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A COSTA DO MOSQUITO

PAUL THEROUX

Tradução de Manuel Cordeiro

1.ª EDIÇÃO, Lisboa, 1988

EDITORIAL PRESENÇA, LDA.

LISBOA
Para «Charlie Fox», a quem esta história se refere e cuja coragem me demonstrou que os valentes não podem morrer. Com
os maiores agradecimentos pelas muitas horas de pacientes explicações e pelo bom humor ante as minhas ignorantes
perguntas. Que encontre a paz que merece, nesta costa muito mais segura. Naksaa.
P. T.
PRIMEIRA PARTE – O BARCO DAS BANANAS
I

Passámos pela mansão do «Pequeno» Polski em direcção à estrada principal e depois percorremos os oito quilómetros até
Northampton, com o pai sempre a falar, durante todo o caminho, acerca de selvagens e do horror da América, e de como esta
se transformara numa ulcerada e perigosa zona de drogados, de portas fechadas à chave, de raivosos devoradores de carne
morta, de milionários criminosos e de gente moralmente desprezível. E olha só para as escolas. E olha só para os políticos. E
que não havia um único licenciado de Harvard que fosse capaz de mudar um pneu furado ou fazer dez flexões de braços. E que
havia gente em Nova Iorque que vivia de comida para cães e gatos e seriam capazes de matar por causa de uns trocos. Seria
isso normal? Se não era, então por que é que ninguém acabava com tais coisas?
— Não sei – disse, respondendo a si mesmo. – Estou apenas a pensar em voz alta.
Antes de sairmos de Hatfield, parara a camioneta no alto de uma lomba da estrada e apontara para sul.
— Aí vêm os selvagens – afirmou.
E lá vinham eles, surgidos de um grupo de árvores e atravessando os campos por entre os celeiros do Polski, mal
delineados na atmosfera viscosa e vibrante de calor. Eram escuros, as suas roupas eram farrapos. Alguns traziam trapos na
cabeça e outros usavam chapéus de abas largas. Havia ali homens e rapazes, alguns não muito mais velhos do que eu, e todos
empunhavam longas facas.
O dedo do pai assustava-me mais do que os homens. Continuava a apontar. Faltava-lhe a ponta do indicador até à
principal articulação, pelo que o coto do dedo, coberto com pregas de pele cozidas umas às outras e com horríveis cicatrizes,
só conseguia indicar uma direcção mais ou menos aproximada.
— Que diabo vieram eles aqui fazer? – Inquiriu. – Pelo dinheiro? Mas como é que pode ser pelo dinheiro?
Mastigava a ponta do charuto com o ar de quem queria extrair dali as respostas às suas perguntas.
Estava-se a meio da manhã e já fazia demasiado calor para um dia de Maio no Massachusetts. O vale parecia queimado
pela seca Primavera por que estávamos a passar, e as valas pouco profundas fumegavam como excremento de vaca ainda
fresco. Nos sulcos que haviam sido rasgados de uma ponta à outra do campo viam-se apenas as minúsculas plumas do milho a
rebentar. Ali, não piava uma única ave. Os campos de espargos, para onde os homens se dirigiam, mostravam-se tão castanhos
e lisos como se o escalpe verde da erva tivesse sido pelado e a calvície da terra houvesse sido alisada por um cilindro.
O pai abanou a cabeça, soltou o travão e cuspiu pela janela.
— De certeza que não é pelo dinheiro – declarou. – Nos nossos dias um dólar vale apenas vinte cêntimos.
Para lá de Hatfield e da casa de Polski e no ponto mais alto da depressão que constituía o vale existiam ameias de
verdura, algumas tão pálidas como espuma de limonada e outras que eram protuberâncias escuras ou pilhas salientes de mato,
com estacadas de ramos rebentando por todo o lado, muito de acordo com a ideia que eu fazia de uma selva. Algumas horas
antes, quando acordáramos, o chão estivera coberto com brilhantes contas de frio orvalho. Pensava nele como sendo gelo de
Verão. Nessa altura respirara nuvens de vapor e havia bolsas de nuvens no céu. Agora o Sol já ia alto, enchendo o vale de luz
e calor, que flamejava contra aqueles homens e fazia deles escanzelados demónios.
Talvez fosse por esse motivo, apesar de já antes ter visto aqueles homens, os selvagens, naquele mesmo lugar e
suficientemente perto para notar como o Sol lhes deixava manchas negras na pele de tom de couro castanho escuro, que a sua
visão me alarmara, tal como o dedo do pai.
— Aqui está o que eu mais odeio – declarou, quando entrámos em Northampton. Usava um boné de basebol e conduzia
com o cotovelo de fora da janela da camioneta. – Não são as garotas do colégio, apesar de serem bastante más. Olha para
além, para a Annie «Rebocador». Repara no tamanho dela. É tão grande que bastavam onze como ela para fazer uma dúzia.
Mas aquilo é gordura, não é saúde. Aquilo é dos hamburgers. – Meteu a cabeça de fora do carrinho e gritou: – Isso é dos
hamburgers!
Ao longo da rua principal «São todos uma cambada de drogados»), passámos por uma estação de serviço da Gettye e o
pai uivou ante o preço da gasolina. «DOIS MORTOS EM TIROTEIO», lia-se no cartaz de um quiosque de jornais, o que o fez
dizer: «Estupores.» Bastava a palavra «Cobranças», escrita na fachada de uma loja, para o deixar todo irritado. Perto da loja
das ferramentas existia uma máquina que vendia gelo aos sacos.
— Vendem gelo … cinco quilos por um quarto de dólar, mas a água é de todos, como o ar! E os tipos vendem o gelo! A
água é a nova indústria em crescimento! Água mineral, água da fonte, água gasosa.
Aí está a grande novidade … «A água é boa para si!» Cerveja com poucas calorias … sabes o que lá está dentro? Sabes
por que é que te deixa magro? Sabes por que é que custa mais do que a outra? Porque é água!
O pai dizia «água» à maneira do Sul: águuua.
Deu por ali umas voltas, cada vez mais rabugento, até descobrir um parquímetro onde o tempo de estacionamento ainda
não expirara. Estacionou e voltámos para trás, a pé, até à loja das ferramentas.
— Quero vedante de borracha, dois metros e meio dele, com espuma isoladora – disse o pai, e, enquanto o homem ia à
procura do vedante, prosseguiu: – Se calhar é por causa disso que a gasolina é tão cara. Metem-lhe água. Não me acreditas?
Se insistes em que há moralidade no comércio – no entanto, eu não dissera uma palavra-, então talvez queiras explicar-me por
que motivo dois terços das carnes inspeccionadas pelo Governo apresentam substanciais quantidades de nitratos capazes de
provocar o cancro, e por que é que a maior parte dos enlatados, é um facto comprovado, não tem qualquer valor nutritivo …
O empregado da loja regressou com uma tira de borracha e entregou-a ao pai, que a examinou e devolveu.
— Não o quero – declarou.
— Mas foi isso que me pediu – disse o homem.
O pai fez uma careta de compaixão.
— Quem diabo é você, um empregado dos japoneses?
— Se não o quer, só tem de dizer.
— Foi isso mesmo o que fiz, pá. É fabricado no Japão. Não quero que os meus dólares, que tanto me custaram a ganhar,
sejam transformados em moeda estrangeira e vão parar aos filhos do Sol Nascente. Não quero sustentar toda uma nova
geração de kamikazes. Quero um bocado de vedante de borracha americana, com isolamento de espuma … Eh, você trabalha
aqui ou não? – soltou uma praga porque o homem se afastara e fora atender outro cliente.
O pai encontrou o vedante que procurava numa loja de ferramentas mais pequena, na rua lateral, mas quando voltamos à
camioneta quase que tinha ataques por causa das coisas que não dissera na primeira loja.
— Devia ter-lhes dito sayonara, devia ter feito uma cena.
Um polícia tinha as mãos apoiadas no nosso parquímetro, com o queixo pousado sobre os dedos, tal como um cavador
apoiado no cabo da enxada. Olhou para o pai e esboçou uma espécie de sorriso que queria dizer «Olá», mas depois viu-me e
mordeu os lábios.
— Ele não devia estar na escola?
— Está doente – respondeu o pai sem se deter.
O polícia acompanhou o pai até à porta da camioneta, enfiou os polegares no cinturão da arma e perguntou:
— Um momento! Então por que é que não está na cama?
— Com uma infecção provocada por fungos?
O polícia baixou a cabeça e ficou a olhar para mim do outro lado do assento da camioneta.
— Vamos, Charlie, mostra-lhe. O tipo não acredita em mim. Descalça o sapato e deixa-o cheirar …
Desatei o atacador mas o polícia interveio:
— Pronto, está bem!
— Não peça desculpa – continuou o pai, sorrindo para o polícia. A boa educação é um sinal de fraqueza … e não é
maneira de combater o crime.
— Disse alguma coisa? – perguntou o polícia, cerrando os maxilares e endireitando-se. Estava muito zangado e tinha um
ar cauteloso e pesado.
— Estava só a pensar em voz alta – respondeu o pai, ainda a sorrir.
Não abriu mais a boca enquanto não chegámos à estrada de Hatfield.
— Eras mesmo capaz de tirar os sapatos e de mostrar ao polícia que não tens nada nos pés?
— Disseste-me para o fazer – respondi.
— Muito bem. Mas que espécie de país é este que transforma os lojistas em traidores e os homens honestos em
mentirosos? E nunca ninguém pensa em ir-se embora daqui! Charlie, eu penso nisso todos os dias!
Continuou a guiar durante mais um bocado.
— E sou o único que o faz porque sou o último homem!

Aquela era a nossa vida, a quinta e a cidade. O pai gostava de trabalhar na quinta do «Pequeno» Polski, mas a cidade
provocava-lhe ataques de fúria. Era por isso que não me deixava ir à escola, nem ao Jerry e às gémeas.
Mais tarde, mas nesse mesmo dia, enquanto consertava uma bomba, avistámos outra vez os selvagens.
— Vieram da selva. Trabalhadores migrantes. Nem sabem o que perderam. Trocaria de lugar com eles, mas pensam que
isto aqui é o paraíso. Não deviam ter para cá vindo.
Uma ano antes, o pai inventara uma bomba de água para o Polski. Tinha um dedo sensível espetado no chão como se fosse
uma raiz e quando a terra secava aquele fio-nervo activava um interruptor que ligava a bomba. O pai, um inventor, era um
perfeito génio em relação a tudo o que fosse mecânico. «Nove patentes», gostava ele de dizer. «Seis pendentes». Gabava-se
de ter abandonado Harvard para conseguir uma boa educação. Tinha mais orgulho no seu primeiro emprego, como porteiro, do
que no curso de Harvard. Inventara um esfregão mecânico. Segurava-se nele com força e o esfregão corria pelo chão e depois
espremia-se sozinho. Usar aquele esfregão era como dançar com uma mulher sem cabeça, dizia. Chamava-lhe «A Mulher
Silenciosa». O que ele mais gostava de fazer era de desmontar coisas, até livros, até a Bíblia. Dizia que a Bíblia era como que
um manual de instruções, um manual de reparações para uma invenção inacabada. Uma das teorias do pai era a de que
existiam partes da Bíblia que nunca ninguém lera, tal como existiam zonas do Mundo onde nunca ninguém pusera os pés.
— Achas isso mau? Pelo contrário! São os espaços vazios que um dia nos salvarão. Aí não há tipos esquisitos, não há
polícias, não há ladrões, não há assaltantes, não há drogados, não há aerossóis. Não estou perdido, como aqueles – disse,
apontando para os selvagens. Eu sei como sair disto.
Tocou nas diferentes partes da bomba com os dedos, como um médico a examinar um bebé em busca de inchaços, sempre
a falar a respeito de espaços vazios e de selvagens. Levantei os olhos e vi-os. Pareciam deslizar para fora daquelas zonas
bravias que acabara de descrever. Vimo-los a avançar para os campos mais elevados e, apesar de sabermos que iam apenas
cortar mais espargos, tinham o aspecto de quem andava à procura de dedos para cortar.
— Vieram do sítio mais seguro da Terra … a América Central. Sabes o que lá têm? Energia geotérmica. Toda a energia de
que necessitam encontra-se a mil e quinhentos metros abaixo da terra. É o umbigo da Terra. Por que é que vieram para aqui?
Lá iam eles através dos campos, aqueles selvagens, debruçados e adejando. Tinham enormes sapatos e pequenas cabeças
pendentes, e quando passavam pelos bosques assustavam os corvos e provocavam uma tempestade de crocitos. As aves saltam
para o ar como luvas negras arrancadas da corda da roupa e sacudidas pelo vento, voando para trás e abrindo as penas a cada
batida das asas.
Lá donde eles vêm não há televisão. Não há nenhuma «videocanalhice» japonesa. Passa-me essa lata do óleo. Aqui a
natureza é jovem, mas o ecos sistema dos trópicos é imensamente velho e não se modificou desde que o mundo é mundo. Por
que é que pensam que somos nós que temos as soluções? Fé … é isso o que queres dizer? Ou a fé é apenas cantar Vem até
Jesus em lá bemol?
Encaixou a chave nos parafusos do tubo saliente e depois ajustou o bico da lata de óleo à junção e apertou-a. Libertou o
tubo com as duas mãos e suspirou.
— Não, senhor! Ter fé é acreditar em qualquer coisa que sabemos que não é verdade. Ah!
Meteu o dedo cortado dentro do tubo enferrujado da bomba e puxou cá para fora uma válvula de latão e um esguicho de
água.
— A água não se pode beber na terra de origem daqueles selvagens. Tem bichos. Ervas daninhas. Pois não têm o bom
senso de a ferver e purificar. Nunca ouviram falar em filtragem. Os germes metem-se-lhes no corpo e ficam verdes, como a
água, e morrem. Os restantes pensam que estar lá não é bom … há aranhas grandes como cachorrinhos, mosquitos, cobras,
inundações, pântanos e aligátores. Não fazem a menor ideia do que é a energia geotérmica. Porquê mudar aquilo quando
podem vir para aqui para se desfazerem em bocados? Mandem-me o desventurado refugo da vossa produtiva costa. Bebam
uma Coca-Cola, vejam televisão, vivam da segurança social, arranjem dinheiro fácil. Virem-se para o crime. O crime neste
país compensa … os ladrões tornaram-se em pilares da sociedade. Acabam todos nos assaltos e no roubo de malas de
senhora.
A água escorria agora da bomba e os circuitos internos tiquetaqueavam e mediam.
— Nunca mais volto a Northampton. É demasiado enervante. Estou farto de encontrar pessoas que querem as coisas que eu
já tive e rejeitei. Já tive todos os dólares que quis, Charlie. E não me fales em educação. Aquele polícia desta manhã era um
tipo com estudos … e tudo o que quer da vida é o que a televisão lhe dá. Não confiarei nele nem para me ir buscar sanduíches!
Já tive tudo isso … aquilo que as pessoas, ambicionam. São coisas que não resultam e é irritante ouvir os ignorantes a louvá-
las.
Sorriu-se para mim.
— É um mundo imperfeito – disse.
Agora ria-se para o dedo amputado.
— Que estão os russos a fazer enquanto esta gente vê televisão?
Levam a cabo algumas experiências muito interessantes com a água. Extraem-lhe todos os gases, extraem-lhe tudo,
incluindo o oxigénio e o hidrogénio. Depois de lhe tirarem tudo, selam-na em potes de conservas, como se se tratasse de
pêssegos. Deixam-na de lado durante uns tempos. Depois, quando se servem dessa água para regar as plantas, estas crescem
duas ou três vezes mais depressa, tornam-se em grandes monstros saudáveis. Os feijões trepam para fora das estacas, as
abóboras ficam grandes como balões.
Fez um gesto para a água.
— Sabes, estou só a pensar em voz alta. Que é que achas? Achas que se passa alguma coisa de errado com a chuva? Diz
qualquer coisa! Disselhe que não sabia.
— Achas que alguém devia ir falar com Deus, para que este repensasse o tempo que faz cá em baixo? Digo-te, Charlie, é
um mundo imperfeito. A América está num beco sem saída.
Pôs a mão em taça por debaixo do tubo de saída da água e levou-a à boca. Sorveu a água.
— Isto é como champanhe para aqueles selvagens.
Dando estalinhos com os lábios, deu a entender que se tratava de um líquido maravilhoso.
— Olha, repara nas coisas que tu e eu temos e a que não prestamos atenção. O gelo, por exemplo. Não o têm no seu país.
Se vissem uma pedra de gelo provavelmente pensavam que era um diamante, ou uma jóia qualquer. Não lhes parece o fim do
mundo o facto de não haver gelo. Mas pensa bem nisso. Imagina os problemas que têm, sem uma refrigeração apropriada.
— Talvez não tenham electricidade – disselhe.
— Claro que não têm – respondeu o pai. – Estamos a falar da selva, Charlie. No entanto, pode-se ter refrigeração sem
electricidade. Tudo o que precisas é de sucção. Inicia um processo de vácuo e aí tens a refrigeração. Escuta, até podes fazer
gelo do fogo.
— Então, por que é que eles não o fazem?
— Porque não sabem – retorquiu. – É por isso que são selvagens. Começou a montar outra vez as peças da bomba.
— Devem ter toda a espécie de doenças – continuou, fazendo um gesto com a chave na direcção que os homens haviam
tomado. – Aqueles … têm doenças.
Parecia simultaneamente fascinado e repelido pelos homens. Transmitia-me aqueles sentimentos contando-me qualquer
coisa importante e avisando-me a seguir para não me interessar demasiado pelo assunto. Perguntara a mim mesmo como é que
o pai sabia tanta coisa a respeito dos homens a que chamava selvagens. Afirmava que o sabia por experiência própria, por ter
vivido em lugares inóspitos, entre gente primitiva. Usava a palavra «selvagens» com uma certa afeição, como se gostasse um
pouco deles, por o serem. Na sua natureza havia um respeito por tudo o que era selvagem e bravio. Via essas características
como um desafio pessoal, como uma coisa que podia ser corrigida com uma ideia ou uma máquina. Pensava ter a resposta
para todos os problemas, se alguém se desse ao trabalho de o escutar.
Os corvos voltaram para os bosques, voando a grande velocidade em direcção ao topo das árvores e depois descrevendo
círculos desconfiados até pousarem para comer.
— Aqueles homens são perigosos? – perguntei.
— Não tão perigosos como o americano médio … e só quando se enfurecem. Sabemos que estão zangados quando os
vemos a sorrir. É o sinal … tal como acontece com os cães.
Virou-se para mim com um largo sorriso. Percebi que queria que lhe perguntasse mais coisas.
— E então?
— Então, transformam-se em animais. Em assassinos. Os animais também parecem sorrir, antes de nos morderem.
— Aqueles homens mordem?
— Vou dar-te um exemplo. Sabes como o fazem? Achas que te matam? Pois vou dizer-to, Charlie, meu rapaz. Esvaziam-te.
Dizia aquilo com a pronúncia do Sul e quando o fazia eu sentia-me como se uma centena de garras aguçadas me estivesse a
arrancar o escalpe.
— É por isso que é preciso coragem para lá ir … e não apenas o vulgar bom senso. É preciso coragem verdadeira, a
coragem das quatro da madrugada. Quem é que a tem?
Trabalhámos no exterior até o céu se tornar da cor das chamas e depois marchámos para casa, para o jantar.
— Tens de o admitir, rapaz – afirmou o pai. – Isto é melhor do que ir à escola.
II

Naquela noite abri os olhos no escuro e soube que o meu pai não estava em casa. A sensação da falta de alguém é muito
mais forte do que a sensação da presença. Não era apenas por não ouvir o seu ressonar assobiado (que em geral soava tal e
qual como uma das suas válvulas de escape), nem sequer por todas as luzes estarem apagadas. Era uma sensação de vazio,
como se no ar da casa, no local onde deveria encontrar-se o corpo do meu pai, existisse um buraco com a forma de uma
múmia. O meu receio era o de que aquele homem imprevisível estivesse morto ou pior do que morto … vazio e assombrando
a propriedade. Sabia que se fora. Com uma certa preocupação de culpa – tinha então treze anos-, sentia-me responsável por
ele.
Não havia luar mas mesmo assim, e por não existirem fechaduras, a casa era fácil de revistar. O pai desaprovava as portas
fechadas. Digo que desaprovava mas o que quero dizer é que ameaçava bater-nos se as fechássemos. Quem se escondia por
detrás de uma porta fechada não prestava para nada, afirmava. Gritava frequentemente para a porta da casa de banho: «Não se
barriquem aí dentro!» Crescera numa pequena aldeia de pescadores na costa do Maine – a que chamava «Dogtown»-, onde as
portas fechadas eram desconhecidas. Durante os anos que passara na índia e em África mantivera sempre a mesma norma, era
o que dizia. Nunca tive a certeza se, na verdade, visitara esses lugares. Cresci na crença de que o mundo lhe pertencia e de
que tudo o que ele dizia era verdade.
Era grande e ousado em tudo o que empreendia. A seu respeito, os únicos factos vulgares eram o fumar charuto e usar um
boné de basebol durante todo o dia.
Espreitei primeiro para o quarto e verifiquei que só jazia uma figura na cama de latão, um vulto envolto num lençol, na
ponta mais afastada. A mãe. Fiquei com a certeza de que saíra porque pendurava sempre o fato-macaco no varão da cama e
não o via lá. Desci as escadas e atravessei as diversas divisões. O gato dormia no soalho como um patim tombado. Parei no
corredor e escutei. Como era Primavera, havia um forte odor a lilases e a terra lavrada, bem como uma brisa suave. Lá fora
soava uma torrente de grilos, enquanto um frenético grilo aprisionado no interior soltava cricris impacientes. Excepto esse
grilo, a casa estava tão silenciosa como se estivesse enterrada.
As minhas botas de borracha encontravam-se logo à entrada da porta. Enfiei-as, ainda de pijama, e meti pelo carreiro para
ir procurar o meu velho.
Estávamos rodeados por campos lavrados. As beiras de cada campo eram separadas por bosques, que serviam para
quebrar o vento. O milho e o tabaco começavam a rebentar, e, apesar de ser mais fácil caminhar pelos sulcos, mantive-me no
carreiro com os braços em frente do rosto para afastar os troncos. O que me fazia confusão não eram os ramos, mas as teias de
aranha, que se agarravam às minhas pestanas. Aqueles bosques estavam cheios de charcos pantanosos e o som da noite era o
das pequenas e escorregadias rãs da Primavera, brilhantes como falsas iscas para peixes, que pareciam trinar. As árvores
eram azuis e negras, como enormes feiticeiros. Onde é que eu fora parar?
Abandonara a casa sentindo-me envolvido pela escuridão, mas quanto mais me afastava menos escuro me parecia. Agora a
terra era de um amarelo enlameado, algumas árvores eram cor de cinza e os seus cimos sobressaiam como espinhos de aço. O
céu era de um cinzento pesado. Via algumas nuvens. Uma delas tinha a forma de uma fatia de pão e calculo que a Lua estivesse
por detrás, escondida, porque a nuvem apresentava um aspecto oleoso e brilhante, como se ocultasse uma cidade industrial
existente nos céus.
Passado um bocado já desejava não ter saído de casa com tanta pressa. As botas estavam-me largas nos pés e provocavam
um som parecido com o chapinhar. Os mosquitos mordiam-me através do pijama. Tinha os braços arranhados pelas silvas.
Devia ter posto o chapéu, os insectos metiam-se-me nos cabelos. De vez em quando tinha a sensação de que alguém seguia
atrás de mim. Virava-me de repente para deparar com o tolo sorriso de caveiras desenhadas nos troncos descascados das
árvores, ou com ramos mortos como dedos esqueléticos que se estendiam para mim. Este era um dos meus medos. O outro era
o de encontrar uma doninha fedorenta e ficar coberto pelo seu cheiro. Nesse caso teria de enterrar o pijama num buraco e
voltar para casa todo nu.
O bosque tornou-se menos cerrado. Via árvores isoladas de encontro ao céu, e uma outra fila em frente de um campo
amarelado. Um monte de pedras disseme onde estava. Aquele ponto alto fora abandonado por ser impossível de lavrar. Era
estreito e levantava-se no fim dos bosques, dando ao lugar o aspecto de um navio. Visto de lado e de dia, era uma escuna com
uma proa rochosa, uma carga no convés e trinta mastros folhosos, encalhados nos campos de espargos, por entre os bosques
quebra-ventos, que pareciam ilhas.
Ali a plantação era quase toda de espargos. A cultura estava pronta, a colheita começara. É uma plantação engraçada, não
cresce em sulcos. Os campos são lisos e planos como parques de estacionamento. A distância não se conseguem ver as plantas
dos espargos, mas se nos aproximarmos muito então vemos os frutos, nada de flores e nada de folhas, apenas gordas velas
verdes saindo do chão por todo o lado. Do sítio onde me encontrava não podia ver nada a não ser o terreno liso, como que
aplanado por um cilindro, e o seu brilho baço, como uma intumescência num mar sem ondas. Para lá daqueles campos ficava a
faixa negra da noite, onde receava que o meu pai se encontrasse.
Havia também pirilampos. Eram insignificantes, nada brilhantes, menos do que fósforos, vibrando aqui e acolá, nunca duas
vezes no mesmo sítio. Tinham a sua luz própria mas nada mais iluminavam e eram como pequenas. E baças estrelas em que
não se podia confiar e que morriam na escuridão. .
Porém, mais longe, havia um amontoado de luzes que não morriam. Tartamudeavam, eram archotes, e, quando verifiquei
que essas luzes tinham homens por baixo, dirigi-me directamente para lá, através do campo de espargos, pisando e partindo os
frutos com as botas a afundarem-se na crosta de terra.
Já mais perto, vi as altas chamas tremulando numa única fileira, uma procissão de pessoas atrás umas das outras,
segurando os archotes por cima da cabeça, com as chamas a estalar como bandeiras. Os chapéus de abas largas estavam
iluminados mas não lhes via os corpos. Saíam de uma faixa de pinhal onde existia uma velha construção a que chamávamos a
«Casa dos Macacos».
Homens com archotes avançando à meia-noite pelos campos do vale … Nunca vira uma coisa assim. Era uma serpente de
chamas e pensei ouvir um som chocalhante, o agitar de grãos dentro de uma lata. No entanto, sentia-me mais curioso do que
assustado, e escondera-me tão bem e estava ainda tão distante que aquela coisa não constituía uma ameaça.
A procissão prosseguia do outro lado de um muro de pedra existente entre as culturas, milho jovem do outro lado,
espargos deste. Imaginei que se me vissem me atacariam e me pegariam fogo. Este pensamento, e o conhecimento de que
naquele local me encontrava a salvo, provocaram-me um arrepio de excitação. Dobrei-me, corri para uma vala, acachapei-me
no fundo e observei com atenção.
Nesse momento mudaram de direcção e vieram direitos a mim. Ter-me-iam visto a correr? O meu coração quase parou
quando os archotes passaram por uma abertura no muro de pedra, e pensei: «Oh, Deus, vão pegar-me fogo!»
Rastejei para trás na vala, e como me encontrava numa posição deitada, a água começou a entrar nas botas. Pouco depois
já as tinha cheias. No entanto, não abri a boca. Uma das histórias favoritas do meu pai era a do rapaz espartano que tinha uma
raposa dentro da camisa, já não me lembro porquê, e que deixou que o animal lhe devorasse a barriga, porque era demasiado
valente para gritar por socorro. Os pés molhados nem se podiam comparar. No chão, perto de mim, cresciam plantas rasteiras.
Puxei-as para cima da cabeça e achatei-me de encontro aos lados da vala. Estava completamente escondido.
Os homens encontravam-se perto. Ainda tagarelavam – pareciam felizes – e eu conseguia ouvir o sibilar dos archotes. As
chamas soavam como lençóis pendurados ao vento numa corda de roupa, não crepitavam, soltavam estalos. Olhei para cima,
esperava ver portadores de tochas com caras de loucos, mas o que vi quase me fez soltar um grito. O homem da frente
transportava uma enorme cruz negra.
A cruz não era feita de tábuas, mas sim arredondada, construí da com dois grossos postes amarrados um ao outro.
Ostentavam horríveis marcas brancas nos sítios onde os ramos haviam sido desbastados, tal como feridas ovais sobre uma
pele. Por detrás do fulano que levava a cruz, e ainda mais assustador, seguia outro homem transportando um corpo humano,
uma coisa mole, com a cabeça caída, os pés a balançarem e os braços a oscilar de um lado para o outro. Transportava o corpo
como quem transporta um saco de cereais. Era uma coisa grande, mole e pesada, com os membros pendurados de um modo
assustador. À luz dos archotes, o homem que o transportava tinha um rosto amarelo … e sorria.

Não tive vontade de ver mais. Tremia de frio. «Pode-se fazer gelo do fogo», dissera o pai. Agora, acreditava. Aquele fogo
gelara-me as tripas.
Mantive a cabeça baixa e a boca fechada, apesar de estar enlameado, molhado, e mordido pelos insectos. Sentira o calor
dos archotes e o seu cheiro … de tão perto que haviam estado de mim. A seguir afastaram-se. Levantei a cabeça muito
devagarinho e vi os archotes a brilhar no bosque em forma de navio por onde eu próprio passara. Os ramos das árvores
saltavam na luz e aquela linha saltitante de riscas quentes e de sombras atravessou para o outro lado, onde parou e brilhou.
Gatinhei para fora da vala, empurrei as plantas rasteiras para o lado e despejei as botas. A seguir, mantendo-me junto da
vala, chapinhei até onde me foi possível, agachei-me para atravessar o campo de espargos e entrei no bosque. Naquele
momento a procissão encontrava-se para lá das árvores, tudo o que ali ficara fora o cheiro a gasolina e a folhas queimadas.
Naquele sítio estava bem escondido e de facto até podia ver tudo, por detrás de um montão de pedras.
Dois dos homens estavam debruçados. Deviam estar a amarrar o morto à cruz, porque depois, sob a ardente luz do círculo
de archotes, vi que a levantavam com o homem lá preso, os pulsos amarrados, os pés pendurados e a cabeça inclinada para um
lado.
Tudo aquilo tinha um ar perverso e fiquei à espera de ouvir os homens a soltarem gritos de morte, mas não, permaneceram
tranquilos, até alegres, era como um daqueles pesadelos que vemos acontecerem a nós mesmos sem os podermos explicar, e
isso era o pior de tudo. Depois de todos aqueles ziguezagues através dos campos, tinha tanto medo de revelar a minha
presença e de ser queimado vivo que até me esqueci da razão que ali me levara. Porém, no momento em que vi a cruz erguida,
recordei-me de que andava à procura do meu pai. A recordação e a visão tiveram lugar ao mesmo tempo, pelo que pensei:
«Aquela pessoa morta e retorcida é o meu velho.»
Sentei-me, tapei os olhos com as mãos e tentei parar de chorar mas continuei debulhado em lágrimas, até que a certa altura
senti que tinha uma cabeça muito pequena e bastante molhada. Pensei também, sem saber porquê, que iriam atirar as culpas
para cima de mim.
Tudo o que podia fazer era ver e ouvir. Já me habituara àquela visão tenebrosa, e quanto mais olhava mais me sentia
responsável por ela, como se se tratasse de algo que eu imaginara, um pensamento diabólico que saltara para fora da minha
cabeça. Observar tornava-me numa parte da visão.
Não tive tempo para me preocupar. De repente, os homens apagaram os archotes. Depois das luzes e das sombras e da
cruz iluminada, viam-se apenas camisas e chapéus … andrajosos esqueletos de um branco de osso movendo-se sem corpos …
e silêncio, enquanto os homens, aqueles farrapos, avançavam para mim.
Levantei-me muito depressa e corri para salvar a vida.

«Sou o último homem!» Este fora um dos mais frequentes gritos do pai. De regresso à cama, era doloroso permanecer
naquela casa sem portas fechadas, não a sonhar mas a pensar. Sentia-me pequeno e encolhido. O pai, que acreditava que iria
haver uma guerra na América, preparara-me para a sua morte. Dissera durante todo o Inverno: «Está a chegar … Vai acontecer
aqui qualquer coisa de horrível». Mostrava-se inquieto e falador. Dizia que os sinais estavam em todo o lado, nos preços
altos, nas criaturas irritadiças, nas preocupações íntimas, na estupidez e na ambição das pessoas, e no facto de andarem gordas
como porcos. Cometiam-se crimes sangrentos nas cidades e os criminosos não eram punidos. Não seria uma guerra vulgar,
dizia, mas sim uma em que nenhum dos lados estaria inocente.
«Os gordos estúpidos combaterão com os criminosos magrizelas» dissera um dia. «Odiarás uns e terás medo dos outros.
Todos os cérebros da nação ficarão danificados. Em quem poderemos confiar?»
As suas frases tinham um tom de desgosto e, por vezes, no mais profundo daquele Inverno branco, mostrava-se muito
sombrio. Um dia a água congelou nos canos do «Pequeno» Polski e o pai foi chamado para os desentupir. Parámos na neve, à
beira de uma vala recentemente escavada, ligando aos tubos os fios da «Caixa dos Trovões» do pai para os descongelar. (Este
aparelho era de sua própria invenção e tinha muito orgulho nele – patente pendente-, apesar de quando o utilizou pela primeira
vez quase matar a mãe Polski, que tinha a mão pousada numa torneira, que ficou electrificada quando ele ligou a corrente.)
Vimos os canos a aquecerem e a libertarem vapor. O gelo estalava lá dentro, agitava-se e chocalhava como pedrinhas. O pai
escutava com grande deleite os ruídos provenientes de dentro dos canos, e depois virou-se para mim, à beira da vala meia
coberta de neve.
— Quando ela chegar, serei o primeiro a morrer. Primeiramente matam sempre os mais espertos … aqueles que receiam
que sejam mais espertos do que eles. Depois, já sem ninguém que os impeça de prosseguir, vão desfazer-se em bocados, uns
aos outros. Vão transformar este belo país num buraco tenebroso.
Não havia desespero nas suas palavras, apenas uma simples constatação de factos. A guerra era uma certeza, mas ainda
lhe restavam algumas esperanças. Dizia que acreditava nele próprio e em nós.
— Vou levá-los para longe daqui … fazemos as malas e partimos.
Fecharemos as portas a tudo isto …
Gostava da ideia de partir, de se mudar, de começar de novo num lugar vazio, onde nada existisse para além do seu
cérebro e da caixa das ferramentas.
— Serei o primeiro a morrer.
— Não.
— Matam sempre primeiro os mais espertos.
Não me era possível refutar aquilo. Era o homem mais esperto que eu conhecia. Tinha de ser o primeiro a morrer.
Até ver a procissão a marchar à meia-noite e o corpo morto na cruz, não conseguia perceber como é que alguém seria
capaz de o matar. No entanto, aquela noite foi o bastante. Estava agora convencido, e encontrava-me sozinho. O homem mais
forte por mim conhecido fora pendurado em dois paus e abandonado num campo de milho. Era o fim do mundo.
— Sou o último homem, Charlie!
As negras horas iam passando. Em breve seria manhã e teria de enfrentar toda a gente para lhes dizer que o pai o
predissera. Por isso continuei na cama, pensando em como o pai dissera que o país estava condenado. Prometera salvar-nos e
fazer-nos fugir dali antes que fosse demasiado tarde. Agora fora-se e eu era muito fraco para salvar os outros, e no sonho que
finalmente tive na parte mais fria da noite vi-me a conduzir a mãe, as gémeas e o Jerry por entre campos a arder, debaixo de
um sol ferido de morte, um céu cor de sangue, com as roupas em farrapos, no meio do fumo, sem nada para comer. Dependiam
de mim e só eu o sabia, mas tinha medo de lhes dizer porque era demasiado tarde e estava a conduzi-los para a direcção
errada.

No céu manchado, negro e vermelho, avistei o rosto trocista do pai, depois de caminharmos e caminharmos, e ele dizia:
— Onde é que tu andaste, filho?
Tapei os olhos. Ainda me encontrava no sonho e triste, a mãe e os garotos atrás de mim, o desastre pela frente e sem
hipótese de fuga.
— Onde é que tu …?
Acordei e vi-lhe o rosto, queimado pelo sol e zangado. Levantei-me porque receava que me batesse, primeiro com medo
de que estivesse morto, e depois com medo porque estava debruçado por cima de mim. Foi o seu charuto que me disse que não
estava a sonhar, mas sentia-me demasiado impressionado para chorar.
— Tive um sonho mau.
Pensei: foi tudo um sonho, os homens com os archotes, o corpo na cruz, os selvagens rindo-se, o sol ferido e o céu. Fiquei
muito feliz. O sol clareava as cortinas do meu quarto e as aves chilreavam para mim.
— Deves ter sonhado com heras venenosas – disse o pai.
— Tens o pior caso que eu já vi!
Quando disse aquilo, começou a doer. Sentia a cara rugosa e esfolada e os braços também.
— Não lhe toques, para não se espalhar mais. Sai da cama e põe qualquer coisa nisso.
Dirigiu-se para a porta do quarto e disseme, enquanto eu enfiava as roupas:
— Andaste a fazer asneiras na mata … foi o que foi.
No patamar, a tábua solta no soalho confirmou-me que tudo estava normal. Cheirou-me a café e a bacon, ouvi as gémeas a
chorar e nunca na minha vida me sentira tão contente. Fui para a casa de banho. No espelho, a minha cara parecia uma romã, e
os braços e os ombros estavam inflamados por causa da hera venenosa. Espalhei loção de calamina sobre a pele e corri para a
cozinha.
— É um fantasma – disse Herry quando viu a minha cara pintada de branco.
— Pobrezinho – comentou a mãe, colocando um prato de ovos na minha frente e beijando-me no alto da cabeça.
— A culpa foi dele – declarou o pai.
Aquilo não era nada. Depois do que vira, um caso de envenenamento com heras parecia-me a própria salvação.
— Come – continuou o pai. – Temos trabalho para fazer.
Queria trabalhar, carregar-lhe com a caixa das ferramentas, passar-lhe a lata do óleo, ser seu escravo e fazer tudo o que
me pedisse. Merecia ser castigado. Queria esquecer-me daqueles archotes e dos homens. Voltara a ter treze anos. Antes,
sentira-me com quarenta.
— Vai ter comigo à oficina quando acabares – disseme o pai.
— Pobre Charlie – lamentou-se a mãe. – Onde é que fizeste isso?
— Andei metido na mata, mãe – respondi baixinho. – A culpa foi minha.
Abanou a cabeça e sorriu. Sabia que eu estava arrependido.
— Mãe! – gritou o Jerry. – O Charlie está a olhar para mim com aquela cara!
A oficina do pai ficava por detrás da casa. Havia máximas e citações escritas em bocados de cartão e penduradas nas
prateleiras, havia ferramentas, tubos, rolos de arame e várias máquinas. Além de motores de todas as espécies, uma pistola de
lubrificação e um torno, que davam à oficina um certo ar de arsenal, era também aí que se encontrava a sua «Caixa dos
Trovões» e uma engenhoca que servia para tudo e a que o pai chamava «Esmagador de Átomos».
No chão e mais ou menos com o tamanho de uma arca, de pé sobre uma das pontas, via-se uma caixa de madeira que
construíra e na qual mexericara durante quase toda a Primavera. Lá dentro não havia nem fios nem motor, montara-a com um
maçarico. Estava cheia de canos, grelhas, reservatórios, tubos de cobre por baixo e uma porta que dava para uma caixa de lata
no cimo. Cheirava a petróleo e eu pensava que se tratava de uma qualquer espécie de forno, porque por detrás havia como que
uma chaminé. O pai disse que tínhamos de carregar aquela coisa na camioneta.
Tentei levantá-la. Nem se mexeu.
— Queres dar cabo das costas? – perguntou o pai.
Com muito cuidado e levando todo o seu tempo, instalou uma calha num tripé e acabámos por meter a caixa cheia de tubos
dentro da camioneta.
— O que é isto?
— Chama-lhe «Banheira das Minhocas» ou depósito alimentador. Saberás para que serve quando o «doutor» Polski o
souber.
Metemos pela estrada das traseiras e fomos até à quinta de Polski pelos trilhos dos tractores, junto dos campos. Quando
passámos pelo quebra-ventos que parecia um navio, lembrei-me que fora ali que vira a procissão de homens com archotes.
Fora por debaixo do maciço de árvores que observara os homens reunidos e o corpo a ser levantado na cruz. Esperei que o
pai metesse por um atalho que me confirmasse, ao ver pegadas ou milho espezinhado, que não sonhara. O pai virou para a
direita. Sustive a respiração.
O que era aquilo no meio do campo lavrado? Uma cruz, um homem morto pendurado nela, farrapos negros e um chapéu
preto, um rosto que parecia uma caveira, mãos partidas e pés torcidos.
Fiquei gelado e não consegui evitar as tremuras na voz quando lhe perguntei o que era.
O pai continuava a conduzir bem depressa pelo caminho irregular.
Não virou a cabeça. Sorriu-se e disse: .
— Não me digas que nunca tinhas visto um espantalho para os pássaros.
Carregou no acelerador. – Deve ser um espantalho muito bom!
Olhei para trás e vi-o suspenso sobre o campo vazio, velhas roupas cheias de palha. O suor fizera com que a inflamação
provocada pela hera começasse a dar-me comichões. Tinha vontade de arranhar a cara.
— Não há dúvida de que te assustou! – continuou, soltando uma gargalhada.
III

Segundo se dizia, o «Pequeno» Polski, que ouvira falar nas invenções do meu pai, visitara-o e implorara-lhe que fosse
com ele para Hatfield. Nessa altura vivíamos no Maine, não em Dogtown mas nos bosques. O pai tentava um ano de auto-
suficiência, cultivando hortaliças, construindo painéis solares e mantendo-nos longe da escola. Polski prometera-lhe dinheiro
e uma parte da quinta. O pai não se decidira a mexer-se. Polski dissera que enfrentava problemas pouco usuais porque queria,
por meios mecânicos, prolongar a época das culturas ou até conseguir duas épocas por ano. Era uma boa área para a educação
dos garotos, era um vale protegido e feliz, a quilómetros de qualquer outro lado. Esta foi a história que me contaram, mas eu
sabia qual a verdade. As coisas não tinham corrido bem no Maine. O pai recusara-se a sulfatar os vegetais, e os vermes
tinham-nos devorado antes de podermos colhê-los. A chuva e as tempestades haviam causado estragos nos painéis solares.
Durante algum tempo o pai não quis comer e foi levado para o hospital. Chamou-lhe «Palácio do Borborinho», mas saíra de lá
a sorrir e dissera: «Não senti nada.» Estava de novo saudável. Apenas, de vez em quando, se esquecia dos nossos nomes.
Fomos para Hatfield sem nada, pois ele gostava de começar do zero.
Era impossível pensar em Polski – ou fosse em quem fosse – como sendo o patrão do pai. O pai não aceitava ordens.
Descrevia Polski como «o baixote» e chamava-lhe «gorducho» ou «doutor Polski», mas este «doutor» era puro sarcasmo,
destinado a afastar qualquer tentativa de amizade. Pensava que Polski e quase todos os outros homens eram seus inferiores.
— Possui gente – dizia o pai-, mas não me possui a mim.
Polski esperava-nos no pátio da entrada quando lá chegámos. Tinha olhos cinzentos e duros como pervincas. Era mais
velho que o pai, pequeno e gordo, e parecia sempre cheio de serradura. Usava uma camisa aos quadrados, umas botas limpas
e um cinto que lhe transformava o fato-macaco em dois sacos. O seu jipe brilhava, as botas nunca tinham lama e não havia
manchas de suor no seu chapéu. Não fumava. Andava sempre vestido para trabalhos sujos, mas nunca se sujava. Era a
primeira vez que entrávamos na sua mansão, mas não sei dizer se isso era por o pai se recusar terminantemente a entrar lá ou
por nunca ter sido convidado para o fazer. Talvez Polski soubesse que era melhor não o convidar, para não ter de aturar um
dos seus discursos a respeito dos tolos e dos hamburgers. Eu espreitara pelas janelas e vira a mesa polida, a jarra de flores
em cristal lapidado, os pratos em fila no armário e as costas atarefadas da mãe Polski, que varria e limpava. Nada daquilo
tinha um ar convidativo e a mãe Polski parecia fazer parte da sala. – Belo dia – disse Polski.
— É verdade – respondeu o pai.
— Espero que continue assim no fim-de-semana. Tenho coisas para fazer no sábado.
«Cosas pr’fezer sábdo», foi o que ele disse, mas o pai não fez comentários. Estava excitado. Guiara com impaciência,
ansioso para mostrar a Polski a sua «Banheira das Minhocas». Tinha orgulho nela, fosse aquilo o que fosse. No entanto,
continuava sentado na camioneta, mastigando o charuto.
— Tem um fósforo, «doutor»?
Polski semicerrou um dos olhos e abanou-se um pouco sobre os calcanhares. A pergunta intrigava-o.
— Fez todo este caminho para me pedir um fósforo, senhor Fox?
— Pois!
— Já volto, não demoro.
Polski pronunciava os erres como vês, não demovo, fósfovo, ladvão, vealmente. A culpa era do lábio inferior que batia
nos dentes da frente. Desapareceu dentro de casa.
— Até parece que tens sarna – disse o pai, depois de estudar a minha cara inflamada e os braços. – Espero que tenhas
aprendido a lição.
Saltou para fora da camioneta e instalou a talha detrás dela.
— Vamos fazer com que a tampa lhe salte – declarou, descarregando a «Banheira das Minhocas» para o chão. – Vai ficar
com os cabelos em pé.
Polski regressou com uma caixa de fósforos grandes de cozinha, olhou para a «Banheira das Minhocas» e comentou:
— E pequena demais para um caixão.
— Pergunto a mim próprio se me fará mais um pequeno favor disse o pai. – Um pequeno copo de água, da torneira …
Murmurando «um copo de água vulgar», Polski voltou a entrar em casa. Era fácil de perceber, pelo modo como o dissera e
pela maneira como batera a porta, que estava a ficar exasperado. Quando regressou com a água e a entregou ao pai, declarou:
— O senhor é um homem misterioso, Fox. Mostve lá o que é isso.
— E o senhor é um cavalheiro.
Polski olhou para mim pela primeira vez.
— Hera venenosa. Ficaste coberto dela. Que coisa!
Ao ouvir aquele «cobeto» e «cosa», recuei um pouco e toquei na cara, envergonhado. Havia sido enganado por um
espantalho. Já percebera tudo. Fazia sentido instalar o espantalho durante a noite, para que os pássaros não ficassem a saber.
Era essa a minha lição?
— Que vem a ser isso? – perguntava o Polski ao pai.
— Vou dizer-lhe o que isto não é – respondeu, abrindo a porta da caixa de madeira e revelando o compartimento de metal
fechado com uma placa com dobradiças e com o vedante de borracha que tínhamos comprado em Northampton. – Não é um
caixão, nem é um bocado de carne deteriorada. Ah! – Abriu a tampa metálica e continuou: – Quero que me diga o que é que vê
aqui dentro.
— Nada.
— És testemunha, Charlie.
— Pois, só que tem os olhos quase fechados, de inchados que estão! – afirmou Polski, rindo-se.
O pai despejou parte da água do copo, um pouco de cada vez, parecendo medi-la, até só restarem cerca de dois
centímetros no fundo. Meteu o copo dentro do compartimento de metal, fechou-lhe a tampa e a caixa, e depois acendeu um
fósforo.
— Não me diga que vai ferver esse copo de água! – exclamou Polski.
— Tenho coisas melhores para fazer.
— Tais como?
Polski agitou os lábios depois da pergunta. Era ele quem estava a ferver. O pai respondeu:
— Garanto-lhe que não vai ficar desapontado.
— Que diabo de cheiro é este? Petróleo?
— Certo. Petróleo, o combustível, mais barato da América.
— E o mais malcheiroso.
— Opiniões diferentes – retorquiu o pai, o que fez Polski resmungar.
— E está a dizer-me que não vai cozinhar nada?
— Não é bem isso.
O pai divertia-se. Fez qualquer coisa na parte detrás da caixa de madeira, onde se encontravam os tubos e o elemento de
aquecimento. «Banheira das Minhocas» era um bom nome para aquela caixa de tubinhos. Acendera uma mecha que era
alimentada e humedecida por um bico do depósito de combustível, e ao ajustar a chama fez sair nuvens de, fuligem pegajosa
do alto da chaminé. Ouviu-se um borbulhar lá dentro; um som parecido com o que faz um estômago com fome, mas tirando
essa manifestação de descontentamento por parte daqueles tubos, nada mais aconteceu, não se ouviu nenhum motor, nem havia
ali muito calor.
— Arrota ou peida-se? – inquiriu o pai. – Era o que estava a perguntar a si mesmo?
Polski resmungou de embaraço, pestanejou e tomou um ar impaciente, enquanto esfregava as solas nas pedrinhas do chão.
O calor começou a sair em ondas negras pela chaminé. Polski recuou.
— Se esses tubos estão fechados, vai rebentar – declarou. – Por causa da pressão.
— Esconda-se em casa, se quiser, mas tenho aqui um conjunto completo de válvulas de segurança. Está a deitar fumo
porque a pus a funcionar a toda a força para demonstração. – Espreitou lá para dentro. – Aguenta bem.
Olhava para a sua obra com um ar orgulhoso, parecia tão seguro dela, tão descuidadamente confiante, que eu quase
esperava que aquilo se abrisse com um jacto de chamas e lhe explodisse na cara. Já não seria a primeira explosão. «Era só
uma experiência», dizia o pai. O tecto da oficina estava chamuscado e não fora a abrir uma lata de atum que o pai perdera a
ponta de um dedo, como às vezes afirmava. – Se eu quisesse cozinhar um copo de água, enfiava-o no forno. Só que nunca me
apeteceu água assada.
Polski olhou para mim em busca de aprovação, mas depois ficou de rosto sombrio quando viu a coluna de fumo oleoso.
Enfiou a cabeça entre os ombros e semicerrou os olhos à espera do estouro.
— Gosta de a ouvir ronronar? – perguntou o pai.
— Está mas é a rosnar – retorquiu Polski.
— Não tem um único fio – continuou o pai, andando devagar em volta da caixa. – Não está ligada a lado nenhum. Não
tenho nada na manga. Não tem peças móveis, «doutor». Nada que se gaste. É eterna.
— É mesmo o que me fazia falta para o galinheiro – disse Polski, olhando para mim. – Durante o Inverno poderei manter
as galinhas quentes como torradinhas e a porem regularmente … se não as matar com os fumos.
— É um grande brincalhão. Os fumos podem ser corrigidos, é apenas uma questão de ajustamentos mais finos. Só lhe
queria mostrar o que ela pode fazer.
— Eu diria que é capaz de acabar com o negócio às doninhas fedorentas.
Polski pigarreou, limpou a garganta e cuspiu, e depois pontapeou um pouco de terra para cobrir o escarro.
— Como vão os velhos espargos? – perguntou o pai.
— São demais. A culpa é deste tempo seco. Estão a crescer com o calor, estão quase todos maduros. Tenho mais do que
os que posso armazenar.
«Más d’que possu avmzná.»
— Então venda-os!
— Isso era o que eles queriam.
— Toda a gente gosta de espargos.
— O mercado está inundado – disse Polski. Encheu a boca com saliva e cuspiu-a em jacto, como resposta. – Nem lhe digo
a quanto estou a vendê-los. Dentro em breve terei de os vender a um dólar a tonelada … ou de os dar.
— Era uma boa ideia.
Irei parar a um asilo.
— Claro que sim – afirmou o pai. – E você também, senhor Fox. – Já lá estive. É educativo.
— O velho armazém frigorífico está a rebentar – continuou Polski. – Depois quero que me dê uma vista de olhos pelos
fusíveis. Não sei quanto é que eles vão trazer hoje, mas se for mais do que duas carradas, estou metido num sarilho. Já tive
semanas em que os vendi a um dólar cada cinco quilos. Este ano vai arruinar-me, estou afundado em espargos …
Continuou a lamentar-se e a cuspir, dizendo que isto e aquilo e pontapeando a terra até que, por fim, no que era quase um
grito, afirmou: – Suponho que esse copo de água já deve estar bem cozinhado! – Isso não me surpreenderia – respondeu o pai
com toda a calma.
— Então importa-se de a abrir, senhor Fox?
— Ele quer que a gente a abra – disse o pai, virando-se para mim.
— Convence-o tu, Charlie – pediu Polski, novamente irritado.
O teu pai não escuta o que eu lhe digo.
— Nada de lavrar com o meu bezerro – retorquiu o pai. Respirando fundo e dolorosamente, Polski pediu, numa voz que já
era de sofrimento:
— Vejam lá se essa coisa já derreteu!
O pai chupou o cigarro. Saboreou-o. Engoliu o fumo. Soprou e formou um anel de fumo no ar imóvel, sem vento. Era uma
roda azul, apareceram-lhe pedais, um guiador, e rolou para longe. Vimo-la afastar-se em direcção aos campos, desfazendo-se
em bocados, como uma vírgula de uma frase escrita no céu, preenchendo a pausa do meu pai com um atraso visível.
— Vamos a isso – declarou.
Abriu a porta, levantou a chapa de metal e sem se baixar e sem olhar lá para dentro, pegou no copo de água, fazendo um
floreado com o braço como se fosse um mágico. Entregou-o a Polski, que o fez saltar de mão para mão, soprando nos dedos.
— Batata quente – disse Polski. – Fria, quero dizer! – Voltou a soprar para as pontas impecáveis dos dedos. – Cozinhado
é que ele não está, isso de certeza.
— Vamos, despeje-o – pediu o pai.
Polski tentou. Virou o copo de boca para baixo e sacudiu-o.
— Não despeja. – Deu uma palmada no fundo. – Não quer sair. – Gelo – explicou o pai, e a palavra permitiu-lhe sorrir e
soltar um silvo, tudo ao mesmo tempo.
— Eh, esta é boa! – exclamou Polski impressionado, mesmo contra a sua vontade.
As tripas da «Banheira das Minhocas» continuavam a gorgolejar e a chiar suavemente, e o fumo oleoso ainda saía. Tinha
um aspecto cómico e com uma grande barriga, como um menino gordo de casaco aberto, a fumar uma beata.
Polski aqueceu o copo nas mãos, fez saltar o disco de gelo de dentro dele, e atirou-o para o meio das roseiras.. – Devia ter
calculado que era uma geleira – comentou. – Devia ter esperado isso de si.
— Mas de onde vem a electricidade? – perguntou o pai, numa voz sarcástica. – Onde está o fio de ligação?
— Disseme que trabalhava a petróleo.
— Quer dizer que consegui fazer gelo com fogo?
— Assim parece.
— E o petróleo é barato. Isto poupa energia.
— Tenho trabalho para fazer – disse Polski. – Estou enterrado em espargos até às orelhas.
— Não quer saber como ela funciona?
— Noutra altura.
— Meta a mão ali dentro. Veja que fria que está … até é capaz de lhe arrancar a pele dos dedos. Aposto que nunca viu
uma coisa assim.
— Não – confirmou Polski-, mas já tinha ouvido falar. Inventou uma coisa que já foi inventada há uns trinta anos. – Polski
começou a afastar-se. – É tal e qual como vir ter comigo com uma torradeira. «Olha, sem fios. E a torrada salta cá para fora!»
Bom … mas continua a ser uma torradeira. E isso continua a ser uma geleira. Não se pode inventar uma invenção.
— É a perfeição! – declarou o pai e Polski encolheu-se ante a palavra «pefêção». – Aperfeiçoei-a. As outras eram
pequenas. Ineficientes. Usavam líquido refrigerante de baixa potência. Não percebiam nada de líquidos refrigerantes até ontem
à tarde. Trabalhavam a gás. Não eram capazes de fazer um cubo de gelo nem que as atafulhassem de neve. Amónia e água.
Brometo de lítio. Água salgada. Mas este brinquedo – tocou-lhe com ternura-, este brinquedo utiliza uma nova fórmula de
líquido de alta expansão, amónia enriquecida e hidrogénio sob pressão. É um modelo à escala. Estou a planear fazer uma
enorme. Que pensa?
— Isso já é outra coisa – respondeu Polski. – Um constante perigo de incêndio.
— Nunca, se for ventilada. – O pai explicava, não implorava. – Nunca, se for bem vedada. Já registei a patente para estas
válvulas, não se rale com o resto, não se rale com a ideia original. Isto é … poesia.
— E um grande risco. – Polski nem sequer o escutava. – Uma geleira grande seria um constante risco de incêndio. Fumos
por todo o lado. Seria como uma fornalha de pressão. Se rebentasse, os bocados iam parar a Pittsfield. Sabe onde pode montar
uma coisa dessas? Num sítio distante, num daqueles sítios onde experimentam as bombas atómicas, onde ninguém se pode
aleijar. Isso mesmo, num sítio longe. Aqui não, onde provocará prejuízos e assustará os cavalos. Está a arriscar a vida com
uma engenhoca assim.
Endureceu a cara para o pai.
— Não há risco – disse este. – Estou a pedir-lhe para que considere o princípio da coisa. – Uma caixa de fogo que faz
gelo! Sem barulho! Sem electricidade!
— A electricidade é barata.
— Quantos anos tem, «doutor»? – perguntou o pai sorrindo para ele. Cuspindo com o lábio inferior, Polski atirou um
bocado de saliva para o chão escarrado.
— E daqui a dez anos? – perguntou o pai. – E então? Ou daqui a vinte? Pense no futuro.
— No futuro já cá não estarei.
— Aí está o epitáfio da América. É criminoso. É conversa fiada.
— Não posso ter chamas a arder por todo o lado – disse Polski.
Passo bem sem elas.
Ante isto, o pai borrifou-o de gargalhadas.
— Não passa de uma chama pequenina – comentou, como se estivesse a explicar uma vela ao Jerry, falando devagar, meio
trocista, meio professor. – Uma luz-piloto. Chegue aqui e veja-a. Mal se vê. Ora, é preciso uma chama maior para acender um
charuto de dez cêntimos.
— Não há dúvida de que é engenhosa, – respondeu Polski, olhando para o relógio enterrado nos pêlos do pulso. – Sempre
afirmei que você tem o engenho dos ianques. Mas agora não tenho tempo. Dentro de algumas horas vou estar enterrado em
espargos. Vai ser um caso sério.
— Não está interessado nela – afirmou o pai, martelando com o coto do dedo na tampa-, não é assim?
— Aposto que pensa que tem aí uma mina de ouro.
— Uma mina de ouro é só uma mina de ouro.
Polski já esmagava a gravilha do pátio. Virando-se, oscilando na gravilha, prosseguiu:
— Não é com essa engenhoca que irá ficar rico, senhor Fox.
O pai deixou que uma gargalhada lhe encurvasse a língua, mas tinha os olhos obscurecidos pela pala do boné. Ficou a ver
o Polski a afastar-se.
— Se alguma vez quiser ser rico, o que não me interessa, cultivarei espargos.
— Não enriqueceria com eles – replicou Polski sem se virar. – Acabaria por arranjar uma úlcera.
O pai enfiou os polegares nos bolsos e afastou os pés. Era uma posição de polícia.
— Vamos deixá-lo entregue à úlcera, «doutor».
— Não se vá embora zangado, senhor Fox – gritou Polski do pátio, sempre sem se virar. – Já lhe disse que é uma bela
engenhoca, mas que não me serve de nada.
Enfiou-se dentro de cada e chamou pela mulher, «Cherl», que se chamava Cheryl.
— Cultivaria espargos – disse o pai – e contrataria cinquenta selvagens imigrantes para os cortar. Era isso o que eu faria.
Tu, Charlie, terias um novo par de sapatos de ténis e o melhor fato-macaco que o dinheiro pudesse comprar. – Apagou a
chama da «Banheira das Minhocas», olhou para ela com amizade, como se fosse uma criatura viva e continuou: – Aquele peru
vesgo chamou-lhe «engenhoca».
Sorriu e o rosto radiante como que se alargou.
— Não podia pedir uma reacção melhor do que aquela. – Mas ele não gostou muito dela – disse eu.
— Estás a ser muito brando. – O pai riu-se e sublinhando as palavras, dizendo-as aos bocados, prosseguiu: – Ele odiou-a!
– Soltou um som trocista. – O desprezo dos ignorantes … a mais estúpida espécie de reacção. «É um grande risco.» Estou-lhe
grato por isso, foi o que me trouxe aqui. São estas coisas que me fazem andar para a frente, Charlie. Imagina só se ele gostasse
dela. Sim, deixava-me muito preocupado. Envergonhado de mim mesmo. Teria de voltar para a cama.
Polski abandonou a casa pela porta das traseiras, trepou para o jipe, pôs o motor em andamento e meteu a marcha atrás.
— Lá vai ele – disse o pai. – O velho João Fossão. Dêem a estes tipos um catálogo de feijões e todos eles pensam que são
pioneiros, homens da fronteira.
Polski corria apressado, aos saltos pela estrada, em direcção aos campos.
— Aquela porcaria a que ele chama jipe é que uma engenhoca afirmou o pai, apontando com o dedo cortado. – Isto é uma
criação. Não é possível comprá-la com dinheiro.
Estava tão violentamente seguro de si próprio que não havia nada que eu pudesse dizer e ele também não me perguntou.
Portanto, sem falar, carregámos a «Banheira das Minhocas» na carrinha.
— Parece um menino gordo – disse eu.
— Esta aqui é um bebé. Quando eu fizer uma grande, é isso o que lhe iremos chamar … «Menino Gordo». – Mirou a minha
cara marcada pela hera venenosa e comentou: – Eh, estás com um aspecto horrível.
— «Menino Gordo» – repetiu o pai quando nos encaminhávamos para a estrada, mastigando as palavras como se fossem
pastilha elástica. A meio do caminho olhei-o de esguelha, às escondidas, e vi-o a sorrir. Por que seria?
IV

O pai continuava a sorrir quando passámos pelo campo que tinha o espantalho e enfiámos por um caminho coberto de
ervas que dava para um maciço de pinheiros negros. Havia uma tabuleta pregada a um tronco que dizia «PROIBIDA A
ENTRADA», e para lá dela a casa no meio dos pinheiros que era conhecida pelo nome – de «Casa dos Macacos».
Já a vira de outras vezes, mas à distância. Nunca quisera chegar-me suficientemente perto para lhe espreitar o interior. De
qualquer modo, como dizia a tabuleta, era proibido. Tinha quase a certeza de que alguns dos selvagens viviam ali, porque
ouvira música de rádio a sair dela, e por vezes escutara gritos.
Outrora as tábuas tinham sido brancas mas agora estavam descoloridas e riscadas pelas intempéries. Aquela casa de
madeira tinha o ar de querer voltar a ser uma árvore, mas uma árvore petrificada. Nenhuma das janelas tinha cortinas e muitas
nem sequer vidros. A sua única protecção era dada pelas escuras árvores em volta e ostentava algumas das suas marcas de
resina. Subimos o caminho coberto de caruma e então, mais perto, verifiquei que a porta de rede estava rasgada e uma goteira
se soltara e se agitava como um catavento tonto. A calha do beiral, escorrendo de encontro à casa, deixara uma mancha
musgosa nas tábuas. Toda a casa parecia podre, destruída e cheia de fantasmas.
— Anda daí, Charlie, quero mostrar-te uma coisa.
Não podia recusar. Entrámos juntos na casa. Cheirava a suor e a feijões cozidos, a roupas sujas e a fumo de madeira. O
papel da parede despegava-se em crostas amarelas e a própria pintura estava a cair, levantando-se em bolhas, aqui e acolá.
— Dizem que esta casa é a «Casa dos Macacos» – disse eu.
— Quem é que diz isso?
— Os rapazes.
— Dava-lhes cabo do pêlo! Não quero ouvir-te chamar-lhe isso! Não havia nem cadeiras nem mesas e o primeiro quarto
era como todos os outros, colchões espalmados no chão e cobertores verdes do Exército sobre os colchões, caixas de cartão
um pouco amachucadas, empilhadas a um canto, com farrapos e meias. O restante lixo era composto por latas de sardinhas
abertas, sacos com restos de pão e garrafas vazias de leite azedo. Numa prateleira, um transístor mantinha-se inteiro porque
estava amarrado com fita adesiva. Em todo o resto da casa havia mais colchões espalmados e mais lixo, roupas velhas, pentes
e louça suja. Estava tudo arranhado e estragado como uma jaula de macacos. No entanto aquilo não era uma confusão viva,
tinha o ar de ter sido abandonado e deixado para trás, como se quem quer que fosse que ali vivera se tivesse ido embora para
sempre.
Olha para esta pobre gente – disse o pai. Pegou num cobertor miserável e atirou-o para junto da parede. – Olha o que eles
possuem.
Zangado, começou a andar de quarto em quarto, como se procurasse qualquer coisa que sabia que não estava lá. Segui-o,
mas mantive-me à distância. Agitava os braços e fazia movimentos violentos em direcção àquelas coisas imundas.
— Voltam para aqui à noite … é onde dormem.
Deu um pontapé num colchão.
— Olha só o que comem!
Pisou uma lata de sardinhas que deu um pulo de rã para o corredor.
— Que diabo, nem sequer comem os malditos espargos que colhem … Foi então que soube que eram os selvagens.
— … apesar de não os poder censurar se os roubassem. Caminhou barulhentamente para as traseiras da casa, meteu a
cabeça por uma janela e soltou uma gargalhada de tristeza …
— Tomam banho numa selha; Fazem as necessidades naquela barraca. Achas isto justo? Estou a fazer-te uma pergunta!
Admiras-te de que cheirem mal como os bodes, que vivam nesta miséria e que façam coisas de que não se pode falar, que só
os tipos esquisitos fazem?
Na verdade nada daquilo me admirava. O que me intrigava era o pai, que sempre lhes chamara selvagens, que me avisara
para me manter longe deles, e que sabia tanto a seu respeito. Guiara a direito para a casa e entrara, sem medo de que um dos
selvagens estivesse por ali a mandriar ou enrolado num cobertor, e que se atirasse ao pai e lhe cortasse o pescoço.
— Acho que não devíamos estar aqui – disselhe.
— Eles gostam de visitas, Charlie, recebem-nas bem. É um velho costume … da selva. Sê simpático para com os
estranhos, dizem, porque nunca se sabe se um dia não se será um estranho, perdido na selva, sem água, ou morrendo das
dentadas dos animais. Essa é a lei da selva … caridade. Não há aí a crueldade que as pessoas pensam que existe. Temos muita
coisa a admirar nos selvagens. Sim, eles gostam de visitas.
— Mas aqui não é selva.
— Não – respondeu o pai-, porque nenhuma selva é tão assassina e traiçoeira como esta terra. Trocaram a verdura das
árvores por esta ruína. É patético … e deixa-me muito zangado, porque acabarão por vir a ser parte do problema.
— Começara a marchar para fora da casa. – Preciso de ar – explicou.
No entanto, em vez de nos metermos na camioneta para nos irmos embora dali, descarregou a «Banheira das Minhocas», a
sua geleira. Colocou-a sobre patins e arrastámo-la para dentro de casa. O pai instalou-se no quarto das traseiras, acendeu-lhe
a mecha e colocou lá dentro uma bandeja com água.
— Quando virem este gelo vão ficar como loucos – declarou.
— Queres dizer que ma vamos dar? Então, e todo o trabalho que tiveste com ela?
— Ouviste o que disse aquele baixote do Polski. Não lhe serve de nada. Nós temos o nosso frigorífico. Esta gente vai
apreciá-la. Não lhes vai custar nada a manter e poderão guardar lá a comida e poupar dinheiro. Podem regressar dos campos e
tomar uma boa bebida fria. Sempre melhorará um pouco a desgraça desta ruína. Isso é o que interessa. – Estava ajoelhado no
chão, ajustando a chama. – Gelo é civilização.
Deu um estalo de admiração com a língua e os dentes.
— Vão ficar intrigados sobre quem a deixou aqui – disse eu.
— Não, não vão.
Abandonámos a velha casa, os seus colchões e as migalhas dos ratos e eu sentime como se tivesse sido acabado de
apresentar a uma vida selvagem. Encontrava-se muito perto da nossa bem organizada casa e, no entanto, era selvagem. Era
outra, diferente da nossa. Vazia e solitária. Assustara-me, não por ser perigosa, mas por ser tão miserável e com um aspecto
tão sem esperança. Começara mal e continuara para pior. Permaneceria assim, com todo o seu lixo, as latas vazias e as
paredes escrevinhadas, os riscos de macacos na madeira, o enferrujado balde das lavagens, o lavatório que não funcionava, o
lixo das varridelas, os sapatos retorcidos que me faziam pensar em pés também retorcidos.
— Mete medo – afirmei.
— Ainda bem que pensas assim – respondeu o pai.
Conduziu ao longo da estrada, suspirando quando metia as mudanças. – É a América – prosseguiu. – Uma desgraça. Dá-me
cabo do coração.

Depois daquilo fiquei satisfeito por chegar aos campos familiares e por ajudar o pai nas tarefas triviais e monótonas.
Suando ao calor, voltara a ter comichões por causa da hera venenosa, mas não me queixei. O pai também não falou no assunto,
tinha a certeza de que eu andara a fazer asneiras nos arbustos e aquele era o meu castigo.
Polski tinha dez ovelhas gordas e uma pequena manada de vacas. Reparámos o transformador da cerca eléctrica que as
separava e desentupimos o tubo de descarga num bebedouro.
Dantes, neste país, existiam oportunidades para um homem como eu – afirmou o pai.
Por volta do meio-dia dirigimo-nos para o grande armazém-frigorífico, sem janelas. No interior das paredes espessas
fazia frio. Havia o gaguejar de um circuito sobrecarregado, o ar mantinha-se imóvel e sentia-se o forte aroma dos espargos a
amadurecer no escuro. Os rebentos estavam amarrados em molhos de quilo e meio. Como as pontas são quebradiças e
delicadas, são difíceis de armazenar. Estavam arrumados nas prateleiras com tanto cuidado como se fossem molhos de
munições prestes a explodir. Era claro que Polski já não tinha muito espaço livre, mas o pai comentou que era espantoso que
ele armazenasse os espargos uma vez que havia uma tão grande procura.
— Ah, e olha para aquilo!
Lá no alto, pendurado num gancho, estava um casaco de visão, provavelmente da mãe Polski, posto ali no frio para o
proteger das traças. Era de um dourado-escuro e cada um dos finos pêlos brilhava quando o pai lhe apontava a lanterna
eléctrica.
O casaco levou o pai a rir-se do estado do mundo, onde havia seres humanos a dormir no chão de uma casa em ruínas, e
uma tonelada de espargos e um casaco de visão numa confortável instalação com ar condicionado, que custava uma fortuna
para arrefecer. Era um horrível gozo, afirmou. A estupidez das pessoas! Se os selvagens soubessem como estavam a ser
enganados, iriam ali, cortariam a cabeça ao Polski e dançariam em cima do casaco de peles.
Descobriu um fusível rebentado no sistema de refrigeração. Enquanto o substituía, disseme:
— O baixote tem razão. Não tem aqui um centímetro de espaço livre e ainda estão em plena colheita. Toma nota do que te
digo, o homem irá fazer-nos uma visita muito em breve. Vai ter bastante em que pensar, e não se recordará do que me disse
esta manhã. Há pessoas que nunca aprendem.
A meio da tarde trabalhávamos ao lado da estrada, escavando uma valeta que se entupira de terra durante o degelo de
Março. Estava tanto calor como no dia anterior e o pai tirara a camisa. Segurava no carrinho de mão que ele enchia, quando
ouvi vozes.
Pela estrada vinham três garotos de bicicleta, garotos de Hatfield, que voltavam a casa depois da escola. Baixei-me. Não
queria que me vissem ali, a trabalhar vestido com roupas velhas. O meu pai dobrou-se todo como um cavador. Tive vergonha
dele, que não se ralava com o que as pessoas pensavam. Por outro lado, invejei-o por ser tão livre e odiei-me por sentir
vergonha. Os garotos tocaram as campainhas das bicicletas e cantaram, para me chamarem a atenção e me fazer sentir mal.
Não sabiam que o pai passara meses a inventar uma geleira que funcionava a fogo e que naquela manhã a dera, sem mais nem
menos, e que agora pegava na picareta como qualquer trabalhador rural.
Não era capaz de olhar para a cara deles. Gritaram de novo quando passaram por nós. Pouco depois olhei para cima e vi-
os a oscilar pela estrada de terra.
O pai continuava a cavar a valeta, ou antes, a desmanchar a terra acumulada no fundo com uma pá de sua própria invenção
que se parecia com uma grande forma de sapato.
— Não te envergonhes – disseme. – Viste coisa espantosas, hoje, Charlie. E que estiveram aqueles palermas a fazer? A
cheirar cola no pátio da escola, gabando-se dos brinquedos, vendo bonecos, fazendo barulho. Ver televisão … é tudo o que
fazem na escola. Dão cabo dos olhos. Nada disso te faz falta.
Polski apareceu depois do jantar, tal como o pai previra. Jerry e as gémeas já estavam na cama e a mãe tratava-me da cara
com loção. O pai descrevia o casaco da mãe Polski pendurado no armazém-frigorífico.
— Tanta vaidade e despesa – disse. – A idiota da mulher ainda fica muito mais feia quando o usa! Com aqueles dentes e o
casaco parece-se com uma marmota maluca, capaz de nos morder uma perna se olharmos de esguelha para ela! Imagina,
assassinam e esfolam vinte belos animais para que uma mulher infeliz …
Ouvindo o jipe de Polski a chocalhar à entrada, o pai levantou-se e virou-se para mim:
— Está na hora da cama, Charlie.
A mãe levou-me para cima e disseme, quando já estávamos no meu quarto:
— Andei todo o dia preocupada contigo. Por que é que tens esse ar tão triste?
— Tenho a impressão de que nos vai acontecer qualquer coisa respondi-lhe.
— Que queres dizer?
— Qualquer coisa terrível.
— Quando somos novos, o mundo parece-nos impossível, grande e estranho, e até ameaçador. Se pensares demasiado nele
ficas preocupado.
— Mas o pai não é novo …
A mãe olhou para mim.
— … e está preocupado.
— Não – disse ela. – Mas, neste momento, tem muito em que pensar. Já o vi assim mais vezes … a matutar. Quando isso
acontece tem ideias maravilhosas. Um destes dias vai falar-nos da sua nova invenção.
— Vai acontecer-nos qualquer coisa – insisti.
— Qualquer coisa boa – declarou a mãe. – Agora, vai dormir, meu querido.
Quis rezar depois da luz apagada. Fechei os olhos com força mas a reza não saiu. Não sabia como era. Pensei «Por favor»
e foi tudo o que consegui rezar. As vozes lá em baixo, o seu ressoar, faziam com que o coração me saltasse no peito. Fui até à
porta, esgueirei-me para o patamar no cimo das escadas e ouvi a troça do meu pai.
— Deixa-me confuso, «doutor»! Fico sem saber se sou surdo ou cego! Nesta mesma manhã mostrei-lhe um modelo, a
funcionar, de uma geleira ao preço da chuva. Virou-lhe as costas e disseme que tinha de ir regar os tomates. Agora está aqui,
talvez a perder o seu programa de televisão favorito, pedindo-me que …
— Mas eu disselhe que estava interessado – afirmou Polski numa voz assustada. – Então devo ser surdo como uma porta –
respondeu o pai-, porque não ouvi nada.
— E estou interessado, agora.
— O seu interesse e mais dez cêntimos não chegam nem para eu conseguir uma chávena de café frio.
Espreitei por cima do corrimão. O pai andava de um lado para o outro, ao comprido da sala. Polski sentara-se num banco
baixo. Sentara-se como as raparigas se sentam na retrete, com os joelhos juntos e o rosto chegado para a frente.
— O armazém-frigorífico está cheio depois da colheita de hoje – disse Polski. – O que quero saber é isto: que vou eu
fazer com o que apanharem amanhã, e no dia seguinte?
— Podem continuar a rebentar com fusíveis – retorquiu o pai. Sempre servirá para ajudar a passar o tempo.
— Deve haver uma maneira de preparar o celeiro. Quero dizer, isolá-lo e instalar um sistema de arrefecimento no sítio
onde está a palha. Posso contratar os carpinteiros, mas o problema está na refrigeração. Se tratasse dela, aguentávamos até ao
fim das colheitas.
— Não percebo. Esta manhã mostrei-lhe um dispositivo refrigerador que era uma perfeição, e tudo o que senhor fez foi
afastar-se na sua carripana. Que palavra é que usou? Ah, sim, chamou-lhe engenhoca. Fiquei a coçar a cabeça! Não via
nenhuma engenhoca em lado nenhum! «Doutor …» – disse o pai com ares importantes ainda estou a coçar a cabeça de
perplexidade!
— Aquela geleira foi uma boa ideia – afirmou Polski. – Mas o que pretendo é uma coisa mais … corriqueira. O armazém-
frigorífico que me fez o ano passado estava bem para a colheita desse ano, mas este ano temos uma colheita enorme e tenho de
agir de acordo com isso. Não pense que ando à procura de soluções milagrosas …
— Isolar o celeiro não é problema – reconheceu o pai. – Pode-se encher o espaço entre as paredes com lã de vidro,
soprada por um compressor … mas há muito ar naquele celeiro. Quanto? Três mil metros cúbicos … ou mais? Será preciso
um arrefecimento de níveis múltiplos para manter uma temperatura constante, pois de outro modo estará a congelar uma parte e
a assar a outra. Ventiladores, termostatos, bobinas.
Está a falar-me de quilómetro e meio de tubos de cobre, isto já sem falar nos fios e acessórios eléctricos.
— Vê, está a compreender o meu problema.
— E nem sequer quis olhar para a minha «Banheira das Minhocas» … a geleira que lhe mostrei esta manhã.
— É demasiado pequena.
— Um modelo à escala é sempre pequeno.
— Preciso de qualquer coisa cem vezes maior.
«Quaquecosa», Polski começara a gaguejar.
— O senhor não compreende as suas aplicações.
— Não quero incêndios.
— Vai ficar falido só com as contas da electricidade. Três mil metros cúbicos? Quantos quilovátios? Vai-lhe custar uma
fortuna. – A seguir repetiu: – Uma futuna!
— Deixe de tentar poupar-me dinheiro, senhor Fox.
— Não se trata de dinheiro, o que me custa é o desperdício, «doutor». É ele que está a enviar este país para o fundo.
— Não sou eu quem dirige o país e isto não é nenhuma brincadeira. Compreendo que lhe estou a falar no assunto com
pouca antecedência, mas preciso de mais espaço para armazenagem a frio e conto consigo para mo arranjar.
— Continuo a perguntar a mim mesmo, e estou só a pensar em voz alta, entenda, continuo a perguntar a mim mesmo para
que é isso?
— Para quê? – retorquiu Polski. – Porque há demasiados espargos este ano, senhor Fox.
— Está a colhê-los muito depressa ou a vendê-los demasiado devagar?
— Nem sequer estou a vender … os outros é que o fazem. É por isso que o preço está tão baixo.
— Escute, o senhor está no negócio dos armazenistas ou no da venda? Estou a perguntar-lhe, porque não percebo nada
dessas coisas. Sou um trabalhador, não um economista.
Ainda curvado no banco, Polski virou o rosto atormentado para o pai e disse, com uma voz de desafio:
— Venderei quando os preços subirem, nunca antes. Entretanto, todos os rebentos que cortar irão para o frigorífico.
— É a coisa mais suja de que já ouvi falar – afirmou o pai.
— É o negócio.
— Então é um negócio desonesto. Está a provocar uma falta de espargos … apesar de eles não faltarem. Assim o preço
subirá … apesar de já ser um óptimo preço. Bom, não é tão mau como assaltar um banco, mas é bastante mau. Diria que está
mais ao menos ao nível do roubo das caixas de esmolas – O pai estava agora de pé junto de Polski ostentando um sorriso
horrível. – E que ganha com isso? Alguns dólares, um novo par de calças, um relógio de pulso que se acende no escuro e
talvez mais um calhambeque. Acha que vale a pena?
— Qualquer agricultor digno desse nome observa a situação do mercado – explicou Polski, juntando os joelhos.
— Há observar … e há influenciar – disse o pai, que voltou a mostrar-se ferozmente simpático. – Faça favor de estar à
vontade, «doutor». Não precisa de estar aí todo encolhido. A cadeira que está por trás de si tem um sistema hidráulico.
— Estou aqui muito bem, obrigado.
— Bom, digo-lhe isto porque o senhor se sentou em cima da minha máquina de massajar pés.
Polski pôs-se de pé num salto.
Pegando no banco mais ou menos com a forma de um sapato, o pai prosseguiu:
É terrível como as pessoas negligenciam os pés. Está a ver esta abertura? Mete-se o pé aqui dentro e agitam-se os dedos.
Isso põe a funcionar os dedos mecânicos que lá estão dentro. Por curioso que pareça, a coisa funciona. Quer prestar um grande
favor aos seus velhos e cansados pés?
Polski disse que não e encaminhou-se para a cadeira, que era parecida com a de um dentista. Sentou-se nela com muito
cuidado mas, contra a sua vontade, a cadeira inclinou-se e rodeou-o, levantou-lhe os pés do chão e virou-o na direcção do pai.
— Hidráulica – explicou o pai.
Com um ar teimoso e o queixo para a frente como se lhe fossem tirar um dente, Polski prosseguiu:
— Tenho uma quinta para tratar e algo como vinte toneladas de produto para vender. Tenho de actuar o melhor que posso.
— É simples. Venda o produto para arranjar espaço para mais. Ganha na quantidade o que perde no preço e ainda se sai
muito bem da jogada. Faz mais sentido do que estar a distorcer o mercado. Mas não, isso não lhe interessa, o senhor quer mais
… usando mão-de-obra escrava. Lucros? Não fabriquei essa cadeira nem inventei a máquina de massajar pés para ganhar
cinquenta mil por ano com elas. Fi-lo por causa do lumbago e dos pés fatigados, e se conseguir aliviar os sofrimentos de mais
alguém, pois muito bem. É assim que eu sou. Mas o senhor quer jogar com o mercado e ganhar tudo duma vez. Isso não é
negociar … é roubar.
— Não vim para aqui discutir a ética da agricultura, senhor Fox. Tenho um problema e o senhor parece ter a solução. Por
favor, acabemos com as divagações.
Polski tornara-se verde, o homem sofria. O meu pai respondeu-lhe: – O senhor mostrou-se demasiado frio para a minha
geleira. – Não me parece prática.
— Se pensa assim, então está muito afastado da realidade. É a invenção mais prática que há. Funcionará com coisa
nenhuma … não apenas a petróleo mas também a gás metano obtido de uma solução de merda de galinha, coisa que não falta
por aqui. Além disso, apesar de ter um pouco mais de tubos do que é habitual, não tem qualquer espécie de fios. – Quanto
tempo seria preciso para a montar?
— Um instantinho. Disseme que o dinheiro não é problema.
— Bom, sim, mas dentro de limites razoáveis.
— Não comece a fazer marcha atrás – disse o pai.
— Estaria interessado em instalar um refrigerador a funcionar a fogo, é isso? Para os excedentes?
O pai hesitou antes de responder. Nunca antes o vira hesitar. Devia estar a fazer cálculos.
— Estou quase tentado a fazê-lo – afirmou.
— É a sua oportunidade, senhor Fox. Fará um favor a nós dois. O pai olhou para o tecto da sala e disse:
— Vejo uma vasta instalação refrigeradora com armazéns. Tem sete ou oito níveis do tamanho de dois celeiros e mais
qualquer coisa, com as suas passarelas metálicas no interior, os reflectores e o isolamento por fora. Parece-se com uma
catedral, com uma chaminé a fazer de campanário. Que é aquela saliência no chão? Aquilo é a unidade energética, a máquina
principal, os tubos, os tanques de líquidos refrigerantes, a fonte de calor. Todos os tubos e tanques estão debaixo da terra,
protegidos com chumbo, para o caso de guerra nuclear, acidente ou actos de Deus. A chaminé tem deflectores espirais de
tubos para conservação do calor e para o dirigir de volta à fonte de energia, o próprio fogo … fazendo uma reciclagem do
calor, por assim dizer. Mas há perda de calor, há sempre, é por isso que precisamos de condutas dentro da chaminé. Sopramos
o ar quente desses tubos através de uma grelha … e aí tem a sua incubadora. Pode aproveitar esse calor para incubar os ovos,
aquecer as capoeiras dos pintos e das galinhas, que em devido tempo lhe fornecerão o combustível. Gás metano. Nada se
perde. Aí tem a sua refrigeração. Aí tem o seu gelo. Aí tem o seu aquecimento. Venda os ovos de que não necessita e coma os
restantes ao pequeno-almoço. Mantenha os seus vegetais frescos. Faça um cano para sua casa … e terá ar condicionado …
frio no Verão, quente no Inverno. Barato, fácil de operar, sem desperdícios, sem avarias e rentável. Só que tem uma coisa …
Polski rastejara para fora da cadeira hidráulica como um raccoon para fora de uma armadilha que não funcionara.
Observava o pai com uma gentil expressão esperançosa, sorrindo tristemente enquanto ele descrevera a sua visão das
instalações refrigeradoras. Numa voz incerta e limpando a garganta, perguntou:
— O que é?
— Não quero fazer-lhe nenhum favor. O senhor só quer ter isso para enganar as pessoas, fazer subir os preços e criar
escassez no mercado. Pensei que Polski ia chorar.
— Não pode obrigar-me a vender os espargos. – Polski olhou em volta como se procurasse um lugar onde cuspir, e, ainda
todo enrugado, prosseguiu: – Se eu soubesse o que fazer com eles …
— Coma-os.
— A sua conversa vai fazê-lo perder o emprego, senhor Fox.
— É melhor isso do que ser forçado a trabalhar numa coisa dessas.
— Continue … e poderei ser obrigado a mandá-lo embora.
— Tenha cuidado … – retorquiu o pai, que atravessou a sala, tirou um charuto de dentro da caixa e levou muito tempo
para o acender. Quando já o fumava olhou para o homem e continuou: – irei para onde me apreciem.
Polski virara as costas ao pai e falava para os seus próprios pés: – Não quero tornar-lhe a vida difícil.
— As pessoas que dizem isso em geral pensam o contrário. Essa frase soa-me a uma ameaça.
— Entenda-a como quiser.
— Mãe! – gritou o pai. – Ele acabou de me ameaçar!
A mãe, onde quer que estivesse, não respondeu.
— Sabia que era um erro vir aqui – disse Polski, arrastando-se muito devagar em direcção à porta.
Senti pena dele, parecia tão pequeno, com o pai a atirar-lhe fumo do charuto para cima, com as rugas de derrota nos
ombros do casaco e a pequena cabeça a passar a porta. Queria que o pai fizesse as pazes com o Polski e que as coisas
continuassem como dantes. Agora sabia que tinha de acontecer qualquer coisa.
Voltei para o quarto a gatinhar, perguntando a mim mesmo o que seria. O som de que me apercebi a seguir foi o de Polski
a pôr o jipe em andamento, logo seguido pelo resmungo do pai:
— Boa viagem! – e a seguir, num tom muito claro, como um mugido num estábulo, a voz da mãe:
— Estás louco!
— Estou feliz, mãe.
— Que queres tu agora?
— Espaço para me mexer. Acabei de o compreender …
— Por favor, Allie …
— Nunca quis isto aqui – disse o pai. – Estou farto de todas as pessoas a fingir que são o velho Dan Beavers com as suas
mocassinas, as calças de cotim e os cinturões japoneses, de todos estes falsos pioneiros, com as carroças cheias de twinkies
de pão enlatado e de queijos que se espalham como um aerossol. Passa-me aí o penico de plástico e vamos falar de auto-
suficiência!
— Não sabes o que dizes!
— Escuta … – disse o pai, mas já não consegui ouvir mais nada.
VI

