapados do
próprio sangue. “Que o resto... seja escuridão... e silêncio.”
A lógica daquele Édipo maldito não era em tudo errônea. As máqui-
nas substituiriam a presença humana? Os jogos de sons e luzes e cenas
nos tornariam mais ou menos humanos?
Eu e Beatriz não tínhamos resposta. Tu, leitor ou leitora do futuro, a teria?
Em minutos, um dos guardas chegou, sendo seguido por um robótico.
Eles levaram o miserável para a luz, embora daquele dia em diante
Ésquilo Peixoto estivesse condenado à eterna penumbra.

 17
VI
Eu e Beatriz ficamos no theatro por umas três horas.
O inspetor que nos acompanhara no decorrer da noite, nos agra-
deceu e desculpou-se pela hipótese de ter sido rude com Beatriz no
início da noite.
“Foste fundamental à resolução deste caso, minha senhora”, disse ele.
Deu-nos boa-noite, não sem antes se apresentar.
Chamava-se Pedro Britto Cândido e vi nele um tipo de nobreza que
há tempos não encontrava entre os defensores da lei neste estado.
Pressenti que nossos caminhos, cedo ou tarde, voltariam a se encontrar.
Ao amanhecer, depois de encaminharmos Nalimova ao Hospital
Geral, tomamos uma carruagem e fomos para a minha casa.
No movimento da rua, beijei os lábios de Beatriz, que estava pensativa.
“E se ele estiver com a razão?”, perguntou ela. “Digo, o assassino? E se,
de fato, o cinematógrapho falante matar o theatro e as artes dramáticas?”
Eu pensei um pouco antes de responder.
“A photographia não matou a pintura, não é mesmo? Podemos dizer
que a arte dos traços e cores sobre as telas foi apenas obrigada a mudar.
Talvez o mesmo aconteça com o theatro. Temes que a literatura tam-
bém seja prejudicada?”
“Não, não temo, afinal contamos histórias desde sempre, não é?”
“Sim”, respondi. “E talvez o cinematógrapho falante seja um novo es-
tágio na arte de contar histórias. A noite foi produtiva para você, não?”
“Sim, foi. Estou pensando em escrever um conto de Apolinário que
se passa numa casa de shows com essa assombrosa nova tecnologia.”
“Por isso a anotações?”
“Sim”, respondeu ela, voltando a fitar a cena que passava pela ja-
nela da carruagem.
“Quanto a mim, vou apenas atualizar meu noitário”, respondi, pen-
sando no que escreveria sobre o horrendo espetáculo encenado nas
entranhas do Theatro São Pedro.

 18
Seguimos para minha casa e passamos o dia de Natal mergulhados
na cama, não apenas descansando. Depois de uma noite de Thanatos,
seria hora de homenagearmos Eros.
Quanto ao deus do theatro, também o louvamos, degustando uma
safra seleta.
E desejando que os deuses da morte, do amor e do drama continuas-
sem a nos inspirar.

  19
Essa aventura integra o universo de Brasiliana Steampunk, série
retrofuturista que reinterpreta os heróis da literatura brasileira do
século xix em histórias de aventura, suspense e fantasia. Dos livros que
integram a série, a DarkSide® Books publicou Parthenon Místico (2020) e
Lição de Anatomia (2022). Neles, o leitor pode acompanhar as aventuras
de Antoine Louison e Beatriz de Almeida & Souza. Mais da série em
brasilianasteampunk.com.br.

enéias tavares é escritor, professor e tradutor. Ele nasceu à meia-noite


e mora em um sobrado rural numa região perdida do sul do Brasil, onde
vive com seus felinos, sua companheira e escorpiões robóticos. Mais de
suas experimentações ficcionais em eneiastavares.com.br.
NILSEN AZEVEDO
A PROCISSÃO DAS
ALMAS PERDIDAS
NILSEN AZEVEDO

À meia-noite, o sino bateu sete vezes no cemitério no fim da rua. Já


fazia alguns anos que as mulheres de capuz vermelho apareciam. Elas
vinham sempre no dia mais longo do ano, quando o sol enrolava até
o último segundo para ir dormir, se espreguiçando sobre os telhados,
acobreando as copas das árvores e fazendo o mar encrespado lá na
praia cintilar.
Ioná chamava a turba de procissão das almas. Embaladas pela brisa
marinha e pelo canto das cigarras, as mulheres avançavam pé ante pé
até cruzar a porteira do campo-santo. Eram como aparições errantes
que portavam velas e caminhavam com a pressa dos mortos. Sob a luz
do fogo, pareciam seres de outro mundo.

 4
Os badalos arrancaram Ioná do sono leve de enfermeira e, como
de costume, ela pulou da cama e foi espiar. As mulheres passavam
rentes à janela entreaberta, os rostos determinados virados para a
frente, escondidos por tecidos encarnados de vários tipos e textu-
ras. Pela fresta, o cheiro saudoso de cera derretida ia aos poucos in-
vadindo o quarto.
“Todo ano é a mesma coisa”, murmurou Ioná, incapaz de desviar os
olhos da procissão. “Por que elas fazem isso?”
A namorada de Ioná não respondeu; manteve a boca curvada em um
sorriso tímido e assim ficou. Laura sabia que, quando ficava encantada
por algo, Ioná não conseguia prestar atenção em mais nada.
As mulheres continuavam passando, algumas jovens como a aurora,
outras sábias como a madrugada. As lágrimas das velas caíam em suas
mãos e escorriam pelos pulsos, pingando no chão, formando um rastro
de cera. Ninguém dizia nada; ouvia-se apenas o som dos passos mar-
chando pela rua de paralelepípedos.
Ioná novamente se perguntou de onde saía a procissão, quem organi-
zava o encontro e que diabos elas faziam quando chegavam ao cemitério.
O jornal mais famoso da cidadezinha, sempre desesperado por pautas
bairristas, nunca noticiara o evento. No ano anterior, tinha chegado a
perguntar para a dona da padaria, que sempre estava a par dos últimos
mexericos, se ela já havia participado da tal procissão.
“Procissão de mulheres? Que isso, Ioná?”, retrucou a velha, empi-
lhando maços de cigarro no caixa.
“Aquela que passou pela minha rua ontem à noite e foi até o cemi-
tério”, explicou a enfermeira.
“Não fiquei sabendo de nada disso. Parece uma grande bobagem”,
a velha respondeu, soltando um muxoxo. “Vai querer alguma coisa ou
não? Você tá empatando a fila.”
Ioná se desculpou e foi trabalhar. Mais tarde, quando voltou, pas-
sou pelos portões do cemitério, com a esperança de ainda ver centenas
de velas aglomeradas em uma catacumba ou pelo menos alguém que
soubesse explicar por que aquelas mulheres ganhavam as ruas todos os
anos. Não havia nada.

