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PALOALTO

Um sistema econômico
(Nota.- Esta sátira ao sistema econômico que existe na maior parte dos países está
baseada na obra “The Shovelcrats”, de Craig Ralston, publicada em 1934 pela
Fundación Schalkenbach de Nova York. A versão em espanhol, base para esta versão
em português, não é uma tradução literal, mas uma adaptação com sabor latino e mais
real das condições em nossa América Latina. A adaptação para o espanhol foi feita e
gentilmente enviada ao Lincoln Institute of Land Policy por German Lema, de Cali --
Colômbia).

Encontrei-o sentado sobre um rochedo, de onde se avistavam os trabalhos de


escavação da represa.
- “A pá foi feita para cavar a terra, não é mesmo?”, me disse ele.
- “Claro, meu amigo", lhe respondi.
- “Então você concorda com isso?”
- “Evidente”. Eu não via o que mais poderia responder.
- “Faz pouco que você chegou a estas terras?”
- “Sim”, respondi.
- “Ah, então é por isso. Eu continuo afirmando que uma pá serve para cavar a terra
e que quem quiser cavar deve poder ter uma pá".

Na hora não dei maior importância a sua declaração, e não me ocorreu que podia ter
alguma relação com minha missão de investigar o motivo do atraso nos trabalhos de
escavação.

O povoado de Paloalto ficava na parte alta do vale de mesmo nome, que


posteriormente seria irrigado. O vale, um quase deserto habitado por algumas ovelhas,
media 80km de comprimento por 30km de largura. Da estação de trens mais próxima foi
construído um trecho de caminho para trazer pessoal e provisões para o acampamento.
Era praticamente a única via de acesso.

Devido a todas estas dificuldades, pelo custo da obra e para manter o ritmo de
trabalho, fora decidido contratar pessoal por todo o tempo da construção. Isto parecia
ter suas vantagens.

Fora estimado que 1.400 trabalhadores completariam a represa do rio Negro em


quinze anos e que, depois, o desvio do rio podia ser realizado com a metade desse
pessoal ao longo de três anos.

Os habitantes de Paloalto chegaram a somar seis mil almas, incluindo trabalhadores,


suas famílias e os comerciantes que se estabeleceram no acampamento. Era, por
assim dizer, uma metrópole no deserto.

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Já trabalhavam havia oito anos com uma equipe completa, mas o avanço da obra
não era satisfatório.

Pensando nisto, e para abreviar a conversa, lhe disse:


- “E tem alguém que discuta isso?"
- “Discutir? Isso é o que fazemos o tempo todo. Sempre discutindo a mesma
coisa”.
- “E quem é que discute?”
- “Todo mundo”, respondeu o homenzinho sentado na pedra. “Foi Martín que
começou essa história e nunca conseguimos chegar a um acordo. Se não fosse por
isso, a obra já estaria muito mais adiantada”.
- “Foi por este motivo que vim”, lhe disse. “Tenho que verificar o que está
acontecendo”.
- “Então você é a pessoa que eu queria encontrar”, disse ele todo satisfeito. “Sou
Tomás López, o maior defensor da teoria de que as pás servem apenas para cavar a
terra”.

O defensor de tal ideia levantou-se e começou a contar incidentes do acampamento


que me pareciam fantásticos, mas que incluí em meu relatório à Companhia.

Um engenhoso operário de escavação de valas, Martín García, era o fundador do


sistema econômico de Paloalto.

Não vem ao caso verificar os motivos que o levaram a executar seu plano, mas, ao
que parece, seu objetivo era desenvolver, enriquecer e civilizar Paloalto.

Quando chegou o primeiro carregamento de mil pás, a Companhia deu instruções


para que fossem vendidas a preço de custo, $10 cada uma. Mas como eram 1.400
trabalhadores, quatrocentos não conseguiram adquirir as suas pás, e ficaram sem
trabalho.

Como ninguém sabia quando viria o restante das pás, alguns dos trabalhadores
passaram a oferecer até $50 por uma pá. Os compradores avaliavam que com salários
de $300 mensais, em uma semana de trabalho poderiam recuperar o preço da pá, e
seguir trabalhando.

Assim, as pás começaram a trocar de mãos, mas no final das contas sempre ficavam
quatrocentos trabalhadores desempregados. Entretanto, o preço das pás subira de $10
para $50.

Martín não parava de pensar.


- “Oxalá eu tivesse comprado cem pás no dia em que chegaram”, dizia a um
colega. “Teria ganhado $4.000 em cinco dias”.

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Tomás López mal olhou em sua direção.

