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Um sistema econômico
(Nota.- Esta sátira ao sistema econômico que existe na maior parte dos países está
baseada na obra “The Shovelcrats”, de Craig Ralston, publicada em 1934 pela
Fundación Schalkenbach de Nova York. A versão em espanhol, base para esta versão
em português, não é uma tradução literal, mas uma adaptação com sabor latino e mais
real das condições em nossa América Latina. A adaptação para o espanhol foi feita e
gentilmente enviada ao Lincoln Institute of Land Policy por German Lema, de Cali --
Colômbia).
Na hora não dei maior importância a sua declaração, e não me ocorreu que podia ter
alguma relação com minha missão de investigar o motivo do atraso nos trabalhos de
escavação.
Devido a todas estas dificuldades, pelo custo da obra e para manter o ritmo de
trabalho, fora decidido contratar pessoal por todo o tempo da construção. Isto parecia
ter suas vantagens.
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Já trabalhavam havia oito anos com uma equipe completa, mas o avanço da obra
não era satisfatório.
Não vem ao caso verificar os motivos que o levaram a executar seu plano, mas, ao
que parece, seu objetivo era desenvolver, enriquecer e civilizar Paloalto.
Como ninguém sabia quando viria o restante das pás, alguns dos trabalhadores
passaram a oferecer até $50 por uma pá. Os compradores avaliavam que com salários
de $300 mensais, em uma semana de trabalho poderiam recuperar o preço da pá, e
seguir trabalhando.
Assim, as pás começaram a trocar de mãos, mas no final das contas sempre ficavam
quatrocentos trabalhadores desempregados. Entretanto, o preço das pás subira de $10
para $50.
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Tomás López mal olhou em sua direção.
- “Sabe de uma coisa?”, disse Martín, “este acampamento pode ficar a cada dia
mais rico, sem que ninguém trabalhe”.
- “Duvido”, respondeu Tomás. “Creio que só se for trabalhando. Estão nos
pagando dez pesos por dia aos mil que estão trabalhando, mas não creio que paguem
para quem não trabalhe”.
- “Não estou falando de trabalhar”, disse Martín, “estou me referindo às pás. Há
cinco dias valiam $10.000 e agora valem $50.000”.
- “Eu não creio que valham um centavo a mais”, disse Tomás. “As pás são as
mesmas. Não dá para cavar mais com elas. Uma pá é uma pá, serve para cavar a
terra, e isso é tudo”.
Tomás falava sem dar-se conta que havia algo importante nisso, e que esta
discussão seria a base para o estabelecimento do sistema econômico que iria reger o
acampamento no futuro.
Mas Martín insistia:
- “Se as pás podem ser vendidas a $50 cada uma, é por que valem $50”. Não
havia quem pudesse convencê-lo do contrário.
Ele estava tão impressionado com a descoberta que sua cabeça dava voltas e mais
voltas, e resolveu sentar-se para pensar.
Tomás, por seu lado, lhe repetia: “Uma pá serve para cavar, homem, deixa de
sonhar”.
Talvez para os outros fosse assim, mas não para Martín García. Alguma coisa o
queimava por dentro: uma ideia!
- “Não estou me sentindo bem”, disse Martín. “Avisa ao chefe que estou meio
adoentado e que fui para casa”.
- “Tudo bem”, disse Tomás.
Martín tinha algum dinheiro vivo e não foi para casa. Em vez disso, conversou com
um colega de trabalho, discutiram a nova idéia e decidiram falar com o encarregado do
armazém da Companhia. O plano estava em marcha.
Dois dias mais tarde chegou o restante das pás, e os desempregados correram com
os $10 na mão para comprar as suas.
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acampamento registrou até hoje. Entendam bem: qual é a riqueza de Paloalto apenas
em pás?”
- “Mil e quatrocentos pás a $10, dá $14.000”, gritou uma voz.
- “Você está muito enganado”, disse Martín sorrindo. “A riqueza de Paloalto é de
$98.000, $70 por pá. Vocês nunca viram uma riqueza que tenha se criado tão
rapidamente. Se eu não tivesse me apressado em comprá-las e a aumentar em $20 o
valor de cada uma, o preço teria caído para $10 a unidade e a comunidade teria perdido
$84.000”.
“Não apenas protegi a riqueza ganha honestamente por cada um de vocês que
comprou uma pá neste acampamento, como a estou aumentando neste momento ao
aumentar o preço delas de $50 para $70. A riqueza daqueles que compraram as mil
primeiras pás aumentou em $60.000. Mais ainda, estou em posição de fazer isto, bem
como de garantir este preço; porque sabemos que tenho apenas cem pás para venda
imediata e que há quatrocentos desempregados. Paloalto está iniciando uma época de
prosperidade e de riqueza jamais vista”.