 5
E não houve nada por um ano, até a procissão reaparecer. Ioná, que
por um momento se perdera nas lembranças, foi içada de volta ao pre-
sente quando uma mulher de meia-idade, com bolsas ao redor dos olhos
e dentes amarelados de tanto fumar, se aproximou da janela. Ela bai-
xou o capuz de veludo e manteve a vela bem perto do queixo, como se
temesse perdê-la de vista. Quando falou, seu hálito cheirava a cigarro,
e sua voz não passava de um sussurro.
“Boa noite, irmã. Quer se juntar a nós?”
Ioná olhou por cima do ombro, buscando a opinião da companheira,
mas o contraste do clarão da vela deixou o quarto ainda mais escuro, de
modo que ela não conseguiu enxergá-la. Ela abriu a boca e sentiu como
se o vento da madrugada estivesse soprando suas palavras para fora.
“Para quem é o cortejo?”
“Para as almas perdidas”, respondeu a mulher, como se fosse óbvio.
“Você com certeza conhece alguma.”
Ninguém além da mulher olhou para ela. A procissão avançava de
forma resoluta, as chamas tremeluzindo, os passos agora parecendo um
pouco mais apressados, mas talvez tudo não passasse de outra impres-
são. Lá no cemitério, uma gargalhada ressoou. Forte, decidida, como
se sua dona soubesse que um céu raivoso de tempestade não era páreo
para quem desejava ter um dia de sol.
“Estão velando alguém conhecido?”, perguntou a enfermeira.
“Conhecemos as dores e perdas umas das outras. E é só questão de
tempo para quem ainda não conhece.” A mulher recuou um pouco e,
com a mão livre, recolocou o capuz. “Nós deixamos as velas acesas no
cemitério para iluminar o caminho delas. Se queimarem até o fim, ain-
da há esperança. E esperança, irmã, é tudo que nós temos.”
A mulher sorriu com os olhos e voltou à procissão. Ioná percebeu
que a maré de pessoas estava ficando mais rasa e viu, ao olhar para a
esquerda, mais ao longe, que as mulheres que encabeçavam o cortejo
já haviam cruzado os portões do cemitério. Com o coração palpitan-
do, ela fechou a janela, passando o ferrolho. De repente se sentiu su-
focada no quarto, na casa, como se toda a vida que valesse a pena ser
vivida pulsasse lá fora.

 6
“O que acha? Será que devo arriscar?”, perguntou à namorada.
Laura ficou parada com o mesmo sorriso tímido de sempre. Não deu
uma piscadela, não assentiu, não fez nada. Não tinha como. Laura não
respondia nada havia anos, desde seu desaparecimento. Mais um cri-
me sem solução. Mais uma história silenciada, sem desfecho, um pon-
to frouxo, sem nó.
Ioná acarinhou o porta-retrato que continha sua foto preferida da
companheira, pegou um cobertor vermelho, uma vela e saiu. A procis-
são a recebeu de braços abertos. Mais uma vez, ninguém olhou para
ela, mas não precisava; ela se sentiu parte do cortejo secreto assim que
começou a caminhar. Empunhando a vela, foi até o campo-santo, onde
foi a última a chegar. No silêncio dos mortos, cercada pela deferência
dos vivos, pousou a vela já acesa ao lado de todas as outras e passou um
tempo encarando a chama bruxuleante.
Quando saiu do transe, viu que a noite já estava azulada, prestes a
acolher a manhã. As mulheres tinham ido embora, prontas para viver
o novo dia, talvez até o novo ano. A vela que tinha trazido não estava
mais lá. Ioná estava sozinha.
Sorrindo, quase gargalhando, falou:
“Mas nunca mais vou andar só.”

 7
nilsen azevedo é editora e tradutora. É formada em Jornalismo e desde
2018 edita livros escritos por mulheres, ajudando a dar visibilidade a no-
vas vozes femininas na literatura. Como tradutora, cuidou de livros como
Gótico Mexicano, Rastro de Sangue: O Grande Houdini e Ela e o Monstro,
todos publicados pela DarkSide® Books. Nasceu em Santos e atualmente
reside em São Paulo com sua cachorra, que se chama Lizzie em home-
nagem à protagonista de Orgulho e Preconceito. Seu primeiro livro será
publicado pela DarkSide® Books.
MÁRCIO BENJAMIN
MARGARIDA
MÁRCIO BENJAMIN

Oxe, mas eu sou capaz de jurar que um circo desses você nunca viu! Quer
apostar quanto, dona moça? Ainda mais por essas bandas do seu interior.
Se ofenda não, por seu favor, que eu mesmo só vim ver o mar depois de
muita idade no lombo.
O palhaço passou no meio da rua gritando bem na hora que tu tava
indo lavar a roupa, lembra não? Ora, se minha fia quase esparramou a
trouxa no chão quando o danado atravessou a cidade, mais enfeitado
que cavalo de cigano, por cima daquelas pernas de pau?
Se lhe passou uma coisa no peito, moça?
Uma brasa nova, que você nunca tinha era sentido. Um estalo de espe-
rança como a lhe dizer que o mundo não era feito de poeira e sol, o mundo
não se acabava por ali na fazenda de Antunes não. Ficava bem mais pra lá
do açude, começava bem antes da bodega de seu Miúdo. Quase perto das
histórias que o véio Trancoso contava nas noites de debulho de milho.
Será?
Mas aí você se aperreou, lembra? Menina que ainda era, feita pra vi-
ver entre cantar de galo e missa, pra bosta de criança e cozinha, como
danado ia se enfurnar dentro de um picadeiro? Não se lembrava direito

 4
nem da última vez que saiu pra cidade que não fosse de mão dada com
o pai cheio de cachaça. Com a mãe, que de cabeça baixa e olho roxo, ti-
nha esquecido até como se falava?
Você até sacudiu a cabeça pra lá e pra cá, como se esse desejo, tão
novo, fosse assim uma mosca que a gente insiste em espantar dos beiços.
Ah, mulher, mas quem disse?
O problema é que aquela mosca andava era no coração, e passava, da
barriga pra garganta, como quem lhe assopra: cuide!
Tente.
Vá simbora, menina besta!
E tudo piorou quando você foi comprar umas miudezas pra entei-
rar a mistura e tropeçou justamente com aquele condenado no meio
do caminho.
Tão bonito. O bigode farto. A cartola. Zenon. O nome, tão diferente,
quase lhe estalava o juízo, resplandecendo no meio do sol impiedoso.
Tão elegante, meu pai eterno. Um olhar mais azul que o mar, que você
nunca conheceu, latejando no meio da cara larga. Sorridente.
E o aperreio de dentro do peito desceu bem pro meio das pernas,
não foi?
E tu se entregou, lembra? Lá na casa dele, bem dizer. Lá no circo,
igual a tantos outros, depois soube.
E ali, com ele bem dentro de você, tu percebeu que nasceu foi praquilo.
Naquela mesma noite arrumou as poucas coisas numa trouxa de
pano e pulou a janela de casa.
“Eu vou estar lhe esperando.” Foi o que ele lhe sussurrou no pé do
ouvido.
Mas o seu riso morreu quando você percebeu que ele não tava.
Não tinha ninguém do lado de fora da casa.
Só a janela, fechada por dentro.
Você ainda levantou a mão pra bater na porta, ainda abriu a boca
pra chamar sua mãe, mas ouviu a zuada do palhaço chamando, lembra
não? Era na cabeça, mas a memória foi mais forte. Sentiu o cheiro de
Zenon dentro de si e viu, bem de longe, um restinho das ondas do mar
a lhe assanhar o juízo.