- “Sabe de uma coisa?”, disse Martín, “este acampamento pode ficar a cada dia
mais rico, sem que ninguém trabalhe”.
- “Duvido”, respondeu Tomás. “Creio que só se for trabalhando. Estão nos
pagando dez pesos por dia aos mil que estão trabalhando, mas não creio que paguem
para quem não trabalhe”.
- “Não estou falando de trabalhar”, disse Martín, “estou me referindo às pás. Há
cinco dias valiam $10.000 e agora valem $50.000”.
- “Eu não creio que valham um centavo a mais”, disse Tomás. “As pás são as
mesmas. Não dá para cavar mais com elas. Uma pá é uma pá, serve para cavar a
terra, e isso é tudo”.

Tomás falava sem dar-se conta que havia algo importante nisso, e que esta
discussão seria a base para o estabelecimento do sistema econômico que iria reger o
acampamento no futuro.
Mas Martín insistia:
- “Se as pás podem ser vendidas a $50 cada uma, é por que valem $50”. Não
havia quem pudesse convencê-lo do contrário.
Ele estava tão impressionado com a descoberta que sua cabeça dava voltas e mais
voltas, e resolveu sentar-se para pensar.
Tomás, por seu lado, lhe repetia: “Uma pá serve para cavar, homem, deixa de
sonhar”.
Talvez para os outros fosse assim, mas não para Martín García. Alguma coisa o
queimava por dentro: uma ideia!
- “Não estou me sentindo bem”, disse Martín. “Avisa ao chefe que estou meio
adoentado e que fui para casa”.
- “Tudo bem”, disse Tomás.

Martín tinha algum dinheiro vivo e não foi para casa. Em vez disso, conversou com
um colega de trabalho, discutiram a nova idéia e decidiram falar com o encarregado do
armazém da Companhia. O plano estava em marcha.

Dois dias mais tarde chegou o restante das pás, e os desempregados correram com
os $10 na mão para comprar as suas.

- “Sinto muito, senhores”, disse o encarregado. “Entendam-se com Martín García,


pois ele já comprou todas”.
- “Que diabos Martín vai fazer com quatrocentas pás?”
- “Prezados amigos”, disse Martín, “eu sou o dono das pás que, como vocês
sabem, valem $50. Eu não vou vendê-las por este preço, mas sim a $70 cada uma aos
primeiros cem interessados”.
- “Que história é essa que esse homem está falando? Vamos, homem, nos venda
logo as pás”, exclamavam os desempregados.
- “Não se alarmem nem se preocupem, senhores. Isto não é um golpe contra
vocês, e sim uma benção. Paloalto vai entrar a partir de agora numa época de
prosperidade sem igual, no maior período de expansão de negócios que nenhum

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acampamento registrou até hoje. Entendam bem: qual é a riqueza de Paloalto apenas
em pás?”
- “Mil e quatrocentos pás a $10, dá $14.000”, gritou uma voz.
- “Você está muito enganado”, disse Martín sorrindo. “A riqueza de Paloalto é de
$98.000, $70 por pá. Vocês nunca viram uma riqueza que tenha se criado tão
rapidamente. Se eu não tivesse me apressado em comprá-las e a aumentar em $20 o
valor de cada uma, o preço teria caído para $10 a unidade e a comunidade teria perdido
$84.000”.

“Não apenas protegi a riqueza ganha honestamente por cada um de vocês que
comprou uma pá neste acampamento, como a estou aumentando neste momento ao
aumentar o preço delas de $50 para $70. A riqueza daqueles que compraram as mil
primeiras pás aumentou em $60.000. Mais ainda, estou em posição de fazer isto, bem
como de garantir este preço; porque sabemos que tenho apenas cem pás para venda
imediata e que há quatrocentos desempregados. Paloalto está iniciando uma época de
prosperidade e de riqueza jamais vista”.

“Quem me comprar as pás a $70, estará pagando justamente o preço atual, pois
todos sabem que é o mercado que fixa os valores das mercadorias. Este é um fato que
ninguém pode negar. Todos estão protegidos, porque as pás nunca cairão de preço, e
digo isto porque o governo já aprovou uma resolução pela qual fica proibida a entrada
de mais pás ou a sua fabricação aqui. Esta é a melhor garantia de que as pás manterão
seu preço. A rápida intervenção do governo salvou Paloalto do desastre”.

Martín interrompeu seu discurso improvisado. Em seguida levantou novamente a


voz:
“Agora começaremos a venda das cem pás a $70 cada uma”.
Quando vendeu a última dessas pás, trezentos desempregados descontentes
resmungavam. Martín se voltou para eles e disse:
- “Até logo, senhores, nos vemos por aí”.

Os que compraram as cem pás logo espalharam a notícia da era da prosperidade de


que falara Martín. Em todos os lugares a ideia era bem-vinda. As pás de Paloalto não
podiam ser reproduzidas, seu valor não dependia do custo de fabricação e o governo
não deixava que importassem mais.