“Quem me comprar as pás a $70, estará pagando justamente o preço atual, pois
todos sabem que é o mercado que fixa os valores das mercadorias. Este é um fato que
ninguém pode negar. Todos estão protegidos, porque as pás nunca cairão de preço, e
digo isto porque o governo já aprovou uma resolução pela qual fica proibida a entrada
de mais pás ou a sua fabricação aqui. Esta é a melhor garantia de que as pás manterão
seu preço. A rápida intervenção do governo salvou Paloalto do desastre”.
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Por fim resolveram alugar as pás por um quinto dos seus salários. De qualquer jeito,
era melhor receber quatro-quintos do salário que nada, e como os salários eram de
$300 mensais, ficou estabelecido o aluguel de pás a $60 por mês.
Martín foi para casa bem satisfeito. Seu lucro na venda das pás fora formidável e,
ainda por cima, tinha duzentas pás alugadas por um quinto do valor dos salários. Estas
eram as contas que fazia quando adormeceu.
Ao acordar, e sem saber disso, era mais rico do que podia imaginar. Não havia
calculado bem, e outras circunstâncias estavam a seu favor. Os desempregados
haviam acorrido à obra e tratado de comprar as pás daqueles que estavam trabalhando.
Quanto mais interesse demonstravam por elas, mais elas subiam de preço. Alguns
usaram suas economias para seduzirem trabalhadores a vender suas pás. Num
instante as pás atingiram preços incríveis.
O mercado enlouqueceu quando se soube que Martín estava alugando pás a $60 por
mês. Uma vez que os juros comerciais eram de 3%, o aluguel de uma pá equivalia aos
juros que $2.000 renderiam. Em outras palavras, dava no mesmo ter um capital de
$2.000 ou uma pá. Incrível! Isto era uma loucura! De acordo com os analistas
financeiros, a riqueza em pás havia passado de meros $14.000 para $2.800.000!!!
Na mesma noite a multidão se reuniu na praça pública, ansiosa por negócios e por
uma riqueza tão facilmente adquirida. Martín repreendeu-os:
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ou seja, $2.800.000 no total, e quase toda esta riqueza foi alcançada em poucos dias.
Nenhum acampamento conseguiu acumular tanto progresso. É dever de cada cidadão
render homenagem a nossos governantes que, com sua inigualável visão, tornaram isto
possível”.
José Muñoz tinha orgulho de trabalhar com uma pá de $2.000, pagava um quinto de
seu salário a Martín e estava muito grato a ele.
- “Esse homem sim é que sabe para o quê serve a cabeça!”, dizia.
- “Lixo”, gritou-lhe Tomás. “Uma pá vale $10, quer você goste ou não. Para o que é
que serve uma pá? Para cavar. Nós somos pagos para cavar, a riqueza está na represa
que está sendo construída”.
José Muñoz não se deu por convencido.
- “Vale $2.000”, disse, levantando a pá com as duas mãos, “e se não fosse Martín,
valeria apenas $10. Isso sim é que é cabeça!!”
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Aos poucos foi sendo constituída uma classe de pessoas que vivia do aluguel de pás
e outra que vivia dos juros sobre as hipotecas.
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Pensando no negócio de José Vásquez com os víveres, uma nova ideia entrou na
cabeça de Martín García:
“Um imposto sobre as pás é uma injustiça para com os cidadãos que investiram
nelas, é um prejuízo para quem as mantém guardadas esperando situações mais
propícias, e seria impensável que as economias de viúvas e órfãos, representadas em
pás, fossem desnecessariamente reduzidas. Aceitar este imposto é desestimular os
capitalistas que concedem empréstimos para a aquisição de pás àqueles que desejam
trabalhar honradamente”.
“Acredito que há uma forma de evitar o desastre. Minha ideia é fazer que o
fornecedor José Vásquez pague impostos para ter acesso a este mercado. Com essas
receitas o governo poderá fazer frente aos novos gastos e o imposto recairá em um
indivíduo que nem sequer vive entre nós”.
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Certamente o imposto teria mortificado o fornecedor, mas ele nunca soube de nada.
Miguel Uribe vendia ao novo preço, pagava o imposto e continuava mandando o
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mesmo que antes para o seu patrão, o qual nunca tomou conhecimento da “carga” que
caía sobre seus ombros. E todo mundo estava contente.