 5
Tinha circo na praia?
E sem sentir correu. Correu pra bem longe de casa, correu pra bem
perto do circo.
Lá, terminavam de arrumar as coisas. A lona, já baixa, andava sen-
do enrolada.
Tu ficou numa agonia sem fim quando não viu o mágico, mas logo
acalmou-se ao sentir a voz dele por trás de si.
“Tamos de saída.” Foi o que ele disse. “Vamos simbora com a gente?”
E precisava dizer sim?
Precisava. E você disse. Disse uma vez, disse uma ruma de vezes. Bem
na hora que o sol começou a se espreguiçar lá no horizonte.
Ah, moça, mas por que você não esperou? Por que você não perguntou?
A vida da gente é assim como uma escolha, a senhorita entende? É
dada quando a pessoa abre o olho pra esse mundo e fecha pro outro.
É enfiada bem no meio dos dedos do inocente ainda pequeno e en-
tão nunca mais é tomada de volta.
Mas pode ser pedida. E uma vez entregue, pertence é a quem a recebe.
Zenon perdeu a dele faz é tempo. E desde então vem arrastando um
mundo de gente pra sua desgraça em uma rede de pesca feita de lona
de circo.
Você não achou estranho que esse picadeiro nunca teve público, não?
Pois então.
Agora você faz parte desse espetáculo que vai ter fim é nunca.
Dia e noite, perdidos em sua própria desgraça.
Você quis, Margarida.
Agora essa é a sua sina.

 6
Esse conto pertence ao universo do livro Sina, lançado pela DarkSide®
Books em 2022.

márcio benjamin costa ribeiro é um escritor natalense de 42 anos,


especializado em Escrita e Criação pela UNIFOR (CE), autor de roman-
ces e livros de contos de horror rural e folclóricos e roteirista de séries
e longas-metragens. Ganhador dos Prêmios Moacy Cirne de Ficção de
2019 e do Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica Narrativa Curta de
Horror 2020, Márcio publicou Sina em 2022, seu primeiro romance
pela DarkSide® Books.
PAULA FEBBE
LUZINHAS AMARELAS
PAULA FEBBE

Hoje Alfredo ia morrer. Ele sabia. Pelo menos durante aqueles poucos
minutos em que retomava alguma consciência sobre alguma coisa de
algum lugar. Pois era assim, sempre tinha sido assim. Papai Noel exis-
te para tirar a vida de quem está morrendo, e esse é o presente, afinal
alivia os moribundos e as dores de quem está do lado. É como tem que
ser. Tradição.
E faltava pouco. Este ano, Alfredo estava sofrendo com uma tosse
teimosa e havia tido resultados péssimos nos exames. Disso ele não ha-
via esquecido. Ainda mais nesta época.
Na TV do asilo, ficavam claros os preparativos: jornalistas davam no-
tícias, tensos e chorosos, pela provável perda próxima de alguém que
amavam ou deles mesmos, pessoas corriam e se trancavam em suas ca-
sas com alguma esperança de escapar, a mulher do Keith Richards o
embrulhava, mais uma vez, em plástico bolha.

 4
Nos hospitais, o clima usual de pavor. Segurança redobrada. Tudo
para tentar interromper o finalmente dos que já estavam quase. Às
vezes, os funcionários achavam que se trancassem a porta de um jeito
novo, com a fechadura de última geração ou a tranca com reconhe-
cimento facial, talvez ele não entrasse, mas claro que entraria. Papai
Noel sempre encontrava um jeito. Era especialista em arrombar as ca-
sas, hospitais, asilos e fazer chacinas sem que ninguém soubesse como.
Quando se davam conta, já tinha acontecido. Era rápido, um atirador
de elite, apesar de gostar um pouco demais do que fazia. Tanto que
sua roupa começava branca, mas no decorrer da noite, o vermelho to-
mava conta. E a bota? Ah, a bota guardava um belo coldre e uma faca
de caça pra quem fosse teimoso.
Poderíamos pensar que o tempo já teria feito com que as pessoas
se conformassem com o fim que logo chegaria, mas não tinha jeito.
Quase ninguém se conforma com a possibilidade da própria morte, só
mesmo com a morte dos outros, exceto pelos suicidas. E mesmo esses
levavam um empurrãozinho de Natal do dono da noite.
Outro job do bom velhinho era passar atirando nas ruas, selecio-
nando os que sofriam para encherem os pulmões dos que respira-
vam com facilidade. Ao ar livre, ele gostava mais. Podia usar a .12
sem que o tranco o fizesse bater em móveis mal distribuídos de ca-
sas mal decoradas.
Muitas vezes matava nas ruas enquanto o caminhão da Coca-Cola
iluminado de luzes amarelas passava por ele, e o ônibus da cidade,
também brilhante, tocava “Jingle Bells”. Até mesmo tinha matado vá-
rios desses motoristas de ônibus no decorrer dos anos. Ele gostava. Se
sentia acolhido com a forma como a textura do sangue se iluminava
com as luzinhas colocadas especialmente para ele.
Papai Noel era bom em saber das dores alheias. Até quem estava
com câncer avançado e não sabia, levava uma bala. Cirrose? Adeus! Se
tivesse perto de enfartar, au revoir. Então, se alguém não tivesse feito
o check-up no ano, pode ter certeza que teria receio de ser liquidado
no Natal. Essa é a beleza da morte. A gente nunca sabe quando vem.

 5
Ele também não poupava crianças, não. Se alguma tivesse muito
doente, dava tchau a este mundo bem ao lado dos pais. Também não
deixava que animais escapassem. Nos dois casos, não existia o medo;
nem mesmo por alguma associação sabiam que iam morrer. Não sen-
tiam. Ter o Papai Noel por perto é sempre uma coisa boa.
Como não podia deixar de ser, na meia-noite do dia 24 de dezem-
bro para 25, o bom velhinho entrou no asilo em que Alfredo estava.
Iluminado pelo pisca-pisca, envolto pela musiquinha que saía do Papai
Noel dançante Made in China, segurando uma escopeta de plástico, avis-
tou Alfredo que o viu também.
Depois de apagar três ou quatro velhinhos que estavam no caminho,
com uma pistola Beretta 92 X, Papai Noel atirou na cabeça do idoso,
sem hesitar. Foi mais rápido até do que a última visita que o filho havia
feito ao homem. O vermelho e o rosa se misturaram na parede fazendo
uma arte digna de um Pollock... da desgraça.
Nessa hora, os funcionários e pacientes do asilo já estavam desespe-
rados e escondidos, tentando se salvar. Agora era cada um por si. Sabiam
que “Santa” era implacável.
Não era por menos que, desde pequeno, Alfredo tinha tido medo
do Natal. Sabia o que era estar na pele de quem antecipava a vinda do
Papai Noel, mas nunca tinha achado que estava para morrer. Bom, não
era o caso agora.
E Noel era pessoal. Matava cada um com a mesma precisão e com a
mesma atenção. Nada era assim, de qualquer jeito. Ele tinha uma lista
e a seguia à risca, afinal era único no seu trabalho e matava da melhor
maneira que alguém é capaz de fazê-lo. O curioso é que, logo antes de
morrer, Alfredo lembrou de tudo que não lembrava há muito tempo. A
tensão de ter a arma colada à sua têmpora, sem fogo, durante um se-
gundo, fez com que recordasse de seus amores, do cheiro de sua casa
preferida, do prêmio que havia ganhado como melhor vendedor de se-
guros do ano, do rosto de seu filho assim que nasceu, de quando ga-
nhou seu cachorrinho de infância, do aconchego que sentia no abraço
de sua mãe, dos cuidados de seu pai, de seu casamento — quando ain-
da achava que sua ex-esposa o havia amado —, lembrou das notas boas