Em poucas horas Martín tornou-se o homem mais popular do povoado: trezentos


homens andavam atrás dele.
- “Não senhor”, disse a um deles, “por enquanto não vendo mais. Mas podemos
fazer um contrato: cedo duzentas pás em troca da quinta parte dos salários”.
- “Como assim?”, replicaram alguns, “nós temos direito a todo o salário, igual a
você”.
- “Mas as pás são minhas”, retrucou Martín.

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Por fim resolveram alugar as pás por um quinto dos seus salários. De qualquer jeito,
era melhor receber quatro-quintos do salário que nada, e como os salários eram de
$300 mensais, ficou estabelecido o aluguel de pás a $60 por mês.

Mas ainda sobravam cem homens desempregados.


- “Como é que vai ser para nós?”
- “Hoje não faço mais negócios”, respondeu-lhes Martín. “Vou para casa
descansar”.
- “E que é que nós vamos fazer?”
- “Este é o mundo atual”, replicou Martín, “cada um que se vire”.
- “Como vamos conseguir uma pá?”
- “Isso é problema de cada um, cada qual que resolva seu problema”.
- “Eu sei de uma solução”, gritou um deles, “o governo que deixe entrar mais pás
no acampamento.”
- “Mais pás?, disse Martín. “Isso é o que você pensa. Estamos em uma democracia
onde quem manda é a maioria, e a maioria elegeu o governo atual e está satisfeita
porque aumentei o valor de suas pás de $10 para $70. Você acha que eles vão aceitar
que o valor das pás seja reduzido?”
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Martín foi para casa bem satisfeito. Seu lucro na venda das pás fora formidável e,
ainda por cima, tinha duzentas pás alugadas por um quinto do valor dos salários. Estas
eram as contas que fazia quando adormeceu.

Ao acordar, e sem saber disso, era mais rico do que podia imaginar. Não havia
calculado bem, e outras circunstâncias estavam a seu favor. Os desempregados
haviam acorrido à obra e tratado de comprar as pás daqueles que estavam trabalhando.
Quanto mais interesse demonstravam por elas, mais elas subiam de preço. Alguns
usaram suas economias para seduzirem trabalhadores a vender suas pás. Num
instante as pás atingiram preços incríveis.

Os homens deixaram de trabalhar e, em meio a alaridos de ofertas e contraofertas,


não paravam de pensar no enriquecimento com as pás. Alguns, com mais visão
financeira, guardaram-nas esperando melhores preços. Dessa forma, muitas pás foram
retiradas do mercado, e com a escassez produzida, seu preço subiu.

O mercado enlouqueceu quando se soube que Martín estava alugando pás a $60 por
mês. Uma vez que os juros comerciais eram de 3%, o aluguel de uma pá equivalia aos
juros que $2.000 renderiam. Em outras palavras, dava no mesmo ter um capital de
$2.000 ou uma pá. Incrível! Isto era uma loucura! De acordo com os analistas
financeiros, a riqueza em pás havia passado de meros $14.000 para $2.800.000!!!

Na mesma noite a multidão se reuniu na praça pública, ansiosa por negócios e por
uma riqueza tão facilmente adquirida. Martín repreendeu-os:

-“Concidadãos”, disse em voz alta, “Paloalto está a ponto de chegar ao auge da


civilização moderna. Há em nossa sociedade 1.400 pás que valem $2.000 cada uma,

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ou seja, $2.800.000 no total, e quase toda esta riqueza foi alcançada em poucos dias.
Nenhum acampamento conseguiu acumular tanto progresso. É dever de cada cidadão
render homenagem a nossos governantes que, com sua inigualável visão, tornaram isto
possível”.

Ao lado de Tomás López, trabalhava na obra José Muñoz, representante dos


trabalhadores e sempre pronto a acompanhar qualquer movimento de avanço social.
José não perdia reunião do sindicato, nem discurso em praça pública. Para ele, quem
se opusesse às novas ideias econômicas não passava de um reacionário indigno de
vestir o uniforme de trabalhador.

José Muñoz tinha orgulho de trabalhar com uma pá de $2.000, pagava um quinto de
seu salário a Martín e estava muito grato a ele.

- “Esse homem sim é que sabe para o quê serve a cabeça!”, dizia.
- “Lixo”, gritou-lhe Tomás. “Uma pá vale $10, quer você goste ou não. Para o que é
que serve uma pá? Para cavar. Nós somos pagos para cavar, a riqueza está na represa
que está sendo construída”.
José Muñoz não se deu por convencido.
- “Vale $2.000”, disse, levantando a pá com as duas mãos, “e se não fosse Martín,
valeria apenas $10. Isso sim é que é cabeça!!”

O sistema estava em marcha. Todos estavam felizes pois haviam encontrado a


forma de enriquecer facilmente.