Quando no dia seguinte o pai disse: «Vamos às compras», tive a certeza de que iríamos à lixeira. Muito raramente
comprávamos coisas nas lojas. Tínhamos poucas necessidades, pois cultivávamos e criávamos quase toda a nossa comida. O
trabalho mantinha-nos no «Pequeno» Polski, e havia um certo perigo em ir às lojas durante o dia, pois podíamos ser
apanhados pelos polícias ou pelos inspectores escolares, por eu não andar na escola. «Nesse caso irás para a escola», dizia o
pai, «e eu irei para o seu equivalente … a prisão. Que fizemos nós para merecermos um tal castigo?». Em segredo, eu queria
ir à escola. Sentia-me como um velho ou um excêntrico quando via as outras crianças. Também muito em segredo, preferia os
bolos das fábricas, como os Twinkies e os Devil Dogs, aos pães de banana da mãe. O pai dizia que os bolos comprados nas
lojas eram porcaria e veneno, mas pensava que a sua única objecção se devia ao facto de, nas poucas vezes em que me
apanhara a comê-los, ter de lhe explicar que os comprara com dinheiro que Polski me dera em paga de biscates. Polski
dissera-me que o pai era uma pessoa peculiar, e esse era outro segredo que tinha de guardar. Comprávamos sal, farinha de
segunda, fruta, atacadores para os sapatos e outras pequenas coisas em Hatfield, ou Florence, mas «ir às compras» em geral
significava uma visita à lixeira e aos sucateiros em volta de Northampton, onde ajudava o pai a remexer por entre os
venenosos montes de lixo em busca dos fios e do metal que utilizava nas suas invenções.
Havia gaivotas na lixeira. Eram coisas sujas e gordas que berravam e faziam o ninho no meio dos sacos de plástico cheios
de lixo e que procuravam rasgá-los. Perseguiam-se umas às outras lutando por restos, e provocavam um verdadeiro motim
quando chegava a camioneta do lixo. O pai odiava-as, chamava-lhes «devoradoras de restos». Gritavam-lhe e ele gritava-lhes
em resposta. No entanto, debatendo-se por entre os montões de sacos e de caixotes, com uma forquilha na mão, gritando para
as aves aos pulos à sua volta ou pairando por cima dele, por vezes parecia-me que tanto o pai como aquelas preguiçosas e
despudoradas gaivotas lutavam pelos mesmos restos.
— Ora aqui está um perfeito conjunto de rodas – dizia o pai, assustando as gaivotas, puxando por um velho carrinho de
bebé do meio do lixo mal cheiroso e sacudindo as cascas de laranja. As outras pessoas levavam coisas para o lixo … e o pai
tirava-as de lá e levava-as para casa. Um estúpido qualquer deitou isto fora.
Hoje, porém, num dia normal de trabalho, passámos pelas estufas e pelos jardins de rosas de Hadley, atravessámos
Northampton a toda a pressa e continuámos em direcção ao pico. A mãe seguia na cabina ao lado do pai, enquanto eu viajava
agachado na traseira, com Jerry e as gémeas.
— Vou ver as bicicletas de dez velocidades – disse Jerry.
— Podemos comprar gelados – afirmou Clover.
— Pois eu quero chocolate! – retorquiu April.
— O pai não deixa – expliquei-lhes. – E não vamos às compras, este não é o caminho.
— É, pois – afirmou Jerry. – É o atalho do pai.
Não, já estávamos longe de Northampton, no campo. Atingimos o rio Connecticut e seguimo-lo. Era largo, oleoso e menos
azul do que perto de Hatfield. Do outro lado havia edifícios de tijolo e surgiu a cidade de Springfield. Atravessámos a ponte e
tivemos de nos segurar aos lados da camioneta por causa do vento que soprava forte no meio do rio. Nele viam-se bocados de
espuma de plástico que se fizera amarela e se parecia com bocados de gordura de presunto.
Nunca antes tínhamos feitos compras em Springfield. As pessoas que andavam nos passeios pareciam sabê-lo. Olhavam
para nós, de pé nas traseiras da camioneta, agarrados ao tejadilho. Continuámos a andar até chegarmos ao largo cheio de lojas,
onde estacionámos … com as pessoas sempre a olhar. O pai saiu e disse-nos que o seguíssemos e que nos mantivéssemos
juntos. Estava bem disposto, mas assim que entrámos na primeira loja começou a praguejar.
— Tens a certeza a respeito dos chapéus? – perguntou a mãe.
— Estás a brincar? Lá faz quarenta graus à sombra. Apanharão uma insolação se não andarem com as cabeças tapadas.
Experimentámos chapéus de pescador, chapéus-de-sol e bonés de marinheiro. Os preços deixaram o pai furioso.
— Bonés de base boi serão mais do que suficientes – afirmou, comprando-nos desses.
Usando aqueles bonés, fomos atrás dele como patinhos em fila. Naquela loja vendiam de tudo, pipocas, pneus de borracha,
espingardas, torradeiras, casacos, livros, óleo para motores, palmeiras em vasos, escadas e papel para escrever. O pai pegou
numa torradeira eléctrica.
— Olhem para isto. A ligação à terra nem sequer está como deve ser! Morre-se electrocutado antes de se conseguir uma
torrada … ou ficamos nós torrados por causa da falta de um fio …
Falava alto e atraía as atenções.
— Bicloreto para as madeiras! – exclamou.
Fiquei com a ideia de que as pessoas que olhavam para nós sabiam que raramente saíamos para ir às compras. Em
público, o pai era embaraçador. Não se importava com os estranhos. Alguns dias antes, na loja de ferragens de Northampton,
dissera: «Está a trabalhar para os japoneses?» e eu tivera vontade de esconder a cabeça com vergonha. Hoje ainda estava
mais nervoso.
— Chamam a isto um abre-latas? – dizia. – Uma porcaria capaz de nos cortar um dedo ou arrancar-nos um bocado para
nos deixar a sangrar até à morte! Isto é uma arma perigosa, mãe!
Seguimos todos a monte para a secção de Campismo e Ar Livre. Aproximou-se de nós um homem em mangas de camisa,
com um rosto muito macio e o cabelo colado à cabeça. Não tinha nada o ar de um campista, mas disse «Olá» a todos nós,
piscou o olho às gémeas e comentou, tal como toda a gente fazia, a sua semelhança.
— Em que lhes posso ser útil? – perguntou, acenando com a cabeça e permitindo-me ver-lhe melhor o cabelo que estava
penteado a partir de uma orelha para cima da cabeça, em camadas muito bem arranjadas, o que fazia com que olhássemos não
para o cabelo mas para a careca que se encontrava por debaixo.
O pai disse que queria ver cantis.
Jerry formou a palavra «campismo» com os lábios, mas trocei dele, franzindo o nariz.
O homem entregou-lhe um cantil. O pai pôs-lhe um polegar em cima e disse que o cantil era tão fininho que, se lhe
apetecesse, era capaz de o achatar todo. Olhou para o cantil com atenção e riu-se muito alto.
— Feito na Formosa – comentou! – Hão-de saber muita coisa a respeito de cantis … se perderam a guerra!
— Custa apenas um dólar e quarenta e nove – disse o empregado.
— Não vale um chavo – respondeu o pai. – De qualquer modo ando à procura de coisa maior.
— Que tal estes sacos para água? – inquiriu o homem, pegando num pela ponta agitando-o no ar.
— Eu próprio podia fazer uma coisa dessas com um bocado de lona, agulha e linha. De onde é isso? Coreia! Vês, aqui está
… os tipos têm lá aquelas fábricas miseráveis e o trabalho escravo, na Coreia e na Formosa. São os pequenos coolies que
fazem isto. Levantam-se de madrugada, trabalham durante todo o dia, sem nunca apanharem um pouco de ar fresco. Estão
acorrentados às máquinas … e quase não chegam com os pés aos pedais.
Estava a dar-nos uma lição, mas o empregado escutava-o e fazia caretas. – Estão tão subalimentados que mal se aguentam
de pé. Sofrem de tracoma e raquitismo. Não sabem o que fabricam, tanto podia ser isto como tapetes para banheiras. Foi por
isso que fomos para a guerra na
Coreia do Sul, para lutarmos por indústrias de trabalho intensivo, o que quer dizer rapazinhos magrizelas a fabricarem
sacos de água e chávenas pequeninas … para nós. Não se sintam tristes. É o progresso. É para isso que servem os Orientais.
Toda a gente devia ter coolies, não é assim?
Agora, suspenso das mãos do homem, o saco para água parecia uma coisa maldita. O homem pô-lo de lado e acamou o
cabelo, enquanto ficávamos todos muito silenciosos, a mãe, o Jerry, as gémeas e eu. O pai resmungava. Eu puxara para cima o
colarinho da camisa, para esconder os efeitos da hera venenosa.
— Que vem a seguir na lista?
— Sacos de dormir – respondeu a mãe.
— Na prateleira – disse o homem e o pai encaminhou-se para lá. – Nem sequer são à prova de água. Haviam de servir
para grande coisa, no meio de uma monção.
— São para utilizar dentro de uma tenda – explicou o empregado. – E se tiver de o usar debaixo de chuva? De onde veio
isto? Do deserto de Gobi, da Mongólia, ou de outro sítio desses?
— Hong Kong – respondeu o homem.
— Não andei longe! – afirmou o pai, retorcendo-se de satisfação.
Fazem muito campismo em Hong Kong, é uma coisa que se vê logo. Olha para as costuras … desfaziam-se em dois dias.
Um simples cobertor dava melhor resultado.
— Os cobertores estão na secção dos Artigos para o Lar.
— E onde é que são feitos? No Afeganistão?
— Não sei, senhor.
— Que diabo se passa com este país? – perguntou o pai.
— É melhor do que alguns outros locais que eu poderia citar.
— E pior que muitos outros – retorquiu o pai. – Podíamos fazer disto em Chicopee e dar emprego a toda a gente. Por que é
que não o fazemos? Não gosto da ideia de saber que os magrizelas dos garotos orientais são obrigados a fazer lixo que nos é
vendido.
— Ninguém é obrigado – disse o empregado.
— Já alguma vez foi à Corei a do Sul?
— Não – respondeu o homem, assumindo a expressão encurralada que as pessoas tomavam quando falavam com o meu
pai, a expressão que Polski ostentara no rosto na noite anterior.
— Então não sabe de que é que está a falar, pois não? – insistiu o pai. – Deixe-me ver mochilas … mas se forem do Japão
pode ficar com elas.
— Estas são chinesas … da República Popular. Não lhe devem interessar.
Mostre cá-, disse o pai, que pegou na pequena mochila verde como se se tratasse de um farrapo, virando-se para Clover. –
Há alguns anos atrás, estivemos praticamente em guerra com a República Popular. Chamavamos-lhes «Chineses Vermelhos»,
«Vermelhos», «comunas» … Pergunta a quem quiseres. Agora vendem-nos mochilas … provavelmente para a próxima guerra.
Onde é que está o golpe? Está em que são mochilas de terceira qualidade, nem sequer servem para transportar sandes. Achas
que vamos ganhar essa guerra contra os chineses?
Clover tinha cinco anos de idade. Escutou o pai e a seguir coçou a barriga com dois dedos.
— Garotinha, não me interessa o que pensas … mas não vamos ganhar essa guerra.
O empregado começara a sorrir. O pai viu-o e virou-se para ele:
— Nessa altura, meu amigo, já não sorrirá. A próxima ser combatida aqui mesmo, é certo e sabido …
Era o que dissera no Inverno, naquelas mesmas palavras, mas na altura eu pensara que se tratava apenas de palavreado.
Hoje estava com a mesma disposição, quase esperava ouvi-lo dizer ao vendedor: «Vão matar-me em primeiro lugar … matam
sempre primeiro os mais espertos.» Empurrou a mochila para um lado.
— Vende qualquer coisa parecida com bússolas, ou terei de as procurar noutro lado?
— Temos uma linha completa de bússolas – disso o homem. Alisou a mochila com a palma da mão e dobrou-a como se
fosse uma peça de roupa saída da lavandaria. A seguir guardou-a e colocou uma caixa em cima do balcão. – Esta é uma das
melhores – afirmou, tirando uma bússola da caixa. – Tem todas as características dos modelos mais caros, mas custa apenas
dois dólares e vinte e cinco.
— Deve ser uma bússola chinesa – comentou o pai. – Aponta sempre para o Leste.
— Uma das características é a estabilidade. Quando a soltamos … assim … – carregou numa mola da caixa – a agulha fica
livre. Veja, para ali é o Norte, na direcção da Automotive. Na realidade, esta bússola é fabricada aqui mesmo no
Massachusetts.
— Então embrulhe-a – respondeu o pai. – Acabou de fazer uma venda. – Passou o braço em volta da mãe. – Que mais há
nessa lista?
— Tecidos de algodão, agulhas e linha, rede para mosquiteiros … – Tecidos – disse o homem. – Na secção seguinte.
Muito bom dia.
— Tínhamos feito melhor em ir à lixeira – comentou o pai, quando nos afastámos. Na secção seguinte pegou num bocado
de tecido que parecia um véu de noiva, e afirmou: – É isto mesmo.
— Setenta e nove o metro – disse a empregada, fazendo estalar a tesoura. Era velha e tremia e o modo como tesourava o ar
fazia-a parecer diabólica.
— Está bem.
— Quantos metros? – Clique-clique, fez a tesoura. Estava impaciente.
Tinha cabelos como teias da aranha, caídos sobre o rosto e quase um bigode.
— Levamos a peça inteira – disse o pai. – Se realmente tem vontade de ser útil – acrescentou, agarrando um punhado de
cabelos de Jerry-, corte o cabelo a este garoto. Acabe-lhe Com este ar infeliz.
Porém, a velhota não sorriu porque tinha de desenrolar toda a peça de rede mosquiteira para a poder medir e calcular o
preço.
Partimos em busca de outras coisas. Nunca antes vira os meus pais a comprar tanta coisa numa só manhã, nem sequer pelo
Natal. Deixámos aquela loja e fomos para a Sears e a seguir para o Armazém do Exército e da Marinha. Comprámos lanternas
e cantis feitos na América, mochilas, facas-de-mato, sacos de dormir impermeáveis e sapatos novos para todos nós. Gastar o
dinheiro deixava o pai furioso. Questionou com os empregados e queixou-se de que estava a ser roubado.
— Posso permitir-me ser roubado – declarou-, mas, então, e os pobres diabos que não se podem dar a esse luxo?
Não fazia ideia nenhuma das razões que o levavam a comprar aqueles artigos e era embaraçoso ouvi-lo protestar. Até a
mãe começava a ficar zangada.
No drugstore, enchendo um cesto de arame de coisas como gaze e pomadas («Para a nossa farmácia de primeiros-
socorros»), meteu-se a comparar os preços das aspirinas e dirigiu-se para a estante das revistas em busca de um exemplar da
Scientific American. Ficou muito aborrecido ao vê-la misturada com revistas com miúdas e comentou:
— Isto é um insulto. Olha – prosseguiu, apontando para a estante-, metade daquilo é pornografia. Há homens casados que
nunca viram coisas assim. Algumas até são novidade para os estudantes de Medicina! Quem pode acreditar numa coisa
destas? Os garotos vêm aqui comprar chocolates e é com isto que deparam. No entanto, se perguntarmos a qualquer professor
o que pensa do assunto, é capaz de nos responder que é isto mesmo o que os médicos recomendam. Charlie, para onde é que
estás a olhar?
Estava a olhar para revista, com o traseiro premiada numa feira.
— Estás a lançar olhares cobiçosos para um nu – disse, antes de lhe poder responder. – Olha-o bem … é o último que
verás. Mãe, há gente que se enterra neste lixo, fingindo que não tem nada de mal. A mim dá-me vontade de vomitar. Fico como
louco.
— Suponho que gostarias que o proibissem – respondeu a mãe.
— Proibir? Não, acredito na liberdade de expressão. Mas será necessário ter isto misturado com as histórias aos
quadradinhos e com os chocolates? Ofende-me! E, de qualquer modo … porque não proibi-los? É lixo, menospreza o corpo
humano, retrata as pessoas como se fossem postas de carne. Sim, libertemo-nos destas revistas e das de quadradinhos … são
todas prejudiciais. Que tal vai o negócio?
Encontrava-se agora ao balcão, falando com a caixa. – Vai bem – disse a mulher – não me posso queixar.
— Não me surpreende – retorquiu o pai-, deve fazer uma bela maquia em pornografia. Dizem que a pornografia a retalho é
a nova grande indústria, a de maior crescimento … isso e outras porcarias. Deve dar uma grande satisfação ganhar muitos
dólares dessa maneira …
— Limito-me a trabalhar aqui – afirmou a mulher, carregando nos botões da caixa registadora.
— Oh, claro – respondeu o pai. – Por que é que não as há-de vender? É um país livre, e a senhora não acredita em
censuras. Uma vez leu um livro, não foi? Era verde? Ou era azul?
Acossada, era o que a mulher parecia. Tal como um pequeno coelho a mordiscar o cheiro do cano de uma caçadeira.
O pai pagou-lhe os artigos para a farmácia de primeiros-socorros e continuou:
— Esqueceu-se de nos dizer «Muito bom dia».
— Nunca desistes, pois não? – perguntou a mãe já na rua.
— Mãe, este país está perdido. Ninguém se rala, o que é o pior de tudo. É a atitude das pessoas … «Limito-me a trabalhar
aqui …», não foi o que a ouviste dizer? Vendem porcaria, compram porcaria, comem porcaria …
— Queremos gelados – disse Clover.
— Estás a ver? Têm fome de porcaria … os nossos próprios filhos.
A culpa é nossa. Muito bem, venham comigo, garotos!
Levou-nos ao supermercado A&P e logo à entrada, na secção das frutas, pegou num cacho de bananas.
— Dois dólares! – exclamou. Fez o mesmo a um par de toranjas embrulhadas em celofane: – Noventa e cinco cêntimos! –
E um ananás: – Três dólares! – A seguir foram as laranjas: – Trinta e nove cêntimos cada! – Parecia o pregoeiro de um leilão,
gritando os preços enquanto seguia ao longo do balcão das frutas frescas.
— Não vamos comprar nada? – perguntei, quando saímos de mãos vazias.
— Não. Só quero que se recordem destes preços. Três dólares por um ananás. Preferia ter de comer minhocas. Podem-se
comer minhocas, sabem? São só proteínas.
Meteu-se na cabina da camioneta com a mãe e nós trepámos para a traseira. Ouvia a voz dele a vibrar no vidro de trás,
enquanto atravessávamos Springfield. Ainda falava quando parámos na estrada para meter gasolina. Estávamos à vista do rio,
cheio e rápido, com as árvores prenhes de rebentos novos e suspensas sobre ele, mas, no entanto, cinzento como a água de um
banho. Nos despejos das fábricas oscilavam, como pequenas ondas, as barrigas brancas dos peixes mortos.
A porta da cabina bateu com força.
— Um dólar e dez o galão – dizia o pai para o espantado empregado das bombas. O homem tinha um pingo húmido em
cada narina e uma etiqueta na camisa que dizia «Fred». – Duplicou de preço num ano.
Portanto, passa a ser dois e vinte no próximo ano e, provavelmente, cinco no ano seguinte … se tivermos sorte. É
maravilhoso! Sabe quanto custa a produção de um barril de petróleo? Quinze dólares … é tudo! Quantos galões há num barril?
Trinta e cinco? Quarenta? Faça a conta. Oh, esqueci-me, você só trabalha aqui.
— Não me atire as culpas … culpe o administrador – disse o homem, que continuou a bombear gasolina para o nosso
depósito.
— Fred, eu não culpo o administrador, que faz o melhor que pode. Culpo as companhias petrolíferas, a indústria
automóvel, os grandes negócios. Os Árabes, os Palestinianos. Sabes o que é que estes, na verdade, são? Filisteus – Uma bela
palavra. É melhor ires ver o que significa. Além disso, Fred, culpo-me a mim mesmo por não ter imaginado um método para
uma mais barata extracção de petróleo das argilas xistosas. Temos triliões de toneladas de argilas petrolíferas neste país. –
Não há escolha – comentou Fred, aspirando as duas gotas para dentro do nariz. – Temos de continuar apagar.
— Eu tenho escolha – afirmou o pai. – Não vou continuar a pagar.
— São oito dólares e quarenta cêntimos – declarou Fred.
Por momentos pensei que o pai iria recusar-se a pagar, mas puxou pela carteira e contou o dinheiro que meteu na mão suja
de Fred, enquanto o observávamos da traseira da camioneta.
— Não senhor, não vou continuar a pagar – continuou o pai. Deixa-me fazer-te uma pergunta. Já alguma vez imaginaste, ao
ver como as coisas estão agora, o que irá acontecer mais tarde?
— Às vezes. Desculpe, mas estou muito ocupado. – Semicerrou os olhos, encolheu a cabeça entre os ombros e afastou-se,
acossado.
— Pergunto isso a mim mesmo durante todo o tempo. E digo a mim próprio: «As coisas não podem continuar assim. Um
dólar só vale vinte cêntimos.»
— É ainda pior em Nova Jérsia – disse Fred. – Tenho lá um primo.
Desde Janeiro que estão a racionar a gasolina.
— Há um mundo inteiro aí fora! – gritou o pai, apontando com o dedo cortado.
O homem afastou-se ainda mais, assustado pelo dedo.
— Parte desse mundo ainda está vazio – prosseguiu o pai. – A maior parte dele desabitado. Comes espargos?
— Como?
— Sabes por que é que os espargos são tão caros … e, no fim de contas, todos os outros vegetais? Porque os agricultores
amontoam a produção até que os preços subam. Só então os põem no mercado, só quando sabem que o consumidor não tem
outro remédio senão pagar. Podiam vendê-los por metade do preço e mesmo assim ainda ficavam ricos. Não sabias disso,
pois não? Os tipos que os cortam ganham um dólar por hora e são trabalhadores não sindicalizados, apenas selvagens que
ainda há pouco andavam a atirar lanças uns aos outros. Os espargos não custam nada a cultivar, Deus faz a maior parte do
trabalho. Da próxima vez que comeres espargos lembra-te do que acabei de te dizer. As companhias petrolíferas fazem o
mesmo … armazenam a produção até que os preços subam. Trigo, cevada, aveia? Damo-las aos Russos para que os preços se
mantenham altos … e era à mesma uma coisa muito fácil transformá-los em álcool para combustível. Entretanto, paga-se,
paga-se, paga-se, e obriga-se os pequenos core anos a fazerem-nos sacos de dormir e equipa-se o Exército com mochilas
chinesas … e ninguém pergunta onde …
Ante a referência às mochilas chinesas, Fred declarou:
— Eh, tenho clientes à espera …
— Não te prendas comigo, Fred – disse o pai, sacudindo-lhe a mão.
— Lembra-te apenas do que te disse.
Já na estrada, enfiou a cabeça pela janela e perguntou-nos:
— Acham que foi uma boa ensinadela? Claro que foi!
Havia rebentos nalgumas árvores, pequenas e pálidas folhas noutras, e no ar pairava um doce suspiro de Primavera. As
vacas permaneciam nalgumas pastagens, tão imóveis como figurinhas, e no declive que dava para a estrada viam-se pequenas
e arredondadas macieiras cobertas pela espuma branca das suas flores. Percebia, pela maneira como o pai conduzia; que
ainda ia zangado, mas no meio de toda aquela beleza, as delicadas árvores no ar perfumado de flores, não conseguia perceber
o que é que estava errado nem por que é que gritava. Enfiou por uma estrada secundária pouco antes de entrarmos em
Northampton. Aqui havia alguns maciços de flores selvagens, amarelas, bem como a brilhante cor vermelha de um cardeal,
como um coração a bater entre as costelas de arbustos.
— Quando formos acampar – disse Jerry-, terei uma tenda só para mim e não vos deixarei lá entrar.
— O pai não comprou nenhuma tenda – respondi-lhe.
— Eu faço um telheiro – retorquiu – e não vos deixo entrar.
— Também vou acampar – declarou Clover.
— Não vais gostar de acampar – disse Jerry. – Vais chorar e a April também.
— Não me parece que vamos acampar – insisti.
— Então para que são todas essas coisas? – perguntou Jerry. Estávamos agachados na traseira da camioneta, no meio das
caixas e dos sacos de papel. Onde é que vamos?
— Vamos para longe daqui – retorquiu-lhe eu e depois de lhe responder, acreditei que era verdade.
— Gosto de estar aqui – afirmou April. – Não me quero ir embora.
O Verão é a minha estação favorita.
— O Charlie não sabe nada – prosseguiu Jerry. – É burro, foi por isso que se deixou apanhar pelas heras venenosas.
— Eu vi-o a coçar-se – troçou Clover.
— Parece uma doença – continuou April. – Vai para longe de mim, não quero apanhar a tua doença!
Detestava ter de continuar ali sentado no meio daquelas crianças parvas e estúpidas, e parecia-me que, com o pai a
conduzir como um louco através daqueles campos e colinas maravilhosas e pelos pomares com um ar tão novo que as flores
não haviam perdido uma única pétala, acabaríamos por ir esbarrar num muro de tijolo. Aguardava qualquer coisa repentina e
dolorosa, porque nos últimos dias tudo fora tão pouco habitual. Os garotos não sabiam disso, mas eu estivera com o pai,
ouvira-o e vira coisas que não se encaixavam no que conhecia. Mesmo coisas familiares como aquele espantalho que havia
sido erguido como se de um demónio se tratasse e que me enchera de terror.
— Vai acontecer-nos qualquer coisa – declarei. – Fazes-me sentir esquisita – disse Clover.
Não falei no que me ocorrera quando o pai andava nas compras em Springfield … que o pai era um homem desapontado.
Estava zangado e desgostado. Mas se pretendia fazer qualquer coisa de drástico, não se esqueceria de cuidar de nós. Fazíamos
sempre parte dos seus planos.
Quando chegámos à cidade de Florence, parou ao lado da estrada e gritou-me:
— Charlie, vem comigo. Os outros ficam aí.
Havíamos estado ali há cerca de um mês, comprando sementes.
Hoje voltámos à mesma loja de sementes, seca e cheia de teias de aranha. Cheirava a sacos de serapilheira. A poeira das
sementes e de coisas secas irritou-me a pele inflamada e provocou-me comichões.
— Você, outra vez! – disse uma voz por detrás de uma fila de sacas gordas. O homem apareceu, sacudindo poeira do
avental. Tinha profundas rugas no rosto e olhou directamente para as minhas marcas de hera venenosa.
— Senhor Sullivan – disselhe o pai, entregando-lhe um bocado de papel-, preciso de duzentos quilos de cada uma dessas
coisas. Sementes híbridas, as de maior produção que tenha, e se já estiverem tratadas contra o míldio, pois tanto melhor.
Quero-as seladas em sacos à prova de água, dos mais resistentes. Preciso delas hoje, quer dizer, agora.
— Anda muito atarefado, senhor Fox. – O homem tirou um par de óculos da algibeira do avental, soprou nas lentes,
encaixou-os sobre as orelhas e examinou o pedaço de papel. – Posso tratar disto. – Olhou para o pai por cima das lentes. –
Mas o senhor e Polski vão ter uma boa trabalheira se quiserem lançar à terra todas estas sementes. É um pouco tarde, não é?
— É Inverno na Austrália – respondeu o pai. – Estão a colher abóboras em Moçambique e a apanhar folhas na Patagónia.
Na China, neste momento, estão a enfiar os pijamas.
— Não sabia que os chineses usavam pijamas.
— É a única coisa que usam – retorquiu o pai. – Nas Honduras ainda estão a lavrar.
— Onde é isso?
O pai ignorou-o, escolhia pacotes de sementes de flores de uma prateleira.
— Ipomeias – comentou. Estas flores adoram o sol e farão com que me recorde de Dogtown.
Com os sacos de sementes, as caixas e embrulhos de equipamento de campismo não restava muito espaço para nós,
garotos, na traseira da camioneta. Já estava com medo de todo o trabalho que iria ter para descarregar tudo aquilo, mas
quando chegámos a casa o pai disseme: – Deixa tudo onde está. Vou colocar-lhe um oleado por cima, não vá dar-se o caso de
chover.
— Pai, vamos a algum lado? – perguntou Clover. – Claro que vamos, boneca.
— Acampar? – inquiriu Jerry.
— Mais ou menos.
— Então por que é que não fazemos as malas? – quis saber April. – Lá porque não estamos a fazer as malas, isso não quer
dizer que não vamos para parte nenhuma. Já ouviram falar em viajar sem muitas coisas atrás de nós? Já alguma vez ouviram
falar em abandonar tudo e partir?
Estava na cozinha com a mãe, escutando a conversa.
— Mãe, de que está o pai a falar? Para onde é que vamos? Aproximou-se de mim e apertou-me a cabeça de encontro ao
peito do avental.
— Pobre Charlie – disse. – Quando andas a matutar em qualquer coisa, pareces um velhote pequenino. Não te preocupes,
tudo irá correr bem.
— Mas para onde vamos? – insisti.
— O pai no-lo dirá quando estiver preparado para o fazer.
A mãe não fazia ideia nenhuma! Sabia tanto como nós. Sentime muito chegado a ela naquele momento e havia um soluto de
amor e tristeza no meu sangue. No entanto, havia também mais qualquer coisa, porque a mãe estava perfeitamente calma. A sua
lealdade para com o pai deu-me forças. Apesar de não afugentar a minha tristeza, a sua crença fez-me acreditar e ajudou-me a
partilhar a sua paciência. No entanto, lamentava-a, porque me lamentava a mim mesmo por não saber mais do que sabia.
Durante a tarde, o pai pareceu descontraído e não mostrou tenção de trabalhar. Passou duas horas ao telefone, uma coisa
muito rara, não por causa das perguntas que fazia mas sim por causa do tempo gasto a fazê-las.
— Estou a falar de Hatfield, Massachusetts! – disse para o telefone, como se estivesse a pedir socorro.
Num dia normal estaríamos na camioneta, dando a volta à quinta, mas naquela tarde ficámos livres. Disse-nos para irmos
brincar com as bicicletas e quando largou o telefone («Estamos com sorte!»), dirigiu-se para a oficina e começou a juntar as
suas ferramentas, assobiando durante todo o tempo.
Foi para casa cerca das quatro horas. Saiu de lá pouco depois com um sobrescrito na mão. Continuava a assobiar e
disseme para o levar ao Polski.
Quando lá cheguei o Polski, de luvas de borracha, lavava o jipe. – A tua inflamação está com melhor aspecto – disse. –
Que me trazes aí?
Entreguei-lhe a carta. Fechou a torneira da mangueira e virou-se para mim:
— Queria dar-te vinte e cinco cêntimos para me lavares o jipe, mas não te consegui ver durante toda a manhã.
Rasgou o sobrescrito e segurou a carta a todo o comprimento do braço para poder ler. Nela viam-se os ousados arcos da
bela escrita do meu pai … e era uma mensagem curta. Magoava-me saber que, por não me deixar ir à escola, me impedia de
aprender a escrever como ele. Sabia que aprendera na escola aquela escrita elegante e cada vez que a via sentia-me fraco e
estúpido.
Polski começara a cuspir e a suspirar:
— Ora esta! – E acrescentou: – Então é assim, não é?
Tinha a cara cinzenta como um bocado de carne velha. Queria ir-me embora mas não me deixou.
— Charlie, anda cá, chega aqui. Tenho uma coisa para te dizer.
Queres um bolinho? E que tal um copo de leite?
Disse que estava bem, apesar de ter preferido os vinte e cinco cêntimos pela lavagem do jipe ou autorização para me ir
embora, porque as amizades do Polski, tal como as do pai, incluíam sempre um sermão. Dirigimo-nos para o pátio. Sentou-me
numa cadeira de baloiço e acrescentou:
— Volto já.
Olhei através dos campos de espargos e vi, na dourada luz da tarde, o rio e as árvores. A nossa própria casa parecia
pequena e solene no seu rectângulo de horta. Tinha um telhado dourado e o do pátio era como uma sobrancelha, enquanto a
pintura era branca como o sal.
Polski apareceu com um copo de leite e um prato de biscoitos de chocolate. Bebi uns goles de leite e peguei um biscoito.
— Tira outro – disseme. – Come os que quiseres.
Fiquei logo a saber que vinha ali um sermão.
Ficou a ver-me comer dois biscoitos. Parecia sorrir ao ver a maneira como eu os mastigava e fiquei com a impressão que
o barulho das mastigadelas me saía pelas orelhas.
— Tenho andado com vontade de te dizer uma coisa, Charlie. Calou-se e sentou mais perto de mim, na cadeira, tão perto
que tive de pousar o copo de leite no chão. – O teu pai pensa que sou parvo.
Não disse uma palavra, o que ele estava a dizer era uma meia verdade e a verdade completa era muito pior.
Acenou com a cabeça ante o meu silêncio, considerando-o como um «sim», fixou a boca numa expressão de aviso, com
uma forma parecida com a de um sorriso, e continuou:
— Muito antes de teres nascido, no Massachusetts havia o hábito de enforcar os assassinos condenados. Parece uma coisa
horrível mas a maioria deles merecia-o. Andava por aqui um homem chamado Mooney, o Mooney «Aranha», era assim que
lhe chamavam e calculo que percebes porquê …
Não fazia ideia nenhuma, mas a imagem que agora tinha na mente era a de um homem peludo a gatinhar pelo chão, com
enormes olhos negros muito salientes. Polski continuava a falar:
— … vivia com o pai. Nunca foi à escola. Não era muito mais velho do que tu quando começou a roubar, ao princípio
coisas pequenas e sem valor, depois objectos maiores. Habituou-se a isso e tornou-se num ladrão. Já te disse que o pai era um
bocado anormal da cabeça? Bom, pois era. Completamente avariado. Sofrera um choque provocado por uma explosão de
granada, dizia-se. Se lhe gritássemos ou fizéssemos um grande barulho, caía no meio do chão. Deixava-se cair como uma
pedra. Além disso, tinha montes de ideias malucas. Que pai, hein? Quando o Mooney «Aranha» andava pelos vinte anos de
idade, matou um homem. Não se limitou a matá-lo, cortou-lhe a, garganta com uma navalha de barbear. Quase arrancou a
cabeça ao tipo, que era de cor, e deixou-a pendurada apenas por um bocadinho de pele. A Polícia apanhou-o com facilidade,
sabiam onde o procurar! Em casa do pai, pois onde haveria de ser? Mooney foi condenado à morte por enforcamento.
De repente Polski olhou para cima e disse:
— Aquilo pode ser um bocado de chuva que vem aí, na nossa direcção. Ficou numa total imobilidade, olhando para o
espaço durante quase um minuto, antes de continuar a história. Agora olhava para a nossa casa, e a casa parecia devolver-lhe
o olhar.
— No dia do enforcamento, amarraram as mãos de Mooney e conduziram-no para o pátio da prisão. Isto foi na velha
prisão de Charles Street, em Boston. Eram seis da manhã. Sabes como nos sentimos tão abatidos, às seis da manhã? Bem, era
assim que o Mooney se sentia, ou era ainda pior porque sabia que dentro de poucos minutos estaria a oscilar na corda.
Obrigaram-no a caminhar para o cadafalso. Parou ao fundo das escadas e declarou: «Quero dizer uma coisa ao meu pai.»
«Sim, senhor.» – Polski virou para mim os olhos que pareciam búzios. – O pai estava a assistir a tudo. Era uma espécie de
testemunha … o familiar mais próximo, sabes? Mooney disse: «Tragam-no aqui, quero dizer-lhe uma coisa.» Tiveram de lhe
conceder aquele último pedido. Fosse o que fosse que um condenado pedisse, tinham de lho conceder. Se pedisse torta de
morangos e fosse Janeiro, tinham de lhe arranjar uma fatia, nem que tivessem de a mandar vir da Florida. Mooney pediu o pai.
O pai aproximou-se. Mooney olhou para ele e disse: «Chega-te um pouco mais.» O pai aproximou-se mais uns passos. «Quero
dizer-te uma coisa ao ouvido», insistiu Mooney. O pai chegou-se mesmo junto dele, Mooney inclinou-se e colocou a cabeça
junto da do pai tal como se faz quando se quer contar um segredo a alguém. Então, de repente, o pai soltou um grito capaz de
acordar os mortos, e recuou a cambalear, agarrado à cabeça e ainda a gritar.
Polski deu-me tempo para meditar naquilo, apesar de eu me ter preparado para o ouvir gritar, para ficar a saber como fora
o som do grito. – E o que é que o filho lhe disse? – perguntei.
— Nada.
— Mas então por que é que o pai gritou?
Polski passou com a língua por cima dos dentes.
— Porque Mooney lhe arrancou a orelha com uma dentada! Ainda a tinha na boca. Cuspiu-a e depois declarou: «Isto foi
por teres feito de mim aquilo que sou.»
Vi os lábios húmidos de Mooney «Aranha», o sangue no queixo, a pequena orelha enrugada, caída no chão.
— Arrancou a orelha ao velho – insistiu Polski, levantando-se. – «Isto foi por teres feito de mim aquilo que sou.»
Permaneci sentado na cadeira de baloiço. Polski terminara mas eu queria mais. Queria uma conclusão … mas a história
acabava ali. Fiquei com a imagem do velho agarrado à cabeça, inclinado, com Mooney parado nos degraus da forca e a orelha
cinzenta caída no chão como uma folha de cartilagem murcha.
— O teu pai é o homem mais obnóxio que conheço – disse Polski. – Pertence à pior espécie de chatos … um tipo que julga
que sabe tudo e que por vezes tem razão.
Então, agitando toda a serradura que parecia cobri-lo, acrescentou:
— Cheguei à conclusão de que é perigoso. Diz-lhe isso, Charlie.
Diz-lhe que é um homem perigoso, e que um dia destes ainda acabará por vos matar a todos. Diz-lhe que fui eu quem o
afirmei. Agora … acaba de beber esse leite e marcha para casa!
O pai estava sentado na cadeira hidráulica quando cheguei a casa. Fumava um charuto. Por cima do seu rosto sorridente
pairava uma nuvem de fumo que era uma nuvem de satisfação. Agitou o fumo com a mão.
— Que disse ele?
— Nada.
O pai continuava a sorrir. Abanou a cabeça.
— A sério – insisti.
— Estás a mentir – afirmou baixinho. – Está bem. Mas quem é que estás a tentar proteger? Ele ou eu?
Fiquei com a cara muito quente e olhei para o chão.
— Dentro de vinte e quatro horas nada disso terá qualquer importância – declarou o pai.
VII

A última coisa que vi quando nos afastámos da casa foi a grande quantidade de fitas vermelhas amarradas aos ramos mais
baixos das nossas árvores. Pendiam moles, no orvalho da manhã. Passava uma hora depois do nascer do Sol. Tudo tinha um ar
macio e cinzento sob a fraca mas quente luz, excepto aquelas fitas vermelhas. Tinham sido penduradas ali durante a noite pelos
selvagens.
Estávamos sentados à mesa do jantar, ouvimos vozes e o arrastar de pés nas ervas altas. O pai disse «Olá» e foi à porta.
Quando acendeu a luz exterior vi mais de uma dúzia de rostos negros amontoados à entrada. Pensei para mim: vieram buscá-
lo, vão arrastá-lo daqui para fora.
— São os homens, mãe – disse ele, não lhes chamando selvagens. – Escolheram uma boa altura, não há dúvida! –
respondeu ela.
O pai virou-se outra vez para eles e fez-lhes sinal para entrarem. O primeiro, que era alto e que depois verifiquei ser o
mais preto de todos, avançou com um ar desajeitado, sorrindo e trazendo uma catana. «Oh, meu Deus!», exclamei para dentro
de mim mesmo. Trazia-a com um ar muito à vontade, como se fosse uma simples chave-inglesa. Se lhe apetecesse podia
levantá-la e cortar o pai em duas metades. Os restantes seguiram-no, deslizando com pés de gato, apesar de terem enormes
sapatos. Usavam camisas brancas, com remendos feitos com bocados ainda mais brancos, mas muito limpas e passadas.
Murmuravam, riam e encheram a sala com o que eu sabia que era o cheiro a cão da sua própria casa, cheiro a suor, caganitas
de ratos e óleo. As gémeas e Jerry gaguejaram para eles, pois estavam assustados e Jerry quase vomitou o jantar por causa do
cheiro.
No entanto, também os homens, incluindo o que trazia a catana, pareciam um pouco assustados. Os seus rostos eram
máscaras retorcidas e marcadas por equimoses, e os cabelos tão negros e oleosos como a cauda de um rato almiscarado, ou
então em cachos de apertados caracóis que pareciam o recheio de um colchão rebentado. Na sua maioria eram índios escuros
com narizes de falcão, mas os restantes eram pretos ou quase, de longas mãos pendentes. Alguns tinham rostos tão pretos que
não conseguia distinguir-lhes os narizes ou as faces. Olhavam para nós, em volta da sala, como se nunca antes tivessem
entrado numa casa decente e procurassem decidir se a deveriam destruir ou ajoelharam-se para uivar. O silêncio e a confusão
fervilhavam na sala como uma fúria.
O pai agarrou o grandalhão pelo ombro e declarou: – Que querem vocês, seus desordeiros?
Os homens riram-se como crianças e agora eu via que olhavam para o pai com um ar obediente. Os seus rostos brilhavam
de admiração e gratidão. Quando percebi que estávamos a salvo, os homens pareceram-me menos feios e aloucados.
— Este é senhor Semper – disse o Pai. Serviu-se do aperto de mão para puxar para a frente o gigantesco homem. – Fala
perfeitamente o inglês, não é, senhor Semper?
— Não – respondeu o Sr. Semper num queixume, olhando para a mãe com um ar de desespero.
Eu conhecia aquele Semper. Fora a cara dele que eu vira a atravessar os campos à meia-noite. Transportara nos braços o
espantalho. Agora reparava que tinha uma cicatriz junto da boca. Ainda bem que não vira a cicatriz naquele noite …
— Vê se encontras por aí cerveja, mãe. Estes cavalheiros estão com sede.
Pouco depois cada um daqueles homens estava agarrado a uma garrafa de cerveja. O Sr. Semper puxou o queixo para a
frente e arrancou a cápsula com os molares. Os restantes fizeram o mesmo e cuspiram as cápsulas. Tomaram uns
envergonhados goles de cerveja e não tiraram os olhos de cima do pai.
— Que tens tu para mim, irmão? – perguntou o pai.
Equilibrando a catana na palma da mão, o Sr. Semper respondeu: – Isto.
— É uma beleza! – comentou o pai, experimentando a lâmina com o polegar. – Até me podia barbear com ela!
O Sr. Semper começou a falar numa rápida algaraviada.
O pai compreendia-o! Virou-se para nós e disse:
— Estão a agradecer-nos a «Banheira das Minhocas». Não vos disse que eram civilizados? Vejam, são uns verdadeiros
cavalheiros – acrescentou virando-se para os homens e pronunciando qualquer coisa na língua deles.
O Sr. Semper soltou uma gargalhada que era como um grito. Tinha umas gengivas maravilhosamente moldadas, como cera
macia a envolver as raízes dos dentes. Mirava o pai com olhos fluidos e meio fechados, e quando o pai passou em volta uma
tigela cheia de amendoins, o Sr. Semper acenou com a cabeça e abriu os lábios para murmurar agradecimentos.
O que mais me admirava era o facto de aquela multidão de homens se encontrar na nossa casa. Durante meses vira-os a
atravessarem os campos em silêncio, primeiro plantando e mais tarde, quando a colheita de espargos já estava madura,
debruçados sobre eles a cortarem-nos. Tinha a certeza de que eram estes os homens que vira naquela noite transportando os
archotes, durante a cerimónia do espantalho. Os homens tinham-me parecido selvagens, a casa onde viviam metera-me medo
por causa do cheiro, os rostos haviam-me parecido inchados e cruéis. Porém, ali estavam eles, quinze dos homens mais
estranhos em que eu jamais pusera os olhos. No entanto, assim de perto, não tinham ar de selvagens. Pareciam pobres e
obedientes. Os remendos das camisas estavam de acordo com as equimoses nas caras, as mãos estavam estaladas do trabalho,
tinham pó nos cabelos. Os grandes narizes partidos faziam com que os ombros parecessem inclinados, e as calças
esfarrapadas davam-lhe um aspecto … não perigoso como esperara, mas sim fraco.
— Eles querem conhecer-te – disse o pai.
Apresentou-nos a todos, as gémeas, o Jerry e eu, e trocámos apertos de mão com toda a gente. Tinha as palmas das mãos
estaladas e húmidas, e a pele era escamosa. As unhas eram amarelas. As suas mãos pareciam patas de galinha e depois vi que
a minha mão ficara com cheiro.
— Precavi-me com a compra de um bom mapa – disse o pai, abrindo-o e alisando-o por debaixo de um candeeiro. Os
homens agitaram-se para olhar para ele. – Um mapa é tão bom como um livro … bom, na verdade, até é melhor. Há meses que
ando a estudar este. Sei tudo o que preciso de saber. Vejam como aquilo no meio está em branco … não tem estradas, não tem
cidades, não tem nomes. Outrora a América também foi assim!
— Muita água aí – disse o Sr. Semper, percorrendo os rios azuis com o dedo.
O mapa mostrava uma saliência de território, o volume de uma costa com um interior vazio. Tinha as veias dos rios a azul,
as terras baixas a verde e as montanhas a laranja … nenhuns nomes, apenas cores brilhantes. O dedo do pai era muito
apropriado para apontar para aquele mapa.
— É para aqui que vamos – disse ele e o dedo que não existia apontava para nada, para os contornos de um vazio. – Tens
a certeza de que não queres vir connosco, irmão?
O Sr. Semper mostrou os dentes e as narinas abriram-se-lhe como as de um cavalo.
— Preferem ficar aqui e encarar a música – declarou o pai.
É irónico, não é? É uma espécie de troca de lugares … de permuta de países. O Sr. Semper riu-se, deu palmadas com as
mãos e disse:
— Tu ir muito longe!
— Sou o americano que desaparece – respondeu o pai, sorrindo-se para ele.
Veias negras incharam ao lado dos olhos do Sr. Semper, esticando a pele brilhante como se fossem minhocas
aprisionadas, quando se agachou ao nosso lado e, um a um, passou os longos braços em volta das gémeas, do Jerry e de mim.
— Este pai é grande homem. Ele também meu pai. – Os resmungos do Sr. Semper cheiravam a vapores de amendoins
digeridos. – Nós, os seus filhos.
Parecia-me que aquilo era uma coisa ridícula de se dizer, mas recordei-me de que o pai fora bom para aqueles homens,
porque eram pobres. Era a maneira de o Sr. Semper dizer obrigado pela geleira que trabalhava a fogo.
Os restantes homens permaneciam silenciosos. O pai sorriu-se para a mãe e explicou:
— Não façam nada que eu não fizesse, foi o que lhes disse em espanhol. – Fala-lhes da liberdade de movimentos – disse a
mãe.
Depois de o Sr. Semper agarrar os dedos do meu pai e de lhe murmurar pela última vez junto do rosto, e de irem todos a
vassourar por entre as ervas, levantou a catana e cortou o ar, usando-a como se fosse o sabre de um pirata.
— Allie, tem cuidado! – exclamou a mãe.
— Estou ansioso por partir!
— Trocar de lugares – murmurou a mãe. – Pobres homens.
— É tudo o que têm para negociar … não têm mais nada. E é isso mesmo o que estamos a fazer. Nunca pensaria no caso se
não fossem eles. Inspiraram-me.
Houve um movimento lá fora. Os homens haviam parado por debaixo das árvores.
— Mas é uma vigarice – disse o pai. – Fico com a sensação de os deixar entregues aos abutres.

Foi apenas na manhã seguinte que reparei nas fitas que os homens haviam amarrado aos ramos. Eram fitas vermelhas muito
baratas, mas na manhã cinzenta tinham um ar rico e festivo, e davam às árvores um toque de esplendor.
Pouco depois já não conseguia distinguir as fitas nem a casa. Ficou cada vez mais pequena e desapareceu, logo seguida
pelas copas das árvores. De imediato, tudo se escondeu abaixo da estrada.
Ao passarmos pela casa de Polski, lembrei-me do que ele me dissera, mas aquela história a respeito do Mooney deixava-
me confuso. Aquela mordidela na orelha significava que compreendera que o pai fora cruel para com ele, ou servia para
provar que os criminosos nunca se modificam e continuam maldosos, mesmo na escada para o cadafalso? Quanto ao resto da
conversa de Polski, acerca do meu pai ser sabichão e perigoso, não podia transmitir-lhe esse recado. O pai sabia que eu
estivera a mentir. «Mas quem é que estás a tentar proteger? Ele ou eu?»
A resposta era … nenhum deles. Procurava proteger-me a mim mesmo.
Agora, nada daquilo fazia diferença. Abandonávamos Hatfield. O pai trouxera consigo a «Caixa dos Trovões» e o
«Esmagador de Átomos», a maior parte das ferramentas, alguns livros, e tudo o que comprara, o material de campismo. Mas o
resto, a casa e toda a sua mobília, tínhamos deixado para trás. Todas as peças de mobiliário, os pratos, as camas, as cortinas,
as plantas da mãe, o rádio, as lâmpadas nos casquilhos, as roupas nas gavetas, o gato a dormir na cadeira hidráulica. A porta
ficara escancarada. Seria uma maneira de o pai nos tranquilizar? Se sim, então fora um êxito. Excepto quanto a algumas mudas
de roupa que trazíamos nas mochilas, o resto ficara.
O pai acordara e dissera:
— Bom, vamos embora. – Atravessara a casa a toda a pressa sem olhar nem para um lado nem para o outro. – Vamo-nos
pôr a andar daqui.
Só mais tarde me ocorreu que era isto o que faziam os verdadeiros refugiados. Tomavam o pequeno-almoço e
desapareciam, deixando os pratos no lava-louça e a porta da frente meio aberta. Havia naquilo mais drama do que se
tivéssemos empacotado cuidadosamente todos os nossos pertences e deixássemos a casa vazia.
A casa oscilava agora, para cima e para baixo, uma pequena miniatura entre os campos a quase dois quilómetros de
distância. Nunca tivera um ar mais pacífico. Era a nossa toca. Uma vez que todas as nossas coisas lá continuavam e porque o
relógio ainda fazia tiquetaque, sentia que poderia voltar para lá em qualquer momento, para a encontrar tal como a deixara e
para a reivindicar.
Por isso não me importava de partir … mas onde é que íamos? Como não o sabia, a lentidão do tempo deixava-me doente.
Uma vez ultrapassada Springfield, o pai meteu pela auto-estrada e vimos as vilas e as cidades a erguerem-se junto de cada
saída. Vimos chaminés, igrejas e altos edifícios. Habituámo-nos a ver autocarros de janelas muito sujas, camiões que
assobiavam ao passar, com rajadas de vento enfumarado e as lonas negras a adejar por cima das cargas. As tabuletas
indicavam Connecticut e depois Nova Iorque. Parámos para almoçar num dos restaurantes Howard Johnson’s. «Desprezo tudo
o que este lugar representa!», declarou o pai, que não quis comer. Afirmou que os mexilhões fritos se calhar nem sequer
tinham estômagos e eram feitos de cordéis. «Hamburgers!», gritou. Depois Nova Jérsia. Aqui encontravam-se as chaminés
mais altas e o ar mais poluído que jamais vira. Os pássaros eram pequenos e oleosos. As pessoas que passavam nos carros,
em especial as raparigas, olhavam embasbacadas para mim e para o Jerry. Puxámos para baixo as palas dos nossos bonés de
basebol, para que não nos olhassem. Fechei os olhos e rezei para que chegássemos. A velocidade de condução do pai naquela
estrada rápida fazia-me pensar numa fuga apressada à frente de uma trovoada, por um caminho comprido e sempre a direito,
pelo meio de uma paisagem que não passava de uma fossa oleosa. Nunca vira chamas como aquelas que saltavam do alto das
chaminés. Até podíamos ouvir o barulho das cabeleiras de fogo que se agitavam nos tubos negros.
«Baltimore», indicava uma tabuleta. «Próximas Sete Saídas.» Metemos pela terceira e vimos um centro comercial igual ao
que havíamos deixado para trás em Springfield, naquela manhã. Passámos por um subúrbio que me fez lembrar Chicopee e
depois entrámos na própria cidade. Tinha muito mais colinas do que qualquer outra do Massachusetts. As casas e hotéis
haviam sido construí dos em tijolos ao longo de ruas muito inclinadas. Naquele princípio de noite, o crepúsculo reflectia-se na
água próxima, ajudado pela curva de um céu azul-rosado, nada que se parecesse com aquilo a que eu estava habituado em
Hatfield, onde o pôr do Sol era de um verde-bolorento com toques de ouro. A luz leitosa do oceano de Baltimore e as suas
nuvens cor de cimento constituíam como que uma ampla palidez, não obstruí da pelas árvores. As poucas e pequenas árvores
que conseguia avistar lutavam contra o vento.
Cerca de cinco minutos depois surgiu o verdadeiro sol-posto e tudo era diferente. Uma parte do céu escurecia com um tom
acinzentado, a outra era de um vermelho-vivo, e havia um montão de nuvens em forma de garras com a cor da casca das
lagostas cozidas, também estaladas e quebradas como elas. Aquele brilhante céu purpúreo era para mim uma novidade.
Chamei o pai para que olhasse para ele.
— Poluição! – gritou-me. – É a refracção nos fumos da gasolina! Continuou a conduzir, enfiando a nossa camioneta no
meio do trânsito, dirigindo-se para a parte baixa da cidade. Estacionámos junto de um armazém.
— Que estamos a fazer aqui? – perguntou Jerry.
O pai apontou com o nó do dedo cortado para cima do armazém e declarou:
— Aquele é o nosso hotel.
Era a proa amarela e branca de um navio. Os buracos de onde saíam os cabos pareciam narinas a sangrar manchas de
ferrugem. Não podíamos ver o resto do navio, mas a avaliar pelo tamanho da proa, era grande. Não disse da minha satisfação
por termos um sítio onde ficar. Já era escuro. Pensara que iríamos dormir num qualquer acampamento junto da estrada.
Subimos o passadiço de tábuas e um marinheiro que se encontrava no convés mostrou ao pai para onde devíamos ir. Nós
quatro ocupámos um camarote e a mãe e o pai ficaram num outro, ao lado. Tudo tinha um cheiro ácido de tinta a secar. Entre
os nossos dois camarotes ficava um cubículo com um chuveiro e um lavatório. Enfiámos os nossos pertences por debaixo dos
cubículos inferiores e ficámos à espera que acontecesse qualquer coisa. De manhã, no Massachusets, à noite, num navio … a
quase mil quilómetros de distância. Até parecia que o pai era capaz de fazer milagres.
— É um barco! – exclamou Clover. – Estamos num barco de verdade! O pai enfiou a cabeça na porta do nosso camarote e
perguntou: – Então, o que acham disto?
O navio estava a ser carregado, os guindastes giraram e guincharam durante toda a noite, as passadeiras rolantes zumbiam
por debaixo de nós, e através das nuas paredes de aço do nosso camarote ouvia a carga a ser arrastada no porão.
Permanecemos acostados ao cais enquanto a carga – caixotes com dizeres e até automóveis – era embarcada. Comemos na
sala de jantar vazia e durante o dia observamos os guindastes a girarem de um lado para o outro. Que eu visse, não havia mais
passageiros … e o pai continuava a recusar-se a dizer para onde íamos. Isso preocupava-me e fazia-me sentir especialmente
dependente dele. Não sabia o nome do navio e nenhuma das pessoas que vira até ali sabia falar inglês. Éramos ignorados pela
tripulação. O pai tinha-nos nas suas mãos.
Uma manhã, antes da partida, abandonámos o navio e fomos para a cidade na nossa velha camioneta. Atravessámos uma
ponte e dirigimo-nos em direcção à água. No fim da estrada havia uma praia. A mãe ficou na cabina da camioneta a ler
enquanto nós passeávamos ao longo da praia, fazendo as pedras ressaltar na água e vendo os barcos à vela. Ao fundo da
praias havia um paredão quebrado, algumas pedras caídas dentro de água e outras na areia.
— A maré vai subir – disse o pai. Chupou o charuto e atirou-o para a espuma. – Quem é que me quer demonstrar a sua
valentia?
Já sabia o que ia acontecer. Já nos fizera isto um certo número de vezes. Desafiava-nos a avançar para nos sentarmos numa
rocha, e a ficar lá até que a subida da maré nos ameaçasse. Era uma brincadeira de Verão a que jogávamos no cabo Cod. No
entanto, em Baltimore, era ainda Primavera, estava demasiado frio para nadar e tínhamos as roupas vestidas. Não acreditei
que estivesse a falar a sério, pelo que lhe disse que era capaz de tentar, à espera que me respondesse com uma gargalhada.
— Estás a fazer-nos esperar – foi o que respondeu.
Uma onda rebentou e recuou deslizando, arrastando areia e pedrinhas.
Sem sequer tirar as roupas ou até os sapatos, corri para uma rocha coberta de algas junto à linha de água e empoleirei-me,
à espera que o pai me chamasse. As gémeas e Jerry riam-se. O pai permaneceu de pé num ponto mais alto da praia, sem nos
prestar grande atenção. Ao princípio nenhuma onda me incomodou. Subiam até atrás de mim, passavam por mim,
transformavam-se em espuma e desapareciam.
— O Charlie está com medo! – gritou Jerry.
Não disse nada. Deixei-me ficar ali ajoelhado, numa posição instável, agarrado à rocha com as pontas dos dedos. Era
quase como estar numa sela sem estribos. Não sabia se era eu quem desafiava o bluft do pai, ou se ele desafiava o meu. Uma
sucessão de ondas encharcou-me as pernas e molhou-me os sapatos. Formou-se uma lagoa em frente da minha rocha. Agora, a
água atingia-me os dedos e deixava-os dormentes.
Estava a ensaiar uma desculpa para desistir quando, na amarelada luz do fim da tarde, vi a silhueta do meu pai, com o Sol
abaixo do ombro. Era uma pessoa escura, não o conhecia, e ele observava-me como se fosse um estranho, com mais
curiosidade do que afeição. Éramos duas pessoas na incerteza, uma numa rocha e a outra na areia, criança e adulto. Não o
conhecia, ele não me conhecia. Tinha de esperar para descobrir quem nós éramos.
Justamente nesse momento – com o pai tão simples e obscuro como um mero veraneante ocasional, duvidando de mim –
chegou a onda. Bateu-me com força por detrás, trepou pelas minhas costas e esfregou-se no meu pescoço, empurrando-me e
fazendo-me flutuar, e largando-me tão depressa como me apanhara. Tremi de frio e agarrei-me à rocha com força, a pensar que
o meu peito ia rebentar com o grito que lá sustinha.
— Ele conseguiu! – guinchava Jerry, correndo em círculos na praia. – Está todo molhado!
Agora já conseguia ver a cara do pai. Por ela passou como que uma qualquer selvajaria, como uma memória desesperada
que lhe fixava o queixo numa expressão louca. Depois sorriu e gritou-me que saísse dali. No entanto, deixei que outras duas
ondas se quebrassem em cima de mim antes de desistir e cambaleei para a areia. Contra a minha vontade, comecei a chorar
por causa do frio.
— Assim é melhor – disse o pai, enquanto as gémeas pulavam à minha volta e tocavam as minhas roupas molhadas. No
entanto, aquilo soava como um cumprimento a ele próprio e não a mim. – Descalça esses sapatos.
O pai levou um sapato em cada mão quando caminhámos pela areia em direcção à mãe e à camioneta.
— Eh, calce os sapatos ao rapaz. – Era uma voz por detrás de nós.
— Há vidros partidos e caca na areia.
Virámo-nos e vimos um negro. Tinha um transístor encostado à orelha e usava uma apertada meia de lã enfiada na cabeça.
Pestanejou para o pai, que tinha duas vezes o tamanho dele e ainda sorria.
— Ora aqui está o homem que eu procurava – declarou o pai.
O homem desligou o transístor. Parecia verdadeiramente intrigado.
Disse que se chamava Sidney Torch e que não vivia ali perto, mas que vira alguns garotos a partirem garrafas de vidro na
praia, pelo que era perigoso andar por ali descalço por causa dos cortes nos pés. Não queria problemas, afirmou, porque não
era ninguém, ia apenas visitar o irmão e nunca nos tinha visto antes.
— Só lhe queria contar uma coisa – disse o pai de uma maneira simpática e o negro, que o olhou de esguelha, começou a
rir-se baixinho. – Ninguém gosta deste país tanto como eu – começou o pai. – É por: isso que me vou embora, porque não
suporto ficar aqui a ver o que se passa. – Deu uns passos e colocou o braço por cima do homem, Sidney Torch; – É tal e qual
como quando a minha mãe morreu. Não fui capaz de ver. Fora sempre forte como um touro mas partiu a anca e, depois de estar
algum tempo no hospital, apanhou uma pneumonia dupla. E ali estava, jazendo na cama, a morrer. Aproximei-me e peguei-lhe
na mão. Sabe o que me disse? Pois disse: «Por que é que eles não me dão veneno para os ratos?» Não quis ver e não fui capaz
de ouvir. Portanto, fui-me embora. Dizem que foi uma luta terrível … mas já estava condenada. Depois de morrer, voltei para
casa. Algumas pessoas seriam capazes de dizer que o meu comportamento foi o máximo de desumanidade. No entanto, nunca o
lamentei. Amava-a demais para poder vê-la morrer.
Naquele momento já o Sr. Torch remexia nos botões do transístor com movimentos nervosos. Nunca tinha ouvido a
história do pai, mas era típico dele contar detalhes da sua vida pessoal a um estranho. Talvez fosse a sua maneira de evitar as
traições, divulgando os seus segredos a pessoas que encontrava por acaso e que nunca mais voltaria a ver.
— É uma história na verdade muito triste – disse o Sr. Torch.
— Então não lhe entendeu o sentido – retorquiu o pai.
O Sr. Torch ficou com um ar atrapalhado, e quando a mãe me viu todo molhado e gritou para o pai: «O que é que estiveste
a tentar provar?», o Sr. Torch aspirou golfadas de ar e recuou.
O pai dirigiu-se-lhe de novo. Tinha uma proposta a fazer-lhe.
— Senhor Torch – anunciou – estou preparado para lhe vender esta camioneta por vinte e dois dólares, que foi quanto me
custou o seu registo. – Eu só disse que o rapaz se devia calçar – murmurou o Sr. Torch.
— Ou então, troco-a pelo seu transístor. Há outro na camioneta, que já não me serve para nada – insistiu o pai, estendendo
a mão e o negro submeteu-se e entregou-lhe o transístor.
Regressámos ao navio na camioneta. O Sr. Torch seguia sentado na traseira, com Jerry e comigo.
— O vosso velho sabe falar – afirmou. – Devia ser um pregador. Era capaz de pregar até nos saltarem as orelhas. Mas
digo-vos uma coisa … de negócios não percebe nada! – Riu-se para si mesmo e perguntou: – Para onde é que vocês vão?
Dissemos que não sabíamos.
— Aquele que vai ali atrás do volante é o vosso pai? Se eu fosse a vocês ficava com algumas dúvidas!
— O meu pai é Allie Fox – disse Jerry.
O Sr. Torch raspou os dentes com uma unha comprida.
— O génio – acrescentei eu.
— Isso mesmo – confirmou o Sr. Torch.
Chegados ao navio, o pai entregou-lhe as chaves e disselhe que, afinal, também podia ficar com o transístor. Já não o
queria. Subimos para bordo e pronto.
— Livre, finalmente! – exclamou o pai, parado no estreito convés ao lado do nosso camarote.
As luzes de Baltimore davam à cidade um halo de nuvens brilhantes. A noite não era negra, apenas de uma espécie
diferente de luz pardacenta. Os ruídos do trânsito eram abafados e nervosos. Uma brisa raspou pelo casco do navio e era
como se este não tivesse qualquer ligação com a cidade e já estivéssemos no mar. Olhámos para a zona do cais de onde o Sr.
Torch se afastara, levando a camioneta.
— Se a Polícia o manda parar – disse a mãe – vão pensar que a roubou. Será preso.
— Não me ralo! – respondeu o pai, muito satisfeito consigo próprio. – Dei-a! Leva-a, foi o que eu disse! Não me serve
para nada! Viste a expressão na cara dele? Uma camioneta de borla, com uma transmissão nova. Tal como a «Banheira das
Minhocas»! Tal como Polski e o emprego! Agora, os conveses estão desimpedidos!
— Mas, afinal, o que é que deste? – retorquiu a mãe num tom cortante. – Uma camioneta velha que nem valia o trabalho de
a deitar fora. Um frigorífico de fabrico caseiro que cheirava mal como o diabo. Uma coisa que nem valia a pena ter.
— Era isso mesmo o que eu queria dizer.
— Não finjas que és melhor do que na verdade és.
O pai continuava a olhar para baixo, para as amarras que nos ligavam a Baltimore.
— Adeus, América – declarou. – Se alguém perguntar, digam que naufragámos. Adeus a todo o teu lixo e toda a tua
hediondez! Muito bom dia para ti!
VIII

Partimos de Baltimore naquele navio, o Unicorn, a meio da noite. As paredes dos camarotes vibravam como se estivessem
apoiadas nos dentes de uma serra eléctrica. O meu beliche rosnava e baloiçava não me deixando dormir. Encostei a cara à
vigia e vi a espuma da ondulação, como cal sobre gelo negro. Ouvi o som de uma sereia, o toque de um sino e uns chuviscos
que pareciam pedrinhas a cair num balde de ferro. A porta de aço chocalhava mas nenhuma das crianças acordou. De manhã
estávamos no mar alto.
Ali, no meio do oceano, o navio ganhou vida. A sala de jantar estava cheia aquando do pequeno-almoço. As outras três
mesas foram ocupadas por duas famílias, uma delas muito numerosa. Depois de nos apresentarmos, os crescidos deram os
bons-dias ao pai e à mãe e as crianças fizeram-nos caretas. Nós éramos uns estranhos sossegados, enquanto eles faziam grande
barulheira e pareciam sentir-se ali à vontade. Agiam como se já antes tivessem viajado no Unicorn. Eram os Spellgood e os
Bummick.
— O senhor chama-se Fox – disse um dos homens para o pai no nosso primeiro dia no mar. – Já se esqueceu do meu nome,
mas eu não me esqueci do seu.
— Claro que não – respondeu o pai. – O meu é muito mais fácil de recordar do que o seu.
O homem era o Reverendo Gurney Spellgood, um missionário. A cada refeição era ele quem levava a família – duas
mesas cheias – a entoar, em voz alta, um hino de acção de graças, antes de se atirarem à comida. O comportamento dos
Bummick era estranho, pois esta família de quatro pessoas de rostos castanhos estava sempre a discutir, e à medida que as
suas vozes aumentavam de tom, competindo umas com as outras, começavam a gritar noutra língua. O pai disse que era
espanhol e’que eles eram mestiços. Um dia, no convés da popa, o senhor Bummick, que era tremendamente gordo, disse ao
meu – pai que uma das coisas que sempre tivera vontade de fazer era rebentar com uma janela em Baltimore e depois correr
para o navio e partir. «Nunca me apanhariam!» O pai disse-nos para nos mantermos afastados dos Bummick.
Além da reunião para orar, que era organizada pelos Spellgood, o que acontecia todos os dias, era muito raro vermos
aquela gente, excepto à hora das refeições. Ao jantar do segundo dia, os nove Spellgood não se encontravam nas suas mesas.
— O que aconteceu aos nossos cantores de hinos? – perguntou o pai ao Sr. Bummick. – Se calhar estão enjoados … e a
dar de comer aos peixes, não?
O Sr. Bummick disse que não, que estavam com o capitão. Que era costume do capitão convidar os passageiros, por
turnos, para jantarem com ele.
— Engraçado – comentou o pai. – Estava a pensar em convidá-lo para jantar connosco, mas decidi não o fazer. Não gosto
do corte da sua bujarrona (1).
Os Bummick ficaram a olhar para ele.
— Estava só a brincar – explicou o pai.
Nunca sorria quando dizia uma graça. De facto, até tomava um ar especialmente mal-humorado quando tentava ser
engraçado. Era embaraçoso saber que estava a brincar e ver o espanto na cara das outras pessoas.
Na noite seguinte foram os Bummick que jantaram com o capitão.
— Creio que se esqueceu da nossa existência, reverendo – disse o pai para Gurney Spellgood. – Ficava muito grato se
rezasse por nós.
— «Os últimos serão os primeiros» – afirmou o Reverendo Spellgood, cruzando as mãos e sorrindo.
— Alguns – respondeu o pai.
— Perdão?
— «Os homens virão do Norte e do Sul e sentar-se-ão à mesa do Reino de Deus. E eis que alguns dos últimos serão os
primeiros e alguns dos primeiros serão os últimos.» Lucas.
— Estava a citar Mateus – explicou o Reverendo Spellgood.
— Está enganado – retorquiu o pai, levantando o dedo incompleto.
— Mateus diz muitos e não alguns. Mas a melhor parte está no capítulo dezanove: «Todo o que deixou casas, ou irmãos,
ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por amor do meu nome, esse receberá cem vezes mais e herdará a vida eterna.»
— Essa é a minha divisa, irmão – disse o Reverendo Spellgood. Compreendeu a minha missão.
— E, no entanto, não posso deixar de notar – continuou o pai, agitando o dedo para as duas mesas de Spellgood, onde
também havia uma avozinha – que não deixou ninguém para trás de si. – Muito depressa, acrescentou: – Estava apenas a
brincar.

Trocadilho intraduzível. Em inglês, bujarrona (jib) é o nome de uma vela de navio, mas significa também a «pinta» de
uma pessoa. (N. Do T.).

Porém, depois daquilo, o Reverendo Spellgood tentou levar o pai para discussões sobre as escrituras e incluí-lo nas
orações, no convés. Na manhã seguinte, o Reverendo Spellgood fê-lo parar quando o viu a passear no convés com os mapas.
Eu estava perto, a pescar na amurada.
— «Não temos um grande aspecto neste momento», reverendo, «mas o tempo e a experiência dar-nos-ão polidez e oramos
para que venhamos a ser setas luzidias na aljava do Todo-Poderoso.»
— Ezequiel? – perguntou o Reverendo Spellgood.
— Joe Smith – respondeu o pai com uma gargalhada. – Profeta e mártir, e fundador de uma das vinte mais ricas
companhias dos Estados Unidos.
«Cupanhias», era como o pai o dizia, com um toque de puro ódio.
O Reverendo Spellgood encarou o oceano e continuou:
— «Tu que caminhaste pelo mar em teus cavalos, através da capa das grandes águas …»
— Hosea.
— Habbakuk – disse o Reverendo Spellgood. – Capítulo três.
— Isso é clorofórmio – afirmou o pai. No entanto, ter falhado aquela citação espicaçara-o. Virou-se para Spellgood e, na
frente de toda a sua numerosa família, perguntou, com uma voz aborrecida: – Mas diga-me, quantas flexões consegue fazer?
Ah!
Os Spellgood ficaram calados.
— «Da feitura de muitos livros não há fim, e muito estudo é a saturação da carne.» Eclesíastes. Além disso, tenho mais
que fazer disse o pai voltando a dedicar-se aos mapas.
Foi por uma das filhas do Reverendo Spellgood, uma rapariga chamada Emily, que tinha uma cara de pato sem queixo, que
descobri para onde ia o Unicorn. Os dias eram agora quentes e cheios de Sol. Estávamos a três dias de Baltimore e parecia
que a Primavera se transformara em Verão. A tripulação andava de um lado para o outro sem camisa. Eu passava a maior
parte do dia a pescar.
— Nunca apanhas nada – disse Emily, aproximando-se de mim.
— Está demasiado calor – respondi, porque no passado só pescara em ribeiros e em zonas sombrias do rio Connecticut. –
Os peixes vão para o fundo no tempo quente e não comem.
— Se pensas que isto é calor, então espera até chegares à cidade de La Ceiba.
— Onde é isso?
— É para onde tu vais neste barco, parvo. Nas Honduras.
Era a primeira vez na vida que ouvia aquele nome, que tinha o som de um sombrio segredo.
Juntou-se a nós um dos jovens Spellgood.
— Este nem sequer sabe para onde vamos! – disselhe Emily e ambos se riram de mim.
No entanto, valia a pena ser gozado, a fim de descobrir para onde o pai nos levava. Agora compreendia aquele negócio
com o senhor Semper e os outros homens. Eram das Honduras. O pai estava a trocar de lugares. No mapa, no exterior da sala
do rádio, as Honduras pareciam-se com a saliência de terra no mapa do pai, mas mais pequenas, eram agora como uma casca
de tartaruga vazia vista de lado, cheia de dedadas, e La Ceiba era uma bolinha na costa. A cidade estava quase gasta de tanto
ter sido tocada. Alfinetes espetados no mapa mostravam o nosso avanço desde Baltimore. O último alfinete encontrava-se
paralelo com a Florida, e por isso é que fazia tanto calor.
O mar estava liso como um espelho, verde perto do navio e azul lá mais para longe. Não corria uma brisa. O convés era
uma frigideira e parte da tinta estalara com o calor. Continuei a pescar.
Emily Spellgood não me deixava em paz. Era mais ou menos da minha idade e usava calças a três quartos.
— Em La Ceiba faz muito mais calor do que aqui – disseme. Nunca lá estiveste mas nós já. O meu pai é bastante famoso
na cidade, temos uma missão na selva. É muito bonita.
Queria pescar qualquer coisa para lhe mostrar. Lançava a linha e observava os bandos de gaivotas que nos seguiam.
Pairavam guinchando sobre a popa, flutuavam no rasto do navio e mergulhavam para apanharem restos largados pela cozinha.
Nunca pousavam no navio, mas arrancavam-me da mão bocados de pão se lhos estendesse. O pai odiava-as. «Comedoras de
cadáveres!» Foram elas que me deram a ideia da pesca, pois vira algumas a apanharem peixes do tamanho de cavalas, no mar
por detrás do navio.
No anzol espetava bocadinhos de courato de bacon, sem bóia e apenas com o peso suficiente para poder lançar a linha.
Emily continuava atrás de mim, dizendo:
— Chama-se Guampu. Temos um fantástico barco a motor e todos os índios …
A linha esticou-se e eu dei-lhe um puxão. Ouviu-se um grito humano entre os guinchos das gaivotas. Agarrara um pássaro.
O anzol devia ter-lhe entrado até meio da garganta porque quando levantou voo levou a linha com ela, puxando-a como se
fosse a corda de um papagaio, gritando. Batia as asas com força e procurava escapar-se. Mergulhou no rasto do navio, depois
apareceu de novo à superfície e tentou voar, mas quando a linha ficou esticada oscilou no ar e soltou gritos lancinantes. As
outras gaivotas voavam como loucas à sua volta, picando-lhe a cabeça por curiosidade e por medo.
Larguei a linha, que chicoteou a água como se eu tivesse feito um lançamento para as trutas, e a grande ave em pânico
bateu as asas sobre as ondas arrastando cinquenta metros de linha presa ao bico. Não voou até muito longe. Um pouco mais
adiante pousou na água e ali ficou, sacudindo a cabeça como um pato doméstico e batendo com as asas na água.
— Mataste-a! – exclamou Emily. – Mataste o pobre pássaro. Isso dá azar … e é uma crueldade! Pensei que eras simpático,
mas és um assassino! – Correu pelo convés e a seguir ouvi-a gritar: – Pai, aquele rapaz matou uma gaivota!
Durante o resto do dia andei por ali com uma dor na garganta, como se tivesse engolido um anzol.
— Mata uma por mim, Charlie – disseme o pai (como é que ele soubera da história?)-, mas não deixes que ninguém veja.
Quando voltei a encontrar o Reverendo Spellgood, este olhou para mim como se me quisesse atirar pela borda fora. A
seguir perguntou-me:
— Deste os bons-dias a Jesus? Ou limitas-te a fazer flexões como o teu pai e viras as costas ao Senhor?
— O meu pai consegue fazer cinquenta flexões – respondi-lhe.
— Sansão conseguia fazer quinhentas, mas era um homem bom.
Nessa noite foi a nossa vez de jantar com o capitão. Antes disso só lhe pusera os olhos em cima uma única vez e quando
usava o boné de capitão. Sem ele e nas roupas de caqui, parecia-se com um agricultor, um pouco rabugento e de cabelo curto,
mais ou menos da idade do Polski. Como não tinha pescoço, as orelhas, os lóbulos das orelhas, batiam-lhe no colarinho. Os
olhos azuis desprovidos de pestanas davam-lhe o ar de duvidar de tudo o que lhe diziam e faziam-no parecer-se com um
peixe, com um bacalhau morto pousado em cima de uma pedra. Tinha uma boca pequena e estreita e lábios de peixe que
aspiravam o ar sem se abrirem.
A sua sala de jantar era de tecto baixo e a mobília fora envernizada num tom tão escuro que parecia ter sido tirada de um
boião de conservas. Prateleiras em conserva, armários em conserva, e uma arca em conserva que dizia «Capitão Ambrose
Smalls» na tampa.
O capitão Smalls falava com outro homem quando entrámos na #sala. Estavam à mesa, debruçados sobre gráficos. O
homem, que tinha a camisa e as mãos cheias de óleo, tirou o boné quando nos viu entrar mas continuou a falar.
— Tem de ser das soldaduras – afirmou. – Não vejo que mais possa ser, a não ser que a bomba esteja a perder a sucção.
Acha que devemos isolar a antepara?
— É no número seis … um dos maiores – disse o capitão. – É melhor ver os tanques de lastro. Dizes que é mau?
— Neste momento é apenas um problema de condensação.
O capitão levantou-se e endireitou os ombros.
— Esta boa gente está esfomeada. Falamos depois.
O homem enrolou os gráficos e saiu da sala.
— Em vez de afogar os seus problemas, por que é que não os ensina a nadar? – perguntou o pai. O capitão cerrou a boca e
mirou-o com os seus olhos sem pestanas. – Tem um furo na banheira, hein? – insistiu o pai, fazendo uma careta; estava a
brincar.
O capitão franziu o cenho de peixe para ele.
— Um problema numa bomba do porão, a bombordo. Nada com que valha a pena preocupar-se, o problema é meu.
— Pode ser de um empanque, numa das cabeças dos cilindros – disse o pai. – A água do mar é terrível para os
empanques. Desgasta os materiais, mesmo aqueles a que chamam de fibras miraculosas. E o calor. Os empanques não
suportam negligências, estragam-se. Mas está bem, nós sabemos nadar.
— Não tem cilindros, é uma bomba centrífuga. Nem sequer temos a certeza de ser da bomba – retorquiu o capitão. –
Façam o favor de se sentar.
O pai abriu o guardanapo com um esticão, como se fosse uma peça de roupa para passar a ferro. Enfiou-o debaixo do
queixo, ficando com um bibe. Jerry e as gémeas fizeram o mesmo, mas eu pus o guardanapo sobre o estômago, tal como fizera
o capitão Smalls. A mãe pousou o dela no colo. O pai olhou para mim e sorriu, porque eu imitara o capitão.
— Deve ser das palhetas – continuou o pai. – Ou pode ser do motor. Não o aconselho a selar a antepara. Acabará por se
encher e o senhor ficará tão condescendente que desligará a bomba. Isso provocará vibrações. Tantas vibrações que lhe cairão
os dentes e serão o diabo para o navio …
— Está a deixar arrefecer a sopa – interrompeu-o o capitão. – É a sua primeira visita às Honduras?
O pai enfiou uma colherada de sopa na boca e não respondeu. Foi a mãe quem o fez.
— É mais do que uma visita. Pensamos lá ficar algum tempo.
— Já alguma vez lá estiveram?
— Encontrei um selvagem que já lá viveu – declarou o pai. – Uma vez comi uma banana das Honduras. Soube-me bem,
portanto, pensei cá para mim: «Por que não emigrar?»
O capitão ignorou-o e continuou a falar para a mãe.
— Na maior parte das coisas, as Honduras estão atrasadas cinquenta anos. La Ceiba é uma cidade atrasada.
— Para mim é óptimo – prosseguiu o pai. – Era um camponês, lá de onde venho. No entanto, vamos para Mosquitia.
A mãe ficou a olhar para ele. Aquilo era uma novidade.
— Ah, aí vive-se na Idade da Pedra – afirmou o capitão-, tal como na América antes da chegada dos primeiros colonos.
Só há índios e florestas. Não há estradas. É tudo floresta virgem.
— A América também se está a transformar numa selva – retorquiu o pai com nova careta.
— E pântanos – insistiu o capitão. – São tão maus que quando lá entramos nunca mais conseguimos sair.
— Parece-me perfeito. – O pai parecia genuinamente satisfeito.
Conhece o país como as costas da sua mão, não é verdade?
— Apenas a costa, que já é bastante má. Nunca me apanhariam no interior. Alguns dos membros da tripulação vêm dessas
partes. Um está na prisão de bordo, neste momento. Vou pagar-lhe quando chegarmos ao porto e nunca mais conseguirá
embarcar num navio. Alguns desses homens dão-me dores de cabeça, mas sou eu quem manda aqui.
— Deve ser agradável ser rei no seu próprio país.
O capitão ficou a olhar para ele mas eu tinha a certeza de que o pai falara a sério e dissera aquilo como um cumprimento.
— Gurney Spellgood tem lá uma missão. A sua igreja fica algures no rio. – Penso que a sua teologia não é grande coisa.
— E quais poderão ser as suas actividades? – perguntou o capitão, aborrecido com o que o pai dissera do Reverendo
Spellgood.
O pai não respondeu, odiava perguntas directas como «Onde é que vai?», «O que faz?» e «Para que serve isso?». Nós
nunca as fazíamos. Foi a mãe quem respondeu para quebrar o silêncio:
— Allie, o meu marido, costumava interessar-se muito pela Bíblia. Ele e o Reverendo Spellgood estiveram a discuti-la. É
isso o que ele quis dizer. É a única pessoa que conheço que deixa as Testemunhas de Jeová entrarem-lhe em casa. Aplica-lhes
o terceiro grau …
— Sim, entretive-me com ela, muito por alto. É uma espécie de manual de instruções para o proprietário, não é? Para a
civilização ocidental, claro. Porém, não funciona. Comecei a perguntar a mim mesmo … Onde é que está o problema? A culpa
é nossa ou do manual?
— E que vai fazer a Mosquitia com a sua bela família? Uma pergunta directa, mas o pai enfrentou-a.
— Vou deixar crescer o cabelo. Já reparou que tenho o cabelo muito crescido? Tenho motivos para isso. Viajei muito, mas
não gosto de falar no assunto, só a mim diz respeito. É difícil viver na América, fazem-se demasiadas perguntas pessoais. Não
suporto ter de lhes responder. E que tem isto a ver com o cabelo? Pois já lhe digo. Os barbeiros eram aqueles que me faziam
mais perguntas. Verdadeiras entrevistas. Quando deixei de cortar o cabelo, as perguntas pararam. Portanto, creio que vou
continuar a deixá-lo crescer, por causa da minha paz de espírito.
— Há alguns anos atrás, tivemos a bordo uma pessoa como o senhor. Planeava passar o resto da vida nas Honduras.
Desembarcou e nós ficámos a carregar o navio. Eram ananases. O fulano regressou connosco. Não conseguiu suportar aquilo,
só lá esteve dois dias.
— Não espere por nós, a não ser que queira que os ananases apodreçam.
— Numa das viagens trouxe a família comigo – prosseguiu o capitão.
— Passaram alguns dias em Tegoose e depois visitaram as ruínas. Foram uns dias agradáveis.
— Não creio que vamos para as ruínas, porque as estamos a abandonar – disse o pai. – Já agora que estamos a falar de
nações difíceis e duras, um pouco antes de irmos para Baltimore, fizemos algumas compras. Fomos a Springfield, a um
daqueles centros comerciais que são como … círculos comerciais. Comprávamos sapatos e quando paguei a conta olhei para
o armazém, que tinha a porta aberta e onde se via um daqueles painéis com instruções para os empregados. Havia um slogan
escrito em letras gordas: «Se vendeste a um cliente exactamente aquilo que ele queria, então não fizeste uma venda.» Numa
sapataria! Deu-me vontade de sair dali ainda com os sapatos velhos.
— É o negócio – comentou o capitão.
— São as ruínas – retorquiu o pai. – Comemos quando não temos fome, bebemos quando não temos sede, compramos o
que não necessitamos e atiramos fora tudo o que é útil. Não vendas a um homem aquilo que ele quer … vende-lhe o que ele
não quer. Faz de conta que ele tem dois metros e meio de altura e dois estômagos, além de dinheiro para queimar. Não é
lógico … é diabólico.
— E, portanto, vai para as Honduras.
— Precisamos de férias. Se tivéssemos dinheiro para isso, teríamos ido para a ilha de João Fernandes, mas não quisemos
vender o porco.
A mãe riu-se daquilo. Ria-se muitas vezes, pensava que o pai era engraçado.
— A minha família já está crescida – declarou o capitão. – A minha mulher sente-se feliz onde está, em Verona, na
Florida. Este navio é a minha casa. Já andei por muitos portos … na costa oriental, México, América Central, através do
Canal e para norte, do outro lado, e digo-lhes uma coisa, mais palmeira menos palmeira, é tudo o mesmo.
— Isso é uma espécie de medo – disse o pai. – Quando um homem diz que as mulheres são todas iguais, prova que tem
medo delas. Já dei umas voltas ao Mundo. Já estive em lugares onde nunca chove e noutros onde a chuva nunca pára de cair.
Não diria que esses países são iguais e as pessoas são tão diferentes quanto os cães. Não iria lá se pensasse que eram todos
iguais e se fosse capitão de um navio permanecia no meu beliche. Espero lugares diferentes. Se as Honduras não o forem,
voltamos para casa.
— Gurney entoa os seus hinos. Bummick trabalha para a companhia das frutas. Isso é outra história, mas devem gostar de
lá estar, ou não ficariam.
— Se houver espaço, ficarei feliz. Acabou-se-nos o espaço na América. Foi por isso que eu disse: «Vamos embora!» As
pessoas, em geral, não dizem coisas dessas, já reparou? Os americanos nunca saem de casa. As pessoas dizem que querem
uma nova vida, portanto, mudam-se para Pittsburgo. Que espécie de vida nova é essa? Ou então vão para a Florida e pensam
que emigraram. Tal como disse, viajei muito, mas nunca consegui encontrar americanos que planeassem ficar lá, com a
excepção de alguns aleijados e de atrasados mentais que não sabiam onde estavam. A maior parte dos americanos são como
pombos-correios e nenhum deles tem a convicção suficiente para fazer o que nós estamos a fazer … agarrando em nós mesmos
e indo para um novo país, para sempre. Suponho que pensa que é desleal, mas um homem não consegue suportar tudo. Eu? Já
me sinto melhor neste navio. É por isso que lhe estou a dizer o que não fui capaz de dizer a ninguém lá na terra. Se dissesse
que me ia embora, chamar-me-iam fora-da-lei. Os americanos pensam que abandonar os Estados Unidos para sempre é um
acto criminoso, mas não vi outra saída. Para podermos pensar, precisamos de espaço para os cotovelos. Pois – continuou o
pai, agora a rir-se-, como já deve ter reparado, eu penso com os cotovelos!
Durante todo este tempo, as gémeas, Jerry e eu permanecíamos entalados de encontro à parede, onde os nossos braços
batiam quando comíamos. As gémeas tinham bocadinhos de pão torrado na sopa, porque o capitão também os tinha. No
entanto, não os comeram porque pareciam lavagem para porcos. Jerry, que odiava salsichas (o pai estava sempre a dizer que
as faziam com beiços de cavalos e orelhas de vacas), mal tocou no prato principal, excepto umas quantas ervilhas. Os garotos
também davam pontapés uns aos outros por debaixo da mesa. Fiquei com tanta vergonha deles que comi tudo o que o criado
preto meteu na minha frente. Estava na ponta da mesa, junto do capitão, que me cumprimentou dizendo que eu tinha muito
apetite e que iria crescer bastante para ser muito grande … e onde é que eu tinha metido toda aquela comida?
— Se quiseres, mostro-te a ponte – disseme. – Já te tenho visto a pescar na popa. Temos um sonar … podemos ver os
peixes no ecrã. Saberás qual o melhor momento para lançar a linha. Queres subir?
Perguntei ao pai se podia ir.
— Ouviste o que disse o capitão, Charlie. É ele quem manda. Este navio é o seu país, pode fazer o que quiser. É ele quem
dita as leis. Todos estes homens e todas as bombas do porão lhe pertencem … quer funcionem, quer não.
— Hasteio a bandeira dos Estados Unidos, senhor Fox – disse o capitão. – Não desprezo o meu país.
— Nem eu – retorquiu o pai.
O capitão aspirou o ar lentamente e insistiu:
— Ouvi o senhor a fazê-lo.
— Não tenho país – explicou o pai. – Um dia destes, muito em breve, também o senhor não o terá.
— Capitão – interveio a mãe-, gostaria de descer lá abaixo e de ver os porões, a casa das máquinas e os alojamentos da
tripulação. As crianças devem estar interessadas. Será uma boa lição … e poderão tirar algumas fotografias.
— Vê, estamos nós mesmos a educar estes garotos – disse o pai. Não me sentia satisfeito com as escolas. São apenas
pátios de jogos e só aprendem a pintar com os dedos. Professores pouco alfabetizados, garotos analfabetos. Os cegos a
conduzirem os cegos. Claro que ficam estragados … É desesperante.
— Os estudos em casa têm as suas limitações – afirmou o capitão. – Alguma vez experimentou?
O capitão disse que, quanto a ele, as escolas públicas eram boas e concluiu:
— Nunca tive qualquer razão de queixa do sistema escolar.
Ao ouvir aquilo, o pai estendeu o braço para uma das estantes e puxou por um livro. Colocou-o nas mãos de Clover. A
seguir pediu-lhe:
— Abre-o, querida, e lê o que lá vires.
Clover abriu-o e leu:
— Os erros da bússola são por vezes utilizados nos cál … cálculos de bússola como termo es … espacífico. É a soma al
… alga … algagébrica das va … variações e desvios, isto porque as va … variações dependem da localização ge …
geográfica e os desvios da rota do navio …
— Chega – disse o pai, fechando o livro de repente. – Só tem cinco anos. Gostava de ver um garoto da escola a ler aquilo.
— Rapariga esperta – comentou o capitão.
— Olhe, pense nesta actual crise de energia – continuou o pai. – A culpa é das escolas. Temos energia eólica, energia das
marés, energia solar e álcool … e ninguém liga. Acham graça e falam disso por alto, na escola, mas toda a gente vai para lá a
consumir petróleo árabe e óleo esquimó … para depois dizerem umas asneiras a respeito de moinhos de vento. Bom, e que há
de novo nos moinhos de vento? Os holandeses já os utilizam há anos. As escolas continuam a ensinar lições ultrapassadas e a
andar atrás das últimas modas … Não admira que os miúdos cheirem cola e tomem drogas! A culpa não é deles! Também eu
tomaria drogas se tivesse de escutar aquelas asneiras. E ninguém vê como as coisas podiam ser simples. Eh, estou só a pensar
em voz alta, mas repare no magnetismo. Já alguma vez ouviu alguém dizer qualquer coisa com sentido a respeito de energia
magnética?
— Os geradores têm magnetos lá dentro – disse o capitão.
— Electroímanes. Esses precisam de energia … e energia quer dizer combustível. Estou a falar dos magnetos naturais.
— Não vejo como é que isso poderia funcionar.
— Do tamanho de uma roda gigante.
— Não há magnetos tão grandes!
— Um milhar deles, sobre um par de rodas.
— Atraíam-se uns aos outros e colavam-se.
— Estou um passo à sua frente – retorquiu o pai. – Colocamo-los em ângulos diferentes, ao longo de trezentos e sessenta
graus, pelo que se obtém um efeito de atracção-repulsão com os campos magnéticos alternados.
— E para que serve isso?
— Temos uma máquina de movimento perpétuo. Podíamos iluminar toda uma cidade com uma máquina assim. No entanto,
fale no assunto a alguém e olharão para si como quem olha para um doido – disse o pai enfrentando o capitão, como se o
desafiasse a olhar para ele desse modo.
— O Allie é inventor – explicou a mãe. – Estou a ver – respondeu o capitão.
— Estritamente falando – continuou o pai-, não existem invenções. Quer dizer, não há criação, trata-se apenas de ampliar
o que já existe, de fazer uns acertos … Podiam ensinar essas coisas nas escolas. O Edison queria que a invenção fosse um
tema escolar, como o Francês ou os Estudos Sociais. Mas não, as escolas preferem pôr os miúdos a fazer bonecos, quando
podiam ensiná-los a ler. Encorajam-nos a papaguear! A escola é uma brincadeira! Harvard é uma brincadeira!
— O capitão está a oferecer-te café, Allie.
O capitão tinha a cafeteira suspensa sobre a chávena do pai e este comentou:
— Estão a ver? É sempre a mesma coisa. Quando se começa a falar num assunto importante, como o fim da civilização tal
como a conhecemos, as pessoas dizem: «Esquece-te disso … toma lá uma bebida!» É um mundo curioso. Estou satisfeitíssimo
por lhe estar a dizer adeus.
— Então não quer café? – perguntou o capitão.
— Não, obrigado. A cafeína faz-me falar demais. Eh, gosto deste barco de bananas! Vou até ao camarote para fumar um
charro. Pensei que os olhos do capitão lhe iam saltar da cara.
— Estava só a brincar – esclareceu o pai.
IX

O Unicorn avançava agora muito mais devagar. Era fácil de perceber pelos alfinetes espetados no mapa. Disse-o ao pai e
ele respondeu-me:
— Não percas esses alfinetes de vista, Charlie. Eu ando muito ocupado a ver se me escondo de Gurney Spellgood e dos
seus cantores de hinos. Ele reza para que me junte a eles … e eu rezo para que me deixem em paz. Vamos a ver quais as
orações que serão atendidas …
Nessa mesma manhã, mas mais tarde, olhava para os alfinetes amontoados em cima uns dos outros, quando Emily
Spellgood deu um pulo por detrás de mim e perguntou:
— Por que é que não estás a pescar?
— Não me apetece – respondi, saindo do convés.
— De onde vens tu? – insistiu, seguindo atrás de mim.
— Springfield – respondi, citando a maior terra que conhecia.
— Nunca ouvi falar em Springfield. Qual é a equipa de lá?
De que diabo estava ela a falar?
— É segredo – retorqui.
— Nós somos de Baltimore. Baltimore tem os Orioles. É a minha equipa. Quase ganharam o campeonato. Estou a estrear
um soutien. Encaminhei-me para a popa.
— Sei por que é que não estás a pescar. Aquela gaivota que mataste levou-te a linha. Foi bem-feito, porque és um
assassino. Mataste uma ave inocente, uma criatura de Deus. Elas são úteis, comem os restos. O meu pai disse uma oração por
essa gaivota.
— O meu pai disse uma oração pelo teu – respondi.
— Não tem o direito de o fazer – protestou. – O meu pai não precisa de orações, faz o trabalho do Senhor. Aposto que nem
sequer têm uma equipa. – Temos sim. Aparece na televisão.
— Qual é o teu programa favorito na televisão?
Aquilo arrumou-me. Não tínhamos televisão. O pai odiava-a, tal como aos rádios, aos jornais e aos cinemas.
— Os programas de televisão não prestam – respondi eu, utilizando a frase que o pai andava sempre a dizer.
— Deves ser maluco – disse Emily. Fiquei com a sensação de que o pai me deixara ficar mal, porque não soube o que
dizer a seguir. Emily continuou: – Eu vejo o O Incrível Hulk, Os Marretas e Modelos de Hollywood, mas o meu favorito é O
Caminho das Estrelas. Ao sábado à tarde vejo O Mascarilha … e vi Frankenstein combate o Monstro do Espaço e o Godzilla.
Metiam medo. Ao domingo de manhã todos nós vimos As Boas Novas e cantamos os hinos. O meu pai já esteve nesse
programa. Foi ele quem leu o sermão. Perdeu o lugar e teve de parar. Disse que as luzes lhe faziam mal aos olhos. As luzes da
TV até queimam as pessoas … é por isso que aparecem todas vermelhas. Aposto que o teu pai nunca esteve na TV.
— O meu pai é um génio – respondi.
— Pois, mas que é que ele faz?
— É capaz de fazer gelo do fogo. Eu vi.
— E para que serve isso?
— É melhor do que rezar.
— Isso é pecado – retorquiu Emily. – Deus castigar-te-á por isso.
Irás para o Inferno.
— Não acreditamos em Deus.
Aquela resposta deixou-a chocada.
— Deus acabou de te ouvir! – gritou. – Então, quem é que fez o mundo?
— O meu pai diz que quem quer que fosse fez um mau trabalho, e pergunta por que é que há-de adorar alguém que fez esta
confusão?
— Jesus disse-nos para o fazermos!
— O meu pai diz que Jesus era um profeta judeu e maluco.
— Não era judeu – disse Emily. – Isso de certeza. Deves andar numa escola muito estúpida, se pensas assim.
Não queria falar da escola – nem de Deus-, porque só me lembrava de metade das coisas que o pai me dissera.
— Lá na escola estudamos Comunicações – continuou Emily.
Miss Barsotti é a professora. Tem um Impala novo. É mesmo bonito, branco com estofos vermelhos e ar condicionado.
Gasta nove litros aos cem. Uma vez deu-me uma boleia, no assento da frente. A nossa escola em Baltimore tem duas piscinas
… uma delas de tamanho olímpico. Já aprendi a nadar. Naquele dia, no dia da boleia, Miss Barsotti comprou-me um Whopper
e uma Coca-Cola. Diz que o namorado dela é biónico.
O discurso deixou-me sem fala. Eu não tinha escola, não tinha piscina e não tinha nenhuma Miss Barsotti. Olhei por cima
da amurada, para o espelho verde do mar e pensei: se este é o tipo de parvos que vão à escola, então o pai tem razão. No
entanto, ela sabia coisas que eu não sabia, movimentava-se num mundo maior e mais complicado que o meu, falava outra
linguagem. Não podia competir com ela. Quis saber qual a minha estrela de cinema favorita, e qual o cantor, e apesar de ter
ouvido o pai a considerar essa gentes como bobos e palhaços, não havia convicção na minha voz quando repeti o que ele me
dissera. Quis saber qual o cereal que eu preferia para o pequeno-almoço, e fiquei demasiado embaraçado para lhe dizer que a
mãe fazia os nossos cereais de nozes e rolinhos de aveia, porque me pareceram improvisados e vulgares. Depois disseme que
era capaz de dançar «disco» e eu fiquei perdido.
— O teu pai é missionário – retorqui-, não podes viver em Baltimore. – Ah, isso é que vivemos. O meu pai tem duas
igrejas. Uma é em Guampu, nas Honduras, e a outra em Baltimore. A de Baltimore é um drive-in (1). – Que espécie de drive-
in?
— Há só uma espécie … aquela em que se entra com os carros. As pessoas entram com os carros e rezam … mas só aos
domingos de manhã, quando não há filme. Eh, tu és burro, és como um zambu.
Emily Spellgood era daquele outro mundo onde o pai nos proibira de entrar … mas que, no entanto, me parecia muito
atraente. Tinha coisa de que as pessoas se podiam gabar. Fazia com que a nossa vida parecesse aborrecida e caseira, tal como
os remendos nas nossas roupas. Se não podia ter aquela vida, então estava satisfeito por irmos para muito longe, para onde
ninguém nos podia ver.
Fui salvo pelo capitão Smalls. Apareceu numa espécie de varanda no convés superior e chamou-me:
— Anda cá acima, Charlie. Quero mostrar-te uma coisa.
— Vou ajudá-lo a dirigir o navio – disse, afastando-me de Emily Spellgood.
Na ponte, o capitão Smalls mostrou-me a bússola e os mapas. Deixou-me segurar na roda do leme e fez uma demonstração
com o sonar. Os cardumes de peixes viam-se como sombras. Dois conveses mais abaixo e ainda na popa, Emily ficara na
amurada. Perto dela encontravam-se dois tripulantes, um a regar a tampa de um porão e o outro a esfregar com uma rodilha.
— O meu pai inventou um esfregão mecânico – disselhe. – A gente quase que dança com ele, mas funciona sozinho.
— O teu pai deve ser um homem fascinante.
— É um génio – respondi.
— É melhor que seja – retorquiu o capitão. – Sabes para onde vos está a levar?
— Sim, senhor!
— Vês aquele homem naquele pendural, lá à proa?
O homem estava empoleirado num pilar cor de laranja e pintava-a de branco.
— A razão porque consegue fazer aquilo com tanta facilidade … é por ele ser meio macaco. No sítio de onde veio vivem
quase todo o tempo nas árvores. Alguns até têm caudas. Não é assim, senhor Eubie?
Eubie estava ao leme, mas não o mexia.