 6
que tirou na escola e dos momentos em que foi expulso da sala, lembrou
das melhores comidas que provou e das vezes em que ficou bêbado de-
mais. Lembrou de quando viajou e sentiu a neve em seu rosto pela pri-
meira vez. Lembrou dos outros Natais, em que não morreu. Lembrou
que tinha vivido, apesar do agora. Lembrou de tudo o que tinha visto,
antes dos seus olhos fecharem pra sempre. Antes de nunca mais piscar.
Cheio de lágrimas e voz chorosa, Alfredo disse baixinho:
— Obrigado, Papai Noel.
A última luzinha amarela que viu foi do disparo da arma perto de
seu olho.
POW
(POLLOCK)
Quase silêncio completo, não fosse a musiquinha vagabunda de Natal.

 7
paula febbe  sabe o que você esconde e escreve sobre isso. Autora de
Mãos Secas com Apenas Duas Folhas, Metástase, Cartas no Corredor da
Morte e Carniça, a também psicanalista e roteirista premiada é auto-
ra do livro Vantagens que Encontrei na Morte do Meu Pai, lançado pela
DarkSide® Books em 2021.
MARCO DE CASTRO
PAVÊ
MARCO DE CASTRO

Natal é sempre essa merda, pensou Doutor Samuel quando a seleção de


canções natalinas de Eugênia começou a tocar. Ela havia criado a play-
list no Natal de 2016 e, desde então, toda noite do dia 24 ligava aquelas
mesmas músicas enquanto eles entretinham os convidados na sala. “I
Wish You a Merry Christmas”, cantada por um coral alegre da Disney,
abria a seleção. Só Eugênia gostava daquela porcaria.
Márcio, como sempre, chegou puxando conversa sobre futebol. “E
o Curíntia, Doutor?” Aquele papo nunca se estendia muito. Doutor
Samuel até se dizia corinthiano, mas não dava importância ao fute-
bol. Sem assunto, o genro acabava ficando em silêncio no sofá, con-
centrado em sua tacinha de vinho do Porto. Só sabia falar de futebol,
mais nada. Era engenheiro eletrônico em uma multinacional e ganhava
mais do que o suficiente para sustentar uma família. O sogro, porém,
nunca o perdoaria por ter incentivado Clara a abandonar a faculdade
de medicina no terceiro ano.
Mas pelo menos eles lhe dariam um neto. Até Dona Erci, sua sogra,
sorria ao passar a mão no barrigão de oito meses de Clara. Só assim pra
essa velha rabugenta sorrir. Doutor Samuel deu uma nova bebericada

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em seu vinho do Porto. Naquele ano, a irmã de Eugênia não apareceria
com o marido. Ainda bem…. Olhou o relógio. Dudu, pra variar, estava
atrasado. Quase oito da noite. A ceia, como era tradição na casa, seria
servida às nove. “Comer à meia-noite definitivamente não é bom para
a saúde, altera o ritmo circadiano…”, foi o conselho que ele deu ao pú-
blico durante sua participação semanal no programa de TV vespertino.
Superintendente do setor de cirurgia cardiovascular em um famoso hos-
pital paulistano, ele havia sido convidado para fazer o quadro televisivo
e, às vezes, era até reconhecido na rua.
“Dudu chegou!”, animou-se Eugênia ao escutar a campainha. Samuel
também se levantou do sofá. Estava ansioso pela chegada do filho, que
naquele Natal viria com a nova namorada. Uma estudante de medici-
na. Surpreendeu-se com a beleza da moça, morena de jeito delicado e
olhos verdes, quando ela entrou ao lado de Dudu, carregando uma pe-
quena travessa com um bonito pavê de chocolate enfeitado com mo-
rangos. Encantada, Eugênia disse que ela não precisava ter trazido nada.
Stephanie respondeu que fazia questão de preparar uma sobremesa e
que a receita era de sua avó.
“Até que enfim uma nora decente”, sussurrou a si mesmo Doutor
Samuel, apesar de sua alergia ao chocolate. Isso não importava. Para
ele, o que valia era que pela primeira vez Dudu estava apresentando
aos pais uma moça linda, simpática e educada. Que ainda por cima
estudava medicina. Não era uma daquelas garotas esquisitas que não
queriam nada da vida que ele costumava levar aos eventos familiares. 
Era até estranho o fato de uma jovem como Stephanie ter se en-
cantado por Dudu, rapaz preguiçoso que, aos 24 anos, já havia desis-
tido de duas faculdades — a primeira delas medicina, para decepção
do pai — e agora pretendia abrir um bar de cerveja artesanal em so-
ciedade com amigos. 
“É um prazer conhecê-lo, Doutor Samuel, admiro muito o seu tra-
balho”, disse Stephanie apertando a mão do sogro, após entregar o pavê
de chocolate à empregada da família.
“O prazer é todo meu, querida. Por favor, deixe o ‘doutor’ pra lá e me
chame apenas de Samuel!”

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Quando todos se acomodaram novamente na sala, Stephanie recusou
uma tacinha de vinho do Porto. “Não bebo.” Foi outra coisa que causou
estranhamento no sogro. Como uma moça que não bebe resolveu namorar
Dudu, um notório pé de cana? Nesse momento, ele também teve a sensa-
ção de que já conhecia a nora de algum lugar, mas, como não fazia ideia
de onde, não pensou mais nisso. Ficou quieto, observando e escutando
Stephanie. Enquanto Dudu engatava no papo de futebol de Márcio, a na-
morada já encarava um bombardeio de perguntas da sogra e da cunhada. 
“Nasci em São Paulo, mesmo… Sou filha única… Infelizmente, meus
pais já não são mais vivos… Pois é, morreram cedo… Moro com minha
tia… Eu e Dudu nos conhecemos no Tinder hihihih… Estou no terceiro
ano de medicina… Faço residência na Santa Casa… Quero me especia-
lizar em cardiologia, como o Doutor Samuel”, disse por fim, encarando
o sogro com um sorriso, que ele retribuiu. 
A empregada então anunciou que a ceia estava servida e que ela já estava
de saída para encontrar sua família. “Amanhã chego cedinho para arrumar
tudo”, garantiu. Eugênia aumentou um pouco o volume da playlist, que ago-
ra tocava “Let it Snow, Let it Snow, Let it Snow”, na voz de Dean Martin.
No caminho entre a sala de estar e a sala de jantar, Doutor Samuel apro-
veitou para se aproximar da nora, que se sentou à mesa entre ele e Dudu.
A ceia, como de costume, estava caprichada. Um enorme peru, além
de tender, farofa e outras coisas gostosas. Eugênia começou a fatiar o
peru com uma faca elétrica Black & Decker e a distribuir a carne. Após
todos se servirem, o sogro puxou conversa com a jovem.
“Me diz uma coisa, filha: o que fez você decidir estudar medicina?”
“Então, doutor…”
“Samuel, por favor. Me chame de Samuel.”
“Hihihi”, a moça riu, encabulada. “Tá bom, Samuel… Então, meus
pais morreram cedo…”
“Sim, sim, meus sentimentos. Escutei você contando para Eugênia
e Clara na sala…”
“Pois é… Meu pai tinha aterosclerose e morreu de infarto. Foi jus-
to numa noite de Natal… Minha mãe entrou em depressão, adoeceu e
morreu poucos meses depois… Eu tinha 17 anos.”