Martín mantinha-se atento a qualquer reação popular. Os cem desempregados


estavam ressentidos, mas a satisfação geral pela riqueza criada fechava os ouvidos
para suas queixas.

A maioria estava contente consigo mesmo, mas impaciente com os desempregados.


Apesar de ninguém dizer, os habitantes de Paloalto sabiam que se todos pudessem
comprar pás, seu preço cairia verticalmente. Ninguém dava importância àqueles que se
queixavam: a culpa era deles mesmos por não terem comprado as pás quando
chegaram ou quando Martín lhes ofereceu à vista ou por aluguel!

Não encontrando outra solução, os desempregados passaram a fazer o impossível.


Alguns conseguiram convencer os proprietários de pás oferecendo-lhes dinheiro e
outros, por fim, conseguiram tornar-se inquilinos. Na era da especulação que veio após
o aumento de preços, alguns terminaram donos de várias pás e procuraram clientes
para fazer contratos de arrendamento ou de venda com hipoteca. Uma pessoa que
conseguisse tornar-se dona de cinco pás não precisava mais trabalhar: recebia o
aluguel por elas e vivia disso.

Apesar de pás serem compradas e vendidas, a situação continuava a mesma, pois a


cada trabalhador que adquiria uma pá, outro deixava de trabalhar.

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Aos poucos foi sendo constituída uma classe de pessoas que vivia do aluguel de pás
e outra que vivia dos juros sobre as hipotecas.

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Entre as funções do governo, como em todos os países civilizados, estava a


administração pública, e, para atender aos gastos públicos, se cobravam impostos.
Tendo em vista o aumento do valor das pás, foi decidido cobrar impostos sobre elas de
acordo com sua avaliação atualizada, muito acima de seu custo original.

Martín García, percebendo o perigo que ameaçava seus investimentos, buscava


outra solução, pois, de acordo com ele, o imposto sobre as pás diminuiria seu valor,
ameaçando assim a prosperidade da comunidade.

Dentre os alimentos essenciais ao acampamento estavam os víveres, milho, arroz,


feijão, biscoito, etc., fornecidos por um comerciante chamado José Vásquez, que supria
diariamente as necessidades do acampamento.

Pensando no negócio de José Vásquez com os víveres, uma nova ideia entrou na
cabeça de Martín García:

“Senhoras e senhores: sentimentos patrióticos me levam a fazê-los compreender que


apesar da necessidade dos impostos para manter os serviços prestados à comunidade,
sua imposição sobre as pás é inaceitável, já que elas são a pedra angular de nossa
riqueza”.

“Um imposto sobre as pás é uma injustiça para com os cidadãos que investiram
nelas, é um prejuízo para quem as mantém guardadas esperando situações mais
propícias, e seria impensável que as economias de viúvas e órfãos, representadas em
pás, fossem desnecessariamente reduzidas. Aceitar este imposto é desestimular os
capitalistas que concedem empréstimos para a aquisição de pás àqueles que desejam
trabalhar honradamente”.

“Acredito que há uma forma de evitar o desastre. Minha ideia é fazer que o
fornecedor José Vásquez pague impostos para ter acesso a este mercado. Com essas
receitas o governo poderá fazer frente aos novos gastos e o imposto recairá em um
indivíduo que nem sequer vive entre nós”.

A proposta foi aprovada por unanimidade. O imposto necessário recairia no


fornecedor. Não foram poucos os que se apressaram a apertar a mão de Martín para
felicitá-lo.

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Miguel Uribe, que era o encarregado de pesar, empacotar, despachar e faturar os


víveres, quando soube do imposto, o somou ao preço das provisões.

Certamente o imposto teria mortificado o fornecedor, mas ele nunca soube de nada.
Miguel Uribe vendia ao novo preço, pagava o imposto e continuava mandando o

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mesmo que antes para o seu patrão, o qual nunca tomou conhecimento da “carga” que
caía sobre seus ombros. E todo mundo estava contente.

Todos, menos Tomás López, que sustentava que o imposto era pago por eles
mesmos ao comprar mercadorias mais caras, e propunha que o imposto fosse cobrado
das pás. Assim, dizia ele, sairia da cabeça das pessoas toda essa besteira de aumentar
o valor das pás e em pouco tempo todo o mundo poderia comprar a sua, e com isso
conseguir trabalho.

A transferência do imposto das pás para os víveres provocou duas coisas: primeiro,
as pás ficaram sem imposto, levando a uma alta no mercado. Segundo, com o aumento
do preço da comida, os que estavam economizando para comprar uma pá logo
perceberam que já não tinham o suficiente.

Era impossível comprar pás a preço de mercado, e as pessoas começaram a se


endividar mais do que podiam: as hipotecas eram a cada dia mais altas. Com os novos
preços, os arrendatários de pás viram-se obrigados a pagar até um quarto de seus
salários para utilizar uma delas.