(1) Cinema ao ar livre em que os espectadores assistem nos seus automóveis. (N. Do E.).

— É verdade, capitão – respondeu.


Olhei atentamente para aquele homem pendurado e apercebi-me da sua semelhança com os homens do Polski.
— A selva dos Mosquitos – continuou o capitão. – Há aí gente que nunca viu um homem branco e que não sabe o que é
uma roda. Pergunta ao Reverendo Spellgood. Quando querem comer, trepam a uma árvore e apanham um coco. Não precisam
de trabalhar, tudo o que necessitam está à sua volta … e de borla. Alguns nem sequer usam roupas. É uma vida fácil e livre.
— É por isso que vamos para lá – expliquei.
— Pois, mas aquilo não é lugar para vocês – continuou o capitão.
Imagina um jardim zoológico … só que os animais estão do lado de fora e as pessoas estão presas em jaulas … casas,
campos e missões. Olhas pela vedação e vês as criaturas todas a olhar para ti. Elas são livres mas tu não. É assim que as
coisas são.
— O meu pai saberá o que fazer.
— Tegoose é um sítio muito mau – disse o capitão-, mas pelo menos é uma cidade. Eu não mandaria a minha família
sozinha para a selva, para que lhe uivassem, rosnassem e lhe mordessem.
— Não estaremos sozinhos.
— Odeio bichos – insistiu o capitão. – Nunca encontrarás um bicho neste barco. Não os suporto. No entanto, o teu pai
deve gostar muito deles. Cobras, besouros, percevejos, moscas, mosquitos, lodo, ratos. Abanou a cabeça. – E aquilo cheira
mal.
O telefone tocou. O capitão atendeu e uma voz inumana, do outro lado da linha, disselhe qualquer coisa.
— Pois – respondeu e desligou. A seguir virou-se para Eubie: Vamos ter mau tempo pela frente. – Para mim, disseme: –
Vamos apanhar vento. Agora é melhor ires andando, mas quando quiseres aparece aqui para falares comigo.
Ao almoço, o pai perguntou-me o que o capitão dissera a seu respeito.
— Aposto que disse mal de mim, hein?
— Não – respondi. – Só me mostrou o sonar.
— Pergunto a mim mesmo que mais terá ele recebido pelo Natal. Jerry disse que um dos Spellgood lhe falara dos
escorpiões. Morria-se se eles nos picavam. Clover e April tinham conversado com um dos membros da tripulação.
— Ensinou-nos palavras em espanhol – afirmou Clover.
— Uma vez fui picado por um escorpião, e ainda aqui ando. Falo espanhol como um nativo. Quanto ao sonar, Charlie, já li
coisas a seu respeito e aposto que posso ensinar a esse capitão mais do que ele é capaz de aprender!
— És um paranóico – disse a mãe, saindo da mesa.
— Estás zangada com qualquer coisa – comentou o pai, que depois olhou para nós. – Acham que sou um paranóico?
Dissemos que não.
— Então, venham comigo.
Levou-nos para o convés da popa. O Reverendo Spellgood começara a pregação empoleirado no seu lugar habitual, a
plataforma de um guincho. Permanecia ali, sob o céu coberto de nuvens, o cabelo empurrado para um lado pelo vento, orando
para a família reunida na sua frente. Logo que viu o pai, saltou para o convés e deu-lhe as boas-vindas. Ele disselhe que
estávamos muito ocupados. O Reverendo Spellgood respondeu que tinha um presente para ele, uma Bíblia.
— Não preciso dela – disse o pai.
Spellgood achou a resposta muito engraçada. Riu-se e olhou por cima do ombro para a família.
— Precisas, sim, irmão – declarou, mostrando-lhe uma Bíblia forrada a jeans.
— Fique com ela.
— Esta é a mais recente de todas – afirmou Spellgood. – A Bíblia Blue-Jeans. Foi traduzida em Memphis por toda uma
equipa de especialistas e desenhada por um psicólogo.
O pai pegou-lhe e deu-lhe algumas voltas. A seguir segurou-a entre dois dedos, como se a Bíblia estivesse encharcada.
— Temos também uma versão em espanhol – prosseguiu o reverendo. – Usamo-la na nossa paróquia. Aquela gente gosta
dela. As outras, com dourados, fitinhas de cor e todas essas coisas, assustavam-nos. Essa é para si, irmão.
O pai mostrou-nos a Bíblia. O tecido de jeans era verdadeiro, cosido por cima da capa, e tinha um bolsinho preso com
anilhas de metal.
— Olhem bem para isto, rapazes – disse o pai. – Isto é o tipo de coisa para que vos tenho chamado a atenção. – Devolveu-
a ao Reverendo Spellgood, dizendo: – O seu reino não é deste mundo, reverendo. O meu é.
— Que Deus lhe perdoe.
— O Homem é Deus – retorquiu o pai.
Avançámos junto às escotilhas da popa, até onde se encontrava o alto pilar de aço. Os paus-de-carga que tínhamos visto a
carregar a carga do cais, em Baltimore, estavam fixados com seis cabos cada um. O pai disse que se chamavam ovéns e que
estavam presos por moitões ao topo do guindaste.
— Do pendural – disselhe eu.
— Desculpa, Charlie. Do pendural.
— Foi o que o capitão lhe chamou.
— Bom, se foi o que ele lhe chamou, então deve ser esse o nome. Aquilo ali é um turco e os cabos, como já disse, são
ovéns. Pergunto a mim mesmo até onde conseguirias trepar nos ovéns. Serás capaz de ir até ao topo?
O céu – agora dividido em três partes – era púrpura, amarelo-pálido e cinzento. O vento atirava gotas de água. As nuvens
tinham-se amontoado sob a forma de chapéus fora de moda, com bicos e plumas, e o mar já não parecia tropical. Tinha a cor
das baías, riscado por tiras de espuma, e parecia estar a ser empurrado por baixo por formas como espáduas de baleias e
barbatanas de tubarões.
— Achas que és capaz, Charlie?
Enquanto o navio oscilava lentamente, vi o pilar, os paus-de-carga e os ovéns abanando para um lado e para o outro.
Ficava enjoado só de olhar assim para cima. Disse ao pai que estava enjoado. Disseme para olhar para o horizonte durante um
bocado e que logo me sentiria melhor.
— O enjoo é apenas uma incompreensão no ouvido interno.
— Jee … sus! – A voz do Reverendo Spellgood chegava até nós em farrapos transportados pelo vento. – … Amor … as
graças do Senhor …
O vento gemia nos ovéns tal como fazia nas vedações de Polski durante as noites de Inverno, quando o ar arrancava um
fino grito aos arames.
— Pode chover – disse eu.
— A água nunca fez mal a ninguém.
— O Charlie está com medo – afirmou Clover.
— Não, o Charlie não está com medo – disse o pai. – Está a estudar os ovéns para ver onde se poderá agarrar, não é,
filho?
— Há uma escada no poste – acrescentou Clover.
— Qualquer idiota consegue subir uma escada. Mas aqueles ovéns, se os trepares, ficarás pendurado por cima da água.
— Ali? – perguntei, apontando para o sítio em que se cruzavam sobre o convés.
— Não – respondeu-, no exterior. – Fez um gesto para os borrifos atirados pelo vento. – Ali é que é divertido. Os rapazes
da tua idade faziam isso constantemente nos grandes navios à vela.
Estava a testar-me, tal como fizera na praia perto de Baltimore, onde me desafiara a sentar-me na rocha. O pilar metálico
não era mais alto do que muitos ulmeiros a que eu trepara na quinta do Polski, mas o balanço do navio e o mar riscado de
espuma branca provocavam-me dores de barriga.
— Dói-me um pé – disse.
— Usa as mãos.
— Pai, tenho medo – declarei num sussurro.
— Então, terás de o fazer – insistiu-, porque fazê-lo é a única maneira de não ter medo. Ou preferes ir juntar-te àqueles
santos cantores e esqueceres o assunto?
Os Spellgood haviam iniciado um hino, que o vento transformava num som lento-rápido, resmungo-grunhido.
Não havia cabos atravessados nos ovéns, eram lisos e espessos, seis cabos suspensos dos moitões no alto do pendural. Se
os trepasse à mão, ficaria suspenso. Imaginei um método melhor. Se os trepasse à mão, parte do caminho, e depois pousasse
os pés no cabo inferior, poderia avançar numa posição mais vertical, tal como se caminhasse no alto de um muro, agarrado a
uma corda fixa.
— Estás a demorar – disse o pai. – Quanto mais tempo perderes mais assustado ficas.
— O capitão pode zangar-se comigo.
— Ah, então é desse parvo que tens medo!
— Deixa-me experimentar, pai – pediu Jerry.
— Poderás fazê-lo depois do Charlie.
Aquilo foi o meu incentivo. Para poder ver o Jerry a tentar e a falhar, teria de ser eu o primeiro. Descalçei os sapatos e
trepei para os moitões inferiores, que seguravam os cabos ao casco do navio. Icei-me um pouco.
— Bom rapaz! – disse o pai.
Trepei mais alguns centímetros e fiquei a olhar para a parte de cima do seu boné de basebol.
O vento empurrava-me e as gaivotas, como farrapos enlouquecidos, gritavam-me como se quisessem vingar-se daquela
que eu matara. Ouvia a voz esganiçada do Reverendo Spellgood, dirigindo o hino cantado pela família. Encontrava-me apenas
a dois ou três metros de altura, mas o vento era já tão forte como no cimo de uma colina, muito mais forte do que em baixo
porque o convés estava abrigado pela lona da amurada. Esperei que o pai visse as minhas calças sacudidas pelo vento e
percebesse como este me puxava as pernas à medida que subia. A meia altura virei-me e pousei os pés no outro cabo. Segurei-
me nessa posição durante um bocado para descansar os braços, tal como uma aranha numa racha da parede.
Olhava directamente para baixo, para o mar. Fervia por baixo de mim, quase todo espuma, e parte da espuma saltava-me
para os pés. Ali em cima, os ovéns soltavam um som diferente, um grito mais solitário, por estarem mais perto uns dos outros.
O balanço do navio fazia-me oscilar. Tinha frio pela primeira vez desde que me encontrava no navio. O movimento e o frio
deixavam-me mal disposto, daí ter ficado a olhar para o mar durante um instante. O tempo tornara-se tão mau que era
impossível dizer onde acabava o mar e começava o céu, o que me deixou ainda mais mal disposto. Tudo tão cinzento como
cobertores velhos. As gaivotas continuavam a gritar-me do alto do pilar e a cortar com os bicos a neblina semelhante a
algodão.
Segurando-me bem aos cabos e tentando avançar horizontalmente, recomecei a subida. Os cabos dos ovéns eram
gordurentos e as minhas mãos e os meus pés escorregavam se tentasse avançar demasiado depressa. Quando olhei para baixo
outra vez, o pai era minúsculo, não passava de uma pequena figura no convés, que me obrigara a fazer aquilo … e que nem
sequer estava a olhar! Debati-me com os cabos escorregadios sob o vento forte e verifiquei que me faltavam apenas cerca de
dois metros. Porém, chegara à parte mais difícil, pois os cabos formavam um molho apertado e não me conseguia encaixar
entre eles. Via com nitidez as roldanas dentro dos moitões e a placa de latão com o nome do fabricante, aparafusada no topo
do pendural e salpicada de sal.
Agora todo o branco navio rolava e balançava num negro mar cheio de altos e baixos. Agarrei-me com firmeza e tive um
novo medo … o medo de não conseguir descer dali. Só podia cair. A milhas de distância, sobre a água embranquecida, uma
escura nuvem encapuçada parecia um demónio a abrir caminho por entre as outras nuvens de um amarelo sujo. Não sabia se os
pingos de água que me atingiam eram salpicos ou chuva, mas o seu martelar assustou-me e paralisou-me as mãos.
— Atenção!
Era a voz do capitão saindo do altifalante. Fiquei surpreendido por conseguir ouvi-la acima do barulho do vento.
— Rodriguez e Santos para a popa! Vistam os coletes salva-vidas e tragam um cabo. Sr. Fox, deixe-se ficar onde está!
Pensei que se referia a mim e deixei-me ficar. Algum tempo depois, dei-me conta de que um negro trepava pelos ovéns,
por baixo de mim. Houve uma coisa que me satisfez, o homem trepava tal como eu o fizera, primeiro suspenso e depois
agarrando-se aos cabos como uma aranha. Tinha os olhos muito abertos e ofegava. Apareceu mesmo por debaixo de mim,
colocou-me um braço em volta da cintura e puxou-me sem dizer uma palavra. A seguir, enrolou as pernas em volta dos ovéns e
deixou-se deslizar, transportando-me suspenso por cima da água como quem leva uma saca de comida. A força do aperto e o
cheiro do homem eram muito piores do que a visão do mar a espumar por debaixo de nós. O negro passou-me a outro homem
que se encontrava no convés e este pousou-me com cuidado junto do pai.
Entretanto, o capitão gritava com o pai e nem sequer aguardava pelas respostas.
— Quem diabo pensa que é? Está a tentar matar esse rapaz? Não tem o direito …
Porém, o pai cruzara os braços e desafiava o capitão com uma espécie de sorriso de homem surdo.
— Você não deve estar bom da cabeça! – gritou o capitão.
O pai descruzou os braços e não pareceu nada preocupado.
— Se quer um bocado de excitação, pois irá tê-la, porque vamos apanhar mau tempo. Se provocar mais algum sarilho
como este, ponho-o em terra em San Juan. Lembre-se disso, Sr. Fox. – Virou-se para mim e prosseguiu: – Foi uma coisa muito
estúpida, Charlie. Pensei que fosses mais sensato.
O pai não falou enquanto o capitão não se afastou, mas a seguir disse: – Se tivesses trepado um pouco mais depressa, ele
não te veria. A propósito, não chegaste ao cimo.
— Medroso – murmurou Jerry.
Desejei ter caído dos ovéns para o mar e morrido afogado. Então teriam pena. Ainda pensei em atirar-me pela borda fora,
mas um único olhar para a água foi o suficiente para me assustar.
Eram apenas três da tarde mas o céu apresentava-se de um cinzento de cobertor. As vagas do mar estavam cobertas por
franjas de espuma que o vento desfazia em borrifos, e moviam-se tão lentamente como goma ao longo dos oscilantes flancos
do navio. Cambaleei, mas não foi por causa do susto que apanhara nos ovéns, pois Jerry e as gémeas também cambaleavam.
— Passa-se qualquer coisa com este navio – disse o pai. – Reparem … Pegou num dos discos de borracha do jogo do
tombadilho e pousou-o de cabeça para baixo, deitado sobre a face polida. Deslizou tremendo pelo convés, bateu num turco e
foi para junto de um dos pilares da amurada.
— O navio está a subir e a descer – afirmou Jerry.
— Apenas a descer – explicou o pai. Olhou para a ponte e sorriu. – É por isso que ele está tão irritado. Queres ir lá acima
e perguntar ao teu amigo o que se passa?
Estava a falar comigo. Abanei a cabeça. Não me atrevia a enfrentar o capitão depois do que ele dissera ao pai, a respeito
da minha subida aos ovéns. O capitão não compreendia que aquilo era um jogo a que brincávamos com frequência. Se o
tivesse feito melhor, o pai não teria sido apanhado e não lhe gritariam.
— O Charlie não quer ir perguntar ao capitão – prosseguiu. – Então, e vocês? Querem ir lá acima e ouvir o que ele tem
para dizer?
— Quero perguntar-te a ti – disse Clover.
— Boa menina!
A mãe apareceu no convés com o seu impermeável amarelo, agarrada à amurada.
— Um dos homens acabou de me dizer que vem aí uma tempestade. É melhor irem para dentro, o mar já está bravo –
declarou, e depois olhou para mim. – Charlie, estás coberto de óleo!
— Esteve a trepar aos ovéns, e fui eu que o mandei. Desceu por ordem do capitão.
Olhou para o pai com um ar de impotência e uma expressão de verdadeira agonia. Pensei que ia começar a chorar.
— Não te vires contra mim, mãe.
— Leva-os para dentro – respondeu.
— O problema não é a tempestade – disse o pai. – O problema é o navio. Suponho que o capitão isolou o porão, depois de
cheio de água.
Não conseguiu bombeá-la. Quanto pesam cinco litros de água, April?
— Cinco quilos – guinchou April, e Clover fez uma careta amuada.
— Era o que eu ia dizer.
— Com o peso de um compartimento do porão cheio de água e com mar agitado, parte da carga deve ter mudado de
posição. Se a bomba de bombordo está avariada, não pode contrabalançar esse desequilíbrio enchendo ou vazando os tanques
de lastro. No fundo, trata-se de um problema de bombas. Vejo que devemos estar com uma inclinação de cerca de vinte graus.
Estão a ver o convés? É a subir! – O pai olhou para mim. – Que grande capitão que ele é! Nem consegue manter o navio
direito!
Os Spellgood encontravam-se de joelhos perto da plataforma do guincho que lhes servia de igreja ao ar livre. Usavam
capuzes bicudos para a chuva e formavam uma fileira que parecia uma vedação de paus terminados em bico.
— Venham para aqui, irmãos e irmãs! – gritou o Reverendo Spellgood. Tinha o cabelo molhado e uma madeixa pegada ao
nariz. – Rezem um pouco connosco. Rezem para que as águas se acalmem.
— Isto ainda não é nada – afirmou o pai. – Vai ser muito pior. Tão para Sul? Provavelmente é um tufão que se calhar até já
tem nome, um nome como Mabble ou Jimmy.
— Então, reze pelo tufão – retorquiu o Reverendo Spellgood. – As orações são a resposta.
O pai grasnou para ele, disselhe que era melhor fazer qualquer coisa prática e que o navio estava vinte graus inclinado e
que não se endireitava.
— As orações são práticas! As orações são um selo de correio aéreo na nossa carta de amor para Jesus!
No entanto, o pai continuou a resmungar e empurrou-nos para a porta do camarote, dizendo:
— Gurney é um homem assustado. A sua Bíblia Blue-Jeans tem um rasgão no fundo das calças. Como não sabe o que se
passa reza como nunca! Eu sei o que se passa, o porão está cheio, a carga deslocou-se, o navio inclinou-se para bombordo. É
um problema que pode ser resolvido, se se souber como. Não é nada que precise de orações. Mas … não sou eu quem manda
aqui, ouviram o que o homem disse. Sou um passageiro e faço contas de continuar a jogar um gin rummy (1) até que a sineta
toque para o jantar … a não ser que também esteja avariada!
Parecia muito contente consigo próprio por ter descoberto o que estava mal no navio. Nas horas que decorreram até ao
jantar, foi o único membro da família que não ficou verde. Até chegou a sugerir um jogo de pingue-pongue, mas a mesa estava
tão inclinada que era impossível.
Durante o jantar dessa noite, depois do hino de acção de graças que eu já sabia de cor, o Reverendo Spellgood fez um
discurso. Ficou de pé todo torto como um homem com dores nas costas, por causa da inclinação do navio. Apesar de estar
virado para a família e de se dirigir a ela, fê-lo em voz muito alta. Percebi que queria que toda a gente o ouvisse.

(1) Variedade de jogo de cartas. (N. Do E.)

Eis o que ele disse:


— Uma vez, houve uma tempestade no mar e os passageiros de um navio apanhado por essa assustadora tempestade
ficaram tão enjoados que deitaram fora quase todo o guisado. Rebolavam pelo chão como porcos, gritando e chorando. A
tempestade enraivecida durou todo o dia e já pensavam que a morte lhes ia fazer uma visita. Então, uma dessas pessoas
enjoadas viu um rapazinho que não o estava e perguntou-lhe: «Rapaz, por que é que não estás enjoado quando todos os outros
vomitam as tripas e o mar está tão mau?» O rapaz levantou-se e respondeu de um modo muito simples e inocente: «O meu pai
é o capitão». Aquele rapaz acreditava, aquele rapaz confiava, era diferente de todos os outros que vomitavam e cuspiam. Os
outros rebolavam pelo chão, sentindo-se miseráveis, gemendo e duvidando, doentes como cães, enquanto o rapaz andava feliz
como um gafanhoto. O rapaz tinha no coração algo de grande valor. Tinha a fé. «O meu pai é o capitão.» Era assim que
procediam os cristãos – concluiu Spellgood, com as palavras a saírem aos safanões, a cara verde, agarrando-se à cadeira, e
indo-se, pouco depois, embora, creio que para vomitar, pois já nessa altura a sopa saltara para fora dos pratos de toda a gente
e a sala de jantar estava silenciosa, excepto quanto ao som da louça a chocalhar.
— É uma bonita história – disse o pai. – Mas tu vomitaste, Charlie, portanto, creio que não tens confiança no capitão …
Ah, olha quem aí vem.
Era o capitão Smalls. Parecia irritado, como se tivesse entrado onde não queria, e nem sequer se sentou. O Reverendo
Spellgood entrou logo atrás, muito sorrateiro, e olhou com tristeza para a comida.
O capitão fez um pequeno discurso. Disse que já devíamos ter notado que o tempo mudara. Acabaríamos por ultrapassá-lo
e esperava que ninguém fosse suficientemente louco para ir para o convés, e muito menos para trepar aos cabos. Aqui, virou
os olhos de peixe para o pai. Sim, continuou, a tempestade deslocava-se para nordeste e o navio avançava para sudoeste ao
longo do caminho da tempestade. Se andássemos depressa, poderíamos ultrapassá-la antes que se tornasse muito pior. Se
andássemos devagar, seríamos apanhados. O mau tempo não tinha nada de invulgar mas era preciso ter o bom-senso de tomar
algumas precauções, tal como permanecer longe dos cabos e não fazer outras asneiras no convés. Todas as garrafas de vidro e
outros objectos soltos deviam ir para dentro dos armários. Terminou, dizendo:
— Como sabem, tenho tanto controle sobre o tempo como um peixe. Ficou surpreendido quando começámos às
gargalhadas, porque assim que acabou de dizer aquela frase, ficou com a cara ainda mais parecida com um peixe e abriu e
fechou a boca como um cachucho.
O Sr. Bummick disselhe que guardaria as garrafas e explicou que se tratava apenas de garrafas com tónicos para o cabelo,
frascos de geleia e mais nada.
— Eu esvaziarei a minha – afirmou o pai. – Mas, entretanto, que se passa com o navio? Tem controle sobre isso, não tem?
Na sala, todos os olhos se deslocaram do pai para o capitão.
— O navio está sob controle, Sr. Fox – respondeu o capitão. Agora as atenções estavam voltadas para o pai. Virou-se para
nós e pediu:
— Preciso de um objecto redondo.
Levou a mão à cara de Jerry. Fazendo um movimento casual, o pai fingiu extrair uma bola de pingue-pongue da boca do
Jerry. Os garotos Spellgood ficaram espantados, o Sr. Bummick deixou pender a língua de admiração. No entanto, eu já antes
vira aquelas habilidades, os truques com as cartas, o anel que desaparecia e a maneira como ganhava às cartas. O pai, que
proibira toda a espécie de entretenimentos, tinha de nos entreter ele próprio.
— Obrigado, Jerry – disse. – Voltando à vaca fria, capitão, como é que me explica isto?
Colocou a bola de plástico em cima da mesa. Lá foi ela, poque-poque-poque por entre os pratos da sopa e por cima do
tampo, puca-puca-puca pelo pavimento, pipiti-pipiti-pipiti-pip-pip-pip por entre as pernas do capitão, e poque de encontro à
parede perto dos Bummick, onde ficou parada.
— Alguém pode partir uma perna se a pisar e escorregar – afirmou o capitão. – Pode ficar aleijado para o resto da vida.
— No sítio onde está, aquela bola de pingue-pongue não faz mal a ninguém … e não pode de lá sair. Porquê? Porque o seu
navio está com uma inclinação de vinte graus … ou mais. É por causa de um compartimento do porão, cheio de água? A carga
deslocou-se? A bomba deixou de funcionar? Não consegue encher os tanques de lastro para o equilibrar? Não sei. Estou
apenas a pensar em voz alta. Mas se está a controlar o navio, por que é que não o mantém direito sobre a quilha? Temos
andado a subir o declive do convés durante toda a tarde, e se alguém acabar por partir uma perna, capitão, não vai ser por
causa da bola de pingue-pongue. Não senhor, vai ser por ter escorregado no convés todo inclinado. Gostava de saber qual é a
situação legal se eu ficar paralisado por causa das suas … técnicas de navegação.
Em vez de olhar para a nossa, o capitão olhou para as outras mesas.
— Vai ficar direito – afirmou o capitão. – Tenho dois homens a tratar disso.
— Ora! – retorquiu o pai. – Está tão inclinado que o risco do meu cabelo apareceu do lado errado! Está a fazer com que os
Spellgood cantem desafinados. O Reverendo Spellgood começa as suas orações pelo fim, pelo «Amém!». Os meus garotos
não conseguem engolir e o sangue sobe-lhes à cabeça quando se sentam! Tão inclinado que a minha mulher coçou uma coxa a
pensar que coçava a cabeça!
O Sr. Bummick levou as mãos às orelhas e riu-se tanto que acabou por se engasgar e tossir.
— Olha, ele pensa que estou a brincar – prosseguiu o pai. – Estou apenas a dizer a verdade. Tenho de fazer tudo de cabeça
para baixo … ou não resulta. Sinto-me como um astronauta. O meu estômago pensa que estamos na Austrália.
— Basta, Sr. Fox – declarou o capitão, mas o Sr. Bummick continuava a rir-se e a tossir.
— E olhe para isto! – continuou o pai, levantando o coto do dedo. – O seu navio está tão torto que me cortei ao barbear e
arranquei metade do dedo. – Muito depressa, por causa das exclamações de horror (o dedo era muito feio), acrescentou: –
Estava só a brincar.
O capitão virou as costas ao pai e afirmou:
— Não se preocupem, temos tudo sob controle.
Encaminhou-se para a porta. A maneira como andava comprovava o ponto de vista do pai. Um dos ombros ia mais alto do
que outro. – Eu não estou controlado, capitão – disse o pai.
— Posso fazer com que fique e não se possa mexer nem uma polegada, Sr. Fox.
— Muito obrigado, capitão. Tenho estado a examinar a inclinação do seu navio e as minhas observações levam-me a
concluir que é cada vez maior.
— Como assim?
— Oh, porque o centro de resistência lateral do casco, está mais perto da proa do que o centro de gravidade. Está a dar
guinadas para o lado, ainda não deu por isso? Não creio que tenhamos grande sorte se apanharmos um tempo realmente mau

Parou de falar no preciso momento em que uma onda atingiu o navio por bombordo, atirando a sala de jantar para o lado,
despejando mais sopa dos pratos e obrigando o capitão a cambalear e a agarrar-se à porta para não cair.
— Aí tem uma amostra – insistiu o pai. – Olhe, capitão, não é altura para orgulhos. Sabemos que este mundo é imperfeito.
A inata estupidez dos objectos inanimados … não é assim? Creio que Deus está a tentar dizer-nos que nos ajudará, se nos
ajudarmos a nós mesmos. Não serve de nada dizer-nos: «Não se preocupem», porque estamos nas Caraíbas e é aqui, corrija-
me se eu não tiver razão, que as pequenas tempestades se transformam em tremendos furacões. Aquele barulho que estamos a
ouvir não é o de um jacto Jumbo a passar pela vigia … é o vento.
— Está a atrasar o jantar, meu amigo – disse o capitão.
— Bolas! – exclamou o pai. Nunca o tinha ouvido dizer «bolas!»
Ninguém o vai manter na barriga o tempo suficiente para que isso faça diferença. Tal como estava a dizer … penso que o
navio está adernado. Terei razão?
— É um pequeno problema de distribuição do peso.
— A bola de pingue-pongue ainda não se mexeu, portanto, chamemos-lhe inclinação.
— Endireitaremos a carga.
— Portanto, admite que ela se deslocou.
— É um pequeno problema.
A chuva puxada a vento martelou no vidro da vigia como borrifos numa chapa de grelhados.
— Então ainda bem – retorquiu o pai-, porque tenho uma pequena solução. Calculo que se trata de um problema com uma
bomba e que Um dos compartimentos do porão está cheio com algumas toneladas de corrente do Golfo. Portanto, não tem
maneira de redistribuir o peso, capitão. Mas sabe, creio que o posso ajudar.
— Duvido.
— Tenho a certeza. Gostaria de participar. E se eu conseguir endireitar este navio, se o senhor não ficar contente com o
meu trabalho, pode deixar-me, e a toda a minha família, no porto mais próximo.
— Pode ser Cuba – disse o capitão colocando a mão por cima da boca, talvez para evitar o sorriso.
— A perspectiva deve chegar para o tentar – continuou o pai.
O capitão ficou silencioso. Na vigia, a chuva e o vento estalavam como paus a arder. Por fim, olhou para o pai mas
dirigiu-se aos outros.
— Os senhores são testemunhas. Se este homem me fizer perder o meu tempo, pagará por isso.
— Não temos nada a perder.
— Aqui, o senhor e a sua família são os únicos com algo a perder.
Que Deus o ajude!
— É tudo boa gente.
— Sr. Fox, estamos de acordo. Venha ter comigo depois do jantar e dar-lhe-ei uma oportunidade. É melhor que coma bem
porque amanhã poderá achar-se numa terra estranha, onde ao pequeno-almoço comem pessoas como o senhor.
O capitão Smalls saiu e bateu com a porta. Fez-se um silêncio e ninguém sabia para onde olhar.
— Eu não vos disse que este navio estava de cabeça para baixo? – perguntou o pai. – Todo o alfabeto da minha sopa de
letras está ao contrário!
Ninguém se riu. A tempestade piorara e agora todos sabiam por que é que o navio adernava. O resto da refeição foi
servido muito depressa, por criados cambaleantes que seguravam as bandejas com as duas mãos, em vez de as segurarem com
as pontas dos dedos.
A discussão que se seguiu, que ouvi da casa de banho entre os camarotes, foi a meu respeito. O pai queria que eu fosse
com ele. «É educativo», afirmou, mas a mãe disse que não. Não queria que eu ficasse a pé a metade da noite, nem que andasse
a bater com a cabeça na casa das máquinas. O pai declarou que eu sabia mais sobre a reparação de bombas do que qualquer
daqueles selvagens, mas não falava a sério, o que queria era alguém para lhe fazer companhia. Não gostava de trabalhar
sozinho. Precisava de alguém que lhe escutasse os discursos.
De qualquer modo, não lhe podia dar uma grande ajuda porque as mãos ainda me doíam de ter trepado os cabos dos ovéns.
— Meteste-nos num sarilho, Allie – disse a mãe, falando-lhe no mesmo tom com que falaria com Clover-, portanto, agora
trata de nos livrar dele.
— O capitão é que está metido num sarilho – respondeu, confiante como sempre. – Num caso normal, nunca me ofereceria
para o ajudar. Preferia ficar a ver como é que ele se safava. No entanto, estou preocupado com a segurança dos passageiros e
penso que é tempo de este navio começar a andar a direito e depressa. Aqui está a minha caixa de ferramentas. Onde que é
está o boné de basebol? Não sou capaz de fazer nada sem o boné …
Antes de se ir embora – e estava com o seu ar habitual, como quando ia trabalhar para a quinta do Polski-, meteu a cabeça
no nosso camarote e perguntou-me:
— Queres algum recado para o teu amigo?
Sem esperar pela resposta, enfiou pelo corredor, batendo com a caixa de ferramentas nas paredes, cada vez que o navio
balançava.
Foi então que percebi que fazia tudo aquilo apenas por minha causa, porque o capitão me convidara para a ponte, porque
eu admirara o sonar, e porque o capitão gritara com ele na minha frente e dissera: «Você não está bom da cabeça!» Já
conseguira provar que era capaz de fazer mais citações do que Gurney Spellgood, que podia muito bem com o Sr. Bummick …
mas agora queria demonstrar que era melhor do que o capitão.
Não tinha dúvidas de que o conseguiria. Nunca o vira falhar. As pessoas, por vezes, não entendiam o pai, porque fazia
caretas quando brincava e ria-se quando falava a sério. Também nos dava informações que não faziam falta nenhuma, como:
«Isto são os turcos.» Mas aqueles de nós que o conheciam, nunca duvidavam dele. Se havia uma coisa que o pai não sabia, era
isto: que não precisava de andar sempre a exibir-se à nossa frente. Na altura, pensei que o pai gostava de correr riscos. No
entanto, qual é o risco para um homem forte? Não receava nada, portanto, estávamos a salvo. Eu era o rapazinho da história do
Reverendo Spellgood … confiava no pai. Não tinha medo.
O navio recebeu o choque das ondas e do vento durante toda a noite, e o som era como o ressoar de pedras de sílex de
encontro ao casco. Bati com a cabeça na estrutura do meu beliche, e Clover e April choraram. Acordaram-me para me dizerem
que não conseguiam dormir. Escutei o barulho da água. Por vezes parecia que chocalhava no pavimento e avançava pelos
corredores, e que estávamos debaixo de água. Afoguei-me durante toda a noite, em sonhos. A manhã surgiu escura, o navio
ainda arfava e balouçava. Porém, agora já não se esforçava, os movimentos eram fáceis, não aquelas descidas súbitas com as
ondas todas a baterem de um lado e com os conveses inclinados. Era um movimento desprendido e livre, uma deslocação para
cima e para baixo que fazia com que os meus lápis rebolassem, para um lado e para o outro, em cima da mesa do camarote.
O pai não apareceu ao pequeno-almoço. O Reverendo Spellgood levou a família a cantar o hino habitual e os Bummick
comeram em silêncio. A mãe partiu o ovo escalfado com a colher como se lhe quisesse provocar uma concussão.
— Ao menos o pai não nos obriga a cantar – declarou.
Mas o pai apareceu a cantar. A porta da sala de jantar abriu-se e o pai entrou, ainda com o boné de basebol. Tinha o rosto
pálido e por barbear, e o nariz sujo de óleo. Cantava: «Debaixo do bam,/Debaixo do bu;/Debaixo da árvore do bambu!»
— Amém, irmão – disse o Reverendo Spellgood.
— Pode dizer que foi o poder da oração, reverendo … mas eu diria que se tratou de hidrostática. Eh, era capaz de comer
um cavalo!
Disse-nos o que tinha feito. Trabalhara até à meia-noite na reparação da bomba. «As buchas estavam gastas», explicou. A
seguir, haviam esvaziado a água do mar do porão, mas isso só corrigira um pouco da inclinação. Dirigindo a tripulação («Foi
divertido, foi como estar de volta ao Polski a trabalhar com aqueles selvagens»), tinham esvaziado um tanque de balastro e, a
seguir, com a ajuda de guinchos, colocaram de novo nos seus lugares os contentores da carga. «Um deles tinha um Toyota lá
dentro, um enorme e estúpido jipão, um daqueles pesadelos japoneses.» O trabalho só acabara de madrugada, mas o navio
ganhara velocidade e endireitara-se.
— O teu amigo capitão foi para a cama por volta das quatro, quando quase tudo estava arrumado. – O pai piscou-me um
olho. – Não aguentou a tensão. Que te disse eu da coragem das quatro da manhã?
O criado trouxe-lhe café e ovos. O pai falou-lhe em espanhol. O homem escutava com os dentes a baterem.
— Disselhe que já não tem que se preocupar – explicou-nos. – Que tratei de tudo lá em baixo. A partir de agora teremos
uma navegação sem problemas. Bom, vou-me deitar. Sorri, mãe.
— Estava a pensar no pobre do capitão. Sabes, tu consegues ser muito irritante.
O pai colocou os cotovelos em cima da mesa e sussurrou:
— Foi maravilhoso ver a maneira como os homens seguiam as minhas ordens. Assim que a bomba começou a funcionar,
ficaram todos do meu lado. Mãe – acrescentou, e o seu rosto branco assustou-me-, eu podia ter iniciado um motim lá em
baixo!
Com o pai a dormir, o navio era mais sossegado. Durante o dia as nuvens diminuíram, a tempestade amainou e a voz do
Reverendo Spellgood e os seus hinos eram agora mais fortes do que o som do vento nos ovéns. Quando o Sol surgiu, o
ambiente tornou-se tropical e fez desaparecer toda a humidade do navio. O pai apareceu ao fim da tarde, barbeado e limpo, e
foi dar um passeio pelo convés. Tanto os Spellgood como os Bummick lhe perguntaram quando chegaríamos ao nosso destino.
O pai discutiu com eles as várias possibilidades. Rebolava-se todo nos louvores daquela gente, tratava os tripulantes pelos
nomes e brincava com eles em espanhol.
O capitão Smalls permaneceu na ponte. Não convidou ninguém para jantar com ele. Na verdade, nunca mais o vimos.
— Está apenas envergonhado – disse o pai. – É natural. Suponho que pensa que tive uma boa educação na universidade.
Emily Spellgood seguia-me de convés para convés. Deu-me uma linha de pesca que roubara a um dos irmãos. O pai
conseguira impressionar até aquela garota gabarola. Passei o resto do tempo a pescar com ela atrás de mim. Apanhei alguns
peixes achatados e cheios de espinhas, um que tinha barbatanas rígidas e direitas como asas e um outro tão vermelho como
uma flor.
— Tenho de ir à casa de banho – disse Emily.
Fiquei todo encarnado. Fingi que havia qualquer coisa que não estava bem com os meus apetrechos de pesca e entretive-
me a mexericar-lhes.
— Tens alguma namorada, Charlie?
Disselhe que não.
— Então, eu podia ser a tua namorada.
Tinha um ar tão triste, tão simples e solitário. Era uns centímetros mais alta do que eu. Disselhe que estava bem mas que
tinha de ser segredo.
Tocou-me numa perna e apertou-a. Era a primeira vez que uma rapariga me tocava e a perna deu um salto com tanta força
que cheguei a pensar que se ia soltar da articulação. Emily abriu muito os olhos e disseme, num murmúrio:
— Agora vou para a casa de banho a pensar em ti.
Fugiu a correr e fiquei à espera. Pensei que voltara a ter a inflamação provocada pela hera venenosa, tantas eram as
comichões. Mal conseguia pescar, porque não via bem. Quando voltei a vê-la, estava a rezar junto da plataforma do guincho.
Isto foi no dia em que chegámos à cidade de La Ceiba. O mar estava liso e verde, e a terra para lá dele era uma cordilheira
de montanhas, negras e azuis, com nuvens penduradas nelas como rolos de fumo. Navegámos para o cais e as nuvens
afundaram-se mais nas montanhas e nas copas das árvores, revelando uma série de picos, alguns como espinhos dorsais de
monstruosos lagartos, outros como dentes molares.
SEGUNDA PARTE – A CASA DO GELO DE JERÓNIMO
X

Sete pelicanos de penas escuras e pintalgadas voaram por cima do mar verde, em formação, como uma esquadrilha de
aviões em voo rasante.
— Odeio aqueles pássaros – disse o pai. Havia também gaivotas e abutres. – Há qualquer coisa nas costas que atrai todos
os comedores de carne morta – acrescentou.
Via-se uma vaca na praia, vagões de comboio no cais, e a cidade de La Ceiba, muito baixa, exibia um ar amarelado e
apinhado. Centenas de homens tinham ido ao encontro do navio, não para nos darem as boas-vindas, mas para discutirem uns
com os outros. Tudo tinha um ar atrasado.
— Vocês, garotos, podem ir andando. Já têm as vossas mochilas. No entanto, estávamos tão alarmados com o barulho e o
calor que esperámos que se despachasse do funcionário dos passaportes e carregasse as ferramentas e as sacas de sementes na
carreta de um negro. A seguir fomos atrás dele com a mãe, que parecia suster a respiração.
Os Spellgood, sempre a cantar hinos, foram recebidos por uma trupe de meninas de coro negras, de vestidos cor-de-rosa e
chapéus de palha inclinados para trás. Os Bummick foram abraçados por pessoas que se pareciam com os Bummick, um rapaz,
uma mulher e dois velhos vestidos de caqui. Havia barcos de madeira amarrados ao cais, carregando caixotes de sopas
desidratadas e sacas de arroz. Tinham coberturas de lona em vez de cabinas, e nomes como Little Haddy, Lucy e Island Queen.
Nunca vira tanta gente junta sem fazer nada, permanecendo por ali, sentados ou de pé, chamando nomes uns aos outros. No
ponto onde o cais se juntava à rua principal, vendiam cestos de frutas e bolas de gordura envoltas em folhas verdes. Estava lá
uma negra muito gorda, com um vestido rasgado e uma catatua branca empoleirada num ombro. Usava um par de chinelos de
quarto muito sujos e vendia laranjas. O pai comprou seis laranjas e perguntou-nos:
— Quanto é que custavam na loja de Springfield?
— Trinta e nove cêntimos cada uma – responde Clover.
— E eu acabei de comprar seis por um quarto de dólar! Penso que viemos para o sítio apropriado!
O pai meteu-se no meio da multidão e a mãe comentou:
— Adoro-o quando está assim tão feliz! Olhem para ele! Apressámo-nos em direcção à praia e quando o alcançámos
ouvimo-lo dizer:
— Não estou a ver ninguém a invadir esta cidade. Não consigo imaginar barcaças de desembarque nesta praia. Tu
consegues, mãe?
— Para que é que alguém se daria a esse incómodo?
— Era exactamente o que eu queria dizer.
Declarou que gostava de andar na praia e sentir a areia entre os dedos dos pés. O negro ficou na estrada, com os nossos
pertences na carreta. Tinha ar de quem estava habituado a esperar. Passámos pela frente de um edifício baixo, virado para o
mar. Na sua frente e na praia, um rapaz com uma espingarda observava dois outros rapazes que abriam uma vala profunda na
areia. O pai disse que os cavadores eram presos e que o edifício baixo era a Prisão Central.
— Nos Estados Unidos, passarões como estes estão a olhar para a televisão, portanto, não me digam que abrir buracos é
uma tortura. Estão apenas a enterrar os desgostos.
A vaca avançava lentamente em direcção a umas barracas, com os cascos a enterrarem-se na areia castanha. Nunca tinha
visto uma vaca tão magrizela … e que estava ela a fazer na praia? Ali perto, um cão roía um crânio que me parecia ser de
outro cão. O mar era acastanhado, as ondas preguiçosas lançavam garrafas de plástico, farrapos e cascas de cocos para a areia
escura. Quando me encontrara na amurada do Unicorn, vira aquela praia de um branco encadeante, mas ali perto dos
prisioneiros que cavavam, da vaca, do cão que rosnava para o crânio, a impressão era diferente. Tudo aquilo e o ar empestado
davam-lhe a atmosfera de uma incrustada e enlouquecida costa de selva. A costa de Mosquito, chamara-lhe o pai … e era um
bom nome. Gente descalça observava-nos, mas ninguém nadava na água. Um homem, na parte baixa da praia, atirou uma rede
redonda e mole para dentro de água. A seguir puxou-a para fora, sacudiu-a para que os pesos caíssem e segurou-a com os
dentes enquanto a desembaraçava. Atirou-a outra vez. Vi-o fazer isto oito vezes. Não apanhou um único peixe. Aquela
actividade era mais uma lavagem da rede do que uma pescaria. Ouvíamos gente a gritar no cais e o barulho metálico dos
guindastes do navio. O Unicorn jazia amarelecendo sob o sol-poente. Tive pena de já não nos encontrarmos nele.
Passámos pelo homem com a rede em direcção às barracas encostadas à praia. Havia gente a viver nelas, apesar de não
serem melhores do que palheiros e nem sequer servirem para galinheiros por causa das tábuas soltas, e dos telhados que
tinham todo o aspecto de deixarem entrar a chuva. No entanto, havia lá gente cozinhando e dormindo, vi o lume e as redes de
dormir. Por causa das barracas, era difícil caminhar na areia, pois de cada uma delas saía um rego de água negra que se
estendia pela praia. Levavam lodo, espuma e coisas ainda piores, e corriam para o mar. A praia era a lixeira e o mar o
vazadouro.
— Allie, já vi o bastante – disse a mãe.
Quando fizemos o caminho de regresso para junto da carreta, ouvimos música. Vimos um rapaz com uma flauta, a
cambalear na nossa direcção. Tocava uma gorjeante canção que lançou uma suave magia sobre a praia, agora num tom tão
púrpura e azul como o céu por cima do mar. Era uma estranha música, com uma melodia gotejante, que adoçava o ar como
gotas de chuva. O rapaz era uma sombra, a sua flauta não era maior do que um raminho, mas a canção era um convite para
ficarmos um pouco mais de tempo na costa de Mosquito. Tinha em si uma promessa e um apelo, liquefeita como o pipilar de
um papa-figos numa árvore frondosa.
Mas o rapaz foi-se e ficaram as vozes secas na súbita escuridão. Tive medo. Estávamos tão longe de casa. O pai e a mãe
caminhavam à nossa frente, de mãos dadas e murmurando. Nós, crianças, seguíamo-los e pensávamos: «E agora?»
— Isto é tudo lixo, cheira mal, é uma porcaria. Odeio este lugar disse Jerry.
— Não digas isso ao pai – aconselhei-o.

Entrámos na cidade à noite, sob uma lua brilhante e cheia de manchas, e foi como um passe de mágica … os halos dos
velhos candeeiros, os edifícios sólidos, as árvores acolhedoras, as ruas meio desertas e o zunzum do trânsito. Fomos para um
hotel e do nosso quarto a cidade era como veludo. Imaginei que toda ela era feita de almofadas verdes, fantasmagoricamente
tranquila e fresca. Sonhei com prados de relva e rebolei-me, abri os braços e voei sob uma luz amanteigada e por cima de
lugares que conhecia. Era frequente conseguir voar durante os sonhos, não muito alto, mas o suficiente para que as pessoas
tivessem de virar os rostos para cima para me poderem ver. Estava uma bela noite e ter chegado ao fim daquela tempestuosa
viagem por mar, era como ter chegado a casa.
Porém, de manhã, aves a que não podia dar um nome, gritaram de encontro à janela e, na escuridão do quarto empoeirado,
brilhavam faixas de luz nas fendas das portadas. Abri-as e vi que a cidade como que explodira sob a luz do Sol. Uma cidade
fendida, descolorida, repleta de gente que gritava por cima dos ensurdecedores apitos dos automóveis. Agora nem era mágica,
nem tinha nada de familiar. Os odores e sons eram uma discussão idiota que eu não conseguiria vencer, e fazia tanto calor que
até me vinha o cheiro da velha tinta do parapeito. Tinha sido enganado e odiava o que via. Fora preciso tanto tempo para
chegar ali … e mesmo que partíssemos agora, precisaríamos de muitos dias para voltarmos à nossa própria casa.
A mãe e o pai estavam noutro quarto. Nós espreitávamos pela nossa janela para aquela cidade de pequenas lojas. Havia
uma igreja caiada do outro lado de um jardim de palmeiras, onde se viam homens de pé sem fazer nada. A musica de rádio na
rua – a rua! – estava tão alta que o barulho parecia aquecer o ar. Recordei-me da sinistra praia, dos rapazes presos a cavarem
na areia, um deles metido no buraco até aos ombros. Estava à espera de árvores, selva, tranquilidade e pássaros a cantar. O
pai prometera-nos uma coisa melhor do que a que tínhamos em casa e não aquele sítio cheio de pó. Era como um pesadelo de
ruínas de Verão, uma cidade destruída pela luz.
O hotel cheirava a tapetes e à cozinha. O quarto onde se encontravam as nossas quatro camas era uma cela nua, mas numa
parede havia uma fotografia colorida, provavelmente recortada de um calendário, de uma cena da Nova Inglaterra. Bosques,
um lago que reflectia uma montanha, uma canoa vermelha no lago. Quem quer que fosse que a recortara e colara na parede,
sabia que era mais bonita do que a cidade.
— Parece o lago Wyola – disse Jerry.
O pai foi acordar-nos. Soprou fumo de charuto no nosso quarto e declarou estar esfomeado.
— Continua contente – comentou Clover.
Quando nos aproximámos da sala de jantar do hotel para tomarmos o pequeno-almoço, ouvimos cantar um hino … Eram os
Spellgood que também ali tinham ficado, cantando com as cabeças dobradas sobre os pratos da comida. A Emily parou de se
coçar quando me viu. A sala de jantar daquele hotel era como a do Unicorn, com os Spellgood em duas mesas, nós na nossa e
trabalhadores da companhia das frutas, iguais aos Bummick, nas outras. Todos se preparavam para o pequeno-almoço.
— Ah, cá está o Sr. Fox! – exclamou o Reverendo Spellgood. Penso que o Bom Deus sempre nos quer juntar! Se ficar aqui
na área algum tempo, junte a sua família e faça-nos uma visita. Pode encontrar-nos em Guampu, fazendo o trabalho do Senhor.
— O Senhor não me mencionou Guampu – respondeu o pai. – De qualquer modo, gostaria que Ele falasse comigo. Podia
dar-lhe algumas sugestões, no caso de estar a planear outros mundos. Não há duvida que criou aqui uma grande confusão.
— Meu amigo – disse o Reverendo Spellgood com um ar triste-, há muito trabalho a fazer.
— Já tinha dado por isso.
— Nunca chegou a dizer-me qual a sua intenção ao vir para aqui prosseguiu o Reverendo Spellgood.
— Tem toda a razão, Gurney. Nunca lho disse.
O pai sentou-se depois daquela resposta e tomamos o nosso pequeno-almoço, feijões esmagados que pareciam barro
vermelho, um pequeno quadrado de um húmido queijo de cabra e um montão de tortilhas.
— Vamos embora daqui – afirmou o pai. – Da cidade? – inquiriu a mãe.
— Deste hotel. Metade das pessoas que se encontram na sala está armada. Até o Gurney tem uma arma … Traz uma pistola
por debaixo da camisa. Deve estar convencido que pertence ao Exército do Senhor. Já estive lá fora. Só há soldados e garotos
engraxadores. Não sei quais os piores, eles ou os missionários.
Emily Spellgood olhava para mim do outro lado da sala.
— Não percebo por que é que temos de ficar aqui. Podíamos meter-nos à estrada – disse a mãe.
— Não há estradas … e é nisso que está a beleza deste país. No entanto, não somos os Robinson Suíços e não ocupamos
terra ilegalmente. Vou comprar um bocado de terra, pagamento a pronto. Não quero que um desses pistoleiros me expulse, ou
me assalte à mão armada. Depois disso, ficaremos sozinhos e então não me ralo que … Oh, Deus, aí vem ele outra vez!
Era o Reverendo Spellgood, conduzindo a família para a saída da sala de jantar. Piscou o olho ao pai e pronunciou:
— Guampu!
Emily escapou-se por trás da minha cadeira e murmurou-me:
— Vou à casa de banho, Charlie.
— O Charlie está a corar! – gritou Jerry.
Mudámo-nos nesse mesmo dia, sob uma chuva torrencial, para outro hotel. Chamava-se «A Gardénia» e ficava na
extremidade oriental de La Ceiba, numa estrada arenosa junto à praia. A chuva continuava a cair, arrancando as folhas das
árvores. Caía a direito, barulhenta, espessa e cinzenta, e parava tão depressa como surgira. A seguir vinha o sol e o vapor, e
regressavam os cheiros.
O hotel era um edifício de dois andares coberto a estuque. Por baixo da pintura de um verde desbotado, viam-se as rachas
das paredes. O seu comprido pátio de entrada tinha uma boa vista para o mar e para o cais, onde o Unicorn continuava
atracado. O navio era a minha esperança. Por cima da superfície da água chegavam-me os sons das vozes dos homens, o
estrépito das correntes e os arranques das camionetas de carga. Durante o dia éramos os únicos no hotel, mas, à noite, um
pouco antes de irmos para a cama, havia mulheres que se sentavam nas cadeiras de verga do pátio, bebendo Coca-Cola. Mais
tarde, havia música e gargalhadas. Do meu quarto ouvia homens, gritos e portas a bater, e, por vezes, o ruído de vidros
partidos. Nunca vi essa multidão que, no entanto, me acordou muitas vezes com o barulho dos pés, com canções e gritarias. De
manhã tudo estava tranquilo. A única pessoa que por ali andava era uma velha com uma vassoura, que varria o lixo para um
monte e depois o levava num balde.
O gerente do hotel era um italiano chamado Tosco. Usava uma pulseira de prata e beliscava-nos a cara com demasiada
força. Outrora, vivera em Nova Iorque. Dizia que fora um inferno.
— Entendo o que quer dizer – comentava o pai.
Tosco gostava das Honduras. Era agradável e barata. Ali podia-se fazer o que se quisesse, afirmava.
— E que tal é o presidente? – perguntou o pai.
— Igual ao Mussolini – respondeu Tosco.
O nome escureceu o rosto do pai. Com essa sombra ainda estampada na cara, continuou:
— E como era o Mussolini?
— Duro. Forte. Não era para brincadeiras. – Fechou um punho e agitou-o por debaixo do queixo do pai. – Era assim.
— Então é melhor que não se meta no meu caminho.
O pai passava parte dos dias na cidade. Enquanto lá estava, a mãe dava-nos lições na praia, sob um céu de trovoada. Era
como brincar. Escrevia na areia húmida com um pauzinho, dando-nos problemas de aritmética para resolver, ou palavras para
soletrar. Ensinou-nos os diferentes tipos de formações nebulosas. Se por acaso encontrávamos um peixe morto, desmanchava-
o e dizia-nos os nomes de cada uma das partes. Havia flores a crescer por debaixo das palmeiras. Apanhava-as e ensinava-
nos os nomes das partes da flor. Em Hatfield estudávamos dentro de casa para evitar o inspector escolar, mas eu preferia
aquelas lições na rua, em que estudávamos o que descobríssemos na praia.
A mãe era diferente do pai. O pai fazia-nos prelecções mas ela nunca botava discurso. Quando ele por ali andava, a mãe
dava-lhe toda a sua atenção, mas logo que ficava sozinha, essa atenção era nossa. Respondia a todas as perguntas, mesmo às
mais estúpidas, como, por exemplo: «De onde é que vem a areia?» ou «Como é que os peixes respiram?».
Quando regressávamos ao hotel, em geral, o pai já lá estava no pátio, com alguém da cidade.
— Este é o senhor Haddy – dizia. – Um velho marinheiro destas costas.
O homem de pele de ameixa seca levantava-se com os ossos a ranger e saudava-nos. Não havia nada que Juanita Shumbo
não soubesse a propósito da criação de perus. Era uma velha negra de olhos vermelhos. O Sr. Sanchez passara a vida a subir e
descer o Patuca. Era pequenino e acastanhado, com um bigode curvo. O Sr. Diego falava zambu como um nativo, dizia o pai,
fazendo com que o homem dissesse uma saudação em zambu. Pareceu-me um espirro. Havia muitos outros e todos eles
escutavam o pai com toda a atenção. Mostravam-se respeitosos e pareciam nervosos, sentados nas cadeiras ao abrigo do sol,
olhando-o com admiração.
— O pai é maravilhoso para os estranhos – dizia a mãe.
Os estranhos deixavam-me inquieto pois não tinha uma ideia clara a respeito dos planos do pai ou sobre qual o papel
daquela gente.
Desejava ter a coragem do pai. Como não a tinha, agarrava-me a ele ou à mãe, porque tudo o que eu conhecera e que fora
confortável me havia sido tirado. Os outros garotos eram demasiado jovens para compreenderem até que ponto nos
encontrávamos longe de casa. Excepto quando ao Unicorn, ainda no cais, o passado fora apagado.
Uma tarde, quando voltávamos da praia, vimos Tosco junto ao hotel a conversar com o seu Chevrolet. Fazia-lhe perguntas
e chamava-lhe nomes feios. Estava de pé, junto à grelha do radiador, gritando-lhe, batendo-lhe e acabando por fazê-lo
estremecer com um pontapé.
— É estúpido – disse, sacudindo o pé por causa das dores. – Não quer andar. Odeia-me.
— O meu marido arranja-o.
Nessa noite e com um dos seus novos amigos – o tal Sr. Haddy-, o pai arranjou o carro. Afirmou que as máquinas tinham
corpo mas não possuíam cérebro. O Sr. Haddy ficou a olhá-lo como se o pai tivesse dito qualquer coisa muito sábia. Tosco
ficou tão contente com o trabalho de reparação que declarou que podíamos servir-nos do carro sempre que quiséssemos. No
dia seguinte, a mãe disselhe que queria ir dar uma volta connosco, enquanto o pai estava ocupado na cidade. Íamos a Tela?,
perguntou Tosco. Não, respondeu a mãe, íamos para leste, em direcção a Trujillo. Tosco soltou uma gargalhada.
— Estarão de regresso bem depressa – afirmou, entregando-lhe as chaves.
— Qual a estrada que devo tomar?
— Só há uma – foi a resposta.
Atravessámos a cidade e pude então ver que ela era ao mesmo tempo mais rica e mais pobre do que pensava. Havia
capoeiras como as da praia, mas também havia grandes casas com relvados. As melhores estavam rodeadas por vedações.
Para mim, isso era o mais estranho porque o vale do Connecticut era uma terra sem vedações, excepto para as vacas e
cavalos. Fez-me lembrar o que o capitão Smalls dissera, a respeito de as Honduras serem um jardim zoológico com as
pessoas dentro das jaulas e os animais do lado de fora. Até àquele momento, estávamos de fora.
Daquela rua da cidade fomos dar à estrada principal e virámos para a esquerda. Avançámos menos de seiscentos metros e
a estrada começou a ficar cheia de raízes de árvores e de pedras partidas. Na nossa frente apareceu uma ponte por cima de um
rio. Era uma ponte de caminho-de-ferro, mas não havia outra. Os carros atravessavam-na um de cada vez. A mãe esperou pela
sua vez e depois guiou por cima das travessas e dos carris daquela ponte metálica. Por debaixo de nós havia mulheres a
lavarem a roupa no rio de águas da cor do cacau.
Para lá da ponte, a estrada desaparecia, passava a ser um largo mar de lama que passava por debaixo da porta do carro,
depois transformava-se numa picada estreita e, por fim, não era mais do que o leito seco de um ribeiro onde os pedregulhos
eram mais altos que o nosso pára-choques.
— Chegámos ao fim da linha – disse a mãe.
Estávamos a quilómetro e meio do hotel.
Experimentámos outras estradas. Uma acabava na praia, outra na margem do rio – o mesmo rio da primeira vez – e uma
terceira transformou-se numa pedreira, que fazia parte de uma montanha. No fim de duas dessas estradas, cães escanzelados
saltaram às nossas janelas, a ladrar. Era uma cidade de becos sem saída.
— Não vou desistir assim tão facilmente – afirmou a mãe.
Seguimos em direcção a Tela, na estrada para Oeste. As faldas das montanhas estavam cobertas por elegantes palmeiras,
e, por baixo delas, onde a terra era plana, havia plantações de bananeiras e de toranjas, e campos de ananases. A mãe parou o
carro para que pudéssemos estudar a maneira como as bananas cresciam, mas quando desembarcámos vimos uma congregação
de abutres entre as ervas altas da beira da estrada. Eram carecas e vigiavam um cão que mastigava as costelas rosadas de uma
vaca morta. O cão iniciara o repasto por debaixo de uma prega de pele. A vaca devia ter sido atropelada por um carro, disse a
mãe, e alguém empurrara a carcaça para a berma. De vez em quando um abutre saltava do meio do bando – havia vinte e três
na congregação – e atirava-se a um bocado de carne pendente e tentava arrancá-lo. No entanto, o cão, rosnando e mastigando,
mantinha os abutres à distância. Durante a maior parte do tempo, aquelas aves de aspecto horrível olhavam-no como caveiras
de bruxas. As asas pareciam saias a arrastar.
Mais adiante e na mesma estrada, deparámos com um cão morto. Cinco abutres abriam-lhe um buraco na barriga. Agitaram
as asas e saltaram para o lado, para deixar passar o carro, e voltaram logo para o cadáver do cão. Clover e April disseram
que estavam a ficar mal dispostas e perguntaram se não podíamos voltar para trás. Foi o que fizemos, sem chegar a ver Tela.
Então aquilo eram as Honduras … Cães mortos e abutres, uma praia porca e capoeiras, estradas que não levavam a lado
nenhum. A vista de bordo do navio parecera uma gravura, mas agora estávamos dentro dela. No meio de tudo aquilo, as
laranjas não tinham significado e o sol tornava as coisas ainda piores. Fora por causa de um sítio assim que o pai nos arrastara
para fora de casa?
De volta ao hotel, encontrámos o pai sentado no pátio com um outro homem, um que eu nunca vira. Ao ver a mãe, o homem
levantou-se com pouca firmeza nas pernas. Quando falou, saltaram-lhe perdigotos da boca.
— Estou a conversar com o seu marido – declarou. – É louco!
— Louco como uma raposa – respondeu a mãe.
Ouvimos o estalo de um trovão e o martelar da chuva na cobertura. Começara a cair de repente e a direito, fazendo marcas
na areia.
— Esta é a mulher mais bonita que vi em toda a minha vida afirmou o homem.
— O senhor não é muito velho. Talvez seja essa a explicação retorquiu a mãe afastando-se e levando os miúdos consigo.
— Fica aqui comigo – disseme o pai. – Este é o Sr. Weerwilly.
Estamos a falar de propriedades.
— Bom, bom – murmurou o homem.
— Este é o meu filho mais velho, o Charlie. – O Sr. Weerwilly inclinou a cabeça para mim e continuou: – Eu sou alemão,
portanto, vou chamar-te Karl. Sabes uma coisa, Karl? Este homem é louco.
— Não – respondi-lhe, olhando para o pai, que sorria.
— Sim! É maluco! Estou farto de lhe dizer que este país é uma porcaria. Responde-me que gosta muito dele. Sabes, Karl,
esta é a última colónia do mundo e eu sou um camponês. Quantos alemães haverá aqui? Não mais do que vinte. Mas há
milhares de americanos … Milhares!
— Em Jerónimo não há – afirmou o pai.
— Ele pensa que Jerónimo é uma maravilha. É louco. Não conhece Jerónimo. Jerónimo não é nenhuma maravilha. É
melhor que La Ceiba, lá isso é verdade. Quatrocentos dólares por um acre? Aqui custaria muito mais.
— Ouviste-o, Charlie – disse o pai, pousando os olhos no Sr. Weerwilly. – Quando a estrada lá chegar, o preço sobe. Não
tenho dinheiro, sou um camponês. Tenho de vender a minha terra – Calou-se e começou a rir-se. – Mas que pode você fazer
em Jerónimo?
— Posso fazer o que quiser.
— Então, não deve querer muita coisa.
Odiava aquele homem, odiava a sua maneira de falar em voz muito alta. A língua grossa enchia-lhe demasiado a boca e
interferia com as palavras. Agarrou-se ao meu joelho e cuspiu perdigotos das beiçolas.
— Trabalho apenas com as minhas mãos. A companhia das frutas tem máquinas. Se preciso de limpar um bocado de terra
ou algo assim, sirvo-me de uma catana. A companhia tem bulldozers. A companhia pode espalhar insecticidas de helicóptero.
Eu tenho uma pequena bomba. A companhia paga demasiado aos trabalhadores, duas lempiras por dia. Que posso eu fazer?
Por um cacho de bananas recebo uma lempira, apenas um dólar. Um cêntimo por uma laranja ou por uma toranja.
Sorveu a cerveja e prosseguiu: – É por isso que passo fome. Pfuuu!
— Não passa fome – disseme o pai. – Tem o meu dinheiro no bolso.
— É louco – declarou o Sr. Weerwilly.
— Creio que vou lá para dentro – respondi.
— Vai, vai, Karl – concordou o Sr. Weerwilly. – Adeus.
— Fica aqui comigo – insistiu o pai. – Pergunta-lhe se não tem o meu dinheiro no bolso.
Iniciei a pergunta mas o Sr. Weerwilly fez-me uma feia careta de palhaço e apertou-me o joelho.
— Sabes por que é que eu gosto deste homem, Karl? Porque odeia a companhia … e porque não é um missionário. Além
disso, sabe fazer coisas.
— Coisas? – perguntei
— Coisas! – confirmou o Sr. Weerwilly. – Já me disse como posso transportar a água para os meus terraços. Nem sequer
os amigos me souberam dizer isso. É por isso que gosto dele … e também porque paga a pronto.
— És testemunha, Charlie, não te esqueças.
— Mas nós somos diferentes – prosseguiu o Sr. Weerwilly. – O senhor é um imperialista americano. Tira-me a terra. Eu
sou um pobre comunista, apenas um camponês. Tenho de lha vender. Agora só me resta a casa e algumas árvores.
O Sr. Weerwilly continuou a falar, repetindo-se constantemente, deitando perdigotos, bebendo cerveja e cuspindo. O
tempo foi passando devagar. Por que é que o pai queria que eu ficasse ali sentado, com a chuva a cair à nossa volta?
— … mas sei por que é que vai levar aquela bela mulher e as crianças para Jerónimo – continuou o Sr. Weerwilly. –
Porque é maluco!
— Ouviu o que ela disse. Maluco como uma raposa.
— E aqui pode comprar comida por alguns tostões. E usar só uma camisa. Pode arranjar uma rapariga por cinco lempiras.
— Cuidado, Weerwilly – respondeu o pai, fazendo-lhe uma careta feroz.
Zangado, apontou-lhe com o dedo cortado e fez com que o Sr. Weerwilly estremecesse. Suponho que o homem pensou que
o coto do dedo a sair do punho fechado, fosse o cano de uma arma, porque levou as mãos à camisa.
— Charlie, pergunta-lhe onde é que está o contrato.
Fiz a pergunta.
— Obrigado por me teres lembrado desta coisa – respondeu o Sr. Weerwilly tirando um sobrescrito de dentro da camisa e
deixando-o cair sobre a mesa.
O pai rasgou-o, mas eu não olhava para ele. Observava o Sr. Weerwilly. Quando abrira a camisa para tirar o envelope,
passara com a mão por um coldre de couro negro preso ao peito com correias.
— O homem está com muita pressa – comentou o sr. Weerwilly. – Parece um diploma de Harvard – disse o pai.
— Está em espanhol.
— Sei ler – replicou o pai.
Não conseguia tirar os olhos do enchumaço do coldre por debaixo da camisa do Sr. Weerwilly.
— Pensa que o vigarizei.
O pai leu o documento com toda a atenção, franzindo a testa, avançando com o coto do dedo ao longo das linhas. A seguir
declarou:
— Foi um prazer fazer negócio consigo.
O Sr. Weerwilly terminou a cerveja e arrotou. Levantou-se, agarrou-me pelos cabelos e torceu-me a cabeça para que me
virasse com ele. Lançou-me um dos seus sorrisos feios e concluiu:
— Talvez ele não seja assim tão maluco.
Riu-se, tocando no enchumaço por debaixo da camisa. Depois de se ter afastado, o pai virou-se para mim.
— Obrigado por teres ficado, Charlie. Não é um caso triste? Estava bêbado. Pensei que não me desse o papel. Podia ter-
se ido embora com o dinheiro. – Dobrou o papel e voltou a metê-lo no sobrescrito. – Estava a armar-se em difícil.
— Tinha uma pistola.
— É verdade. Pensava que me enganava.
— Não tiveste medo?
Pegou-me na mão com ternura. A sua mão estava quente, pegajosa e tremia na minha.
— Não – respondeu-me. Largou-me e pegou no sobrescrito. – Consegui o que queria.
— Terra?
— Jerónimo – respondeu-me o pai.
— Uma cidade?
— Não te rias assim, Charlie. É uma povoação pequenina.
A chuva martelava na cobertura e batia nas flores dos hibiscos, obrigando-as a acenar. Escurecia a areia e tamborilava no
Chevrolet de Tosco, enquanto os raios brilhavam sobre o mar negro de tinta.
— De qualquer modo – acrescentou-‘– serei o presidente da Câmara. Ficámos ali sentados até a chuva passar e depois
surgiu a mãe com os garotos. Tosco serviu-nos o jantar ali, no pátio.
— Vimos uma vaca morta – contou Jerry, explicando-lhe como o cão estava a comê-la junto da berma da estrada,
observado por abutres que «tinham bicos como descascadores de batatas», e Clover e April descreveram o cão morto no meio
da estrada e os abutres aos saltos para lhe arrancarem bocados.
— Deram-lhe tantas bicadas que fiquei mal disposta – concluiu Clover. – O pai não está impressionado – comentou a mãe.
— Não suporto esses pássaros.
A mãe falou-lhe das estradas, de como conduzira por cima de raízes e valas, como era preciso atravessar uma ponte sobre
carris escorregadios e travessas soltas, para depois descobrir que o caminho tinha tantas pedras que não se podia continuar …
Como uma das estradas dava para uma pedreira e outra para o mar, e como as estradas não eram estradas e depois de menos
de quilómetro e meio se deparava com árvores, ou com um cão, geralmente morto. As estradas não davam para lado nenhum.
— Bebo a isso! – disse o pai.
— As pessoas vão à casa de banho no meio da rua. Sim! – protestou, porque April começara com risinhos. – Eu vi uma!
— É bom para o ruibarbo – comentou o pai.
— Tudo o que vimos foram bananas – disse Clover. – O pai continua a sorrir – notou a mãe.
— Dá-lhe as novidades, Charlie.
— O pai comprou uma povoação.
— Estás a brincar! – exclamou a mãe.
— Aqui tens a prova. Posso apontar-te o lugar no mapa, o nome está lá, preto no branco … Deve ser mais ou menos do
tamanho de South Hadley. Vendeu-ma um alemão bêbado. Tentou cultivar bananeiras. Há por lá uns quantos selvagens, mas
tirando isso apenas a luz do Sol.
— Aposto que está lá um cão morto! – afirmou Jerry.
— Talvez um cão vivo_declarou o pai-, mas não há apanhadores de cães. Não há polícias, não há telefone, não há
electricidade, não há aeroporto … nada! O lugar menos importante que pode existir. O alemão fartou-se de dizer mal dele …
mas o que me disse soou-me a louvores! Falámos em começar do zero. Pois bem, Jerónimo é o zero.
— E como vamos para lá? – perguntou a mãe.
— Não me incomodes com questões triviais – retorquiu o pai. – Já disse o suficiente. Excepto o alemão e o Registo de
Propriedades, ninguém mais sabe para onde vamos. Desse ponto de vista, é melhor do que uma ilha deserta. – Levantou o coto
do dedo. – Todos de bico calado!
Nesse momento aproximou-se um carro do hotel, estacionando em cima de uma poça de água. Saíram de lá quatro
mulheres com vestidos brilhantes, de cabelos pretos compridos e malas de mão. Atravessaram o pátio em direcção ao bar.
Reconheci-lhes as gargalhadas.
— Aí vêm as damas da noite – comentou o pai. – Esta reunião fica adiada.
Tosco aproximou-se do pai quando nos dirigíamos para os quartos. Agradeceu-lhe, mais uma vez, por lhe ter reparado o
carro e repetiu que o podíamos utilizar sempre que quiséssemos.
— O senhor é um cavalheiro – disse o pai.
— Mas agora não precisam de um carro, eh? Ouvi dizer que compraram Jerónimo – declarou Tosco, beijando a ponta dos
dedos. – Jerónimo é magnífico!
Durante a noite, a barulheira foi ainda pior do que de costume e durou até quase de madrugada. Olhei para o cais, do outro
lado da baía brilhante, e vi que o Unicorn partira.
O desaparecimento do navio branco deixou-me meio cego e com uma sensação de impotência, como se da minha cabeça
houvessem tirado qualquer coisa que lá fazia falta. A esperança. Sentira-me seguro porque o navio estava ali … e podíamos ir
para casa. Agora, sentia-me abandonado.
Depois disso, nunca mais saí de junto do meu pai. Arranjei todas as desculpas possíveis para o acompanhar à cidade.
Permaneci pacientemente sentado em lojas e armazéns, enquanto comprava coisas que afirmava fazerem-lhe falta em
Jerónimo. Equipamento, chamava-lhes, tubos e acessórios. A companhia das frutas vendia aquilo barato, afirmou. Fiz o que
me diziam para fazer e, em geral, descobria-me acocorado à sombra de uma árvore com o homem chamado Haddy, enquanto o
pai inspeccionava montes de tubos de cobre ou velhas caldeiras e discursava para o vendedor da sucata dizendo-lhe que
estava a ajudá-lo a ver-se livre daquelas porcarias e que nem sequer sabia o que iria fazer com elas.
— É uma pena deitar isto fora – dizia, actuando como se tivesse piedade deles por lá terem aquelas peças e como se levá-
las não fosse mais do que um favor.
Já antes ouvira tudo aquilo, mas mesmo assim permanecia perto dele. Com a partida do Unicorn quebrara-se o nosso
último laço com a América. Em parte, o pai tivera razão quando me acusara de estar do lado do capitão Smalls, pois sentira
que o velho tomaria conta de nós. Por vezes tivera a mesma sensação junto do «Pequeno» Polski.
Agora, porém, o pai era o único responsável. Levara-nos para aquele lugar distante e com as suas maneiras de mágico
surpreendera-nos quando comprara uma povoação, meio armazém de tubos de cobre, e um hectare de velhas caldeiras.
Afirmou que aquilo era a matéria-prima da civilização, mas eu não me ralava nada com isso. Só queria estar perto dele.
Receava a sua ousada coragem e recordava-me do alemão e da pistola. «Se morrer», pensei, «estamos perdidos.» Sempre que
não o tinha à vista sentia-me preocupado e só deixava de o estar quando o ouvia assobiar ou cantar: «Debaixo do
bam,/Debaixo do bu/» Notou que nunca o largava. Muitas vezes parava e perguntava-me:
— Que tal me estou a sair? Respondia-lhe que muito bem, mas não sabia o que o pai andava a fazer nem porquê. A única
coisa que sabia era que, fosse o que fosse, ia fazê-lo no meio dos selvagens.
XI