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“Puxa vida! Mas que triste! E seu pai não se tratava? Não dava pra
resolver a aterosclerose dele com uma cirurgia?”
“Infelizmente, não deu tempo. Estava com a cirurgia marcada, mas
morreu antes…”
Depois disso, a conversa que se seguiu entre sogro e nora só girou
em torno de medicina, doenças e termos técnicos que só quem tra-
balha na área de saúde conseguiria entender. O tempo todo Samuel
se impressionava com Stephanie. Ela se revelava extremamente inte-
ligente e estudiosa. Apesar de ainda não entender o que aquela me-
nina fazia com o imprestável do Dudu, já pensava até em lhe dar um
emprego no hospital. 
Quando as pessoas não aguentavam mais comer peru, Eugênia pediu
ajuda a Stephanie. Elas levaram os restos da ceia à cozinha e voltaram
com as sobremesas. Stephanie veio com seu apetitoso pavê de chocola-
te, e Eugênia, com a mousse de maracujá preparada pela empregada. A
jovem se ofereceu para servir os doces à família do namorado. Era um
show de gentileza aquela garota. O pavê estava muito mais convidati-
vo do que a mousse. O único a optar pela sobremesa de maracujá foi
Doutor Samuel.
“Filha, esse pavê tá uma tentação. Mas não posso com chocolate, te-
nho alergia. Me causa erupções na pele e dor no estômago.”
“Poxa, o Dudu não me falou nada dessa sua alergia! Se eu soubesse,
trazia outra sobremesa…”
“Ah, o Dudu nem pensa em mim! Mas já está bom demais ele trazer
para esta casa uma moça tão gentil e inteligente…”
“Hihihi… Fico até sem jeito, assim, Samuel…”
“E você, não vai pegar sobremesa?”
“Nossa! Eu estava servindo todo mundo e acabei esquecendo de mim…
Hihihi… Também vou pegar mousse, pra te acompanhar!”
Pouco depois de todos começarem a degustar a sobremesa, algo es-
tranho teve início. Dona Erci foi a primeira a desfalecer, tombando de
cima da cadeira. Todos se levantaram para acudi-la. Estava apagada.
Eugênia desmaiou em seguida. Depois foram Clara, Dudu e, por fim,
Márcio. Na confusão, Doutor Samuel, desesperado, não sabia a quem

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socorria primeiro. Tanto que não notou que Stephanie foi até a sala para
pegar sua bolsa, que estava no sofá. Também não percebeu que ela vol-
tou com uma seringa pronta na mão direita.
Chegando por trás do sogro, Stephanie enfiou a agulha em sua ná-
dega direita. O médico deu um pulo ao sentir a injeção. “Que merda é
essa?!”, gritou, ao se virar e vê-la segurando a seringa vazia. Em segun-
dos, suas pernas amoleceram, e ele logo estava no chão. Não conseguia
firmar os braços. Ao tentar falar, enrolava a língua. Diferentemente dos
outros, porém, permanecia consciente. 
“Pra você eu dei uma dose menor, Samuel. Queria que ficasse bem
acordado. Outro dia você comentou na TV que tem alergia a chocolate”,
disse uma Stephanie bem diferente daquela jovem gentil que ele tinha
acabado de conhecer. Estava séria, carrancuda, e seu olhar brilhava com
ódio. Em seguida, ela puxou as pernas do sogro e arrumou seus braços,
de modo que ele ficasse todo esticado. 
“Na verdade, o grande responsável por eu ter escolhido fazer medicina
foi você mesmo, Samuel… Aliás, Doutor! Prefiro te chamar de Doutor”, dis-
se ela calmamente, enquanto abria os botões da camisa social do médico.
“Você se lembra do Natal de 2014? Aposto que não… Foi o Natal que
meu pai morreu… Aposto que você também não se lembra do meu pai…
Elpidio Pereira Novaes… Não lembra, né?”
O olhar confuso e desesperado de Samuel dava a entender que não.
Já estava com a camisa toda aberta, o peito e a barriga à mostra. 
“Eu já imaginava… A cirurgia do meu pai estava marcada para o dia
23 de dezembro. O caso dele era urgente… Mas você preferiu adiar…
Lembra por quê?”
Agora ela mexia novamente na bolsa, de onde tirou um estojinho
muito familiar para quem pratica medicina.  Do tipo que armazena bis-
turis. Doutor Samuel tentou gritar, mas só conseguia grunhir e babar.
A jovem continuou falando, fria como o vinho sobre a mesa. 
“Você resolveu adiar a cirurgia do meu pai pra passar o Natal com a
família em Ubatuba…”
Após tirar o bisturi do estojo, Stephanie se agachou sobre Doutor
Samuel e o encarou. 

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“Quando meu pai infartou durante a ceia de Natal e caiu morto com
a cara no prato de arroz com uva passa — era só aquilo que ele ia comer
naquele ano, por causa do coração —, eu prometi pra mim mesma duas
coisas. Uma foi que eu me tornaria médica e minha família nunca mais
dependeria de gente como você. A outra foi que um dia eu ia me vin-
gar… Na verdade, eu já tinha até esquecido da segunda promessa. Mas
aí você começou a aparecer na televisão, dando dicas de saúde naquele
programa feito pra donas de casa… Não imagina o ódio que me deu ver
aquilo… O filho da puta responsável pela morte do meu pai virando ce-
lebridade. Agora, seu desgraçado, vou arrancar seu coração!”
Mas, quando a lâmina do bisturi estava a apenas alguns centímetros
do peito do médico, a jovem se deteve. 
“Pensando bem, acho que mudei de ideia”, disse, colocando de vol-
ta o bisturi no estojinho e tornando a guardá-lo na bolsa em cima da
mesa. Por um momento, o indefeso cirurgião cardiovascular se sentiu
aliviado. Porém, seu desespero retornou muito pior quando escutou o
barulho da faca elétrica Black & Decker.
“Vou fazer sua cirurgia com isso aqui… vai ser bom pra cortar os os-
sos. Hihihih.”

A playlist de canções natalinas ainda tocava, quando Dudu acordou ao


som de “Santa Claus Is Coming to Town”, cantada por Bing Crosby e
The Andrew Sisters. Viu o sangue no chão da sala de jantar e os familia-
res caídos próximos à mesa. Clara estava grunhindo, e ele, desesperado
e rastejando, ainda devido à droga que comeu com pavê, foi até a irmã
para ajudá-la a se reanimar. Márcio acordou em seguida. Ele e Dudu
foram acudir Eugênia e Dona Erci, que seguiam totalmente apagadas.
Escorando-se na parede, Clara conseguiu ficar em pé e gritou ao olhar
a mesa, onde estava estirado o cadáver de Doutor Samuel, com a barri-
ga aberta e oca e os órgãos espalhados ao seu redor. 