Martín García era um homem feliz: suas contas não podiam estar erradas. Ao
“passar” o imposto para José Vásquez, a riqueza do acampamento havia aumentado
em vários milhares. Os resultados eram muito alentadores.

O dirigente sindical, José Muñoz, começou a desconfiar de algo. Ele percebia que
apesar da riqueza geral aumentar, a comida ficava mais cara para ele e cobravam mais
pelo aluguel da pá, tudo isso significava uma queda no seu salário. Tinha gato
escondido aí!!

Discutiu suas dúvidas com outros e chegaram mesmo a acreditar que Tomás López
estava certo quando dizia que eram eles que estavam pagando o imposto, e não o
fornecedor.

Mas todas estas inquietudes se dissiparam quando Martín lhes explicou que não era
assim, já que ele mesmo havia visto Miguel Uribe tirar de seu próprio bolso o dinheiro
correspondente ao imposto. “E mesmo que não fosse assim”, acrescentou Martín, “não
há por que se queixar, já que o imposto pode ser pago com o aumento do valor das
pás”.

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No final do ano as pás ocupavam um lugar primordial no inventário dos negócios e


seu valor era tão aceito que praticamente todas as transações comerciais tinham as
pás como base.

Era possível hipotecar uma pá a curto prazo. Os proprietários podiam conseguir


empréstimos respaldados em pás para construir mansões luxuosas.

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Vale notar que à medida em que aumentava o valor das pás, o número de
proprietários diminuía, e o número daqueles que tinham que conseguir uma através de
aluguel aumentava.

Entretanto, a vida ficou mais fácil para os proprietários de pás, que podiam
economizar para comprar outras pás. Eles faziam isto quando algum trabalhador ficava
doente e não lhe restava outro recurso senão vender ou hipotecar a sua pá, ou quando
alguém morria e podiam comprá-la da viúva.

Assim, lentamente, todas as pás foram parar nas mãos daqueles que já detinham o
maior número delas.

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Agora chegou a hora de explicar por que os trabalhos de construção da represa


permanecem tão atrasados.

Em toda a população, há cerca de cem cidadãos que são proprietários da maior


parte das pás, e que não fazem absolutamente nada. Sua única ocupação é fazer as
contas de suas rendas, recolher aluguéis e inventar passatempos para se distraírem.
Outros cem habitantes estão na mais absoluta pobreza. Tendo se convencido de que
nada conseguiriam se lamentando, dedicaram-se a todo tipo de atividades, muitas
ilícitas. Calculo que outros duzentos abandonaram o trabalho na represa e agora
prestam serviço na casa dos ricos; ou constituíram empresas, como nas cidades
grandes, que se dedicam a receber aluguéis de pás, a sua compra e venda, etc.

Descontando os muito ricos e os muito pobres, sobram apenas cerca de mil homens
disponíveis para trabalhar, mas os agentes das diferentes companhias passam os dias
negociando com eles o valor futuro das pás, etc. Também há os especuladores que
mantém “pás de engorda” com a esperança que subam de preço. Esses indivíduos não
trabalham nem deixam trabalhar, e se alguém lhes chama a atenção, respondem que
estão cumprindo com a importante função econômica de estocar pás até que a
demanda chegue ao ponto em que sua utilização seja a mais produtiva possível.

Também há muitos convencidos de que não vale a pena trabalhar, e passam os dias
perambulando.

Avalio, então, que os mil trabalhadores nestas condições executam o trabalho de


apenas oitocentos, mas é graças a eles que a obra continua. Se não fosse por estes
trabalhadores, todo o sistema viria abaixo, pois são os únicos que recebem pagamento
da Companhia, e os ganhos dos demais têm que sair de seus salários em outras
atividades.

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As teorias de Martín nunca convenceram Tomás López, cujas dúvidas aumentavam


ao ver o luxo por um lado e a pobreza por outro. Pás a $2.000? Ridículo. Valem
somente $10”.

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No entanto, ninguém prestava atenção quando ele afirmava que a construção da
represa estava demorando mais com o sistema de Martín, que ele não achava que a
população estivesse mais rica e, pior ainda, que o acampamento estava mais pobre, já
que havia muito mais de cem homens sem nenhum trabalho e que, portanto, não
recebiam salários. “Se estes homens tivessem trabalhado nos últimos oito anos teriam
recebido milhões e a represa estaria a ponto de ser concluída”.

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De modo geral a vida em Paloalto poderia ter sido diferente, mas as teorias de Martín
mudaram tudo.

Antes de dois anos os negócios comerciais e financeiros adquiriram uma


complexidade indescritível. Uma vez aceitas as teorias de Martín, os bancos
reconheciam as pás como base para qualquer espécie de créditos, e preferiam a
garantia de uma pá à capacidade de trabalho daqueles que solicitavam o empréstimo.
Em geral, o sistema de crédito era respaldado em pás.