— De que diabo está a falar? – perguntou o Sr. Haddy. Tinha cara de rã e uns dentes tão salientes que os dois da frente
pareciam bocados de osso ressequido, por estarem sempre de fora. – A água é mais calma durante a noite. – Não de onde eu
venho – retorquiu o pai. – É igual de noite ou de dia. Portanto, vamos embora.
— Afinal, de quem é o barco? – inquiriu a mãe.
O Sr. Haddy continuava a protestar com o pai.
— Eu não disse que a sua água é mais calma durante a noite … disse que esta o é. É muito agitada durante o dia e às vezes
chove como o diabo. De noite é uma criancinha.
Pronunciava as palavras num tom preguiçoso e falava numa voz sem entoação, com sobressaltos de ênfase, e passava para
o crioulo sempre que o pai se mostrava pouco razoável.
— Não percebe nada disto, é o que é! Tonda pillit me!
— Leve-nos daqui para fora!
— Além disso – continuou o Sr. Haddy-, vamos precisar de todo o dia para carregar este estúpido montão na lancha.
— Então mexa-se!
— É capaz de não caber. Todos aqueles tubos …
— Vamos experimentar.
— O seu homem é muito bom para arranjar sarilhos – disse o Sr. Haddy, virando-se para a mãe.
Não era difícil transportar as nossas coisas do hotel para o cais onde se encontrava atracado o barco do Sr. Haddy, o
Little Haddy. As sacas de sementes, o equipamento de campismo, as caixas de ferramentas … tudo isso foi numa só viagem.
Porém, as caldeiras e tubos eram outra história. Por fim, essa carga mais pesada acabou por ser transportada numa camioneta
que chocalhou ao longo das principais ruas de La Ceiba até ao cais, juntando atrás de si uma procissão de gente que
aumentava à medida que a camioneta avançava.
— Esta porcaria vai afundar-me o barco – afirmou o Sr. Haddy. Ah, vai, vai. Vai afundá-lo.
O Little Haddy era um barco a motor, em madeira, com uma roda de leme no interior de uma cabina de tecto achatado
instalada na popa. Tinha doze metros de convés aberto, em parte coberto por um toldo de lona. Das amuradas pendiam pneus,
para amortecer as pancadas. A tinta estava estalada e solta aqui e acolá, mostrando tábuas acinzentadas de sal. No casco, por
debaixo da linha de água, crescia uma pelagem verde. Era tal e qual como os barcos que eu vira encalhados nos bancos de
lama ou virados acima da linha de água na costa do Massachusetts.
Parte do tabuado do convés estava solto e sem calafetagem e em muitos sítios fora pintalgado de alcatrão. Até os cabos
tinham o aspecto mole e descorado das cordas deitadas para o lixo. O porão era tão pouco profundo que o Sr. Haddy tinha de
se ajoelhar lá dentro e bater com a cabeça para arrumar as nossas coisas. Ficou cheio muito depressa. O resto, três caldeiras e
os tubos, seguiria amarrado no convés. Cada vez que içávamos qualquer coisa para bordo, o Little Haddy gemia e afundava-se
mais na água, erguendo a proa.
As pessoas da cidade que tinham ido atrás da camioneta mantinham-se na sua sombra e olhavam para o Sr. Haddy e para o
pai a transportarem a carga. O pai conhecia pelo nome vários daqueles mirones. Brincava com eles em inglês e espanhol.
Estava em La Ceiba havia menos de uma semana e já era conhecido de uma maneira amigável, até respeitosa, apesar de no
cais ninguém se mexer para o ajudar a tirar a carga da camioneta e levá-la para o barco.
O pai uivava com o esforço e comentou:
— Estão-se nas tintas, se eu rebentar com as costas.
— Podias ficar aqui, tio – disse um dos mirones.
— Não ficava aqui nem que me pagassem – respondeu o pai, transportando um molho de tubos de cobre para o convés,
onde se soltaram e espalharam, tilintando de encontro à madeira.
— La Ceiba é boa terra.
— Não é lugar para garotos – disse o pai.
— Há muitos garotos aqui!
— Por que é que será – continuou o pai, avançando para as pessoas e deixando que o suor lhe escorresse pela cara – que
apesar de esta gente passar a vida a cultivar frutas, a apanhá-las, embrulhá-las, carregá-las, enlatá-las e tudo o resto … são
todos tão fraquinhos? Pois eu digo-lhes porquê. Porque fazem tudo menos comê-las. Nunca vi tanta gente magrizela na minha
vida. Só pele e osso, é o que são. Admitam, pessoal, vocês são uns fracos!
As pessoas riram-se e encolheram-se ainda mais na sombra da camioneta. O sol do meio-dia incidia no cais de ferro, e na
sua extremidade, onde brincavam Jerry e as gémeas, parecia estar molhado e oscilar sob as ondas de calor. Os pelicanos
pousavam nas estacas e a costa brilhava. A luz caía com força, lançando-se contra a areia.
— A cidade pertence à companhia – prosseguiu o pai. – Uma economia de monocultura e a monocultura de uma
companhia. Podem ficar com ela. Não vou deixar que a minha família passe fome aqui.
— Não passamos fome – disse um homem. – Somos gente forte.
Quem falara fora um homem grande com um farrapo atado em volta da cabeça, tatuagens verdes nos músculos dos braços,
tão grande que mesmo descalço era mais alto que o pai.
— Ora, vocês são uns coitadinhos de uns encolhidos – declarou o pai. – Comem demasiados hamburgers, arroz
descascado e açúcar branco. O que vocês precisam é de vitaminas. Tu – disse para o homem grande, batendo-lhe no peito –
precisas de chumbo no teu lápis.
O homem soltou altas gargalhadas, não se irritou com os abusos do pai. Flectiu os músculos, para que a multidão os visse.
— Muito bem, Sansão! Queres fazer uma experiência?
— Outro sarilho – comentou o Sr. Haddy – e ainda nem carregámos o barco.
— Quantas flexões consegues fazer? – perguntou o pai.
— Sansão! – gritou outro homem.
— Posso levantar aquela caldeira – disse o homem.
— Claro que podes. És capaz de a levantar, de soltar um grito e de a atirar … e talvez partas qualquer coisa. Mas quantas
elevações consegues fazer, homem-macaco?
— Tem cuidado, Allie – disse a mãe.
— Aquele tipo calmeirão não vale nada – explicou-lhe o Sr. Haddy, depois de a puxar para um lado.
— Abram um espaço – ordenou o pai. – Deixem este cavalheiro respirar!
No meio do círculo de mirones que gritavam para o encorajar, o homem começou a fazer flexões de braços. O pai
agachou-se na frente dele e disselhe para tocar com o queixo no chão e manter as costas direitas. Ia contando enquanto o
homem subia e descia. De súbito o homem deixou-se cair com um grunhido e já não foi capaz de se levantar outra vez.
— Vinte e duas! – exclamou o pai. – Nada mal, mas olhem para ele … ficou todo roto. – Abraçou a mãe e prosseguiu: –
Aqui a minha jovem noiva era capaz de fazer o mesmo antes do pequeno-almoço.
O homem rebolou para o lado e levantou-se. Tinha os olhos semicerrados, ofegava e parecia um pouco combalido do
esforço que fizera.
— Segura aqui – disseme o pai, passando-me o boné de basebol e o charuto.
— Fantochada – comentou o Sr. Haddy.
O pai enrolou as mangas da camisa e colocou-se em posição no cais, com as costas já encharcadas de suor. Dobrando os
braços rapidamente, fez vinte e duas flexões, enquanto os mirones contavam. Parou por instantes, sorriu-se para o homenzarrão
ofegante e fez mais vinte e oito.
— Cinquenta! – exclamou.
A seguir fez mais vinte e cinco. Quando se levantou tinha a cara vermelha e falta de fôlego, mas afirmou:
— Aí está! Setenta e cinco é para principiantes! Podia fazer muitas mais mas tenho de continuar com o trabalho.
Adoraram-no por causa daquilo e quando voltou à tarefa de carregar a lancha avançaram oito homens para o ajudar.
Passaram o resto da tarde a transportar o equipamento com o pai e o Sr. Haddy.
— É uma coisa engraçada – disse o pai para a mãe. – Estão a ajudar-me porque pensam que sou forte. Se fosse fraco, não
mexeriam um dedo. Era de pensar que fosse ao contrário. E perguntas a ti mesma por que é que esta gente é selvagem?
— Não pergunto nada – retorquiu a mãe, que foi buscar os miúdos.
— Por outro lado – continuou o pai-, não interessa que um tipo seja um selvagem, desde que seja um cavalheiro. Lembra-
te disso, Charlie – concluiu, entrando para o barco e rindo-se sozinho.
A noite caiu e a cidade ficou com um aspecto mais agradável. Ardiam pequenas luzes no cais e nos escritórios do porto
brilhavam algumas janelas. As palmeiras, tão esguias e esfarrapadas durante o dia, passaram a ter cabeças penugentas e essas
plumas escuras como chapéus-de-chuva, abrigavam os edifícios, agora mais acolhedores. Para oeste, para lá das montanhas,
viam-se ainda algumas riscas de um vermelho de sangue do pôr do Sol. A cidade agachava-se por debaixo das montanhas,
acachapada, um lago de pequenas luzes na escuridão. Mortiças lantejoulas brilhavam nas cabanas instaladas nas vertentes das
montanhas.
Jerry bocejava no colo da mãe – era já demasiado grande para se sentir ali confortável – e as gémeas dormiam debaixo do
toldo. Eram dez horas. Chovera duas vezes desde o meio da tarde e os relâmpagos continuavam a riscar o céu sobre o mar em
explosões súbitas. Parecia cruel ter de deixar a cidade àquela hora. A nossa família costumava deitar-se cedo e a hora de ir
para a cama passara há muito. Invejava as pessoas que se encontravam nas casas que via dali, as que estavam às janelas e até
as que imaginava balançando nas redes de dormir, nas barracas da praia. Não achava nada interessante estar a bordo do
estreito barco a ouvir o mar a chapinhar de encontro ao casco de madeira. Sentei-me num caixote e estremeci. A mãe deitou-
se, com o Jerry e as gémeas, todos em sacos-camas. Olhei para a costa … não me queria ir embora da cidade.
O motor gaguejara lentamente durante toda a última hora. O Sr. Haddy levantou um alçapão, debruçou-se lá para dentro
com uma comprida chave inglesa e fez com que o motor soltasse um estrépito que fez vibrar as tábuas partidas do convés. Os
fumos do gasóleo sufocaram-me.
— Já vi varinhas mágicas com motores melhores do que este – disse o pai. – Olha como está a falhar! Escuta-o! Isto é um
motor?
— Que pássaros são aqueles? – perguntei. Estava a observá-los desde o pôr do Sol. Tinham corpos pequenos e asas
achatadas, e dançavam em tomo das luzes do cais, guinchando como as andorinhas.
— Um pássaro nocturno qualquer – respondeu o pai, sem olhar para cima. Continuava de testa franzida ante os ruídos do
motor.
— São morcegos – esclareceu o Sr. Haddy.
Eram centenas, o suficiente para cobrirem as luzes. Agora sentia-me ansioso por ir embora dali a bordo do barco.
O pai dirigiu-se para a proa.
— Estamos quase prontos, mãe. Fiz-te café no fogão – disse ele. – Tenho estado pronta todo o dia. As crianças dormem –
respondeu a mãe.
O Sr. Haddy soltou um assobio agudo por entre os dentes salientes e perguntou:
— Estás a ouvir, Ta Tom?
Um homem que dormia no cais levantou-se como um insecto perturbado, desamarrou os cabos e atirou-os para dentro da
lancha. O Sr. Haddy encheu as bochechas de ar e baixo: u uma alavanca, uma barra de ferro junto da roda do leme, tal como a
alavanca das mudanças de um tractor, e Ta Tom empurrou o casco com o pé. Partíamos direitos ao mar negro.
— Pois, são morcegos – disse o Sr. Haddy, inclinando-se para fora da casa do leme. – Quem me dera ir para Utila.
Perguntei-lhe porquê.
— Porque são só duas horas. Até Santa Rosa são dez – explicou, com os dedos compridos pendurados na roda do leme.
— Pensei que íamos para Jerónimo.
— Jerónimo é no meio da selva. As lanchas não vão lá … só lá vivem uns tipos com caudas …
— Não faças perguntas ao homem – interveio o pai. – Importa-se que eu segure no leme, Sr. Haddy?
O Sr. Haddy não se afastou do leme e, de facto, até o segurou com mais força.
— É contra os regulamentos.
— Quais regulamentos?
— Os do meu barco. Eu governo, vocês são os passageiros.
— Vá dar uma volta – disse o pai.
O Sr. Haddy ficou onde estava,
— Conheço todas as estrelas dos dois hemisférios – prosseguiu o pai. – Sou um mestre do sextante e do quadrante. Sou
capaz de calcular um meridiano através do reflexo do Sol num balde de alcatrão.
— Regulamentos.
— E quantas flexões consegue fazer?
O Sr. Haddy soltou uma gargalhada mas não soltou o leme. Chegou-se mais a ele e colocou o nariz quase em cima do vidro
sujo da casa do leme.
O eco do motor vinha até nós reflectido nas palmeiras da costa e soava de encontro ao cais de ferro de La Ceiba quando
lhe demos a volta para nos dirigirmos para leste, onde a noite era mais profunda.
— Temos comida, temos combustível, temos todas as nossas coisas – declarou o pai. – Estou muito satisfeito por nos
irmos embora. Sem ofensa, Sr. Haddy, aquela cidade não é um bom sítio para as crianças.
Olhámos para trás. Mesmo àquela curta distância a cidade tornara-se mais plana e mais bonita. Era um pequeno charco de
luz por baixo das sombras das montanhas e dos amontoados de prateadas nuvens de tempestade.
— Sabe para onde vai, pai?
— Sr. Haddy, vamos para casa. Dê-me esse leme e eu levo-o até lá inteirinho.
O Sr. Haddy agarrou-se ao leme e conduziu-nos através das enluaradas rugas do mar. O pai suspirou. Lambeu a ponta de
um charuto, um comprido charuto hondurenho. Tinha um cesto cheio deles. Acendeu-o e a chama que brilhou na ponta do
charuto mostrou uns olhos furiosos e ardentes pousados no Sr. Haddy.
— É o primeiro barco de alto mar que vejo que não tem uma bússola a bordo – murmurou. – Felizmente trouxe a minha,
mas não digo onde a guardei.
Havia pequenas cabanas ao longo da costa, tremulando como lanternas sob as palmeiras. Depois a escuridão tornou-se
maior, as luzes diminuíram de tamanho e deixou de se ver a costa e tudo passou a ser uma negra mancha de terra, mar e vagos
clarões, na cada vez maior ondulação. – Sei para onde estás a olhar, Charlie – disse o Sr. Haddy – Não são pássaros.
Não lhe disse que estava a olhar para os pontos de luz da costa.
— Quando eu era pequenino – continuou, olhando também para a costa – vivíamos perto da lagoa Brewer. Foi aí que
aprendi o zambu, os índios ensinaram-mo. Uma noite estava sozinho no quarto e houve uma grande agitação, movimentos,
batidas. Acordei e chamei a minha mãe: «Mãe, vem depressa, aconteceu qualquer coisa!» Ela apareceu com uma luz e disse:
«Fantochada! Não aconteceu nada, estiveste a sonhar com espíritos.» Os espíritos são os nossos fantasmas. Mas de repente
ficou toda cinzenta. «Que sangue é esse na tua almofada?» perguntou, e que grito que soltou! Olhei para a almofada e estava
vermelha. Sangue! Perguntou-me se sentia alguma coisa na cabeça. Estava a sangrar mas não sentia nada.
— E por que é que sangrava? – perguntei-lhe.
— «Ah!», disse a minha mãe. Bateu com força no chão e um morcego grande como o diabo foi contra a parede. Depois de
o enxotar, espreitou a minha cabeça. O velho morcego estivera a chupar-me o sangue de uma orelha e deixara lá os buracos
dos dentes. O sangue continuava a sair. Havia caca de morcego em todo o quarto … e a caca de morcego cheira bem mal!
Abriu muito os olhos castanhos na minha direcção: – Sei para onde estavas a olhar. Para os morcegos.
Não estivera, mas estava agora.
O pai mantinha-se silencioso, fumando, com o ar de quem queria arrancar à força as mãos do Sr. Haddy da roda do leme.
— Conheci um fulano – prosseguiu o Sr. Haddy – a quem um morcego chupou um dedo do pé enquanto ele dormia. Oh, os
morcegos atiram-se às pessoas. Alguns dos que andam por aí são grandes como almofadas … e perto de Bluefields são do
tamanho de tamanduás, mordem-nos através das luvas.
Na escura casa do leme só lhe conseguia ver os dentes ressequidos, brancos como tinta, e ouvia-o a tentar assobiar por
entre eles.
— Morcegos da fruta – disse o pai.
— Oh, claro, morcegos da fruta – respondeu o Sr. Haddy e de muitas outras espécies.
— Comem bananas – explicou o pai.
— Pois, mas se não conseguem bananas, atiram-se às pessoas.
— Fale-nos nos tubarões – pediu o pai.
— Já vi alguns tubarões.
— Grandes como cães?
— Maiores.
O pai apontou com o coto do dedo e declarou:
— O Norte é para ali, senhor Haddy.
— Sei disso muito bem. Conheço o Norte tão bem como o meu nome.
— Neste mesmo momento – prosseguiu o pai com um ar sonhador – há alguém na América a pintar linhas amarelas numa
estrada, enquanto outra pessoa qualquer embrulha meia cebola num bocado de celofane de supermercado, ou atira um
espremedor eléctrico para o lixo, dizendo: «Está estragado.» Alguém acabou de abrir uma lata de sopa com sabor a chocolate,
numa bela cozinha, só porque não consegue pôr o carro em andamento para ir jantar fora. Essa pessoa não queria a sopa, mas
sim um hamburger. Alguém acabou de se envenenar com uma salsicha de nitrato vermelho, mas sorri porque lhe soube muito
bem. E todos eles praguejam contra o presidente. Querem-no diferente.
Ficou silencioso durante alguns momentos.
— É verdade, para ali é o Norte – disse o Sr. Haddy.
— Ali – continuou o pai, virado para a escuridão – há um decorador de interiores, provavelmente um tipo esquisito, de pé
no átrio de um banco. Foi contratado para o redecorar. O banco está falido. Precisa de depositantes. Talvez um átrio novo seja
uma ajuda. Porém, o decorador não sabe de que cor o deve pintar nem onde pôr os gerânios. Pergunta ao banqueiro: «O que é
que quer que esta sala diga?»
— Não tenho bem a certeza disso – respondeu o Sr. Haddy.
— Alguém puxa pela cabeça para descobrir um nome novo para os com flakes – afirmou o pai. – Outra pessoa acabou de
morrer por causa deles.
— Isso é mau – comentou o Sr. Haddy.
— Mas nós vamos para casa.
— Já alguma vez lhe contei aquela do tigre, da minha mãe e do ianqui? – Conte lá, Sr. Haddy, mas primeiro passe-me o
leme.
— Nunca lhe passarei o leme. Sou o capitão, sou o timoneiro e este é o meu barco.
O pai ficou silencioso. Por vezes libertava um certo cheiro quando estava zangado e naquele momento chegou-me uma
pequena baforada, um eflúvio a gato.
— Vocês são os passageiros – insistiu o Sr. Haddy, mas como uma voz já não tão segura.
— Se eu fosse do género dos passageiros, ainda agora estaria ali disse o pai, apontando para norte, na direcção dos
Estados Unidos. Vai para a cama, Charlie.
Desenrolei o saco-cama junto da mãe e enfiei-me dentro dele. O motor vibrava de encontro às minhas costas. A massa de
estrelas por cima da minha cabeça era como um mar de pontinhas brilhantes, um milhão de pequeninas estrelas mortas e à
deriva na maré do céu.
Quando acordei estava ainda mais escuro do que quando me deitara. A escuridão como que se apertara em tomo do barco
oscilante e não havia estrelas. O molho de sacos-camas junto de mim disseme que Jerry e as gémeas ainda estavam a dormir.
Ardia uma pequena luz na casa do leme.
O pai estava ao leme, a mãe a seu lado com um mapa e o Sr. Haddy não se via em lado nenhum. Com as mãos no leme e a
luz da lanterna a distorcer-lhe o rosto, o pai tinha um ar ansioso e impaciente. Perguntei-lhe onde estava o Sr. Haddy.
— Atirei-o pela borda fora – respondeu. – Não conseguiu aguentar o esforço.
Até que ponto confiava eu no pai? Completamente. Acreditava em tudo o que ele dizia. Até olhei para a popa, para o nosso
rasto de espuma, esperando ver os dentes no rosto a afogar-se do Sr. Haddy.
— Está a brincar contigo, Charlie – disse a mãe. – O Sr. Haddy está a dormir.
— Mandei-o para a cama – explicou o pai. – Ah, gostava de ter um barco assim.
Tinha um charuto apagado na boca e manobrava a roda do leme com os dedos muito abertos, o rosto iluminado de encontro
ao vidro da casa do leme.
Por detrás dele a mãe segurava-o com leveza pelo ombro, a mão branca a mantê-lo afastado, tal como segurara Jerry e as
gémeas na amurada do Unicornn. Tinha o rosto pálido, rodeado pelos cabelos macios e pendentes, e não ostentava qualquer
expressão. Os seus olhos escuros reflectiam a escuridão que existia à sua frente e pareciam absorver a chama da lanterna.
Estava calma, mas o pai dobrava-se para a frente como se se esforçasse por se libertar daquela mão. Viam-se as sombras dos
músculos da queixada e o rosto contorcia-se tentando tirar algum sentido da escuridão. Havia um brilho de certeza nos seus
olhos, como reflexos de goma-laca. Estava activo e atento. Não virava os olhos, virava toda a cabeça quando queria olhar
para o lado.
O pai e a mãe mantiveram-se naquela posição, sem falar, durante algum tempo. Quanto mais os observava mais me
pareciam um homem feroz e um anjo, enquanto o barco era um exemplo do tipo de vida que levávamos, abrindo caminho
através de águas negras com a selva escura de um lado e o mar profundo no outro, a noite sem lua por cima de nós.
No entanto, só avistei a selva muito mais tarde, depois de o Sr. Haddy acordar e me dizer que estávamos a passar ao largo
da lagoa Guayamoreto, logo a seguir a Trujillo.
A pouco e pouco, a escuridão parecida com profundezas de tinta abrandou um pouco, tornou-se de um cinzento-claro e,
sem revelar nada mais do que mar, ficou cor do pó. A toda a nossa volta espessou-se aquela madrugada de pó até que,
tornando-se mais áspera e cor da cinza, num nascer de Sol sem sol, nos atirou com relances de um mar saponáceo, da linha da
costa e da selva, que se parecia com um montão de negras algas. Em breve o Sol subia uma hora no céu, sobre o nível da costa
escalvada.
— O pai está a conduzir o meu barco! – exclamou o Sr. Haddy, admirado. A bordo, era a única pessoa surpreendida pelo
facto de o pai ter tomado as coisas nas suas mãos. – Fez-se capitão ontem à noite. Bem me queixei de que era uma quebra dos
regulamentos, mas não serviu de nada.
Penso que todos nós estávamos secretamente satisfeitos por ver o pai ao leme do barco de outro homem, num mar pouco
familiar e ao largo de uma costa estranha. Era mais uma prova de que ele era capaz de fazer tudo.
O Sr. Haddy invocou Deus quando um relâmpago se imprimiu de súbito no nevoeiro. Nuvens barbadas coraram de luz e
desapareceram. Houve uma pausa mortal, um trovão, a coisa mais parecida com uma bomba que eu jamais ouvira, e pouco
depois o mar à nossa volta apareceu salpicado de gotas do tamanho de berlindes. Faixas de luz da madrugada e nuvens de
tempestade fundiam-se no amplo céu por cima do mar tropical, com o sol a empurrar a oblíqua tempestade em direcção à
costa. A chuva não caía de um modo regular. Seguimos o nosso caminho no barco, para leste ao longo da costa, através dos
contornos arqueados da chuva que caía, e que umas vezes batia nas ferragens do pai e encharcava todo o convés, e outras
vezes desaparecia em silêncio, deixando escureci das as tábuas molhadas.
Excepto quanto a uma ligeira oscilação, o mar estava tão calmo como estivera durante a saída de La Ceiba. As nuvens
abriram-se, havia todo um céu delas por cima do mar chão, movendo-se para o lado e mudando de formas, colunas de nuvens,
telhados de nuvens, que se desfaziam e empurravam a caminho da costa. O sol abriu caminho por entre elas e deixou-nos
encandeados. Era fogo, brilho e calor, com a parte inferior do disco ainda mergulhada numa nuvem de água de lavar pratos.
Quando caiu sobre nós com toda a sua força, levantou vapor e cheiros de todas as tábuas da lancha encharcada.
— Estaremos em Santa Rosa para o pequeno-almoço – afirmou o Sr. Haddy. – Já não falta muito … talvez mais meia hora.
Já quase a podemos ver.
— Tenho uma novidade para si, cavalheiro – disse o pai. Tomaremos o pequeno-almoço aqui mesmo. Olhe o que eu e a
mãe apanhámos, enquanto todos vocês estavam mortos para o mundo …
Baixou-se e tirou de dentro de um cesto um molho de peixes às riscas. Cinco peixes bem gordos estavam presos pelas
guelras.
— Trate de arranjar estes peixes, Sr. Haddy, enquanto a mãe acende o fogão. Os rapazes arrumarão o convés e poderemos
mastigar comida verdadeira. Ou preferirá parar em Santa Rosa para comer feijões do mês passado?
O Sr. Haddy pegou nos peixes e começou a abri-los. Um pouco mais adiante, Jerry e as gémeas gatinharam para fora dos
sacos-camas e esfregaram os olhos. A mãe preparou uma bacia com água fresca para nos podermos lavar e depois acendeu o
lume no fogão (que era um bidão de aço cortado ao meio, com uma grelha por cima), e deixou a cafeteira ao lume.
— Vou dizer-lhe mais uma coisa – continuou o pai. – Não paramos em Santa Rosa.
O Sr. Haddy abria os peixes como se fossem sobrescritos e arrancava-lhes os molhinhos de tubos que eram tripas
cinzentas. Com um bocado daquele esparguete pegajoso agarrado aos dedos, comentou:
— Primeiro diz-me que não quer ir a Trujillo, porque não quer ver os missionários. Agora quer fazer de mim um come dor
de peixes e diz que não vamos a Santa Rosa. Não há nada de mal em Santa Rosa, que diabo!
— Estive a olhar para o mapa – disse o pai.
— O pai e o seu mapa – respondeu o Sr. Haddy escamando os peixes como se estivesse a castigá-los e a castigar o dedo,
fazendo saltar escamas prateadas que se espalharam por todo o convés.
— Não disse que não íamos lá – explicou o pai. – Disse que não parávamos.
Comemos o peixe debaixo do toldo da proa por causa de eventuais gaivotas. O Sr. Haddy abriu a cabeça de um peixe e no
seu cérebro encontrou um fragmento de uma substância clara como vidro, uma espécie de esfera. O pai decidiu usá-la ao
pescoço.
— Tal e qual como um zambu – disse o Sr. Haddy, que depois nos pediu para olharmos para cima. Ali, debaixo das longas
fiadas de gotas de chuva, estava um cais e alguns edifícios amarelos, bem como a fita verde da selva. – Aqui é Santa Rosa.
Era, afirmou o pai, um insulto para a verde costa de Mosquito, não mais do que dez edifícios baixos e a torre de uma
igreja. Vapor e fumo, telhados vermelhos e meia dúzia de garotos no cais.
— Paramôs em Santa Rosa? – perguntou o Sr. Haddy.
— Nunca paro até chegar ao sítio para onde vou.
— Se eu estivesse a guiar este barco, tinha parado ali – queixou-se o Sr. Haddy, olhando para mim com um ar triste. O
branco dos olhos, cercado por um anel vermelho, estava marcado por manchas castanhas. Tínhamos passado o cais e a praia.
A mãe disselhe para não se preocupar. Respondeu que não estava preocupado, mas sim muito confuso.
— Mantenha a camisa vestida! – gritou-lhe o pai, da casa do leme. As gémeas iam à proa.
— Conseguimos ver o fundo! – gritou April e Jerry correu para a frente, para espreitar.
— Nem sequer percebo por que é que não estou ao leme-lamentou-se o Sr. Haddy. – Das outras vezes não o larguei.
Olhem, vejam aquela água castanha … ali. É a boca do rio. Mas … que está o homem a fazer?!
Havia uma abertura na costa, uma abertura larga, onde a corrente de um rio chocava com a maré enchente. As ondas
atiravam-se para o lado, lançando lodo para cima de bancos de areia. Um pouco mais para cima avistava paus e ramos a
descerem em direcção ao mar.
O pai virou o barco em direcção àquela maré castanha. Um pescador, mergulhado até aos joelhos na água, lançou a rede e
acenou-nos. O Little Haddy enfiou o nariz na corrente, lançando borrifos para o ar dos dois lados da proa.
— Não é por aí o caminho, pai! – gritou o Sr. Haddy. Continuava sentado, de cara franzida, junto dos restos do pequeno-
almoço, as espinhas dos peixes, côdeas de pão e chávenas de café vazias. – Não me dá ouvidos – murmurou.
Levantou-se e dirigiu-se para a casa do leme, para se queixar. – Por favor, senhor, isto não é uma canoa, é um barco!
— Sente-se – respondeu-lhe o pai.
— Sou o timoneiro. Não subo por estes rios!
— Isto não é um rio vulgar … é uma inundação. Engraçado, a primeira vez que vi Santa Rosa no mapa não reparei no rio.
Quando o vi, pareceu-me pequeno. Foi a chuva que me deu a ideia. Há uma cheia no rio. Tem água suficiente para nos levar
durante quase todo o caminho até Jerónimo.
— Mas não é para barcos! Rebentamos de encontro a uma rocha! – O homem não confia em mim – disse o pai.
— Consigo, ou perco a minha licença ou perco o barco! Oh, o meu chapéu!
O barco começara a cabecear na corrente, inclinando-se para um lado e para o outro. As ferragens velhas do pai tilintavam
e esfregavam-se umas nas outras.
— Allie! – gritou a mãe, encharcada por uma chuvada de espuma.
Agora o barco parecia mais leve, mergulhando com facilidade na ondulação da foz do rio. Segurei-me com força, com
medo de que a água o inundasse.
— Não posso fazê-lo sozinho – disse o pai. – Preciso da sua ajuda, Sr. Haddy. Vá para a proa e se aparecerem algumas
rochas avise-me. Estamos contra a corrente, não faz sentido desligar o motor agora. Então, o q \, le é que me diz … alinha
comigo ou não? – perguntou o pai e uma chuva de borrifos voltou a atingir a janela da casa do leme.
— Mais um sarilho – afirmou o Sr. Haddy, sem sorrir. – Não gosto destes rios. Os tipos aí, no meio da selva, tipos pretos,
têm caudas!
Tratava-se do rio Aguan, explicou o pai, e na margem de Santa Rosa começara a juntar-se gente, talvez a pensar que
iríamos a terra. Traziam cestos de frutas, molhos de cocos e esteiras em palha. Quando nos viram â dirigirmo-nos para o meio
do rio, avançando contra os ramos flutuantes e os restos de canas partidas, começaram a gritar, chamando-nos para a costa. Os
cães também nos ladraram.
Continuámos em frente, para lá do povoado a seguir a Santa Rosa, das barracas torcidas, das cabanas em cima de estacas e
das fileiras de canoas viradas sobre a margem. Passámos a entrada, que parecia um portão, de uma lagoa verde e seguimos
lutando contra o rio que subia até à borda da proa do barco. Ali fazia mais calor porque o Sol estava por cima das palmeiras e
as nuvens de tempestade haviam desaparecido para o interior. Não existiam montanhas, nem sequer colinas. Não existia nada
para além da margem do rio, coberta de palmeiras e arbustos baixos, e árvores de cascas amarelas. O céu descia até às copas
das árvores. A cheia do rio enlameado inundara os arbustos das margens.
O Sr. Haddy debruçava-se à proa. Lamentava-se numa espécie de canção de tristeza, e mostrava-nos os fundilhos das
calças. De vez em quando gritava: «Rochas a bombordo!» ou «Rochas à proa!» O oceano ficava-nos à popa e quando
descrevemos uma curva do rio perdemo-lo de vista, desaparecido juntamente com a brisa fresca, as comichões provocadas
pelo sal e os cheiros a peixe. Estávamos rodeados pela selva; a curta distância do rio, e todas as árvores piavam, cobertas de
aves e insectos. O barco ficou com um aspecto diferente. No mar parecera delapidado e muito pequeno, mas ali, abrindo
caminho por aquele rio estreito, tinha um aspecto grande e poderoso com o motor a ressoar de encontro às margens,
espantando as garças e afastando as borboletas para o lado.
— Olhem para aquele tipo – disse o pai quando o Sr. Haddy se serviu da corrente para ameaçar um homem numa canoa. O
Sr. Haddy apontava aves para Jerry e para as gémeas e metia-se com as mulheres que interrompiam as esfregadelas de roupa
nas zonas mais arenosas da margem, para nos verem passar.
— Nunca devem ter visto um barco – disse o Sr. Haddy.
— Até onde é que vamos? – perguntou a mãe.
— Até batermos no fundo – respondeu o pai.
Conseguimos avançar vinte quilómetros ou mais, subindo o rio até cerca do meio-dia, isto antes de o Sr. Haddy começar a
gritar que havia rochas por todos os lados. Não fazia sinais, limitava-se a gritar. A água ali já não era enlameada, consegui ver
enguias e cardumes de pequenos peixes no fundo arenoso. Nalguns sítios mal havia espaço entre as margens para a passagem
do barco, e a água, muito rápida, abrandava-nos a marcha e saltava para o convés.
Foi num desses canais estreitos e tortuosos que vi os homens nas árvores. Ao princípio tomei-os por troncos retorcidos ou
por pedras esquisitas … por tudo menos por homens. Tinham as cabeças apoiadas nos ramos e alguns agachavam-se nos
arbustos, homens de pele escura e brilhante. Outros estavam de joelhos, de costas para nós. Estivemos tão perto deles que não
era possível chamar a atenção do pai sem que me ouvissem. Uns quantos tinham paus, lanças e redes de pesca, mas
permaneceram silenciosos e não nos ameaçaram.
Fui para a proa, onde o Sr. Haddy continuava debruçado. Também os vira, olhava para as árvores. Foi então que um velho
negro vestindo apenas um par de calções de caqui saiu da água para a margem carregando um balde.
— Então que tal? – perguntou o Sr. Haddy, dirigindo-se ao homem. Este deixou cair o balde na lama da margem,
espalhando o seu conteúdo de peixes. – Zambus – disse o Sr. Haddy. – Não têm caudas.
Porém, ao dizer aquilo levantara os olhos do rio e deixara de prestar atenção à corrente. Ouviu-se uma pancada debaixo
de nós, o barco foi atirado para cima e as gémeas caíram no convés.
— Mordi a língua! – gritou Jerry.
O barco virou-se para um lado empurrado pela corrente. Inclinou-se e fez cair o fogão. Estávamos bem presos ao fundo.
No mesmo instante o motor foi-se abaixo e os ramos e destroços trazidos pelo rio empilharam-se de encontro ao casco. O pai
deu um pontapé no fogão fumegante, atirando-o para o rio, onde se afundou no meio do seu próprio vapor.
-, Sr. Haddy. Pergunte àquele cavalheiro onde estamos. O Sr. Haddy não perguntou. Observou o homem ajoelhado a
recolher os peixes e gritou para o pai:
— Isto aqui é o Balde-de-Peixe!
Então, enquanto o rio se escarvava à nossa volta, na margem apareceram sete ou oito homens, todos pretos, com grandes
cabeças. Usavam calções e traziam redes e paus. O pai saltou da popa com uma corda. Mergulhou na água até à cintura e
começou a avançar para a margem.
Os homens viram-no prender o Little Haddy a uma árvore. Afastaram-se um pouco, como que para lhe dar mais espaço,
apesar de estarem a dez metros de distância.
O pai falou-lhes em espanhol com uma voz amigável.
Ficaram a olhar. Pareciam compreender mas não respondiam.
— Então como é? – gritou o Sr. Haddy da proa.
— Aqui mesmo – respondeu um dos homens.
— Eles falam inglês?! – exclamou o pai, começando a rir às gargalhadas. Os negros ficaram satisfeitos. Abriram as bocas
para o verem rir. – Bom dia, pai. Chamo-me Francis Lungley. Precisa de ajuda?
— Eh, tenho andado à tua procura por todo o lado – disse o pai.
XII

Jerónimo, apenas um nome, era no enlameado final de um caminho enlameado. Por ter sido outrora uma clareira, agora
abandonada, estava mais coberta por arbustos e ervas do que qualquer selva. Sob outros pontos de vista não era diferente de
cinquenta outros locais cobertos de mato por onde havíamos passado durante a caminhada desde a margem do rio dos Zambus,
a que o sr. Haddy chamara «Balde-de-Peixe». Era quente, húmida, malcheirosa, cheia de insectos, coberta de folhas moles de
um verde-escuro «tal como velhas notas de dólar», como disse o pai.
Jerónimo fez-me lembrar uma vez em que estava no Massachusetts à pesca. O pai apontou para um pilar de madeira,
pequeno e preto, e disse: «Ali é a fronteira do Estado.» Olhei para o tronco apodrecido … a fronteira do Estado, aquilo?!
Jerónimo era assim. Tinham de nos explicar o que era. Nunca a tomaríamos por um povoado. Tinha uma árvore enorme, um
tronco como um pilar de ponte, que servia de apoio a um montão de ramos folhosos cheios de pequenos galhos. Era uma
guanacaste e por debaixo dela havia quase meio hectare de sombra. Ainda ali se encontrava o que restava da barraca de
Weerwilly e dos seus falhanços, tudo com um ar triste e acidental. Não obstante, as ruínas abandonadas só serviam para que
Jerónimo parecesse ainda mais selvagem, naquela tarde húmida.
Uma outra coisa que lá se via era uma cadeira fumegante no meio das ervas, uma cadeira de braços, isolada e a deitar
fumo. O estofo estava calcinado e parte das molas ficara à vista. O cheiro que lançava flutuava nos arbustos. A cadeira
queimada, inútil e fumegante, era tão pouco importante como o lugar propriamente dito, e o pai era a única pessoa que estava
certa de que tínhamos chegado ao nosso destino.
As gémeas sentaram-se e lamentaram-se. O rosto de Jerry estava vermelho por causa do calor húmido, que parecia vapor.
— Aposto que te vai fazer subir àquela árvore, Charlie – disse o Jerry. – Aposto que vais ter medo.
O pai metera-se no meio dos arbustos que lhe davam pelo peito.
Tinha o boné de basebol virado para o lado e gritava:
— Nada … nada! Foi com isto mesmo que sonhei … nada! Olha, mãe … – Tens razão, não vejo nada – retorquiu a mãe.
— E tu vês, Charlie?
Disselhe que não.
Continuou a abrir caminho no meio dos arbustos.
— Vejo uma casa aqui – afirmou. – Uma espécie de celeiro além, com uma oficina … uma verdadeira oficina de ferreiro,
com uma forja. Para ali, a estufa e as plantações. Limpamos e queimamos toda a área e ficamos com quatro ou cinco acres de
boa terra agrícola. Colocamos um depósito de água naquela elevação e desviaremos parte do ribeiro para levarmos água aos
campos. Teremos de deitar abaixo algumas destas árvores, mas ficarão muitas outras, e, de qualquer modo, precisamos dos
troncos para uma ponte. Imagino que a casa deve estar virada para Leste … ficaremos com vista sobre as colinas e sobre o
sol-nascente. Vejo ali em baixo um atracadouro e uma rampa até ao abrigo do barco. Um par de protecções à esquerda e à
direita da casa principal e ficaremos a salvo de inundações. O terreno é suficientemente alto mas faremos a casa sobre estacas
por uma questão de segurança e usaremos a parte de baixo como cozinha. Gostaria de que para aquele lado houvesse uma
drenagem … cheira-me a pântano. Mas isso é fácil, umas quantas valas de noventa centímetros resolverão o problema, e logo
que consigamos controlar a água poderemos cultivar arroz e levar a cabo algumas obras sérias de hidráulica. O mais difícil é
a fábrica. Vejo-a naquela cavidade, a favor do vento. Podemos tirar vantagens do combustível que cresce por aqui … parecem
ser madeiras duras. Será canja fazê-las escorregar pelo declive …
Naquele momento, por baixo da guanacaste, os zambus e o Sr. Haddy pousavam as suas cargas. O Sr. Haddy tirou os
sapatos e fez uma careta ao ouvir a voz do pai. Este continuou a falar, marcando o sítio da casa, delineando os caminhos que
pretendia abrir e dividindo a terra em campos de feijões e valas de escoamento. Tínhamos chegado há dez minutos.
No entanto, nem sequer a bombástica voz do pai fazia com que Jerónimo deixasse de ser um montão de arbustos
malcheirosos e uma clareira coberta de mato.
Os zambus viam-na à sua própria maneira. Havia colinas por detrás e um ribeirito a correr no meio. Os zambus diziam que
as colinas eram montanhas – as Esperanzas – e que o ribeirito era um rio – o Bonito – enquanto Jerónimo, para os seus olhos
injectados de sangue, era uma quinta – a estância. Estes nomes grandiloquentes estavam todos errados e eram imaginários, mas
eram semelhantes aos nomes dos próprios zambus. O homem seminu que não se calava, apontando para o ribeirito estreito e
chamando-lhe rio Bonito, dizia chamar-se John Dixon. Foi o homem de enorme cabeleira lanosa e calções esfarrapados –
Francis Lungley – que nos disse o nome das montanhas, e foi o mais taciturno entre eles, Bucky Smart, que denominou de
estância a barraca enferrujada.
Podiam chamar-lhe aquilo que lhes apetecesse, mas eu sabia que Jerónimo não era mais do que uma cabana de telhado de
zinco num trilho da selva e um campo de bananeiras que se fora abaixo por causa de uma doença que deixava manchas negras
nas folhas. Aqui estava um barco a remos partido e mais adiante alguns troncos cortados que ninguém se dera ao trabalho de
serrar e empilhar. As vedações que ali pudessem ter existido haviam-se transformado novamente em árvores, uma fileira de
árvores novas que poderia ter sido um chiqueiro de porcos, lama, ervas e a cadeira que cheirava a veneno.
O pai regressou e afirmou: –_maravilhoso.
Nesse preciso momento, um pequeno porco negro correu e pulou por entre as ervas, passando junto a nós. O zambu Bucky
levantou-se e fez-lhe uma careta feia, como se o quisesse matar com os dentes da frente. Seguiu-o com os olhos mas depois
encolheu os ombros e agachou-se sobre os tornozelos. Devia estar cansado, primeiro carregara com Clover e depois com a
April, durante todo o caminho desde o Balde-de-Peixe.
— Aquilo era um pecari-de-lábios-brancos – disse o sr. Haddy. – Preocupações – declarou Francis Lungley.
— Não estou preocupada – respondeu Clover.
— É isso o que estes rapazes lhes chamam … preocupações. É um nome. Se apareceu aqui um, isso quer dizer que há
cinquenta ou cem no meio da mata.
— Weerwilly deve ter vivido naquela barraca – disse o pai. – Mas que buraco! Nem morto me apanhavam ali dentro!
— De qualquer modo – afirmou o sr. Haddy, parecendo-se ainda mais com uma rã quando se virou para o pai-, já lá há
gente dentro, o que lhe poupa trabalho.
Caras como bolas de futebol, na janela da cabana enferrujada, espreitavam-nos de olhos muito abertos no meio de
trepadeiras cheias de flores.
— Glórias-da-manhã – disse o pai, correndo para a cabana.
Os rostos recuaram um pouco quando o pai pegou numa enorme flor e perguntou:
— Como se chama?
— Maywit – foi a resposta trémula.
— Está a dizer-lhe o nome da flor – afirmou o sr. Haddy. – Isso é o nome da flor e não das pessoas. Provavelmente,
chamam-se Jones. Jones-da-selva, Jones-o-homem-galinha. – O sr. Haddy agarrou-se à cabeça. – Quem me dera estar na
minha lancha … mas o pai abriu-lhe um buraco no fundo.
O pai ainda tentava obter respostas de dentro da cabana, mas os rostos haviam desaparecido da janela.
Montámos as nossas tendas por baixo dos ramos da guanacaste e acendemos uma fogueira muito fumarenta, tal como o pai
nos disse para fazer, para afuguentarmos os mosquitos. A mãe separou os nossos pertences e os sacos da comida do meio da
bagagem e pendurou-os nos ramos, fora do alcance dos ratos … pois já tínhamos visto dois. As mochilas e as tendas fizeram o
pai lembrar-se das compras em Springfield. Disse ao Jerry para contar a história do equipamento de campismo americano
feito por crianças escravas na China e no Japão. O pai interrompeu-o e proferiu o seu discurso sobre a guerra na América, mas
os zambus riram-se nos sítios errados.
Quando começámos a comer, o sr. Haddy disse: – Aí vem Jones-o-homem-galinha.
Eram os Maywit, carregados com frutas – limas, bananas, papaias-, além de mãos-cheias de mandioca e uma cabaça com
qualquer coisa a que chamavam wabool. Timidamente, presentearam o pai com aquilo, que ele distribuiu por nós, dizendo:
— Isto manterá as vossas tripas a funcionar! – Mostrou uma papaia ao Sr. Haddy e prosseguiu: – Dois dólares, no
supermercado! Duas lempiras por uma!
— Pêra-manteiga – disse o Sr. Maywit, nervoso.
— Como é que é? – perguntou o Sr. Haddy.
— Aqui mesmo – respondeu Francis Lungley.
— Não estava a falar contigo – retorquiu o senhor Haddy. – Tu disse, virando-se para o Sr. Maywit-, como é que é?
Porém, o homem estava demasiado assustado para falar.
— Quero que todos conheçam os nossos amigos e vizinhos, os Maywit – declarou o pai.
Eles miraram-nos, nós mirámo-los. Aquela família também tinha um pai, uma mãe e quatro filhos, mas o mais pequeno
estava nu e era transportado como se fosse uma mochila, por uma das raparigas. Eram os nossos reflexos … sombras
encarquilhadas de nós mesmos. O homem era baixo e tinha uma pele castanha que parecia uma casca, a mulher possuía olhos
de galinha e os garotos andavam com as pernas sujas.
— Esse é mesmo o vosso nome, Maywit? – perguntou o Sr. Haddy.
— Não prestem atenção a este intruso – disse o pai.
O homem murmurou um «Au» de concordância. A seguir, pestanejou para afastar as moscas das pálpebras e continuou:
— Íamos já sair da sua casa, pai.
— Vocês não vão sair para lado nenhum. Vão ficar aqui. Tenho trabalho para fazerem.
— Mais sarilhos – comentou o Sr. Haddy, levando os zambus a rirem-se. – Queres trabalhar?
O homem disse que não se importava e lançou olhares zangados para os dedos dos pés.
— Aquela é a tua casa. Podem lá ficar enquanto se mostrarem úteis – prosseguiu o pai. – Tenho uma casa minha ali, por
detrás das valas, por cima do atracadouro e um pouco à esquerda do celeiro, perto dos campos de feijões.
«Não vejo casa nenhuma», disse alguém baixinho. Os zambus, os Maywit e o Sr. Haddy percorreram os arbustos com os
olhos, em busca das coisas que o pai dissera. Não havia valas, não havia celeiro, não havia casa nem campos de feijões. A
seguir, ficaram a olhar para o dedo dele.
— Só porque as não vemos, não quer dizer que não estejam lá declarou o Sr. Haddy, que teve um ataque de riso.
O pai continuava a sorrir para os arbustos quando Clover se queixou:
— Pai, há formigas a quererem entrar na minha tenda.
— Há formigas por todo o lado – confirmou o Sr. Haddy. – Também há tigres. Alguns desses babuínos conseguem ser
maiores do que um homem adulto. Quando vinha para aqui pisei caca de macaco, no trilho.
— Elas são pequeninas – disse a mulher dos olhos de galinha, a Sr. A Maywit.
— Claro, são pequeninas – confirmou o Sr. Maywit pegando numa formiga com os dedos e atirando-a para longe, não o
fazendo com nojo mas sim com gentileza, com uma espécie de pena.
— Prestem atenção ao que diz essa gente – disse o Sr. Haddy. Sabem do que estão a falar. Vivem aqui. Perguntem-me
coisas sobre a costa, mas não me façam perguntas sobre a selva.
Era verdade, o Sr. Haddy sabia tudo sobre as costas marítimas, mas ali fungava e troçava da selva. Fora do seu elemento,
portava-se como um palhaço.
— Carregam folhas – afirmou o Sr. Maywit-, mas não nos fazem mal.
— Amanhã construirei uma plataforma para essas tendas e algumas armadilhas para insectos – prometeu o pai. – Não
quero formigas e aranhas a passear por cima dos meus filhos.
— Veio da Nicarágua, pai? – perguntou o Sr. Maywit.
— Não, não veio da Nicarágua – respondeu o Sr. Haddy. – Por que é que perguntas isso?
— Têm lá problemas. As últimas pessoas que aqui passaram vinham de lá, da Nicarágua. – Falava de um modo lento e
espantado como se tivesse acabado de acordar e se esforçasse por se interessar pelas próprias palavras.
— Somos dos Estados Unidos – explicou o pai.
A Sra. Maywitt soltou um suspiro de apreço e o Sr. Maywit comentou: – Isso é outro lugar, de certeza.
O pai pousou a mão no chão esponjoso.
— Mas agora esta é a nossa terra. Acham que é um país estrangeiro?
O Sr. Maywit abanou a cabeça. Não, não pensava que fosse.
O ar à nossa tinha um tom de sopa verde, como a água num tanque de peixes, e as sombras verdes subiam à medida que o
Sol baixava.
— Passa por aqui muita gente, como esses da Nicarágua? – perguntou a mãe.
— Alguns pregadores, Ma – respondeu a Sra. Maywit olhando para a mãe com os seus olhos de galinha. – Igreja de Deus.
Testemunhas de Jeová. Berram …
— E Dunkers – acrescentou o Sr. Maywit.
— E Dunkers.
— Se apanhar aí algum deles … mostro-lhes onde é a porta – afirmou o pai. – Quando tivermos uma porta!
— Não vale a pena – concluiu o Sr. Maywit.
O Sol estava agora por detrás das colinas e apesar de o céu ainda ter luz, as sombras verdes já alcançavam a nossa árvore.
No escuro, Jerónimo tinha mais substância. Tinha sons, o estalar de insectos, o piar de aves, o murmúrio aquoso do rio. Os
sons davam-lhe dimensão e os odores formas. No extremo mais afastado uma ave cantava melodiosamente numa árvore.
O pai fez um pequeno discurso na escuridão crescente.
— Viemos para aqui em três etapas – declarou. Disselhes como saíra de casa a toda a pressa e fora até Baltimore, depois
para La Ceiba e a seguir viajara no Little Haddy. Fez com que tudo soasse a aventura, mas na altura os acontecimentos
haviam-me parecido acidentais e nada divertidos. – De que é que estávamos à procura? Pois andávamos à vossa procura.
Disse o nome de todos os presentes, mesmo dos silenciosos zambus que tinham carregado com as sacas de sementes e os
tubos de metal desde Balde-de-Peixe. Não sei como, mas conhecia os seus nomes inteiros. Para mim, o mais notável era que o
pai não dormira durante dois dias. Carregara o Little Haddy e fizera setenta e cinco flexões no cais, encarregara-se do leme ao
longo da costa e durante a subida do rio, e depois levara-nos em fila indiana através do trilho até Jerónimo. Era estranho, mas
ficava cheio de energia e muito falador sempre que passava algum tempo sem dormir.
Jerry e as gémeas já tinham adormecido. A mãe cabeceava. O pai caminhava de um lado para o outro à luz da fogueira
verde, agitava o ar enfumarado e dizia que se sentia feliz, que tinha planos, e que estava muito satisfeito por haver ali tanta
gente para testemunhar aquele momento histórico.
Afirmou que não acreditava em acasos.
— Andava à vossa procura – declarou – e que faziam vocês? Estavam à minha espera. Se não estivessem à minha espera,
teriam ido para outro lado qualquer. Mas não, estavam aqui quando cá cheguei. Preciso de vocês, boa gente, e tenho a
sensação de que vocês precisam de mim.
Toda a gente concordou que era assim mesmo. Francis Lungley afirmou:
— Fui até ao rio sem saber porquê. Tinha de lá ir. Foi então que vi aparecer aquele velho barco.
— Foi por isso que espreitei pela janela – disse o Sr. Maywit, com o mesmo tom de voz mistificado. – Não sei porquê.
Avistei este homem dos Tados Nidos. De pé na erva. Foi por isso.
— E eu tive um sonho – declarou o Sr. Haddy. – A respeito de um homem. E este foi o homem, porque usava as mesmas
roupas que o homem do meu sonho e um chapéu em bico. Tinha-o visto no meu sonho.
Eu sabia que o Sr. Haddy estava a gozar. Ele mesmo me contara que encontrara o pai no cais de La Ceiba e pensara que
fosse um missionário da Igreja Morávia. Resolvi não o contradizer naquele momento porque o ambiente em volta da fogueira
de acampamento, em Jerónimo, se tornara muito solene.
— Fui enviado para aqui – disse o pai. – Não lhes vou dizer quem me enviou, nem porquê. Não lhes vou dizer quem sou
nem o que vou fazer. Isso seria apenas conversa. Vou mostrar-lhes por que estou aqui. Esperem e verão. Se não gostarem do
que irão ver, podem matar-me.
O cansaço provocara-lhe uma voz rouca. Repetiu mais uma vez, numa espécie de silvo: «Podem matar-me», e depois
calou-se. Ouviram-se murmúrios. O Sr. Haddy coçou o dedo grande do pé e afirmou que nunca ousaria fazer uma coisa dessas,
matar o pai, mas que esperava ver a sua lancha reparada muito em breve.
— Não vim aqui para vos dar ordens – prosseguiu o pai. – Vim aqui para trabalhar para vocês. Se não trabalhar o
suficiente, digam-mo e eu trabalharei mais. Venham até mim e digam: «Senhor, vai ter de fazer muito melhor do que isto.»
Estou a trabalhar para vocês, boa gente, e irão ver coisas que nunca antes viram. O que é que querem que faça primeiro?
Vocês é que sabem.
Ninguém falou.
— Querem comida? – perguntou o pai. – Querem uma ponte, feijões, uma bomba e um galinheiro?
O Sr. Maywit pigarreou.
— Ouvi-o – disse o pai – e obedecerei. Esses índios aí em cima nas colinas olharão para baixo, para aqui, e não vão
acreditar no que os seus olhos irão ver. Ficarão febris de espanto.
Todos os que o escutavam estavam como que petrificados. Os únicos sons eram os da selva, e uma palmada aqui e acolá
quando alguém esmagava um mosquito. Para lá das tendas e da nossa pequena fogueira, a selva era negra. Uma negritude que
gritava e grunhia, que se erguera e nos envolvera nos seus ruídos e nas suas pregas agridoces. Os insectos escondidos estavam
excitados e as árvores escureci das soltavam sons como os das vassouras.
— Agora, vamos para a cama – declarou o pai – … antes que sejamos comidos vivos pelos insectos.
Disse-o, mas ficou junto do fogo.
— Não vai dormir? – perguntou o Sr. Haddy.
— Nunca durmo! – respondeu o pai.
No dia seguinte plantámos os feijões miraculosos. O pai transformou o acto numa cerimónia. Alinhou os homens e fê-los
cavar com pás de fabrico caseiro, tábuas que cortara e a que dera a forma de lâminas. O Sr. Haddy não cavou, declarando:
«Não sou um agricultor, sou um marinheiro», a que o pai retorquiu: «Ele não quer que os seus dedos preênseis se sujem.» Os
homens, ombro com ombro, cavavam a terra. Não era difícil. O alemão Weerwilly tivera ali uma horta, ainda lá se
encontravam muitas das estacas dos seus feijoeiros.
A meio da tarde havíamos arrancado cerca de um acre de ervas. O pai foi buscar as sementes dos feijões. Chamavam-se
«feijões miraculosos», explicou, porque eram de uma variedade que produzia em quarenta dias. Deu nomes aos primeiros que
plantou: «este é o capitão Haddy», disse, levantando um feijão. «Este é o Francis» e levantou outro. A seguir metia-os nos
buracos. «Este aqui é o senhor Maywit. Este é o Charlie, este é o Jerry …»
Caminhava ao longo dos sulcos e quando se lhe acabaram os nomes começou a semear mais depressa. Metade do campo
ficou com feijões miraculosos, e o resto com milho, tomates e pimentos … Eram as sementes que trouxera de Florence, no
Massachusetts. Durante a tarde choveu. O pai disse que já o esperava e que aquilo também fazia parte da cerimónia.
Naquela noite, quando ficámos sozinhos, a mãe perguntou-lhe: – Não estarás a exagerar um bocado, Allie?
O pai limitou-se a rir e disse que fora sua intenção tirar-nos para fora dos Estados Unidos, para nos salvar. Não pensara
em vir também a salvar outras pessoas. No entanto, era o que estava a acontecer. Se não tivéssemos ido para ali, aquela gente
limitava-se a preguiçar e os abutres acabariam por os comer.
— Quero dar às pessoas uma oportunidade de mostrarem o que sabem – declarou.
No dia seguinte perguntou ao Sr. Maywit qual era a sua ocupação.
— Fui sacristão outrora. Em Limon – respondeu o Sr. Maywit.
Polia os metais, deixava-os a brilhar. Punha as flores. Pendurava os números no quadro. Limpava os urinóis.
O pai ficou com um ar desencorajado.
— Também sei fazer barbas.
— E cortar o cabelo?
— Cortar o cabelo e pentear. Fazer caracóis com o ferro. Enrolar e alisar. E também sei como encerar …
Pequenos ratos nocturnos, chamados pacas, roíam-nos os cantos das tendas. Comemos pacas. Sabiam bem e o pai disse
que era uma justiça poética. Construímos uma plataforma de madeira para as tendas, para que ficassem secas por dentro e se
mantivessem direitas, pois as estacas das espias não se aguentavam no chão molhado. No rio montámos uma armadilha em
forma de funil que conduzia os peixes para uma caixa de arame. De uma estrutura simples com um telhado e parte da rede
mosquiteira, construímos um abrigo à prova de mosquito, onde nos juntávamos. Aquilo eram engenhocas e não invenções, mas
tornavam a vida mais confortável e poucos dias depois já se conseguia ver o esqueleto de uma colónia a surgir em Jerónimo.
Todas as noites os zambus viravam-nos as costas e desapareciam na selva. Reapareciam todas as manhãs, com um ar
enrugado e húmido. Tinham lá um acampamento, disse o pai. Quando chegou o fim da primeira semana, o Sr. Haddy deixou
Jerónimo com alguns zambus. O Sr. Haddy não voltou logo, mas os zambus regressaram puxando trenós feitos com troncos por
meio de arneses que o pai fizera para eles. Nos trenós vinha o resto dos nossos abastecimentos que ainda se encontravam no
Little Haddy.
As caldeiras, os depósitos e o resto dos metais velhos foram arrastados para um lado e empilhados. O pai utilizou alguns
dos tubos para a sua primeira invenção verdadeira em Jerónimo, uma simples roda de pés que fazia mover uma fiada de cocos
cortados ao meio, numa torre montada na margem do ribeiro, e que tirava água para dentro de um bidão. A altura a que se
encontrava o bidão dava à água força suficiente para a conduzirmos por canos para onde a queríamos, mas quase toda ela ia
para uma barraca fechada que passou a chamar-se a «casa dos banhos». Lavávamos aí as roupas, tomávamos duches,
fervíamos água para beber. Aquilo também melhorou a nossa vida.
A água em excesso corria por uma vala feita com pedras e por baixo da casa dos banhos, até uma retrete à beira da
clareira, onde se encontrava a nossa latrina. A retrete estava sempre limpa, mas a latrina dos Maywitt estava sempre imunda e
tão cheia de moscas que o pai afirmou:
— Quem quer que seja que use aquele trono deve ser o deus das Moscas.
A primeira invenção, uma bomba feita no próprio local, era uma peça de tecnologia primitiva. Os Maywit e os zambus
ficaram muito impressionados com os seus movimentos e com o chapinhar da água, mas disseram que não compreendiam por
que o pai fizera tal coisa durante a época das chuvas, quando havia água por todo o lado.
— Estamos a construir para o futuro, para a estação seca – explicou o pai. Afirmou que era civilizado fazer aquilo. – E
sabem por que é que é perfeita?
— Porque não é preciso ir lá abaixo com um balde – respondeu o Sr. Maywit.
— Isso é óbvio – continuou o pai. – Não. É perfeita porque funciona por si própria, usa a energia que aqui existe e não é
poluidora. Tenta fazer uma no Massachusetts e mandam-te para um psiquiatra. Aí não estão interessados na perfeição.
Alguns dias mais tarde, depois de uma forte chuvada, o rio encheu e a roda de pás foi arrancada dos seus suportes. O pai
reforçou-a com bocados de metal, pelo que a bomba continuou a fornecer-nos água e a limpar a latrina.
Cada vez que o pai fazia qualquer coisa, dizia:
— É por isto que estou aqui.
Uma das políticas do pai era de que ninguém deveria estar sem fazer nada.
— Se alguma vez me virem sentado, façam o mesmo – afirmava. Porém, o pai até comia de pé. Parte do feijoal estava
dividido em talhões, um talhão para cada criança, e tínhamos de manter a nossa parte bem mondada, assim como outras tarefas
que nos estavam destinadas: recolher lenha e manter limpa a armadilha para os peixes. Quando as nossas tarefas terminavam,
devíamos recolher pedras do tamanho de ovos de galinha e servirmo-nos delas para pavimentar os caminhos. Portanto, havia
sempre qualquer coisa para fazer, o que até era bom, porque nos distraía do calor e dos insectos … e da incerteza também,
porque apesar de o pai dizer: «É por isto que estou aqui», nós não sabíamos por que é que estávamos ali e tínhamos medo de
perguntar.
Nas primeiras semanas a maior parte do trabalho foi de limpeza da terra. A tarefa de remover arbustos e pequenas árvores
revelou-nos melhor as actividades de Weerwilly e trouxe à luz algumas das coisas que ele abandonara. Encontrámos um
arado, rolos de rede de arame para galinheiro e algumas pequenas ferramentas, bem como uma lanterna, que funcionava
bastante bem, e um bidão de óleo com combustível suficiente para nos durar meses. Estas descobertas encheram o pai de
entusiasmo e convenceram-no de que Werwilly falhara por ser descuidado, tal como os americanos que deitavam fora
madeiras e arames em perfeito estado. Disse que se os Maywit tivessem sido um pouco mais espertos teriam encontrado
aquelas coisas e que se poderiam ter servido delas para melhorar o local, em vez de andarem a brincar aos deuses das
Moscas.
Um dia, quando seguia atrás de um zambu que limpava a terra, deparei com um pássaro a agitar-se num molho de ervas.
No entanto, não eram as ervas que o mantinham preso mas sim uma teia de aranha, uma espessa teia de aranha que parecia um
rolo de algodão. Ajoelhei-me, desembaracei o pássaro e soltei-o, antes de pensar em procurar a aranha. A seguir vi-a, grande
como a minha mão, castanha e peluda, da cor da raiz das ervas. O zambu Bucky disseme que era uma Hanancy, e que não só
apanhava pássaros como também os comia, e que se eu não tivesse cuidado era capaz de me comer também a mim. O pássaro,
de uma cor de pêssego, era um dos que só apareciam durante algumas semanas por ano. Calculei que fosse uma ave
migratória, demasiado inocente para ter consciência das aranhas escondidas nas ervas da selva. Fiquei algo preocupado
quando me lembrei que éramos um pouco como aquele pássaro.
No meio das ervas havia de tudo, escorpiões, cobras, arames, ossos de galinha, ratos, pacas, garrafas de vinho, ninhos de
formigas e pás. Cortámos as ervas para que os mosquitos não tivessem onde se reproduzir, mas durante esse processo foram
muitas as vezes em que encontrámos coisas úteis. Por exemplo, enquanto prosseguiam os trabalhos de limpeza da clareira
(conduzidos pela mãe, contagiada pelo desejo do pai de limpar Jerónimo inteira para nos vermos livres de insectos), o Sr.
Maywit e o pai escavavam buracos para encaixar os postes da nossa nova casa. O pai não se calava e estava sempre a dizer
que o que lhe fazia falta era ferramenta para a abertura dos buracos. Nesse mesmo dia, mais tarde, Francis Lungley fez tilintar
a catana de encontro a um objecto metálico. Levou-o ao pai, que afirmou tratar-se da ponta metálica de uma ferramenta para a
escavação de buracos para postes.
Fez funcionar as lâminas, que pareciam queixadas e disse:
— Tudo o que necessita é de um par de pegas e podemos trabalhar! Levou-lhe menos de uma hora para pôr a ferramenta a
funcionar. – Precisava de uma escavadora destas … e ela apareceu. Agora digam lá … foi um acidente ou trata-se de parte de
um grande desígnio?
A nossa melhor descoberta durante a limpeza da clareira foi um montão de madeira já cortada em tábuas. O pai disse que
se tratava da melhor qualidade de mogno, uma madeira tão boa, que até lhe dava vontade de construir um piano. Era
demasiado pesada para utilizar-se na casa, mas sabia muito bem que fazer com ela. Foi posta de lado, depois de enxotadas as
serpentes que tinha no meio, e deixada a secar.
— Descubram-me mais madeira desta ali para aquele lado – disse ele, e naquele mesmo dia descobriu-se mais madeira,
mas os zambus riram-se, porque a madeira se encontrava exactamente onde o pai dissera que estaria.
A mãe trabalhava ao lado dos zambus, usando uma das camisas do pai e com o cabelo enfiado num lenço. A ideia fora do
pai, que afirmou que nenhum dos zambus deixaria de trabalhar enquanto uma mulher se mantivesse de pé a cortar arbustos. Em
breve a maior parte de Jerónimo fora limpa e queimada. Parecia que houvera ali uma batalha, terra negra, troncos
chamuscados, vapor e fumo a sair de buracos da terra. A cabana do Sr. Maywit continuou no seu sítio, coberta de glórias-da-
manhã e no meio de uma ilha de bananeiras. O que viria a ser a nossa casa era um curral rectangular de trinta postes que se
elevavam a cerca de um metro e oitenta do chão. Logo que se assentou o soalho sobre aqueles postes, os acessórios da cozinha
foram retirados de debaixo da guanacaste e instalados sob as tábuas. O rés-do-chão transformou-se na nossa cozinha.
Durante a limpeza da terra descobriram-se alguns quadrados de chapa de zinco ondulada. O pai não gostou do aspecto
delas e durante um certo número de dias subiu o rio com três zambus para irem cortar bambus. Saía de manhã muito cedo e
cerca de uma hora depois começavam a aparecer os bambus, cortados em bocados de dois metros e meio, flutuando rio abaixo
até Jerónimo. Eram os outros zambus quem os trazia para terra, ajudados pelos Maywit e pela mãe. No entanto, a maior parte
do transporte era feito pelo rio, disse o pai. Tinha um verdadeiro génio para simplificar todas as tarefas.
Esses bambus, com cerca de doze centímetros e meio de espessura, foram cortados ao comprimento com todo o cuidado e
alisados por dentro para parecerem calhas. Colocando-os por cima dos barrotes do telhado e encaixando-os como se fossem
telhas, dispostos ao comprido em duas camadas, uma virada para baixo e outra para cima, conseguiu-se um telhado
inteiramente à prova de água. O pai ficou tão contente que cantou: «Debaixo do bam! Debaixo do bu!»
Fez as paredes da mesma maneira. Ficámos com quatro divisões e um pórtico, a que o pai chamou «galeria». Todo o
conjunto levou enormes beirais, como uma grande casa para pássaros.
O pai estava tão entusiasmado com a casa e com os projectos de trabalho em Jerónimo que as nossas lições pararam. A
mãe afirmou que estavam a negligenciar-nos. Devíamos passar algum tempo com os garotos, disse. Então, e a nossa educação?
— Esta é a toda a educação de que precisam – respondeu o pai.
Toda a gente na América devia receber uma semelhante. Quando a América for devastada e destruída, estas são as
técnicas que poderão salvar estes rapazes. Nada de poesias, ou pinturas, ou de saber qual a capital do Texas … mas sim saber
como sobreviver, reconstruindo uma civilização das ruínas fumegantes.
Era o seu velho discurso sobre a guerra na América, mas agora ele achava que descobrira um remédio.
Os Maywit e os zambus olhavam para a casa de bambus como se esta fosse um milagre.
— Não pintam quadros, não tecem cestos, não esculpem rostos em nozes de coco, nem escavam saladeiras de madeira.
Não cantam, nem dançam, nem escrevem poemas. Não são capazes de desenhar uma linha recta. É por isso que gosto deles.
São inocentes. Um pouco tocados pela religião, mas isso passa-lhes. Mãe, aqui há esperança.
Durante a construção da casa o pai encorajou-nos a vermos como ele fazia, na companhia dos garotos Maywit. Clover e
April davam-se bem com as raparigas Maywit, apesar de Clover as aborrecer obrigando-as a repetirem o alfabeto vezes sem
conta, e Jerry brincava com o rapaz chamado Drainy que também tinha dez anos. Não havia nenhum da minha idade, o que me
deixava livre para ajudar o pai ou para brincar sozinho.
Drainy era um rapaz de olhos de insecto, cabeça rapada e buracos entre os dentes. Tinha uma colecção de pequenos carros
e bicicletas de brincar, feitos de arame de cabides. Quando brincava com o Jerry descobri alguns daqueles brinquedos e pu-
los a andar pelo chão. O pai perguntou-me o que eram.
Mostrei-lhos. Estavam muito bem-feitos. Tinham partes móveis e pareciam-se, até aos mais pequenos detalhes, com
triciclos, com pedais e rodas.
O pai ficava fascinado com tudo o que fosse mecânico. Sentou-se e estudou-os. Depois de meditar sobre eles durante
vários minutos e de os experimentar, declarou:
— Foram feitos com a ajuda de instrumentos sofisticados. Vês como este arame está torcido e preso? Não há soldaduras, e
os ângulos e curvas estão perfeitos.
Olhou para mim e piscou-me o olho.
— Charlie – continuou-, creio que há alguém que nos anda a ocultar ferramentas. Não avaliei bem esta gente. Davam-me
jeito os instrumentos de precisão que foram utilizados para fazer isto.
Mostrou os brinquedos ao Sr. Maywit, que disse que sim senhor, que eram do filho, de Drainy. Este foi chamado à galeria.
— Onde é que os arranjaste? – perguntou o pai.
— Fi-los.
— Leva o tempo que quiseres, rapaz – continuou o pai-, mas mostra-me como é que os fizeste. Eu dou-te um bocado de
arame. Agora vai buscar as tuas ferramentas e faz um para mim.
O pai deu alguns bocados de arame ao rapaz, mas Drainy não se mexeu. Segurou-os entre os dedos com um ar estúpido,
chupando os dentes.
— Não queres mostrar-me as tuas ferramentas?
O Sr. Maywit deu uma palmadinha no ombro do rapaz.
— Ele não tem ferramentas.
— Então, no fim de contas, não és capaz de os fazer? – perguntou o pai. – Sou – respondeu o rapaz.
Drainy acocorou-se, meteu o arame entre os dentes, mastigou-o e puxou-o como se fosse um fio dentário, transformou o
arame numa roda dentada, que segurou para o pai ver.
A excitação do Sr. Maywit até o fazia gaguejar:
— Ele … ele fê-lo … com os dentes!
— Toma bem cuidado com essas dentuças, rapaz – disse o pai para Drainy-, e lava-as todos os dias. Precisarei delas mais
tarde.
XIII

A vida não foi nada fácil durante aquelas primeiras semanas em Jerónimo. Não era nenhum reino de coqueiros, com
comida gratuita, cabanas e dias de sol, debaixo do bam, debaixo do bu. A selva era feia e inútil, não nos servia para nada. E
onde estavam os animais selvagens? Havia qualquer coisa de muito teimoso nas árvores da selva, a maneira como se
amontoavam umas em cima das outras, não nos dando sombra. Vi crueldade nas trepadeiras pendentes e egoísmo nas suas
raízes. Foi tudo trabalho e mais trabalho, e uma rotina que nos ocupava todas as horas da luz do dia. No Unicorn e em La
Ceiba, e até em Hatfield, fazíamos mais ou menos o que nos apetecia. O pai deixava-nos sozinhos e ia tratar dos seus afazeres.
Em geral, eu ajudara-o, mas por vezes não o fizera. Aqui, as coisas eram diferentes.
Tocava uma campainha ao nascer do Sol, altura em que o pai já tinha o lume aceso e o café feito. Os Maywit juntavam-se
a nós, haviam deixado de cozinhar para si mesmos na semana da nossa chegada a Jerónimo. Depois de comermos ananases e
papas de aveia, o pai gritava pelos zambus e dizia-nos quais os objectivos do dia. Aos domingos indicava-nos sempre os
objectivos para a semana seguinte; terminar a casa, arranjar não sei quantos alqueires de pedras, limpar uma certa quantidade
de terreno, cortar estacas para os feijoeiros, cavar valas para escoamento da água. Os Maywits ocupavam-se principalmente
da horta, os zambus da limpeza do terreno e da construção, e as crianças, as dos Maywit e nós, colhiam e limpavam.
Executávamos os trabalhos durante a manhã e à hora do almoço já fazia um calor terrível, pois estávamos em Julho. O
almoço era sempre sopa quente, pois o pai tinha a ideia de que precisávamos de suar muito para nos mantermos frescos, tal
como a natureza. Os trabalhos da tarde eram com frequência interrompidos pela chuva, mas esta nunca durava muito tempo e
logo voltávamos às nossas tarefas. Todas as actividades terminavam ao fim da tarde, pois era então que apareciam as moscas
negras e os mosquitos, cujas picadas eram uma tortura.
Um pouco antes do pôr do Sol fazíamos bicha na casa dos banhos para nos lavarmos. Uma das regras era um duche todos
os dias. Em Hatfield nunca andáramos tão limpos, mas aqui o pai tornara-se num maníaco da limpeza. Também nos obrigava a
mudar de roupas diariamente. As roupas para lavar eram atiradas para dentro de uma selha e um dos cheiros de Jerónimo era
o permanente odor a roupas a ferver. A Sra. Maywit sempre lavara as roupas da sua família no rio, mas agora servia-se da
selha de zinco. O pai estava muito satisfeito por os Maywit seguirem o nosso exemplo e tomarem também um duche diário. Só
os zambus continuavam a ser os mesmos, cheiravam mal como o diabo, tal como acontecia com o pai, quando se zangava.
Nos primeiros dias havíamos passado o princípio da noite, a hora dos mosquitos, entre o jantar e a altura de deitar, no
interior da estrutura à prova de insectos. Depois da casa acabada sentávamo-nos na galeria (também à prova de mosquitos) até
chegar a hora de irmos para dentro. Os Maywit juntavam-se a nós com frequência. O Sr. Maywit falava-nos dos índios das
montanhas e dos rios. Gostava de dar informações. Disse ser verdade o que o Sr. Haddy nos contara acerca de alguns índios
terem caudas compridas. Afirmou que havia uma tribo de índios só com gigantes e outra só com pigmeus.
A mais estranha história do Sr. Maywit era a respeito de uns índios a que chamava «Mascadores». Afirmou que os
Mascadores viviam numa certa zona de Mosquitia e confessou ter pensado, quando nos vira pela primeira vez, que éramos
mascadores. Estes mantinham-se escondidos em cidades secretas, na selva. Estavam ali há mais tempo que os índios
Mosquitos, Paias, Tuacas ou Zambus. No entanto, não valia a pena ter medo dos Mascadores, porque eram gente pacífica e
virtuosa. Também eram muito altos, construíam pirâmides e eram, sob todos os aspectos, um povo nobre.
— Está a esquecer-se de uma coisa importante, senhor Maywit disse o pai. – São índios brancos. Mais brancos do que eu
… e até mais brancos do que o senhor.
Os Maywit eram da cor do café instantâneo, de cabelos avermelhados e olhos verdes.
— Já os viu? – perguntou o Sr. Maywit.
— O pai sabe tudo – respondeu Clover.
— Sei desses Mascadores – declarou o pai. – Fale-nos no ouro deles, senhor Maywit.
— Não sei nada a respeito de ouro.
— Têm minas de ouro – continuou o pai. – Pepitas do tamanho de nozes. Martelam-nas para as fazerem fininhas e
escrevem nelas. Enrolam-nas e fazem pulseiras. Têm pó de ouro e placas de ouro … lingotes com um metro de largura.
— Foi Haddy quem lhe disse isso?
— Não – respondeu o pai. – Poupe o fôlego, senhor Maywit, não quero ouvir falar de índios brancos que são anjos. Quero
que me fale dos diabos da Nicarágua.
— Os que andam com cabuzes?
— Não só esses mas também os que fazem com que as coisas saiam erradas, nos dão dores de cabeça e de dentes, pneus
furados e deixam entrar os mosquitos, escondem coisas que nos pertencem e que nunca mais aparecem. Os que fazem ruídos
esquisitos à noite, nos mantêm acordados, nos deitam a casa abaixo e a incendeiam.
— Nunca ouvi falar neles – disse o Sr. Maywit. – Onde ouviu?
— É lógico. Se existem Mascadores brancos cheios de ouro em cidades secretas, têm de existir diabos horríveis que só
fazem o mal, não é assim?
— Allie está a brincar consigo, senhor Maywit – interveio a mãe. Não está a falar a sério. Penso que essa sua história
sobre os Mascadores foi muito interessante.
— Mas ele já a tinha ouvido.
— Diga-me qualquer coisa que eu não saiba. Esqueça-se dos Mascadores e dos diabos. Se acredita neles, nunca
conseguirá fazer nada … passará metade da sua vida a olhar por cima do ombro. Pessoalmente, não acredito nos Mascadores,
a não ser que eu seja um deles. – Fez uma careta. – O que está inteiramente dentro das possibilidades.
Jerry disse que não acreditava nos Mascadores, April afirmou que era uma superstição parva, tal como o Coelhinho da
Páscoa, o Pai Natal e Deus.
O Sr. Maywit declarou que podíamos pensar o que quiséssemos, mas que ele acreditava em Deus e a Sr. A Maywit
também. Tinham visto Deus com os seus próprios olhos na igreja do pregador, em Santa Rosa.
— E então qual era o aspecto de Deus? – perguntou o pai.
— Como um pássaro numa nuvem – respondeu o Sr. Maywit. – Foi o que disse a Ma Kennywick.
— Então, o senhor não viu Deus?
— Não, a Ma Kennwyck viu-o e eu vi a Ma Kennwyck.
— Vivam os pregadores! – exclamou a Sr. A Maywit de olhos de galinha. – Foi uma experiência – afirmou o Sr. Maywit.
— Sim, de certeza. Agora digam-me qualquer coisa que eu não saiba – insistiu o pai.
— Sabe dos espíritos do mal?
— O Sr. Haddy já me falou neles – disse eu.
— Mas o Sr. Haddy fugiu ao assunto – continuou o pai. – Deixemos que o cavalheiro fale. Muito bem, cavalheiro, já nos
provou a existência de Deus, ou seja, que Ma Kennywick gritou que o Todo-Poderoso parece um pássaro numa nuvem. Agora,
diga-nos o que são os espíritos malignos.
— Os pregadores falaram-me deles e muita gente, até os Zambus, acreditam em espíritos do mal. Em geral, pai, são
fantasmas.
— De gente morta – disse o pai.
— De gente viva.
— Estou a ver.
— Toda a gente tem um espírito do mal. São iguais a nós, mas são o nosso outro eu. Têm corpos seus.
— Portanto, metade do mundo é feito de gente e a outra metade de espíritos do mal, é isso?
— Não interessa – respondeu o Sr. Maywit.
A Sra. Maywit retorcia os dedos.
— Excepto que não os conseguimos apanhar.
— São invisíveis? – perguntou o pai.
— Eles estão aqui – continuou o Sr. Maywit-, em qualquer lado. À espera. Aparecem de vez em quando e fazem-nos
gritar. É nessa altura que os pregadores os vêem. Nunca vi o meu.
— E como é que sabe que eu não sou o seu espírito do mal?
O Sr. Maywit não disse mais uma palavra. Olhou para o pai e o seu rosto cor de café ficou cinzento de medo. Apareceu-
lhe uma nova ruga circular em volta dos olhos. Era como se só naquele momento compreendesse quem era aquele homem e
estivesse prestes a render-se à sua própria crença.
— Basta, Allie – repreendeu a mãe, virando-se para os Maywit.
Não vêem que ele está a brincar?
— Não faz mal – disse o Sr. Maywit, mas a voz tremia-lhe.

O pai estava interessado no que o Sr. Maywit dissera, mas continuou a brincar e a troçar a respeito dos Mascadores e dos
espíritos malignos. Tinha a certeza de que ele acreditara em parte naquilo … a história era demasiado boa para não se
acreditar nela. Fantasmas vivos! Índios brancos! Sabia, por experiências passadas, que o pai nunca brincava tanto, excepto
quando discutia qualquer coisa séria. Se alguém tinha medo, o pai brincava. Se a pessoa tentava ser engraçada, o pai citava a
Bíblia ou perguntava: «Ainda não ouviu dizer que vai haver uma guerra?»
Era uma pessoa complicada também de outras maneiras. Depois de chegarmos a Jerónimo afirmou que podia passar sem
dormir. Ficava acordado quando íamos para a cama e já trabalhava quando nos levantávamos de manhã. Também dizia que
podia passar muitos dias sem comer, que nunca adoecia e que não era mordido pelos mosquitos. Isto mistificava os Maywit e
os Zambus, mas eu sabia que ele estava apenas a tentar dar o exemplo, que se trabalhássemos muito e não nos queixássemos,
os outros teriam de proceder do mesmo modo. O trabalho e a falta de sono não o deixavam irritável. De facto, nunca o vira tão
feliz. A mãe, que o amava à sua maneira, também era feliz.
Agora tínhamos uma casa e um certo número de invenções que nos facilitavam a vida. Os zambus, que havíamos
encontrado por acaso na margem do rio, no Balde-de-Peixe, pareciam contentes. Andavam por ali de calções e camisas de
manga curta, que a mãe lhes fizera de um bocado de lona. Os Maywit, com a ajuda do pai, melhoraram a sua própria casa.
Os nossos feijões miraculosos já estavam meio crescidos e já mostravam vagens, que o pai afirmava que estariam prontas
para serem colhidas dentro de poucas semanas. As outras culturas floresciam ao lado dos canais de irrigação. Quando se
entrava em Jerónimo pelo lado do trilho, avistava-se qualquer coisa que parecia um povoado, casas, hortas, caminhos
pavimentados com pedras e a bomba a despejar a água para o bidão. Era o lugar civilizado que o pai vira no primeiro dia,
quando tudo o que nós tínhamos visto fora ervas, um montão de lama e uma cadeira fumegante.
Tive mais sorte do que qualquer outro. Quando as gémeas se foram abaixo por causa dos problemas no estômago, e depois
a mãe e o Jerry, eu não adoeci. Notei que o pai ficou a gostar um pouco mais de mim por causa disso. Tinha uma certa maneira
de insinuar que se alguém estava doente era a fingir, ou, pelo menos, a exagerar. Nunca dizia: «Ele está doente», mas sim «Ele
diz que está doente» ou «Ele afirma que está doente».
— Não tenho tempo para adoecer – afirmava. – Se tivesse algum tempo livre, então se calhar ficava doente como um cão!
Um dia, o Sr. Haddy voltou. Nessa altura já o pai começara a construção daquilo a que chamava a «fábrica», mas que de
momento não passava de uma grande estrutura de troncos descascados com dois andares de altura, na concavidade do terreno
já limpo. As caldeiras foram para aí. Ouvimos o motor antes de vermos o barco. O pai fez-me trepar ao cimo de um dos
troncos para poder espreitar.
— Quem é? – perguntou, tomando um tom que me pareceu zangado, o que acontecia pela primeira vez desde que
estávamos em Jerónimo.
— É o Little Haddy – respondi eu, que avistava o toldo rasgado e a pequena casa do leme.
O pai ficou satisfeito, mas quando descemos ao rio não gostou nada do que viu. O Sr. Haddy não estava sozinho. Havia um
homem com ele, um branco, que desembarcava carregado como uma mula.
O Sr. Haddy explicou que esgotara a água do barco e a reparara em Balde-de-Peixe. A seguir descobrira que sem as
caldeiras e toda aquela sucata de metal o barco flutuava com facilidade mesmo na parte do rio menos funda. Depois de passar
duas semanas em Santa Rosa, para uma reparação em condições, decidira experimentar se conseguiria fazer todo o caminho
até Jerónimo, navegando pelo rio Bonito, a partir do ponto em que este desaguava no Aguan.
— Trago-lhes comida verdadeira, de Santa Rosa – referia-se a mariscos que trazia em cestos, no convés. A seguir
mostrou-nos uma tartaruga morta. Tinham-lhe arrancado as barbatanas e a sua cabeça de lagarto, de bico ossudo, pendia da
enorme carapaça. – É uma tartaruga.
Porém, o pai não estava interessado.
— Quem é esse hamburger? – perguntou. – Este é o Sr. Struss, de Santa Rosa.
— Como está? – disse o homem, que avançou para a margem enlameada e pousou a mala. A seguir tirou os óculos escuros
e tentou sorrir, mas teve de fechar os olhos à pressa por causa do sol, o que lhe deu um ar de vesgo. Era um pouco mais velho
do que o pai e mais gordo e tinha manchas escuras de suor em todas as saliências do corpo, círculos debaixo dos braços e uma
faixa de humidade em volta da cintura. Virou para nós o seu sorriso sofredor. – Mas que belos garotos – declarou. A seguir
olhou para detrás de nós. – Ah, e construíram uma bela casa.
— Que é que quer? – perguntou o pai, bloqueando o caminho e mantendo o homem a enterrar-se no lodo.
Os zambus haviam pousado as ferramentas e os Maywit apareceram em molho, vindos da horta. Ficaram ali cerca de
dezassete pessoas, a olhar para o pai e para o estranho.
— O senhor Haddy disseme que vinha para aqui. Foi suficientemente amável para me dar uma boleia.
— É um passageiro pagante, mas fui eu que tomei conta do leme.
Ele trabalhou com a sonda. Conhecia o caminho.
— Já aqui estive antes. O Sr. Roper conhece-me. Não é verdade? Falava para o Sr. Maywit.
— Não há aqui nenhum Sr. Roper – afirmou o pai. – É um caso de troca de identidades. O calor está a fazer-lhe mal.
O Sr. Maywit soltou uns risinhos e manteve-se de boca fechada. O homem ficou confuso. Voltou a colocar os óculos de
sol, pegou nas manchas de suor da camisa, agitou-a para se refrescar e continuou:
— Vim aqui para lhes fazer uma pergunta.
— Não estamos interessados nas suas perguntas.
— Acabou de lhe dar resposta, irmão. Ainda bem que aqui vim, porque a pergunta é: Já estão salvos? Tenho uma curiosa
sensação de que o Senhor …
— O Senhor está no alto daquela árvore – disse o pai, apontando com o dedo cortado para um pássaro empoleirado num
ramo.
O homem ficou a olhar para o dedo do pai e até ajustou os óculos de sol para o ver melhor.
— Vá-se embora – continuou o pai, mostrando o seu sorriso de homem surdo.
— Não pode responder por essa gente aí …
— Não estou a responder – declarou o pai. – No que a mim diz respeito, o senhor nem sequer abriu a boca nem fez
nenhuma pergunta. Não tem autorização para a fazer. Sou dono deste sítio e não lhe dou autorização para desembarcar. Se
quiser falar com esta gente, terá de o fazer em qualquer outro lado, fora de Jerónimo. A cerca de seiscentos metros para Norte
daqui, encontrará um pequeno pântano. É Swampmouth, a entrada em Jerónimo. Não há que enganar. Vá para lá e faça todas as
pregações que quiser. Ponha-se a caminho, Sr. Struss – concluiu, entregando-lhe a mala.
— Foi o Senhor que aqui me enviou – disse o Sr. Struss.
— Tretas! – retorquiu o pai. – O Senhor nem faz ideia de que este lugar existe. Se assim não fosse, já teria feito qualquer
coisa para o melhorar.
— O rio não lhe pertence, irmão.
— Está a pensar em caminhar sobre a água? – perguntou o pai.
Se assim é, não diga nem mais uma palavra antes de estar a meio da corrente.
O Sr. Struss examinou-nos. Respirava com dificuldade e tinha montes de moscas em cima dos ombros.
— Sabem que sou um homem justo – disse-nos o pai. – Se algum de vocês quiser ir com ele, não o impedirei. Corram para
o pântano e escutem o que o homem tem para dizer. Alguém está interessado?
O Sr. Maywit e a sua mulher de olhos de galinha olharam ansiosos para o pai. Os zambus soltaram uns risinhos.
— Desculpe, senhor Roper, não se importa …
— Cale-se – ordenou o pai e Francis Lungley riu-se às gargalhadas.
— É melhor fazer o que o meu marido lhe disse – interveio a mãe.
— Encontrará algumas canoas em Swampmouth e posso dar-lhe um saco com o almoço. Não terá qualquer dificuldade em
ir dali até à costa.
— O Senhor quer-me aqui – afirmou o homem.
— É disto que eu mais gosto em vocês – afirmou o pai-, a vossa falta de presunção. Escute, não vou tentá-lo com o
martírio, portanto, desapareça e não volte cá.
Um pouco depois, do pórtico da casa, vimos o Sr. Struss a descer o rio direito ao pântano. Numa das mãos levava a mala e
na outra o saco de comida que a mãe lhe dera. Ia sozinho.
— Imaginem – disse o pai – aquele hamburger fez todo este caminho para nos fazer uma pergunta estúpida. – Colocou o
rosto muito perto do do Sr. Maywit e perguntou-lhe: – Estás salvo?
— Sim, pai.
A seguir fez a mesma pergunta a todos os outros, um de cada vez, e todos disseram que sim e se riram com ele. Fez-me
também a pergunta e respondi que sim, mas estava junto da janela e vi que, ao ouvir-nos rir, o Sr. Struss olhava para cima.
Parecia doente mas continuou a andar.
Os dias passaram. Foram dias de sol, com muito pouca chuva e abafados de poeira. No entanto, as noites eram uma fúria,
com o estridor dos insectos e os grunhidos dos pássaros, grunhidos que, por vezes, se transformavam em gritos. A escuridão
ajudava-nos a ouvir os suaves ruídos provocados pelos macacos aos saltos nos ramos, enquanto os estalidos de alguns
insectos eram como estalidos de combustão, como se cada arbusto e cada árvore estivessem a arder. A noite, o calor era ainda
mais sufocante do que de dia e fazia com que o sono se parecesse com a morte. Era um mergulho sem sonhos no meio de toda
aquela confusão.
O pai passou esses dias a martelar … não nos disse para quê, mas os seus olhos diziam-me que os seus pensamentos eram
como tempestades. Todos os homens de Jerónimo trabalhavam na «fábrica» com o pai. Até ali não passava de um esqueleto,
com tubos presos a paus e os homens pendurados como macacos nas vigas, seguindo as ordens. Era um trabalho lento e
durante muito tempo aquilo não se pareceu com coisa nenhuma.
No dia a seguir à colheita do feijão, o pai declarou um feriado. Era o nosso primeiro dia livre em seis semanas de
trabalho. Os zambus apanharam um pássaro chamado mutum e os Maywit trouxeram mandioca cozida, bananas e outras frutas.
O pai não permitiu que se matasse nenhuma das galinhas dos Maywit.
— Isso seria viver dos nossos capitais – declarou.
Tivemos uma tarde de festa no pátio da frente. O Sr. Maywit e o Sr. Haddy fizeram turnos e contaram-nos histórias acerca
da costa de Mosquito – piratas e canibais-, e Clover e April cantaram: «Debaixo do bam,/Debaixo do bu!»
O pai fez um discurso a nosso respeito. Que éramos tijolos, afirmou. Depois continuou, explicando tudo o que era possível
fazer com tijolos.
Só se zangou uma vez, foi quando o Sr. Haddy gabou a comida. O pai odiava que alguém falasse de comida, de a cozinhar
ou de a comer. Só os parvos o faziam. Era uma coisa egoísta e indecente, falar do sabor do que se comia.
Afirmou que aquela era a nossa primeira acção de graças.
Já estávamos em Agosto. O Sr. Maywit disse que o sabia sem olhar para o calendário por causa de um certo pássaro que
já chegara. Era um pássaro muito pequeno e brilhante, verde e amarelo, que soltava uns sons chilreados que me fizeram pensar
na música de flauta que ouvira ao rapaz da praia, na nossa primeira noite em La Ceiba.
Continuámos a trabalhar na «fábrica». As tábuas de mogno foram içadas para os seus lugares e presas aos postes. Os
pavimentos não me disseram nada, mas quando os lados começaram a subir, a estrutura tomou uma forma que me era familiar.
Calculei o que era ainda antes de estar terminada.
XIV