 9
marco de castro é paulistano, 44 anos, jornalista formado pela Faculdade
Cásper Líbero. Castro foi repórter nas editorias São Paulo e Polícia do
jornal Agora São Paulo, onde também foi subeditor do caderno “Show!”.
Autor com uma bagagem sólida de realidade, teve dois contos adapta-
dos para o cinema pelo diretor Dennison Ramalho: “Morto Não Fala”,
que inspirou o longa-metragem homônimo, e “Um Bom Policial”, adap-
tado como o curta Ninjas. Também assina o roteiro de O Aniversário de
seu Lair, adaptação de seu conto original “Aniversário”, e dirigida por
Dácio Pinheiro. Castro ama o rock! É compositor e vocalista das bandas
punk Aparelho e Coice. Publicou seu primeiro romance, Morto não fala
e Outros Segredos de Necrotério em 2021, pela DarkSide® Books.
ROBERTO DENSER
A ÚLTIMA VEZ
ROBERTO DENSER

Quando terminamos de empilhar os corpos, paramos diante do monte


de carcaças e, em silêncio, admiramos o resultado de nosso trabalho.
Ali havia parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos numa quanti-
dade que ninguém se atreveria a contar.
“O que faremos agora?”, perguntou Débora, a voz abafada dentro
da máscara de gás, os cabelos esvoaçando por causa da força do vento.
Eu olhei para Tiago, meu irmão, ao lado dela. Ele havia tirado a sua
máscara de gás e olhava para aquela montanha de corpos com os olhos
vermelhos e uma expressão sombria. Atrás deles, o mar, violento como
um deus antigo, ameaçava destruir o mundo. Tive vontade de chorar.
A única coisa que nos trazia alívio era olhar para os lados e não en-
xergar nenhum perigo imediato. Naqueles dias, era difícil. A própria
natureza havia se tornado uma ameaça constante, com as zonas mortas,
as doenças sem nome, os animais se comportando de maneira agressi-
va, todo aquele rol de porcarias.

 4
O fato é que a morte, onipresente, grassava absoluta em todas as direções.
Nós, é claro, havíamos nos acostumados com isso. Éramos a segun-
da geração, a geração para a qual matar e morrer fazia parte do coti-
diano. Nenhuma manhã era garantia de que haveria uma próxima. Era
assim para nós, os mais jovens. Para os mais velhos as coisas estavam
um pouco... desencontradas, e todo adulto com mais de 40 anos pare-
cia um pouco maluco.
Aquela era uma noite especial. Ainda comemorávamos o Natal naquela
época, mesmo que já não fizesse muito sentido. Óbvio que a persistência
disso era uma tentativa dos mais velhos de fazer com que as coisas pare-
cessem um pouco como eram antes, no tempo deles, quando ainda havia
papais noéis e shopping centers, perus e motivos.
Já não havia mais nada disso. O que tínhamos, pelo menos até ali,
era apenas uns coroas malucos querendo alimentar suas ilusões sem
sentido, como a celebração do nascimento de um deus no qual nin-
guém mais acreditava. Um deus sobre o qual a única coisa que sabía-
mos é que havia dado sua carne e seu sangue para que seus discípulos
se alimentassem, e que mesmo assim foi traído por eles. Isso sim fa-
zia sentido para gente.
E talvez apenas por causa disso a celebração resistiu até nós, afi-
nal esse é o destino das coisas em geral: existir enquanto faz sentido.
Depois que deixam de significar algo, o que sobra segue em frente até
encontrar o seu próprio ocaso. Qualquer um que olhasse para aquela
pilha de corpos entenderia isso. Com ela, encerrávamos um ciclo, ce-
lebrávamos o nosso último Natal.
“O que faremos agora?”, Débora voltou a perguntar, agora gritando.
Tiago colocou uma das mãos sobre o ombro dela, talvez pretenden-
do com isso acalmá-la, como sempre fazia. Mas era para mim que ele
olhava quando falou.
“Como você está?”
Eu não sabia como eu estava, mas preferi mentir.
“Ótima.”
“Temos bastante gasolina”, ele disse, agora olhando para Débora.
“Podemos cremá-los.”

 5
Débora olhou para mim, como se quisesse entender qual era minha
opinião. Eu não lembrava de quando foi a última vez que vi alguma
tranquilidade em seus olhos. Ela, que só tirava a máscara para comer,
parecia estar adoecendo de medo, como se o medo fosse uma doença
muito pior que as outras.
“Fazer uma fogueira desse tamanho não é uma boa ideia”, disse ela,
olhando para o meu irmão e de novo para mim. “O que você acha, Tay?”
Eu não fazia ideia do que eu achava.
“Só vamos acabar logo com isso”, falei. “Estou exausta. Estamos ar-
rastando essas coisas desde que acordamos. Meu corpo inteiro dói, pa-
rece que levei uma surra.”
“São pessoas, Tay”, disse ela, pasma. “Nossos pais estão aí.”
“É apenas carne podre, Déb, nem pra comer serve.” Olhei para meu
irmão, ignorando os olhos arregalados de Débora, e acrescentei: “A
gente queima eles e pronto, né, Ti? Queima e acabou. Não tem mais
ninguém”.
Tiago respirou fundo. Parecia tão cansado que um mero tapinha
o derrubaria.
“Vamos embora”, disse. “Não vale a pena.”
Quando chegamos em nossa casa momentânea, tirei a máscara e ob-
servei num espelho embaçado as marcas em meu rosto. Eu já havia sido
bonita um dia. Na sala, Débora se deitou no sofá mofado, e ouvi meu
irmão perguntar por que ela não tirava a máscara para dormir.
“Não quero”, foi a resposta dela.
Pouco depois meu irmão surgiu atrás de mim.
“Você está bem mesmo?”
Aquela era uma pergunta impossível. Eu não sabia o que significa-
va estar bem.
“Sim”, respondi. “Estou ótima. Não é comigo que você deve se preo-
cupar, mas com sua namorada.”
Ele ignorou meu último comentário.
“Tinha que ser assim, Tay.”
“Eu sei.”
“Amanhã vamos embora. Recomeçar.”

 6
Eu não respondi. Ele ficou um tempo parado, me encarando atra-
vés do espelho.
“Vou me deitar. Não lembro de já ter me sentido tão cansado. Feliz
natal, maninha.”
Ele saiu massageando o pescoço e sem esperar resposta.

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Esse conto faz parte do universo de Colapso, primeiro romance escrito
em papel pelo autor Roberto Denser, a ser publicado em 2023.

roberto denser é um escritor paraibano radicado no Rio de Janeiro.