Martín utilizava tudo isto para argumentar em favor da manutenção do valor das pás.
Uma queda no preço seria a ruína de todas as instituições financeiras e, com isto, a
ruína daqueles que tinham depósitos e a bancarrota geral da população.

Tomás López se ria de todas estas operações financeiras baseadas no preço


inflacionado das pás. Ele não acreditava que as pás pudessem valer $2.000. Via
homens comprando pás, trocando-as por outras, alugando-as, e não deixava de dizer:
“algum dia vão se arrepender”.

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Após três ou quatro anos, as classes sociais já estavam demarcadas. Não eram
poucas as pessoas que possuíam 10 pás e recebiam $750 por mês. Outros,
desfrutavam de ganhos muito superiores. Artigos de luxo inundaram a cidade e então
foi possível mensurar a posição social das pessoas.

Dos $300 mensalmente pagos no acampamento como salários, um pouco mais da


metade ficava nas mãos dos que trabalhavam. O restante era repartido entre
cobradores de aluguéis, donos de pás, investidores, banqueiros: umas cem pessoas no
total. Estas cem pessoas e suas famílias constituíam o que chegou a ser chamado de
“os de cima”, “as dez famílias”.

Esta divisão de receitas deixava de fora os desempregados.

O acúmulo de riqueza, na forma como aconteceu em Paloalto, se deve ao monopólio


amparado pela lei, que priva o trabalhador dos meios de adquirir trabalho. O monopólio
dos recursos naturais, quer seja por parte do governo ou de particulares, traz as
mesmas consequências.

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A vida social em Paloalto seguiu o mesmo caminho que em outras comunidades de
mesmo tipo.

Após oito anos, as crianças que haviam chegado à maturidade durante o sistema
implantado por Martín só falavam de negócios com pás. As pessoas mais velhas
comentavam com eles as variações nos preços e os proprietários de pás dedicavam
seu tempo, que tinham de sobra, a ensinar a seus filhos a manipulação do mercado.

Os financistas oficiais recomendavam aos jovens, algumas vezes, casarem-se


rápido; outras vezes, a não se casarem enquanto não tivessem conseguido sua pá; a
ter muitos filhos; a ter apenas quatro filhos; a casarem-se com uma moça cujo pai
tivesse ao menos duas pás; a beber para esquecer as preocupações; a não beber; a
depositar seu dinheiro nos bancos para financiar as indústrias; a gastar o dinheiro para
impulsionar os negócios, etc. etc., e praticamente com cada mudança de governantes,
mudavam as recomendações.

“Os de cima” não tinham problemas. Matar o tempo e divertir-se eram suas
preocupações. Alguns compravam cavalos e faziam que corressem para ver qual
chegava primeiro; outros se embebedavam e ficavam na cama; outros competiam entre
si na aquisição de mais pás, e outros prestavam seus serviços gratuitamente em
comitês encarregados de resolver os problemas da comunidade.

As mulheres jogavam cartas e se entretinham com revistas e desfiles de modas,


concursos de beleza, etc.

As prisões se encheram, os mendigos percorriam a cidade de baixo para cima, e


muitos trataram de afogar suas mágoas no álcool ou na droga.

Martín via todas estas tendências decadentes, mas concluía que há gente que não
merece a prosperidade que a riqueza traz; e conseguiu que o governo aumentasse os
impostos das bebidas alcoólicas e das diversões populares. Mas nada disto modificou a
conduta do povo.

Tomás continuava predicando que as reformas sociais não tinham futuro: “só quando
houver pás e trabalho para todos as coisas melhorarão”, dizia.

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A classe dirigente em Paloalto havia recebido educação adequada e já havia um


núcleo de profissionais, mestres, professores, jornalistas, pensadores, mas ninguém se
preocupava em analisar a fundo o sistema de Martín.

Esta situação mantinha as ideias confusas: economistas, filósofos, moralistas,


financistas e mesmo os teólogos não sabiam se deviam falar das leis da oferta e da
demanda, da liberdade individual ou da fraternidade entre os homens. Nada do que
diziam se encaixava em Paloalto.

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O centro da atividade intelectual em Paloalto era constituído pela Universidade,
instituição comparável às melhores do país.

Os professores Jaramillo e Vallejo eram responsáveis pela cátedra de Economia.


Graduados nos Estados Unidos e na Europa, haviam feito pesquisas e, de acordo com
a opinião popular, quando falavam o faziam com autoridade.