A maior parte deles, incluindo os Maywit (que tinham visto um em Trujillo), pensava que o pai enlouquecera e construíra
um silo.
— Eh! E que cereal é que lá vai meter dentro? – perguntou o Sr. Haddy, falando por todos.
O pai respondeu que não ia guardar nada lá dentro e muito menos cereais.
— Esperem e verão o que dali vai sair! E que continuará a sair para sempre! Escutem – continuou num murmúrio,, de
olhos postos na estrutura-, aquela engenhoca é eterna. Não falhará.
Não tinha o feitio de garrafa de alguns silos, não tinha o formato de um termo, nem entradas para cereais. Era alta e
quadrada, sem janelas e apenas com uma porta a seis metros de altura. Não havia escadas para a porta. Era uma simples
construção de madeira, um enorme armário de mogno erguido na clareira da floresta. Era uma caixa – mas uma caixa
gigantesca – com uma cobertura de lata. Uma estranheza de tal magnificência que se bastava a si própria como uma pirâmide
egípcia. As suas enormes formas eram o suficiente. Não precisava de ter uma finalidade. No entanto, eu sabia que era a
«Banheira das Minhocas», ampliada mil vezes.
Mal acabou de se erguer e logo surgiram bandos de pessoas para a verem. Suponho que as marteladas eram ouvidas nos
bosques. O pai recebeu bem todos esses estranhos. Eram índios das montanhas e camponeses de língua espanhola, crioulos e
zambus. Os índios não ficavam, mas os outros faziam-no, o Sr. Harkins e o Sr. Peaselee, a velha Sra. Kennywick (a que vira
Deus na igreja dos pregadores) e alguns outros. Disseram que tinham visto a casa – era assim que lhe chamavam – a subir.
Maravilhavam-se com ela. Era mais alta do que as árvores e de cimo achatado, diferente de tudo o que a rodeava. Tinham-na
visto de muito longe.
Aquela curiosidade era uma vantagem. No preciso momento em que o pai necessitava de ajuda, aquela gente surgira de
entre as árvores dispostas a ajudá-lo. Acabada a construção dos outros edifícios, a primeira colheita já feita e as restantes
para muito em breve – era tudo o que precisávamos-, toda a gente em Jerónimo julgava que o nosso trabalho terminara. Isso
fazia com que a «fábrica», como o pai lhe continuava a chamar, constituísse uma verdadeira surpresa. Para que servia? Que
estava ali a fazer?
O pai prometeu outras maravilhas, mas ainda era necessário acrescentar mais madeiras à estrutura e fazer tijolos.
— Onde estão os tijolos, pai? – perguntou o Sr. Maywit.
— Estás em cima deles! – respondeu o pai, apontando para o chão com o coto do dedo. – Barro! Tudo isso são tijolos à
espera de serem feitos!
Também era necessário trabalhar metais.
— A Idade do Ferro chegou a Jerónimo – declarou o pai. – Um mês atrás estávamos na Idade da Pedra, cavando vegetais
com pás de madeira e matando ratos com machados de pedra. Estamos a andar depressa. Dentro de alguns dias estaremos em
mil oitocentos e trinta e dois! A propósito, minha gente, faço conta de saltar por cima de todo o século vinte.
Havia mais canalizações naquela estrutura do que numa barragem hidroeléctrica, mas a construção continuou sem
problemas. Os recém-chegados ficavam satisfeitos por ajudar e gostavam de ouvir o pai, que falava durante todo o tempo.
— Uma das doenças do século vinte? – disse o pai – Vou dizer-lhes qual é a pior. As pessoas não conseguem ficar
sozinhas. Não toleram a solidão e por isso vão para os cinemas, comem hamburgers, publicam os seus nomes e números de
telefone nos pasquins e pedem: «Por favor, telefonem-me!» É nojento! As pessoas odeiam a sua própria companhia … choram
quando se vêem ao espelho! Ficam assustadas com o aspecto das suas próprias caras. Talvez isso seja a chave de tudo …
A maior parte dos canos era encurvada, tantos canos encurvados que até uma vaca ficaria com os olhos tortos. Alguns
desses canos encurvados tínhamos nós trazido de La Ceiba e outros foram feitos na forja. A forja foi construída com os
primeiros tijolos e os foles (um simples fogo não era suficientemente quente) foram feitos com duas tábuas e bocados de
couro. O pai poupou o maçarico e utilizou-o apenas nas ligações finais, porque não queria gastar a garrafa do gás. Os mirones
que por ali andavam ficavam fascinados com o aspecto do pai com a máscara de soldar na cara, os olhos a brilharem por
detrás do vidro, luvas e avental de amianto, segurando um maçarico sibilante.
— Por que é que as coisas são cada vez piores e mais mal feitas? perguntava na sua voz, ecoante e enfraquecida debaixo
da máscara, como se saísse de uma concha. – Por que é que as coisas não melhoram? Porque aceitamos que se estraguem!
Porém, não é obrigatório que assim aconteça. Podiam durar eternamente. Por que é que as coisas são cada vez mais caras?
Qualquer burro pode ver que deveriam ser mais baratas à medida que a tecnologia se torna mais eficiente. É o desespero de
aceitar a senilidade da obsolescência …
Gostavam da sua conversa, mas adoravam a chuva de fagulhas e os fragmentos de metal morto que voavam do maçarico.
Ficavam espantados ao verem barras de ferro amolecer e pingar como alcatrão por debaixo da chama azul.
O maçarico era um dos brinquedos do pai. Havia outros, como a «Caixa dos Trovões» e o «Esmagador de Átomos», e até
alguns muito mais simples, como o «Castor», que trabalhava tubos e lhes abria roscas, uma espécie de mandíbula operada à
mão com uma boca cheia de dentes. Para ele eram brinquedos, mas para os outros eram magia. Quando pegava num tubo
enferrujado, o limpava, lhe abria roscas e o dobrava tantas vezes que ficava a parecer-se com uma manivela, todos se
amontoavam para o verem trabalhar. Nesse momento era um feiticeiro de máscara de ferro transformando um bocado de sucata
numa peça simétrica para as canalizações que eram o estômago e os intestinos da «fábrica». Afirmava que mesmo com aquele
seu equipamento tão básico era capaz de transformar o mais simples varão ou tubo no mais minúsculo circuito de um
computador.
— Era capaz de fazer microchips do mais espesso bloco de ferro que por aí ande. Sou capaz de fazer falar o estúpido do
metal. É isso o que são os circuitos de um computador … palavras e parágrafos de uma linguagem primitiva – afirmou,
falando directamente para o Sr. Harkins. – Ninguém considera os computadores como primitivos … mas são … São selvagens
mecânicos.
Afirmou que estava a fazer um monstro.
— Sou o Doutor Frankenstein! – uivou através da máscara de soldar.
Disse que um par daqueles canos eram os pulmões, que um outro era o «buraco do traseiro» e que dois tanques eram um
par de rins. Falava sempre na «fábrica» como um «ele». «Ele hoje precisa de uma moela?» ou «Isto assenta perfeitamente no
fígado dele», ou ainda «Que tal este tubo para lhe servir de goela?». Harkins e Peaselee riam-se daquilo e perguntaram ao pai
se o monstro tinha nome.
— Diz-lhe, Charlie. Recordava-me do nome.
— «Menino Gordo» – respondi. Toda a gente sussurrou o nome.
Jerry e as gémeas ficaram surpreendidos por eu saber qualquer coisa que eles não sabiam, não apenas o nome mas também
a finalidade, como funcionava e qual o seu aspecto quando estivesse pronto. Mostraram-me um certo respeito e durante algum
tempo até deixaram de me chamar «parvo» e «nabo».
Até a mãe ficou um pouquinho curiosa acerca do modo como eu sabia aquilo. Disselhe que tinha visto o modelo à escala.
Lembrei-me da manhã em que eu e o pai havíamos carregado a pequena «Banheira das Minhocas» na camioneta e passado
pelo espantalho para fazer uma demonstração ao Polski, com o pai primeiro feliz e depois zangado, e a caixa de madeira a
rosnar e a produzir um disco de gelo dentro de um copo. Lembrei-me também de mais coisas, do vedante de borracha em
Northampton, do polícia, e do pai a dizer: «Nunca ninguém pensa em ir-se embora deste país. Mas eu penso nisso todos os
dias!» Lembrei-me da «Casa dos Macacos» e do seu: «É uma desgraça!»
Tudo isso fora muito longe dali, mas ao ver aquela enorme construção sem janelas, à beira da clareira, compreendi por
que é que tínhamos ido para ali … Para construir o «Menino Gordo» e fabricarmos gelo.
Este era o lugar distante e vazio de que o pai sempre falara. Aqui podia fazer tudo o que lhe apetecesse sem ter de dar
satisfações a ninguém. Não havia nenhum Polski.
— Olhamos para Jerónimo e podemos dizer em que século estamos – afirmou o pai. – Isto faz parte do nosso planeta
original, com pessoas a condizer … e ainda perguntas a ti mesmo por que é que corri com aquele missionário?
O pai encontrara a sua terra selvagem.
As pessoas começaram a ter medo do «Menino Gordo». Tudo começou com Francis Lungley que declarou ter ouvido
ruídos lá dentro, durante a noite. O Sr. Maywit disse que aquilo lançava um cheiro, não um cheiro a máquina mas a algo
parecido com o bafo de um tigre.
— Há morcegos lá dentro – acrescentou a Sra. Kennywick, o que era verdade.
— Tem vinte e dois olhos durante a noite – disse o Sr. Haddy, o que não era verdade.
Todos o olhavam com ansiedade, como se fosse um monstro perigoso. Ninguém queria lá entrar a não ser que o pai fosse o
primeiro, mas este tinha o hábito de cantar lá dentro, o que assustava todos. Uma manhã, o Sr. Harkins declarou que o monstro
se fora embora. Corremos para o exterior e vimos que continuava lá.
— Voltou neste momento – explicou o Sr. Harkins.
Os zambus continuavam a ouvir ruídos lá dentro. Eram vozes, vozes de bruxas, afirmavam.
O pai disselhes que se acalmassem.
— Não há nada de que ter medo – afirmou. – Nem sequer é nada de novo, não é uma invenção. – No entanto, continuaram
todos com medo. – É uma maravilha, mas não é mágica. As pessoas dizem que sou um inventor. Não sou. Olhem, que faço eu
aqui?
— Sarilhos – respondeu o Sr. Maywit, que aprendera a palavra com o Sr. Haddy.
— Vou dizer-lhes o que faço aqui … o que faz qualquer pessoa que inventa uma coisa. Estou a ampliar.
Martelando uma caldeira, falando enquanto trabalhava, o pai explicou que a maior parte das invenções ou era adaptações
ou ampliações.
— Considerem o corpo humano – prosseguiu, dizendo que este continha toda a química e toda a física que precisávamos
de conhecer. As melhores invenções são baseadas na anatomia humana. Ele próprio pedira duas patentes sobre ideias que
copiara do corpo … o «Tanque Autovedante» e o «Músculo de Metal». Declarou que não havia melhor exemplo de
engenharia do que a articulação da coxa humana. A tecnologia dos computadores não passava de uma desastrada imitação de
um cérebro, pois o nosso sistema nervoso central era um milhão de vezes mais complicado. – Isolamento? Olhem para os
tecidos gordos! – Era preciso estudar as coisas naturais. Todos os que olhassem bem para um jacaré ou para uma tartaruga
eram capazes de fazer um veículo blindado. O mundo natural mostrava ao homem o que era possível num mundo sem aves não
existiriam aviões. – Os aviões são apenas pardais ampliados, com espaço para meter as pernas.
Os zambus observavam o pai e os outros escutavam, estremecendo, aquele homem que quanto mais trabalhava mais falava.
— O que é um selvagem? Um selvagem é alguém que não se preocupa em olhar à sua volta e, portanto, não sabe que pode
modificar o mundo.
Todos olharam em volta e responderam que sim senhor, era isso mesmo.
O pai continuou, afirmando que selvajaria era ver e não acreditar que nós próprios fôssemos capazes de fazer, o que era
uma condição terrível. O homem que via um pássaro e o transformava num deus porque não era capaz de se imaginar a voar,
era um selvagem dos mais primitivos. Havia tribos que não tinham o bom senso suficiente para construírem cabanas. Andavam
nus e apanhavam pneumonias duplas. No entanto, viviam na vizinhança de aves que construíam ninhos e coelhos que
escavavam tocas. Portanto, tratava-se de selvagens que não valiam nada, que nem sequer tinham a imaginação suficiente para
se abrigarem da chuva.
— Não estou a dizer que todas as invenções são boas. Não viram ainda que todas as invenções perigosas são invenções
não naturais? Querem um exemplo? Vou dar-lhes o melhor que conheço. O queijo que se espalha em cima do pão, saído de um
aerossol. Mais baixo do que isto, não se pode chegar.
A gargalhada da Sra. Kennywick soou esquisitamente e o Sr. Haddy disse que nunca ouvira falar de queijo a esguichar de
uma lata.
— Como creme de barbear – explicou o pai. – Um nojo. E a camada de ozone? O gás da lata devora-a. Há nisso quatro
coisas erradas, o queijo, o esguicho, a lata e a sanduíche. – Continuava a martelar na caldeira. – Nunca fiz nada que nunca
antes existisse sob uma forma semelhante – prosseguiu. – Escolho uma coisa, ou parte de uma coisa, e amplio-a … como as
minhas válvulas, o meu «Músculo de Metal» e o meu «Tanque Autovedante». Tirei essas ideias da anatomia humana, válvulas
do coração, músculos estriados, as paredes do estômago. Escutem, fiz tanques de gás à prova de furos! Foi apenas uma
questão de escala e de aplicação e, digamos a verdade, de aperfeiçoamento. Quer dizer, de fazer um trabalho um pouco melhor
que o de Deus.
Sempre que o pai mencionava Deus, as pessoas de Jerónimo olhavam para o céu e ficavam com um ar muito culpado e
envergonhado, encolhendo-se como se esperassem a queda de um raio. O pai reparou nisso e mudou de assunto.
— As pessoas falam da invenção da roda. Que é que há de tão maravilhoso, na roda? Não é nada quando comparada com
um rolamento de esferas, e há rolamentos de esferas na natureza … temos um muito rudimentar, em cada anca! O
desenvolvimento das lentes? Todas as invenções ópticas são um plágio do olho humano … apesar de eu admitir que o olho
humano é muito inferior, em comparação.
O Sr. Haddy disse que já antes pensara naquilo. Que tudo eram olhos e narizes, mas com nomes diferentes … e que os
guindastes e guinchos no porto de La Ceiba eram como braços, apenas maiores e mais enferrujados.
— Então está a perceber a ideia – retorquiu o pai. – E o que é isto?
— Um sarilho – afirmou o Sr. Haddy – e aí dentro ninguém me apanha.
— É o interior de um corpo humano. As suas entranhas e órgãos vitais. O peito. O tubo digestivo. Respiração. Sistema
circulatório. Tecido gordo. Porquê construí-lo? Porque o mundo é imperfeito! É por isso que faço o que faço. É por isso que
não acredito em Deus – deixem lá de olhar para cima, gentes! – porque se podemos fazer aperfeiçoamentos, então Deus não é
grande coisa, pois não?
Ninguém respondeu e ninguém ousava entrar sozinho no «Menino Gordo». Lá dentro estava escuro, demasiado fresco e
cheio de canos de ferro. Não tinha janelas, o isolamento tornava-o viscoso e havia murmúrios nos cantos mais escuros.
— Não há nada de que ter medo – insistiu o pai, olhando para mim. Percebi logo o que iria acontecer, não me tirava os
olhos de cima. O Charlie não tem medo. Querem vê-lo subir até ao topo?
Os rostos na clareira brilharam na minha direcção como mostradores de relógios.
— Não sai de lá vivo – disse Francisc Lungley.
— Um comentário ignorante – replicou o pai.
— Pai, por que é que o Charlie está a tremer? – perguntou Clover.
— O Charlie não está a tremer.
Tive de obedecer.
Estava a trabalhar nos foles. Larguei-os, limpei as mãos e olhei para todas aquelas caras de relógio. Diziam três e um
quarto com as suas expressões preocupadas e perguntei a mim mesmo porquê. Alguns olhavam para mim, outros para o pai. Se
não tivessem um ar tão parvo e assustado, sentir-me-ia melhor ao penetrar no «Menino Gordo» … mas assim como estavam,
revolviam-me as tripas.
— Oh, bolas! – exclamei, entrando.
O pai fechou a porta atrás de mim e tirou-me a maior parte da luz. Tudo o que conseguia ver através das fendas do chão
ainda por tapar, era o Sol a brilhar de um modo empoeirado pelas aberturas da porta lá do alto.
Era como estar dentro de um corpo monstruoso, debaixo dos lábios frios do seu tanque-estômago. Os tubos de ferro
elevavam-se ao longo das paredes. Pegajosos de massa vedante e ainda a cheirarem a soldaduras recentes, tinham um odor a
ovos podres e a carne transformada em lama, e o aspecto escorregadio das pedras cobertas de limos. Onde a luz que entrava
pelas fendas iluminava tubos ferrugentos, via que aquelas manchas avermelhadas se pareciam com carne. O menor movimento
dos meus pés provocava um enorme ribombar … um ribombar de órgão.
Uma semana antes escalara o exterior com toda a facilidade. No entanto, era a primeira vez que lá estava dentro sozinho,
com a porta fechada, no escuro, subindo para o topo. Engoli em seco, ingerindo o pânico, e olhei para cima pois o topo era a
única saída. Comecei a trepar pelos canos da secção central, pelos depósitos que o pai dizia serem rins, pelo meio do peito
enferrujado até ao tubo de aço a que ele chamava «goela». Os únicos sons que penetravam naquelas paredes eram os gritos de
April e Glover a brincarem com os filhos dos Maywit … lá fora ao sol.
Ainda não havia nenhum fluido nos tubos do «Menino Gordo». Por causa do eco, era como estar dentro de qualquer coisa
gigantescamente morta. As sombras eram tubos frios retorcidos que chiavam enquanto eu subia. Tomei balanço e passei para
uma grelha com bicos que Drainy. Maywit fabricara com os dentes e rastejei ao longo dela, apalpando o caminho com os
dedos.
Olhei para baixo no exacto momento em que disse a mim mesmo: «Não olhes para baixo.» Fiquei a olhar. Reconheci o que
vi. Aquilo não era nenhuma barriga, era o cérebro do pai, a parte mecânica do seu cérebro e as complicações da sua mente,
tão forte, grande e misteriosa. Tudo me foi revelado, mas era demais para mim, como uma página de um livro, cheia de
segredos, mas impressa com letras demasiado pequeninas. Estava tudo tão bem encaixado, tão bem aparafusado e ajustado que
parecia ter algo de egoísta. Via que havia ali uma ordem, mas essa ordem – as suas dimensões – assustava-me. «Tal como o
corpo humano», dissera o pai, mas esta era a mais sombria parte do corpo e na escuridão estavam as juntas e as articulações
da sua mente, uma selva de ferro contorcido e de pançudos tanques suspensos por finos arames, cicatrizes de soldaduras,
canos que eram trepadeiras, o peso das pontas de metal apontadas para o tecto como forquilhas, e por todo o lado o equilíbrio
de pequenas dobradiças.
Fiquei tonto. Não conseguia compreender o suficiente para me sentir seguro. Pensei para comigo: «É possível morrer aqui
… ou enlouquecer, se se ficar fechado cá dentro.»
Esforcei-me por atingir a porta e abri-a. Lá em baixo vi chapéus de palha. Alguém – não o pai – gritou para mim.
Encostaram uma escada ao «Menino Gordo» e deixaram-me descer, olhando para a minha cara com um ar muito preocupado.
— Afinal não veio a berrar! – afirmou Francis Lungley.
— É a tua vez, Fido! – disse o pai, empurrando Lungley para a porta. – Lá para dentro! Leva o tempo que quiseres …
habitua-te a isso!
Um a um, mandou-os a todos lá para dentro e bateu com a porta, fazendo-os trepar pelos tubos até à saída superior, para
que perdessem o medo. Só o não fez com a Sra. Maywit, a Sra. Kennywick e as crianças. Afirmaram que não se importavam,
que estavam dispostas a fazê-lo, mas o pai respondeu:
— Isso é tudo o que interessa … estar pronto para o fazer!
Afirmou que enviava as pessoas lá para dentro para que dominassem o medo. Acreditei nele, mas também imaginei que os
queria espantar com a sua habilidade de ianque e dar-lhes um relance da sua mente, do modelo que estava dentro do «Menino
Gordo». Claro que não o mencionei, sabia o que vira. Por outro lado fiquei satisfeito por o pai me ter forçado a lá entrar …
estava a fazer de mim um homem.
Todos compararam a experiência com coisas diferentes. O Sr. Maywit disse que era como estar na torre da igreja. Os
zambus afirmaram que aquilo era como uma gruta que havia nas Esperanzas e o Sr. Harkins afirmou que fora como um sonho
que outrora tivera, mas quando o tentou explicar a voz falhou-lhe e surgiram-lhe lágrimas nos olhos.
— Bah! – exclamou o Sr. Haddy. – É como a casa das máquinas de alguns desses barcos das bananas. Caldeiras e tubos.
Ao ouvir aquilo, Jerry insistiu em entrar mas o pai não deixou.
— Espero que todos tenham admirado a rede por cima dos pulmões de evaporação – disse o pai. – Aquele belo trabalho
foi obra do Drainy.
Drainy fabricara a rede com os dentes, tal e qual como fazia os brinquedos de arame, com grampos e laços e nós que
mastigava, fixando-os depois com os molares.
— Como devem ter reparado, o «Menino Gordo» não está a respirar – continuou. – É por isso que quis que o vissem
agora, antes de ficar vivo. Então irá ser perigoso e será proibido lá entrar. Vai ter trabalho para fazer e nessa altura não quero
ninguém a passear nas suas tripas.
As tábuas lisas de mogno da enorme casa do gelo captavam o verde e o ouro do sol na clareira da selva e brilhavam como
uma pele.
— Vocês não vão acreditar no que ele vai conseguir fazer.
O pai tinha orgulho na construção e estava contente por haver ali pessoas que seriam testemunhas. Ninguém duvidava nem
dele nem das coisas que construía. Gostava de nos fazer andar atrás dele durante a manhã, desde a bomba no rio até à casa dos
banhos e através dos campos, salientado como tudo funcionava bem, a água a chapinhar, as rodas a girarem, os híbridos a
crescerem e os vegetais bem verdes. Andávamos por caminhos que havíamos pavimentado, junto de plantas que tínhamos
plantado.
O que o pai prometera no primeiro dia em Jerónimo estava agora ali para todos verem, comida, água e abrigo. Era tudo
como ele predissera, mas mais ordeiro e feliz do que imagináramos. Nesses passeios de inspecção matinal, levava a mãe pelo
braço e falava para toda a gente, falando para ela.
Chamava àquele bocado de selva uma civilização superior.
— Tal como a América poderia ter sido – dizia. – Mas a América apodreceu e tomou-se combustível. A ambição levou os
piores a governarem-se e os melhores caíram vítimas do sistema.
Os zambus não sabiam de que estava ele a falar, mas gostavam do modo como falava. Conseguia fazê-los rir, gritando:
«Reóstatos! Termo dinâmica!»
— Sou o último homem! – declarava.
Porém, mesmo quando não dizia coisas para se divertir eu tinha de manter a cabeça baixa ou ele perguntaria:
— De que é que te estás a rir, Charlie?
Mas quem é que se riria de algumas das coisas que dizia?
— Temos de manter as bocas fechadas – afirmava – ou toda a gente e mais os irmãos cairão em cima de nós, todos os
pregadores e outros, abrindo estações de serviço, cinemas drive-in e restaurantes de refeições rápidas. Emitindo catálogos.
Oh, claro, instalavam tudo o que pudessem. Abriam um supermercado ao lado do «Menino Gordo», para lhe roubarem os
clientes! Aposto o último dólar em como instalariam um representante da Toyota em Swampmouth. Tudo isto passava a ser um
parque de estacionamento desde aqui até às colinas! Enfiavam-nos com toda a porcaria pela boca abaixo!
— Era bom ter uma loja chinesa – disse o Sr. Maywit.
— Ah, este quer uma loja chinesa!
— Para poder comprar sal, farinha e óleo – explicou o senhor Maywit, encolhendo os ombros.
— Poupe o seu dinheiro – retorquiu o pai. – Para isso não é precisa nenhuma loja chinesa. O mar está cheio de sal, do
melhor sal que existe, sem aditivos. A farinha será fácil de arranjar quando aquele milho estiver pronto. Nós próprios a
moeremos! Olhem para ele, como cresce! Eu próprio trouxe aquele híbrido do Massachussetts. É três vezes maior do que as
vossas variedades hondurenhas.
— E o óleo? – insistiu o Sr. Harkins.
— Já tinha ouvido, e a minha resposta é: «Amendoins!» Ali adiante, a seguir às batatas, há meio acre deles. É preciso dar-
lhes tempo. Não há pressa. Vai-se embora para qualquer lado?
Logo que se fizesse a colheita das batatas e dos inhames, o pai iria banir a cultura de mandioca. Era uma cultura de
preguiçosos, como ele dizia. E a das bananas também. Na verdade nem era preciso mondar, mas a mandioca degradava os
solos e não era nutritiva. Se a cultivássemos transformava-nos em tipos esquisitos.
Continuou o trabalho no «Menino Gordo», a fixação e soldadura de mais tubos, a selagem dos tanques, o acabamento da
fornalha e da chaminé. Agora, ninguém o receava. Os zambus preferiam trabalhar lá dentro, por ser muito mais fresco. Possuía
paredes duplas, e o telhado e a parede ocidental haviam sido cobertos de folhas de zinco, que reflectiam os raios do Sol.
— Se fossem painéis solares, seríamos auto-suficientes em electricidade – disse o pai. – Mas nós não precisamos nem de
electricidade nem de combustíveis fósseis, esta é uma civilização superior.
Testávamos as fugas enchendo os tubos de água. Havia esguichos finos a sair de nove junções, que o pai assinalou e vedou
depois de despejados os canos. Foi então que declarou que tudo estava pronto e que ia a Trujillo com o Sr. Haddy buscar
«plasma» para o «Menino Gordo».
Encomendara amoníaco e hidrogénio. Agora queria transportá-lo até Jerónimo, mas tinha receio de despertar a curiosidade
dos missionários e de vir a receber mais visitas indesejadas, tal como o Sr. Struss ou alguém da fé dos Spellgoods, ou um
vendedor de Toyotas.
— Costumava lavar os vidros da igreja com amoníaco – disse o Sr. Maywit.
— Viva o pregador – declarou a Sr. A Maywit.
— Deixa isso – respondeu o marido.
O Sr. Haddy fez notar que não existia um único vidro de janela em Jerónimo, o que era verdade.
— Pode-se fazer de tudo com o amoníaco – explicou o pai. – O relógio de amoníaco é o mais perfeito aparelho para medir
o tempo que existe no mundo. Não me acreditam? – O Sr. Maywit fazia uma careta. – Escutem, o tiquetaque é a oscilação de
um átomo de azoto numa molécula de amoníaco. O Francis sabe tudo a este respeito, não é?
— É verdade, pai – disse Francis.
— Vou servir-me de amoníaco enriquecido – continuou o pai. – O que é que pensam que andei a fazer em La Ceiba? A
cuspir para o chão como os outros? Não senhor, estava a tratar do amoníaco. Esse é o meu segredo. Quanto mais enriquecido
for, mais rápida será a evaporação. Depois logo vêem.
— Já tinha ouvido dizer – afirmou o Sr. Maywit.
— Ele faz tudo sozinho, para arranjar sarilhos – declarou o Sr. Haddy, enquanto os zambus se limitavam a olhar. –
Enriquece-os. É assim mesmo.
— É mais tóxico – disse o pai e os zambus riram-se do «tóxico»-, mas depois de estar selado no sistema, já não há perigo.
E é eterno. Vejam os ácidos do vosso estômago. Eram capazes de vos abrir um belo buraco na camisa, se vertessem. Há
amoníaco na natureza, sabem, nas matérias vegetais apodrecidas, na água do mar, no solo, e até na urina.
O Sr. Maywit afirmou que também ouvira dizer aquilo.
— Quer que vá consigo a Trujillo? – perguntou. – Compro sal e óleo para a Ma.
O pai pousou a mão na camisa do Sr. Maywit, feita de uma saca de farinha, no sítio onde dizia La Rosa, no ombro.
— Preciso de ti aqui, homem. A partir de agora és o meu supervisor-de-campo. Tens de ficar, para depois me dizeres o
que tenho de fazer.
A seguir falou para toda a gente, a Sra. Kennywick, os zambus, Harkins, Peaselee, os Maywit e nós.
— Recebo ordens de vocês – declarou. – São vocês que mandam aqui. Se querem que o «Menino Gordo» funcione, têm de
me mandar descer o rio até Trujillo, para ir buscar os seus fluidos vitais.
O pai acabou por os encorajar a dizer: «Sim, por favor, vá.»
— Entretanto, colham alguns desses tomates. Ele … – apontou para a camisa de saca de farinha do Sr. Maywit – … quer
uma loja chinesa!
A mãe perguntou-lhe quanto tempo estaria fora. O pai respondeu que calculava uma semana, já prevendo «impedimentos
imprevistos».
No dia seguinte o Little Haddy, já preparado para o rio, abandonou Jerónimo em direcção à costa. Mas Haddy trabalhava
com a sonda e o pai ia ao leme. O Sr. Haddy comentou, para que todos pudessem ouvir:
— Este costumava ser o meu barco.
Corremos ao longo da margem quase até Swampmouth, mas perdemo-los de vista no meio da espessa folhagem que o pai
comparava com velhas notas de dólar.

Com o pai longe dali, Jerónimo ficou em sossego, não havia discursos e as marteladas acabaram. Os únicos sons eram os
da água a chapinhar na bomba e a correr nas valas. O resto era o habitual murmúrio da selva, tão contínuo como o silêncio,
aves, insectos e gritos de macacos, que mudavam de tom com o calor e se transformavam num uivo reprimido depois do cair
da noite.
A mãe não se encarregou de tomar conta de tudo. Quando O pai andava por ali, fazíamos as coisas à maneira dele e
andávamos sempre de um lado para o outro, mas a mãe não inventava nada e não fazia discursos. Quando falava era em geral
para pedir com toda a delicadeza que lhe explicassem a maneira local de fazer qualquer coisa.
Um bom exemplo foi o da seca dos pimentos. Depois de os pequenos pimentos vermelhos aparecerem nos arbustos, o Sr.
Maywit disse que precisavam de ser secos. Se o pai lá estivesse teria fabricado uma banheira de dez lados, de folha de metal,
a que chamaria «Tremonha dos Pimentos» ou algo desse género, própria para secar pimentos, tal como fizera a armadilha para
peixes, a casa dos banhos e as telhas de bambu.
A mãe pediu à Sra. Kennywick e à Sra. Maywit que lhe explicassem como enfiar os pimentos e pendurá-los a secar.
— Vocês é que sabem – declarou a mãe.
Foi um dia inteiro de trabalho, enfiar os pimentos nos fios. A mãe e as outras mulheres sentaram-se lado a lado, numa
esteira colocada no pátio, amarrando os pimentos a bocados de fio que no fim ficavam com o aspecto de uma peça de fogo-de-
artifício. O pai não o faria e de certeza que não se sentava no chão. Primeiro construiria uma cadeira, provavelmente
reclinável, com uma superfície de trabalho, operada a pedais, e sem necessitar de manutenção. «Olha como ela se ajusta aos
contornos do corpo, mãe!»
A mãe fez com que os zambus lhe ensinassem a limpar e a esfolar animais como as pacas, e como pregar peixes numa
tábua, para os secar, e também como defumar carne. Eram métodos lentos, sujos e tradicionais, mas não estava com pressa,
disse ela. Essas actividades tornaram-se nas nossas lições em Jerónimo, as tarefas caseiras da gente da selva, a preparação
das coisas que colhíamos ou caçávamos. Não tínhamos liberdade para brincar enquanto não dominássemos essas lidas.
Esta era uma maneira muito diferente da do pai. O pai era um inovador que não se importava nada de pôr uma dúzia de
pessoas a limpar madeira ou a cavar valas sem lhes explicar para quê, e só no fim afirmaria: «Acabaram de realizar um
grande aperfeiçoamento!» Ou então pedia-lhes que adivinhassem a finalidade de uma determinada coisa (até àquele momento
ainda ninguém adivinhara para que servia o «Menino Gordo»), e ria-se quando lhe davam a resposta errada. Tinha a sua
própria maneira de fazer as coisas e gostava de dizer às pessoas que os métodos por elas utilizados eram apenas uma perda de
tempo e de esforço. «Agora vou mostrar-lhes como deviam ter feito», diria, e quando elas ficassem de boca aberta,
acrescentaria: «Então, o que é que acham disto?»
Nunca fora um bom ouvinte, mas sabia que não precisava de ouvir. Tínhamos escutado a sua voz onde quer que
houvéssemos estado, mas desde o dia da chegada que a tagarelice do pai fora tão constante como a dos gafanhotos de
Jerónimo, que cantavam de manhã à noite, e conseguia ser ainda mais alta do que os gritos dos macacos uivadores. Agora,
porém, a sua voz desaparecera. Não se construía nada, não havia inspecções, a forja estava fria. Não se falava de «alvos»,
não havia sessões na galeria e deixámos de ouvir dizer: «Só preciso de quatro horas de sono!»
Limpávamos a armadilha para os peixes, mondávamos a horta e apanhámos os primeiros tomates. A mãe dirigia as coisas
com delicadeza, dando sugestões e não ordens. Fez pão de mandioca, coisa que o pai nunca pensara fazer. A Sra. Maywit deu-
lhe a receita. A Sra. Kennywick mostrou-lhe como fazer wabool de bananas apodrecidas.
Com os seus modos calmos e inquiridores, a mãe descobriu uma coisa de espantar. Surgiu-lhe a ideia de que seria
educativo para nós se aprendêssemos os nomes das árvores existentes em Jerónimo e à sua volta. Perguntou aos zambus como
se chamavam e para que serviam, para poder escrever numa pequena tabuleta, que depois pregava aos troncos, para que as
decorássemos.
Descobriu então que algumas árvores da extremidade sul da clareira eram sapotilhas. Nem sequer os Maywit o sabiam. Os
zambus chamavam-lhes «chicletes» e explicaram como se extraía a seiva das árvores, que depois era fervida e batida e se
transformava em placas de borracha.
— Há aqui seiva suficiente para se conseguir uma tonelada de borracha – declarou a mãe, que achou graça à descoberta. –
De certeza que isso era o que diria o Allie. Esperem até que ele o saiba … e fará galochas novas para todos!
Trabalhar com o pai era trabalhar, trabalhar com a mãe era estudar e brincar, mas durante a maior parte do tempo deixava-
nos entregues a nós próprios. Não nos sentíamos vigiados tal como acontecia quando o pai andava por ali, e a pouco e pouco
aventurámo-nos cada vez para mais longe da clareira, e até para fora de Jerónimo, para longe do chapinhar da nossa água e
dos gritos dos nossos macacos.

Fui eu que tive a ideia de partir, abrir um trilho e instalar um acampamento. Era como um dos desafios do pai … mas
desafiei-me a mim próprio para o fazer, incitando os outros. Isso dava-me coragem. Desafiámos também os filhos dos Maywit
e chamámos-lhes nomes, e pouco depois todos nós chamávamos nomes uns aos outros. Alice e Drainy não tinham medo, mas
os mais pequenos, Leon e Veryl (que era conhecida por «Pequenucha») eram tímidos e ficavam sempre para trás.
Descobrimos um trilho que se afastava do rio em direcção a uma zona da selva repleta de pássaros aos gritos. Havia ali
monstros, disse Drainy, e logo todos os garotos dos Maywit concordavam que era em lugares como aqueles que se
encontravam os espíritos malignos. Clover disse que eram parvos por pensarem assim. Instalámos o nosso acampamento perto
de uma profunda lagoa no meio de uma pequena clareira da selva, a cerca de meia hora de caminho de Jerónimo, no meio de
árvores vermelhas e lianas.
Drainy afirmou que havia monstros na água, pelo que nenhum deles quis entrar na lagoa. No entanto, isso era porque não
sabiam nadar, mas nós sabíamos. Andarmos por ali a nadar enquanto eles nos observavam dava-nos uma sensação de
superioridade e Jerry disse que eles eram uns atrasos.
No entanto, não tinham medo dos cães-d’água, das cobras ou dos lagartos verdes. Alguns desses lagartos eram tão grandes
como gatos. Se lhes disséssemos: «Ali está o teu espírito maligno naquela árvore», tremiam de medo porque não podiam vê-
lo. Quando vimos um animal peludo e parecido com um porco a esgravatar entre os arbustos, Alice disse: «Oh, é uma vaca da
montanha.» Para nós parecia-nos um monstro mas aquela rapariguinha não tinha medo, portanto, também não devíamos ter.
Para acamparmos ali erguemos primeiro um telheiro com ramos, depois uma cabana e redes de dormir feitas de videiras.
Clover e Alice fizeram-nos assentos, cavaram um buraco para uma fogueira e apanharam flores. Clover não era
suficientemente forte para levar a cabo trabalhos pesados, mas sabia como pôr os garotos Maywit a trabalhar. Verifiquei que
era igualzinha ao pai. Era firme como ele, não escutava o que lhe diziam e só ficava feliz se andasse a dirigir as operações.
Havia ali uma planta parecida com um leque e que, segundo nos disse Alice, tinha raízes comestíveis. Clover pôs toda a
gente a colher essas raízes em cestos de fabrico caseiro, para depois as comermos. Sabiam a cenouras cruas e chamavam-se
iautias. Com aquelas raízes, mais as bananas e outras frutas que apanhávamos pelo caminho, podíamos comer refeições no
acampamento.
Clover queixou-se de que Jerry e April nunca ajudavam. Alice declarou que a «Pequerrucha» estava sempre a comer e
nunca apanhava nada. Drainy lamentou-se, afirmando que trabalhava mais que todos os outros. Em Jerónimo nunca ninguém se
queixava, mas aqui todos protestavam.
Portanto, decidi inventar o dinheiro. Ter tudo gratuito não era bom. A partir de agora, disselhes que teriam de comprar a
comida na loja do acampamento.
— E onde é que é a loja do acampamento, meu parvo? – perguntou Clover.
Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Estás sentada em cima da loja – e apontei para o banquinho dela.
Calei-lhe os protestos nomeando-a lojista e expliquei-lhe que pequenas pedrinhas arredondadas serviriam como dinheiro,
porque naquele lugar musgoso não havia muitas.
— Quero comprar comida, Ma – disse Leon. – Onde está o dinheiro?
— Não tenho nenhum.
— Então trata de cavar.
Era uma brincadeira nova e bastante boa. Partimos em busca de pedrinhas e todos nós juntámos um montinho delas. Para
mim era fácil, porque quando mergulhava na lagoa podia apanhar no fundo todas as pedras que quisesse. Tornei-me na pessoa
mais rica de todo o acampamento.
Clover também dirigia a escola, instalada no nosso primeiro telheiro. Drainy tomava conta da igreja, uma árvore a que
havíamos prendido uma cruz de arame. Erguemos vedações com ramos e num dos telheiros Drainy fez uma caixa de arame que
disse ser o aparelho de rádio. O rádio era imaginário, mas o telefone era real, dois meios cocos ligados por um bocado de
cordel.
— É como ter voltado para casa – comentou Jerry.
Não era. Era a maneira como viviam as outras pessoas, com rádios, escolas e igrejas … e dinheiro. No entanto, sentíamo-
nos felizes ali no acampamento, mais felizes do que em Jerónimo. Gostava daquele lugar por ele ser secreto e acima de tudo
por estar cheio de coisas que o pai proibira. Gastar dinheiro na loja e falar ao telefone eram coisas agradáveis. Quando
Clover deixou de saber que mais lições dar, passei eu a ser o professor. Ensinei os Maywit a contar dinheiro, a fazerem contas
de aritmética e a escrever os nomes. Jerry queria colocar uma tabuleta de «Proibida a Entrada» mas eu disselhe que isso só
serviria para deixar as pessoas ainda mais curiosas. Em vez disso, fiz com que toda a gente ajudasse a cavar um buraco no
meio do caminho, que serviria de armadilha para apanhar intrusos ou até grandes animais como as vacas da montanha. Drainy
dizia que havia por ali tigres – referia-se aos gatos selvagens ou aos jaguares – e eu queria apanhar um. Enterrámos estacas
aguçadas no fundo da armadilha e depois cobrimo-la com uma camada de ramos e terra para que ficasse igual ao trilho. Era à
maneira dos Zambus, afirmou Drainy. O pai era capaz de nos matar por termos feito aquilo, mas ainda se encontrava na costa.
Dissemos orações, cantámos hinos que Alice nos ensinou e levámos a cabo longos e resmungantes serviços religiosos sob
o abrigo da árvore sagrada.
Continuávamos a ajudar em Jerónimo, apanhando pimentos, mondando a horta, verificando a armadilha para os peixes e
tratando de outras tarefas. Porém, logo que terminávamos esses trabalhos e a mãe estava satisfeita, escapávamo-nos para o
nosso acampamento na selva, regressando a tudo o que o pai odiava. Aquilo compensava-nos de todas as coisas que nunca
conseguíramos ter no Massachusetts e abafava dentro de mim uma profunda saudade pelos Estados Unidos. Foi assim que
consegui vencê-la.
Demos um nome ao nosso acampamento: «O Acre.»
«O Acre» ajudou-me a compreender um pouco do orgulho que o pai tinha em Jerónimo. Até o termos construído, não
percebia por que é que se gabava tanto do que fizera em Jerónimo. O pai insistira em que olhássemos atentamente para a horta,
para os caminhos empedrados e para os trabalhos de hidráulica. Queria que nos maravilhássemos com o facto de nos
mantermos secos sob a chuva, frescos mesmo nos dias mais quentes, e livres de insectos. Estava feliz e foi n’ «O Acre» que
percebi porquê. Olhei em volta e vi que o tipo de vida e as coisas que nós próprios havíamos feito eram nossas. Até os
garotos Maywit se mostravam satisfeitos com o que tínhamos feito. No entanto, sentia que as nossas realizações eram maiores
do que as do pai, porque comíamos os frutos que cresciam à nossa volta, utilizávamos tudo o que encontrávamos e nos
tínhamos adaptado à selva. Não fora preciso trazer um barco carregado de sementes e ferramentas, nem inventar nada.
Vivíamos como macacos.
Foi Drainy quem teve a ideia de que deveríamos ser baptizados. Afirmou que iríamos todos para o Inferno se o não
fizéssemos e insistiu em que fosse à maneira da Igreja de Ma Maywit, mergulhados no lago enquanto ele dizia orações por
cima de nós. Parecia divertido, portanto, despimo-nos, ficando apenas com as roupas interiores, e preparámo-nos para o
baptismo.
— Eu baptizo-os – declarou Drainy. – Sei como é.
— Só há uma coisa – disse Alice-, o Drainy não sabe nadar. Não pode baptizar-nos sem saber nadar. Pode ser apanhado
pelos monstros que estão dentro da água – concluiu, afastando-se.
— Se tens medo, podemos esquecer o assunto – afirmei, virando-me para o Drainy.
— Não tenho medo – retorquiu, sentando-se na margem e agitando os pés dentro de água. – E vocês vão para o Inferno se
não forem baptizados.
— Não acreditamos no Inferno – declarou Clover. – Só as pessoas ignorantes acreditam no Inferno.
— Se a Alice puxar as calças para baixo e mostrar a racha então vai mesmo para o Inferno! – disse Drainy.
Alice estava na escola. Meteu a cabeça pela janela e gritou:
— Drainy Roper, põe-te a andar daqui para fora! – Mal acabara de pronunciar aquela frase, Alice tapou a boca com a
mão. – Não é assim que ele se chama – explicou.
— Chamaste-lhe Drainy Roper. Roper … foi o que o missionário disse antes do pai correr com ele – afirmou Clover.
— Esse é o nosso nome – interveio Veryl.
— Cala a boca! – gritou Alice.
Drainy tirou os pés de dentro do lago e disse que sim, que Roper era o nome deles. O missionário tinha razão e eram da
sua Igreja. – Se ele aqui estivesse – prosseguiu – podia tratar do baptismo. – Se te chamas Roper, então por que é que te
chamam Maywit? Perguntou Jerry.
— Têm dois nomes – explicou April.
— Só temos um nome – continuou Drainy-, e não é Maywit.
— Então, de onde veio esse Maywit? – perguntei.
— Foi o teu pai que nos chamou assim e o meu pai concordou disse Alice.
— Mas se não era o vosso nome, por que é que concordaram?
— Porque ele teve medo.
— Do teu pai – esclareceu Drainy.
— Vocês são parvos! – afirmou Clover.
— O vosso pai sabe fazer magia.
— O que ele faz não é magia … é ciência.
— A ciência ainda é pior – declarou Alice.
Não quiseram acreditar-me e tive muita pena por o pai os ter feito mudar de nome.
— Por vezes também eu tenho medo dele – concordei.
Jerry e as gémeas riram-se de mim por eu ter dito aquilo, mas não sabiam o que eu sabia. Clover afirmou que o pai era
bom e que não se devia ter medo dele. Podia fazer uma fortuna como inventor, acrescentou Jerry.
— Então, por que é que não é rico? – inquiriu Alice.
— Porque queria vir para aqui – disselhe-, para construir uma cidade na selva. Mais do que uma cidade.
Os Maywit não ficaram convencidos e quando lhes expliquei que o pai dissera que haveria uma guerra nos Estados
Unidos, limitaram-se a rir. Isso deixou-me abalado e sem saber o que dizer, pois que outro motivo poderia alguém ter para
abandonar os Estados Unidos para ir suar as estopinhas na selva? Mas eu sabia outras coisas. Vira o interior do «Menino
Gordo». Agora, cada vez que pensava no pai, aquela imagem regressava-me à mente, via os tanques suspensos, a selvajaria
dos tubos de ferro retorcidos, tubos que pareciam um cérebro dentro de uma caixa, e todas aquelas pequenas articulações …
Fora como estar no interior da casa de alguém para, depois de a estudar, ficar a conhecer melhor essa pessoa. Eu compreendia
as pessoas por aquilo que elas faziam e no «Menino Gordo» vira a mente do pai, uma versão dela, enigmática, oblíqua e
enorme, que me assustara.
Foi por causa daquilo, de estarmos a falar do pai em sussurros, que desistimos do baptismo e fomos apanhar formigas.
Colocávamos as formigas a flutuar na superfície da água e ficávamos a vê-las lutar para se manterem ao de cima.
Naquele dia, quando saímos d’ «O Acre» e voltámos para Jerónimo, vimos o Little Haddy atracado. Alguns homens
transportavam compridas garrafas de gás em direcção ao «Menino Gordo», enquanto outros rolavam bidões de aço por cima
de troncos, que lhes serviam de carris.
A «Pequerrucha» soltou um grito quando viu o pai. Este encontrava-se no exterior do «Menino Gordo» accionando uma
bomba manual e despejando um dos bidões para dentro de um tubo. O que a assustara fora a máscara, uma máscara de gás que
o protegia mas lhe dava um focinho e uns enormes olhos de insecto, muito salientes. No bidão via-se desenhada uma caveira e
um par de tíbias.
— Ele usa sempre aquilo quando trabalha com venenos – expliquei.
A palavra «venenos» provocou nos garotos Maywit um efeito ainda pior do que a máscara diabólica e fê-los correr
direitos a casa, com os dedos na boca.
O pai necessitara de dez dias para transportar o amoníaco e o hidrogénio de Trujillo para Jerónimo. A mãe contou-nos a
história das suas aventuras. Ameaças na cidade. Pessoas bisbilhoteiras. Soldados hondurenhos a acusarem-no de andar a fazer
contrabando de explosivos. Discussões. Quase que andara a lutar ao murro. «Quantas elevações consegue fazer?» Problemas
com os abutres. Muitas dificuldades no rio, pouco profundo nalguns sítios. Raspadelas no fundo do barco e perseguições por
zambus pouco amigáveis. Mais abutres. Uma viagem lenta e perigosa. Tinham chegado a Jerónimo com a quilha a raspar no
fundo do rio.
Só havia quatro máscaras antigas, para o pai, Haddy, Harkins e F. Lungley. Por causa do perigo dos fumos não nos
permitiu aproximar do «Menino Gordo» até ter completado a transferência do amoníaco e do hidrogénio e de ter selado os
tubos. O pai trabalhou toda a noite sem lanternas nem fogueiras. A lua cheia dava à clareira um tom rosado e leitoso, como o
da madrepérola, enquanto o «Menino Gordo» parecia um bloco de mármore escuro, um monumento ou túmulo, no meio da
selva.
Os quatro homens mascarados entravam e saíam do «Menino Gordo» e tudo o que ouvimos foi o tinir dos bidóes de aço e
das garrafas de gás, e o pai a exclamar «Atenção» ou «Cuidado» e «Mexam-se», bem como o grito dos macacos uivadores a
que chamavam babuínos.
De manhã o pai estava muito excitado. Se alguma coisa tivesse corrido mal, declarou, teríamos ido pelo ar com metade do
vale … e provavelmente acabaríamos por cair em Hatfield, desfeitos em bocadinhos.
— Acabei de passar as mais perigosas doze horas da minha vida – disse.
— Está-me cá a parecer que também foi perigoso para nós … – comentou a mãe.
— Pois foi, mas vocês não tinham consciência do perigo, portanto, dormiram numa santa ignorância.
— Olha que bonito! – exclamou a mãe, virando-lhe as costas.
— Aqui, sou a única pessoa que sabe até que ponto aqueles produtos são letais. Tomei toda a responsabilidade. Tive
medo? Não senhor!
— Podíamos ter morrido todos!
— Nem sequer davas por nada. Posso garantir-te isso. Teriam todos sido atomizados, com um sorriso no rosto.
— Muito obrigada! – retorquiu a mãe.
— Não te preocupes, já está tudo selado. Na verdade, esta tarde irei pô-lo a trabalhar. – O pai viu-me à escuta à porta. –
Deixa-te de sorrisos, Charlie, e espalha a notícia. Quero que toda a gente aqui esteja, para verem como é.
— É por isto que aqui estou – disse o pai depois do almoço. – Foi por causa disto que para aqui vim.
Estava de pé em frente à fornalha do «Menino Gordo», segurando numa mão-cheia de fósforos. O Sr. Haddy encontrava-se
junto dele e os Maywit mantinham-se perto, com os garotos ostentando rostos acinzentados. Clover e April estavam
acocoradas no chão com os zambus, Harkins e Peaselee tinham-se sentado em barris, e a Sr. A Kennywick na cadeira de
braços que arrastara para ali desde Swampmouth. Havia mais alguns estranhos a espreitar do outro lado do feijoal.
— Aposto que ainda não sabem para que serve isto – afirmou o pai.
— Para cozinhar – respondeu o Sr. Haddy, espetando os dentes para fora.
— Não adivinhou. Viu o Langley e o Dixon a porem aqueles tabuleiros com água na prateleira que está dentro deste
monstro. Agora vamos acender um lume com este fosforozito …
— Motor a vapor! Caldeiras de água a ferver! – continuou o Sr. Haddy tomando ares de palhaço para os nervosos
assistentes.
— Ora, cale-se! Mas deixe-se ficar, pois não irá acreditar no que os seus olhos vão ver!
Chamou a «Pequerrucha» e disselhe que, como ela era a mais nova, deveria ser a primeira a acender o fogo.
— Quando nós todos já tivermos morrido, «Pequerrucha», ainda tu cá andarás. Poderás contar aos teus netos que
participaste neste histórico dia. Podes dizer-lhes que acendeste o fogo.
O pai acendeu um fósforo no traseiro das calças e mostrou-lhe onde o colocar. Havia alguns gravetos dentro da fornalha.
A «Pequerrucha» chegou-lhes o fósforo e eles incendiaram-se.
Os zambus taparam as orelhas, mas Kennwick soprou o ar que tinha nas bochechas e o Sr. Maywit disse: «Não faz mal.»
Não se ouviu um som durante vários minutos, apenas o estralejar do fogo. As aves e os insectos de Jerónimo permaneciam em
silêncio. As pessoas sustinham a respiração e ficaram de rosto reluzente por causa da espera.
Ouviu-se um simples ruído dentro do «Menino Gordo», um som que se parecia com o de uma bolha a rebentar dentro de
um líquido, e todos nós nos movemos, afastando-nos do fogo para o sítio onde se ouvira o som, mais ou menos a meio do
«Menino Gordo». Agora até conseguíamos ouvir as respirações uns dos outros.
— Chiu! – fez o Sr. Haddy, lambendo os lábios.
— Esperem um bocado – disse o pai.
Ouviram-se mais bolhas, o tremelicar de canos, o estalar de depósitos a encher. Havia como que um sentido de libertação
dentro da barriga do «Menino Gordo», libertação anunciada por ruídos abafados. O chão vibrava por debaixo dos nossos pés.
Líquidos deslocavam-se, ainda a subir, depois houve como que um impulso final que fez diminuir as vibrações e todo o
conjunto pareceu agitar-se. A selva à nossa volta soltou um murmúrio ao mesmo ritmo, que era como que o pulsar de uma veia
na nossa cabeça durante o desenrolar de um poderoso movimento intestinal.
— Há uma coisa estranha a sair da chaminé – declarou o Sr. Maywit.
— Fumo – respondeu o pai.
— Já não lhe dói a barriga – sussurrou Drainy.
— Isto ainda vai demorar um bocado – explicou o pai. – Instalem-se confortavelmente. Sentem-se onde estão e deixem a
vossa mente vaguear. Não pensem em guerras nem em loucuras.
— É isso mesmo o que eu penso que isto é – afirmou Ma Kennywick. O Sr. Maywit pousou os olhos de galinha no pai e
perguntou:
— Podemos rezar?
— Se sentirem essa necessidade, pois por que não? Na verdade gostaria que não o fizessem, porque senão depois vão
considerar isto como um milagre … e não o é. É apenas uma grande ampliação da termodinâmica …
No entanto, eu conseguia ver, tanto pelos seus rostos como pelas posições, que estavam a rezar. Sentavam-se de uma
maneira compacta, com os pescoços enfiados para dentro, tal como pássaros à chuva.
De tempos a tempos o pai avivava o fogo. No entanto, não era preciso deitar-lhe muito combustível, era uma fogueira
pequena e depois de o «Menino Gordo» começar a assobiar e a sussurrar, o pai manteve o fogo sempre baixo.
— É aqui que tudo acontece – declarou o pai. – Este é o centro do mundo! Não precisam de ir a lado nenhum … estão
onde é preciso estar!
Passou-se meia hora deste modo e então o pai deixou de falar e subiu os degraus da escada. Leu o termómetro saliente e
pareceu satisfeito. Mais quinze minutos, declarou, e depois de esse tempo passar voltou a subir a escada e gatinhou pela
entrada.
— Espero que não tenhamos de lá ir para o puxar cá para fora disse o Sr. Haddy.
Algumas pessoas soltaram silvos e o Sr. Haddy e os outros olharam para a mãe.
— Allie sabe o que está a fazer – afirmou. – Ali vem ele!
O pai tinha a cabeça de fora na entrada. Fez uma careta mas era difícil dizer de que espécie, porque estava lá muito em
cima. Acenou com a mão. Segurava numa bola branca, parecia um monte de algodão em bruto.
— Que tem o pai ali?
— Vocês nunca tinham visto uma bola de neve? – gritava o pai. Atirou a bola para baixo, onde se esmagou nas ervas, mais
branca do que as penas de uma garça.
Corremos para lhe tocar … e quando lhe tocámos e sentimos a mordedura dos seus cristais, começou a desaparecer. Mas
nessa altura, em triunfo, o pai descia transportando blocos de gelo.
XV

Nesta parte do rio, a mais estreita e menos profunda que eu já vira – e eram trinta quilómetros daquilo antes de as
montanhas e a selva o transformarem num fio de água-, as pessoas caíam de joelhos nas margens, acenavam-nos e rezavam.
Agora já todos sabiam quem nós éramos e o que transportávamos. As notícias a respeito do «Menino Gordo» haviam-se
espalhado por todo o vale do rio.
— Alguém quer uma bebida? – gritava o pai para aquelas pessoas da margem, que nos tomavam por missionários. O Sr.
Haddy pensava que aquela pergunta era muito divertida e chiava cada vez que o pai o fazia. Por isso, mais tarde, mesmo nas
partes desabitadas do rio, o pai apercebia-se do olhar do Sr. Haddy e gritava: – Alguém quer uma bebida? – fazendo o homem
rir-se.
Porém, o facto de as pessoas se ajoelharem e darem sinais de respeito acabou por deixar o pai mal-disposto.
— Os idiotas pensam que eu vim aqui para lhes impingir Bíblias!
Éramos cinco, a bordo do barco. Além do pai, do Sr. Haddy e eu, iam também Clover e Francis Lungley. O barco não era
o Little Haddy. A nossa nova embarcação, construída nas semanas depois de o «Menino Gordo» começar a produzir gelo, era
uma adaptação de uma canoa escavada, de proa afilada, muito larga e de fundo quase chato. Era propulsionada por um
mecanismo de pedais que fazia funcionar uma roda de pás à popa, mais ou menos como as «gaivotas» que existiam no Jardim
Público de Boston. Por causa da sua forma e da carga, o pai chamava-lhe «gelocípede».
Excepto quanto aos pedais, rodas dentadas e parte da corrente (que eram da bicicleta do Sr. Harkin – «Dei-lhe cabo da
Raleigh!»), o resto do mecanismo do gelocípede fora fabricado na forja de Jerónimo, enquanto algumas pequenas peças
haviam sido feitas pelos dentes de Drainy Maywit. «Aquele rapaz é um micrómetro humano!» A meio, o pai construíra uma
caixa para guardar o gelo. Havia dois assentos à frente e outros dois lado a lado, junto da popa, em frente do poço dos pedais,
a que o pai chamava «Poço dos Desejos» porque quem quer que estivesse a pedalar, desejava encontrar-se noutro sítio
qualquer. Subíamos o rio com Francis a accionar os pedais. Era um barco perfeito para o curso superior do rio. O pai
afirmava que era tão flutuante que até podíamos atravessar terrenos com ele, desde que existissem umas gotas de orvalho na
relva.
— Esta gente nunca viu uma lancha como esta – disse o Sr. Haddy.
— Deve estar a brincar – respondeu o pai – Já viram tudo. É fácil viajar pelos rios, são como auto-estradas. Os
missionários têm andado para baixo e para cima, em canoas, há anos. Francamente, não considero isto um grande feito.
— Pois digo-lhe uma coisa – afirmou o Sr. Haddy, que gritava da proa, onde se encontrava sentado atrás de Clover-, gelo
é uma coisa que os missionários não trazem!
— É apenas uma conjectura …
Francis Lungley riu-se da palavra.
— Mas já aqui estiveram.
O Sr. Haddy encolheu os ombros. Usava uma das camisas feitas pela mãe com sacos de farinha La Rosa. Nas costas dizia:
«Enriquecida com vitaminas».
— Quero penetrar num local onde os missionários nunca tenham estado – declarou o pai.
Havia borboletas azuis deslizando apressadas para os ramos dos fetos suspensos sobre o rio, assustadas pelo barulho que
provocávamos. O bater e o chapinhar da roda de pás, operada a pedais, soavam como uma máquina de lavar agitando as
roupas na espuma. Conseguia reconhecer algumas das aves que via nas árvores, gaios e pica-paus de bico de marfim, catatuas
e outras, e conhecia os gritos de algumas das que se encontravam escondidas, o súbito som de trombeta do pequeno pava, os
gritos da codorniz, os estrondos do mutum. Eram as mesmas aves que viviam perto do nosso acampamento n’ «O Acre», o
nosso esconderijo secreto ainda desconhecido do pai e dos seus trabalhos, bem como das suas palavrosas ambições.
— Quero levar um carregamento de gelo ao mais quente, ao mais oculto e ao mais desagradável recanto das Honduras, um
local onde rezem pela água e nunca tenham visto gelo, onde nunca tenham ouvido falar em latas, quanto mais em aerossóis.
— Mas Seville é assim – disse Francis Lungley, agitando a cabeça para baixo e para cima, enquanto pedalava. Também
usava uma camisa La Rosa. A sua dizia «Molino Harinero» e «45,36 Kgs Netos». – De verdade, Seville é lixo.
Andava a prometer Seville desde que o pai pedira que lhe indicassem o lugar mais pobre que fosse possível imaginar. Isso
provocara uma das primeiras discussões em Jerónimo. O Sr. Haddy, o Sr. Harkins e o Sr. Peaselee queriam levar o gelo rio
abaixo, para Santa Rosa ou Trujillo. O pai perguntara: «Para que serve isso?», e dissera que os grandes navios atracavam
nesses portos e que essas cidades tinham mais electricidade do que a de que necessitavam.
— Vocês só querem é impressionar os vossos amigos. Não, vamos subir o rio.
Fora então que Francis Lungley dissera que estivera uma vez em Seville, o local mais longínquo a que era possível chegar
pelo rio. O Sr. Haddy e os outros declararam que não iriam a um lugar malcheiroso e cheio de caca de morcegos, onde as
pessoas não respeitavam nada e provavelmente tinham caudas. Porém, o pai ficou interessado. Francis disse que quase
morrera nessa terra duas vezes, a primeira de medo e a segunda de fome. Era uma povoação a cair de podre, onde as pessoas
comiam terra e se pareciam com macacos, ou eram, pelo menos, tão feias como macacos. Tinham cabelo de rato e andavam
quase todos nus. Nem sequer eram cristãos.
— Parece mesmo o sítio que me interessa – disse o pai.
Então o Sr. Haddy concordara e dissera que os pagãos eram os melhores pescadores e os melhores remadores e concluíra:
— Esses rapazes sabem o que é trabalho, é verdade.
No entanto, quando começámos a chapinhar rio acima (macacos à direita, juparás à esquerda), o pai afirmou:
— Custa-me a crer que nunca lá tenha estado nenhum missionário, para lhes comprar as almas com twinkies e queijo em
aerossóis. – Ficou a olhar para um macaco num ramo: – Barras de chocolate. – Seguimos em frente. Olhou para trás, para o
macaco: – Pepsi. – A seguir virou-se para os juparás: – Cigarros mentolados. – Atirou a ponta do charuto para o rio. – Faz-
lhes crescer água na boca, não é?
— Verá como é Seville, pai – disse Francis, pedalando com mais força, com a camisa La Rosa já negra de suor.
— Quero ver uma porcaria de uma povoação que nem sequer tenha nome, onde andem à chapada aos mosquitos e a beber
wabool rançoso há mais de dois mil anos. – O pai apontou para as montanhas. – Para lá daqueles obstáculos, onde tudo é um
inferno e onde estão a ser assados vivos.
— Foi pena não regressarmos à lagoa Brewer – disse o Sr. Haddy. – Algumas das suas aldeias são miseráveis.

Tínhamos partido ainda antes da madrugada, tão cedo que os mosquitos nocturnos ainda se encontravam em actividade e
ainda nos morderam. Cerca do meio-dia, e apesar de havermos percorrido muitos quilómetros, continuávamos muito longe das
montanhas de Olancho, que assinalavam Seville e o fim do rio. Atracámos à margem para o almoço, mas esta, escondida sob
matagais de arbustos de leque e metros de lianas, tinha uma vegetação tão densa que não nos foi possível sair do barco.
A mãe preparara-nos um cesto de frutas, pão de mandioca, tomates frescos e uma bebida de Jerónimo a que o pai chamava
«sumo da selva», feita de goiabas e mangas. Clover declarou que o sumo não estava suficientemente frio.
— Está bem fresco – afirmou o pai. – Escutem, ninguém mexe naquele gelo!
Verificou a caixa do barco para se certificar de que o gelo se aguentava. Seguia envolvido em folhas de bananeira e a
caixa era forrada com borracha que havíamos extraído das árvores. No fim de contas, não nos fizera galochas.
— É natural que se perca um bocado – disse. – Por vazamento. Por desperdício natural. Por fricção … – o pai batia-lhe
com as mãos – … devido à excessiva agitação. Não é assim, Francis?
Francis Lungley descascava uma banana. Fazia-o com as pontas dos dedos, com gestos delicados, como quem abre um
presente.
— O que quero é saber que tal vamos, Francis.
A aldeia de Seville ainda era longe, explicou Francis. Não sabia exactamente quanto faltava para lá chegar. Contorceu o
rosto quando o pai lhe perguntou quantos quilómetros faltavam.
— Quantos homens remavam a canoa quando cá estiveste?
— Não foi de canoa – disse Francis. – Foi a pé. – Mostrou os pés de pele estalada. Tinha os tornozelos oleosos por vir a
pedalar.
— Agora é que ele o diz! – explodiu o pai. – A pé! Podemos lá chegar só amanhã!
Arrancou a corda da popa do ramo, a que estava presa, e declarou que terminara o intervalo para o almoço.
— Se quiseres ficar aqui, podes fazê-lo – disseme. – Não quero perder tempo à espera que enchas a barriga.
Meti no bolso a sandes que acabara de fazer e partimos. Pouco depois, incitados pelos gritos do pai, avançávamos como
se fôssemos num barco a motor.
— Por que é que estás com essa cara? – perguntou-me.
— Queria apanhar algumas daquelas papaias que havia lá atrás – respondi-lhe.
— Estás com visões – retorquiu. – Aqui não há papaias.
Havia, sim … pequenas papaias bravas. Nós comíamo-las n’ «O Acre».
Alice Maywit identificara-as, fora o zambu John que lhes falara delas. Descascávamo-las, esmagávamo-las com sal e
plantávamos as sementes. Olhei para Francis mas este tinha os olhos postos no pai.
— Não são peras de verdade – disse Francis. – São do mato …
— Se temos tantas autoridades a bordo, por que é que não avançamos mais depressa?
Nenhum rio segue a direito. Dão imensas voltas, andam de través e por vezes fazem-nos andar para trás, com a proa do
barco virada na direcção oposta à que seguíamos momentos antes. Viajar pelo rio é andar sempre às voltas e nunca mais lá
chegar. O Sol muda constantemente de posição, da proa para estibordo, onde se conserva durante um bocado até que uma
súbita curva do rio o leva para bombordo. Pouco depois vemo-lo à popa. Sabemos que estamos a andar para a frente, mas já
não temos o sol na cara, agora aquece-nos a parte de trás da cabeça. Alguns minutos depois temo-lo de novo à frente … e a
seguir a estibordo. Mais um bocado e dança a toda a volta do barco e não podemos navegar por ele. Tudo o que nos indica é a
passagem do tempo. Para a navegação costeira o Sol é um bom guia, mas ali só servia para nos confundir.
Na selva, todos os rios são um labirinto, e este era mais labiríntico que a maioria … era algo que só podia ser navegado
por uma pequena piroga ou por um engenhoso barco como o nosso. O pior não era parecer andarmos para trás mas sim o
ficarmos com a ideia de que não íamos para lado nenhum. Chegávamos a uma margem cheia de lírios-d’água, jacintos e folhas
verdes e contorcidas e avistávamos uma faixa de água. Virávamos e seguíamos por aí. Passada meia hora, quando os jacintos
se tornavam mais espessos, os ramos das margens se agitavam de encontro ao barco, nos batiam na cara e punham de lado o
boné de basebol do pai, compreendíamos que havíamos seguido pelo caminho errado. Ou nos encontrávamos num pântano tão
cheio de plantas e tão sólido como a terra, ou numa lagoa rodeada por árvores negras, ou batíamos de encontro a troncos.
Então, era preciso voltar para trás e abrir caminho através das flores e ramos espessos que antes pensávamos ser a margem.
Quando passávamos essas barreiras, viajávamos pelo que aparentava ser um novo rio ou um afluente, umas vezes estreito,
outras largo como um lago e sem aberturas. Por isso o Sol dava voltas e mais voltas, o pai praguejava e perguntava por que é
que tínhamos de andar cinquenta quilómetros no rio, para avançar cinco quilómetros em terra?
Fazia um mapa do rio à medida que avançávamos, marcando as zonas menos profundas, as curvas e falsas voltas, os
pântanos e lagoas, todos os enganos do seu curso irregular. Era mais do que uma forma complicada … era um montão de nós,
retorcidos como minhocas no Inverno e que não fazia qualquer sentido. Até o pai, que gostava de coisas complicadas, dizia
que se tratava de um labirinto assim-assim e afirmava que se tivesse uma draga e uma barca cheia de dinamite lhe acabaria
com todas aquelas curvas e o faria correr a direito, para que pudéssemos ver a luz do dia a banhá-lo de uma ponta à outra.
Era este o tema da sua conversa. Quando enfiámos num pântano, levados pela tentação das águas abertas, o pai dizia:
«Terei de fazer qualquer coisa a esse respeito …» Quando apareciam ilhas: «Afundo-as logo que tiver essa oportunidade.»
Lagos: «Abre-se aqui um canal e encaminha-se à água … tudo o que é necessário é dinamite e mãos cheias de boa vontade.»
O pai seguia agora à proa com Clover, enquanto o Sr. Haddy fazia o seu turno nos pedais.
— Limpar todas estas obstruções … fazer uma qualquer espécie de draga que corte as raízes a estes sargaços e os liberte.
Pôr toda esta confusão em ordem. É tão americano, não é o que todos vocês estão a pensar? O homem que quer fazer
alterações permanentes nesta pacífica selva! No entanto, não disse que traria para aqui venenos e muito menos falei em
transformar o rio numa rota comercial! Ah, mas como eu gostava de me atirar a isto! – exclamou, fazendo uma careta para a
confusão do rio. – Deixa-me furioso!
Estava a ficar com a cara cada vez mais vermelha e, como era alto, parecia numa posição incómoda, agachado na proa
afilada do estreito barco. Mantinha as mãos nas ancas e balançava como alguém a guiar uma bicicleta sem se servir das mãos.
De vez em quando espreitava o gelo e dizia:
— Pelo menos o gelo está a aguentar-se, o que já não se pode dizer a respeito da tripulação. Pedale, senhor Haddy! Deixe
lá de apanhar caranguejos! Também anda à procura de papaias?
Passámos por um semicírculo de cabanas. Francis Lungley chamou-lhes uma aldeia.
— Vejo sinais de corrupção – declarou o pai. – Estou a ver uma lata! – Noutro grupo de cabanas, junto à margem do rio,
afirmou: Olha para aquilo, tudo cheio de sacos de plástico.
Havia apenas mais uma aldeia, se é que se lhe podia chamar aldeia, pois eram apenas algumas cabanas quase sem paredes
e um grupo de bananeiras. O pai mostrou-se esperançoso. Vimos dois homens sentados na beira do rio, batendo nos seixos
submersos com grandes pedregulhos. Francis Lungley disse que estavam à pesca, esmagando as criaturas que se encontravam
por debaixo dos seixos. Viravam-nos depois de lhes terem batido e tiravam de lá enguias esborrachadas, rãs e girinos.
— Então devemos estar a chegar – declarou o pai.
De súbito, Francis deu uma palmada na cabeça.
— Tinha-me esquecido! Aquilo são árvores de mogno! – Sorriu para as árvores como se esperasse que elas lhe
devolvessem o sorriso. É aqui perto.
— Não as cortaram – disse o pai, muito satisfeito. – Não têm com que as cortar. Ferramentas primitivas. Não precisam das
árvores para nada. Deixam-se ficar sentados a vê-las crescer. É muito bom sinal.
Ali havia ervas a sair da água e troncos de árvores cortados no meio de charcos. Maciços de espinafres flutuavam no meio
e as lianas eram negras e pendentes, como cabos de alta tensão quebrados por uma tempestade. À nossa volta tudo eram
destroços verdes que podiam ser a confusão deixada por uma inundação. Seguimos pelo que devia ser o rio, de onde saíam
erupções de folhas. A terra fumegava, com buracos cheios de uma água espumosa. Tudo lama e mosquitos … e era difícil de
dizer onde acabava o rio e começava a terra. Não existia uma margem definida, e se não fossem as árvores altas por detrás
daquilo tudo, penso que teríamos feito meia volta e voltado para trás, pois de certeza não se poderia avançar mais. Muitas das
árvores mais pequenas estavam mortas, e nas mais mortas de todas havia umas formas castanhas estremecendo por debaixo
dos ramos.
— Morcegos – disse o Sr. Haddy. – São morcegos. – Repetiu para Clover a sua história sobre os morcegos sugadores de
sangue, mas esta respondeu-lhe:
— Não me consegue assustar.
Observando alguns arbustos avistei rostos humanos. Eram redondos e permaneciam completamente imóveis. Não me
assustei, até me lembrar que deviam ter ali permanecido durante todo o tempo, a ver-nos abrir caminho com o barco por entre
os espinafres e as ervas.
— Tenho uma pequena surpresa para vocês – disse o pai, quando os viu. Ao ouvirem aquela voz e quando estávamos
ainda a olhar para eles, os rostos desapareceram. Não se moveram, desapareceram. Num momento estavam a observar-nos e
no momento seguinte tinham desaparecido. Haviam-se transformado em folhas, mas nem as folhas se tinham agitado. – Foram
almoçar – disse o pai. – Tragam as pranchas, vamos atrás deles. Tu primeiro, Charlie.
— Porquê eu? – perguntei, mas sabia que não o devia ter feito. – Porque és o mais corajoso de todos nós, filho.
Aquilo não era verdade, mas os riscos que o pai me obrigava a correr eram a sua maneira de me mostrar que não existiam
riscos. A rocha de Baltimore, o pendural do Unicorn e a escalada pelo interior do «Menino Gordo» haviam sido uma espécie
de treino para uma ocasião como esta. O pai queria que eu fosse forte. Sempre soubera que me andara a preparar para o pior,
para aquele caminhar em bicos de pés por cima das pranchas colocadas sobre o pântano de espinafres, desviando-me dos
charcos de água espumosa e dos caules das videiras bravas.
— Bate com os pés, Charlie.
Bati com os pés e uma cobra, pendurada com seis voltas em torno de um ramo baixo, desenrolou-se, caiu na água e
afastou-se a nadar.
A partir daí bati com os pés nas pranchas sempre que tive oportunidade de o fazer, e um pouco mais adiante uma víbora,
pequena e gorda, surpreendida pelas pancadas, enfiou-se no buraco de um tronco até só se lhe ver a ponta cinzenta da cauda.
— Nunca se sabe, a respeito desta gente – dizia o pai. – Podem ser mascadores …
Avançámos assim cerca de trinta metros, transportando a última prancha para a frente e repetindo o processo de modo a
conseguirmos uma passarela sobre a lama. Era difícil de acreditar que estivera ali gente de pé no pântano. Como é que haviam
conseguido desaparecer sem sequer chapinharem na lama?
Atingimos uns arbustos que pareciam uma vedação e ultrapassámo-los até onde as árvores eram mais altas e possuíam
troncos que pareciam espessas saias com folhos. Aves que se assemelhavam a papagaios e outras tão pequenas, que podiam
ser insectos, gritavam em volta das nossas cabeças. Por cima das copas das árvores de mogno havia aves maiores,
empoleiradas ou efectuando sombrios voos, como se fossem perus voadores. As suas asas provocavam sons como o de
vassouras a esfregarem-se lentamente de encontro às copas. Podiam ser mutuns – ouvi-lhe os sons de contrabaixo-, mas o pai
disse que eram abutres e que queria torcer-lhes os pescoços magrizelas.
— Seville – declarou Francis, apontando para uma abertura alguns metros à nossa frente … Mais selva, excepto que era
escura onde nos encontrávamos e ensolarada no local para onde ele apontava. Mosquitos e moscas descreviam espirais sob a
luz e brilhavam de vez em quando.
— Não me parece que vá gostar deste lugar – disse o Sr. Haddy. – Que espécie de casas são aquelas, pai? – perguntou
Clover.
— As casas dos seus habitantes, claro …
Nunca admitia não saber qualquer coisa, mas aquelas casas não eram fáceis de explicar. Eram pequenos tufos salientes,
feitos das mesmas ervas espinhosas que tínhamos atravessado por cima das pranchas. Uma estrutura de ramos frágeis
equilibrava os molhos de ervas mortas amontoadas no cimo. Não eram cabanas … eram mais como colmeias que precisavam
de cortar o cabelo.
— Se calhar é ali que guardam os animais, querida – disse o pai. – Aqui não há animais – afirmou Francis. – Nunca vi
nenhum.
— Então, melhor ainda – prosseguiu o pai. – Se vivem mesmo naquelas coisas, isso quer dizer que chegámos ao local
certo.
O Sr. Haddy soltou uns risinhos e virou-se para mim:
— Os lugares certos para o pai são sempre os lugares errados para mim. O pai olhava muito contente para a aldeia
miserável.
No entanto, apenas as cabanas eram miseráveis. Aquela selva, o princípio da floresta de altitude, era alta e ordenada, pois
cada árvore encontrara espaço para crescer isolada. As árvores estavam dispostas de várias maneiras, de acordo com a sua
esbelteza ou com as folhas, as de folhas grandes junto ao chão, as altas e de folhas pequenas erguendo-se a grande altura e os
fetos no meio. Sempre imaginara a selva como uma sufocante confusão, toda misturada como o esparguete, cruzando-se,
entrecruzando-se, numa massa de peludas cordas verdes e raízes, uma diabólica salada que nos picava a cara e envolvia de
rebentos.
Não obstante, a selva ali era como uma igreja, com pilares, leques e flores suspensas e apenas uns vagos indícios da
existência de um céu branco por cima do abobadado tecto de ramos. Não tinha nada de asfixiante e, apesar de estar cheia do
barulho dos pássaros, era imóvel, não havia vento, nem sequer uma brisa nas sombras verdes e húmidas nem nos troncos de
um castanho-azulado. Não havia confusão, era apenas uma floresta de linhas verticais, enormemente paciente e protectora. Era
como estar dentro de casa com um belo telhado por cima. A sua disposição ordenada e dimensões faziam com que as pequenas
cabanas que se encontravam por debaixo dela parecessem ainda mais atarracadas.
A aldeia – se era uma aldeia – estava deserta. Com a ausência das pessoas parecia-se com um acampamento improvisado,
onde uns quantos viajantes – demasiado preguiçosos ou doentes para construírem abrigos decentes – haviam amontoado uns
arbustos, acendido um fogo perto de uma rocha e passado uma noite desconfortável antes de partir outra vez para irem morrer
a qualquer lado. O único sinal de vida era um cachorro doente que ladrava para nós por detrás de um monte de lixo, cascas de
frutos e restos de canas mastigadas, nem sequer se dando ao trabalho de se levantar. Dei àquele bicho esfomeado a sandes que
metera no bolso à hora do almoço. Primeiro tentou morder-me e depois comeu a sandes. No centro das cinco cabanas, todas
feitas de tufos de ervas, encontrava-se uma fogueira fumarenta e algumas cabaças partidas. Não se via um único ser humano.
No entanto, tínhamos visto rostos quando desembarcávamos.
— Não os censuro por terem fugido deste lugar – disse o Sr. Haddy. – Lungley, o que nos disseste era verdade. Este lugar
é miserável. Olhava em volta e humedecia os dentes enquanto falava. – Podemos ir para casa, pai. Ao menos matamos os
nossos próprios mosquitos.
O pai abanava-se com o boné de basebol.
— Não podem estar longe – declarou. – Provavelmente no drive-in dos hamburgers. – Olhou para cima e viu o Sr. Haddy
a afastar-se em direcção às pranchas de madeira. – Há aqui alguém que queira uma bebida?
Isto fez parar o Sr. Haddy, como se lhe tivessem cravado uma seta no meio das costas. Virou-se para nós soltando
gargalhadas que se pareciam com espirros.
— Ou então – prosseguiu o pai, dobrando-se para apanhar qualquer coisa do chão – foram a qualquer lado mandar reparar
as lanternas eléctricas. Olhem só para este bem de consumo durável, como lhes chamam.
Era uma pilha de uma lanterna eléctrica, com a caixa carcomida e rebentada, a tinta estalada. Estava tão esmagada que era
difícil de reconhecer. Parecia uma velha salsicha.
— Se eles utilizam estas porcarias, então se calhar são mesmo selvagens. Sentámo-nos, aguardámos e ficámos a olhar para
as formigas.
— Talvez estejam na bomba da gasolina, numa grande fila, à espera de encher o tanque de super.
— Não vi aqui nenhuma bomba de gasolina – disse Francis.
— Não me irias enganar, pois não?
Havia provas de que alguém vivia ali … camas de palha nas cabanas, moscas a voar em volta do lixo, um tripé de madeira
com um bebé queimado, ou a coisa mais parecida com isso que era possível, um macaco assado com os dedos dos pés e das
mãos todos dobrados.
— Como é que falaste com eles quando aqui estiveste? – perguntou o pai.
Francis abriu a boca e agitou a língua azul.
— Em que língua?
Francis não sabia o que o pai queria dizer. Respondeu que falara com eles e lhe tinham respondido.
— Eles percebem – concluiu.
Era uma explicação à maneira de Jerónimo. As pessoas falavam inglês, espanhol e crioulo, mas não sabiam quando
estavam a passar de uma língua para a outra. Parecia que lhes bastava olhar para a cara de uma pessoa para saberem qual a
linguagem a usar, e, por vezes, misturavam-nas a todas e o resultado tinha o som de uma nova língua. Eu próprio ganhara esse
hábito. Conseguia falar com toda a gente e às vezes nem me apercebia de que não estava a falar inglês. No entanto, na costa de
Mosquito toda a gente dizia ser inglesa, independentemente do aspecto ou da língua falada.
Andando de um lado para o outro na clareira, com Clover, o pai parecia um homem a mostrar um jardim zoológico à filha,
impaciente, orgulhoso, falando durante todo o tempo, mas sempre com um ar de quem quer tapar o nariz. Então, do outro lado
da fogueira, chegou-nos a sua voz.
— Muito bem, a brincadeira acabou … estamos a vê-los! Saiam dos esconderijos, estão a fazer-nos perder tempo! Saiam
daí, ninguém vos vai fazer mal! Saiam de trás dessas árvores!
A sua voz soou de encontro às árvores da selva e às copas altas. Continuou assim durante vários minutos, gritando para os
arbustos, enquanto nós observávamos. Clover espreitou para os fetos onde o pai batia com um pau. Ficava parecido com o
«Pequeno» Polski, quando este enxotava codornizes em Hatfield.
O mais espantoso foi que deu resultado. Verificámos que estávamos rodeados de gente, mais de vinte pessoas. Isso
aconteceu enquanto olhávamos e as pessoas apareceram da mesma maneira como antes tinham desaparecido, sem um
movimento nem um som. Num segundo o pai gritava «Apareçam!» para a clareira vazia e no segundo seguinte as pessoas
estavam lá e ele gritava-lhes exactamente o mesmo, mas nas suas caras. Não sabíamos se o pai na verdade os tinha visto ou se
estava apenas a fingir.

As mulheres usavam vestidos esfarrapados e os homens andavam de calções, mas essas roupas não serviam para lhes
cobrir a nudez, eram mais uma representação de roupas do que uma cobertura. Víamos as suas partes íntimas através dos
rasgões e dos buracos. As crianças, da idade de Clover e da minha, estavam nuas, o que era embaraçador.
— Um bando de miseráveis – disse o Sr. Haddy.
— Não me parecem assim tão mal – respondeu o pai. – Tens a certeza de que é este o lugar?
Francis afirmou que sim.
Ficámos à espera que o pai lhes dissesse «Olá», mas não o fez.
Virou as costas àquela gente como se os conhecesse há muito tempo, e disse por cima do ombro:
— Muito bem, vamos, temos trabalho para fazer. Sigam-me.
Três dos homens – que se pareciam um pouco com Francis, excepto estarem mais nus e terem cabeleiras mais espessas –
seguiram o pai para as pranchas.
— Vocês fiquem aí – ordenou-nos. – Descansem, falem com eles, conheçam-se uns aos outros.
Afastou-se impaciente, enxotando as moscas com o boné e a seguir ouvimo-lo a bater nas tábuas para afastar as cobras. Os
três homens seguiram-no sem uma palavra.
— Sente-se em casa em qualquer lado – disse Clover, e quando o fez pareceu-se com a mãe.
As pessoas fitavam Clover através da neblina que era o fumo da fogueira. Tinham caras cinzentas e mascarradas e usavam
trapos esfarrapados. Bocados de lama agarravam-se-lhes às pernas.
— Seville, hein? – murmurou o Sr. Haddy. – Que sarilho!
— Quase morri aqui, Haddy. Duas vezes – acrescentou Francis. Agora as pessoas olhavam para nós.
— Que fizeste a esta gente, Lungley?
— Não fiz nada.
— Então como é? – perguntou o Sr. Haddy, dirigindo-se às pessoas, espetando os dentes para fora e abrindo a boca para
escutar. Ninguém lhe respondeu.
— Devem estar doentes – sussurrou o Sr. Haddy.
As crianças nuas escondiam-se atrás dos pais. Olhávamos uns para os outros através da clareira e era como se
estivéssemos a olhar através do mundo.
Viraram as cabeças. Um velho surgiu a coxear na clareira, vindo das árvores da floresta. Usava um par de calças às riscas
com as pernas cortadas, óculos de arame e meias, mas não tinha sapatos … os dedos dos pés estavam à vista, amarelos,
saindo dos buracos. Tinha um farrapo amarrado em volta do pescoço e palhas partidas no cabelo. Em cada pulso usava clips
como se fossem pulseiras.
— Aquele é o Gowdy – disse Francis.
— Tem ar de quem lhe apetece uma bebida – comentou o Sr. Haddy.
— Bah!
As palavras que ouvimos a seguir disseas o pai, oculto das nossas vistas e a gritar:
— Cuidado! Aguentem-no! Não o deixem cair!
O gelo estava tão cuidadosamente envolvido em folhas de banana que os blocos eram como embrulhos, amarrados com
trepadeiras. Cada um dos homens silenciosos carregava com dois embrulhos. O pai conduziu-os até ao meio da clareira e
indicou-lhes que deviam pousar os embrulhos no chão.
— Quem é que manda aqui? – perguntou.
— O homem dos óculos – explicou Francis. – É o Gowdy.
Fez um aceno para o homem, que se encontrava um pouco à frente do grupo de pessoas que nos observavam. Vendo os
nossos olhos pousarem nele, o homem retirou algumas das palhas do cabelo.
— Você é o Gowdy? – perguntou o pai, apertando-lhe a mão.
— Gowdy – respondeu o homem, soltando um risinho.
— Tenho uma pequena surpresa para ti – continuou o pai com os seus modos amigáveis. – Por que não dizes a essa gente
que se chegue para aqui? – Tirou a navalha do bolso e piscou-nos o olho. – Quero mostrar-lhes uma coisa.
Quando as pessoas se aproximaram, o pai cortou as trepadeiras e empurrou as folhas para o lado, pondo um bloco de gelo
a descoberto. Serviu-se da lâmina da faca como se fosse um picador de gelo e arrancou um canto do bloco. Entregou o bocado
de gelo ao Gowdy.
O velho fê-lo saltar nas mãos tal como o «Pequeno» Polski fizera em Hatfield, sem perceber se aquilo estava quente ou
frio. As pessoas amontoaram-se à sua volta para lhe tocar. Riam-se e empurravam-se para se aproximarem, e pisavam as
crianças. Os que tocavam no gelo cheiravam os dedos, ou afastavam-se um pouco para os lamberem.
O pai ainda nos piscava o olho quando falou para o velho, o Gowdy. – Então, qual o veredicto?
— Bom dia, senhor. Estou bem, muito obrigado. Onde é que vai. Vou para o mato. – Os óculos de arame de Gowdy
estavam todos tortos por causa dos empurrões das pessoas. – Hoje é segunda, terça, quarta. Obrigado, foi uma boa lição.
Fazia saltar o gelo nas mãos enquanto falava.
— Não faz a menor ideia – disse-nos o pai.
O gelo derretia-se na mão do velho. A água escorria-lhe ao longo do braço, deixando-lhes riscas de sujidade na pele e
pingava para o chão quando lhe atingia a ponta do cotovelo.
— Está completamente às escuras – continuou o pai pondo o braço em volta dos ombros do velho e fazendo-lhe um grande
sorriso.
O Gowdy estremeceu.
— O que é isso? – perguntou o pai, apontando.
— Gelo – disse o Gowdy.
— Jesus Cristo Todo Poderoso! – rugiu o pai dando um empurrão ao Gowdy que quase o atirou para o chão.
Porém, ainda mal ele acabara de falar e já todas aquelas pessoas, incluindo o Gowdy, se deixaram cair de joelhos. O
súbito movimento espantou os pássaros. Uma enorme agitação entre eles, grandes e pequenos, abalou os ramos por cima das
nossas cabeças, e esses pássaros alertaram os que estavam nos ninhos, que voaram como os perus do alto das árvores.
— Ah, Padre, tás nos céus olá mau nome …
— Acabem com isso! – gritou o pai. – Levantem-se … ponham-se de pé! – Tentou forçá-los a levantarem-se mas depois
virou-se para Francis e gritou: – Traidor, que me indicaste estes vadios! Muito obrigado!
O Sr. Haddy ria-se baixinho, aliviado por ver que os homens eram cristãos. Talvez estivesse também secretamente
satisfeito por ver que o pai, que só por acaso cometia erros, se enganara ao levar o gelo para ali, enquanto ele próprio o
poderia ter levado com toda a facilidade para a costa, onde produziria uma maior sensação. Avançou para acalmar aquelas
confusas pessoas, ainda a ofegar e a rezar, e declarou:
— Vocês são boa gente, mas isto é mesmo o mato.
O pai ficou tão zangado que desapareceu tal como tinham desaparecido as pessoas de Seville junto do barco. Desapareceu
numa nuvem de fumo, deixando atrás de si o cheiro que libertava quando se zangava. Retirámos o resto dos embrulhos do
barco e falámos com os aldeões. Disseram-nos que já tinham visto gelo quatro ou cinco vezes. Afirmaram que era uma coisa
maravilhosa que descreviam como pedras frias que se transformavam em água. Os missionários tinham-nas levado até eles e
pensavam que nós éramos missionários e que o pai era o pregador. Quiseram saber onde vivíamos e se tínhamos alguma
comida ou sal para lhes dar. O Gowdy gabou-se de que toda a gente da aldeia já fora baptizada.
Disseram-nos que estavam à espera … à espera de ir para o céu e de verem Jesus. O Sr. Haddy comentou que se tratava de
uma porcaria de lugar para ficar à espera, cheia de caca de macaco, mas que compreendia muito bem que se quisessem ir
embora, para o céu ou para qualquer outro lado. O pai reapareceu, demasiado tarde para ouvir aquilo, o que calhou muito
bem.
— Fui dar uma volta ao quarteirão – disse-nos.
Não quis falar com ninguém em Seville. Só era capaz de dizer que Francis o traíra. Quando o Gowdy tentou que a sua
gente começasse a cantar um hino, o pai gritou como se lhe tivessem batido no polegar com um martelo e declarou que
esperava por nós no barco.
Deixámos Seville, as pessoas já começavam a discutir por causa do gelo. O mau humor do pai fez com que a viagem de
regresso a Jerónimo fosse silenciosa durante quase todo o tempo. De qualquer modo foi uma viagem mais rápida, os contornos
do rio já não nos eram estranhos e a corrente ajudava-nos. O pai fez alguns melhoramentos no mapa e não metemos por
nenhum caminho errado. Eu pedalei. O pai sentou-se à proa com Clover no colo, debruçado sobre o mapa, zangado porque as
pessoas de Seville já conheciam o gelo e rezavam.
— Podiam muito bem estar em Hatfield, cortando espargos – foi tudo o que disse, agarrando-se a Clover, como um rapaz
grande agarrado a um urso de pelúcia.
Francis e o Sr. Haddy sabiam que estavam a ser ignorados. Agacharam-se a meio do barco na caixa de armazenamento do
gelo, sem nada para fazer.
Passado um bocado Francis disse que vira pirogas. Alguém nos seguia, afirmou. O pai não respondeu nem virou a cabeça.
— Pequeno – disse o Sr. Haddy, olhando para trás de mim-, canoas. Olhei em volta mas não vi nada. Tinha de cuidar do
leme.
— Ouço-as – murmurou Francis, que começava a falar como um zambu da selva. Disse que ouvia seis remadores … três
canoas.
— Nunca viram um barco como este – afirmou o Sr. Haddy.
A escuridão chegou, pareceu envolver-nos vinda das margens. As árvores diminuíram de dimensões, engolidas pelo
escuro. O céu deixou de parecer encurvado. Surgiram as cabeças de alfinetes que eram estrelas e que começaram a brilhar.
— Ainda estão atrás de nós, no meio das pedras.
A noite engolia-nos. À nossa frente a água ainda apresentava um brilho escorregadio, e por trás de nós a roda de pás
libertava espuma que se espalhava na corrente.
Em breve avistávamos as luzes de Jerónimo e as fagulhas que saltavam da chaminé do «Menino Gordo». As luzes estavam
paradas e eram muito pequenas, mas depois agitaram-se na margem e lançaram lagos amarelos sobre o rio. Ouvi alguém dizer:
— Aí vêm eles.
Nessa noite, já no quarto, Jerry disse:
— Eu podia ter ido com o pai, mas não quis. Estivemos n’ «O Acre» todo o dia. A mãe deixou-nos.
— Vi duas cobras – contei-lhe. – Uma quase me mordeu.
— Construímos outra armadilha. Não sabes onde é. Vais cair lá dentro e morrer, Charlie.
— Vai dormir, parvo.
Bastante mais tarde, através da parede de bambu, ouvi a mãe a consolar o pai. Ao princípio pensei que falava com April
ou Clover, por causa da sua voz tão meiga. Mas não, falava do gelo, do barco e de ele trabalhar tanto. Era tudo excelente,
afirmava, tinha orgulho nele e nada mais importava.
O pai não levantou objecções, limitou-se a responder:
— Não foi o que eu esperava, não queria aquilo. Rezaram para mim, mãe.
— Um dia gostava de subir o rio – disse a mãe.
— Subiremos. Não é como tu pensas. É mau, mas da maneira mais aborrecida possível. Oh, suponho que está tudo bem,
usarão o gelo para qualquer coisa. Mas que podemos nós fazer com gente que já foi corrompida? Fico como louco!