Todos, menos Tomás López, que sustentava que o imposto era pago por eles
mesmos ao comprar mercadorias mais caras, e propunha que o imposto fosse cobrado
das pás. Assim, dizia ele, sairia da cabeça das pessoas toda essa besteira de aumentar
o valor das pás e em pouco tempo todo o mundo poderia comprar a sua, e com isso
conseguir trabalho.
A transferência do imposto das pás para os víveres provocou duas coisas: primeiro,
as pás ficaram sem imposto, levando a uma alta no mercado. Segundo, com o aumento
do preço da comida, os que estavam economizando para comprar uma pá logo
perceberam que já não tinham o suficiente.
Martín García era um homem feliz: suas contas não podiam estar erradas. Ao
“passar” o imposto para José Vásquez, a riqueza do acampamento havia aumentado
em vários milhares. Os resultados eram muito alentadores.
O dirigente sindical, José Muñoz, começou a desconfiar de algo. Ele percebia que
apesar da riqueza geral aumentar, a comida ficava mais cara para ele e cobravam mais
pelo aluguel da pá, tudo isso significava uma queda no seu salário. Tinha gato
escondido aí!!
Discutiu suas dúvidas com outros e chegaram mesmo a acreditar que Tomás López
estava certo quando dizia que eram eles que estavam pagando o imposto, e não o
fornecedor.
Mas todas estas inquietudes se dissiparam quando Martín lhes explicou que não era
assim, já que ele mesmo havia visto Miguel Uribe tirar de seu próprio bolso o dinheiro
correspondente ao imposto. “E mesmo que não fosse assim”, acrescentou Martín, “não
há por que se queixar, já que o imposto pode ser pago com o aumento do valor das
pás”.
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Vale notar que à medida em que aumentava o valor das pás, o número de
proprietários diminuía, e o número daqueles que tinham que conseguir uma através de
aluguel aumentava.
Entretanto, a vida ficou mais fácil para os proprietários de pás, que podiam
economizar para comprar outras pás. Eles faziam isto quando algum trabalhador ficava
doente e não lhe restava outro recurso senão vender ou hipotecar a sua pá, ou quando
alguém morria e podiam comprá-la da viúva.
Assim, lentamente, todas as pás foram parar nas mãos daqueles que já detinham o
maior número delas.
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Descontando os muito ricos e os muito pobres, sobram apenas cerca de mil homens
disponíveis para trabalhar, mas os agentes das diferentes companhias passam os dias
negociando com eles o valor futuro das pás, etc. Também há os especuladores que
mantém “pás de engorda” com a esperança que subam de preço. Esses indivíduos não
trabalham nem deixam trabalhar, e se alguém lhes chama a atenção, respondem que
estão cumprindo com a importante função econômica de estocar pás até que a
demanda chegue ao ponto em que sua utilização seja a mais produtiva possível.
Também há muitos convencidos de que não vale a pena trabalhar, e passam os dias
perambulando.
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No entanto, ninguém prestava atenção quando ele afirmava que a construção da
represa estava demorando mais com o sistema de Martín, que ele não achava que a
população estivesse mais rica e, pior ainda, que o acampamento estava mais pobre, já
que havia muito mais de cem homens sem nenhum trabalho e que, portanto, não
recebiam salários. “Se estes homens tivessem trabalhado nos últimos oito anos teriam
recebido milhões e a represa estaria a ponto de ser concluída”.
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De modo geral a vida em Paloalto poderia ter sido diferente, mas as teorias de Martín
mudaram tudo.
Martín utilizava tudo isto para argumentar em favor da manutenção do valor das pás.
Uma queda no preço seria a ruína de todas as instituições financeiras e, com isto, a
ruína daqueles que tinham depósitos e a bancarrota geral da população.
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Após três ou quatro anos, as classes sociais já estavam demarcadas. Não eram
poucas as pessoas que possuíam 10 pás e recebiam $750 por mês. Outros,
desfrutavam de ganhos muito superiores. Artigos de luxo inundaram a cidade e então
foi possível mensurar a posição social das pessoas.
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A vida social em Paloalto seguiu o mesmo caminho que em outras comunidades de
mesmo tipo.
Após oito anos, as crianças que haviam chegado à maturidade durante o sistema
implantado por Martín só falavam de negócios com pás. As pessoas mais velhas
comentavam com eles as variações nos preços e os proprietários de pás dedicavam
seu tempo, que tinham de sobra, a ensinar a seus filhos a manipulação do mercado.
“Os de cima” não tinham problemas. Matar o tempo e divertir-se eram suas
preocupações. Alguns compravam cavalos e faziam que corressem para ver qual
chegava primeiro; outros se embebedavam e ficavam na cama; outros competiam entre
si na aquisição de mais pás, e outros prestavam seus serviços gratuitamente em
comitês encarregados de resolver os problemas da comunidade.