O sistema de Paloalto, diziam os professores Jaramillo e Vallejo, é tão sólido como


uma rocha. Eles haviam visto com seus próprios olhos que o preço das pás chegava a
$2.000, e o que não haviam visto tinha sido tomado de um estudo econômico elaborado
por um técnico internacional, que dizia: “A riqueza de Paloalto e sua prosperidade
ultrapassam as de qualquer outro acampamento. O valor de uma pá é com certeza
superior ao capital que um trabalhador possui; por isso, o capitalista presta seus
serviços equipando os trabalhadores, pois se assim não fosse, os trabalhadores não
poderiam adquirir por si mesmos as ferramentas, e a represa não seria construída.
Portanto, se há desempregados neste acampamento é por falta de capital suficiente
para a aquisição de pás. A solução é, obviamente, a obtenção de um empréstimo
externo ou a redução de pessoal”.

Quanto à existência de pobreza dentro de tanta riqueza, o professor Gaviria, do


departamento de Sociologia, suspirava e dizia que era evidente que havia excesso de
população em relação ao número de pás que podiam ser postas em uso com o capital
existente.

O padre Sánchez, da cátedra de Filosofia, por sua vez, pensava na luta pela
existência e concluía que tudo é passageiro neste mundo, e que o destino haveria de
trazer “a idade do ouro” de que falavam os antigos. Suas obras completas estão na
biblioteca para que sirvam de referência às gerações futuras.

O professor Barrientos, doutor em Ética, condenava qualquer projeto no qual se


ganhasse alguma coisa sem fazer nada, mas não fazia comentários em relação à
situação de Paloalto.

O diretor espiritual, monsenhor Monsalve, por seu lado, condenava o álcool, as


cartas, os dados e o desemprego, mas dobrava qualquer aposta de que no ano
seguinte as pás estariam ainda mais caras.

Por fim, o Dr. Zuloaga, que acabara de chegar da América do Norte, ria-se de todos
e situava a culpa no excesso de população. “Não teríamos este problema”, dizia ele, “se
estes cem homens e suas famílias não tivessem nascido”.

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Como em todas as grandes cidades, os partidos políticos abriram seus escritórios e


por intermédio de seus respectivos jornais davam a conhecer seus projetos para
conseguir aumentar o preço das pás e, com isso, ter apoio nas eleições futuras. Um
dos problemas mais graves em Paloalto chegou a ser a instabilidade social, mas as
soluções propostas por diversas pessoas estavam marcadas pela politicagem. Por fim,

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e pressionado pelo departamento de Planejamento, foi aprovado o projeto de um
visitante estrangeiro que estava de passagem.

Seu projeto, com certeza muito simples, consistia em dar a cada trabalhador um
subsídio para a aquisição de sua pá. Uma pá por trabalhador.

Inexplicavelmente, ao ser aprovada esta medida, o preço das pás subiu, e para
compensar este acréscimo pensou-se em aumentar também o subsídio. Mas o visitante
foi chamado por seu próprio governo e não conseguiu pôr em andamento o projeto
definitivo.

Como alternativa, foi sugerido que o governo concedesse empréstimos através de


entidades oficiais, única e exclusivamente para a aquisição de pás, e após um estudo “a
fundo” estabeleceu-se que a solução para este caso especial seria de usar juros de 2%
ao mês em vez do juro bancário habitual. Mas, assim que a medida veio a público, os
analistas apontaram que com o aluguel de $75 (a quarta parte do salário) mensais, os
2% equivaliam a um capital de $3.750. O preço das pás havia subido novamente. Os
jornais locais deram a notícia e, como estavam em vésperas de eleições, o projeto foi
abandonado.

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Enquanto o governo buscava a forma de arrecadar fundos para a administração


pública, o problema de Martín era manter e, se possível, aumentar sua receita.

O empobrecimento de muitos cidadãos em meio a tanta riqueza já era insuportável, e


apesar de aceito como obra da Providência, o governo decidiu fazer alguma coisa.
Rapidamente foi aprovada a execução de obras públicas para resolver o problema do
desemprego.

Enquanto Martín continuava sentado em seu escritório recebendo aluguéis pelas


pás, comerciantes, construtores, financistas e industriais lutavam entre si pela
concessão dos contratos de construção. Estes sim converteram-se em fonte de ganhos
jamais conhecidos, e quando Martín se deu conta de que havia outros que obtinham
lucros maiores, já era tarde. “A indústria das pás carece de qualquer apoio oficial”,
declarou em uma entrevista.

Os professores Jaramillo e Vallejo foram então encarregados de elaborar um projeto


que aumentasse a receita fiscal e que, ao mesmo tempo, apoiasse a indústria das pás.

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Os citados professores propuseram o que foi chamado de “imposto invisível”. As


pessoas pagavam sem se dar conta, e aos professores era creditado o milagre de
manter o governo sem mais impostos.

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Fazendo uso dos tributos “indiretos”, as pás ficaram isentas e o imposto recaiu sobre
consumidores, trabalhadores, profissionais, comerciantes, provocando um aumento de
todos os preços, o que na realidade nada mais era senão uma queda dos salários.