Passaram-se duas semanas antes de voltarmos a Seville e nessas duas semanas nós, garotos, passámos mais tempo n’ «O
Acre», o nosso pequeno acampamento junto da lagoa. Agradava-me pensar que o nosso campo era melhor do que tudo o que
existia em Seville. Tínhamos redes de dormir feitas de vinhas selvagens. Comíamos cebolas bravas. As redes esfolavam-nos a
pele, as cebolas davam-nos cabo da barriga. Um dia um cão-d’água saiu do lago, perseguimo-lo até o fazermos cair numa
armadilha e matámo-lo à paulada. A seguir cortámo-lo aos pedaços e secámos as tiras de carne à maneira zambu. No dia
seguinte a carne desaparecera. A «Pequerrucha» disse que um monstro aparecera e a comera, mas calculei que fosse um
animal, porque a carne não ficara suficientemente alta.
Apanhávamos bagas, umas eram para comer, outras mantinham os mosquitos afastados se as esfregássemos na pele e
deixássemos secar o sumo. Alice Maywit mostrou-nos um cacho de umas bagas purpúreas e disse:
— Estas são venenosas.
— Não acredito – declarou Clover. – Tu tens medo de tudo. Aposto que são amoras ou qualquer coisa do género.
— Queres comer uma, rapariga? – perguntou Drainy, mostrando os dentes de dobrar arames.
Clover tomou ares de quem estava disposta atentar, apenas para se exibir e provar que tinha razão, mas dei-lhe uma
pancada com força e disselhe para se manter afastado das bagas.
— Nada de bater! – gritou. – É a regra … Foi o pai que o disse!
— Isto aqui não é Jerónimo – respondi. – Aqui é o nosso acampamento e temos regras próprias.
N’ «O Acre» isto era o que nos dava maior prazer … Podíamos fazer o que nos apetecesse. Tínhamos dinheiro, escola e
religião, armadilhas e venenos. Nenhuma invenção e nenhuma máquina. Tínhamos segredos … ah, até conhecíamos o
verdadeiro nome dos Maywit. Podíamos fingir que éramos meninos da escola, ou podíamos viver como zambus. Aquele dia
foi um bom exemplo. Drainy sugeriu que todos nos despíssemos e deitou os calções abaixo para mostrar que falava a sério. A
seguir a «Pequerrucha» fez o mesmo, tal como Clover e os outros. Alice puxou o vestido por cima da cabeça e despiu as
cuecas, enquanto eu tirava os calções. Ficámos assim os oito, nus e aos risinhos, mas sentime tão envergonhado que saltei para
a lagoa a fingir que me apetecia nadar, enquanto os outros comparavam os corpos e dançavam por ali.
Alice estava de pé à beira do lago.
— Alguma vez viste uma racha?
Prostrou-se com os joelhos muito afastados, apertou as pregas negras entre os dedos e por momentos pensei que me ia
afogar.
— Que é aquilo? – perguntou fechando as coxas e pondo-se à escuta.
Não ouvi nada excepto os ruídos habituais. Alice disse que ouvia moscões. Viu um a voar directamente para ela e ficou
muito preocupada. Declarou que tal facto queria dizer que andavam por ali estranhos.
Vestimo-nos a toda a pressa e saímos do acampamento pelo trilho que dava para o rio. Minutos depois vimos as canoas.
Eram índios, disse Alice. Soubera-o por” causa dos moscões. As canoas eram velhos troncos escavados e cheios de água e os
remadores pareciam-se com a gente de Seville, com os braços magros a saírem de farrapos e palhas na cabeça.
— Estão a tentar espiar-nos – disse Jerry.
Não podiam ver que estávamos a observá-los. Desta vez havíamos sido mais espertos do que eles e rimo-nos baixinho –
até a própria April, sempre cheia de medo, o fez-, e vimo-los a lutarem contra a corrente nas suas velhas canoas.
— Vêm de Jerónimo – afirmou Clover.
— Ainda bem que não nos viram nus! – exclamou Drainy.
— Nunca encontrariam o nosso acampamento – retorquiu. – Ninguém consegue descobrir «O Acre».
Sentime satisfeito por termos aquele lugar seguro na selva. Agora, por ter visto Seville, sabia que o nosso acampamento
era um lugar bem organizado, melhor do que as aldeias construídas pelas verdadeiras gentes da selva.
Em Jerónimo, mencionámos as canoas. Ninguém as tinha visto.
— Talvez fosse mascadores! – disse o pai. – Ou espíritos malignos! – continuou, tentando assustar os Maywit.
Na manhã em que o pai disse que iríamos regressar a Seville, o Sr. Peaselee, que estava de serviço à fornalha, deixou que
se apagasse o fogo do «Menino Gordo». O gelo derreteu-se. O pai declarou:
— Podemos ter de cancelar a viagem. Todos para a galeria!
Deu-nos um sermão a respeito do sentido de responsabilidade, dos bons costumes. Pensávamos que o «Menino Gordo»
podia viver sem cuidados e atenções? O «Menino Gordo» era amável para connosco porque éramos cuidadosos, mas se nos
descuidássemos podia ser muito perigoso. Se negligenciássemos os nossos deveres podia rebentar e vingar-se de nós,
mantando-nos a todos.
— Está cheio de veneno! – exclamou.
Depois da fornalha novamente acesa e de haver novo gelo, já embrulhado, ouvi o pai dizer:
— Não se pode tirar os olhos desta gente nem por um minuto.
— Isso era o que o «Pequeno» Polski costumava dizer – comentou a mãe.
— Não me compares com esse peru!
— Não precisas de gritar, Allie.
— Veneno – disse o pai. – Hidrogénio e amoníaco enriquecido …
Trinta metros cúbicos de cada um deles. Também gritarias se tivesses consciência do perigo.
— Vou buscar a comida – retorquiu a mãe, afastando-se. O pai viu que eu estava à escuta.
— Sou sempre eu quem tem de se ocupar de tudo. És capaz de me explicar porquê, Charlie? Diz-me!
É verdade, parece mesmo o Polski, pensei.
Partimos para Seville, a família Fox e mais ninguém. O pai pedalou e falou durante todo o tempo.
— Não pensem que isto me agrada – afirmou. – O que menos desejo é ter de voltar a Seville. Preferia ter de voltar a
Hatfield. Mas … temos essa obrigação. Não os podemos abandonar após um único carregamento. Pensei que os podíamos
inspirar, que os podíamos ajudar. Podiam congelar o peixe e ter tempo para cultivarem coisas … para fazerem tudo o que o
gelo nos permite fazer. É essa a finalidade, não é? Dar-lhes os benefícios da nossa experiência? Ah, mas eu sei o que irão
fazer com o gelo … cortam-no em cubos e atiram-nos para dentro dos copos de Coca-Cola, e ficam malucos como toda a
gente.
— Não me tinhas dito nada a respeito da Coca-Cola – disse a mãe. – Dá-lhes tempo!
Chegámos a Seville em menos de três horas, com o pai a pedalar como um doido e gritar sobre como dinamitaria um canal
através da selva e arrancaria os jacintos-d’água. Quando estava irritado imaginava planos grandiosos. Junto das árvores de
mogno encontrámos cinco pessoas de Seville … surgiram de repente do meio dos espinafres e das ervas e assustaram-nos.
Que nos tinham visto no rio, disseram. Nós não os havíamos avistado. Dançaram em volta da mãe, dizendo-lhe para ter
cuidado.
— Da última vez não tivemos uma recepção assim – disse o pai. – Penso que querem que os sigamos – respondeu a mãe.
Tal como da primeira vez, corri à frente, batendo com os pés nas tábuas para afugentar as serpentes. Jerry ia atrás de mim,
olhando preocupado para um lado e para o outro.
— Que é aquilo? – perguntou-me.
— Não estava aqui da outra vez – respondeu Clover.
Era uma caixa de madeira na clareira de Seville, tão alta como eu, e à distância parecia-se com o «Menino Gordo». Era
mais pequena, algo parecida com a «Banheira das Minhocas». Tinha um tubo de chaminé e uma fornalha. Havia várias
mulheres agachadas à sua volta, ocupando-se do fogo.
— Afinal se calhar até os inspirámos – disse o pai, satisfeito com o que via. Gritou para o Gowdy, que nos esperava para
nos cumprimentar: – Que diabo tens tu ali? Aquilo parece-me familiar.
Caminhou direito à caixa enquanto as pessoas de Seville se amontoavam em volta.
— Gelo! – disse o Gowdy.
O pai abriu a porta mas as dobradiças de fibras eram tão fracas que a porta caiu e começou a arder numa ponta quando
tocou no lume. O pai apagou a chama com um pontapé. Espreitámos lá para dentro. Estava vazia.
— Mas que diabo vem a ser isto? – perguntou o pai.
Haviam feito uma cópia do «Menino Gordo». Mas, perguntou o pai, para que servia? Claro que não funcionava. Só servia
para cozinhar ovos ou para queimar alguém.
— Quem vos meteu esta estúpida ideia na cabeça?
Sorriram. Tratavam a caixa com uma espécie de reverência e pediram ao pai para que cantasse hinos com eles, em frente
dela. O pai ficou enraivecido e começou a deitar mau cheiro. O Gowdy tentou dar-lhe de presente o cachorro coxo, mas o pai
retorquiu que já tinha os seus próprios animais doentes, e pessoas também. Portanto, descarregámos o gelo e regressámos ao
gelocípede sem sequer o desembrulhar.
— Espero que estejas satisfeita – declarou, virando-se para a mãe. A seguir afirmou que nunca mais voltaria a Seville. –
Não vim aqui para dar a esta gente falsos ídolos para adorarem. – No entanto, o ídolo estava lá para todos verem, feito de
tábuas empenadas e lianas. – Esse é o verdadeiro problema – prosseguiu. – Qualquer tecnologia suficientemente avançada não
se distingue da magia.
XVI

— Para que serve o gelo? – perguntara o pequeno Leon Maywit, mas o pai não se importava com as perguntas parvas de
garotos pequenos e continuou: – Principalmente para conservar, mantém a comida fresca, portanto, evita-te a fome e as
doenças. Mata os germes, suprime a dor e faz desaparecer os inchaços. Torna mais saboroso tudo aquilo em que toca, sem
produzir alterações químicas. Torna os vegetais mais rijos e a carne dura para sempre. Escutem, é um anestésico. Era capaz de
te remover o apêndice com um canivete se tivesse um bloco de gelo para te arrefecer os nervos e para te fazer esquecer o
sangue a correr. Não ocorre naturalmente na costa de Mosquito, portanto é o começo da perfeição num mundo imperfeito. Faz
com que o trabalho tenha sentido. É gratuito e até é bonito. É a civilização. Dantes era transportado das latitudes nórdicas em
navios, tal como se transportava o ouro e as especiarias …
Encontrávamo-nos na galeria, todos juntos, os Fox, os Maywit e os zambus, a Sra. Flora Kennywick e os outros, numa das
reuniões que o pai promovia à hora do jantar. O pai apontou com o coto do dedo para as montanhas que se erguiam por detrás
do «Menino Gordo». – Aqueles estão a seguir. Território índio. Vou levar-lhes uma tonelada.
As pessoas que ali estavam há menos tempo olhavam para o dedo e não para as montanhas, e no momento em que
pronunciou a palavra «tonelada» houve um tremor de terra e os seus olhos esbugalharam-se.
Foi uma oscilação sem ruído, um suave rolar que fez estremecer a galeria. Foram vinte segundos de rotação, tal como a
súbita descida do convés de um navio. Nada caiu, apesar de se ter ouvido um grito humano na floresta e um ofegante som de
preocupação vindo do rio. Tive a sensação de que tudo se movera, menos nós. A pele do mundo enrugara-se e deslizara um
pouco. Esse foi o primeiro abanão violento, mas os restantes choques e abalos duraram um minuto inteirinho.
O pai contraiu os lábios para a frente e disse: – Ena!
— Oh, Deus, Roper, que fazemos? – perguntou o Sr. Maywit e ela e a Sr. A Kennywik começaram a rezar.
Quando ouvi «Roper» olhei para o Sr. Maywit. Cobriu o rosto e soluçou: «Não faz mal!» O momento passou. Creio que
fui o único que OUVIU o nome.
— Rezem, se acham que o devem fazer, mas preferia que me escutassem.
Todos pareciam preocupados excepto nós, talvez com medo de que o pai apontasse de novo para as montanhas e
provocasse outro tremor de terra.
— Estou apenas a pensar em voz alta … – disse o pai – … mas se tivesse o equipamento, sabem o que fazia?
Ao ouvir isto, a mãe sorriu. Calculei que estaria a pensar: «Para quê fazer fosse o que fosse?»
Era bem visível, do local onde estávamos sentados, que Jerónimo era um êxito. Havíamos derrotado os mosquitos,
domado o rio, secado o pântano e irrigado as hortas. Tínhamos passado pela parte pior do clima das Honduras, as inundações
de Junho e o calor de Setembro, e sobrevivido às duas coisas. Naquele mesmo momento havíamos sofrido um tremor de terra
… e nada saíra do seu sítio! Estávamos organizados, declarou o pai. A nossa água de beber era purificada por um destilador
que funcionava na fornalha do «Menino Gordo». Possuíamos a única fábrica de gelo da costa de Mosquito, a única do seu
género em todo o mundo, e com capacidade, afirmava o pai, para fazer um icebergue.
Ali em baixo estava o milho, com mais de dois metros e meio de altura e espigas com quase trinta centímetros. «Tão
grandes que bastam onze para fazer uma dúzia.» Tínhamos frutas frescas, vegetais e uma incubadora (que utilizava o excesso
de calor do «Menino Gordo») para chocar ovos. «Domínio … é essa a prova da civilização. Qualquer pessoa pode fazer uma
coisa uma vez, mas repeti-la e mantê-la … esse é o verdadeiro teste.» Cultivávamos arroz, a cultura mais difícil de todas.
Tínhamos um sistema de esgotos de qualidade superior e chuveiros. «Estamos limpos!» Uma bomba eficiente que funcionava
através de um moinho de vento, ultrapassava em muito a roda de pás dos primeiros dias de fabrico de gelo. A maior parte das
invenções havia sido concretizada com materiais locais e três novas construções tinham fachadas feitas com as «telhas» de
bambu do pai. Possuíamos um galinheiro, dois barcos no atracadouro e a melhor retrete com autoclismo das Honduras.
Jerónimo era uma obra-prima de organização – «tecnologia apropriada», como o pai lhe chamava.
Produzíamos mais do que necessitávamos. Os peixes que apanhávamos a mais nadavam num tanque a que o pai chamava
«Quinta dos Peixes», pois os nomes que punha às coisas eram sempre um pouco mais grandiosos do que as próprias coisas.
Colhíamos mais do que podíamos comer, mas o excesso não era vendido. Parte dele era entregue às pessoas em troca de
trabalho, mas nunca dava comida a pedintes. Preferia abrir os produtos, melões, por exemplo, ou pepinos, ou milho, retirar-
lhes as sementes e secá-las, que depois dava a quem quer que fosse que o ajudasse. Havia sempre trabalho para fazer, estava
decidido a endireitar o rio e a livrá-lo dos jacintos-d’água.
— Pode demorar uma vida – disse-, mas tenho a vida toda à minha frente … não vou para lado nenhum! – Os que
trabalhavam no rio eram recompensados com blocos de gelo e sementes. – Híbridos! Milho gigante! Feijões miraculosos!
Tomates de sessenta dias!
Estávamos felizes e ocultos. A partir do rio, tudo o que se podia avistar de Jerónimo era a cabeça quadrada do «Menino
Gordo» com o seu chapéu de lata e a chaminé fumegante.
— Pouca visibilidade – disse o pai. – Não quero ser chateado pelos patetas dos missionários em barcos a motor, que
queiram vir até aqui para nos encherem de Escrituras!
Estávamos em Novembro e o tempo era como o de Hatfield em Julho, e Jerónimo era a nossa casa. E para termos tudo
aquilo, continuou, ninguém dissera uma oração, ou hipotecara a alma, ou jurara obediência, ou decorara uma Bíblia, ou içara
uma bandeira. Não tínhamos poluído o rio. Havíamos preservado a ecologia da costa de Mosquito. Tudo por havermos
depositado a nossa confiança num «ianque com jeito para concretizar as coisas» … ele. Dizia frequentemente que se não fosse
por causa dos crimes dos «colarinhos brancos», da estupidez e dos dólares de vinte cêntimos, e das nuvens de guerra, seria
capaz e fazer o mesmo em Hatfield, no Massachusetts.
Tudo aquilo era visível da galeria que acabara de se agitar com um tremor de terra e onde o pai dizia:
— Se tivesse o equipamento, sabem o que faria?
— O que é que fazias, Allie? – perguntou a mãe. Os outros ainda estavam cinzentos do medo e não responderam.
— Abria um poço.
Dirigia-se em especial para os Maywit e para a Sra. Kennywick, porque eram os que mais oravam e porque, de certo
modo, ainda tremiam.
— O tipo de poços que fazem no canal de Santa Bárbara ou no mar do Norte. Brocas de diamante, plataforma gigante, todo
o equipamento de perfuração. Abria um furo até … quanto? … quatro ou cinco mil metros e retirava de lá toda a energia
necessária. Aqui mesmo. – Bateu com os pés no sobrado da galeria. – Tal e qual como vocês tiram a borracha das sapodilhas.
O princípio é o mesmo.
— Faça-me uma boa capa para a chuva, pai – pediu a Sra. Kennywick numa voz onde se notava que ainda pensava no
tremor de terra.
— O terramoto fez-me lembrar disso. Por que é que não há ninguém que some dois e dois? Sabem, o erro que eles
cometem quando perfuram em busca de petróleo é o de estarem a perder uma oportunidade única. Têm todo o equipamento,
mas logo que o petróleo começa a correr, esgotam-no e vão abrir um buraco para outro lado. Uma estupidez e uma falta de
visão!
— Mas o pai não faz uma estupidez dessas – disse o Sr. Maywit para a mãe, como se soubesse o que dali sairia. Parecia
receoso, ou talvez fosse eu que o via com medo, porque sabia que o seu verdadeiro nome era Roper.
— Pois eu deixava o petróleo escorrer – prosseguiu o pai – e continuava a furar. Ultrapassava as argilas, furava mais um
pouco, ultrapassava os granitos, furava mais um pouco, e penetrava nas tripas da Terra.
— Schiu! – fez o Sr. Haddy. – Cheira-me a sarilhos.
— Aquele tremor de terra por que passámos agora mesmo foi uma crepitação geológica, um arroto subterrâneo vindo das
tripas da Terra. Há gás lá em baixo! Água superaquecida, vapor sob pressão … todo o calor de que necessitamos!
— Não temos já calor suficiente, pai? – perguntou o Sr. Peaselee e o Sr. Harkins disse que fazia tanto calor que fazia
aparecer os … e ali disse uma palavra que não percebi o que era.
— O paizinho não está a falar do tempo – explicou Clover.
— Ora escutem o que diz a rapariguinha – comentou o pai.
Toda a gente olhou para Clover que durante algum tempo se banhou naqueles olhares líquidos.
— Energia geotérmica! Não se riam. Há apenas alguns lugares no mundo onde ela é prática e vocês têm a sorte de estar a
viver num deles. Toda a América Central é um repositório de alta energia. Estão sobre uma falha – crosta fina, placas soltas-,
escutem os vulcões. Estão a gritar e a dizer: «Geotérmica! Geotérmica!», mas ninguém faz nada quanto a isso. Ninguém parece
compreender como o mundo moderno seguiu por este caminho, ninguém excepto eu, e compreendo-o porque ajudei a fazê-lo.
Os outros continuam todos a fugir, ou em perseguição de tecnologias sujas e cheias de desperdícios, ou dizendo orações.
— Já não estamos a rezar – disse a Sra. Kennywick.
— A Terra Prometida está no vosso próprio quintal! Tudo o que têm de fazer é furar o canteiro das flores, atravessar a
crosta e canalizar o calor. Já chegámos à Lua mas ainda não conseguimos chegar à caldeira que temos na cave. Escutem, lá em
baixo há energia suficiente para continuarmos a cozinhar até ao fim dos tempos!
Tive de sorrir. Só o pai pensaria em cozinhar fazendo um furo até ao centro da Terra.
— Não custará um tostão – esta era uma das suas gabarolices preferidas – e pensem nos benefícios … uma grande
invenção é uma anuidade perpétua!
O pai excitara-se com o tremor de terra e com a sua ideia, e contagiou todos os outros que se encontravam na galeria com
a sua excitação e optimismo, mas apenas com esses sentimentos. Estava certo de que ninguém compreendera uma palavra
daquilo que ele dissera.
— Estou a ver uma espécie de conduta, um tubo – disse. – Descem as perfuradoras, sobe o calor-energia. Já provei que
sou capaz de fazer gelo de coisa nenhuma excepto uns quantos tubos e produtos químicos, e um pouco de madeira para
queimar. Para isso foram precisos miolos. Mas, escutem, qualquer estúpido é capaz de abrir um buraco. Por que é que não o
fazemos? Há uma boa razão, não temos o equipamento … por enquanto. Neste mundo há certas coisas que não podem ser
feitas com bambus e arame de capoeiras. Mas vou dizer-lhes outra coisa … Extraindo essa energia geotérmica em grandes
quantidades, podemos acabar com os tremores de terra ou, pelo menos, reduzir-lhes a força. Vejam, estou a falar nada mais
nada menos do que na domesticação de um vulcão!
Fizera-os retorcerem-se durante o seu discurso e agora pareciam suficientemente ansiosos para pegar nas pás e começar a
cavar onde ele dissesse. Todos excepto o Sr. Haddy. Levantou-se, limpou a garganta e disse:
— É um grande sarilho, que precisa de muitos miolos. Entretanto, Lungley e eu queremos levar algum gelo rio abaixo, até
Balde-de-Peixe e Bonito.
— Ainda ansioso por impressionar os amigos, hein?
— Não tenho amigos lá para baixo – respondeu o Sr. Haddy – mas posso servir-me do meu barco tal como nos velhos
tempos, carregando e transportando coisas. É a minha ocupação, pai.
— Estou a ver que não está interessado em energia geotérmica.
— Interessado, claro que estou. Mas esse sarilho, homem, é bem grande. Não temos todos aqueles buracos e tubos!
— Ainda não – respondeu o pai.
O Sr. Haddy meteu os dentes para fora e pestanejou como um coelho. – Que quantidade de gelo quer levar?
— Aí uns cem quilos. Dois ou três sacos.
— Nem merece a pena o trabalho – disse o pai. – Por que não uma tonelada?
O Sr. Haddy soltou uma alta gargalhada, surpreendido e aliviado. – Porque me afundava aquele velho barco!
— O gelo flutua, Figgy. – O Sr. Haddy sorriu ante aquele nome.
Podes levá-lo a reboque.
— Como é que faço isso?
— Leva um icebergue.
— Icebergues e canoas a pedal – disse o Sr. Maywit para mim, mas num tom suficientemente alto para o pai ouvir. – O pai
é na verdade o homem dos milagres! – O Sr. Maywit tinha um aspecto muito assustado. – Podemos fazer um icebergue antes
do pequeno-almoço – insistiu o pai.
Era o tipo de desafio que o pai mais apreciava, algo grandioso e visível, uma tarefa que era também uma exibição.
Levantara objecções à ideia do Sr. Haddy de transportar uns sacos de gelo até à costa … mas rebocar o icebergue … isso já
era outra coisa.

Eu imaginara uma pirâmide com os lados submersos e a ponta no ar, rebocada pelo Little Haddy, mas o icebergue do pai
era da altura dele e tinha a forma de um ovo, para concentrar o frio e limitar o derretimento. Calculou que um único bloco feito
de muitos blocos mais pequenos só se reduziria de um terço se o rebocassem até Bonito Oriental, e que ainda teria o aspecto
de um icebergue em Balde-de-Peixe. Não conseguiria chegar até à costa.
— Queremos apenas provar a possibilidade … não queremos modificar a vida de ninguém. Veremos como correm as
coisas.
Virou-se para a mãe e declarou que o seu papel era principalmente o de incentivar a força de vontade dos outros.
— Fico satisfeito quando se tem uma ideia e ninguém se ri. Merecem esse icebergue.
O Sr. Haddy estava muito orgulhoso. Poderia gabar-se do icebergue e capitanearia os crioulos quando o levasse rio
abaixo.
— Estou apenas a obedecer às ordens – disse o pai. – Se o Figgy quer um icebergue, pois então irá tê-lo.
Todos os trabalhos foram postos de parte por causa daquilo. A fornalha do «Menino Gordo» foi atiçada e as bombas
postas a funcionar. O «Menino Gordo» funcionava dia e noite, ronronando a fraca potência, e só lhe retirávamos gelo quando
este era necessário para a nossa despensa frigorífica, onde guardávamos as galinhas mortas e os vegetais.
— Somos uma comunidade inteiramente refrigerada – dizia o pai. No entanto, a verdade era a de que o gelo não constituía
uma necessidade. Era uma novidade, tal como a ideia do pai a respeito da energia geotérmica. Mas para quê fazer um furo de
mil e quinhentos metros de profundidade, para atingir as tripas de um vulcão? Para fornecer uma inesgotável fonte de energia
ao «Menino Gordo». Uma ideia justificava a outra. Podíamos muito bem passar sem elas mas, tal como ele dizia, para quê
viver como os selvagens? «No fim de contas, o Robinson Crusoé voltou para casa! Mas nós ficamos!»
— Um dia – declarou-, haverá aqui uma conduta autovedante e perpétua, e toda esta fábrica de refrigeração será accionada
por energia geotérmica. Teremos gelo a sair das nossas orelhas e não precisaremos de partir nem mais um pedaço de lenha!
Pensem no futuro!
Isso foi no dia em que fizemos o icebergue. Bombeámos água para o «Menino Gordo», mantivemos a fornalha sempre
cheia e escutámos os sopros e o borbulhar dentro dos tubos. O pai correu para um lado e para o outro ao longo do trilho para o
rio, onde os blocos de gelo ganhavam a forma de um icebergue oval.
— É bonito e é grátis! Ora descubram-me uma melhor combinação de virtudes!
Em cada meia hora congelávamos nova dose de blocos e ao meio-dia tudo terminou. Um grande icebergue de um branco-
azulado jazia a fumegar e a suar na lama, com a corda de reboque congelada no seu centro. Tinha mais ou menos a forma de
um Volkswagen «carocha», mas maior, apoiado sobre uma plataforma de bambu, que primeiro serviu como trenó e depois
como jangada. Não tivemos dificuldade em lançá-lo à água. A corda de reboque foi amarrada ao Little Haddy e o motor puxou
o gelo ao longo da margem e para dentro do rio. Os crioulos – Harkins, Peaselee e Maywit – seguiam à proa, o senhor Haddy
na casa do leme, o gelo estalava, os bambus gemiam e a água enlameada chapinhava à volta de tudo aquilo.
De todos os estranhos bocados de coisa nenhuma que flutuavam por aquele rio da selva, aquele era o mais estranho em
muitos quilómetros.
— A nossa mensagem para o mundo – disse o pai. – Adorava ver a cara deles quando o avistarem … surgido da mais
escaldante, mais doentia selva do hemisfério, cheia de insectos. Levantam os olhos da roupa que estão a lavar. «O que é
aquilo?» «É um icebergue, mãe, e vem para aqui!»
— Vão pensar que é o fim do mundo – afirmou a mãe.
— Mas não, é o princípio! É a criação, mãe.
O icebergue corcunda e a oscilar para cima e para baixo fez a curva do rio e desapareceu de vista. As crianças correram
pelo trilho de Swampmouth, para poderem vê-lo outra vez. A mãe encaminhou-se para casa e fiquei sozinho com o pai, na
margem do rio.
— Podia ter ido com eles – afirmou-, mas não lhes quis estragar a brincadeira. Podem ficar com a glória. – Olhou para
trás, para o «Menino Gordo». – Além disso, tenho de ir inspeccioná-lo, pode ter aquecido demais. Está cheio de veneno e de
gás inflamável. Amoníaco e hidrogénio, Charlie … são os seus fluidos vitais! – Olhou para o coto do dedo e acrescentou: –
Há perigo em todas as grandes invenções!
Vi a oportunidade de lhe falar n’ «O Acre». Tirando as armadilhas que tínhamos instalado, aí não havia nenhum perigo.
Tínhamos comida, água e abrigo. No entanto, receava o que pudesse vir a dizer da árvore das orações e do abrigo-escola. Era
capaz de me levar a confessar que um dia nos havíamos despido e comparado os instrumentos. Era capaz de ficar muito
zangado, ou de gritar e de nos chamar selvagens. Por isso não disse nada.
— Sentimo-nos como um pequeno Deus – sussurrou, olhando em volta. Tinha as roupas encharcadas pelos blocos de gelo
e pelo suor, os dedos vermelhos de mexer no gelo, o cabelo comprido e um rosto que parecia um machado. Virou os olhos
avermelhados para mim e continuou com a mesma tirada, num murmúrio algo admirado: – Deus divertiu-se a fazer coisas
como vulcões e icebergues! Foi pena não ter acabado o trabalho. Ah!
O Little Haddy regressou a Jerónimo ao cair da noite. O Sr. Haddy soltava risinhos de orgulho, mas por fim confessou que
o icebergue se começara a desmanchar em Bonito Oriental. Haviam-no libertado e deixado que a corrente levasse os
fragmentos para a costa. Estava um pouco bêbado porque na loja chinesa de Bonito trocara um bocado de gelo por uma cabaça
de mishla.
O pai sorria para o rio, talvez imaginando os blocos de gelo a flutuarem até Santa Rosa, as pessoas a apontarem e a
apanhá-los, invadidas pelo terror ante a visão de gelo a sair da selva.
— Foi um belo dia – declarou.
Não nos custara nada e estávamos todos felizes com o resultado.
Disse-nos que deixara os Estados Unidos para poder ter dias como aquele, trabalhando juntos e pondo as nossas ideias em
prática. Fora com isso que sempre sonhara.
Nessa noite, na galeria, ouvimos as aves a silenciarem-se no pardacento crepúsculo e os morcegos a começarem a chiar. À
nossa volta havia um muro circular de gritos de insectos. Uma leve brisa apressou a escuridão, agitando as árvores. Jogámos
um jogo no chão da galeria, à luz dos relâmpagos que separavam as montanhas do céu nocturno.
— A seguir, será para ali. Território de índios. Vamos levar-lhes uma tonelada.
Quando apontou para as montanhas, os crioulos e os zambus agarraram-se com força ao corrimão da galeria, à espera de
outro tremor de terra. O Sr. Haddy, muito preocupado, mostrava uns dentes de coelho ainda maiores do que o costume.
O pai não lhes prestou atenção. Olhava para as montanhas, à espera do clarão de novo relâmpago. Surgiu de repente e
iluminou-lhe o rosto.
— Sentimo-nos como um pequeno Deus – disse.
XVII

Durante o dia, Jerónimo era nosso, o nosso projecto, as nossas hortas, os estalos e pancadas das bombas, a doce fragrância
a nozes dos bambus cortados, as nossas flores e engenhos. Era quente, mas o calor e a luz queimavam os maus cheiros. Era
sempre durante o dia que o pai dizia: «Declaro isto como um êxito!»
Em Jerónimo, a hora mais fresca era a anterior à madrugada, como a de agora, quando tudo ainda estava escuro como breu
e o silêncio na clareira era tão grande que se ouviam as árvores a gotejar. Os odores da selva eram também mais fortes, o
prurido das vinhas bravas, os troncos cheios de vermes, o aroma intenso das folhas cheias de seiva, o rio pútrido que passava
por nós.
Esses eram os cheiros e perfumes do princípio da madrugada, erva encharcada em orvalho e pétalas húmidas, que se
sobrepunham aos cheiros civilizados de Jerónimo. Tudo era negro sob o céu negro. As estrelas, que à meia-noite se pareciam
com pérolas soltas espalhadas pelo céu, não brilhavam àquela hora … eram buracos de luz, como olhos semicerrados em
máscaras negras.
O pai acordara-me e ao Jerry e dissera que devíamos vestir-nos. – Estamos todos prontos – declarou.
Esperámos no escuro, de pé na erva molhada perto da fornalha do «Menino Gordo», bocejando e tremendo.
— Estou a pé há horas, organizando as coisas – disse o pai. Via-lhe o brilho da ponta do charuto e mais nada. – Mal
preguei olho.
— O pai não precisa de dormir – afirmou o Sr. Maywit, o que significava que o pai também lhe pregara um dos seus
sermões.
À medida que os olhos se habituavam à escuridão, comecei a ver o Sr. Maywit a agitar-se em volta de um bloco de gelo.
Era quase tão grande como o icebergue que o Sr. Haddy rebocara rio abaixo dois dias antes. Algo nos gestos nervosos do Sr.
Maywit me disse que ele não vinha connosco. Trabalhava com demasiado entusiasmo, com falta de fôlego e conversando com
o Sr. Peaselee, como se estivesse impaciente por nos ver partir e nos quisesse mostrar a porta.
O bloco de gelo – que na escuridão se parecia com um enorme montão de banha de porco – estava a ser envolvido em
folhas de bananeira. Fora fixado a um trenó com um par de patins muito juntos e equipado para ser puxado por homens com
arneses.
— Não me venham falar em rodas – disse o pai.
No entanto, ninguém dissera nada a respeito de rodas.
Agitando as folhas de bananeira enquanto as colocavam sobre o bloco de gelo, o Sr. Maywit e o Sr. Peaselee sussurravam
qualquer coisa entre eles. A ponta do charuto do pai brilhava no escuro.
— As rodas são para caminhos pavimentados, não nos levariam a lado nenhum nos trilhos da montanha. Demasiado
ineficientes. Podem partir-se ou acabam por se enterrar na lama. Mas aqui o «Patinador» – era o seu nome para o trenó do
gelo – limita-se a deslizar por cima de tudo.
O gelo já não brilhava como banha, estava todo embrulhado. Parecia granito, a pedra de um túmulo. O Sr. Maywit e o Sr.
Peaselee desviaram-se para um lado com os olhos brancos muito abertos.
— Então que tal? – perguntou o pai. – Vêm connosco?
— Não posso – disse o Sr. Maywit numa voz hesitante e recuando um pouco. – Sou o supervisor-de-campo.
— Ia-me esquecendo! – gritou o pai, rindo-se dele. – Se és o supervisor-de-campo, então limpa as valas. Quero-as tão
limpas que possa comer dentro delas. Onde está o Sr. Peaselee?
— Pai? – respondeu ele, que estava agachado e se pôs em pé de um salto, murmurando qualquer coisa.
— Vem connosco?
— Não, senhor. Lá há sempre problemas. Contrabandistas. Soldados.
Ladrões. Gente da Nicarágua. Nas montanhas têm cabuzes, de certeza.
— Ora … você não sabe o que são problemas. – O pai virou as costas aos crioulos. – Onde estão os meus homens da
selva, os meus pisteiros?
— Aqui, pai.
Responderam num murmúrio baixo, muito perto. Os zambus haviam permanecido ali a nosso lado, como árvores negras,
escutando durante todo o tempo. Francis Lungley, John Dixon e Bucky Smart. Agora via-lhes as cabeças redondas movendo-se
por cima dos pontinhos das estrelas, no céu.
— Atrelem-se e vamos embora – disse o pai. – Volta para a cama Peaselee, dorme bem.
Saímos da clareira com o pai na frente, os zambus a puxar o trenó e Jerry e eu atrás. O pai continuava a falar.
— Problemas, diz o homem. Não acho que um declive de quarenta e cinco graus seja um problema. Que problemas podem
surgir de meia dúzia de inúteis? Podia fazer com que aquele mestiço gritasse por piedade. Falta de combustível, desemprego,
corruptos em Washington, ladrões em cada esquina! Garotos da escola que cheiram cola, doninhas fedorentas em todos os
púlpitos, ladrões de velhotas, punks de colarinhos brancos, inflação de dois dígitos e uma fatia de pão a dois dólares! Isso é
que são problemas. Rios mortos, cidades que se parecem com Calcutá, isso são problemas. Não se dá um passeio porque se
tem medo de levar uma facada nas costelas, por isso fica-se em casa e eles entram pelas janelas. Em certos bairros há
maníacos homicidas de dez anos de idade à caça de vítimas. E vão à escola! O país inteiro está à morte! A morte!
Continuava a falar quando entrámos no escuro trilho que nos levaria para fora de Jerónimo e os pássaros voavam ao som
da sua voz.
— O nosso futuro tecnológico encontra-se nas pequeninas mãos dos japoneses e permitimos que os escravos nos
fabriquem coisas. E então aqueles arrivistas condutores de camelos que duplicam freneticamente o preço do petróleo, cada
duas semanas? Ouvi alguém a falar de problemas?
Os molhos de fetos bloqueavam a luz das estrelas por cima da nossa cabeça e o trilho era tão estreito que as folhas nos
molhavam os braços de orvalho. De dia aquele trilho era um túnel verde, mas à noite era a garganta de uma gruta. O pai
continuou a falar dos Estados Unidos. «Deixam-me como louco», dizia. Seguíamos-lhe a voz e o ranger do trenó. Pouco
depois começamos a subir e em breve Jerry se queixava que estava cansado das pernas. As minhas tremiam por causa daquele
novo esforço, o da subida, e tinha os pés molhados, mas em vez de lho dizer chamei-lhe parvo e maricas – era o que o pai
teria dito – e sentime mais forte.
O trilho ziguezagueava por entre sombrias estacadas de árvores. Nunca ali tínhamos estado. Nas curvas mais apertadas os
zambus gritavam «Hoop! Hoop! Hoop!», e viravam o trenó. O pai tivera razão, ali as rodas seriam inúteis. Às pedras soltas e
a terra mole encravavam-nas. Jerry e eu tínhamos sorte. O trenó avançava tão devagar naquelas curvas apertadas que
podíamos parar e descansar. Os patins do trenó deixavam sulcos profundos e nas partes mais íngremes da pista ouvíamos os
resmungos sussurrados pelos Zambus.
— Isto já sem mencionar os Russos … – dizia o pai.
Estávamos por cima de Jerónimo e avistávamos os seus telhados de bambu, as colunas de fumo de lenha misturadas com a
neblina, com colchões de nevoeiro matinal jazendo sobre os campos. O Sol que batia em cheio na alta vertente em que agora
nos encontrávamos ainda não chegara a Jerónimo, mas os seus contornos eram bem visíveis mesmo através da neblina. Os
caminhos empedrados estavam dispostos entre as hortas como os contornos de uma estrela numa bandeira remendada. Vista
dali, parecia maravilhosa, não era nem uma povoação nem uma quinta, mas sim uma colónia de edifícios instalados com
precisão, junto do rio, que era uma retorcida veia azul no músculo da selva. A distâncias maiores levantava-se fumo de outras
clareiras.
— Acabaram de sair da cama – disse o pai, vendo as pessoas a mexerem-se em Jerónimo. – Lá vai alguém para o rio,
provavelmente, o Figgy.
Avistei a camisa de saco de farinha do Sr. Haddy.
— Atraídos por um falso sentimento de segurança – afirmou o pai. – A culpa é minha. «Contrabandistas … ladrões.»
Claro que o senhor Peaselee quer voltar para a cama. Sabe que se encontra no Vale Feliz!
— Lá está a senhora Kennywick – disse Jerry.
O «Menino Gordo» era uma torre brilhante, as folhas de lata que o cobriam reflectiam os primeiros raios de Sol. Era
completamente diferente de tudo o mais em muitos quilómetros, uma coisa maravilhosa num vale já de si cheio de maravilhas.
A Sr. Kennywick encaminhava-se para o galinheiro.
— Dá de comer às galinhas, desfolha o milho – murmurou o pai. – Mãe – declarou Francis, apontando os dedos para a
pequenez da mãe a pendurar roupas numa corda.
— Está bastante atarefada – comentou o pai muito orgulhoso, dando-me uma palmada nas costas.
Mas a mãe nunca andava assim tão atarefada. Levava as coisas com calma, perguntava-nos sempre se tínhamos fome ou
estávamos cansados, ou se queríamos alguma coisa. Fora graças ao encorajamento da mãe que tínhamos explorado a floresta e
instalado o nosso acampamento n’ «O Acre». O pai tratava-nos como adultos, o que queria dizer que nos punha a trabalhar.
Mas nós éramos crianças … com saudades de casa durante metade do tempo, com medo do escuro e não muito fortes. A mãe
sabia-o. Era o pai quem, no que se podia esperar vir a ser um reino de cocos, sol e dias de preguiça, se andava sempre a
agitar de um lado para o outro e que não nos largava para que fizéssemos isto ou aquilo.
Hoje teríamos de viajar durante um dia inteiro e eu sabia que se fosse com a mãe seria diferente. O pai bem podia dizer
coisas como «Trabalho para vocês» ou «Digam-me o que devo fazer», mas quem mandava era ele. Fizera de Jerónimo um
êxito, fora tudo trabalho seu e sabia-o. No entanto, em momentos como aquele, desejava que a mãe estivesse connosco.
Caminharia atrás do trenó junto de nós. Falaríamos com ela a respeito das esperanças que transportávamos às costas, como
pára-quedas. Com o pai, escutávamos e suávamos.
— Teremos de subir pelo menos mais um quilómetro deste retorcido trilho – disse o pai, olhando para cima. –
Continuaremos a puxar o velho «Patinador». Quando lá chegarmos, será sempre a descer.
Apontava para cima, para o que parecia ser o topo da montanha. Era um zimbório que avistávamos de Jerónimo. Uma hora
depois, quando o alcançámos, verificámos que não era de modo nenhum o topo da montanha mas apenas o princípio de uma
nova vertente. A montanha parecia nunca mais acabar.
— Quero descansar – declarou o Jerry. – Esperas por mim, Charlie?
— O pai não vai gostar. Não nos podemos sentar aqui enquanto eles trabalham.
Jerry tinha a cara vermelha e manchada, húmida do calor, as mãos sujas, e as suas pernas magrizelas arranhadas pelas
silvas que cresciam à beira do trilho. Disselhe que iria a correr perguntar ao pai. Tinha pena do Jerry mas também eu queria
descansar.
— O Jerry quer parar – disselhe. – Está cansado.
— Diz que está cansado.
O pai continuou a andar. Virou-se para os zambus.
— Almoçaremos quando chegarmos ao topo. Como sobremesa teremos uma bela escorregadela monte abaixo, do outro
lado, para levar este monólito congelado àquelas incultas áreas selvagens.
Francis Lungley resmungou.
— Temos de falar a linguagem deles – disse o pai, piscando-me o olho. Mas onde era o cimo? Aqueles cimos eram tão
falsos como os que ficavam em baixo, limitavam-se a revelar-nos outros cimos. Olhando para trás, podíamos ver a sucessão
de declives que nos haviam parecido os topos da montanha, até os escalarmos. Trepáramos às nádegas da montanha apenas
para vermos, a quilómetros de distância, os seus ombros iluminados pelo sol.
— Depois disto, será a descer – afirmou o pai, na parte mais íngreme.
O bloco de gelo oscilava e a sua cobertura de folhas estalava à medida que o puxávamos. Apesar de não os poder ver,
ouvia os zambus a ofegar, uma respiração regular e áspera como o esfregar dos dentes de uma serra num tronco.
Estávamos acostumados à sombra húmida das nossas árvores, a margem pantanosa do rio, às hortas planas e aos abrigos
frescos de Jerónimo. Ali em cima as árvores eram finas e ressequidas pelo sol, as vertentes eram rochosas, não havia nem
sombra nem abrigo. Ouvíamos o ladrar de cães e de vez em quando cheirava-nos a fumo, mas não víamos pessoas. O pai
continuava a falar, a prometer-nos o almoço e predizendo que em breve começaríamos a descer.
Pouco depois Jerry e eu começámos a caminhar na lama … escorria água do trenó de bambus para o chão. O gelo estava a
derreter-se muito depressa, a parte inferior da camada de folhas de bananeira, que era todo o isolamento, já escurecera com a
humidade. O ângulo da pista era tão pronunciado que o trenó do gelo não avançava com firmeza num movimento constante,
mas saltava de um lado para o outro, soltando esguichos de água.
Pela calada, eu e o Jerry saímos de detrás do trenó. Os zambus seguiam dobrados pelo meio, presos às correias. Ofegavam
com aquele ruído de serra a cortar madeira, escorria-lhes suor dos queixos e tinham os rostos horrorosamente contorcidos.
Assim dobrados, lutando para conseguirem avançar quase sobre os joelhos, já não pareciam homens.
Haviam sido transformados em animais sofredores por causa do esforço, com focinhos de cão e polegares feridos. Tinham
as narinas muito abertas e os olhos enterrados sob pálpebras semicerradas, e um ar tão assustador com os pescoços cheios de
espuma que não ousámos dizer que o gelo estava a derreter. Por outro lado sabíamos que se o disséssemos ao pai este teria um
ataque de fúria.
Já passava muito da hora do almoço. O pai seguiu à frente mais depressa, para verificar o caminho. Quando regressou e
disse: «Vamos fazer um intervalo para o almoço», calculámos que devíamos estar perto do cimo da montanha.
Jerry e eu transportávamos o almoço nas mochilas. Colocámo-lo em cima de uma rocha – sandes de tomate, milho cozido,
goiabas, bananas e «sumo da selva» – e o pai começou a descrever como seria útil ter um cabo elevador naquele trilho
tortuoso.
Instala-se uma série de suportes com um cabo, para que os passageiros e a carga deslizem para cima e para baixo, ao
longo da montanha – declarou. – Não seria mais difícil de construir do que um teleférico.
Enquanto os zambus ofegavam e Jerry se queixava dos pés magoados, o pai andava de um lado para o outro no declive,
prosseguindo:
— Dividido em secções … é a melhor maneira. Levantar aqui alguns pilares com umas roldanas a trabalhar … e o carro
passava por cima daquelas pequenas falésias. Se se tivesse um sistema de engrenagens, podia ser operado à mão para cima ou
para baixo, ou contrabalançado por outro cabo com um peso, e trabalhava sozinho. Então o peso que descesse içava o outro
até ao cimo. Não são rochas vulgares as que estão a desgastar-nos os sapatos. São balastro potencial! Oh Deus!
Aproximara-se do trenó para lhe admirar o tamanho, e verificara que o gelo estava a derreter.
— Está a encolher! Charlie, por que é que não disseste nada? Vamos, mexam-se antes que se desfaça todo! – Correu para a
frente, continuando: – Devíamos tê-lo envolvido em borracha!
Os zambus suspiravam e enfiaram-se outra vez nas correias.
A meio da tarde ainda não havíamos chegado ao cimo, mas o pai gritava tanto que os zambus já cambaleavam.
Esforçavam-se tanto por lhe agradar que fizeram demasiado força com o trenó em cima de uma pedra. O trenó quebrou-se.
Com um gemido quase humano, o bloco de gelo partiu-se ao meio, separando a camada de folhas protectoras e rebentando
todo o resto do trenó.
— Maravilhoso – disse o pai baixinho. – Era mesmo o que precisava agora. Não se preocupem comigo, vou só dar uma
volta ao quarteirão. Fiquem aqui, e se tiverem vontade de apanhar os bocados disso, garanto-lhes que não me meterei no vosso
caminho – concluiu, lançando-nos um sorriso fraco e desaparecendo.
Um minuto depois ouvimo-lo a gritar por detrás de uma rocha. Alarmado, Francis Lungley olhou para mim.
— É louco – declarou. – É melhor arranjarmos isto.
Os zambus desamarraram o gelo e resmungando entre eles construíram dois trenós. Passou-se quase uma hora antes de
podermos voltar a partir, mas agora o pai e Bucky seguiam presos a um trenó, e Francis e John puxavam o outro. Era ainda
pior do que antes porque o pai estava zangado, resmungando com o seu trabalho, esforçando-se e gritando. Os dois bocados de
gelo eram agora mais pequenos por se terem derretido e as duas equipas deslocavam-se mais depressa ao longo do trilho.
Aproximávamo-nos do cimo. Jerry e eu corríamos à frente, ouvindo os homens a respirarem com dificuldade atrás de nós.
O alto seguinte levou-nos a uma concavidade no flanco da montanha, uma espécie de pequeno vale cheio de flores brancas
e de abelhas. A pista, que descia pela primeira vez (mas que subia de novo do outro lado), deu ao pai e aos zambus uma
oportunidade para se descontraírem. Quando nos alcançaram, o pai disse-nos:
— Têm as mãos e os pescoços sujos. Que se passa com vocês, não são capazes de andar limpos?
Explicámos que tínhamos esfregado sumo de bagas na pele para afastar as moscas e as abelhas. Era o truque que Alice
Maywit nos ensinara n’ «O Acre». O sumo das bagas era tão bom como um repelente para insectos. Os zambus também o
usavam, só que era impossível de ver nas suas peles escuras.
O pai fora mordido, os pulsos e o pescoço estavam cheios de altos das mordidelas dos insectos. Pensámos que nos
agradeceria a informação. Era um tratamento natural, era gratuito e resultava. Porém, odiou a ideia. – Pensam que meia dúzia
de insectos me assustam? Bah! Se têm medo dos insectos, então não estão aqui a fazer nada!
As abelhas voavam à volta dele enquanto falava. Afastou-as com a mão. – Elas sabem quando as pessoas têm medo!
Cheiram o medo! Instantes depois foi mordido numa orelha. O lóbulo inchou e ficou pendurado como a carapaça de uma
tartaruga. Declarou que não sentia nada.
O Sol estava à nossa frente, descendo para trás da montanha que tínhamos subido. Encandeava-nos, mas perdera grande
parte do seu calor. Perguntei a mim mesmo o que aconteceria quando desaparecesse, porque desde que vivíamos em Jerónimo
– há quase sete meses voltávamos sempre para casa ao sol-posto. Não nos fora possível chegar à aldeia e Jerónimo ficava a
muitas horas de caminho para trás de nós. O pai e os zambus ainda gemiam nos arneses, arrastando os dois trenós.
— Teremos de ir para casa às escuras – afirmei.
— Não podemos voltar para casa enquanto não entregarmos este gelo! Entregar onde? Olhei para a carga dos trenós. O
isolamento de folhas de bananeira estava bastante largo, como roupa de adulto vestida por uma criança. Já não restava muito
gelo.
— Por que não pensei em isolá-lo com borracha? Aqueles dois palhaços insistiram nas inúteis folhas de bananeira!
Metade do Sol já desaparecera, restava apenas um segmento de um fruto frio e o rosto do pai tinha um brilho amarelo sob
os seus últimos raios. Incitou os zambus, como se quisesse perseguir o Sol até ao cume da montanha. Não obstante, o pôr do
Sol foi mais rápido e, enquanto içavam os trenós ao longo do trilho, o Sol pestanejou por detrás das rochas deixando um
brilho cinzento-rosado no céu.
O pai perdera toda a sua determinação. Desprendeu-se das correias e subiu o trilho para ir rosnar ao dia que morria.
— Muito bem – disse. – Acamparemos.
— Onde é que vamos dormir? – perguntou o Jerry.
— Ora, ali mesmo, do outro lado da rua, no Holiday Inn. Vocês dois podem deixar-se ficar junto da piscina enquanto trato
de arranjar dois quartos. Querem camas grandes? Pois eu quero e estou esperançado em que tenham televisão a cores e ar
condicionado …
Caminhava em círculos e mordia um novo charuto enquanto falava.
— Um pátio para grelhados, pingue-pongue, hamburgers e um tipo esquisito a tocar piano no bar. Queres moedas para a
máquina dos discos, Jerry? Queres pôr alguns a tocar?
Jerry começara a chorar. Ajoelhara para prender melhor uma das suas sandálias, pousara a cabeça em cima do joelho e
soluçava em silêncio. Tive pena dele, tudo o que perguntara fora onde iríamos dormir, mas o pai continuou a fazer troça com o
seu discurso a respeito do Holliday Inn, de um belo duche quente e um bom descanso.
— Ali vai o Charlie comprar um gelado de chocolate. Tem cuidado ao atravessar a rua, filho!
Sabia que o pai estava desapontado por não termos conseguido chegar à aldeia índia e por isso, em vez de me deixar
abater ou chorar, decidira fazer qualquer coisa de útil.
— Ando à procura de troncos para construir um telheiro.
— Estão a ouvir aquilo? Vai ensinar-nos como se faz um acampamento, tal como nos ensinou a fazer fugir os insectos.
Temos de deixar as coisas entregues aos rapazes!
— O Charlie sabe como é … – disse o Jerry.
— É um hamburger – retorquiu o pai. – Já te conseguiu convencer.
Era claro que o pai não planeara acampar. Tínhamos comido quase todas as provisões. Não possuíamos tendas nem
mosquiteiros, nem lanternas, nem cobertores, e apenas um par de pratos. O saco da água estava quase vazio. No entanto, havia
várias coisas a nosso favor. Estávamos na estação seca, portanto não nos choveria em cima, havia poucos insectos num sítio
tão alto e durante todo o dia víramos pacas e aves nos flancos da montanha … e podíamos comê-las. O pai viajara com pouca
carga na esperança de transpor a montanha, mas falhara e a noite aproximava-se.
— Não fiquem aí parados! – gritou para os zambus. – Improvisem! Os zambus acenderam uma fogueira enquanto Jerry e eu
construíamos um telheiro com paus que encontrámos ali perto. A seguir, juntámos ervas secas, fizemos uma cama lá dentro e
tentámos não incomodar o pai, que soltava maldições, cortando uma pequena árvore com a faca.
O pai não era lá muito bom a fazer acampamentos temporários e ficou surpreendido ao ver a rapidez e perfeição com que
montámos o telheiro. Não precisava de ser à prova de água, era apenas para nos proteger do vento, cada vez mais forte à
medida que aumentava a escuridão. Quando viu a nossa cama de ervas secas, perguntou:
— Estão a pensar em pôr um ovo?
Cortou quatro pequenas árvores e declarou: – Vou fazer um abrigo decente!
Começou a ligá-las umas às outras, mas a escuridão total surgiu ainda antes de conseguir a primeira estrutura, o que foi
uma pena, porque o seu abrigo seria com certeza melhor do que o nosso se o tivesse terminado. Por fim, atirou-o para longe e
perguntou:
— Para quê perder tempo? – Vendo-me com algumas plantas de iautia, comentou: – Andaste a apanhar flores, Charlie?
Boa ideia, podes metê-las entre as páginas de um livro. A mãe ficará muito contente!
Disselhe que eram iautias e que as raízes eram tão saborosas como cenouras.
— Eddoes – afirmou Bucky, pois esse era o nome que davam às iautias. Apanhara uma paca com um pau aguçado e
assava-a em cima do lume com o mesmo pau.
— Não tenho fome! – declarou o pai. – De qualquer modo não como ratos nem ervas.
Ficou a ver-nos comer e contou-nos como, ao viajar pela Europa Oriental, ficara muito desgostoso por ter descoberto que,
em todos os lugares onde comia, os talheres estavam sempre sujos. Havia facas gordurosas, manchas nas colheres e restos da
comida do dia anterior no meio dos dentes dos garfos. Noutro sítio, encontrara um cabelo no leite. Continuou a descrever os
talheres sujos e fez com que os zambus se rissem, mas eu pensava no estranho que era estarmos ali sentados no chão numa
montanha das Honduras, a comer paca assada e iautia também assada, com os dedos, enquanto o pai se queixava de garfos
sujos na Bulgária. Em geral, nunca falava de comida e dizia que era indecente louvá-la enquanto a comíamos. Mas naquela
noite na montanha não foi capaz de falar de outra coisa além das atormentadoras refeições que comera e dos talheres que não
haviam sido decentemente lavados.
— Estão a derreter-me o gelo – acabou finalmente por dizer e mandou que apagássemos a fogueira.
Os zambus obedeceram. Tinham feito as suas camas ao lado de galhos baixos, que cortavam o vento. Já não eram os
homens que costumava ver em Jerónimo. Aqui, na montanha, eram mais silenciosos e simples e com um ligeiro ar selvagem.
— Não estou cansado – disse o pai, quando Jerry e eu gatinhámos para o telheiro. – Vou ficar aqui sentado a arrefecer os
pés até vocês estarem prontos para partir.
Sentei-me junto do bloco de gelo, de pernas cruzadas. O pai juntara os dois blocos para concentrar o frio. Podia dizer,
pelo brilho quente da ponta do charuto, que matutava em qualquer coisa … talvez nos talheres sujos, mas também suspeitei de
que estava de guarda ao gelo, avisara-nos para que não lhe tocássemos. Os zambus murmuraram durante momentos, depois
suspiraram e deitaram-se como troncos caídos no chão.
— Quem me dera que a mãe aqui estivesse – disse o Jerry, adormecendo pouco depois.
O vento zumbia nos arbustos e arrastava-se de encontro às rochas e às ervas secas. Esse era o único som, o do vento, mas
depois ouvi outro ruído por entre o soprar do vento. Era como se alguém martelasse a tecla mais aguda de um piano. Era o
gelo a derreter-se, com as gotas a caírem no tacho de alumínio do conjunto de campismo. Eu estava ainda cheio de fome e
sede, o som daquela água deu-me ainda mais sede.
Meti a cabeça de fora do telheiro e vi o pai do outro lado da fogueira apagada, sentado em frente do bloco de gelo. Este,
com a sua desajeitada cobertura, estava agora com um quarto do tamanho que tivera de manhã, mas recortado contra o céu
estrelado ainda se parecia com uma pedra tumular, e o pai com um cadáver branco que saltara para fora da cova. A luz das
estrelas fazia com que o seu rosto se parecesse com uma caveira e dava-lhe braços de osso.
— Quero dormir na minha própria cama! – gritou.
Tentei pensar em qualquer coisa para dizer. Por fim, decidi não lhe pedir mais água.
— Para onde estás tu a olhar? – perguntou, feroz. – Esta é a primeira vez desde a Criação que há aqui gelo a derreter-se!
Pensa nisso! Dizes que não é nada de importante?!
XVIII

Acordei cansado e enfiado em roupas húmidas e recordei-me de que ainda nos encontrávamos na montanha, nós, o pai, os
zambus e o gelo. O pai caíra para o lado e adormecera deitado no chão com os braços dobrados e o boné de basebol
amarrotado por debaixo do rosto. Acordou rapidamente e negou ter dormido, afirmando que nem passara pelas brasas. Disse
que se aborrecera de nos ouvir a ressonar.
— Não, não falhámos! – declarou, ordenando-me que enchesse o saco, com a água que pingara do gelo para o tacho. – Não
se preocupem com as correias – continuou, espreitando por debaixo da cobertura do gelo.
Meteu os bocados de gelo dentro das mochilas. Cada um deles era mais ou menos do tamanho de uma bola de futebol,
salpicados de bocadinhos de folhas acastanhadas e tinham a textura de uma esponja dura. Era tudo o que restava do grande
bloco de gelo que arrastáramos desde Jerónimo.
— Não digam nada. Não façam perguntas. Não quero ouvir nem um pio! Agora, toca a andar!
Seguiu a correr pelo trilho com a mochila a subir e a descer, batendo-lhe nas costas. Francis Lungley seguiu-o com a outra
mochila, depois Bucky e John de mãos vazias, e o Jerry e eu, fazendo o possível para os acompanharmos. Era eu quem levava
o saco da água. Batia-me de encontro aos joelhos e impedia-me de correr.
Era uma manhã fresca e luminosa, com embrulhos de nuvens jazendo de encontro à montanha como fantasmas de peixes
mortos. Lá em cima, o pai deteve-se junto de uma crista de rocha. Pensei que estava à nossa espera, mas depois vi que atingira
mais um dos cumes da montanha. Era o último. Por debaixo de nós – mas era um planalto e não o vale profundo que
esperávamos encontrar – estava a totalidade das Honduras. Um mundo tão vazio … Nunca pensara que uma zona selvagem
pudesse ter um ar tão triste.
Este era um país diferente daquele que conhecíamos … selva ilimitada, vulcões, nenhum mar. Não havia rios que
pudéssemos avistar, nem água. Era uma superfície de copas de árvores onde planavam as aves.
A sua vastidão fez-me sentir pequeno e insignificante. Não havia fumo, nem estradas, nada que dissesse que vivia ali
gente. Era Olancho, mas Olancho não passava de um nome. Era coisa nenhuma.
— Tem um ar tão desolado – disse eu. – Então, nunca viste Chicago!
As copas das árvores por baixo de nós continuavam até ao horizonte e aquela verdura sem fim dava-nos uma tal impressão
de profundidade que nem sequer se parecia com uma floresta. Era um oceano transbordante de folhas bravias, uma maré tão
alta que subira ao cume da montanha. O pai sorria-se para tudo aquilo, mas, no entanto, fora ele quem nos dissera que as marés
mais altas eram enganosas. Atraíam-nos com a sua aparente mansidão mas se metêssemos os pés lá dentro puxavam-nos e
afogavam-nos nas suas correntes ocultas.
— A partir de agora é sempre a descer.
Não havia trilho. O pai partiu, correndo ao lado do fio de água de um riacho pedregoso.
Os zambus disseram que devíamos estar preparados para deparar com mais abelhas. Os índios dali criavam-nas e
escondiam as colmeias perto das suas cabanas. E que também tinham cães, cães meio selvagens. No entanto, cheirou-nos a
fumo antes de vermos abelhas ou cães e quando o riacho se alargou e transformou num ribeiro soubemos que devíamos estar
perto de uma aldeia. A floresta era mais escura, estávamos no fundo do oceano de árvores que havíamos visto e
continuávamos a descer. Os meus sentidos diziam-me mais do que eu podia explicar logicamente. O cheiro de água estagnada,
fumo de madeira, carne queimada, e um outro cheiro mais violento, sujo e rançoso, a latrinas e cães, tudo aquilo misturado.
Era o cheiro que eu agora associava com as habitações humanas, não as nossas, mas as de outras pessoas. A limpeza de
Jerónimo educara o meu nariz para aqueles intensos odores.
Podíamos não ter reparado nas cabanas. Eram de folhas e feitas de troncos descascados, com a mesma cor que as árvores
que morriam em volta, mas os cães esfomeados correram para nós e Francis exclamou: «Pai, Pai!», enquanto duas araras lhe
gritavam de um tronco.
— Deixem isto comigo – disse o pai. Avistou alguns limoeiros e murmurou: – Bolas de sumo!
No rio que corria pela aldeia havia mulheres ajoelhadas na lama lavando roupa, batendo calças e camisas sobre as pedras.
— Aquelas mulheres estão a lavar roupa – comentei.
— E então? – perguntou o Jerry.
— Ninguém usa roupas – respondi, pelo menos roupas daquelas. Os índios na clareira da aldeia encontravam-se
praticamente nus. Calções era tudo o que usavam, mas calções feitos em farrapos, mais pareciam aventais.
— Talvez só tenham um par.
As lavadeiras fugiram quando viram o pai, mas este não parou.
Patinhou pelo meio do rio, sacudiu a água das sandálias e continuou em direcção aos índios e às cabanas. Estas não eram
as periclitantes cabanas de telhado de zinco em que viviam os crioulos do rio, e eram bastante maiores do que os ninhos de
rato de Seville. Estas cabanas eram rectângulos altos, apoiados sobre estacas, com telhados salientes e com uma espécie de
sótão sob a cobertura de ervas e folhas dos telhados. Havia dez cabanas. O pai ia dizendo:
— Não há latas de cerveja, não há papéis de rebuçados, não há pilhas … – Seguíamos mesmo por detrás dele. – Não há
arcos nem setas. Não vejo armas de espécie nenhuma. Somos, provavelmente, os primeiros brancos que eles vêem. Não façam
nada que os possa assustar, nenhum barulho, nenhum movimento súbito.
Os índios eram castanhos e estava ali cerca de uma dúzia deles, com olhos de chineses, caras pesadas e pernas curtas.
Alguns tinham rolos compridos de cabelo presos por detrás da cabeça. Ali só se encontravam homens, as mulheres haviam-se
escondido e não víamos crianças em lado nenhum.
— Levantem os braços devagar – disse o pai.
Levantámos os braços devagar.
— Francis, tu és o especialista em Mosquitos. Diz-lhe quem somos. Francis Lungley ficou com um ar confuso.
— E quem somos nós, pai? – perguntou.
— Diz-lhes que somos amigos.
— Amigos! – gritou Francis. – Amigos!
— Em inglês não, estúpido! Diz-lhes em Mosquito, ou noutra língua qualquer, que entendam!
Os índios observavam a discussão entre Lungley e o pai.
— Não são mosquitos. São paias ou tuacas. Talvez seja melhor dar-lhes bananas …
— Tu é que me saíste um grande banana – disse o pai, empurrando Francis para o lado. Agora falava-lhes em espanhol e
perguntou-lhes se percebiam essa língua. Ficaram a olhar para ele. Disselhes que éramos amigos, que tínhamos vindo de muito
longe, do outro lado das montanhas. Continuaram a olhar para ele. Disselhes que tínhamos um presente para lhes dar.
Continuaram a fixá-lo por sob das pálpebras inchadas de chineses. – Talvez sejam todos surdos – comentou o pai. Tirou a
mochila de cima dos ombros e aproximou-se dos homens. Vamos, abram-na – disse, e traduziu a frase por gestos.
Um dos índios ajoelhou-se e abriu a mochila.
— Vêem? Compreende-me perfeitamente.
O índio olhou para dentro da mochila, depois virou-a de boca para baixo e despejou a água que lá estava dentro.
Pronunciou uma palavra, que nenhum de nós compreendeu.
— Francis, depressa, dá-me a tua mochila.
Francis abriu a segunda mochila e respondeu-lhe:
— É só água, pai.
— Deve restar um bocadinho … apenas um bocadinho …
Os índios ficaram a ver o pai e Francis a remexerem na sopa do interior do saco molhado.
— Aqui está! – exclamou o pai, segurando um pedacinho de gelo, tudo o que restava do grande bloco, talvez uns gramas.
Seguimo-lo quando avançou para o mostrar aos homens.
Colocou-o na palma da mão. Talvez a impaciência lhe aquecesse a mão, ou talvez o pedaço de gelo fosse pequeno demais.
Fosse o que fosse, a minúscula coisa desapareceu. Antes de poderem olhá-la com atenção, derreteu-se e desapareceu por entre
as fendas dos dedos.
O pai continuava com a mão estendida e molhada, mas os índios olhavam para o coto do dedo.
— Não posso acreditar – disse o pai baixinho, começando a afastar-se.
Por momentos pensei que voltava para Jerónimo, mas não … Murmurava qualquer coisa em inglês e espanhol.
Abandonara-nos em frente dos índios espantados, mas depois voltou e fez um discurso.
Trouxera-lhes um presente, declarou. Mas o presente desaparecera. Que espécie de presente podia desaparecer? Ah, isso
era o mais interessante … era água, mas uma forma de água que eles nunca haviam visto, tão sólida como rocha mas muito
mais útil, boa para preservar a carne ou para fazer desaparecer as dores. E era muito fria! Chamávamos-lhe «gelo», disse, e
do outro lado das montanhas tínhamos uma invenção para o fazer, usando a água do rio. Trouxera um bloco dele, grande como
dois homens, mas ficara mais pequeno, cada vez mais pequeno, e quanto havíamos chegado à aldeia era já minúsculo. Era uma
infelicidade, afirmou, porque agora desaparecera todo, mas alguns momentos atrás ainda teria podido mostrá-lo.
— Mas voltarei – disse – … e então verão!
A maior parte dos índios olhava para o dedo do pai.
Foi então que um dos índios falou muito claramente e em espanhol. Era um homem de cara quadrada e o que tinha o maior
rolo de cabelo, espetado como a cauda de um pónei.
— Vá-se embora – disse ele, e os seus dentes eram todos negros. O pai riu-se para ele.
— Já te disse que foi um acidente, Jack. Já estiveste daquele lado? Sabes quanto tempo é preciso para arrastar o gelo até
aqui? – Surpreendido pela ordem do índio, começara a falar em inglês. Continuou em espanhol: – A culpa não foi minha! Já
alguma vez viram gelo? Já lhe tocaram?
— Vá-se embora – repetiu o índio.
— Obrigado. Não comemos desde ontem. Tivemos de dormir na montanha. A nossa água acabou-se e estes garotos não se
aguentam nas pernas. Muito obrigado!
— Vá!
A palavra foi dita com dureza, os dentes do índio tinham um ar feroz, mas o homem parecia muito assustado. O pai falara
muito tentando explicar o gelo, e era capaz de não ter olhado para os índios com a atenção suficiente para se aperceber de que
estavam assustados. Talvez pensasse que aqueles ares tinham algo a ver com a maravilha que se derretera e desaparecera.
Os índios eram cor do barro e permaneciam ali como peças de barro prestes a estilhaçar-se, desfazendo-se em bocados.
Quem éramos? Era o que pareciam pensar. De onde vínhamos? Teríamos caído do céu?
— Verdadeiros selvagens – disse o pai, que ainda não lhes vira o medo. – Creio que não podia esperar outra coisa …
Olhavam para o dedo do pai enquanto este o agitava de um lado para o outro.
— Se o gelo não se tivesse derretido, não nos largavam … «Obrigado, são maravilhosos, por favor dêem” nos mais, etc.»
Mas, cavalheiros, o nosso plano derreteu-se …
Agora todos os índios mostravam os dentes, tal como os seus cães haviam feito … dentes negros, lábios duros, olhos
semicerrados.
— Não posso com esta hostilidade neolítica …
— Nós vamos – disse Bucky.
— Sim, senhor – concordou Francis.
— Pois eu não me mexo daqui – declarou o pai para os zambus que recuavam. – Então e tu, Charlie?
— Eu também não – respondi, em espanhol.
— Ouviram o que ele disse!
Teriam ouvido? Pareciam tão surdos como quando havíamos chegado.
O índio que nos dissera para nos irmos embora tirava bocados de pele morta de um cotovelo. A seguir, levantou os olhos e
silvou:
— Vão.
— Diz-lhes que ficaremos aqui até que nos dêem qualquer coisa para comer. É o mínimo que podem fazer. Um pouco de
hospitalidade não os matará. Não somos nem missionários nem cobradores de impostos.
Disselhes aquilo. Enquanto falava, o pai sussurrava para os zambus: – Este lugar é muito pior do que Jerónimo! As coisas
que eu podia fazer aqui! Eles não têm nada … mas olhem para aquelas cabanas. Sabem como fazer estruturas resistentes. –
Quando acabei de falar para os índios, virou-se para mim. – Diz-lhes que queremos qualquer coisa para comer. Não quero
nada para mim, vocês é que precisam de encher o estômago. Comemos e vamos embora.
Os índios, ao ouvirem-me dizer aquilo, ficaram com um ar incerto.
— Diz-lhes também que faz demasiado calor aqui ao sol. Queremos sentar-nos à sombra.
O índio que falara (mas que até ali só dissera «Vão-se embora») dirigiu-se para a cabana maior e entrou nela.
— Deve ir perguntar ao Gowdy se está de acordo – disse o pai.
O índio reapareceu e fez-nos um gesto, indicando-nos que nos devíamos sentar perto daquela cabana.
— Rapazinhos amigáveis, não são? – murmurou o pai quando nos sentámos. – Que estarão eles a esconder? Aposto que se
passa aqui qualquer coisa que não querem que vejamos. Gostava de bisbilhotar por aí …
Cansado e esfomeado como estava, ficaria muito mais satisfeito se me fosse embora dali, e sabia que Jerry sentia o
mesmo.
O pai permanecia impassível, continuava a ser o senhor de Jerónimo, se é que não era o Rei de Mosquitia, murmurando
para os seus zambus com um ar todo-poderoso. Parecia não reparar – ou se reparava, não se ralava – que os índios tinham
atravessado a clareira e estavam sentados em semicírculo à nossa volta, observando-nos.
— Sim, este lugar cheira mal – dizia o pai. – Não estão organizados. Mas o clima é saudável. Mais fresco do que
Jerónimo. Solo fértil. Poucos insectos. Montes de boa madeira dura. Aqui podia-se fazer milagres, se …
Fechou a boca quando nos trouxeram comida e água. Raramente se mostrava surpreendido com qualquer coisa, pelo que o
seu súbito silêncio era tão espantoso como um dos uivos que por vezes soltava. O que o calara haviam sido os homens que
traziam as malgas e cestos com comida. Mirou-os espantado e disse, com os dentes cerrados como um ventríloquo:
— Ora vejam só!
Três homens magrizelas, que não eram índios, pararam junto de nós. Tinham caras pálidas por debaixo da porcaria e dos
bigodes. O pai assobiou baixinho, avaliando-os. Eram altos, ossudos e pareciam ter contusões. Usavam calças rasgadas e
sandálias rebentadas. Dois deles tinham tiras de pano na cabeça iguais às usadas por alguns índios. Os rostos eram febris e
afundados, com as peles acinzentadas esticadas sobre o crânio. As barbas e as caras ossudas faziam-me pensar nos santos dos
livros de imagens. No entanto, quase sorriam e, quando nos colocaram a comida na frente, observaram-nos com olhos
curiosos. – Que vos disse eu? – declarou o pai. – Era isto o que eles não queriam que víssemos. Têm escravos brancos!
A comida eram bananas cozidas, bolos de milho achatados e gordurentos, bolinhos fritos e wabooll. A água sabia a pêlo
de cão.
— Agora tudo faz sentido! Eh … – disse para um dos homens, em espanhol vocês deixam que os índios vos digam o que
têm de fazer?
— Mais ou menos. – O homem não parecia preocupado e mantinha o sorriso febril.
— E que é que vocês fazem para eles.
— Engraxamos-lhes os sapatos.
— Não perderam o sentido de humor – comentou o pai, soltando uma gargalhada e passando a tijela de wabool ao Jerry,
sem sequer provar.
Do outro lado da clareira, os índios continuavam a olhar-nos de cabeças baixas. O único som vindo dessa direcção era o
rosnar dos cães que tentavam caçar pulgas nos quartos traseiros esqueléticos e escalavrados.
— Como é que te chamas?
Um dos homens molhou os lábios ao ouvir a pergunta do pai, mas um outro, de cabelos oleosos, respondeu:
— Não temos nomes.
— Ouviram aquilo? Não têm nomes.
O pai olhou para os índios. A toda a nossa volta, nas árvores altas, as aves piavam e batiam nas folhas com as suas asas,
enquanto o som do rio parecia o barulho de pedras a rolarem.
— Provavelmente capturaram-nos com as lanças e fizeram-nos prisioneiros – disse o pai para Francis Lungley e os tipos
agora fazem todo o trabalho sujo.
— Gringo – anunciou um dos homens ao ouvir o pai falar inglês. O seu rosto esfomeado dava-lhe uma expressão bem
marcada que era, ao mesmo tempo, mal assombrada e amável.
— Norte-americano, hein? Veio da Missão?
— Tenho aspecto de missionário? – A seguir o pai falou-lhe baixinho, para que os índios não pudessem ouvir. – Não.
Temos uma quinta do outro lado da montanha. Se conseguir chegar até lá, se conseguir escapar-se numa destas noites, estará
salvo. É o melhor caminho para a costa.
O homem fez um aceno com a cabeça e passou a mão pela barba.
— Que veio aqui fazer?
— Era o que ia dizer. Trouxe gelo … cerca de meia tonelada. Estes zambus e eu. Estes são os meus rapazes, Charlie e
Jerry. Limpa a boca, Charlie.
— Onde está o gelo?
— Derreteu-se.
O homem sorriu.
— Não acredita?
— Gelo – disse o homem em espanhol para os outros, e todos eles sorriram. Os três homens ajoelharam-se em frente do
pai e o primeiro perguntou:
— Onde arranjou o gelo?
— Fi-lo – respondeu o pai, bebendo um golinho de wabool. – Devia ver o que nós lá temos. Hortas, comida, bombas para
tirar água, galinhas, esgotos e a maior máquina de fazer gelo de todo o país.
— Tens um gerador para a electricidade?
— Não me falem em geradores. Diz-lhes como é, Charlie. Expliquei-lhes que o pai arranjara uma maneira de fazer gelo
com o fogo.
— O teu pai é um homem inteligente.
— Toda a gente diz isso – respondi.
— Os índios acabarão por vos matar com trabalho – continuou o pai. – Então, quando já não precisarem de vocês para
nada, matam-vos e dão-vos a comer aos abutres. Arranjarão novos escravos. – O rosto tornou-se-lhe sombrio. – Acham que
tentarão fazer alguma coisa connosco? – Quem sabe? – respondeu o homem, e os outros confirmaram com acenos.
— Quero ir-me embora daqui ainda com a cabeça. Acha que os índios nos estão a escutar?
— Escutam, mas não compreendem. São gente muito simples. São também muito fortes.
— Calculei isso, mas não deviam deixar-se ficar aqui às ordens deles, não têm esse direito. São prisioneiros, não são?
O homem que mais falara encolheu os ombros. Aquele gesto abanou-lhe todo o corpo magro. Ou não estava nada
preocupado ou já não se ralava. O pai retomou a conversa:
— Já viram que como pouco? Vou dizer-lhes porquê. Porque tenho um enorme apetite. Não comendo, faço melhor as
outras coisas. Resolvo problemas. Trabalho mais. Essa também é uma forma de comer. Deviam tentar. Se comesse muito não
fazia mais nada …
Durante todo este tempo os zambus comiam e mal prestavam atenção ao que o pai dizia. Este parecia satisfeito por ter
alguém novo com quem conversar. Talvez esse facto o fizesse esquecer-se do falhanço da expedição.
Os homens sussurraram entre eles e depois um dos que ainda não falara perguntou:
— Não está a dizer a verdade, pois não? A respeito do gelo?
— Era quase um icebergue – retorquiu o pai. – Derreteu-se e transformou-se em lama, mas há muito mais no sítio de onde
ele veio.
Temos tudo, lá do outro lado.
— Armas?
— Não precisamos de armas para nada. Se precisássemos, era capaz de fazer um arsenal. Só se estivesse desesperado.
Prosseguiu dizendo que o levavam a recordar-se de como se sentira nos Estados Unidos, como um prisioneiro, perto do
desespero, com vontade de matar toda a gente, meio louco, por causa da frustração de ver como as coisas corriam, quase
como uma escravatura, porque as leis haviam transformado os homens em escravos.
— E que fiz eu? Peguei em mim e fui-me embora. Aconselho-os a fazerem o mesmo.
Os índios continuavam agachados no chão, com os seus cães a dez metros de distância. Viam o pai falar com os homens
magrizelas. Para mim era impossível dizer em que pensavam quando olhava para o barro liso das suas caras. Os índios
podiam ser inofensivos, mas os cães eram parte integrante do seu grupo. A ferocidade dos cães fazia com que os índios
parecessem perigosos.
— Os índios querem que se vão embora – disse o homem de cabelos oleosos.
— Não sabem o que é bom para eles mesmos – disse o pai. – Não merecem gelo ou qualquer outra coisa, se não são
capazes da mais comum das cortesias. Mas vocês – acrescentou – são suficientemente amigos.
-É do nosso feitio …
— Os meus zambus provavelmente pensam que são mascadores.
— Ah, Mosquitia!
— Gostava de poder fazer qualquer coisa por vocês – declarou o pai.
— Já nos estará a ajudar se evitar irritar os índios. Basta que se vão embora.
— Escutem, numa noite escura ponham-se a andar daqui. Desapareçam.
— Em inglês, acrescentou: – Fujam deles.
— Os índios dizem que não há trilho para o outro lado da montanha.
— É claro que dizem, não é? Não são eles que vos irão dar um mapa das estradas …
— A que distância fica a vossa povoação?
— A um dia de marcha. Mais, quando se vem carregado com gelo, foi esse o nosso problema.
— Estarão em casa ao cair da noite.
— Quase me dá vontade de rebentar com isto tudo, para vos tirar daqui – afirmou o pai, subitamente.
— Seria uma coisa muito estúpida – disse o homem, sem pestanejar.
— Então … vocês é que sabem.
— Vão-se embora … ou eles castigam-nos.
Deram-nos uma cabaça de wabool, água e um cacho de bananas. Enquanto enchiamos o saco da água, os três homens
dirigiram-se para junto dos índios. Estes continuaram sentados no chão mas os cães fugiram quando os viram aproximar-se. Só
começaram a ladrar quando atingiram as primeiras raízes salientes, nos limites da clareira. Sem os cães, os índios pareciam
mais nus e até um pouco assustados.
Deixámo-los assim, os índios sentados e os três escravos de pé. Os cães precipitaram-se sobre nós e depois recuaram,
empurrando-nos para o ribeiro. Ladravam, rosnavam e mostravam-nos os olhos selvagens e cobardes. Todos os outros homens
se mantiveram imóveis. Eram muito pequenos, debaixo da vasta floresta suspensa, a verem-nos partir. As mulheres ainda não
estavam à vista. Os homens tinham o aspecto de quem estava a posar para uma velha e assustadora máquina fotográfica.
— O que não consigo perceber é como foram ali parar … – comentou o pai, quando já nos encontrávamos no trilho.
— Os tuacas, pai?
— Não, os outros. – Usou uma palavra espanhola. – Os sem nome.
— Esta floresta está cheia de macacos – disse Bucky.
— Os macacos não fazem tantas perguntas …
Os escravos também não, pensei.
— Gente, lá em baixo passa-se qualquer coisa de estranho.
Encaminhámo-nos para fora da floresta e para lá do declive rochoso, em direcção ao sítio onde havíamos subido a
montanha. Quando chegámos ao local onde tínhamos acampado na noite anterior, parámos outra vez e passámos o wabool de
mão em mão. Sentámo-nos no trenó partido, os restos do «Patinador». O pai disse que um dia um estrangeiro o encontraria e
proclamaria que outrora existira ali uma grande civilização, e que colocariam o «Patinador» num museu. Aquilo fê-lo rir-se.
— Viram a cara daqueles índios quando olharam para o gelo? Olhámos todos para ele.
— Nem conseguiam acreditar – continuou. – Ficaram gagos! Não sabiam o que dizer!
Por fim – e porque todos os outros continuavam perfeitamente silenciosos – perguntei:
— Qual gelo?
— O gelo que lhes mostrei.
Pensei que me estivesse a testar mais uma vez.
— Derreteu-se todo, pai.
— Aquele bocado pequeno.
Não era verdade.
— Tu viste-o, não foi, Jerry?
— Sim, pai.
Parvo, pensei para mim mesmo.
— O teu irmão de cara comprida está a tentar dizer-me que perdemos o nosso tempo. Precisas de óculos, Charlie. Os teus
olhos não prestam.
Talvez estigmatismo, hein, Francis?
— De certeza – confirmou o leal zambu.
O pai colocou Jerry às cavalitas e transportou-o, enquanto eu caminhava atrás com os zambus. Os rostos destes reflectiam
bem o seu cansaço. Para os zambus tratara-se de uma viagem confusa, em especial por estarem à espera que os tuacas
tivessem caudas … e talvez, na verdade, pensassem que os três magrizelas eram mascadores. Havia um tom cinzento nos
corpos dos zambus, e manchas sobre esse cinzento, como as manchas acinzentadas na superfície das uvas pretas. Quanto mais
andávamos mais ficavam convencidos de que tinham visto o gelo e os índios espantados. «Estava na palma da mão do pai,
como uma pedra.» – Daqui para diante é sempre a descer – disse o pai.
XIX

Na descida do trilho, sob o crepúsculo cor de casca de tartaruga, pensei na mentira do pai. Tinha esperanças de que não
acreditasse nela, mas como poderíamos evitar que a repetisse?
Havia uma coisa que talvez resultasse; podia ser que durante a nossa ausência de dois dias algo tivesse corrido mal em
Jerónimo, houvesse surgido algum pequeno problema, suficiente para lhe virar a atenção para outras coisas, não um desastre,
apenas um obstáculo, para evitar que fizesse um enorme discurso dizendo que o nosso falhanço fora um êxito.
Os índios não tinham ficado espantados! Não haviam feito mais do que olhar para nós e para os dedos molhados do pai,
para depois nos mandarem os seus escravos.
Aquela mentira fazia com que me sentisse mais solitário do que qualquer outra mentira entre todas as que já ouvira.
No entanto, falara com toda a confiança, afirmando que a expedição fora um triunfo e que estava ansioso por o contar à
mãe. Esforcei-me por me recordar de ver gelo nas mãos do pai e espanto nas caras dos índios … mas não me lembrava de
nada, nem do gelo nem da surpresa. Fora tudo muito pior e muito mais estranho do que a sua mentira. Haviam-nos dito para
nos irmos embora, e depois apareceram os escravos magrizelas para nos espreitarem, e os cães que nos tentavam morder os
pés. – Ah, gosto de voltar a casa cansado, no fim de um belo dia com o sol a bater-me nos olhos!
A minha frente, no trilho, o pai continuava a falar com o Jerry e os zambus.
— Pode meter-se um homem dentro de gelo e conservá-lo como ao aipo, e livrá-lo das insolações. Essa seria uma boa
aplicação para o gelo, aqui por estas bandas. Já alguma vez lhes falei dos avanços da criogenia?
Aquela voz abria caminho por entre as árvores e deixava-me exausto. A sua confiança era algo que naquele momento não
me apetecia ouvir. Assustava-me a ideia de que o pai iria repetir a sua história em Jerónimo … e a sua mentira metia-me
medo. «Viram a cara daqueles índios?» A cara dos índios fora de confusão, tinham rugas como os macacos e haviam
procurado assustar-nos mostrando-nos os dentes pretos, tal como os cães. Outrora pensava que o pai era muito mais alto do
que eu, que via coisas que eu não conseguia avistar. Desculpava os adultos que não concordavam comigo e achava que a culpa
era minha, por ser tão baixo. Porém, isto era uma coisa que podia analisar. Vira-a. As mentiras deixavam-me desconfortável, e
a mentira do pai, que era também pura gabarolice, desgostava-me e afastava-me dele.
— O Charlie vem lá atrás a fazer o melhor que pode, gentes! Amava aquele homem e ele chamava-me estúpido e
falsificava o único mundo que eu conhecia.
Rezei para que surgisse um problema. As minhas orações foram ouvidas. As coisas não estavam bem em Jerónimo. Fora o
que eu desejara mas, tal como acontece com todos os desejos que nos são concedidos, também fora mais do que eu pedira.
Jerónimo estava coberta pela tranquilidade e pelo ligeiro vibrar da folhagem. Ficava sempre assim ao crepúsculo, como
que difusa e tranquila por causa da maneira como o sol se coava por entre as árvores, e do modo como o rio lançava ligeiros
reflexos. Era a escuridão a aproximar-se. Era a maneira como as pessoas se inclinavam de fadiga, depois de um longo dia de
sol sem nuvens.
Porém, naquele entardecer, tudo parecia morto, com uma atmosfera de desaparecimento e de alarme oculto que nos dizia
que algo acontecera como o silêncio que se segue a um uivo. Havia guinchos baixos dos lagartos à espreita no meio das ervas,
enquanto nos ramos as aves procuravam poleiros para a noite, soltando pios delicados.
— Houve alguém que esteve aqui e se foi embora – disse o pai, fazendo-nos parar.
O «Menino Gordo» não estava aceso. A casa dos Maywit estava às escuras, não se via nenhuma das suas lanternas
habituais … Janelas abertas, pórtico vazio, nenhum fumo.
— Allie! – exclamou a mãe … o seu rosto branco à espera na galeria.
O pai caminhou para ela e perguntou-lhe o que se passara.
— Pensei que também vos acontecera qualquer coisa – respondeu. – Também?
— Os Maywit … foram-se embora. Não consegui evitá-lo.
— Já sabia – afirmou o pai, sorrindo para Francis Lungley.
Sentia-me responsável. Rezara para que acontecesse qualquer coisa e assim fora. Desejara algo que impedisse o pai de se
precipitar para Jerónimo mentindo a respeito de índios espantados, gelo e «Devias ter visto a cara deles!».
Agora, o pai sorria para Clover que aparecera a correr de debaixo da casa, o abraçava e lhe explicava:
— Veio um barco a motor que levou todos os Maywit. O homem chamou-te nomes. Era o missionário que mandaste
embora no outro dia. A Ma Kennywick gritou-lhe, e o Sr. Peaselee estragou a bomba e a mãe disse que ficavas furioso quando
soubesses de tudo. Mas não estás, pois não? Pai, tenho medo!
O pai olhou em volta para toda a gente e a sua boca curvou-se de satisfação.
— Por que é que havia de ficar furioso? – perguntou. – Sabia que isso iria acontecer.
— Então, o Drainy e os outros? – perguntou Jerry.
— Foram-se embora – respondeu Clover. – Todos, no barco a motor do homem.
— Que vos disse eu? – inquiriu o pai, sorrindo para os zambus, que lhe devolveram o sorriso.
A mãe descera da galeria com a April, que se lastimava.
— Fiz tudo o que pude – continuou a mãe-, mas não me escutaram.
Não me escutaram, não me reconheceram … estavam tão assustados …
— Não vale a pena dizeres mais nada – declarou o pai com firmeza. – Sei de tudo isso. Os Maywit fugiram com aquele
moralista ignóbil, num qualquer barco poluidor, de um amigo do Figgy. Não precisas de dizer mais nada. Bastou-me olhar
para a clareira para o perceber.
Ao ouvir «Figgy», o Sr. Haddy avançou e interrompeu-os:
— Uma fantochada. Aquela gente assusta-se por tudo e por nada e não nos dá um momento de paz. Ma Kennywick apanhou
um susto de morte e desde aí ficou com dores de barriga. Peaselee também ficou assustado, diz que viu um palerma qualquer
com um cabuz. Ainda bem que já cá está, pai.
O pai aguardou que ele terminasse e depois declarou:
— Também sei outra coisa. – Sorriu, encheu a boca de silêncio e engoliu-o.
— O pai sabe. – Agora era Francis Lungley, falando para Bucky. – Esses Maywit têm muito que aprender.
Se o pai sabia tudo, por que é que não sabia o nome deles?
— Não se chamam Maywit – afirmei. – Chamam-se Roper. São todos Roper.
— Quem disse?
Expliquei-lhe o que os rapazes me haviam dito, mas não lhe falei n’ «O Acre», nem que tinham medo dele. Jerry, Clover e
April não disseram nada, deixaram-me ficar com as culpas todas, por saber aquilo. O pai continuava a sorrir.
— Devias ter-nos contado isso antes, Charlie – disse a mãe.
— Pensei que o pai soubesse.
— Que mais sabes tu, Charlie? – perguntou o pai.
Estive quase a responder: «Aqueles homens que disseste que eram escravos não me pareceram escravos e os índios
estavam com medo. O gelo derreteu-se antes de o poderem ver. Não nos deixaste descansar, fizeste o Jerry chorar quando
falaste no Holliday Inn, a viagem foi terrível, pior do que as que fizemos pelo rio, e provavelmente um falhanço.»
— Nada mais – respondi.
— Então, ainda sei mais do que tu – disse (quando é que eu duvidara disso?)-, porque sei que vão voltar.
Dirigimo-nos para a casa dos banhos e despimos as roupas. O pai pôs os chuveiros em funcionamento … Que maravilhosa
invenção! Eram como uma máquina de lavar automóveis, com jactos de água a saírem das paredes por bicos de bambu.
Estávamos todos lá dentro, empurrando-nos debaixo dos finos jactos de água, numa semiescuridão, o pai, Jerry, os zambus e
eu. O «Menino Gordo» estava apagado, portanto, não havia água quente, mas ninguém se importava. A mordedura inofensiva
dos duches retirava-nos a poeira das montanhas e livrava-nos das más recordações. – Eu não ficaria tão certa disso, Allie –
disse a mãe.
— Ela não acredita em mim – comentou o pai. – Passa-me o sabão.
Tinha muito orgulho no seu sabão. Éramos nós mesmos quem o fabricava, de gordura de porco que trocávamos por gelo,
um sabonete amarelo e gorduroso, que parecia um bocado de banha. «Sem aditivos!», dissera. «Ora, até o podíamos comer!»
— Não estavas aqui.
— Não precisava de estar.
— Foi horrível – continuou a mãe. – Esse missionário, o Struss … – Eu sei – respondeu o pai.
Falando através das paredes da casa dos banhos, a mãe prosseguiu:
— Parece que ele foi até Seville, no barco. Não sei o que lá viu, mas deve ter sido aquela gente ridícula a rezar. Voltou
para nos acusar a todos de blasfémia e de estarmos a espalhar as mentiras da ciência.
— Ensaboem-se – disse o pai para os zambus, que se lavavam sempre numa posição agachada, sem se levantarem. Além
disso, conservavam os calções vestidos quando tomavam banho. Maios via no escuro da casa dos banhos, mas ouvia a água a
cair-lhes sobre as cabeças e as suas cuspidelas e resmungos.
— Estariam de joelhos, a rezar ao frigorífico? – perguntou a mãe.
— Fosse o que fosse, o Reverendo Struss estava muito zangado. Apareceu a gritar que estávamos a fazer mal, que lhe
desviávamos a sua gente. A maior parte da gritaria foi para com os Maywit … a quem chamava Roper. Obrigou-os a irem até
ao rio e atirou-lhes água para cima. «Um serviço de purificação», afirmou, para os limpar dos pecados que lhes tínhamos
ensinado. O Sr. Kennywick não sabia o que fazer e o Sr. Peaselee ficou esquisito.
— Podia ter-te dito que isso iria acontecer – respondeu o – Ordenei-lhe que saísse da propriedade. Disselhe que dentro de
dez minutos e lhe afundarias o barco.
— Bem pensado – gritou o pai, através da parede. – E afundava mesmo!
— Encheram os sacos, quer dizer, sacos de papel, com tudo o que tinham, e foram-se embora.
— Portanto, fugiram de nós.
— Estão assustados – interveio o Sr. Haddy, com a boca encostada à parede de bambu, os dentes todos de fora. – O
pregador falou de soldados, sarilhos e cabuzes.
O pai fechou a água.
— Quais soldados? – inquiriu o pai, enquanto nos secávamos.
— Nas montanhas. Do outro lado das colinas. No rio. No cimo das árvores. Com cabuzes. Russos e sei lá que mais.
Peaselee ouviu-os. – Disse que eras quase tão mau como os soldados – explicou Clover.
— Peaselee disse isso?
— O homem. O missionário. Chamou-te comunista.
O pai deixou-nos sair da casa dos banhos. Os zambus pularam, dançaram e agitaram os dedos no ar, para se secarem. O
pai tinha um saco de farinha enrolado em volta da cintura, o cabelo a pingar e um corpo branco como mármore. Levantou um
braço, como uma estátua em frente de um tribunal.
— Nada disto é novidade para mim – declarou. – Mas eu vou dizer-lhes uma coisa que não sabem. Vão voltar, podem ter a
certeza, porque este lugar é um lugar feliz, e o mundo não o é. O mundo está podre. As pessoas são más, são cruéis, são falsas,
fingem sempre que são o que não são. São fracas. Aproveitam-se das outras. Um homenzinho ignorante, que vê Deus numa
serpente ou o diabo num trovão, faz-nos prisioneiros se nos conseguir apanhar. Dá a alguém metade de uma oportunidade … e
logo esse alguém te transforma em escravo … e conta-te as mais terríveis mentiras. Já os vi, armados em senhores, fingindo
ser deuses. E os nossos amigos, os Maywit – desculpa, Charlie, os Roper – sentir-se-ão abandonados lá fora. Terão medo
porque o mundo cheira mal! – Enfiou pelo caminho que dava para a casa, dando largas passadas. – Vão voltar, podem estar
certos. Lembrem-se de quando o ouviram dizer, e de quem o disse.
A mãe desviou-se para! O lado e perguntou:
— Então, e o gelo, como correu tudo?
O pai continuava a andar. Resmungou. Escutei com atenção e então ouviu-o dizer em voz baixa:
— Derreteu-se muito. Eu sabia que era um erro carregar tanto, e para tão longe.
No fim de contas, o pai não mentira.