Já trabalhou como açougueiro, vendedor ambulante de sandálias mag-
néticas, professor substituto e livreiro. Atualmente é escritor, consultor
literário, professor de escrita criativa e roteirista. Autor dos livros A or-
questra dos corações solitários e Para Elisa, também publicou numerosos
contos em revistas e antologias. Mais informações em robertodenser.com.
PAULO R AVIERE
ANTES QUE DE
MIM RESTEM
SOMENTE AS CINZAS
PAULO R AVIERE

Sou uma pessoa comum, ordinária até, embora possua dotes sobre-
naturais. Dotes esses que me trazem mais dissabores que benefícios.
Detesto a palavra corriqueira para se referir a quem consome sangue
humano, porque ela romantiza a situação. Detesto até mesmo mencio-
ná-la, pois não faço isso por opção, e sim por instinto. Não sou perver-
so. Então prefiro um termo técnico, “hematófago”, que não carrega em
si todas aquelas conotações herdadas do imaginário gótico europeu:
caninos protuberantes, olhos amarelos, rostos pálidos, capas pretas,
espelhos vazios, teias de aranha, cálices, castiçais, correntes, morcegos,
masmorras, hipnose, metamorfoses, gestos refinados, talento artístico,
grandes fortunas, rituais orgíacos­, toda essa presepada. Jamais entrei
num castelo ou dormi num caixão — morro de medo (fora o calor que

 4
deve fazer lá dentro). As únicas coisas verdadeiras em toda a ladainha
que os personagens adoram ventilar nos filmes de terror são a heliofo-
bia, o consumo de sangue, e a idade perpétua. Ah, e um certo horror ao
alho: desde que me tornei um hematófago, o alho me causa uma repul-
sa quase alérgica, o que é um grave problema para quem vive na Bahia.
Meus instintos sobrenaturais me afastam das cozinhas onde proliferam
esse pernicioso tempero (quase todas elas). Antes de minha metamor-
fose eu não tinha nada contra… mas acho que não preciso falar disso.
Muita gente comum também detesta. Podemos focar na heliofobia, no
consumo de sangue, e na idade perpétua.
Dessas três coisas, a que mais me incomoda cotidianamente é a he-
liofobia, porque, convenhamos, Salvador arde. É um vulcão que todas
as manhãs entra em erupção e derrama, escorre, esparrama-se por cima
da cidade. Esses jorros de luz tentam se infiltrar como assaltantes por
qualquer frestinha que aparece em minhas cortinas grossas. Meus dias
são longos; vivo enfurnado. Contudo não desperdiço o dia inteiro dor-
mindo. Em vez disso, vejo filmes de vários gêneros e leio matérias vir-
tuais sobre coisas como as origens das palavras, as grandes batalhas ou
os mistérios do planeta. A maior parte dessas últimas é invencionice ou
bobagem, nada extraordinário, mas uma vez li um comentário anônimo
que descrevia a minha estirpe com uma precisão surpreendente. Tenho
uma rotina cansativa, mas era muito pior quando não existia internet
e eu passava o dia inteiro na frente da televisão. Não é nada fácil viver
sem poder sair durante o dia. Exalo modorra por todos os poros. Quem
ficou de quarentena sabe do que estou falando.
Embora não me incomode tanto quanto a heliofobia, devo apresentar
mais detalhes sobre como lido com a necessidade de sangue humano.
Tenho aversão a qualquer tipo de violência física, ainda que pareça con-
traditório consumir sangue e ser contra a violência, mas vou explicar.
Sigo um código moral estrito. Veja bem, a conduta moral não depende
exatamente da ideologia defendida, pois pregar é muito fácil, mas na
prática cotidiana a conversa muda. Eu poderia até citar um versículo bí-
blico a respeito, mas seria demais para mim, dadas as minhas condições
(refiro-me a minha escolha pelo ateísmo, pois nada sinto ao me deparar

 5
com crucifixos — ou não poderia morar em Salvador), fora que eu teria
que pesquisá-lo, pois não sei de cor. Aquele que fala da trave no próprio
olho — qualquer um pode buscar por conta própria.
Mas, continuando meu raciocínio, o que não falta é moralista reli-
gioso que age como um monstro quando está oculto pelas sombras —
conhecemos muitos, só que as pessoas apenas acreditam nas notícias
quando elas lhes convêm. Hoje em dia nem isso, porque a perversidade
se transformou em mérito pra certas gentes de bem, um mérito detur-
pado do qual essas pessoas se vangloriam abertamente. Caso soubes-
sem que sou hematófago, esperariam de mim males gratuitos, como
se uma coisa levasse à outra. Ou me atacariam com toda sua peçonha
e virulência. Mas não é porque consumo sangue que preciso sair por
aí agredindo pessoas no meio da rua. Até poderia, no sentido de que
tenho a força e a destreza necessárias, mas não poderia, no sentido de
ser capaz, pois, insisto, meu código moral não me permite. A ques-
tão é que conheço gente — gente mesmo, gente normal, ordinária,
natural — que só bebe água quando não encontra sangue para beber.
Gente que respira maldade, que perde o dia, se não comete nenhuma
perversão. Eu poderia muito bem atacar essas pessoas — sabemos que
o mal puro existe por toda parte — e o mundo certamente teria a ga-
nhar, mas, repito, não tenho estômago para executar qualquer ato de
violência. E eu é que não vou me alimentar do sangue de barata des-
sas gentes, não é mesmo?
Sofri violência e não desejo isso a ninguém. Foi numa noite de do-
mingo, há algumas décadas já. Na época eu ainda era devoto a Cristo. Eu
caminhava sozinho pelo Largo dos Aflitos, voltando de uma apresenta-
ção de Sonho de uma Noite de Verão no teatro Vila Velha que se dissipou
completamente de minha memória. Naquela noite específica, o ar estava
fresco, perfumado pelo salitre que a brisa marinha transportava para o
cume da Ladeira dos Aflitos e até as minhas narinas; não era muito tar-
de, e eu estava acostumado a passar por ali à noite, a caminho de casa,
que fica no meio da ladeira, portanto eu não sentia medo. Hoje em dia
meu único medo é o sol, mas sei que as pessoas comuns, ironicamen-
te, evitam o lugar após escurecer. Aquela noite fui atacado pelas costas,

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ou melhor, pelo pescoço. Ele foi dilacerado por um hematófago voraz,
feroz, atroz, muito diferente de mim — uma criatura cinzenta, careca,
corcunda, decrépita, que guinchava muito alto.
Possuído por delírios demoníacos e a sanha de rasgar a pele e afogado
num riacho de sangue borbulhante e com um caldeirão de fel fervendo nas
entranhas e mastigado por uma gárgula empoleirada sobre uma montanha
de espinhos e trespassado por estacas em todos os orifícios e hipnotizado pela
estirpe de nosferatu e atormentado pelo ópio o ódio o furor a febre a fúria.
Acordei em casa no outro dia, encharcado de suor e sangue, mas
completamente recuperado. Ao me levantar, queimei as costas numa
listra de sol que penetrava pelas janelas entreabertas e me açoitou qual
o chicote de um senhor de engenho. Um grosso risco fumegante salpi-
cado de bolhas se desenhou de meu ombro esquerdo até a parte inferior
da omoplata direita. Suplicante, abandonei a devoção a Cristo e nunca
mais olhei para o céu, nem mesmo à noite. Pressentia ameaças do que
vinha de cima. A dor era tanta que fui ao banheiro vomitar. De repente
desmaiei sobre os ladrilhos brancos, como se alguém tivesse acertado
uma paulada em minha cabeça. Àquela altura, eu já padecia da urgên-
cia por sangue humano.
Acho que até aqui essa questão está clara. Mas então vem a pergunta:
como eu faço para consumir sangue humano sem cometer violências?
Bem, trabalho no atendimento de um hospital particular em Nazaré,
não muito longe de minha casa. Uni o útil ao agradável ao assumir o
turno noturno. Em minha ala não é difícil passar despercebido; a não ser
quando se sentem ameaçadas, essas pessoas não prestam muita atenção
em gente de minha cor. Além disso, nessa ala geralmente são internados
idosos com diarreia, catarros, cansaços, falta de ar. Exceto por uma ou
outra visita fora de hora, por uma ou outra fatalidade, no meio da noite
não há muita circulação. Vou de ônibus, depois que o sol se põe, e volto
de táxi, pois não posso me arriscar a confiar nas vicissitudes de nosso
deplorável sistema de transporte público, especialmente nos dias em que
volto para casa com bolsas de sangue escondidas na mochila. Não mui-
tas, pego apenas o bastante para aplacar as minhas necessidades, umas
três ou quatro por semana. Eis o limite de meu código moral: o roubo.