A riqueza de Paloalto já era incalculável. Martín se ria dos construtores, industriais e


comerciantes que tentaram sair à frente, pois com a exclusão das pás do pagamento de
imposto, o aluguel subiu para um terço do salário. Quem poderia ter imaginado?

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- “De acordo com as estatísticas dos professores Jaramillo e Vallejo, trabalhamos


no acampamento mais rico do país e a situação torna-se cada vez mais difícil”, dizia
José Muñoz, que nessa época já era chefe do sindicato dos trabalhadores. “Não sei o
que fazer”.
- “São os impostos”, lhe disse Tomás López.
- “Não pode ser”, comentou José. “Os impostos servem para ordenhar os ricos”.
- “Então, o que é?”, perguntou Tomás.
- “A falta de cooperação”.
- “Eu estou cooperando”, disse Tomás, e para demonstrar arremessou uma pazada
bem grande.
- “Para você não tem problema”, continuou José. “Você começou com uma pá de
$10, mas agora que o acampamento enriqueceu as pás custam $2.000 à vista, e para
um pobre não há esperança.”.

José Muñoz via todo mundo fazendo negócios em volta dele: supermercados,
bancos, armazéns, depósitos de mercadorias de todo tipo, etc. e acabou culpando o
capitalismo.
- “Esse é o motivo. Os capitalistas são os donos dos bancos, dos comércios, dos
armazéns. Qualquer um poder ver isso, até mesmo de olhos fechados. Temos que
abolir o sistema capitalista, reestruturar a ordem social, coordenar nossas vidas e
acabar com esses salários de miséria”.

José tornou-se membro do partido comunista nesse mesmo dia.

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Era mais ou menos assim que se desenrolava a vida em Paloalto quando cheguei.

Martín continuava à frente de seu sistema e não tinha problemas trabalhistas visto
que não empregava ninguém. Cada vez que o governo aprovava novos projetos, o
custo de vida subia, mas os trabalhadores punham a culpa nos capitalistas que os
empregavam.
Mas estes capitalistas sabiam das causas do problema tanto quanto os próprios
operários, e por isso as batalhas entre o capital e o trabalho eram travadas “às cegas”.

Fiquei tão interessado em Martín que passei um dia inteiro anotando suas atividades:

9h Recebe uma delegação de políticos que desejam ser eleitos para a


campanha “pela salvação” da cidade. Martín lhes dá apoio econômico.

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10h Martín declara a um grupo de jornalistas que lamenta o estado moral da
comunidade e o pouco respeito às autoridades.
11h Martín recebe várias delegações ao mesmo tempo, umas a favor e outras
contra realizar a mesma coisa. Aconselha a todos e todos recebem sua contribuição.
12h Durante o almoço aproveita para assinar cheques em favor de várias
obras de caridade.
13h É entrevistado por repórteres da “Última Hora”. É fotografado em diversas
poses e, tendo por tema “Como obter sucesso”, discute problemas da atualidade.
14h Discurso na Universidade: “Jamais a juventude teve tal oportunidade. A
riqueza de Paloalto é a garantia de um futuro melhor. Felizmente temos pás suficientes,
que são a base essencial do progresso e do desenvolvimento da pátria”.
15h Discute com o contador e decide abrir outra sucursal para a compra,
venda e aluguel de pás.
16h Recebe a visita de seu médico particular, que está preocupado com o
excesso de trabalho de Martín.
17h Recebe várias delegações e promete contribuir para todas elas.
18h Discurso na Assembleia Geral da Câmara de Comércio. Defende o novo
sistema fiscal e agradece aos professores Jaramillo e Vallejo por sua colaboração, mas
enfatiza que somente a vigilância permanente do sistema garantirá a prosperidade
geral.
23h Depois de jantar com os delegados, tem um desentendimento com Tomás
López, o qual continua insistindo que as pás valem $10.

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Uma vez analisada a situação do acampamento, anunciei as recomendações que


apresentaria à Companhia, mais ou menos nos seguintes termos:

1) Não me interessa saber se o sistema econômico implantado em Paloalto é bom


ou mau;
2) Nas atuais condições, o avanço dos trabalhos é mínimo, e para solucionar a
situação recomendo:
a) Facilitar pás a preço de custo para quem deseje adquiri-las;
b) Decretar um imposto que torne antieconômica a simples posse de pás, ou seja,
que o imposto seja tal que todas as pás tenham de ser utilizadas ao máximo, para
assim se obter maior agilidade na construção da represa. O imposto acabaria de uma
vez por todas com as “pás de engorda”.
O pânico invadiu a cidade ao tomarem conhecimento de minhas recomendações
para a Companhia.
(continua...)

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