Na selva, «O Acre» era nosso. Já não era o mesmo sem o Dainy a pregar, a Alice a cozinhar, a «Pequerrucha» e o Leon a
fazerem cestos, mas como agora éramos menos parecia-nos maior e ficávamos mais à vontade. Cada um de nós tinha o seu
próprio e resistente telheiro.
Trouxemos uma corda de Jerónimo e fizemos um baloiço numa árvore, dando um grande nó na ponta livre e sentando-nos
nele. Em Jerónimo, o pai não o autorizaria. Não seria útil, porque se não houvesse alguém a balouçar-se nele então limitava-se
a estar ali pendurado – seria essa a sua objecção – e era uma boa corda desperdiçada.
Comíamos raízes de iautia e abacates bravos e reparávamos a camuflagem das armadilhas, que eram agora quatro, muito
bem disfarçadas com raminhos. Um dia, numa das armadilhas, vimos uma cobra a comer outra, com metade já enfiada pela
garganta abaixo e as duas a agitarem as caudas. A que comia não se podia afastar nem deixar de comer a outra, pelo que
pudemos observá-la em segurança. A seguir levámo-la para Jerónimo.
— Aí está um perfeito símbolo para a civilização ocidental – disse o pai. Noutro dia apareceu um macaco-aranha na nossa
árvore-igreja e sentou-se nela, a limpar os dentes. Observava-nos com curiosidade, como se quisesse brincar.
A seguir farejou qualquer coisa, saltou da árvore, aterrou perto de um arbusto e arrancou dele um pequeno fruto redondo.
Mais um salto e regressou à árvore, comendo o fruto. Mordeu a pele, chupou o interior, depois caminhou ao longo do ramo e
afastou-se.
Foi assim que descobrimos as goiabas. O macaco mostrara-nos que havia vários arbustos desses do outro lado da lagoa, e
nesse dia levámos para casa um cesto delas.
— Podemos fazer compota – disse a mãe.
Porém, o pai declarou que eram demasiado pequenas e ácidas, por serem bravas. Se quisesse pensar no assunto, afirmou,
era capaz de cultivar goiabas doces e grandes como bolas de ténis e «já que estamos a falar de comida é melhor começarem a
colher e a descascar, ou não teremos nada para o almoço».
Em Jerónimo, fazíamos o que esperavam de nós; os trabalhos habituais, mas voltávamos sempre ao nosso acampamento
para viver como macacos. Sentíamos a falta dos Maywit – ainda pensava neles com esse nome mas sem eles não
precisávamos da escola nem da loja. Ainda tínhamos as páginas soltas do livro de hinos do Drainy, mas já não celebrávamos
serviços religiosos. De qualquer modo, fazia ali demasiado calor para andarmos a pensar no Inferno.
N’ «O Acre» sabíamos que chegara a estação seca. Em Jerónimo ninguém o sabia ou considerava o assunto com pouco
interesse. As hortas continuavam acrescer, mas ali estávamos em contacto com a natureza, não tínhamos invenções.
«O Acre» era um sítio primitivo, um buraco no meio da selva, mas a erva era macia, a lagoa tornava-o agradável e
tínhamos tudo de que necessitávamos. Para nos divertirmos, podíamos nadar ou balançar na corda. A lagoa não parecia
afectada pela seca na selva, devia ter uma fonte a alimentá-la, mas o resto da área estava muito seca. Observávamos as
formigas a fazerem funerais, procissões delas com pequenos cadáveres e folhas erguidas a servirem de pára-sóis. Viviam
cobras nas raízes de uma árvore morta, num dos cantos do acampamento. Mantínhamo-nos afastados daquela árvore mas
pensávamos em maneiras de as fazer cair nas armadilhas. As cobras e os besouros do tamanho de castanhas não nos
assustavam. Havíamos aprendido que as criaturas mais ferozes se comportavam de modo previsível e, apesar de o local
outrora nos ter parecido perigoso, agora pensávamos que era muito mais tranquilo do que Jerónimo. Íamos para ali para fugir
de Jerónimo, pois desde a construção do «Menino Gordo» que o pai era visitado por gente que queria gelo. Eram
conversadores. Tinham ouvido falar do pai e iam cumprimentá-lo. O pai dava-lhes trabalhos simples para eles fazerem e
depois iam-se embora levando o gelo nas canoas. Havia sempre estranhos em Jerónimo, admirando as invenções do pai ou à
procura de gelo.
— Não sabem fazer nada com esse gelo, excepto arrefecer bunia dizia o Sr. Haddy. Bunia era uma bebida amarga que as
gentes do local fabricavam da mandioca.
— Isso não importa – respondia o pai. – Até podem usá-lo em cima da cabeça que eu não me ralo. Uma vez que se
acostumem à ideia do gelo, os seus usos acabarão por lhes ser revelados. Cada um deles fará qualquer coisa de diferente, um
conservará carne, outro servir-se-á dele para aliviar dores, alguém acabará por ter a ideia de refrigerar o peixe em vez de o
fumar, e quantos não se curarão de insolações? Claro, pode levar toda uma geração, mas pensem no futuro … pois mais
ninguém o faz! O «Menino Gordo» vai durar para sempre! Não tem peças móveis, Figgy!
Era frequente o pai dizer que as coisas eram «reveladas». Eram essas as verdadeiras invenções, afirmava, a revelação da
utilidade de qualquer coisa e a sua ampliação, a descoberta das suas imperfeições, os melhoramentos … e pô-la a trabalhar
para nós. Para ele, uma goiaba brava, que crescia no mato, era uma imperfeição. Era preciso melhorá-la para ser comestível.
— É uma atitude selvagem e supersticiosa aceitar o mundo tal como ele é. Andem por aí e descubram a utilidade das
coisas!
Deus deixara o mundo incompleto, afirmava. A tarefa do homem era compreender como ele funcionava, trabalhar nele e
terminá-lo. Creio que era por isso que odiava tanto os missionários, por estes ensinarem as pessoas a acomodarem-se às
fadigas terrenas. Para o pai, não existiam fadigas que não pudessem ser aliviadas por um par de rodas, ou engrenagens, ou por
um sistema de roldanas.
Porém, em vez de tentar melhorar o mundo, a maior parte das pessoas limitava-se a melhorar Deus. «Deus – o Deus já
morto – fora um inventor apressado e igual a muitos que se podiam encontrar nos serviços de registo de patentes. Sim, tivera
uma grande ideia ao fazer o mundo, mas pusera-o a funcionar e fora-se embora para outro lado antes de o deixar a funcionar
com perfeição. Deus era como o rapaz que põe o pião a girar e depois sai do quarto, deixando-o a cambalear. Como é que se
pode adorar uma coisa dessas?», perguntava o pai. «Conheço esse tipo de aborrecimento, mas combato-o.»
O pai olhava para o rio e dizia: «Vamos endireitá-lo.» Durante todo o tempo em que havíamos arrastado o gelo até ao
cimo da montanha não falara de outra coisa a não ser do carro suspenso, para passageiros e carga. Continuava a falar em abrir
um furo para extrair o calor do interior da Terra. Por vezes as suas próprias invenções revelavam-lhe coisas inesperadas, a
que chamava «revelações extemporâneas». Um exemplo destas deu-se com um dos tubos do «Menino Gordo», que se
encontrava a descoberto. O tubo recolhia gotas de água da humidade do ar. O pai acrescentou-lhe mais tubos e tornou o
conjunto num condensador que pingava para dentro de um tanque. Era a água mais pura que se podia imaginar, e agora gabava-
se de ser capaz tanto de produzir água como de a congelar … com o fogo! Não esperara que aquele tubo frio se comportasse
assim. Fora-lhe revelado. Passou a chamar-lhe «Tendão do Jarrete.»
Nós, garotos, dissemos que se o pai visse «O Acre» ou teria um ataque ou se riria de nós. Era um perfeccionista. Não me
podia esquecer da maneira como, na montanha, dera um pontapé no abrigo que estava a construir e se sentara no chão ventoso
durante toda a noite dizendo: «Quero dormir na minha própria cama!» Preferia sofrer a dormir numa cabana malfeita e, por
vezes, olhava para a comida dos zambus ou para o wabool da Sra. Kennywick e dizia: «Preferia morrer a comer isso.» E
falava a sério.
Não ousávamos dizer-lhe que era possível comer o que crescia nos matos e dormir no chão. As suas armadilhas para
mosquitos, as «Caixas de Insectos», convidavam os insectos a entrar por buracos de onde não era possível escaparem-se e
mantinham Jerónimo livre deles. No entanto, não eram necessárias redes ou «Caixas de Insectos» se soubéssemos da
existência do sumo de bagas que actuava como repelente. «Com medo de uns quantos insectos?», perguntava de vez em
quando, e outras vezes dizia: «Não se trata apenas de não os querer na minha pele, não os quero nem sequer a três quilómetros
de mim.» Podíamos ter-lhe dito que havíamos aprendido que a maior parte do trabalho era inútil, e que não era preciso uma
casa de banhos quando se tinha uma lagoa ou um rio. As cenouras cultivadas pelo pai eram saborosas, mas as iautias bravas
eram quase tão boas e não davam trabalho. Declarara fora da lei as bananas e a mandioca. «Fazem-nos preguiçosos e não
gosto das implicações das bananas.» E o gelo … era uma maravilha, mas como quase todas as maravilhas, a única coisa para
que servia era para nos maravilhar-nos com ele.
Quanto mais pensava no assunto, mais me convencia de que nós, garotos, permanecíamos em Jerónimo por causa d’ «O
Acre». Jazia na selva entre as montanhas e o rio, no fim de um trilho sem saída, aberto pelos nossos pés. Era invisível, era
seguro.
Passávamos todas as tardes n’ «O Acre» e tínhamos pena de não poder lá dormir. Queríamos provar ao pai que isso era
possível, mas, no fim de cada dia, empurrávamos os arbustos para o lado e caminhávamos de regresso a Jerónimo e ouvíamos
o barulho das bombas a chapinharem na água antes de vermos as casas. O pai estaria a sorrir porque no fresco do fim da tarde
limpava o «Menind’ Gordo» e dava gelo aos crioulos do rio ou aos zambus que haviam trabalhado por ele. Ali estava o pai
com as grandes pinças para gelo e as roldanas, içando grandes blocos de gelo fumegante do interior do seu gigantesco
armário, com a fornalha incandescente.
Como sempre, quando regressávamos perguntava-nos:
— Por onde andaram? A fazer asneiras no mato?
Respondíamos que a nadar ou a passear.
— Olhem bem para eles, gente! Nós aqui a matarmo-nos com trabalho e eles a passearem à volta do quarteirão.
A «gente» era o Sr. Haddy, os zambus, o Sr. Peaselee e o Sr. Harkins. Eram ouvintes, pois nunca se calava e andava
sempre a falar-lhes dos seus planos. Naqueles dias era a respeito de congelar peixe e enviá-lo para o interior, onde nunca
ninguém vira os peixes grandes do rio. «Bagres de um metro! Podiam modificar-lhes a maneira de viver, em especial se
tivessem uma mente aberta e ainda não houvessem caído nas garras de um ignóbil moralista a pregar-lhes o fogo do Inferno!»
Essa era uma das queixas frequentes. Os Maywit não haviam regressado. O pai dizia que ficava como louco.
— E o mais curioso a respeito do fogo do Inferno, é ser um fogo imaginário! O do «Menino Gordo» não é! Tem mais
veneno lá dentro do que cem Infernos! Ah, eu podia ensinar uma ou duas coisas a esses missionários a propósito de
combustões químicas. Se vissem o hidrogénio e o amoníaco à solta passavam a acreditar em mim, em vez de num Deus morto!
Se o «Menino Gordo» rebentasse a tampa …
Aquelas conversas habituais em Jerónimo faziam d’ «O Acre» um lugar mais feliz. O acampamento era o nosso segredo e
tínhamos aprendido coisas que nem sequer o pai sabia.

O meu aniversário veio e foi-se … pelo menos o mês. Os meses tinham nomes, mas os dias não tinham números. Fizera
catorze anos mas ainda era mais pequeno do que queria ser. Agora, a estação seca abatera-se sobre Jerónimo. Era tudo pó e
folhas secas.
O rio começara a ser cada vez mais estreito e cheirava mal. Tornou-se num fio de água entre profundas fendas abertas na
lama borbulhenta, com as moscas a zumbirem por cima e com uma cobertura de pêlos verdes. Roncava e saltitava junto do
atracadouro. Um pouco para montante transformara-se num pântano e já não se podia ir até Seville. Os nossos barcos estavam
encalhados na lama e as bombas à beira da água paravam muitas vezes por causa do lodo e das ervas que arrancavam. Não
chovia há meses e era capaz de faltar um mês ou mais até que chovesse de novo, afirmou o pai. Agora só fazia pequenas
quantidades de gelo e toda a nossa água potável vinha do condensador do «Menino Gordo», o «Tendão do Jarrete».
Não tínhamos dito nada ao pai podíamos informar que a fonte da cima, à margem coberta de ervas.
A horta de Jerónimo estava verde, produzindo tomates, feijões e milho. Alguns dos pés de milho eram tão altos como os
beirais da casa. Mas as bombas funcionavam mal. O pai declarou que fora um louco em pensar que o rio continuaria a correr
… quando afinal era de tanta confiança como todas as outras coisas deste mundo imperfeito. Voltou a falar na abertura de um
furo, já não o geotérmico mas sim um simples poço até às águas subterrâneas. Quem quer que aparecesse naqueles dias era
posto a trabalhar no poço.
O trabalho era duro e não eram muitas as pessoas dispostas a remover terra em troca de um pequeno bloco de gelo ou de
um saco de sementes híbridas. O pai predisse que os Maywit regressariam em breve e que Jerónimo voltaria a funcionar a
todo o vapor. Há três semanas que dizia aquilo.
— Vou encarregar-te de tomares conta de Jerónimo, querida – declarou um dia, virando-se para a mãe.
— Vais a algum lado?
— Não, mas tenho de pensar no meu poço.
Odiava o rio e o seu cheiro, e só falava do poço. «Vou trabalhar no meu poço», dizia todas as manhãs, e perguntava a
todos os visitantes: «Então, e que vamos fazer a respeito do meu poço?» Ou estava dentro dele ou à sua beira, o rosto
vermelho como um tomate, amaldiçoando o rio e o clima, e tentando inventar uma máquina para cavar. «Digamos que
funcionará de acordo com o princípio do aspirador, mas que possa cavar e sugar ao mesmo tempo … É preciso dar-lhe dentes
e pulmões, equipá-la com garras …»
Queixava-se de que trabalhava com ferramentas do homem das cavernas. «Ah, se eu tivesse máquinas pesadas!» Cavava
ao lado dos zambus e não fazia mais nada. Se houvesse ferrugem no milho, lagartas nos tomates ou podridão nos feijões,
ordenava-nos que tratássemos do assunto. Não aparecia água e continuava a cavar. A tarefa apoderou-se dele como uma febre.
Dizia: «Nunca paro até chegar onde quero.»
De repente encerrou o «Menino Gordo». O soprar e gorgolejar da fábrica de gelo era-nos tão familiar que quando uma
manhã o apagou, foi como ouvir o meu coração a parar. Tive de suster a respiração para escutar. O «Menino Gordo» já não
estava húmido e já não pingava. Parecia ter morrido e também que o pai se tornara mais rígido, mais parecido com a sua
invenção.
— Então, e o gelo? – perguntou a mãe. – Então, e o meu poço?
Assim, o poço tornou-se mais fundo e suficientemente largo para lá estarem quatro homens de pé, manobrando as pás.
Parecia a boca do vulcão do pai e junto dele havia uma pirâmide de terra e pedras «o que prova, se é que é precisa alguma
prova, que mesmo com ferramentas primitivas e um pouco de músculos se pode fazer qualquer coisa de construtivo a respeito
da porcaria de mundo que herdámos».
Continuava a não encontrar água. Deixámos de receber visitantes. O trabalho era demasiado duro. O pai abria o poço e
quase não comia, dizendo: «Se eu tivesse as máquinas …»
As bombas agora forneciam-nos apenas um fio verde de rio quase seco. Precisávamos de regar a horta à mão, deitando
baldes de água para dentro do tubo que a conduzia aos regos. A mãe ficara enterrada até aos joelhos na lama do rio e nós os
quatro, garotos, formávamos aquilo a que o pai chamava «Brigada dos Baldes», passando-os de mão em mão até à margem.
Uma madrugada estávamos na «Brigada dos Baldes» quando a mãe levantou os olhos e disse:
— O Sr. Haddy está com muita pressa.
Corria para fora da selva em direcção ao poço do pai. Nunca ninguém corria para ali, devia ter acontecido qualquer coisa
grave.
— Peaselee diz que há homens no trilho!
Foi o que o Sr. Haddy gritou para dentro do poço. Ficámos à espera. O pai saiu lá de dentro e atirou a pá para o lado.
— Que vos disse eu? São os Maywit.
— Veio a correr para mo dizer.
— Onde é que ele está?
— Continua a correr. Já deve ir em Swampmouth, neste momento. O pai reparou que o observávamos.
— Que ninguém pronuncie uma palavra. Não podemos culpá-los de nada. Estamos satisfeitos por voltarem. Façamos de
conta que nunca se foram embora … pois passaram um mau bocado. Acham que isto aqui é seco? Está encharcado, comparado
com a seca lá de fora. Escutem, o mundo é um lugar terrível para quem tenha saboreado a vida em Jerónimo. Essa pobre gente
vai precisar de toda a nossa simpatia. Sejam simpáticos para com eles. Dêem-lhes algumas ervilhas, ponham-nos a trabalhar.
Temos mais umas mãos para o meu poço!
— Pode ser alguém que queira gelo – disse a mãe.
— Sei que são os Maywit – replicou o pai.
Desta vez, o pai estava enganado. Não eram os Maywit quem vinha pelo trilho.
— Homens – disse a mãe, olhando para cima. Juntámo-nos todos à volta dela. – São três homens, Allie.
— Também estava à espera deles – declarou o pai, mas com uma voz mais fria. – São escravos.
— Então, por que é que trazem armas, pai? – perguntou Clover.
Os zambus pareciam aterrorizados. Um deles disse:
— Cabuzes.
XX

Naquele momento soube o que sentiam as pessoas em Seville, os crioulos do rio, os índios da montanha ou quaisquer
outros que nos vissem a nós, os Fox, a sair da selva. Aparecíamos assim nas suas aldeias, grandes, estranhos e não
convidados. Portanto, merecíamos aquela visita, o que não a tornava mais fácil.
Os três espantalhos vinham vestidos de uma maneira diferente da que tinham na aldeia índia de Olancho, com camisas
sujas de suor, calças imundas e botas. Não os tínhamos escolhido … foram eles que nos escolheram. Era isto o que os
selvagens viam. Avançavam direitos a nós, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Vestidos apresentavam-se ainda
com pior aspecto do que quando estavam quase nus na aldeia. Um deles tinha uma espingarda pendurada no ombro e os outros
dois traziam pistolas nas mãos. Escutavam e pestanejavam, um pouco estúpidos e um pouco zangados, como se andassem à
caça de gatos.
O rosto do pai contorceu-se, não de preocupação. Fazia cálculos rápidos na sua cabeça, somando, subtraindo, examinando
probabilidades, fazendo a álgebra do que podiam querer. Reconheci as roupas dos homens. Eram as que vira a serem lavadas
no rio pelas mulheres índias. Os zambus espreitavam da beira do poço com os seus olhos redondos de escravos.
— Diz-lhes para guardarem as armas, Allie.
— Deixa-me tratar do assunto. – O pai foi ao encontro dos homens e perguntou: – Então, o que há?
Os homens sorriram-lhe mas mantiveram as mãos firmes. Olharam em volta para Jerónimo, mantendo-nos silenciosos ante
as armas. Não usavam insígnias mas as suas roupas eram todas iguais e assemelhavam-se a uniformes. Os cabelos compridos
e as barbas faziam com que parecessem irmãos. Lembrava-me deles como sendo altos, mas ali não o pareciam … eram da
altura da mãe. Um dos que tinha pistola usava um cinturão com uma grande fivela de latão. Parecia mais inteligente, menos
violento do que os outros dois, talvez por os outros terem falta de dentes. O da espingarda tinha uma ligadura na mão … uma
ligadura suja que só podia estar a tapar uma infecção.
No meio dos índios da aldeia haviam-se mostrado evasivos, quase tímidos … tinham falado connosco em sussurros,
dando-nos comida e avisando-nos contra os índios agachados. Aqui, porém, não ostentavam qualquer timidez, mostravam-se
fortes, como se estivessem habituados a entrar em aldeias e a ocupá-las. Levavam o seu tempo e nem sequer responderam ao
pai senão depois de murmurarem qualquer coisa entre eles.
— Nunca pensámos que viéssemos a encontrá-los. – Quem falou foi o da fivela de latão. Tinha os dentes demasiado
grandes para a boca e foi então que vi que não estava a sorrir. Eram apenas os dentes a separar-lhe os lábios.
— Pois cá estamos – respondeu o pai, sem entoação.
— Quantos são vocês?
— Milhares …
Os homens olharam para trás muito depressa.
— … contando com as formigas-brancas – disse o pai. – Estamos infestados.
— Não gosto destes homens – murmurou-me o Sr. Haddy. – Eh, Lungley …
Mas os zambus haviam desaparecido. Tinham trepado para fora do poço e fugido para a floresta.
— Chegaram mesmo a tempo para o pequeno-almoço – afirmou o pai. – Mexe uns ovos para estes nossos amigos, mãe –
continuou, sempre em espanhol-, que têm ainda uma longa viagem pela frente.
Dirigimo-nos todos para a galeria e aí os homens pousaram as armas. Sentaram-se no chão e comeram ovos e feijões,
enquanto o pai falava das formigas-brancas. Térmitas, dizia, que se tinham metido em todo o lado, na comida, nas plantas, nos
telhados e soalhos das casas. «Estão a comer-nos vivos!»
Era a primeira vez que ouvíamos falar em formigas-brancas, mas ninguém contradisse o pai porque nunca ninguém o fazia.
Os homens escutavam e devoravam a comida. Quando terminaram ficaram a olhar para nós com os rostos pálidos e
magrizelas. A comida não lhes atenuara as expressões, só lhes dera um aspecto ainda mais esfomeado e perigoso.
O homem dos dentes, que já antes falara, afirmou que se lhes acabara a água e que se haviam perdido quando a
procuravam, e que tinham acampado na montanha.
— Sei o que isso é – disse o pai.
A mãe recolheu os pratos e o mesmo homem – era sempre o dos dentes grandes quem falava – declarou:
— O seu marido disse-nos que tinha água e comida. Convidou-nos para virmos para aqui, afirmou que tinha de tudo. Lá em
cima, nas montanhas, não havia nada.
— Estamos no fim da estação seca – explicou o pai. – Estamos a senti-la. Está tudo morto ou a morrer. Não veremos chuva
ainda durante semanas. Mas as formigas-brancas estão a engordar!
Ninguém o fez recordar de que se gabara de Jerónimo ser à prova de térmitas.
— Se as coisas continuarem assim, teremos de começar a comer as formigas.
— Pff! – fez o homem dos dentes grandes: a ideia não lhe agradava.
— Meninos da cidade – disse o pai para a mãe.
Os homens continuavam a respirar com força, como se estivessem zangados.
— Sabem, nesta zona, quando não há chuva, não há nada para comer. Perguntem a quem quiserem. Estamos no fim das
provisões. Há formigas por todo o lado. O rio transformou-se num riacho. Da próxima vez que cá vierem, as coisas serão
diferentes.
— Onde estão os vossos zambus?
— Provavelmente pensaram que vocês são soldados – disse o pai, franzindo o nariz. – Viram os vossos cabuzes.
— Cabuzes? Não compreendemos.
— Arcabuzes … armas. Estão em Mosquitia, agora – explicou. – Não tive tempo para lhes dizer que vocês são amigos. Se
calhar, neste momento, já estão a molhar as setas no veneno, não é assim, Charlie?
Perguntou aquilo de um modo muito casual. Pelo tom de voz percebi o que ele queria que respondesse.
— Sim – afirmei.
— Pregaram-lhes um belo susto! – Agora mostrava-se bem-disposto.
Afastou a cara dos homens e virou-se para o exterior da galeria, onde jazia o rio malcheiroso e quase imóvel. – Para onde
vão?
— Isto aqui é bonito.
— Mas está cheio de formigas! – exclamou, encarando-os de novo. – Não vejo nenhumas formigas.
— Claro que não. Se as víssemos, podíamos matá-las.
— Onde está o gelo de que nos falou?
— Já não fazemos gelo. Olhe para aquele rio … É como um esgoto.
Precisamos de toda a água para as culturas.
O homem que mantivera a conversa disse muito claramente para os outros:
— Não está a fazer gelo.
— Já quase não há rio – continuou o pai. – No entanto, ainda é o suficiente para uma piroga. Este é o Bonito, corre para o
Aguan. Posso desenhar-lhes um mapa. Estamos a um dia da costa, vão gostar de lá estar.
— Gostamos de estar aqui.
— Quem me dera ter lugar para vocês, mas a maior parte das casas está infestada. Formigas. Têm sorte, não encontrarão
formigas junto da costa.
— Há uma casa vazia aqui ao lado.
A casa abandonada pelos Maywit. Já a tinham visto.
— Essa casa não tem telhado – declarou o pai.
— Está enganado.
O pai virou-se para o Sr. Haddy e disse:
— Mandei-te deitar abaixo aquele telhado e o soalho, Figgy. Pega no teu pé-de-cabra e ao trabalho … quero deitado
abaixo tudo o que estiver podre.
Logo a seguir ouvimos o barulho provocado pelo Sr. Haddy ao desmantelar a casa dos Maywit … o estalar e o chiar das
tábuas, como se estivessem a matar porcos.
— Por favor, desculpem-nos – prosseguiu o pai. – Temos trabalho para fazer, não estamos aqui em férias.
Os homens seguiram-no para o exterior.
— O meu poço – disse o pai. – Terão de ficar cá em cima, não autorizo armas dentro do meu poço.
— Arcabuzes … cabuzes – murmurou o homem da espingarda, sorrindo-se. – Vamos dar por aqui uma volta – anunciou o
dos dentes grandes.
— Vão até ao rio. Verão lá uma piroga. É vossa … remem até à costa. – Não é preciso.
— Isso é o que dizem as formigas.
Os homens encolheram os ombros.
— Vou dizer-lhes um segredo – continuou o pai. – Somos auto-suficientes. Podemos alimentar-nos, mas não podemos dar
de comer a mais ninguém. É por isso que lhes sugiro que sigam o vosso caminho.
— Estudaremos a sua sugestão.
De repente ocorreu-me que os homens falavam espanhol de um modo que eu nunca ouvira. Era um espanhol polido,
algumas frases eram inteiramente novas para mim e não faltavam palavras. Eram homens educados que pareciam ali
deslocados, num sítio onde o espanhol de toda a gente era uma mistura de crioulo e inglês. Não podia ouvi-los a falar um
espanhol tão perfeito sem suspeitar de que eram desonestos. Mas … essa era uma das suspeitas do pai, que desconfiava
sempre das pessoas educadas. Percebi que odiava aqueles homens.
— Bom, então vou fazer-vos outra. Guardem esses cabuzes. Põem-me nervoso. Não lhes vou perguntar onde os
arranjaram. – afirmou o pai, cuja paciência se esgotava. – Não vim para aqui para ficar a olhar para o cano de uma arma. E
não preciso de mais um buraco na cara, está bem? Vêem algumas fechaduras nestas portas? Algumas vedações? Não? Isso é
porque este é o mais pacífico lugar da Terra. Quero conservá-lo assim.
Os homens limitaram-se a sorrir e a segurar melhor nas armas.
— Pega numa pá, Charlie, e salta cá para dentro.
Descemos os dois para o poço. O pai murmurou-me:
— Pensei que aqueles cavalheiros eram prisioneiros dos índios. Parece-me que era ao contrário. Dá-me um pontapé,
Charlie, sou um parvo!
Cerca de meia hora depois ouvimos um barulho por cima de nós.
O Sr. Haddy descia ao poço.
— A casa dos Maywit está arrumada, dei cabo dela. Era velha mas não vi nenhumas formigas.
O pai estava de costas para nós, com uma picareta nas mãos. Cavava e pensava.
— Não gosto daqueles amigos, pai – insistiu o Sr. Haddy.
— Mais baixo, Fig.
— Estão sentados debaixo do guanacaste.
— Está bem. Rebenta com o telhado e o soalho da tua casa e diz ao Harkins para fazer o mesmo. Se não encontrares o
Peaselee, derruba a casa dele. Estamos infestados. Vamos queimar essas casas. Charlie, pega no Jerry, arranja um saco de
caca de galinha e espalha-a no armazém frigorífico. Molhem-na até que cheire mal. Fechem a entrada do celeiro com tábuas.
Digam à mãe o que andam a fazer …
Deu-nos mais instruções e quando terminou referira-se a todas as construções de Jerónimo, excepto uma.
— Então e o «Menino Gordo»? – perguntei.
— Não lhe toques. Certifica-te de que a fornalha está apagada.
— Então, se as formigas comerem tudo e deitarmos abaixo as casas, não há lugar para os nossos amigos ficarem – afirmou
o senhor Haddy com um dos seus sorrisos de coelho.
— É mais ou menos isso – retorquiu o pai. – Vou acabar com esta situação de um modo pacífico.

Quando chegou a hora do almoço, Jerónimo estava diferente. As casas de Haddy e Maywit não tinham nem telhado nem
soalhos, o alpendre de Peaselee fora desmantelado e partido, o celeiro entaipado, o armazém-frigorífico encerrado e sujo de
esterco, a casa dos banhos também encerrada e suja de esterco, as bombas desmontadas … Tudo aquilo destruído, afirmava o
pai, «no interesse da fumigação». A nossa casa ainda estava inteira, tal como o «Menino Gordo», mas o resto ou fora aberto
para o céu ou entaipado.
— É a guerra contra as formigas.
O Sr. Peaselee e o Sr. Harkins não voltaram, o que era provavelmente uma bênção porque as suas casas estavam num
pobre estado e ficariam preocupados quando as vissem. A mãe disse que Ma Kennywick fora para Swampmouth para ficar
com a irmã … as marteladas e pancadas eram mais do que podia suportar. Os zambus mantinham-se fora das vistas, mas eu
sabia que apesar de não os podermos ver eles nos observavam por entre os ramos e as folhas.
Fora uma atitude drástica, aquela de o pai se decidir a deitar abaixo a maior parte das casas habitáveis, mas não era
surpreendente e nenhum de nós se preocupava. Já sabíamos que a construção de uma casa podia ser muito rápida, já tínhamos
visto como ele o fazia. O pai dizia frequentemente que a criação e a destruição eram mãe e filha. Desmanchara o Little Haddy
peça por peça e depois tornara a montá-lo dando-lhe uma forma mais esguia, para poder navegar rio acima. Confiávamos na
sua rapidez e habilidade … mas depois de tantos meses de trabalho para o pôr a funcionar, quem diria que Jerónimo podia ser
silenciado e transformado num monte de sucata no espaço de uma manhã?
Os três homens desapareceram, metendo-se na selva com as armas.
Voltaram para almoçar.
O pai estava agora bem disposto. Recebeu-os calorosamente e encheu-lhes os pratos de comida.
— Se partirem logo depois do almoço – disse – ainda poderão chegar a Bonito Oriental. Há aí uma loja chinesa, dos
irmãos Ling. Têm todo o género de comida enlatada e talvez também rum. Bebidas e música de rádio. Esse é que é um bom
sítio para vocês, rapazes da cidade …
Encontrava-me num canto da galeria com Clover, April e Jerry. – Que fez o pai com as casas? – perguntou Clover.
— Rebentou-as – respondeu Jerry. – Deitou-as abaixo. O Charlie e eu pusemos caca de galinha no armazém-frigorífico.
— Está pior do que quando aqui chegámos – afirmou April.
— Quero ir para «O Acre» – disse Clover.
— Não podemos – expliquei.
— O Charlie está com medo.
— Não estou nada. O pai não nos deixa, quer que o ajudemos.
— Aqui não há nada para fazer, está tudo estragado.
— Haddy pensa que esses homens são criminosos – declarou Jerry e que vão matar alguém com as suas armas.
— Não nos podem matar se estivermos n’ «O Acre» – disse Clover.
— Não nos encontrariam.
— Se o tentassem, caíam nas armadilhas – acrescentou April.
Era um dia óptimo para irmos para o acampamento e havia mais água na nossa lagoa do que em Jerónimo. Daria tudo para
passar lá a tarde a nadar. Queria sair daquele lugar, para depois regressar e descobrir que os homens já lá não estavam e que
as casas haviam sido reconstruídas.
Quando disse isto aos garotos, a mãe repreendeu-nos:
— Dizer segredos não é boa educação.
O pai estivera a falar com os homens. De repente levantou-se e declarou:
— Estes cavalheiros querem saber como perdi o dedo! É uma história interessante!
Debruçou-se sobre os homens e começou a falar em espanhol.
— Foi na nossa primeira noite aqui, em Jerónimo. Estávamos enterrados no meio desta selva, convencidos de que nos
tínhamos preparado bem, pois trazíamos mosquiteiros, sacos de dormir, tendas, tal como verdadeiros guerrilheiros. Fomos
todos para a cama e adormecemos. Tive o meu sonho do costume, o sonho da campainha da porta, o pesadelo do botão da
campainha. Encontrava-me à porta do diabo, tentando entrar. Carregava no botão da campainha, ou assim pensava, mas na
verdade colocara o dedo no mosquiteiro e fizera-lhe um buraco, fiquei com o dedo de fora. De manhã, acordei e tentei puxá-
lo. Só que não tinha lá dedo nenhum, apenas o coto! Durante a noite houve qualquer coisa que me comeu o dedo, um rato, um
morcego, um armadilho, um pecari. Temos por aqui muitos bichos.
Mostrou o coto do dedo aos homens e prosseguiu:
— Isto foi o que restou! Ainda bem que não enfiei toda a mão cá para fora … pois nesse caso agora usaria um gancho!
Os homens examinaram o coto do dedo. Não era capaz de dizer se tinham ou não acreditado, mas o pai contara a história
muito bem, e de um modo vigoroso.
— Olhem para as marcas dos dentes! À noite, este sítio fica cheio de criaturas! Isto já não são as montanhas … aqui é a
selva, rapazes!
— Já conhecemos a selva.
— Mas não esta … Não estamos nem em Olancho nem em Tegoose.
As gentes daqui são descendentes de piratas e de canibais das Caraíbas. Aranhas do tamanho de cachorros? Abutres que
nos limpam os ossos? Isto é a costa de Mosquito! É por isso que vos aconselho a descerem o rio, para onde as portas e janelas
possam fechar-se. Se alguém adormecer no exterior nesta zona, de manhã não resta nada … nem os ossos.
O homem dos dentes grandes virou-se para os amigos.
— Por exemplo, onde é que vão dormir esta noite? – perguntou o pai. Não responderam.
— É melhor que seja dentro de casa e longe daqui, ou arriscam-se a perder mais do que apenas um dedo!
Trabalhámos durante toda a tarde, cavando no poço, fechando as casas e cheios de vontade de ir para «O Acre», enquanto
os três homens conversavam uns com os outros. Estavam inquietos e observavam o nosso trabalho. Ostentavam olhos nervosos
em rostos doentios e moviam-se como os lagartos, aos solavancos, parando sempre que queriam olhar em volta.
Cada vez que olhavam para o pai este levantava o coto do dedo e afirmava:
— Daqui a pouco será escuro!
Afastavam-se, ignorando-o. Aquela indiferença irritava o pai.
— Estou a dar-lhes uma oportunidade – declarou, mas num tom quase implorador. – Ofereço-lhes a minha canoa. Seria
bom que se fossem embora, aqui escurece muito depressa.
Os homens brincavam com Clover e April por debaixo da guanacaste. – Onde vamos nós dormir, pai? – perguntou o Sr.
Haddy.
— Há uma cama para ti – respondeu o pai, gritando a seguir para os homens: – Afastem-se dessas crianças!
Pegou num grande martelo e caminhou para eles, pelo meio das casas rebentadas ou encerradas.
— Não me importo que fiquem aqui, mas não ponham as mãos em cima dos meus filhos.
— São crianças muito inteligentes.
— Têm pais inteligentes – replicou.
— Sim. Contaram-nos todas as coisas maravilhosas que o senhor consegue fazer.
— Eu não contei nada, pai. Foi a April – disse Clover.
— A Clover falou do teu furo para tirar energia geotérmica dos vulcões – afirmou April.
— Aquilo é um poço – explicou o pai. – Esta estação seca transformou-nos a todos em zambus. Lutamos por uma gota de
água. Calem essas bocas, garotas, e façam qualquer coisa de útil.
Os homens afastaram-se para o rio. Não podíamos vê-los, pensámos que se tinham ido embora, mas voltaram ao
crespúsculo. Era a hora dos mosquitos e de os morcegos começarem a voar. Os homens davam palmadas nas cabeças,
esfregavam os tornozelos e abriam buracos nas camisas, de tanto se coçarem.
Durante a sua ausência, a disposição do pai modificou-se. Ficou pensativo e mastigou o charuto. Não falou com nenhum de
nós mas andou de um lado para o outro a resmungar. Levou as ferramentas para junto do «Menino Gordo», subiu a uma escada
e martelou qualquer coisa junto da abertura superior. Porém, quando voltou a ver os homens, começou a rir-se. Já escurecera,
o Sr. Haddy trouxe uma lanterna do barco. Os insectos esvoaçavam em torno do vidro da lanterna. Fiquei a olhar, junto de
Jerry.
— Sou um parvo! – exclamou o pai, ainda a rir-se. – Vocês disseram que gostavam disto aqui e eu não vos acreditei.
Agora já estou convencido de que falavam a sério. Vão cá passar a noite, não é?
— Sim.
— Não me admirava que se decidissem a ficar duas noites ou mais. Talvez até chegarem as chuvas e começarem a semear
… e ainda faltam muitas semanas.
— Ficaremos até estarmos prontos. Depois partimos.
Ao dizer aquilo, o homem tinha uma cara de insecto, um daqueles que se instalam na vagem de um feijoeiro e abrem
caminho até ter comido todo o interior. Os insectos agitam-se um pouco, mas não têm mais expressão do que um par de
alicates. Os homens tinham esse aspecto … lábios como pinças e olhos como rebites. Insectos.
— Não sou nenhum selvagem – disse o pai. – Não vou apoderar-me de vocês e fazê-los prisioneiros. A escolha foi vossa.
Agora já é escuro, já não podem ir para lado nenhum. – Pegou na lanterna e colocou-a junto dos rostos deles, levando os
insectos a aproximarem-se dos seus olhos de insectos. Os homens olharam para os mosquitos e para as borboletas nocturnas. –
Seria uma idiotice irem-se embora agora. Não temos muito, mas o que temos é vosso. Esta infestação …, Olhem, está uma
térmite aqui no vidro, estão a ver-lhe as mandíbulas?.. Deixou-nos com poucas casas, mas podemos dar-lhes comida e abrigo

— É um homem muito sensato.
— Faço o que posso.
— Ele compreende.
— Quando vos vi lá em cima – era uma aldeia tuaca, não era?-, pensei que fossem prisioneiros.
Os homens sorriram e deram palmadas nas faces e orelhas, para afugentar os insectos. Com a lanterna naquela posição, o
pai estava a atormentá-los.
— Pensei cá para mim: «São escravos!»
Os homens riram-se e continuaram a afastar os insectos.
— Mas vocês eram hóspedes daqueles índios – continuou o pai.
Agora são nossos hóspedes. Olhem … – Um mosquito pousara no braço do pai. Deixou-o lá ficar durante um momento e
depois deu-lhe uma palmada. Mostrou aos homens o mosquito esmagado e a mancha de sangue. – Morto! Não tenho nenhuma
pena dele … aquele sangue não é do mosquito, é meu!
Os homens recuaram. O pai limpara o sangue com o coto do dedo.
— Isto é Mosquitia! – exclamou.
— Tem razão, há muito mais bichos aqui do que nas montanhas de Olancho.
— A costa de Mosquito está cheia de surpresas. É por isso que gostamos dela, não é verdade, senhor Haddy?
— Vou dormir no meu barco, pai.
— Está bem, Figgy. Charlie, leva o Jerry para casa ou são comidos vivos.
Encaminhámo-nos para casa, que era agora o único edifício ainda intacto em Jerónimo. Jerry pegou-me na mão … Estava
preocupado, tinha a mão húmida. Agitava a cabeça para afastar os mosquitos.
— E os senhores, cavalheiros, podem usar a casamata.
— De que casam ata está ele a falar? – perguntou Jerry, pois o pai dissera a palavra em inglês. – Não temos nenhuma
casamata.
A lanterna agitava-se, o pai conduzia os homens para o «Menino Gordo». No círculo de luz cheio de traças, colocou a
escada junto da parede para dar acesso à abertura superior.
Alguns minutos depois o pai encontrava-se junto da porta de rede da galeria, falando enquanto a abria.
— Querem comida. Mete-a neste cesto, mãe, que eu vou lá levá-la.
A mãe preparou uma vasilha com wabool e depois arranjou doses de feijões e arroz, enrolou-as em folhas de bananeira e
meteu-as num cesto.
— Vamos ter de os aturar – comentou a mãe.
O pai mantinha um rosto inexpressivo, o longo nariz queimado pelo sol. Olhava para o chão, onde comíamos. Era como se
tivesse esgotado todas as suas emoções habituais durante aquele confuso dia e já não lhe restasse nenhuma. Levantou os pés e
andou de um lado para o outro, pousando-os a direito como um pato.
— Ter de os aturar? – perguntou. – Não temos de aturar ninguém. Se eu acreditasse nisso, tínhamos ficado em Hatfield. –
A sua voz não tinha entoação e continuava a andar de um lado para o outro. – Ninguém com o mínimo de miolos tem de aturar
ninguém para sempre, ou tem de suportar um minuto de opressão. Já provámos isso, mãe. Todos nós escolhemos os nossos
próprios «vasos-da-trovoada», sentámo-nos neles e aceitámos as consequências.
A mãe sorria.
— «Vasos-da-trovoada» – explicou o pai – era o que costumávamos chamar aos penicos, no Maine.
Já passava da meia-noite mas ainda fazia tanto calor que as árvores e as ervas continuavam cheias de insectos a zumbir.
As rãs coaxavam no que restava do rio e conseguia ouvir a corrente a marulhar contra os juncos. Estes foram os ruídos que
ouvi segundos depois de acordar. O pai colocara a mão sobre a minha cara. Naquela escuridão, pensei que fosse um dos
homens que fora ali para me estrangular.
— Calça os sapatos e segue-me.
Não tínhamos luzes, mas, no entanto, na clareira havia o luar suficiente para conseguir ver as casas vazias e as pilhas de
madeira arrancadas de telhados e soalhos. Jerónimo fora assim muitos meses antes, quando estávamos a construí-la … estacas
avermelhadas numa cratera vazia e o estalar das tendas na selva.
O pai transportava debaixo do braço uma grossa tábua e nada mais. Era uma arma desajeitada, se é que se tratava de uma
arma. Atravessámos o armazém-frigorífico, onde pairava um cheiro a caca de galinha. O pai ajoelhou-se na erva e respirou
fundo várias vezes. Parecia contar as aspirações do ar.
— Dei-lhes todas as hipóteses de se irem embora. Até lhes ofereci a minha canoa. – Esmagou um mosquito e mostrou-me a
mancha negra no dedo, como fizera antes. – Não tenhas pena dos insectos. Este é o meu sangue.
Acenei que sim, tinha medo do barulho que a minha voz pudesse provocar.
— Mas eles recusaram, tu ouviste-os. Estão a planear agarrarem-se a nós, tal como se agarraram àqueles índios. Lembras-
te daqueles pobres e patéticos homens, sentados no chão com os malucos dos cães? Charlie, os índios é que eram os
prisioneiros!
— Pareciam assustados.
— Ah, sim? – O pai baixou a cabeça. – Não costumo enganar-me muitas vezes, mas quando o faço é a sério.
Aquilo era uma confissão. Não fui capaz de pensar em nada para lhe dizer, que lha facilitasse.
Agora, olhava para «Menino Gordo». Encolheu os ombros e na sua antiga voz, rouca e trocista, que utilizava quando me
queria pôr à prova, disseme:
— És capaz de trepar aquela escada e enfiar esta tábua nas dobradiças da porta lá de cima, sem fazeres ruído?
— Penso que sim.
— É melhor teres a certeza, Charlie, porque se acordas aqueles insectos, são capazes de começar aos tiros.
Entregou-me a tábua, que tinha um perfume doce, um aroma a nozes assadas … fora acabada de serrar.
— Podes fazer com que nos matem a todos – insistiu. Queria que eu largasse a tábua e fugisse. – Bom, toca a trepar.
Aproximámo-nos da escada e o pai segurou-a. Subia mesmo junto dele e recebi a onda de calor vinda do seu corpo, o
cheiro das suas preocupações, que era como um vapor de sangue a pairar no ar. A seguir fui arrefecido por uma ligeira brisa
quando atingi o meio da escada. Ainda bem que estava escuro, não podia ver o chão com clareza, apenas manchas de luar,
como rolas a comerem na relva, e pedaços de brilho acinzentado nas árvores. Tinha os dedos da mão livre muito brancos,
tremiam nos degraus.
Perto da porta superior, imaginei que podia ouvir os homens a ressonar no interior do «Menino Gordo», na plataforma
mais alta, no meio da confusão de tubos. Meses antes vira aqueles tubos e reservatórios e pensara ter tido um relance da mente
do pai. Não podia separar uma coisa da outra e agora parecia-me terrível que aqueles intrusos ali estivessem, malcheirosos, à
espera, e recusando-se a partir. Homens que o pai odiava haviam entrado naquele lugar privado.
Havia dobradiças de metal fixas na ombreira da porta. O pai devia tê-las colocado naquela mesma tarde, pois eu nunca as
vira lá. Em Jerónimo não havia dobradiças, aquela era a primeira.
Levantei a tábua, encostei-a à porta junto das dobradiças e fi-la deslizar. Encaixava perfeitamente. Porém, assim que
acabei de encaixar a tábua, compreendi até que ponto se tratara de um gesto final. Selara a porta … barricara-a, diria o pai.
Sentia as pernas fracas e comecei a oscilar. Desci a escada muito depressa, sempre à espera de ouvir um estrondo e tiros.
— Afasta-te.
Desencostou a escada da parede do «Menino Gordo» e pousou-a deitada sobre a erva. A seguir encostou a boca à minha
cabeça.
— Tu não subiste aquela escada.
O seu bafo escaldava-me a orelha.
— Não fechaste aquela porta.
Pegou-me no braço e apertou-o.
— Não há fechaduras em Jerónimo.
Apertava-me o braço com tanta força que pensei que o osso se quebraria. Puxava-me para a fornalha. Não tínhamos
sombras.
— Quero que faças um teste aos teus olhos. Creio que são tão bons como os meus. Aposto que consegues ver o mesmo que
eu. Olha para ali.
Ainda a segurar-me o braço com a mão esquerda, fez um movimento com a outra mão. Para lá do coto do dedo estava a
fornalha.
— Alguém deixou o lume aceso – declarou.
Não havia lume nenhum.
— Não consigo vê-lo – afirmei. Fiquei com a mão adormecida, ele apertava-a com toda a força.
— Olha – disse, acendendo um fósforo e colocando-o no monte de aparas. Estava tudo preparado … aparas, raminhos
secos, ramos maiores e troncos cortados por cima de tudo o resto. – Alguém acendeu o fogo … e eu disselhes para não o
fazerem.
— Sim.
Largou-me mas não consegui sentir nada naquela mão. Era como se, no escuro, ma tivesse arrancado.
— Nada de fogos, disse eu! – acrescentou, com um rosto selvagem.
As aparas de madeira deviam estar embebidas em óleo, porque fizeram um ruído característico quando se incendiaram e
puseram a arder os troncos que estavam por cima, num crepitar mais alto do que os sussurros do pai. O fogo rugiu contra os
tijolos quando o pai fechou a fornalha. Ouvia-o na chaminé, bem assim como os estranhos ruídos dos líquidos a agitarem-se
nos tubos do «Menino Gordo» … arrotos e sons de algo a ser engolido, que naquela noite pareciam muito tristes.
— Vamos ter de deixar que continue a arder. A fornalha está cheia de troncos. Não podemos fazer nada para a apagar. –
Falava mais baixo do que os ruídos à nossa volta. – Foi um diabo qualquer que fez isto.
— Os homens … – mas que podia eu dizer-lhe, que ele não soubesse já? O pai sabia que os homens que lá estavam dentro
iriam ficar congelados. No entanto, queria dizer-lhe qualquer coisa porque estava a vê-los com toda a clareza, esticados e
cinzentos, com gelo nos rostos.
— Começa a contar, Charlie. Quando chegares a trezentos já não haverá homens lá dentro.
Não disse mais uma palavra e conduziu-me para casa em silêncio. Engolia, como se também estivesse a contar. O
estralejar do fogo, os ruídos nos tubos do «Menino Gordo», o estalar das juntas … eram como que o apressado tiquetaque de
uma contagem de tempo.
Antes de chegarmos a casa ouvimos raspar e bater, dentro do «Menino Gordo», coronhas de armas de encontro às paredes.
O pai continuou a engolir e avançou para o «Menino Gordo».
— Se se deitarem, ficarão bem.
As pancadas tornaram-se frenéticas.
— Estão a tentar rebentá-lo.
O pai não se mostrava alarmado, ele próprio o construíra com placas de mogno sobre uma estrutura cintada a ferro. Sabia
muito bem qual a resistência do «Menino Gordo».
Ouviram-se quatro tiros lá dentro, e depois alguns mais, abafados pelas paredes duplas. Nem sequer fiquei com a certeza
de que se tratava de tiros até o pai dizer que os homens disparavam as armas.
— Allie, estás bem? – perguntou a mãe, de pé na galeria, com o seu roupão branco.
O pai respondeu-lhe mas as palavras foram abafadas pelo grande barulho que se seguiu aos tiros … ouviam-se enormes
estrondos dentro do «Menino Gordo», como barris a rebolarem por uma escada abaixo. Os homens encurralados tentavam
abrir caminho derrubando a porta. Dispararam as armas e o metal tiniu quando as balas atingiram os tubos …
— Continua a contagem, Charlie.
Clover, April e Jerry apareceram junto da mãe, na galeria. April chorava e os outros perguntavam:
— Onde está o pai? Que aconteceu ao Charlie?
— Que barulhenta fantochada é esta? – perguntou o Sr. Haddy por detrás de nós, com as roupas de dormir, camisola
interior e cuecas às riscas. Dançava de um lado para o outro com medo.
— Baixa a cabeça, Figgy. Vai tudo correr bem. Uns minutos mais …
— Que estalar é aquele?
— São grilos.
Os barulhos aumentaram de intensidade e ouviram-se gritos como que vindos de um túnel, de homens enterrados vivos.
Isso e o chiar dos tubos. Eu conhecia aqueles tubos … se lhes tocássemos, o metal frio arrancava-nos a pele dos dedos. Toda
a estrutura vibrava. O telhado de zinco chocalhava. No meio da escuridão, aqueles ruídos faziam com que o «Menino Gordo»
parecesse maior do que nunca. Os ecos estrangulados de tantas pancadas, do medo e dos tiros, abriam buracos no ar da noite.
A luta era como um inferno dentro de um imenso caixão, pregado sobre pessoas ainda vivas.
— Estão a estragá-lo … – disse o pai. Não esta, a assustado, mas sim ofendido e zangado. – Não querem deitar-se. Ainda
acabam por lhe fazer algum buraco …
Falava como se tivesse qualquer coisa a estourar dentro da cabeça. Os garotos choravam e o Sr. Haddy continuava a
dançar, enfiado nas cuecas às riscas.
— Não! – gritou o pai, começando a correr.
Foi então que se deu a explosão. Encheu a clareira de luz que me escaldou a cara. Deu cor a todas as folhas, não verdes
mas vermelho-douradas, e embateu nas construções em volta – o armazém-frigorífico, a incubadora, o celeiro-, abalando-as
com chamas pálidas e depois deitando-as abaixo como se fossem de papel. A explosão arrancou o «Menino Gordo» do chão,
rebentou-o e largou-o, fazendo saltar as tábuas como se fossem pétalas, enquanto a bola de fogo saltava para o ar como um
balão.
O pai virara a cara da explosão. Um dos lados da sua cara tinha um ar selvagem, o outro estava negro. Um dos seus olhos
era vermelho.
Fixava-se em mim e era tão brilhante que parecia ir rebentar do sangue acumulado. Tinha a boca aberta. Podia estar a
gritar mas os outros barulhos eram mais fortes.
A explosão terminara mas a sua força ainda fazia agitar as árvores como se estivessem sob uma tempestade. As tábuas que
se haviam soltado ardiam agora, e o fogo trepava pelos canos que lançavam jactos de chamas azuis como um maçarico, tudo
isto no meio de um intenso cheiro a amoníaco, que me picava no nariz e me fazia arder os olhos.
O pai correu em direcção às chamas, depois colocou as mãos sobre a cabeça e correu de novo para junto de nós. Tinha a
boca negra e eu agora já conseguia ouvir o que dizia:
— Sigam-me! – gritou.
Continuámos parados, ninguém mexeu um músculo. – Sigam-me! – repetiu.
A mãe e as crianças correram para ele, abraçaram-no e seguraram-no. Pensei que iam deitá-lo ao chão. Choravam e
tentavam fazê-lo mexer-se, e todos nós ofegávamos no meio dos vapores de amoníaco. «Pai!» e «Allie!», gritavam.
— Vamos todos morrer – gemeu o Sr. Haddy.
— Temos de sair do meio deste veneno – disse o pai, continuando sem se mexer. Perguntei a mim mesmo se estaria ferido.
Tinha a cara arranhada e suja. – Há mais hidrogénio nos tanques, o amoníaco vai cair-nos em cima. Tapem as caras.
Do outro lado da clareira, iluminando o que restava de Jerónimo, o «Menino Gordo» ardia. Não sabia, até àquele
momento, que um fogo tão brilhante pudesse ser tão silencioso. As casas ardiam como se fossem cestos, mas eram as aves que
produziam a maior parte dos ruídos. O fogo passou para a própria clareira e para as árvores em volta. Espalhava-se
rapidamente. O que fazia com que tudo aquilo se parecesse com o fim do mundo não eram nem as chamas nem a luz, mas sim o
cheiro do amoníaco, um cheiro a esgotos podres. Explodiu outro tanque de gás, que provocou uma tremenda ventania de calor
e veneno.
Com gritos terríveis, o pai esfregava os olhos e implorava-nos que o seguíssemos, mas não se movia. Quando o vi assim,
com os olhos vermelhos, comecei a chorar e disse:
— Sei de um sítio …
Comecei a andar e todos me seguiram, e pouco depois já estavam mesmo atrás de mim, empurrando-me ao longo do trilho.
Tudo demorara menos de cinco minutos … e eu ainda estava a contar. A seguir, ouviu-se uma série de choques no escuro,
como portas a bater numa casa sujeita a uma ventosa noite de Verão.
TERCEIRA PARTE – A LAGOA BREWER
XXI

O incêndio do «Menino Gordo» brilhou durante toda a noite por cima da copa das árvores, como um chapéu luminoso. O
cheiro a urina do amoníaco ainda chegava até nós. As chamas traziam Jerónimo para mais perto de nós. As fagulhas que delas
saltavam apagavam as estrelas e substituíam-nas por palhas em fogo, enquanto o fumo encobria os céus.
Encontrava-me sentado no nosso acampamento, «O Acre», torturado pelos mosquitos. Não era capaz de encontrar as bagas
pretas de que nos servíamos para manter os insectos afastados durante o dia. Ali, o fumo de Jerónimo não servia para os
afastar … e não me parecia bem atear uma fogueira tão perto daquela que destruíra a nossa casa e que ainda ardia daquela
maneira violenta e esfomeada com que as chamas consomem as madeiras secas, cuspindo-as para o céu, transformadas em
cinzas. O pai encontrara um dos recantos do acampamento e deitara-se. Dormia como os outros. Não pronunciara uma palavra.
— Vê se dormes, Charlie – disse a mãe, bocejando e, pouco depois, também ela dormia e só fiquei eu acordado.
Sentado no meio daquelas pessoas adormecidas, descobri então como eram longas as noites do pai, pois em geral era ele
quem ficava acordado a vê-las passar. Havia ruídos na escuridão, o estalar de ramos que caíam, os breves estrondos de
árvores que não se aguentavam de pé. Havia os guinchos dos morcegos e, por causa do fogo, algumas aves ainda piavam
baixinho, enquanto outras berravam como clarinetes. Aqueles sons – principalmente os das aves – não pertenciam à floresta,
eram demasiado ásperos, rezingões e irritantes na suave maciez das árvores negras que nos rodeavam.
Aqueles ruídos eram uma desordem, mais audível à noite, e os piores de todos provinham dos lugares mais escuros.
Alguns pareciam súbitos esguichos saídos de um tubo partido. Ouvi a selva a ser rasgada. As criaturas escondidas, e até
algumas árvores, tinham vozes. Lançavam para a noite os seus gritos agudos de medo, amedrontadas pelo fogo que agitava
todo o céu. Estava como cego e o mundo caía à minha volta como gotas de orvalho. Não parecia existir um remédio para o
tranquilizar, ou deter, ou adormecer. Tudo rugia para mim. Foi então que toda a esperança me abandonou e que, perfeitamente
acordado, comecei a preocupar-me. Não se tratava da solidão mas sim de um pesadelo de destruição, de uma gigantesca roda
de aço a girar, sempre a girar, soltando um ruído monótono na escuridão intemporal, espalhando penas e garras …
O pai não se importava com aquele amontoado de ruídos. Noites como esta, que tanto me preocupavam, enchiam-lhe a
cabeça de ideias. Assim, quando a madrugada chegou, já o conhecia melhor e receava-o mais do que quando enfrentara a
inesperada ruína de Jerónimo.
— Deixem-no dormir – disse a mãe admirada por ele ainda estar a dormir, pois nunca o vira mergulhado num sono tão
pesado.
Jazia de lado, enrolado como um porco-espinho, com os braços pousados na cara e os joelhos puxados para cima, dobrado
num molho de resmungados ressonos. As moscas haviam-lhe pousado na camisa e andavam de um lado para o outro sobre as
pregas do tecido, parecendo brincar, imperturbáveis por ele estar tão imóvel.
Ninguém falava, ninguém queria ouvir o que diria quando acordasse. Agora já era dia. Sentia-me enjoado e pequeno, por
baixo das árvores que estremeciam.
Nas madrugadas da estação seca, as folhas pareciam morrer quando o Sol lhes tocava. O orvalho secava nas ervas e as
folhas murchavam, iluminadas como fios de ouro através dos rasgões existentes entre os ramos. Liberta da humidade e da
escuridão, a poeira do chão enchia o ar com um cheiro amarelado a decomposição, adocicado durante a primeira hora de luz.
O Sol nascente aquecia tudo aquilo em que tocava, todas as coisas vivas, endurecendo-as e doirando-as com a morte. Havia
belas moedas douradas nas árvores brilhantes e arbustos inteiros de ressequidos flocos de ouro. Maio Sol aparecia por cima
dos ramos mais altos, tudo n’ «O Acre» ficava brilhante e morto em volta da lagoa negra.
Esperámos, quase sem respirar, que o pai acordasse. Passei pelas brasas e observei as aranhas junto da água, o modo
como reparavam as teias para apanhar uma mosca que se debatia, antes de caírem sobre o insecto, enrolando-o como a uma
múmia. Penduravam as moscas embrulhadas em fios num dos cantos mais altos da teia, tal como os índios penduravam o milho
e os pimentos, para secarem.
— Pobre pai – murmurou Clover.
— Os seus sarilhos quase o mataram – comentou o Sr. Haddy.
— Agora estamos bem – disse a mãe. – O Charlie salvou-nos.
— Isto não é do Charlie. É «O Acre». Pertence a todos nós – declarou Jerry. – Os garotos dos Maywit ajudaram-nos a
construir os abrigos … e esse parvo é que fica com os créditos!
— Vocês não sabiam que fazer a noite passada – repliquei. – Estavam com medo.
— Eu não!
— Pois eu estava! – disse o Sr. Haddy. – E rezava. Vi a morte à minha frente. Foi pior do que o Inferno dos pregadores.
Prefiro enfrentar tufões e tempestades em vez daqueles fogos. Vi diabos. Vi os espíritos maus a dançarem. Estava com tanto
medo que até me sentia satisfeito por morrer.
— Que aconteceu àqueles homens, Ma? – perguntou Clover.
— Foram-se embora.
— Se não foram, então de certeza que vamos ter sarilhos! – acrescentou o Sr. Haddy.
— Vi-os irem-se embora – afirmei.
— Não penses nisso, Charlie – a mãe abraçou-me. – Estamos a salvo.
O teu pai vai ficar muito grato quando acordar.
— Que está o pai a fazer!? – inquiriu April.
O seu sono deixava-nos indefesos. Impedia-nos de nos movermos.
Enquanto continuasse ali deitado, não podíamos partir. Foi então que nos recordámos do importante que ele era para nós.
Só o tínhamos conhecido acordado, era assustador vê-lo tão imóvel. Se morresse, estávamos perdidos.
O Sol, agora por cima das nossas cabeças, queimava-lhe as costas. As pessoas a dormir libertam um cheiro subterrâneo,
um cheiro a sujo, a comida, a suor e a ferimentos … tal como eu imaginava que os cadáveres cheiravam, um odor a adubo
aquecido. O pai permanecia imóvel. Podia estar a recuperar de todas as noites que passara acordado, mas parecia, e cheirava,
a morte.
— Ma, vamos morrer? – perguntou April.
— Não sejas parva – respondeu a mãe.
Encontrou os nossos cestos e ajudou-nos a apanhar iautias, e goiabas e papaias bravas. Louvou o nosso acampamento,
disse que fora um bom trabalho que nos salvara as vidas.
Ao ver as iautias, o Sr. Haddy perguntou:
— Vocês, rapazes, gostam de iautias? A minha mãe também as prepara! O pai virou-se e pôs-se de pé num salto.
— Vamos embora – declarou, mas caiu, de imediato, de joelhos. Estávamos no princípio da tarde. Dormira quase treze
horas mas ninguém lhe mencionou esse tempo. «Mentirosos, vigaristas, degenerados que dormem até ao meio-dia …» Eram
algumas das pessoas a quem mais odiava. Sempre nos dissera que um sono profundo era uma forma de doença e censurava-nos
quando dormíamos demais.
Sentou-se na erva dourada e pousou as mãos no colo.
— Para onde é que estão a olhar?
Tinha uma voz sem entoação, monótona, diferente, como se estivesse drogado, e falava num tom baixo, quase sem mover
os lábios. Aparentava estar muito cansado, mas, no entanto, vira-o dormir profundamente durante toda a noite.
A mãe ajoelhou-se e tocou-lhe no rosto. – Tens o cabelo chamuscado – afirmou.
Tinha as sobrancelhas eriçadas, a barba e as pestanas queimadas, o que lhe dava uma expressão espantada. Uma das faces
estava rosada e sulcada, a que apoiara no chão para dormir. Um dos olhos estava mais vermelho do que o outro. Endireitou o
boné de basebol.
— Tive uma noite terrível, mal consegui dormir.
— Já tenho visto cães a agitarem-se mais durante o sono. Estava a dormir como uma pedra, não era assim, Ma?
— Não tenho paciência para mentirosos, logo pela manhã – respondeu o pai.
A seguir fungou e ficou alerta, como se acabasse de ouvir qualquer coisa. O cheiro a fumo e a amoníaco era ainda muito
forte, misturado com o de bambus queimados e chapas quentes. O pai suspirou e o rosto descaiu-lhe. Sorriu com tristeza,
recordando-se.
— Acabou-se – disse, na sua voz abatida.
— Todo o teu trabalho … – murmurou a mãe. Ainda ajoelhada, começou a chorar. – Tenho tanta pena, Allie …
— Pois eu estou feliz – retorquiu o pai. – Jerónimo está destruído. – Ardeu como fogo-de-artifício – interveio o Sr.
Haddy.
— Estamos livres – prosseguiu o pai.
— Desapareceu tudo o que fizeste! – protestou a mãe. – As casas, as culturas, aquelas belas máquinas. Tanto trabalho …
— Porcarias! Nunca as devia ter feito!
— Como é que podias saber?
— Sou o único que poderia sabê-lo. Não foi ignorância, foi subtileza. Esse tem sido sempre o meu problema. Sou
demasiado complicado, demasiado ambicioso. Não consigo deixar de ser um idealista. Procurava resolver a situação de um
modo pacífico … e rebentou-me tudo na cara.
— Allie, porquê …
— E mereci-o. Isto aqui não é lugar para substâncias tóxicas. Nunca mais trabalharei com venenos e com gases
inflamáveis. Vou manter as coisas simples … servindo-me da Física e não da Química. Alavancas, pesos, roldanas, varões.
Nada de químicos, excepto os que ocorrem na natureza. Elementos estáveis …
— Mas aqueles homens morreram! – soluçou a mãe.
— Era o que eu pensava – comentou Clover.
— Mas não desapareceram. A matéria não pode ser destruída. Perguntem ao Figgy. Foram eles que pediram a
transformação. Tipos como eles merecem o tratamento dado aos perus …
A mãe pousara os dedos sobre os olhos. Chorava baixinho enquanto o pai se levantava.
— Pensei estar a construir qualquer coisa – continuou este-, mas estava mesmo a pedir que fosse destruída. É a
consequência da perfeição. Neste mundo … a ira da imperfeição opõe-se. Aqueles tipos queriam comer à nossa custa! E o
«Menino Gordo» deixou-me ficar mal. O conceito era errado e agora sei porquê, mãe. Nada de mais venenos!
Disse aquilo de um modo quase queixoso, com as mãos juntas e apertadas. Dirigiu-se para a lagoa e espreitou a água.
— Qualquer pessoa pode destruir o que quiser, neste mundo.
A América foi deitada abaixo por homenzinhos pequeninos …
Parecia ter o coração despedaçado. Colocou as mãos em taça, encheu-as de água e lavou a cara e os braços.
— Onde é que estamos? Que lugar é este?
— É «O Acre» – disselhe.
— O nosso acampamento – continuou Jerry.
— É aqui que brincamos – esclareceu Clover.
— Olha que sítio para brincar! Tiveram sempre água?
— É de uma fonte – expliquei.
— Podemos nadar nela – acrescentou Jerry.
O pai olhou em volta. Sabia que ele pensava que o sítio não prestava.
Quis dizer-lhes que nos sentíamos felizes ali. O pai viu o baloiço.
— Reconheço aquela corda.
— O cabo da popa do meu barco – afirmou o Sr. Haddy.
— Foi ideia do Charlie.
— E cabanas. Frutos. Cestinhos – comentou o pai, com tristeza. Coisas de macacos.
— Há goiabas neste cesto – interveio Jerry.
— Come algumas, Allie, ainda não comeste nada – disse a mãe. – Comida de macaco, abrigos de macaco – retorquiu o
pai. – Odeio isto. Não queria isto. Para onde nos trouxeste, Charlie?
— Ele salvou-nos – intercedeu a mãe. – Arranjou-nos comida e água.
Allie, podíamos ter morrido!
— Não foi ele quem criou essa comida, nem quem cavou para encontrar água – O pai recusava-se a olhar para mim. –
Vamos embora, é tarde, e vocês continuam aí sentados.
— Não podemos voltar para Jerónimo – disse a mãe.
— Quem falou em voltar? Quem falou em Jerónimo? Nem sequer quero vê-lo.
Os lábios da mãe deram forma à pergunta:
— Então … para onde?
— Para longe! Para longe!
— Temos de aproveitar qualquer coisa para levar connosco – insistiu a mãe. – Não podemos ir assim.
— É assim que quero ir – disse, mas continuou parado apenas com o boné na cabeça e os braços pendentes, saídos das
mangas chamuscadas da camisa. Tinha o aspecto do que na verdade era … um homem que se arrastara para fugir a uma
explosão.
— E as ferramentas? A comida? Os sacos e as sementes? O meu barco? Não abandono o meu barco! – exclamou o Sr.
Haddy.
— Está tudo envenenado – afirmou o pai. – Tínhamos demasiadas coisas, demasiado lixo, demasiados bidões de venenos.
Foi esse o nosso erro. Sabem o que pode fazer uma inundação de amoníaco? Jerónimo está todo contaminado, e o que não está
contaminado transformou-se em carvão.
— Allie, por favor, não sabes o que dizes!
— O que eu estou a dizer ainda é pouco em relação à realidade.
Bom, vamos embora, quero tirar este cheiro do nariz.
— Para o rio?
— Mãe – respondeu-, matei o rio!
— Por que é que não podemos ficar aqui? – perguntou o Jerry. – A cheirar as entranhas do «Menino Gordo»? Aí tens a
resposta. Vai ficar a cheirar assim durante um ano e acabarás enlouquecido. Não, quero ir-me embora … – apontou para Este,
para as montanhas-… para lá daquelas montanhas ali.
— Há um rio do outro lado – disse o Sr. Haddy. – O rio Sico. – Sabemos disso, Figgy.
— Corre até Paplaya e Camaron. Podemos ir para Brewer … é a minha lagoa.
— Esse é o sítio que nos convém – concordou o pai.
Para a mãe, aquela afirmação foi demais. Com uma expressão dorida e implorante, perguntou:
— Como é que sabes?
O pai mexeu a parte da testa onde deveria estar as sobrancelhas.
Sorria, feliz:
— Porque gosto do nome.
Andou para um lado e para o outro na clareira, pisando os arbustos e espreitando por entre os ramos, como uma pessoa em
busca da abertura de um cortinado. A impaciência fazia-o desajeitado e inútil. Por fim, suspirou:
— Muito bem, Charlie, desisto. Por onde é a saída?
Indiquei-lhe o trilho.
— Tal como eu pensava – declarou, começando a andar.
— É melhor ir eu à frente – disselhe.
— Quem é que te entregou a chefia?
— Abrimos armadilhas no caminho e cobrimo-las com ramos – expliquei. – Para o caso de aparecerem bandidos. Podes
cair lá dentro. – Sei tudo a respeito de armadilhas – afirmou, continuando a andar. Seguimo-lo, transportando os cestos da
comida e um recipiente com água.
Jerónimo ficava entre «O Acre» e o rio. Não havia outro caminho para as montanhas. O pai disse-nos para andarmos mais
depressa, mas não podíamos evitar Jerónimo … fumegava no fim do trilho.
O pai baixou a cabeça.
— Huuu … – murmurou o Sr. Haddy.
Jerónimo parecia bombardeado. Era quase tudo pó, um mar de cinzas negras com as árvores em volta queimadas e
esquálidas. Como o fogo se espalhara, a clareira era agora maior e assemelhava-se a uma cratera. Os tubos do «Menino
Gordo» haviam caído, embranquecidos como ossos, e as bombas estavam tombadas. Não havia uma casa de pé nem um
telheiro intacto. Nas hortas, as plantas estavam queimadas e os caules mostravam-se cobertos de bolhas, como se fossem de
carne. O milho abatera-se, os tomates haviam rebentado e escorriam suco. Tinham sido cozinhados pelo calor. Alguns frutos
pareciam bolsas rasgadas.
As ruínas cobertas de cinza não eram nada … quando comparadas com o silêncio. Estávamos acostumados aos pios e aos
guinchos dos pássaros e às notas agudas das cigarras. Não havia nem um som, nem um movimento. As aves que vimos estavam
mortas, negras e assadas, sem penas, com minúsculas asas e ridículas cabeças esféricas. Os peixes flutuavam na superfície do
tanque. Tudo morto, silencioso e malcheiroso, sob o sol da tarde. Algumas redes de dormir mais espessas ainda fumegavam.
— Queriam vê-lo … – disse o pai zangado – … pois encham bem os olhos! Aves distantes cacarejaram nas profundezas
da floresta, troçando dele.
Caminhou através das ervas negras e pegou numa catana com o punho queimado. A seguir dirigiu-se à nossa casa e cortou
os pilares que restavam, tornando a ruína completa.
Continuámos ali de pé, no local onde fora a casa dos banhos. O calor estalara as condutas e recozera alguns dos tubos de
barro. O ar queimava e picava-me nos olhos.
— Não toquem em nada – pediu a mãe.
— Não há nada em que tocar – comentou o Sr. Haddy.
— Ouvi o que disseste! – exclamou o pai, que avançava para nós com a catana na mão. Pensei que iria cortar a cabeça do
Sr. Haddy, pelo modo como agitava a arma na sua direcção.
— Sobrei eu, sobraram eles … e sobraste tu, Figgy. Se tens forças para te queixares, então não estás assim tão mal. Mostra
alguma gratidão.
O Sr. Haddy atirou os dentes para fora.
— O meu barco … todo queimado. Ficou destruído.
— Perdi tudo o que tinha e ele preocupa-se com aquela porcaria! – Era tudo o que eu possuía neste mundo! – queixou-se o
Sr. Haddy e as lágrimas corriam-lhe ao lado do nariz e pingavam-lhe dos dentes.
— Para que serve um barco se não tens um rio?
— O rio está ali, pai.
— O rio está morto. Está cheio de hidróxido de amónio e de peixes com falta de ar. O ar … Já o cheiraste?.. Está
contaminado. Vai ser preciso um ano para que este sítio deixe de ser tóxico. Se ficarmos aqui, morremos. – O pai deu um
pontapé nas cinzas. – Ele sabia disso … mas queria que eu o dissesse!
Era mesmo como o pai dizia. O ar estava repleto de cheiro a amoníaco, e presos nas algas, perto da margem do rio, havia
peixes mortos e rãs inchadas. Eram mais horríveis do que os pássaros assados caídos nas ervas enegrecidas. Não tinham sido
queimados mas sim envenenados. Tivemos de passar pelo meio deles e empurrar-lhes os corpos para o lado para passar para
a outra margem.
O pai atravessou o rio três vezes, transportando as crianças mais pequenas. Durante a última passagem, carregado com o
Jerry e lutando com a lama, com o rosto e os braços sujos de cinza, as roupas molhadas e rasgadas, começou a chorar. Parou
no meio da água e chorou. Ao princípio, pensei que era o Jerry, pois nunca antes ouvira o pai a chorar. O rosto enrugou-se-lhe,
abriu a boca, que ficou quadrada, e vi-lhe as raízes dos dentes. Soltava ruídos ofegantes e pequenos soluços secos.
— Sei o que estão a pensar. Está bem, admito-o! Poluí tudo isto! Sou um assassino! – soluçou outra vez. – Não estava em
mim!
Chapinhara no rio, até à margem, largara Jerry e conduzira-nos para a floresta, caminhando depressa. Depois de chorar
não lhe vimos o rosto.
O terreno era mais alto naquela margem do rio. Uma hora depois deixávamos a selva para trás e encontrávamo-nos entre
cedros baixos. Por cima de nós avistava-se uma passagem entre dois dos picos da Esperanzas. Uma das vantagens da estação
seca, daqueles dias azuis e sem chuva, era a floresta ser menos densa, mais fácil de atravessar, e haver mais luz no meio dela.
Mas também deitava mais cheiros. Em tempo muito quente e sem chuva a floresta cheira mal, solta um odor forte como o das
couves. À medida que subíamos, o cheiro atingia-nos em ondas rançosas. Parte do caminho era-me familiar, contei ao pai
como andara ali com o Francis e o Bucky, à procura de bambus.
— Esta noite esses dormem nas suas próprias camas – disse o pai. Caminhava de cabeça baixa, como alguém que procura
alguma coisa e volta para trás para a encontrar. Mirou-me de esguelha. Parecia ter sido esbofeteado.
— Não olhes para trás – ordenou-me.
Avançámos de costas para o Sol por uma vertente seca, por entre árvores mortas.
Cinco quilómetros à nossa frente, no fim daquela suave vertente, estava a passagem entre os dois picos. Daí avistámos
nova cordilheira de montanhas. O Sr. Haddy disse que era a serra de San Pablo. Entre ela e as nossas montanhas situava-se o
profundo vale do rio Sico, que corria para nordeste, para a costa.
A caminho do fundo do vale, o pai sentou-se. Fiquei satisfeito quando disse que passaríamos ali a noite, pois não dormira
nada na noite anterior.
— Quem me dera ter cobertores – disse a mãe.
— Cobertores? Com este calor? – perguntou o pai.
Para o recordar de que perdera o barco, e talvez para sublinhar tal facto, o Sr. Haddy desdobrou o seu enorme certificado
de capitão e serviu-se dele para acender uma fogueira.
— Nem sequer temos onde ferver água – queixou-se a mãe. – Só temos este jarro e está quase vazio.
— Os rapazes descobrem-nos uma fonte. Sabem mais desta vida de macacos do que nós. Olha para eles, adoram isto!
Juntámos ervas secas para fazer ninhos na vertente da colina. Sentámo-nos ali, escutando a brisa nos cedros, comendo o
resto dos frutos que trouxéramos d’ «O Acre». A mãe descobriu mandioca brava e assou-a na fogueira. O Jerry disse que se
fechássemos os olhos sabia a nabo. Quando anoiteceu deitámo-nos nos ninhos. Havia moscas mas nenhum mosquito.
Na escuridão, por trás de mim, ouvi April sussurrar:
— Eu vi-o a chorar. Pergunta ao Jerry.
— É mentira, não estava a chorar – murmurou Clover. – Estava zangado, a culpa foi do Charlie.
Mais tarde fui outra vez. Acordado por Clover:
— Pai, o Jerry deu-me um pontapé nas costas!
— Não me apanharão a comer nada disso – dizia o pai nesse momento. – Não sou nenhum campista. De qualquer modo, o
problema da maior parte das pessoas é comerem mais do que precisam. Não há nada de bom nessa mandioca …
Recuperara a fala e voltava a pregar. «Não olhes para trás.» Os três adultos encontravam-se em volta da fogueira,
guardando-nos. Sentime de novo seguro e fiquei à escuta. Entre os gritos dos insectos, o Sr. Haddy falava de tigres. O pai ria-
se dele, como se desafiasse um tigre a sério e pudesse atirá-lo de encontro a uma árvore.
— Assim é que é – afirmou. – Viemos embora quase nus, sem nada.
Limitámo-nos a partir. Foi fácil.
Já se esquecera de Jerónimo.
— Não tínhamos outra solução – disse a mãe.
— Escolhemos a liberdade. – Tinha uma voz satisfeita. – Foi como sobreviver a um naufrágio.
— Pois eu não queria naufragar – insistiu a mãe.
Os insectos chiaram mais uma vez e calaram-se.
— Viemos embora mesmo a tempo … Eu tinha razão. Estamos vivos, mãe!
XXII

Na vertente, mas mais para baixo, os cedros cederam o seu lugar a outras árvores, sapotizeiros e sapodilhas, cheias de
sucos gomosos, que me recordaram o fabrico de borracha em Jerónimo, o cheiro a enxofre a ferver e as folhas de borracha em
que envolvíamos os blocos de gelo. Parecia-me um desperdício passar por elas sem as aproveitar. Muitas das árvores da
selva que cobriam a vertente eram utilizáveis, pois havia palmeiras, bambus e até bananeiras a crescer por entre algumas
cabanas de folhas de palmeira, agora desertas. Porém, continuámos a andar pela selva. Eu olhava para aquilo com meus olhos
de Jerónimo. Podíamos parar em qualquer lado, dizer que era ali a nossa casa e começar a trabalhar.
— Não me apetece fazer nada aqui – disse o pai. – Essas árvores? Não sinto qualquer tentação de as lacerar, para depois
vir a ter de fazer pares de galochas iguais. Poupem essas árvores. Deixem que se multipliquem e tornem abundantes. Sim,
outrora seria capaz de parar aqui e ocupar-me delas … mas agora tive uma experiência.
O trilho era um rego de terra, depois pedras e rochas. Ouvimos, atrás de nós, o grito de um mutum. O Sr. Haddy acertara-
lhe com um pau e agora apertava-lhe o pescoço. Transportou a grande ave negra pendurada pelas patas, como se fosse a
sacola do almoço. Disse que a depenaria e assaria quando chegássemos ao rio.
— O Figgy não mudou – declarou o pai-, mas eu sou outro homem, mãe. Um homem que se recusa a mudar, está perdido.
Passei por uma experiência satisfatória.
Falava acerca da sua «experiência» como outrora falava sobre o seu poço.
— Fui-me abaixo, lá atrás. Deixar-nos ir abaixo não é assim tão mau.
É uma experiência. Agora estou mais forte do que nunca.
Numa voz diferente, e como se quisesse mudar de assunto, a mãe disse: – Espero que encontremos água dentro em breve.
— Podemos sobreviver sete dias sem água.
— A andar desta maneira, eu não posso.
— Passa a água à mãe, Charlie.
Quando lhe dei de beber perguntei-lhe se o pai se modificara e o que queria isso dizer. Respondeu-me que não queria
dizer nada, se se tivesse modificado não falaria tanto no assunto. Explicou-me que o pai estava apenas a tentar animar-nos.
O pai continuava a falar mas a folhagem mais espessa abafava-lhe a voz e impedia os ecos. Agora estávamos no meio de
uma verdadeira selva e já não na vegetação da montanha. Os bambus eram densos. As árvores húmidas ao longo do estreito
trilho mantinham-nos frescos. Havia mosquitos e borboletas nas palmeiras, que eram como palmeiras de salão, mas de
dimensões enormes. Havia fetos, árvores da borracha, figueiras de folhas manchadas, algumas vermelhas com riscas negras,
tudo num ambiente sufocante, como se houvessem crescido dentro de uma garrafa.
— Antes da minha experiência, nunca pensaria em fazer isto. Escutem, vejam só o que estamos a tentar! É espantoso,
realmente. Não tenho nada escondido na manga … e olhem – virou o rosto para nós, no meio do caminho, e puxou para fora os
bolsos virados do avesso – … e nada nos bolsos! Cambaleámos atrás dele, através de manchas de luz verde. Tal como sempre
acontecia, a sua conversa ajudava o tempo a passar. O Sr. Haddy disse que se não fosse a descer já não se mexeria mais.
— Vamos comer o meu pássaro – acrescentou.
— Pois é – continuou o pai-, eu costumava ir reparar as bombas do Polski e partir para os campos, de manhã, com mais
coisas nos bolsos do que tenho agora. Ou quando ia para Northampton. Sempre carregado com coisas materiais. A carteira
cheia de dinheiro.
— Já não temos dinheiro, pai? – perguntou Clover.
— Para que serviria o dinheiro num sítio destes?
— Somos pobres – sussurrou Jerry. – Estamos arrumados. Devíamos ter ficado n’ «O Acre».
— O dinheiro não serve de nada, já o demonstrei.
— Vamos morrer … – queixou-se April.
— Não gostas deste céu tão límpido, mãe? – perguntou o pai.
Céu alto e vazio, ardendo de azul, e o nosso pequeno trilho cá em baixo. O trilho tinha agora muitas pedras, algumas tão
grandes que precisávamos de as trepar. Por fim deixou de ser um trilho e passou a ser o leito seco de um ribeiro. As pedras
haviam sido alisadas pela água corrente.
— Este é um verdadeiro teste de habilidade – comentou o pai. Confiamos apenas nos cérebros e na experiência. Ainda
bem que Jerónimo foi destruído!
— Aqueles três homens podiam ser inofensivos! – disse a mãe.
— Abutres, queriam viver à nossa custa!
Olhámos para cima à espera de ver abutres, mas o pai referia-se aos homens.
— Foi assim que a primeira família enfrentou as coisas – prosseguiu o pai. – É assim mesmo, mãe, somos a primeira
família sobre a Terra, caminhando pela estrada da glória, com as mãos vazias.
— Odiaria morrer daquela maneira – retorquiu a mãe, que ainda estava a pensar nos homens.
— Há maneiras piores … como aquela com que eles nos pretendiam matar. Os abutres levam sempre o seu tempo …
A parte inferior das pedras estava húmida e musgosa. Um pouco mais adiante vimos uma poça de lama, a primeira água
que víamos desde a partida de Jerónimo.
— Nesta terra a água tem cheiro – disse o pai. – Tal como o resto.
No entanto, o cheiro da água era cheiro a estagnação, e nela flutuavam insectos mortos, como folhas de chá a flutuar numa
chávena, mas havia mais água a borbulhar debaixo das pedras, deslizando pela vertente e dando às margens de barro a textura
da manteiga de amendoim. Escorria, transformava-se num fio, e pouco depois já havia água suficiente para provocar um ruído
de água a ferver devagarinho. Tinha um enjoativo cheiro a podridão mas o seu ruído dava-nos esperança, como uma canção
muito simples. Ali também já havia animais e aves, macacos a meia altura das árvores, pequenas cutias por debaixo deles,
pavas com os seus gritos loucos, e mais mutuns. Se conseguiam viver ali, então também nós o poderíamos fazer. Num lugar
perigoso, todos os animais selvagens constituíam uma esperança.
Caminhámos algum tempo ao longo do riacho. A terra apresentava-se quebrada, dividida em terraços.
— É assim que nasce um rio – disse o pai. – Estão a vê-lo com os vossos próprios olhos. Não foi preciso ir à procura da
informação a um livro. É esta a fonte dos oceanos.
Era como se o pai houvesse criado o riacho com os seus discursos, como se o convencesse a existir com o barulho e a
magia da sua voz. Apenas pela força da sua vontade fizera aparecer aquele agradável vale. Encontrávamo-nos agora numa
zona descoberta, sob um forte sol. Na selva, não me sentira exposto, havia tantas espécies de árvores diferentes para nos
cobrirem … mas naquele vale parecia que estávamos «na rua», com espessas paredes verdes dos dois lados. O riacho, muito
reduzido na época seca, era uma veia verde a correr pelo meio de um largo leito rochoso.
— Isto é satisfatório – declarou o Sr. Haddy, servindo-se de uma das habituais expressões do pai. – Podemos almoçar
aqui … ou junto daquela canoa.
Havia uma canoa de fundo achatado no rio quase seco. Era de madeira escavada e um homem puxava-a pela areia, para
debaixo de um grupo de árvores.
— Creio que sou o responsável pela invenção daquele barco – afirmou o pai.
— Mas é uma canoa! – exclamou o Sr. Haddy.
O pai respondeu que não fazia diferença ser utilizada pelos Zambus ou pelos Mosquitos. Considerara-a como o melhor
desenho para ser utilizada no nosso rio e estava muito satisfeito por ver que ali as usavam com as mesmas formas.
— Esta gente levou mil anos, ou mais do que isso, para inventar um tal barco. Quanto tempo levei eu, Figgy?
— Estamos a ser observados – declarou a mãe.
O homem puxara a canoa para a areia. Ficara de pé como uma garça, com uma perna levantada, observando-nos. Era muito
magro, não tão escuro como um zambu, e tinha dentes partidos.
— Naksaa – disse o pai e esta era uma palavra que servia para tudo, que significava «olá», «como está», «bom-dia»,
«obrigado», e sei lá que mais.
O Sr. Haddy entregou o mutum morto ao homem, de tal modo que dava a entender que havíamos partido de Jerónimo,
calcorreando todo aquele caminho e acampando na montanha só para lhe ir levar aquele presente.
— Parece um pouco esfomeado – comentou o Sr. Haddy.
O homem examinava o pai com os olhos muito brilhantes e acabou por dizer:
— Senhor Parks.
Ficámos a saber que era um mosquito, porque estes não conseguem pronunciar o efe.
— Ele conhece-me! – exclamou o pai. – É surpreendente, porque eu modifiquei-me. – Sorriu. – Creio que consegui uma
reputação.
— Sim, é o senhor Farkis – disse o Sr. Haddy para o mosquito.
— Este homem deu-me a minha horta! – disse o mosquito muito excitado para a mãe. Apontou para lá das árvores, para
uma cabana e para pequenos caules de milho. – Os grandes estão ali. Tomates grandes, assim! – continuou, mostrando um
punho fechado.
— Os híbridos! Quase me matei para conseguir fazer gelo e eles só se recordam de mim por causa das sementes que
comprei em Florence, no Massachusetts!
— E pimentos assim!
— Foste a Jerónimo e trabalhaste, hein? Paguei-te com sementes?
Foi pena, o gelo … era uma boa ideia, mas um pouco desajeitada.
— Sim, sim – dizia o mosquito.
— Inventei este barco – continuou o pai.
— Toda a gente tem canoas – disse o Sr. Haddy. – E os que não têm destas, têm doutras.
— É o meu barco – insistiu o pai.
O mosquito convenceu-nos a irmos ver a sua horta, por isso trepámos pela margem por cima da faixa de areia e
encaminhámo-nos para a cabana. Era uma cabana periclitante de ervas e folhas de palmeiras, mas com uma bela horta à sua
volta. Tinha aí grandes pés de milho, tomates, pimentos, feijões e abóboras. Havia também melões. Aqueles vegetais tinham
um ar deslocado na horta de um índio. Não havia abacates, papaias, cabaças nem maracujás. Era uma horta como as de
Hatfield, ou como as de Jerónimo. O mosquito criara-a a partir de sementes que o pai lhe dera, quando atravessara a
montanha, meses atrás, para nos visitar. Trabalhara durante um dia ou mais e recebera as sementes como pagamento. Nunca
conhecera sementes que rebentassem tão rapidamente ou que dessem frutos tão grandes.
O pai pegou numa vagem e exclamou: – Maravilhas do Kentucky!
Havia bananeiras junto da cabana, do tipo a que os índios chamavam plas, por serem arredondadas como uma garrafa, mas
o pai afirmou que o índio não merecia qualquer crédito quanto a isso, porque cresciam sozinhas.
Ouvimos um som de pancadas. Era a mulher do mosquito a bater caules de arroz de encontro a uma madeira, para que os
grãos caíssem sobre um tapete de couro. Parou quando o mosquito a chamou e serviu-nos wabool, bananas fritas e milho
assado. Depenou o mutum do Sr. Haddy e enfiou-o numa vara, por cima do fogo.
O pai não quis comer nada.
— Não te ofendas – disse, recusando o wabool.
— É o costume deles, sabes bem disso – afirmou a mãe.
— Então, e os meus costumes? – Perguntou o pai.
Percebi que não se modificara nada, porque em Jerónimo andava sempre a dizer aquilo. Sorriu-se para o mosquito.
— Estou a poupar-me para mais tarde. A fome é uma boa coisa. Dá-nos determinação. A comida põe-nos logo a dormir.
Essa coisa que tens na mão … – o mosquito segurava no mutum assado e gorduroso … é um soporífero. Claro que sabes disso,
não sabes? Não estou a falar de morrer de fome, mas sim da fome vulgar. É uma espécie de força, é a mola real da Natureza.
Sorriu-se para nós, sentados no chão a roer ossos, ao lado do badalhoco do mosquito, que se chamava Ed.
— Há apenas uma coisa de que sinto na verdade a falta – disse o pai. – Achas que és capaz de me arranjar um banho?
Falando com cuidado, servindo-se de ruídos e de sinais, explicou que queria um pouco de privacidade, água quente e um
cesto. O índio forneceu-lhe tudo o que o pai queria. Pendurou o cesto, feito de fibras muito finas, numa árvore e fez com que o
mosquito o enchesse de água quente, de modo a que esta caísse como num chuveiro. Este ritual teve lugar por detrás da cabana
do índio. Ouvimos o pai a encorajar o mosquito, a cuspir água e a esfregar-se.
— O pai tem costumes próprios, é verdade! – comentou o Sr. Haddy.
— Aquele duche foi melhor do que uma refeição – disse o pai quando voltou para junto de nós. Tinha o rosto vermelho, as
orelhas espetadas e deu saltos ao sol, para se enxugar. – Além disso, tirou-me o apetite. Era do que eu precisava. Estou
pronto, mãe.
O mosquito estava admirado com tudo aquilo e com a conversa do pai. Como que para lhe agradar, mandou a mulher à
horta para colher vegetais, enchendo quatro belos cestos. Como presente final, entregou-lhe a vara da canoa. O pai fez os
gestos habituais para recusar os presentes, mas aceitou-os quando o índio colocou os cestos na canoa e esperou junto dela,
dizendo-lhe para embarcar.
— Está a dizer lukpara, que não se preocupe – traduziu o Sr. Haddy.
— Levo-a apenas de empréstimo, Fred – disse o pai quando embarcou. – Podes tê-la de volta quando a quiseres.