Martín via todas estas tendências decadentes, mas concluía que há gente que não
merece a prosperidade que a riqueza traz; e conseguiu que o governo aumentasse os
impostos das bebidas alcoólicas e das diversões populares. Mas nada disto modificou a
conduta do povo.
Tomás continuava predicando que as reformas sociais não tinham futuro: “só quando
houver pás e trabalho para todos as coisas melhorarão”, dizia.
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O centro da atividade intelectual em Paloalto era constituído pela Universidade,
instituição comparável às melhores do país.
O padre Sánchez, da cátedra de Filosofia, por sua vez, pensava na luta pela
existência e concluía que tudo é passageiro neste mundo, e que o destino haveria de
trazer “a idade do ouro” de que falavam os antigos. Suas obras completas estão na
biblioteca para que sirvam de referência às gerações futuras.
Por fim, o Dr. Zuloaga, que acabara de chegar da América do Norte, ria-se de todos
e situava a culpa no excesso de população. “Não teríamos este problema”, dizia ele, “se
estes cem homens e suas famílias não tivessem nascido”.
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e pressionado pelo departamento de Planejamento, foi aprovado o projeto de um
visitante estrangeiro que estava de passagem.
Seu projeto, com certeza muito simples, consistia em dar a cada trabalhador um
subsídio para a aquisição de sua pá. Uma pá por trabalhador.
Inexplicavelmente, ao ser aprovada esta medida, o preço das pás subiu, e para
compensar este acréscimo pensou-se em aumentar também o subsídio. Mas o visitante
foi chamado por seu próprio governo e não conseguiu pôr em andamento o projeto
definitivo.
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Fazendo uso dos tributos “indiretos”, as pás ficaram isentas e o imposto recaiu sobre
consumidores, trabalhadores, profissionais, comerciantes, provocando um aumento de
todos os preços, o que na realidade nada mais era senão uma queda dos salários.
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José Muñoz via todo mundo fazendo negócios em volta dele: supermercados,
bancos, armazéns, depósitos de mercadorias de todo tipo, etc. e acabou culpando o
capitalismo.
- “Esse é o motivo. Os capitalistas são os donos dos bancos, dos comércios, dos
armazéns. Qualquer um poder ver isso, até mesmo de olhos fechados. Temos que
abolir o sistema capitalista, reestruturar a ordem social, coordenar nossas vidas e
acabar com esses salários de miséria”.
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Era mais ou menos assim que se desenrolava a vida em Paloalto quando cheguei.
Martín continuava à frente de seu sistema e não tinha problemas trabalhistas visto
que não empregava ninguém. Cada vez que o governo aprovava novos projetos, o
custo de vida subia, mas os trabalhadores punham a culpa nos capitalistas que os
empregavam.
Mas estes capitalistas sabiam das causas do problema tanto quanto os próprios
operários, e por isso as batalhas entre o capital e o trabalho eram travadas “às cegas”.
Fiquei tão interessado em Martín que passei um dia inteiro anotando suas atividades:
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10h Martín declara a um grupo de jornalistas que lamenta o estado moral da
comunidade e o pouco respeito às autoridades.
11h Martín recebe várias delegações ao mesmo tempo, umas a favor e outras
contra realizar a mesma coisa. Aconselha a todos e todos recebem sua contribuição.
12h Durante o almoço aproveita para assinar cheques em favor de várias
obras de caridade.
13h É entrevistado por repórteres da “Última Hora”. É fotografado em diversas
poses e, tendo por tema “Como obter sucesso”, discute problemas da atualidade.
14h Discurso na Universidade: “Jamais a juventude teve tal oportunidade. A
riqueza de Paloalto é a garantia de um futuro melhor. Felizmente temos pás suficientes,
que são a base essencial do progresso e do desenvolvimento da pátria”.
15h Discute com o contador e decide abrir outra sucursal para a compra,
venda e aluguel de pás.
16h Recebe a visita de seu médico particular, que está preocupado com o
excesso de trabalho de Martín.
17h Recebe várias delegações e promete contribuir para todas elas.
18h Discurso na Assembleia Geral da Câmara de Comércio. Defende o novo
sistema fiscal e agradece aos professores Jaramillo e Vallejo por sua colaboração, mas
enfatiza que somente a vigilância permanente do sistema garantirá a prosperidade
geral.
23h Depois de jantar com os delegados, tem um desentendimento com Tomás
López, o qual continua insistindo que as pás valem $10.
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