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Tentei compensar essa imoralidade tornando-me vegetariano nas ou-
tras refeições. Não estou isento daquilo que falo sobre a diferença entre
pregar e praticar: prego o vegetarianismo, pois sou contra o sofrimen-
to deliberado de outros seres, entretanto, por necessidade fisiológica,
pratico o canibalismo ao consumir sangue. Obviamente, hematófagos
também se alimentam de outras coisas. Cada um tem os seus gostos.
Para comparação, não é só porque os carnívoros comem carne que eles
comem qualquer tipo de carne. Além disso, um carnívoro come outras
coisas — inclusive vegetais. Então por que haveria eu de me alimentar
apenas de sangue?
Tampouco salivo ao ver uma gota de sangue saindo de um corpo,
como vemos em muitos filmes por aí — muito pelo contrário. Minhas
razões são emocionais. Ao modo de um pândego que desperta após um
festim e encontra sua casa impecavelmente organizada, ao despertar
no banheiro horas depois, percebi que a queimadura nas minhas cos-
tas havia se curado. Na noite daquele mesmo dia, atordoado devido às
condições sobrenaturais recém-adquiridas, confundindo sonho e rea-
lidade, ignorando como tinha chegado em casa na noite anterior, subi
a ladeira e voltei ao Largo dos Aflitos. Torcia para que o ataque, a quei-
madura e a gana por sangue compusessem um mero pesadelo de verão,
quando me deparei com uma horrenda poça de sangue coagulado. Nos
agradam as imagens de sangue lívido e reluzente na pintura gótica, no
cinema gore, nos quadrinhos adultos e nos games de horror, mas na
vida real uma poça de sangue é sempre uma visão terrível. Comecei a
arfar; meu sistema respiratório travou. Tentando desviar os olhos da
cena macabra, encontrei uma camiseta ensanguentada, e meu horror
se intensificou quando me aproximei e percebi que eram os restos da
camisa de botão branca com listras azuis (manchada de escarlate) que
eu vestia na noite anterior. Diante daquele trapo, o sudário de minha
maldição, prometi jamais causar mal semelhante a qualquer indivíduo.
Ao voltar para casa anotei de modo um tanto desleixado o meu delírio
demoníaco, para jamais me esquecer de minha sina infausta. É o tre-
cho em itálico que transcrevi acima. Creio ser por conta dessa visão que
o sangue cru me cause apenas repulsa. Pense assim: um belo prato de

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espaguete cai no chão. A comida que segundos antes era apetitosa, em
um instante desperta asco. Prefiro consumir o sangue em receitas quen-
tes que levam leite ou molho de tomate, e certa feita apliquei algumas
gotas num bloody mary, mas o resultado foi repugnante. Resumindo:
consumo sangue apenas porque sem ele eu definho. Receio que se ficar
em abstinência por muito tempo, passarei a apreciar sangue cru, pele
nua, carne viva; que a privação do vil alimento desperte em mim uma
besta enjaulada que me force a cometer atos dos quais me arrependerei.
Acho que isso encerra a questão do consumo de sangue.
Resta-me, por fim, comentar a idade perpétua, que, se cotidianamen-
te não me molesta, me aflige a longo prazo. Adquiri minha condição há
quarenta anos, quando eu tinha 33 anos, e estou cansado de viver nes-
sa idade. Há uma razão psicológica para não vivermos por mais do que
algumas décadas: não aguentaríamos. A mente entra em parafuso. Os
dias se repetem e se repetem e se repetem e se repetem e se repetem. É
como se no mundo houvesse apenas um filme e você fosse obrigado a
vê-lo todos os dias. Falo por mim. Talvez haja por aí hematófagos que
não abram mão da vida por nada, mas a minha já expirou faz tempo.
Furtaram-me qualquer possibilidade de ser feliz da maneira convencio-
nal, como eu sonhava. Minhas condições sobrenaturais vetaram-me a
doçura discreta das relações afetivas; não posso sequer fazer ou rece-
ber visitas. Há quarenta anos não sei o que é carinho. Não conheço ne-
nhum semelhante, e tenho certeza que se conhecesse não apreciaria a
companhia. A perspectiva da eternidade pesa em meus ombros. A so-
lidão esmaga meus dias. Há tempos me preparo para abandonar esta
vida, carecendo apenas de coragem. Não posso me submeter à fome, à
abstenção de sangue humano, para não sucumbir à loucura. A uma es-
taca no coração não me arrisco, pois não sei se é mais uma lenda ou se
é realmente eficaz, e não estou disposto a me voluntariar à dor extre-
ma para me livrar de uma incerteza. Resta-me, como solução, esse sol
implacável que me acompanhou à distância por 73 anos. Recuso minha
vil condição: esta é minha última noite. Após terminar esta carta, acor-
rentarei o meu corpo ao poste que fica no adro da Igreja dos Aflitos, no
mirante com vista para a Baía de Todos os Santos. Tenho esperanças de

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ver o céu e o mar pela última vez, antes que de mim restem somente as
cinzas. Meu corpo se reduzirá a carbono após a aurora. Ao pó finalmen-
te retornarei, e serei mais um dos “Emigrantes sombrios que se embar-
cam para as plagas sem fim do outro mundo”, como dizem as palavras
de nosso ilustre poeta.
Com tais versos me despeço,

Francisco Hélio

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Esse conto compartilha o calor inclemente e a cidade de Salvador, onde
encontramos personagens que também são fieis a códigos morais es-
tritos, com o romance de Paulo Raviere Todos se Lavam no Sangue do
Sol, lançado em novembro de 2022 e publicado pela DarkSide® Books.

paulo raviere nasceu em Irecê-BA, em 1986. É editor da DarkSide®


Books, pela qual publicou traduções de obras de Robert Louis Stevenson,
Joseph Conrad, Clive Barker, Bret Easton Ellis, Donald Ray Pollock, en-
tre outros, e seu primeiro livro, o romance policial Todos se Lavam no
Sangue do Sol. Saiba mais em raviere.wordpress.com.

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