Foi assim que nesse dia acabámos a flutuar pelo rio Sico abaixo. O pai trabalhava com a vara e o Sr. Haddy debruçava-se
à proa à procura de obstáculos. «Pedras», gritava, quando as via. A canoa tinha apenas dez centímetros de borda fora de água,
mas não havia uma ruga na superfície do rio. Faltavam cinquenta quilómetros até à costa e o pai calculou que o rio avançava a
cinco quilómetros por hora.
— Demasiado devagar, não é?
Assim que descrevemos a primeira curva e a cabana do índio ficou fora das nossas vistas, o pai encalhou a canoa na
margem. Arranjou uns ramos para nos servirem de assentos, apoiados nas bordas da canoa. Tirou a camisa e improvisou um
toldo suspenso por paus amarrados às mangas da camisa, enquanto as fraldas eram presas à borda.
— Parece uma tenda de oxigénio! Isso é para que não apanhem uma insolação. – A seguir pegou num monte de raminhos. –
E isto é para conseguirmos um pouco mais de velocidade. Uma autêntica vassoura de bruxa!
Amarrou os raminhos à ponta da vara, dando-lhes a forma de uma vassoura achatada e prendendo-os com trepadeiras, para
poder remar à popa. Depois fez uma fogueira com folhas verdes, para que o fumo afastasse as moscas. Fumegando, partimos
outra vez. Prometeu-nos que chegaríamos à costa ao anoitecer.
— Viram bem aquela cabana do mosquito? – perguntou. – São todas assim – disse o Sr. Haddy.
— Isso não faz com que sejam boas, Figgy. Aquela porcaria cairá com as primeiras chuvas. Era um homem generoso e
tinha uma horta espectacular, graças a mim, mas a cabana era miserável. – Passámos por mais cabanas na margem do rio, mais
mosquitos, porcos e cães. Patético – disse o pai.
— Tens os olhos a brilhar, Allie.
— Porque acabei de descobrir qual a espécie de cabana apropriada para este terreno.
— Disseste que ias acabar com as invenções.
— Não vim para aqui para viver numa cabana de ervas – retorquiu. – Não sou o Robison Crusoé. Mereço alguma
confiança, ou não? Eh, não toquem nesses cestos!
Jerry pegara um tomate e limpava-o no joelho. O pai ordenou-lhe que voltasse a guardá-lo.
— Paramos para arranjar comida de macaco, se estiverem com fome, mas não comam esses vegetais. São híbridos. Se os
comerem estarão a viver do nosso capital. Quando chegarmos ao sítio para onde vamos, abrimo-los e servimo-nos deles para
sementes. Estão suficientemente maduros.
— É injusto – disse a mãe.
— É propagação – respondeu o pai.
— Não mudaste nada.
O pai continuava a abanar a vassoura para um lado e para o outro.
— Mudei toda a minha maneira de pensar. Nada de mais produtos químicos, de mais gelo, de mais engenhocas. Jerónimo
foi um erro.
Tive de poluir todo o rio para o descobrir.
— Tudo o que Jerry quer é comer um tomate! – insistiu a mãe.
— Esse tomate representa uma grande quantidade de tomateiros, mãe.
Tem lá dentro toda uma horta. Serve-te da imaginação!
— Por favor, não se zanguem – pediu Clover.
— O pai está a passar por outra experiência – disse o Sr. Haddy.
— Calem-se! – ordenou o pai. – Quem é que disse alguma coisa a respeito de miolos avariados?
O pai continuou a remar rio abaixo, com a vassoura, sempre a gritar. Predisse que antes do cair da noite estaríamos em
Paplaya, na costa, a pouca distância da lagoa. O Sr. Haddy virou-lhe as costas e espetou os dentes para fora.
— Podemos caminhar ao longo da praia até ao Panamá – afirmou o pai. – Podemos caminhar até ao cabo Cod – sugeriu a
mãe.
— Ora, o cabo Cod foi destruído! – declarou o pai, rindo-se. – ‘Fugimos mesmo a tempo. Não ficou nada … mesmo nada.
Desapareceu, não compreendem?
— De que estás tu a falar? – inquiriu a mãe.
— Do fim do mundo. – O pai apontou para norte com o cabo da vassoura. – Daquele mundo! Tudo queimado!
— Jerónimo é lá atrás.
— Jerónimo não foi nada, comparado com a destruição dos Estados Unidos. Não foi apenas casas a arder e pânico.
Pensem nas pessoas. Recordem-se do mutum do Figgy … da maneira como, depois de assado, a carne se soltava dos ossos.
Foi o que aconteceu a milhões de americanos. A carne caiu-lhes dos ossos. A seguir surgiram os devoradores de carne morta.
Hatfield está transformada em cinzas.
As gémeas começaram a chorar. A mãe tentou reconfortá-las.
— Olha o que fizeste! – disse ela para o pai.
— A única coisa que fiz foi salvar-nos a todos.
— É verdade que não ficou nada? – perguntou Jerry.
— Nada que te interesse ver – respondeu. – Pensas que é mau andar no rio? Oh, rapaz, isto são umas férias quando
comparadas com a guerra nos Estados Unidos.
— Houve lá uma guerra? – inquiriu o Sr. Haddy.
— Horrenda.
— Estás a tentar assustar-nos. Deixa de falar dessa maneira, Allie.
É uma crueldade. Não sabes o que se passou nos Estados Unidos.
— Sei o que vi. Sei dos exércitos, dos soldados … dos incêndios e matanças. – Batia no rio com a vassoura. – Eles
sabiam onde eu estava.
A mãe segurou as gémeas nos braços, sentadas por debaixo da tenda que o pai fizera com a camisa.
— Está a brincar, garotas, não lhe prestem atenção.
— Mas que brincadeira! – disse o pai, olhando para mim e piscando-me o olho! – Agora estamos a salvo. Este barco e
este rio … pensam que é uma situação precária, mas eu digo-lhes que estamos bem. Continuamos vivos. É mais do que posso
dizer em relação a muita gente.
Estávamos em Junho. Um ano antes, partíramos de Hatfield. Duas noites atrás havíamos visto Jerónimo destruído. Na
mente do pai, os Estados Unidos tinham sido aniquilados, tal como Jerónimo … O fogo destruíra-os e tudo o que restava era
fumo e uma tempestade de veneno amarelo. Foi isto o que nos disse.
— Andam atrás de mim. Escapei por pouco.
— Estamos num belo rio – disse eu, querendo que o pai se calasse.
— Assim é que é falar, Charlie! Estás a ouvir, mãe? O Charlie diz que é um belo rio! Podes apostar que é!
Não disse mais nada a respeito da guerra na América ou da perda de Jerónimo, que para ele eram a mesma coisa. Falou
calmamente, explicando como poderíamos começar de novo e afirmando que o facto de ter escapado à morte por pouco, lhe
aguçara o engenho.
Ali estavam as provas. Encontrávamo-nos numa canoa de quatro metros e a mover-nos rapidamente para a costa. O barco
pouco mais era do que uma jangada, mas tínhamos sombra, bancos e uma fogueira para afuguentar os insectos. O pai
convertera-o em algo confortável e rápido. Falava de um modo selvagem, mas a sua conversa era como uma criação, e nunca
se calou durante a viagem. EU estivera preocupado. No dia anterior vira-o a chorar, hoje gritava a respeito da sua experiência
e do fim do mundo. Mostrava-se inquieto e esfomeado, mais imprevisível do que nunca. No entanto, em toda a Terra não
existia um homem mais engenhoso.
XXIII

O Jerry inclinou-se para a frente, no banco feito pelo pai.


— O pai pensa que é o maior – sussurrou, olhando para fazendo uma careta de desdém.
— É o maior – disse Clover, baixando a cabeça.
— Há montes de inventores no mundo, não é o único.
— Não é igual aos outros – respondi.
— Seja como for, o mundo foi destruído – afirmou April. – Foi o pai quem o disse.
— Como é que sabes que não é como os outros? – perguntou Jerry.
— Têm motivações diferentes – expliquei.
— Quais?
Olhei para a popa. Os olhos grandes do pai desafiaram-me a que abrisse a boca. Naquela pausa, o murmúrio de Jerry foi
áspero.
— Não sabes.
Sabia. O pai era engenhoso porque necessitava de conforto. Nunca o admitiria, mas via-se bem pelo que fizera em
Jerónimo e pelas melhorias na canoa. Não se modificara, continuava inventivo e a necessitar de conforto … muito mais do que
nós. Estava sempre pronto a melhorar as coisas, mas não era como os outros homens. Não podia explicá-lo ao Jerry enquanto
o pai estivesse à escuta. Inventava para ele próprio! Era um inventor porque odiava camas duras, má comida, barcos lentos,
cabanas frágeis, sujidade e desperdício … Queixava-se do preço das coisas mas não era por causa do dinheiro … era por não
prestarem e se estragarem depois de ele as comprar. Só pensava nele próprio!
Por isso, em Hatfield, inventara a cadeira hidráulica e a máquina de massajar pés, e isso explicava a sua falta de interesse
pelos inventos industriais. Era também uma explicação para a sua mania do gelo e para o facto de ter chorado quando
Jerónimo fora destruído. Não queria viver, tal como dizia, como um macaco.
Os movimentos, as invenções, as viagens eram tudo a mesma coisa, Quando lhe parecera que a América estava perdida,
arranjara maneira de sair de lá. Abandonar o país num barco de bananas era mais um dos seus esquemas engenhosos. Jerónimo
estivera cheio de exemplos da sua criatividade, engenhocas que inventara para fazer com que a vida – a sua vida – fosse mais
fácil. Esses esquemas ê tácticas eram uma resposta às imperfeições do mundo. Mas, por vezes, tinha pena dele, o desconforto
e a insatisfação punham-lhe a cabeça a andar à roda. Um instante depois, ouvindo os murmúrios de Jerry, a mãe disse-nos:
— É um perfeccionista.
— Não estejas aborrecida – pediu-lhe o pai.
— Mas que lugar para um perfeccionista! – exclamou a mãe, olhando para a selva da margem do rio.
Toda a gente o considerava como uma pessoa dura, pronta para tudo, mas eu não me deixava enganar. O pai era o oposto
de um campista! Cultivava vegetais da melhor qualidade porque não suportava o gosto das bananas e do wabool. Odiava
dormir na rua. «É uma selvajaria, é pouco natural dormir no chão nu.» Falava sempre com ternura a respeito da sua própria
cama. «Até os animais fazem camas!» Um permanente fornecimento de gelo era a sua resposta aos trópicos, e um complicado
sistema de bombas a réplica à estação seca. Gostava de ter as coisas contra ele, dizia, pois isso ajudava-o a pensar. Era
ambicioso em relação ao seu próprio conforto e nunca tentara ganhar dinheiro com as invenções … queria apenas viver uma
vida que os outros quisessem copiar. O que recebia das patentes era «dinheiro esquisito». «Posso ser egoísta», afirmava,
«mas não sou ambicioso.» O egoísmo fizera-o inteligente. Queria as coisas à sua maneira, a sua cama, a sua comida, e o
mundo também. As explicações que dava para os acontecimentos eram tão engenhosas como as invenções. Teria havido uma
guerra nos Estados Unidos? Andariam atrás dele, tal como afirmava? Seria verdade que era perseguido porque «matam
sempre primeiro os mais inteligentes?». Não sabíamos, mas se acreditássemos nalguma daquelas coisas, podíamos ser muito
felizes ali. Esquecíamo-nos do calor, ou dos insectos, ou da escuridão que nos sepultava durante a noite. A conversa do pai
retirava-nos o sentido do cheiro. Depois de o ouvirmos falar da América, ficávamos reconfortados ao pensar que nos
encontrávamos tão longe, na costa de Mosquito. Também ele se reconfortava!
Ali estava o pai, gritando os seus planos e sorrindo ante o nosso espanto. Podia ser uma coisa simples, como melhorar a
vara da jangada ou descrever a casa à prova de tudo que iria construir. Mas também podia ser loucura.
— Mas que porcaria de trabalho que Deus fez neste mundo! Nunca antes ouvira alguém criticar Deus, mas o pai falava de
Deus tal como falava dos canalizadores e electricistas desajeitados. «O rapazinho morto com a cabeça à roda», era assim que
descrevia Deus. «E a cabeça já quase não tem nada dentro!»
Raramente se calava, a sua voz já fazia parte dos ruídos da selva depois da nossa fuga de Jerónimo, como os gritos dos
pavas, dos insectos e dos tatus, primeiro ao longo do rio Sico, e depois ao longo do rio Negro, em direcção a Paplaya. Mas de
todos os sons da selva que ouvi, e alguns podiam ser muito surpreendentes, o mais claro e mais frequente de todos eles era o
som da voz do pai a gritar por conforto.
Levou-nos vários dias de «navegação costeira», como lhe chamou o pai, para conseguirmos chegar à lagoa Brewer.
Depois de tanta conversa, de tantas remadas e da brisa quente e salgada, esperava ir deparar com qualquer coisa azul … areia,
ondas, palmeiras, uma praia. Porém, Brewer era uma lagoa interior, separada do mar por uma faixa de terreno elevado que
escondia o oceano e bloqueava o agradável som das ondas a lamberem a areia e a fazer rebolar os seixos.
Ali, estávamos no meio da lama. A lagoa era larga, lisa e pantanosa, com águas castanhas que se estendiam, paradas, até
uma margem castanha. Nem uma ruga na superfície, apenas um espelho de água suja com alguns tufos de ervas e palmeiras
cortadas, que pareciam velhos postes de candeeiros. Uma película de lama e de fino lodo cobria tudo à volta e as moscas
amontoavam-se onde as algas verdes jaziam a secar, junto àquela poça negra e parada.
— É assustador – disse a mãe.
— Não sejas desencorajadora – retorquiu o pai, olhando para mim. – A mãe está aborrecida.
O Sr. Haddy ficou feliz quando viu a aldeia de Brewer, pois a mãe dele vivia ali. As cabanas estavam empilhadas de
encontro à costa. Tinham a forma de campanários e manchas da mesma cor da lagoa. Os zambus remavam em pirogas para os
postes que lhes serviam para atracar. Era uma tarde nebulosa e o Sol era um arco purpúreo na neblina do mar cinzento.
— É aqui que nós separamos – afirmou o pai. – Não vem comigo, pai?
— Não. Quero dizer, tu é que não vens comigo.
O Sr. Haddy engoliu em seco, como se quisesse engolir o medo, mas este, ao que parecia, estava-lhe atravessado na
garganta agitando-se para cima e para baixo como a maçã-de-Adão. Declarou que ainda não estava pronto para descer a terra.
— O Figgy está a arrastar os pés.
— Vão perguntar-me: «Haddy, onde está o teu barco?»
— Podes falar-lhes da nossa experiência. Tenho mulher e quatro filhos … e nada mais. Ainda não me ouviste queixar-me.
O Sr. Haddy abriu a boca, aspirou uma grande golfada de ar e lamentou-se:
— Mas eu não tenho nada.
Agitando a cana da popa à proa, o pai tirou o relógio do pulso.
Era um relógio antigo e caro, de ouro, com pulseira também de ouro.
O pai tinha muito orgulho nele, sobrevivera a todas as nossas fugas e falhanços. Resistente, à prova de água e de grande
precisão, era a única coisa com valor a bordo da canoa. O pai costumava dizer que agora valia o dobro do que pagara por ele,
e que o seu valor aumentava todos os anos … mas o mais provável era que tivesse tido a sorte de o encontrar na lixeira de
Northampton.
— Isto é dinheiro em caixa, Fig.
O Sr. Haddy meteu as mãos nos bolsos.
— Não quero o seu relógio.
— Já não preciso dele para nada … pois não, mãe?
Puxou a mão magra do Sr. Haddy para fora do bolso e enfiou-lhe o relógio por entre os dedos que se debatiam. A seguir
riu-se:
— Filho, vê as horas e foge do diabo!
— Experiência – disse o Sr. Haddy, olhando para a mãe.
— Guarda-o – respondeu esta. – Tens sido um bom amigo. Sorrindo com tristeza para o relógio e molhando os dentes, o
Sr. Haddy perguntou:
— Para onde vai agora, pai?
— Vamos remar até ao mais escuro ribeiro desta lagoa. A seguir procuraremos o mais escondido recanto do ribeiro, onde
não exista nem gente nem plágio. Árvores, água, terra … são as coisas básicas de que necessitamos. Escondemo-nos aí. Nunca
me encontrarão.
— Não gosta de Brewer?
— Está demasiado exposta. Não quero ser visitado por patifes.
A canoa derivara para a aldeia de Brewer, toda cabanas em forma de campanário, fogueiras, lama, zambus e um cão.
— Quero águas escondidas. Desabitadas. Um canto vazio. É por isso que estamos aqui. Se vem no mapa, não nos serve
para nada!
— A lagoa de Mosquitos não vem em nenhum mapa.
— É pequena?
— Pai, é tão pequena – respondeu o Sr. Haddy – que quando lá chegar nem vai acreditar que já lá está.
Enquanto o pai conduzia a canoa para um dos atracadouros, o Sr. Haddy deu-nos indicações. Dois quilómetros ao longo da
costa de Brewer até ao rio, e depois três quilómetros para o interior.
— Siga em frente até não poder avançar mais.
A gratidão levava-o a prolongar as instruções, mas quando o largámos e o vimos a patinhar na lama em direcção à casa da
mãe, não olhou para trás. Admirava o seu novo relógio, levantando o pulso. Em breve se encontrava rodeado por crianças,
crioulos e zambus, que o saudavam.
Para mim era doloroso vê-lo ir-se embora. Deixara de ser um dos nossos. Estávamos outra vez sozinhos, éramos a
primeira família, como o pai repetia tantas vezes. Porém, sem os nossos amigos, o Sr. Haddy, os Maywit, os nossos zambus e
a Sra. Kennywick, dava-me a sensação de que éramos a última família.
Descobrimos o rio que desaguava na lagoa Brewer e seguimo-lo. O pai conduziu a canoa para o sítio onde o rio se abria
numa fiada de pequenas lagoas. A última era a lagoa de Mosquitos. Tinha de ser, não se podia ir mais longe. Excepto um
riacho que nela desaguava e nem sequer dava para uma canoa, não havia mais água. Era um beco sem saída, onde não se via
uma cabana. Já em terra, virámos a canoa de pernas para o ar e apoiámo-la sobre estacas. Aquela era a nossa casa. Havia ali
garças e pica-peixes, e por cima das nossas cabeças passavam alguns pelicanos. Por entre as árvores baixas e escuras da
margem cambaleavam búfalos de olhos enevoados. A lagoa borbulhava e cheirava a decomposição. Era da cor de fígado
cozido. As moscas zumbiam à nossa volta. Até a lama borbulhava, e a pressão do gás provocava buracos nas margens, como
pequenas crateras.
— Aqui, estamos sozinhos! – disse o pai. – Vejam, não há pegadas! Afirmou que a partir daquele momento a nossa vida
seria simples … uma horta, pesca e procura de restos na praia. Nada de engenhocas venenosas, nada dos erros cometidos em
Jerónimo, nada mais complicado do que uma sanita com água corrente. Uma horta de vegetais aqui, uma capoeira além, uma
boa e sólida cabana capaz de aguentar com a chuva.
— Capoeira? Galinhas? – perguntou a mãe. – Onde é que vais buscar as galinhas?
— Mutuns – respondeu o pai. – Galinhas é apenas um termo genérico.
Domesticamos os mutuns … e criamo-los.
— E que mais?
— Mais nada. É nisso que está a beleza das coisas. A sobrevivência significa uma actividade total. Não vai haver tempo
para mais nada! – Será uma provação – comentou a mãe.
— As provações não fazem mal a ninguém.
Nessa noite e em muitas outras depois dela, dormimos debaixo da canoa. Fazia frio de noite e fabricámos potes de fumo
para manter os mosquitos afastados. Todos os dias trabalhávamos para tornar o lugar mais confortável. Já o tínhamos feito em
Jerónimo, mas aqui não dispúnhamos de ferramentas até começarmos a procurar coisas na praia. Construímos uma latrina e
uma área que servia de cozinha. O pai demarcou a área da horta … Na margem, o solo era tão negro e macio que nem sequer
precisava de ser amanhado.
— Ainda deve faltar um par de semanas até começarem as chuvas. Entretanto, construiremos uma casa verdadeira, à prova
de água, e prepararemos as sementes para serem lançadas à terra.
Logo que começou a construção da nova cabana, April ficou doente. Seguiram-se-lhe Clover, o Jerry e a mãe. Tremiam,
ficaram pálidos e com uma febre muito alta. Jaziam por baixo da canoa, gemiam e de vez em quando corriam para a latrina. A
mãe disse que era por causa de todas aquelas viagens e também devido à dieta: mandioca e peixe, além de moluscos que
encontrávamos na lama.
— Se é por causa da comida, então por que é que o Charlie não está doente? – perguntou o pai. – E se é devido ao
trabalho, por que é que eu não estou deitado de costas?
— Acusas-nos de estarmos a fingir?! – perguntou a mãe. – Só estava a perguntar.
— Não nos aborreças, Allie!
O pai calou-se. Era uma coisa assustadora ouvi-los discutir na tranquilidade daquela lagoa cinzenta, mas quando se
mantinham silenciosos ainda era pior. Durante dois dias não falaram um com o outro, e por causa disso, nós, garotos, só
podíamos sussurrar.
A mãe recuperou, mas continuou muito fraca.
— Os inválidos podem tratar das sementes – disse o pai, e foram eles que secaram as sementes, enquanto eu e o pai
juntávamos materiais para a cabana.
Descobríramos uma canoa abandonada. Remendámo-la e vedámos-lhe as fendas.
— Um estúpido qualquer deitou a canoa fora! É um barco em perfeitas condições!
Fizemos viagens diárias ao longo do rio e até Brewer, para recolhermos madeiras, barrotes e tábuas que o mar atirara à
costa. A maior parte dessas madeiras tinha parafusos e pregos espetados. Extraíamo-los e depois de endireitados serviam para
fixar as fundações da cabana. A procura de objectos atirados à praia pelo mar, deu-nos outros tesouros.
Na costa, todas as cabanas eram campanários montados sobre estacas. A do pai não era assim, era como uma pequena
barca com um fundo como uma banheira, apoiado na margem. Teve grande cuidado em fazê-la à prova de água, primeiro
tapando as fendas e depois forrando-a com tiras de lata, para evitar os ratos e a humidade. Esta barca-cabana era maior do que
uma canoa, mas também tinha o fundo achatado.
Um dia passou por ali um zambu. Só nos viu quando o pai o chamou. Tinha um rosto estragado mas usava uma camisa
amarela, muito limpa, e um chapéu de palha. Chamava-se Childers. Ia à igreja. Era domingo, afirmou.
— Preferia que não me tivesse dito isso – declarou o pai.
Os risos de Childers eram quase todos de medo.
— Se Deus não tivesse descansado no sétimo dia, talvez conseguisse terminar o trabalho. Nunca pensaste nisso?
— Estão a fazer uma jangada? – perguntou Childers.
— É uma casa.
— Parece uma jangada. Ou uma lancha.
De facto, assim parecia … uma jangada com telhado, pousada na lama por cima da lagoa de Mosquitos.
— Quando chegar a chuva, ficarei tão seco como dentro de uma noz.
Pensa nisso.
O zambu considerou o assunto e depois riu-se, outra vez, de um modo gaguejante, enquanto o pai o observava.
A diferença entre os dois homens surpreendeu-me e assustou-me. O zambu, na sua camisa amarela, chapéu de palha e
bengala … e o pai, alto, ossudo e vermelho, de longos cabelos oleosos, barbas e olhos selvagens, um dedo a menos e calções
de pano de vela. O pai estava mais magro do que o zambu! Só agora reparava no seu aspecto selvagem … Se não se soubesse,
era caso para pensar que ele é que era o selvagem e não o zambu. Se este tivesse cabelos e olhos assim, eu desatava a fugir.
Porém, havíamo-nos habituado ao facto do pai parecer um espantalho, o selvagem dos bosques …
A preocupação fazia com que o zambu soltasse risinhos enquanto o pai andava em volta da cabana, salientando-lhe as
vantagens.
Repara como é prática, dizia. Não tem estacas, não pode cair durante um tremor de terra. Nenhuma chuva pode penetrar no
telhado alcatroado. Fora feita de restos de barcos afundados ao largo da costa de Mosquito e cada uma das tábuas fora
impermeabilizada e amaciada pelo oceano. Tinha duas longas cabinas, para os adultos e para as crianças, cada uma com a sua
entrada. Tinha tudo … privacidade, resistência e graça. Permaneceria ali, dizia o pai, muito depois de as barracas de folhas
de palmeira serem arrancadas pelas tempestades de Verão.
— Quero algumas tempestades bem feias para provar que tenho razão. Então, enrolo-me lá dentro e rebento a rir. As
paredes espessas conservam-na fresca e podemos ter uma brisa de ponta a ponta, pela abertura entre as cabinas. Além disso,
posso elevar o telhado … mas não sei por que é que me preocupo em dizer-te tudo isto.
— O meu telhado não deixa passar água – afirmou Childers.
— Veremos. Mas, com toda a: franqueza, esse é o grande erro que vocês cometem. Falam sempre do telhado, concentram-
se sempre na parte de cima. Então, e o chão?
Childers começara a recuar.
— O chão também é importante. Não se pode eliminar esse problema espetando as casas sobre estacas, a três metros de
altura. Isso só o complica … torna-vos mais vulneráveis, conspícuos e temporários. Olha para o que aconteceu nos Estados
Unidos!
O discurso do pai apanhara o zambu de surpresa. Não respondeu.
Continuava a andar para trás na costa enlameada.
— A casa é à prova de água, por cima e por baixo – insistiu o pai.
— E a tua? Tens o chão à prova de água?
O zambu avistou a mãe e as gémeas a separarem as sementes em montinhos. Levou a mão ao chapéu, numa delicadeza à
moda antiga.
— Como vai, mãe?
— Não pises a horta – disse o pai.
O zambu olhou para baixo. Não havia horta nenhuma. Foi em bicos de pé até à margem, caminhando por sulcos
imaginários.
— Agora está a estragar-me a capoeira!
O zambu não a via. Não havia capoeira. No entanto, levantou os pés muito alto, abriu os braços e estremeceu de medo,
como se tivesse na sua frente uma capoeira invisível.
— Lembra-te disto: uma experiência não é um acidente. É a recompensa dada às pessoas que a procuram. É um acto
deliberado e dá muito trabalho. Preferes ir à igreja … um lugar engraçado para se ir, considerando o estado do mundo e as
coisas que o fizeram assim. No sétimo dia, Deus foi-se embora. Por que é que terás de cometer o mesmo erro? Perdes tempo a
rezar, quando podias estar a fazer uma casa assim?
— Não tenho ferramentas – respondeu o zambu, que entrou em pânico e começou a correr.
O pai seguiu-o, gritando:
— Também não tenho ferramentas. Tudo o que vês aqui, foi feito com estas duas mãos!
O zambu partira. Desaparecera ao longo da margem do rio, em direcção a Brewer. Não podia ter ouvido o que o pai
dissera e ainda bem porque a afirmação de não ter ferramentas era falsa.
— Não gostei deste homem por causa da sua malevolente curiosidade – disse o pai.
Regressou ao trabalho. O pai negara ter ferramentas. Era uma mentira, outra invenção que o reconfortava.
Tínhamos ferramentas e mais do que isso. A costa de Mosquito fornecia-nos quase tudo o que precisávamos. Descobrimos
uma cabeça de martelo na praia e fizemos-lhe um cabo. Martelando as pontas de ferros aquecidos, fizemos chaves de
parafusos e formões. Uma lâmina de serra enferrujada, que jazia nas algas, estava agora brilhante do uso. Recuperávamos
arames, latas e garrafas na praia, bem como redes rotas que reparávamos, e pano de vela suficiente para a mãe nos fazer
calções para todos e uma bata para ela. As agulhas eram ossos de pássaro. Podia arranjar agulhas verdadeiras em Brewer,
mas o pai gostava de matar pássaros («comedores de carne morta») e de lhes afiar os ossos para fazer agulhas;
Procurar coisas na praia era um trabalho sujo e exaustivo. Quase todos os dias, durante os primeiros tempos na lagoa dos
Mosquitos, partíamos antes da madrugada, na escuridão ainda cheia de morcegos, descíamos o rio com a canoa, passávamos
por Brewer e íamos até uma aldeia miserável chamada Mocobila. A oeste dali e antes de os zambus acordarem, percorríamos
a praia em busca de objectos utilizáveis. Caminhávamos lado a lado, eu e o pai – e quando as gémeas estavam suficientemente
bem, elas e o Jerry faziam-nos companhia – esgravatando na confusão de madeiras, cordas e algas depositadas durante a noite.
Descobríamos mais linha de pesca do que necessitávamos, cordas, farrapos e vasilhas de plástico, bocados de alcatrão,
remos e pagaias de canoas, tachos de cozinha e talheres. Um dia encontrámos uma escada com quase dois metros, e assentos
de retretes em dois dias sucessivos.
Era como esgravatar na lixeira de Northampton, mas eu não ousava dizê-lo. Tal como em Northampton, a praia estava
sempre cheia de aves e por vezes tínhamos de as enxotar para longe. Havia abutres naquela praia e num dia horrível o pai
matou um abutre com uma fisga, só para nos mostrar como os outros se alimentariam dele.
— Em Northampton também era assim – comentou o pai. – Na lixeira? – perguntou Jerry.
— Na cidade – retorquiu o pai. – Todos aqueles garotos da escola! Observámos os abutres a arrancarem bocados de carne
sangrenta da ave morta, enquanto as suas asas se agitavam como um chapéu-de-chuva partido.
A maior parte das madeiras e acessórios que encontrávamos na praia estavam limpos e embranquecidos pelo mar. O metal
apresentava-se enferrujado ou coberto de conchas, mas o pai adorava apanhar qualquer coisa enferrujada que limpava com
areia. Restaurou os tachos de cozinha, montou os assentos de retrete na nossa latrina e fez-nos sandálias com pneus velhos.
Sentia-me satisfeito por estarmos sozinhos. Ninguém podia ver os calções ridículos e as sandálias de fabrico caseiro, ou a
sucatada acumulada na lagoa de Mosquitos. O zambu Childers nunca mais apareceu.
— Funciona aqui uma espécie de darwinismo industrial – disse o pai. – As coisas que vêm dar a esta praia são os restos
indestrutíveis que sobreviveram a tempestades, marés, e à corrosão do mar. Provaram o que valem … aguentaram o teste do
clima e do tempo. Utilizando-as, estamos a fazer uma instalação que não pode ser destruída. Os nossos náufragos Crusoés
habituais vivem como macacos … mas eu não sou nenhum estúpido. Pensa naqueles assentos de sanita … foi uma selecção
natural. São eternos.
Pontapeava para o lado as bonecas de plástico sem braços, calças velhas e bocados de esferovite. Resmungava quando via
coletes salva-vidas rasgados e aerossóis esmagados. Habituámo-nos a ouvi-lo dizer: «Ora aqui está uma anilha em perfeitas
condições …»
A mãe chamava «pega» ao pai … Pensei que se referisse à voz, mas referia-se à procura de coisas na praia, ao
ajuntamento de lixo. Levava para o acampamento peças que não tinham qualquer utilidade prática – uma foi o arreio de um
cavalo, outra um casquilho de lâmpada eléctrica – e dizia: «A sua utilidade ser-nos-á revelada.»
Além das conversas a respeito dos Estados Unidos («Foi terrível!» – E por que é que se sorria?), nada se modificara, o
que se modificara havia sido a nossa situação. Tínhamos uma casa, comida, uma rotina, mas a vida ali era difícil, preenchia-
nos o dia todo. A actividade total era uma coisa boa, dizia, a tarefa de sobreviver mantinha-nos saudáveis.
Não obstante estávamos frequentemente doentes com febres e mordidelas de bichos, e precisávamos de ficar nas redes de
dormir. A mãe catava-nos os piolhos da cabeça. Todos os golpes infectavam e precisavam de ser esfregados com água do
mar, muito quente.
O pai nunca adoecia.
— Não é para me gabar, só que nunca desisto. Continuo a lutar. Mantenham-se limpos e nunca adoecerão.
Havíamos chegado à lagoa de Mosquitos com uma barra de sabão. O pai nunca explicou onde a arranjara. Calculei que a
tivesse tirado ao índio mosquito no rio Sico, depois de ter tomado banho. O sabão desapareceu muito depressa. Havia uma
loja em Mocobila, dirigida por um crioulo chamado Sam. O pai chamava-lhe «Tio Sam». Vendia farinha, óleo, cabeças de
machados e anzóis aos zambus locais. O pai evitava a loja.
Um dia, o «Tio Sam» viu-nos à procura de coisas na praia e perguntou ao pai se percebia de geradores, porque o dele
estava avariado. O pai arranjou-o mas não quis receber dinheiro. Por fim, depois de o «Tio Sam» o aborrecer muito, acabou
por aceitar uma caixa de sabão cor de queijo, para a roupa. Era a única coisa que nos faltava em casa, afirmou, e «quando este
se acabar já terei imaginado uma maneira de fabricar mais». Recordou-nos que em Jerónimo fizera sabão com gordura de
porco. «Também era bom para as indisposições! Podíamos comê-lo!»
Esta não era a floresta das chuvas, junto do rio, de que em Jerónimo havíamos começado a gostar. Era costeira e baixa,
salobra, cheia de moscas pequeninas. Não havia tapires nem lontras, apenas lagartos, animais parecidos com ratos e aves
marinhas que ficavam gordurentas depois de assadas. Matávamos as aves por causa das penas e não da carne, porque o pai
queria almofadas macias. Estávamos rodeados por pântanos cheios de árvores mortas. Nas árvores, nuas e cinzentas, cresciam
fungos nos sítios onde já não tinham casca. Ao entardecer, os pântanos ficavam cheios de morcegos. Havia palmeiras. O pai
desafiou-me a mim e ao Jerry para as treparmos e deitarmos os cocos abaixo. Jerry tinha medo das alturas, começou a chorar
antes de chegar ao meio, e já no chão disseme que o pai era um «patife».
— Se não cooperares com ele, ficará a odiar-te – expliquei-lhe. – Quero que me odeie – retorquiu Jerry.
Por vezes pensava que agora que estávamos sozinhos, nos conhecíamos melhor uns aos outros e cada vez gostávamos
menos uns dos outros. O pai sabia que éramos fracos e medrosos. Não nos podíamos esconder e tínhamos saudades d’ «O
Acre».
A estação seca prosseguia … Onde estava a chuva? Ao fim de três semanas naquele local, notámos que o nível da água na
lagoa de Mosquitos descia cerca de trinta centímetros por semana. Apareciam barcos partidos, canoas furadas, crânios de
vacas e espinhas de peixes, tudo negro de lama. Um dia apareceu o costado de um barco a remos, delineado como uma janela
de igreja, à superfície da lagoa. Puxámo-lo para a costa e descobrimos que ainda tinha preso ao casco um motor fora de borda,
coberto de lodo. O pai desmontou o motor e começou a limpá-lo, peça por peça. Servimo-nos do barco como banheira («É só
para isso que serve a porcaria dos barcos dos missionários».)
A mãe disse que não valia a pena andar às voltas com um velho motor fora de borda, quando havia tanta coisa para
semear. As sementes começavam a grelar dentro das caixas. Muito em breve teriam de ser semeadas em fila.
Aquilo transformou-se numa discussão. Se estivéssemos por perto, não teriam gritado como o fizeram, mas nós
encontrávamo-nos na canoa, à pesca de enguias. Usávamos o tipo de rede circular, com pesos, que tínhamos visto os homens a
atirar ao mar no nosso primeiro dia em La Ceiba. Na altura tivera pena deles, mas agora éramos como esses pobres
pescadores.
— Não vou deitar fora este Evinrude. Nunca se sabe quando virá a ser preciso – ouvimos o pai dizer.
— Lá está a pega.
Não os podíamos ver, as vozes chegavam-nos por sobre a superfície da lagoa. Ecos fragmentados atingiam-nos vindos das
árvores e da margem, onde os jacintos começavam a murchar.
— A pega salvou-te a vida, mãe. Se não fosse eu, estávamos todos mortos.
— Não te podes gabar do que fizeste em Jerónimo. Puseste as nossas vidas em perigo.
— Mas quem diabo falou em Jerónimo?!
— Salvaste-nos as vidas … foi o que disseste.
— Jerónimo foi apenas um erro de julgamento. Fui demasiado ambicioso.
Pensei que o gelo era a solução, mas agora sei que a autopreservação é a única coisa importante. Salvei-vos as vidas
quando vos levei para Jerónimo! – Quase nos fizeste ir pelos ares!
— Tirei-vos dos Estados Unidos. A América acabou, mãe … acabou mesmo.
— Como é que sabes?
— Esta é a prova!
Mostrara qualquer coisa que não podíamos ver.
— Lixo – respondeu a mãe.
— Restos da praia. Os detritos de uma civilização morta … a parte que flutua. A América foi ao fundo e estas coisas
flutuaram até à nossa costa solitária.
— Uma explicação louca!
— Concordo, mas estamos num mundo louco … e viemos para aqui.
Conheces um lugar melhor?
— Allie, vais matar-nos a todos!
A voz da mãe tremia, amplificada pela água. Continuávamos na canoa, agarrados à rede e aos remos, à escuta.
— A mãe vai arranjar sarilhos. A culpa é dela – afirmou Clover.
— És Uma parva, Clover – disse Jerry. – A mãe tem razão, este lugar é miserável. Espero que lhe dê uma pancada na
cabeça.
— Quero fugir deste maldito lugar – lamentou-se April.
— E se o pai tiver razão? – perguntei e ficámos à escuta.
— Estou a tornar-te a vida tolerável – dizia o pai agora. – Mais do que tolerável! Isto aqui é um leito de rosas comparado
com o deserto que deixámos para trás!
— Em Jerónimo?
— Nos Estados Unidos! Só lá restam os devoradores de coisas mortas! Somos a primeira família, mãe. Sabemos o que lá
aconteceu. Logo que semeemos as culturas, seremos auto-suficientes.
— A tua horta é imaginária! As tuas galinhas são imaginárias! Não. Há culturas. Não semeámos nada! Falas de gado e de
tecer coisas! Aqui só há lixo na praia. Tudo o que fazes é mexericar nesse motor. Olha para ti, Allie, nem pareces humano!
Fora o que eu pensara quando aparecera aquele zambu que ia para a igreja, o Childers, com a sua camisa limpa. Portanto,
a mãe também reparara … – Estou a pedir-te para olhares para o futuro – insistiu o pai. – Usa a tua imaginação. Provarei que
tenho razão … não sou nenhum tirano. Não te manterei aqui contra a tua vontade. Se não estás satisfeita, podes …
Não se ouviu mais nada. Escutámos, mas tudo o que ouvíamos era a água a marulhar nos lados da canoa e os gritos das
garças. Remámos do recanto onde nos encontrávamos e vimos que o pátio estava vazio e ninguém cuidara do lume. O monte de
sucata, metais e madeiras, provenientes da praia, parecia-se com restos deixados por uma tempestade.
A seguir vimos o pai. Estava só, calçando um par de botas de borrachas que não condiziam uma com a outra, pois uma era
alta e a outra baixa. Não falou. Adivinhara que tínhamos ouvido a discussão?
O pai começara a cavar a lama da margem para a horta, logo acima da lagoa. Juntámo-nos a ele sem uma palavra e
ajudámo-lo a abrir os regos para as sementes. Trabalhámos durante a tarde com uma disposição sombria e envergonhada.
A mãe apareceu ao anoitecer. Abraçou-nos e disse que fora dar um passeio … mas não havia nenhum sítio para onde ir
passear. Tinha as pernas enlameadas até aos joelhos e ervas nos cabelos, além da cara manchada. Estivera a chorar.
— Toma um duche – disse o pai – e sentir-te-ás melhor.
— Mãe, quanto tempo mais vamos ficar neste sítio?-perguntou Jerry. A mãe não respondeu e olhou para o pai.
— Responde-lhe, mãe – disse este.
— O resto das nossas vidas.
O pai pareceu satisfeito. Sorriu e comentou:
— Temos sorte, parece que vai chover.
XXIV

Faixas de nuvens cor de cola passavam no céu azul por cima de nós, mas para lá da nossa lagoa, na direcção de Brewer,
formava-se todas as tardes um denso banco de nuvens. Permanecia aí, agitando-se. Era de um preto-acinzentado, com a textura
do algodão. Havia uma montanha delas, paradas e espessando-se até chegar a noite.
De manhã o banco de nuvens desaparecera e as faixas e bolas de nuvens eram como balões de gás de encontro a um belo
tecto. A nuvem negra regressava sempre ao fim do dia, cada vez com um ar mais cruel, mas não chovia.
O pai gritava connosco para que o ajudássemos a semear a horta, cada vez mais furioso por cada dia que passava. Dizia
que éramos preguiçosos, lentos e que nunca aparecíamos quando éramos precisos. Estava irritado por causa da chuva.
Prometera-a mas ela não vinha. Com quem gritava mais era com o Jerry.
Esperávamos que a chuva caísse como caíra em Jerónimo, em verdadeiros lençóis de água, embatendo nas árvores. Surgia
apenas o habitual amontoado de nuvens negras e ventos incertos. O pai dizia que havia tempestades ao largo e que a qualquer
momento poderíamos ficar encharcados. Trabalhava e esperava, naquele calor imóvel, observando o céu alto e escuro por
cima dos ramos das árvores, para leste. A tempestade pairava e observava-nos, suspensa, mas não se aproximava.
A água da nossa lagoa continuava a descer. As cabeças dos lírios aquáticos oscilavam no alto de compridos caules. A
terra estava tão seca e a lama endurecera tanto que ficara rija como cimento. Para semear o feijão, o milho e os tomates
tínhamos de estalar a crosta da lama e de abrir regos. Transportávamos água em baldes que despejávamos nesses regos, para
mantermos as raízes húmidas.
Aquela era a nossa tarefa, constituíamos a «brigada dos baldes» enquanto o pai trabalhava na construção de uma bomba
mecânica. Já fizera uma que fazia subir a água por pás de madeira, despejando-a na margem da lagoa com um grande barulho
de tábuas … mas eram precisos sete homens para a pôr a funcionar e o pai continuava a gritar-nos. Portanto, mantivemos os
baldes.
— Por que é que ficam além paradas? – perguntava, contraindo o rosto em direcção às nuvens negras. – Por que é que não
chove?
Transportar água e arranjar comida eram as nossas únicas actividades, mas mesmo assim o calor secava algumas das
covas e queimava parte das plantas da horta. À noite comíamos mandioca, peixes do lodo e plantas cozidas. O pai escondia-
se, não permitia que o víssemos a comer ou a dormir.
— Estou à espera de que as coisas melhorem. Não descansarei enquanto isso não acontecer … e nunca me verão a comer
porcarias dessas – dizia ele, e explicava que quando não comia necessitava de menos horas de sono.
Aproveitava as horas da noite para reconstruir o motor fora de borda. Limpou as peças e fabricou novos empanques para
os pistões. Não tínhamos gasolina nem óleo e havia buracos vazios nos sítios onde deviam ficar as velas. Parecia não se
preocupar com isso. Oleou o motor com gordura de pelicano. Enrolava a corda de arranque e puxava-a, fazendo o motor
matraquear. Soltava um cheiro a pelicano assado.
A mãe dizia que o motor fora de borda era o brinquedo do pai. – Aquela engenhoca mantém-me são da cabeça – explicava
o pai. Ao ouvir aquilo, a mãe sustinha a respiração e olhava para ele até o pai virar a cara.
— Chuva! – gritava para a nuvem negra.
Gritava tão alto, tão insistentemente e num tom tão imperioso que encolhíamos os ombros à espera de um carga de água.
Nunca vinha, havia apenas a nuvem e os ventos variáveis.
— Quando vim para a costa de Mosquito – disse uma vez – fiquei impressionado ao ver que esta gente tinha feito tão
pouco para melhorar a sua maneira de viver. Viviam como porcos. Franzia o nariz ante as suas culturas por tratar e casas
miseráveis. Que diabo é que comem … cornos? Mastigam os dedos dos pés? Dormem de barriga para baixo e deixam que a
água lhe escorra pelas costas? Com que se limpam? Onde estão as suas ferramentas? Será que sonham? Acerca de quê?
Estávamos na horta a regar as plantas. Ficámos muito quietos, à escuta.
— Isto era o que eu costumava pensar – continuou. – Agora, um ano depois, admira-me que tenham tanta coisa!
— Jerry diz que não respeitas os Zambus – disse Clover. Sentindo-se traído, Jerry ficou com um ar preocupado e infeliz.
— Admiro imenso essa gente – continuou – apesar de viverem como porcos. Mas isso para mim não serve … viver o dia-
a-dia, da mão para a boca, não é o meu género. Esta é uma instalação permanente. Nunca vos prometi que seria fácil. Estamos
a colocar as devidas fundações. Isto é um organismo, quando estiver a funcionar as coisas serão diferentes.
«Pensando em voz alta», falou-nos na criação de mutuns como se fossem perus, de iniciar uma nova «quinta dos peixes» e
de curar carne num fumeiro. O principal problema não era a comida, declarou, era a sujidade. Queria colocar tábuas por cima
da lama da margem que nos servia de pátio, e construir um convés, uma secção de cada vez, para depois o transformar num
largo pórtico tapado com rede, com uma casa de banho. Comida saudável, limpeza, muita água quente e nada de insectos.
— Estou a ver uma incubadora aqui, uma torre de elevação de água ali, e uma caldeira. Nos trópicos a falta de gelo não
constitui problema, mas a falta de água quente, essa sim, é um problema. Quem imaginaria uma coisas dessas? Estou a ver uma
espécie de conjunto de passarelas até ao cais, e separações na horta com as plantas a crescerem entre elas. Tudo em pontes e
passarelas … os nossos pés nunca tocarão no chão!
Ia transformar aquele nosso acampamento na lagoa num enorme cais! Era uma boa ideia, mas até agora tudo o que tínhamos
era a pequena cabana à prova de água, pousada na lama, e um monte de sucata, uma pilha de madeiras e bocados de metal com
quase três metros de altura, que havíamos trazido da praia, peça a peça. O pai dizia que fazia conta de a seleccionar, mas não
havia tempo. A horta, a nossa única esperança de sobrevivência, mantinha-nos ocupados. Por outro lado, os ratos já tinham
descoberto o monte de sucata e faziam os ninhos lá dentro.
O nosso acampamento tinha muito pior aspecto do que todas as aldeias dos Mosquitos ou dos Zambus que eu já vira até aí.
Sentia-me satisfeito por não termos visitantes, porque sabia que eles o achariam muito estranho. Se não se rissem de nós …
iriam ter piedade da nossa vida. Era claro que tínhamos chegado ali sem nada e que agora só possuíamos o que encontrávamos
na praia.
Ao fim da tarde, quando a nuvem negra pairava a leste e o fumo se erguia do acampamento, este parecia-se com uma
lixeira numa costa cinzenta, onde gente desesperada se refugiara para morrer.
— Somos prisioneiros evadidos – disse o pai.
Era o que ele pensava da América, mas se estávamos perdidos e num beco sem saída, naquele pântano costeiro, não
continuávamos prisioneiros?
Esta era a sensação que eu tinha quando me encontrava na lagoa e via a cabana e o monte de sucata. Jerry e eu havíamos
aprendido o jeito de atirar a rede circular e estávamos dispensados da «brigada dos baldes» se apanhássemos peixes ou
enguias. Gostávamos de remar até à outra extremidade da lagoa, para não podermos ver aquilo a que o pai chamava «casa».
Cerca de uma semana depois de ter surgido a primeira nuvem de tempestade, Jerry e eu encontrávamo-nos na canoa, à
pesca, quando ouvimos um grande estrondo. Pareceu-nos um tiro de canhão.
— O pai pôs o motor a trabalhar – disse o Jerry.
Fora também o que eu pensara, ou queria pensar, pois necessitaríamos de um fora de borda para nos podermos ir embora
dali.
Remámos para casa e descobrimos o pai de pé sobre a lama seca e rija. Tinha os olhos vazios e estava à escuta.
— Puseste o motor a trabalhar! – exclamou o Jerry.
— E se assim for?
— Podemos ir para casa – explicou o Jerry. Aquela era uma palavra proibida.
— Estúpido! – disse o pai.
O estouro ouviu-se outra vez. Não era o motor, era o rugido de uma tempestade distante.
— Por que é que vocês nunca acreditam em mim?
A trovoada continuou, por vezes soando como canhões, outras vezes mais lenta e terrível, como paredes de tijolo a
abaterem-se para dentro de uma cave. Como uma civilização a entrar em colapso sob o seu próprio peso, disse o pai. Era para
além, onde estava a nuvem.
— Guerra! – exclamou, sorrindo para nós.
Do lado oposto da lagoa surgiu uma resposta à trovoada: «Gugn! Gugn! Gugn! Gugn!», e depois outra vez as mesmas
quatro notas, mas mais baixas. Era um macaco-uivador. Cada vez que o trovão rugia, os macacos respondiam-lhe.
Mas a trovoada teve um aspecto muito mais estranho do que este. A toda à volta da lagoa, as criaturas começaram a surgir
dos ovos enterrados. Primeiro apareceram iguanas e tartarugas, depois os aligátores. Os ovos estavam escondidos na lama,
mas quando aqueles seres escorregadios e escamosos se arrastaram para o exterior, levavam as cascas atrás de si e deixavam-
nas espalhadas pela margem. Por baixo do céu trovejante, a lagoa tornou-se assustadoramente viva.
O Sr. Haddy surgiu-nos durante aquele período de trovoada, patinhando na margem, vindo de Brewer. Tinha os olhos
brilhantes e sorria como uma iguana acabada de sair do ovo, com mucosidades penduradas nos dentes da frente. Trazia-nos um
embrulho com moluscos cozinhados, uma galinha viva atada com um fio e um saco de açúcar. Coçou as costas esfregando-as
de encontro a uma árvore, sempre a olhar para o nosso monte de sucata. A seguir beijou as gémeas e perguntou:
— Então, que tal? Estão bem aqui?
— Passa-me essa corda, Charlie – disse o pai. Não mostrava qualquer surpresa pela visita do Sr. Haddy. Dei-lhe a corda,
enrolou-a em volta do arranque do Evinrude e puxou-a, levando o motor a fazer ruído e a cheirar a gordura de pássaro. Os
seus cabelos esvoaçaram.
— Trago-lhes umas conchas.
— Estamos com cara de quem tem fome? – perguntou o pai, ignorando-o e continuando a puxar a corda do motor.
— Hop! Hop! Hop! – fez o Sr. Haddy, imitando bastante bem o barulho do motor. – Mais um sarilho, com certeza!
— Isto?
— Um motor sem velas nem óleo!
— Isto é apenas para me manter entretido. – Fez novamente girar o motor. – Ajuda-me a pensar. Estou a planear a caldeira
e as passarelas. Temos de deixar de pisar lama!
— Trouxe-lhes açúcar.
— Açúcar branco – retorquiu o pai. – É a pior coisa que se pode meter na boca. Não tem um grama de nutrientes, apenas
calorias que se queimam tão depressa que esgotam todas as vitaminas B e C do nosso corpo. Provoca-nos cãibras, mau
funcionamento dos rins, deixa-nos cansados. Sabias disso? E é tão aditivo como uma droga. Figgy, vim para aqui para escapar
a esses venenos.
— Para a próxima trago-lhes gasolina e óleo – continuou o Sr. Haddy.
— E um par de velas para o motor.
— Não as quero.
— Então por que é que está a queimar gordura de galinha?
— Porque não vamos a lado nenhum.
O Sr. Haddy avistou o Jerry.
— Então como estás, Jerry?
— Não fale com ele, está de castigo.
— Não consigo perceber como nos descobriu – afirmou a mãe.
— Vim por um atalho. Olhei para um lado e para o outro. Tenho experiência, e depois ouvi a voz do pai. Que talos
trovões? Vamos ter uma bela tempestade, Ma!
Olhou em volta para o nosso acampamento, mexendo o nariz como um coelho e estudando-o.
— Um lugar do diabo esta lagoa de Mosquitos.
— Ainda estamos a instalar-nos – explicou a mãe. – De momento não tem grande aspecto, mas o Allie tem planos. Já sabe
como ele é.
— Sarilhos – respondeu o Sr. Haddy.
O pai não sorriu. Pôs o motor a trabalhar com a corda e ordenou:
— De volta ao trabalho, gente.
— A horta está muito perto da água. Aquela é a vossa barca?
— Cabana – disse a mãe.
— Casa – corrigiu-a o pai.
— Casa, hein? – O Sr. Haddy desenhou-lhe os contornos com a cabeça. – A casa está demasiado perto da água.
— A água está ali – afirmou o pai, abrindo muito a boca para pronunciar as palavras com clareza e apontando para a lama
da margem da lagoa.
— Vai subir quando vier a chuva. Vai chegar até àquele monte de sucata. Como é que a sucata foi ali parar? Foram os
macacos que a trouxeram?
O pai aproximou-se do Sr. Haddy com a corda na mão, com o ar de quem a queria torcer em volta do pescoço magrizela
do pobre homem.
— Por que é que estás a preocupar toda a gente? – perguntou.
— Não estou nada, Ma! – exclamou o Sr. Haddy, lançando um apelo à mãe.
— O Allie está zangado porque ainda não choveu.
— Não tenho controle sobre a Natureza – retorquiu o pai-, se tivesse o mundo não seria uma confusão tão grande. Falem-
me de coisas que eu possa dominar … tal como o meu temperamento. Que estou a controlar neste instante …
— A chuva chegará quando for a sua hora – disse o Sr. Haddy. E quando chegar vai desejar que ela pare. As coisas são
assim. Vamos ter chuva, de certeza! Vai ser uma experiência!
— Ainda não disseste ao que vens – interrompeu-o o pai. – Que queres daqui?
— Dizer olá e perguntar como estão. Falar-vos do meu barco novo.
— Diz-nos como perdeste o teu relógio novo.
Então, era por isso que o pai estava irritado. Dera por falta do relógio, o que mais ninguém notara. O Sr. Haddy não usava
o relógio de ouro que o pai lhe dera.
— Foi uma história igual à do barco. Troquei o relógio por um barco. Não é uma lancha, é à vela. Não consegui navegar
com ele em águas tão baixas, portanto, vim a pé. Querem vê-lo?
— Não – respondeu o pai.
— Chamei-lhe Omega, como o relógio. É muito bonito.
— Tive esse relógio durante quinze anos.
— São … são três e meia – disse o Sr. Haddy virando os olhos implorantes para o sol enevoado, como que para provar
que sabia as horas sem relógio.
— Deste-o!
— Pensei que aprovavas essas coisas – comentou a mãe.
— Pelo barco! B um belo barco!
— Um barco não é resposta.
— Não fiz nenhuma pergunta.
— Tenta perguntar a ti mesmo onde estarás dentro de quinze ou vinte anos.
— Digo-lhes onde vou estar para a semana … no cabo Gracias. O Sr. Haddy virou-se para a mãe: – Arranjei um trabalho.
Vou fazer carregamentos entre Caratasca e o cabo Gracias. Conhecem o sítio?
A mãe disse que não.
— É o cabo que fica na foz do Wonks. Um grande rio, faz com que este Patuca pareça uma mijinha. Quer ir até lá, Ma?
— Gostaria muito – respondeu a mãe. – Podíamos levar os garotos.
— Será um belo passeio, sim. Uma óptima água verde e uma grande praia. Mais um par de semanas e a praia vai estar
cheia de tartarugas a porem os ovos. Os rapazes poderão nadar e nós podemos ir à pesca. Uma bela vida.
Fiquei cheio de esperanças, mas uma só olhadela ao pai disseme logo que nada daquilo iria acontecer. Tinha a cara
sombria. Fez-nos um gesto para que nos afastássemos e gritou para a mãe:
— Queres fazer o favor de deixar de os encorajar? Ainda mal começámos a horta! Temos de construir as passarelas, o
lago dos peixes e a capoeira. Estou a tentar instalar-me aqui sobre sólidas bases e ninguém me quer ajudar. Figgy – disse,
virando-se para o Sr. Haddy-, não vês que temos trabalho para fazer?
— Esse foi o outro motivo porque aqui vim – explicou o Sr. Haddy, nervoso, agarrando-se ao pulso para esconder o sítio
onde estivera o relógio. – Esta lagoa não é sítio para gente decente. É um pântano e está cheio de macacos … não está a ouvi-
los? Estão preocupados com a chuva e têm razão. Quando a chuva vier, tudo isto vai ficar inundado, pai.
— Que é que estás a sugerir?
— Que Brewer é mais decente para uma família.
— Estás a sugerir que este é um lugar indecente. Este selvagem, que deu o meu relógio, está a insinuar …
— Não sejas tão rude, Allie … – interveio a mãe.
— Houve alguém que o mandou aqui. Quem te mandou aqui, Figgy?
— Ninguém!
— Volta para trás e diz a quem quer que te mandou aqui que esta é, agora, a nossa casa. Vivemos aqui. Estamos a fazer um
esforço de pioneiros.
O Sr. Haddy mordeu os lábios.
— Quero ir com o Sr. Haddy – declarou Jerry.
— Vês o que fizeste?
O Sr. Haddy quis mexer-se mas os seus pés haviam-se tornado enormes e resistiam-lhe. Arrastou-os – ainda agarrado ao
pulso-, cambaleou e quase caiu.
— Muito bem, Jerry, larga o balde e vai. Mexe-te … mas lembra-te de uma coisa: se saíres daqui, é para sempre. Não
voltes cá. Não quero voltar a ver a tua cara.
— Allie! – exclamou a mãe.
Jerry corou e olhou para outro lado quando as lágrimas lhe subiram aos olhos.
— Então, volta para o trabalho, rapaz – disse o pai e a sua voz parecia lixa.
— Eu não quis ir, pai – disse Clover e Jerry olhou-a furiosamente.
— As conchas darão um belo guisado, Sr. Haddy – afirmou a mãe.
— Sente-se, por favor.
Porém, o Sr. Haddy ainda não recuperara daquele «Vês o que fizeste?». Olhou para os pés, talvez perguntando a si mesmo
porque é que eles não queriam levá-lo dali para fora. A seguir olhou para o pai e ficou com um ar assustado.
— Ali vem ela – disse o pai.
A nuvem negra amontoara-se a leste enquanto o pai estivera a trovejar. O vento caiu e durante algum tempo quase não
houve ar para respirar. O suor escurecia a barba do pai.
— Odeio aquela nuvem.
Ouviu-se o canhão, as paredes a derrubarem-se, os tijolos a caírem na cave da América.
— A trovoada vai cuspir pedras! – declarou o Sr. Haddy em crioulo.
Quando se preocupava, falava em crioulo.
— Vou dizer-te outra coisa. Sei por que é que vieste aqui hoje … porque finalmente ouviste falar dos sarilhos nos Estados
Unidos.
Eu queria que o Sr. Haddy falasse, mas calou-se. O pai deu um passo para ele. O corpo do Sr. Haddy dizia não, mas o
rosto dizia sim.
— Admite-o, Figgy – insistiu o pai, quando outro trovão abalava a lagoa. – Ouvi qualquer coisa … – respondeu o Sr.
Haddy.
— Que foi destruída!
— Sim, pai.
— E estás com medo. – O pai fixava o rosto do Sr. Haddy.
— É verdade.
— É por isso … – declarou o pai lentamente e já a sorrir – … que digo que o futuro está aqui.
A cabana-barca na lama, o barco a remos, a bomba que precisava de sete homens para funcionar, a horta, o monte de
sucata, as moscas, os ratos que saltavam de todo o lado, e os macacos-uivadores.
Quando uma pessoa sofre e tem medo, os seus padecimentos são óbvios e os ferimentos sobressaem. Vi uma amolgadela
na testa do Sr. Haddy, em que nunca antes reparara.
— Antes de te ires embora – continuou o pai-, olha à tua volta. Diz-me o que vês.
O Sr. Haddy olhou para um lado e para o outro, engoliu em seco e disse: – Está a falar do monte de sucata, pai?
— É mesmo sucata – murmurou-me o Jerry. – Este sítio é uma lixeira. Era por isso que queria ir com ele. Tu não querias?
— Vejo uma aldeia em desenvolvimento – dizia o pai. – Vejo garotos saudáveis. Milho nos campos, tomate nas hortas.
Peixes a nadar e bombas a gorgolejar. Grandes camas macias. A mãe a tecer num tear. Mutuns que vêm comer à mão. Macacos
a apanharem cocos. Uma fábrica de cordas. Um fumeiro. Actividade total! Isso é o que eu vejo. E todo aquele …
O Sr. Haddy começara a afastar-se cada vez mais depressa, empurrado pela força das palavras do pai. Eram apenas
palavras, nada daquilo existia. O Sr. Haddy desapareceu e o pai continuou a falar, agora para nós.
— … e todo aquele que não vê nada disso, não tem nada a fazer aqui!
Pouco depois puxava a corda do arranque do barco.
Eu pensava no Sr. Haddy, cambaleando no escuro sobre os pés enormes que patinhavam na lama, quando Jerry falou de
novo:
Não querias, Charlie? Não querias ir com ele?-Não-respondi.
O pai está louco – disse ele, num tom que me fez pele de galinha.
Se não o ajudarmos, morremos todos. – Não quero ajudá-lo!
O Jerry sentia-se miserável. Queixava-se das perseguições do pai e do favoritismo para com as gémeas. O pai estava
constantemente a ir ter com ele para lhe dizer: «Estás sujo como um porco.» Chamava-lhe molengão, obrigava-o a subir às
árvores. De todos nós, Jerry fora o que estivera mais doente com as febres e isso notava-se no seu aspecto: faces pálidas,
cabelo comprido e sujo, um pescoço muito magro, cicatrizes nos sítios em que coçara as mordidelas das pulgas-da-areia.
O clima afectara o pai. Calara-se no meio do silêncio e do calor húmido da lagoa. Começara a trovoada, começaram as
discussões com a mãe. Mostrava-se de mau humor, gritava, implicava com o Jerry. Sabia que o Jerry lhe chamava nomes e
agora não deixava o pobre rapaz em sossego. O Jerry estava zangado e sem defesa.
— Quero ir para casa – disse ele e isso era uma palavra proibida. – A nossa casa é aqui – respondi-lhe. Expliquei-lhe que
nos tínhamos escapado a tempo da destruição da América. Que já nada restava dela, excepto o que dava à costa na praia, perto
da lagoa Brewer.
— Isso é o que o pai diz.
— O Sr. Haddy também o disse!
— Não quero saber – replicou Jerry, coçando as mordidelas. Nunca tivera um aspecto tão doente. – Estou com pena de
que o Sr. Haddy se tenha ido embora. Nunca mais cá volta.
— Não percebes? Temos de confiar no pai.
— Não confio nele. Não passa de um homem que dorme na nossa cabana. Não podia reconfortá-lo. A sua zanga
provocava-me dúvidas, portanto – em segredo e quando o pai martelava no galinheiro onde pretendia criar mutuns-, perguntei
à mãe. Que acontecera aos Estados Unidos? Tinham sido destruídos? A pergunta deixou-a triste.
— Espero que sim – respondeu.
— Não – disse eu.
— Sim – Tirou-me o cabelo de cima dos olhos e abraçou-me. – Sim, porque se foi destruída, somos as pessoas de mais
sorte em todo o mundo. – E se não foi?
— Então estamos a cometer um erro terrível.
Eu era grande demais para o colo dela. Ajoelhei-me a seu lado e por momentos pensei que o martelar do pai e os trovões
eram o palpitar do coração da mãe.
— Mas é verdade – continuou. – Ouviste o Sr. Haddy.
Também ouvira o trovão … uma promessa sem provas. A mãe pedia-me que acreditasse nela. Era como o clima, aquele
período de trovoadas que não passava de súbitos barulhos, promessas de chuva e tempestades. Ninguém sabia quando viriam,
ou como seriam, ou por quanto tempo teríamos de regar a nossa horta de rebentos pendentes para o chão. Ninguém sabia nada.
XXV

Quando a chuva chegou, era tão grossa como se estivéssemos a ser castigados por ter duvidado dos trovões … e a partir
daí passei a acreditar em tudo. A chuva não se deixava cair, precipitava-se do céu negro como espadas de ferro, cortando-nos
as costas e torcendo ramos nas árvores. Enfiava-se na areia, estalava de encontro às pedras, embatia no mar e fazia mais
barulho do que as ondas. Não era composta por água, mas sim por lâminas e estilhaços.
Estávamos na praia naquele dia – o pai, o Jerry e eu – à procura de arame para a capoeira. Do Leste surgiram esguichos de
água, quatro ou cinco, depois mais outros, até que a nuvem como que rebentou e caiu sobre nós, num negro-azulado. Libertou
gotas grossas e pesadas, seguidas por fiadas delas, como colares, e logo depois surgiram verdadeiras barreiras de água
avançando para a praia.
O boné do pai voou-lhe da cabeça, as suas roupas agitaram-se, fizeram-se pretas e colaram-se-lhe aos músculos. A barba
ficou pendente, encharcada, e a seus pés surgiu uma poça quando as gotas da chuva começaram a fazer saltar pedras do chão.
Começou imediatamente a gritar. Levantou os punhos ao céu. Escutámo-lo com atenção e até o Jerry tomou uma expressão
obediente. Não esperávamos uma coisa assim mas o pai estava satisfeito e quase ofegante por causa da água que lhe caía no
rosto.
— Aí está ela! Que vos disse eu? Agarrem nesse arame! Mexam-se, mostrem que estão vivos!
Patinhámos por cima da areia e regressámos à nossa canoa, lutando contra o vento que soprava da selva. Metemo-nos nela.
O pai remava como um louco e sorria para a chuva que caía no rio. Já tínhamos quase dez centímetros de água no fundo da
canoa quando chegámos à lagoa. Vimos o vento atingi-la e agitá-la, fazendo saltar bocados de água.
— O vento está a girar – disse o pai. – É uma tempestade que anda à roda.
— Agora não teremos de regar a horta – comentou Jerry.
Onde estava a horta? Onde estava a cabana? A lagoa escurecera. Uma fita branca ao longo da margem era a espuma das
ondas. Então vimo-la. Por baixo das árvores inclinadas, no meio da chuva brilhante que caía, jazia o amontoado do nosso
acampamento, negro e encharcado, enquanto à sua volta tudo voava, ramos, folhas, esguichos de água.
— Descobrirei qualquer coisa para fazeres, Jerry – afirmou o pai. Esta chuva vai dar-nos uma nova vida. – Pegou em
Jerry pelo braço e gritou: – Agora, acreditas em mim?
A chuva embatia no rosto de Jerry, mas o pai tinha uma das mãos debaixo do queixo dele e forçava-o a enfrentar a fúria da
água.
— Sim – disse Jerry, com a boca cheia de água. – Sim, por favor!
As portas da cabana estavam bem fechadas. A mãe e as gémeas encontravam-se lá dentro, mas o barulho da chuva no
telhado – pareciam balas – era tão forte que não nos conseguíamos ouvir uns aos outros. Com as janelas fechadas, o ar era
sufocante e abafado. Sentámo-nos de pernas cruzadas, comendo peixe e raízes, escutando a chuva a martelar no nosso
acampamento e a rufar de encontro ao telhado.
O pai sorriu e fez movimentos de lábios que queriam dizer: «Estamos bem secos.» A mãe encolheu os ombros como se
respondesse: «Isto é terrível!»
— Ingrata! – gritou-lhe o pai, por cima do ruído da tempestade. Ouvimos barulhos durante toda a noite, o ranger de tábuas
soltas arrancadas ao monte de sucata, o barulho de árvores a caírem ali perto, o estralejar da chuva nos remendos de lata das
paredes da cabana. Excitaram-me e levaram o meu coração a bater mais depressa. As pancadas do coração mantiveram-me
acordado. Imaginei que a chuva expulsara os ratos do monte de sucata, que estavam desesperados, amontoando-se em volta da
cabana, com os dorsos negros e molhados a moverem-se como uma torrente oleosa, mordendo as nossas paredes. A
tempestade fizera com que o país parecesse uma vastidão. Éramos um pontinho perdido na enormidade das Honduras, à beira
das suas costas violentas.
As portas faziam o possível por se abrirem. Era a pressão do vento, puxando-as e fazendo tilintar as dobradiças. Nós
quatro, os garotos, dormíamos na parte da frente da cabana. Os outros estavam adormecidos mas eu permaneci acordado, tal
como na noite em que fugíramos de Jerónimo. Naquela noite, o frenético som da chuva era como fogo … chamas crepitando de
encontro à casa, enchendo o ar com o cheiro da lama, parecido com o das cinzas. Carreguei no coração para o acalmar, para
poder respirar e dormir.
Uma das portas batia com muito mais força do que as outras. Agarrei-a, para a segurar, e levei uma pancada no polegar.
Quando a larguei de repente, as tábuas iniciaram um matraquear assustador e, antes de as poder segurar, toda a porta se abriu,
rebentando com uma tábua e fazendo saltar parafusos da ombreira. A chuva começou a entrar pela janela. Meti o braço de fora
para agarrar a porta e uma coisa fria e molhada segurou-me na mão. Antes de conseguir gritar, uma outra coisa fria e molhada
surgiu e procurou-me a boca.
— Não grites! – disse uma voz gaguejante.
Primeiro pensei que fosse o pai, com uma ideia nocturna e maluca.
Os dedos amargos estavam na minha boca.
— Pai … – disse eu.
Mas não era o pai, era o Sr. Haddy, com o rosto a pingar junto da janela e os olhos molhados e muito salientes. Largou-me
e murmurou: – Vem cá, depressa.
Escapei-me lá para fora apenas com os calções. Era outra das ideias que o pai tivera em Jerónimo … usar o mínimo de
roupa, quando à chuva. Dizia que era porque a pele secava mais depressa do que as roupas.
O Sr. Haddy estava de pé na lama com os braços caídos. Não o conseguia ver com clareza mas ouvia a chuva a bater-lhe
no chapéu.
— Rebentei a tua porta – disseme.
— Assustou-me – respondi eu tremendo de frio e com a chuva a escorrer-me pelo corpo e a picar-me a pele.
Pegando-me na mão e chegando tanto a sua cara à minha que a chuva escorria do rosto dele para o meu, o Sr. Haddy disse:
— Não digas ao pai que eu vim cá durante a tempestade.
Os relâmpagos iluminavam-lhe a cara de púrpura, os lábios de preto e os dentes de azul.
— Como é que veio?
— Remei e empurrei com a vara – murmurou. – Tu és um bom rapaz, Charlie.
Fiquei com a impressão de que estava muito zangado e de que me ia morder.
— O rio não é suficientemente largo para um par de remos – respondi. – Está a subir.
Olhei e vi o barco a remos na margem.
— Entra na cabana e seca-te.
— O pai está lá dentro?
— Sim.
— Então não entro. – Patinhou em direcção à margem. – Tenho aqui uma encomenda para ti.
Tirou um bidão da popa do barco e largou-o na lama. A seguir agachou-se junto dele, puxou de um saco de plástico que
tinha na algibeira e estendeu-mo.
— Isto são velas e aqui tens combustível. Toma.
— Está a chover, Sr. Haddy – foi tudo o que consegui dizer. Era meia-noite, no meio de uma tempestade, rebentara uma
porta e colocara-me a mão na boca … para me levar aquelas coisas. Para que serviriam?
— É verdade, chove mesmo. É por isso que estou aqui.
— O pai está a dormir.
— Está zangado comigo. – O Sr. Haddy rebolou o bidão ao longo da margem, empurrou-o para o monte de sucata e
prendeu-o com um pau. – Isto é para o motor fora de borda do pai – declarou.
— Que faço com estas coisas?
— Não lhe digas de onde vieram. Diz-lhe que as encontraste. Charlie, queres que eu morra?
— Não.
— Então não fales no Haddy. Agora, ajuda-me a empurrar o barco.
Arrastámos o barco para dentro de água e o Sr. Haddy saltou para o interior. Caiu um raio em cima de uma árvore no outro
lado da lagoa. Uma luz amarela-azulada inundou o céu, vibrou como um tubo fluorescente e iluminou as nuvens escuras. O Sr.
Haddy estava debruçado sobre os remos.
— Vai inundar. Os rios vão todos encher e a vossa horta fica debaixo de água. Vai haver água por todo o lado. Então
talvez o pai repare o motor e vá até Brewer. Tomaremos conta dele. Levo-os a todos a Wonks, para pescarem e caçarem
tartarugas.
— O pai não quer que ninguém tome conta dele.
— Queres morrer afogado?
— O pai não deixará. Tem um plano. Quer que chova. Está seco, dentro da cabana, é a nossa casa.
O grito de um macaco-uivador ecoou na noite.
— Aquele macaco ouviu-te, Charlie.
Os macacos-uivadores gritavam do outro lado da lagoa, sob os trovões, enquanto o ribombar e o martelar da chuva faziam
com que a terra parecesse encontrar-se no fundo de uma gruta, com um céu cheio de pedregulhos grandes demais para poderem
ser vistos. À nossa volta, no meio do molhado e do barulho, havia aquele anel de macacos. Lembrei-me de uma coisa.
— Sr. Haddy, é verdade que os Estados Unidos foram destruídos? – perguntei.
— Mau! Mau! Em todo o lado! Olha … – mas não havia nada para ver … está a encher!
— Tem a certeza? Onde ouviu isso? Quer dizer, não há nada …
«A encher», repetia, numa voz aterrorizada. Mexeu os braços. Os remos levantados deram-me a noção de onde estava a
superfície.
— Desaparece tudo!
Esta foi a última coisa que ouvi. Agitou os remos, virou o barco e remou para a chuva, resmungando qualquer coisa. A
costa desapareceu. Levou a lagoa com ele, e todas as árvores, e deixou-me de pé sob as picadas da chuva que caía a direito. A
noite era negra tanto por cima como por baixo de mim. A chuva abateu-se sobre o Sr. Haddy e sobre os seus remos. Parecia
um homem a remar para dentro de uma montanha. Era tudo chuva e gritos de macacos-uivadores naquele poço de trevas.
De manhã elevava-se vapor das fervilhantes mas frias águas da lagoa, dos nós de raízes e ervas derrubadas, e das árvores
quebradas. A terra estava coberta de vermes cor-de-rosa e toda ela, que parecia em estado de choque por causa das doze
horas de chuva intensa, jazia coberta de lixo e imóvel.
A maior parte dos rebentos da nossa horta estava agarrada à lama, tão achatados como selos, ou flutuava nos regos que
havíamos aberto. Todo o terraço em que tínhamos cavado regos deslizara de lado por cima da margem. A horta estava
inundada, os rebentos mais pequenos afogados e os maiores derrubados e mostrando os finos cabelos das raízes. Ramos,
folhas arrancadas e troncos cobriam a lagoa.
— Era capaz de apostar que somos as únicas pessoas secas neste país, talvez até no mundo inteiro! – disse o pai.
— Chove no nosso quintal e ele pensa que todo o mundo ficou molhado – sussurrou Jerry. – Por que é que não nos vamos
embora?
Puxei Jerry para um lado e mostrei-lhe o bidão de gasolina e as velas para o motor.
— Podemos fugir daqui com esse fora de borda – afirmou o Jerry, mais feliz do que eu o vira nas últimas semanas. –
Procuramos o Sr. Haddy … e ele leva-nos para casa!
— Não podemos ir para casa – retorqui. – O pai tinha razão, desapareceu tudo …
— Não!
— Foi o Sr. Haddy quem mo disse. Não ia mentir. Por favor, não chores. O aviso não foi a tempo, já começara a chorar.
Tapou a cara com o braço para a ocultar.
— Iremos para outro lado – disselhe. – Para Brewer, ou para um lugar qualquer da costa que seja melhor do que este.
Continuei a falar com ele para que deixasse de chorar e depois obriguei-o a jurar que manteria segredo sobre a gasolina e
as velas.
Clover encontrava-se junto à lagoa com o pai e dizia:
— A nossa horta está arruinada.
— O Sol fará com que tudo se endireite – respondeu o pai, mandando-nos abrir valas para escoar a água.
Durante a noite as árvores em volta da lagoa haviam ficado com um tom verde brilhante, com as folhas lavadas pela chuva.
Pareciam pintadas de fresco. O cinzento desaparecera de todo o lado e sob o céu limpo a lagoa era de um azul profundo. A
terra era negra. Insectos deslizavam por sobre a água. As tábuas soltas do monte de sucata haviam-se espalhado por todo o
lado, mas depois de as apanharmos e empilharmos o bidão da gasolina ficou oculto. Meti debaixo da minha esteira o saco com
as velas. Para que nos serviam se o pai estava decidido a ficar ali? O motor fora de borda, que tinha sido a primeira coisa que
eu verificara naquela manhã, não se deslocara com a tempestade. Continuava preso ao tronco e bem enrolado num plástico,
como uma perna de vaca.
O pai declarou que tínhamos de admirar aquele louco desperdício de energia, com a natureza doida a encharcar tudo. Uma
chuvada enorme e demencial, como uma tentativa de assassínio a que um homem esperto só conseguia escapar refugiando-se
na sua cabana à prova de água … e que não serviria de nada porque ainda estávamos vivos.
— Mas queriam que morrêssemos!
A tempestade aterrorizara toda a gente, excepto o pai. Ficou impressionado com a maneira como ela destruíra árvores, e
maravilhado com as que haviam sido desenraizadas. Calculou que deviam ter caído quinze centímetros de água durante a
noite. Que era preciso admirar tal coisa. E olhem para os arbustos esmagados! E pensem na velocidade. Podia-se construir
uma máquina que funcionasse com a queda da chuva … a chuva recolhida faria girar uma roda de pás, tal como a dos moinhos
de água, mas ainda mais eficiente, porque não sofreria uma resistência tão grande. Mas não se podia contar com a chuva,
porque o mundo era imperfeito. A Natureza tentava queimar-nos, matar-nos à fome, afogar-nos, e obrigar-nos a cavar uma
horta com um pau, como os selvagens. Surpreendia-nos e metia-nos medo de que algo de mau fosse acontecer. O medo
transformava as pessoas em religiosos malucos, em vez de pessoas criativas.
— Passar-se-ão semanas antes que alguém plante uma horta e, nessa altura, já a nossa dará flores.
A mãe afirmou que os prejuízos da chuva a assustavam, teríamos de lutar para salvar a horta.
— Gosto de uma boa luta – retorquiu o pai.
No decurso daquele dia quente, a maior parte das plantas endireitou-se, tal como ele dissera que aconteceria. Até os
rebentos mais pequenos seguiram as ordens do pai, e o que de manhã cedo parecera uma ruína e uma horta inundada, agora
crescia outra vez.
Nesse momento, o importante era proteger as plantas, declarou. Não era a quantidade de chuva o que as prejudicava mais,
mas a sua ferocidade, o vento, as rajadas de água, a erosão.
— Se não tivermos cuidado, as plantas serão arrancadas dos seus buracos. Mas vamos ter cuidado!
Cortou bocados de bambu que serviram para segurar algumas das plantas, enquanto outras ficavam apoiadas em montinhos
de lama. Então, não era uma maneira engenhosa?, quis o pai saber.
— Só acredito quando tivermos vegetais para comer – afirmou a mãe. – Paciência!
Para o fim da tarde, as nuvens surgiram e as primeiras gotas atingiram-nos como pedradas. O pai ordenou ao Jerry e a mim
que trabalhássemos nus na reparação da horta. Nós assim fizemos, enterrados na lama até aos tornozelos, com a chuva a bater-
nos nas costas.
— Trata-nos como escravos – queixou-se Jerry. – Gostava de pôr aquele fora de borda a trabalhar e escapar-me daqui.
— Já escapámos uma vez.
— Mesmo que a América esteja queimada, mesmo que tenha sido destruída, é melhor do que este buraco malcheiroso.
Quero ir para casa.
— Mas a horta agora está a salvo – disselhe. – Quando crescer, as coisas serão diferentes.
— Por que é que estás sempre do lado do pai?
— Tinha razão quanto à chuva … tinha razão quanto à horta!
— Continua a chover – insistiu Jerry, e os trovões comprimiam-lhe o rosto e davam-lhe um sorriso assustado.
No dia seguinte, metade da horta desaparecera. Algumas das plantas flutuavam na lagoa, para onde haviam sido atiradas
com os restos da tempestade, e as outras jaziam, partidas, nos regos. Os bambus não tinham dado resultado, serviram apenas
para magoar as plantas, empurradas pela força da chuva.
— Não vale a pena – disse a mãe.
— Fazes-me rir! Dizes isso como se tivéssemos uma alternativa! O que fazemos é o que podemos fazer! Não há mais nada.
A horta é a nossa única esperança, mãe. Tens alguma ideia melhor?
— Fazer as malas e ir embora.
— Não temos nada para emalar. Não há para onde ir.
— Há Brewer. O Sr. Haddy disse …
— O Figgy está muito atarefado a morrer. Estão todos, excepto nós. – Pegara numa pá e reparava os regos, replantando os
rebentos. Viu-nos a olhar e declarou: – Mantenham-se a meu lado, gente, ou também vocês morrerão.
— Odeio-o – disse Jerry, ajoelhando-se, e Clover ouviu-o.
— Vou contar ao pai o que disseste.
— Pois eu quero que ele o saiba, parva. Quero vê-lo a disparatar. Clover começou a chorar e correu para a mãe:
— O Jerry chamou-me nomes!
— Ninguém se rala – dizia o pai. Atirou com a pá e desembrulhou o motor. Fê-lo girar com a corda, obrigando-o a
funcionar. Ao vê-lo naquilo, quase lhe falei nas velas e na gasolina, mas ele dissera: «Não temos nada para em alar. Não há
para onde ir.» Ficaria ainda mais furioso. Perguntar-me-ia como as arranjara, porquê e onde. Gritaria se lhe falasse do Sr.
Haddy. Desejava que o Sr. Haddy não tivesse aparecido ali, para me sobrecarregar com aquele segredo.
— Aquilo é para o manter mentalmente são – troçou Jerry.
Olhei para o pai, que puxava a corda de arranque do motor fora de borda.
— E não está a trabalhar – continuou Jerry, soltando uma gargalhada.
Concentrámo-nos no que restava da horta. Parando junto da margem podia agora ver que não fora a chuva a culpada dos
maiores prejuízos. O nível da lagoa subira, tal como o Sr. Haddy predissera, e submergira as plantas que se encontravam mais
perto da água. Jerry quis ir dizê-lo ao pai, para lhe provar que cometera um erro, mas começou a chover antes de o poder
fazer. Despimos as roupas e tratámos da horta. Nesse dia choveu cinco vezes. Ao meio-dia fazia tão escuro que tivemos de
acender velas na cabana para ver os caranguejos.
Alguns dias antes, tudo fora poeira e árvores cinzentas. Agora, encontrávamo-nos no meio de lama e água. Havia rãs onde
antes não existiam, e cobras, e rastos de animais por todo o lado. Os lagartos deixavam marcas em toda a margem, como as
notas de uma pauta de música, pequenos sinais de notas acima e abaixo da linha direita deixada pelas caudas. Havia mais
aves, mais caranguejos e mais camarões de água doce, trazidos à vida pela chuva. Eram fáceis de apanhar. A mãe cozia-os no
fogão e fez-me pensar que podíamos sobreviver sem a horta.
Uma madrugada, o pai entrou na cabana, muito sorrateiro. Estava cheio de lama no peito, na frente das coxas, nas mãos, na
barba, de onde pingava, e no nariz. Estava zangado. Não quisera que o víssemos, mas ficámos todos a olhar e até a mãe ficou
intrigada.
— Flexões – disse, puxando a corda do motor.
— Os carniceiros voltaram – disse o pai, olhando para cima.
As gaivotas cinzentas e os gordos pelicanos começavam a voar para o interior para se alimentarem das criaturas surgidas
da lama. Seguiam-nos os abutres, que em vez de se alimentarem procuraram poleiros e aguardaram. O pai gritou para os
pássaros, para os assustar. Os pássaros devolveram-lhe os gritos. Odiava aqueles pássaros, afirmou, odiava os seus olhos
loucos, os seus bicos sujos, o modo como se lançavam sobre as presas e lutavam pelos restos. Assim, como vingança –
porquê, se os pássaros não nos tinham feito nada? – apanhava-os com anzóis iscados, que engoliam, depenava-os e assava-os.
Depois comia-os. Uma fome que era ódio. Servia-se das gorduras para olear o motor fora de borda e deixava as penas e o
sangue na lama. Uma manhã, vimos que apanhara um abutre e o pendurara bem alto, numa árvore. Aí ficou, linchado, até que
as outras aves o desfizeram.
— Sabes por que é que odeio estes pássaros?
— Allie, por favor – disse a mãe, virando a cara. – Porque me fazem recordar os seres humanos.
Negava que a água da lagoa estivesse a subir. Mesmo depois de esta ter coberto a maior parte da horta, continuava a não
querer admitir que a lagoa estava a encher. Afirmou que era a terra que assentava. – É um efeito de afundamento. Foi por isso
que fiz uma cabana estanque. Estava à espera disto!
Martelou uma vara graduada na lama, na beira da lagoa. No dia seguinte a vara desaparecera, ou engolida ou arrastada. O
pai disse que um abutre a confundira com um monte de excremento e a comera.
As tempestades tinham-nos limpo o acampamento. A destruição deixara-o mais arrumado. A capoeira para os mutuns,
quase pronta, desaparecera. A latrina estava no meio do rio. As tábuas das passarelas mostravam-se cobertas de lama. A
bomba fora-se abaixo … parecia agora pequena e simples, tombada no chão.
A cabana começara a afundar-se. Inicialmente assentara bem alto sobre a lama, sobre o seu fundo à prova de água, mas
agora a lama trepava pelas paredes do fundo, parecia um daqueles jazigos familiares meio embebidos no chão, nos velhos
cemitérios.
A mãe ficou preocupada, afirmou que não podia cozinhar ajoelhada na água, e que aconteceria se a cabana se continuasse
a afundar até a lama entrar pelas aberturas? O pai mudou o fogão para o interior e instalou uma chaminé. Mais do que nunca, a
cabana parecia agora uma pequena barca e a água da lagoa já chapinhava na sua frente.
— Allie, a água deixa-me nervosa.
O pai arranjou uma corda e uma roldana e servindo-se de uma árvore para segurar o conjunto, tentou puxar a cabana para
mais longe da lagoa. Esforçou-se, mas foi inútil, a cabana estava bem presa na lama. Deixou-a assim, amarrada à árvore.
— Isto não devia estar a acontecer – declarou. – Não era para se afundar na lama.
Acrescentou-lhe troncos laterais, ao nível da lama, para a estabilizar e para evitar que se afundasse mais. Disse que tinha
muita pena de não termos tempo para ir até à costa, pois a tempestade devia estar a lançar coisas muito interessantes para a
praia. Os mares mais revoltos davam-nos as coisas melhores … correntes de ferro, bidões de aço, metros de pano de vela. Só
as marés vulgares é que traziam assentos de sanitas.
Ficámos na lagoa de Mosquitos e tentámos dar mais segurança ao acampamento. Abrimos valas, tratámos das plantas que
restavam, pescámos. As tempestades assaltavam-nos. Surgiam pela calada e escureciam o Céu. Gelavam-nos e obrigavam-nos
a refugiarmo-nos no interior. Roubavam-nos a madeira, rebentavam as valas, enchiam tudo de lama e excitavam os macacos.
Essas tempestades eram sempre seguidas por bandos de pássaros em busca de comida.
— Sacos de areia – disse o pai. – Se tivéssemos sacos de areia, estaríamos bem. Aposto que há montes deles em
Mocobila. Não sabem que fazer com eles. Na costa, estão todos muito ocupados a morrer.
A chuva e a enchente da lagoa roubavam-nos a maior parte do que tínhamos e o vento levava o resto. Agora pouco mais
havia do que a cabana. O monte de sucata espalhara-se, o bidão de gasolina desaparecera. Fiquei satisfeito, assim já não tinha
um segredo para guardar. Não me meteria em sarilhos e de qualquer modo não havia para onde ir a Jerry disse que em breve o
pai desistiria e nos levaria para Brewer.
Não tinha por onde escolher, o acampamento era um falhanço, fizera mal em esconder-se ali.
Uma semana depois já não havia horta, não restava um único rebento.
Não tínhamos mais sementes. Vivíamos de caranguejos. Andávamos por; ali de pernas sujas, a lama secava em cima de
nós e originava crostas cinzentas sobre a pele.
«Mantenham-se limpos», dizia o pai, mas o chuveiro de água quente que construíra foi a próxima coisa a desaparecer. A
lagoa estava por baixo da metade da frente da cabana e à noite eu podia ouvi-la, pareciam ossos a bater debaixo do chão. A
cabana permanecia inclinada para a frente, forçando a corda. Durante as tempestades ouvia-se a corda a ranger. – Entra água?
– perguntava o pai. Não entrava, a cabana permanecia seca. Era a sua única satisfação. Gabava-se do facto sempre que
chovia.
— Há água por baixo da frente – disse eu.
— Da proa – respondeu o pai. – Por baixo da proa.
Começou a dizer coisas como «Vai para estibordo» ou «Vai para bombordo».
— Estamos amarrados àquela árvore. Se o cabo se rebentar ou a árvore ceder, passaremos para a canoa. Não seremos
arrastados. Jerry, lava o convés.
Havia uma forte corrente a fluir pela lagoa. O pai entrou em pânico quando a viu. Nos músculos e turbilhões dessa
corrente flutuavam arbustos arrancados, ramos, cocos, frutos negros e animais mortos e inchados, todos deslocando-se
velozmente para o rio e para o mar.
A terra amolecera e transformara-se num pântano. As árvores estavam no meio da água, os trilhos tinham desaparecido e a
água continuava a subir, até que aquilo que fora um acampamento ficou debaixo de água. A cabana permaneceu de fora,
pousada em cima de uma pequena ilha de lama. Haviam surgido novos ribeiros nas margens da lagoa.
Naquele labirinto de águas enlameadas não conseguíamos avistar um único ser vivo. As aves voavam à nossa volta. O pai
amaldiçoava-as de bordo da cabana inclinada. Queria matá-las a todas.
O mundo afogara-se, declarou.

Fizemos uma lista das coisas de que necessitávamos: correntes, roldanas, peças para fixar uma roda de pás, madeira para
as passarelas, pano de vela, sementes, tubos, bocados de lata, rede de arame, sal.
— Sementes? – perguntou a mãe. – Mas não há onde as semear! – Hidropónicas – respondeu o pai. – Cultivamo-las dentro
de água. Pensa nisso.
Disse que tinha a certeza de que a maior parte das coisas de que precisávamos jazia na praia perto de Mocobila. Logo que
a chuva abrandasse daria lá uma saltada na canoa, para uma última vista de olhos à costa de Mosquito.
— E se morremos? – perguntou April.
— Há coisas piores.
— O que é que pode ser pior do que a morte? – inquiriu Clover.
Transformarmo-nos em consumidores de lixo. – O pai deu uma palmada na lista. Já começou a acontecer. Tive de
aproveitar este resto de papel e este resto de lápis. Mas não preciso destas coisas … vocês é que precisam.
Talvez mandem alguém à nossa procura – continuou Clover. – Mandem … quem?
As pessoas.
Quais pessoas? Pensas que a Guarda Costeira está lá fora à espera de que enviemos um pedido de socorro? Que há
equipas de salvamento à nossa procura, enfiadas em gabardinas? Não … já foram todas torpedeadas. Acredita no que te digo,
somos os únicos sobreviventes.
— Allie, por que não nos vamos embora todos juntos? Ainda temos canoa. Podemos descer o rio, podemos …
— Descer o rio! – O pai fez uma careta zangada. – Seguindo a corrente, os ramos partidos, os frutos podres! Não o farei.
— Por que não?
— Porque não sou um ramo partido. Só as coisas mortas descem o rio. Há por lá uma verdadeira procissão funerária. Se
nos rendermos à corrente, estamos perdidos. – Apontou com o coto do dedo em direcção à costa. – Tudo tem tendência a ir
para ali. Mas temos de combater essa tendência, porque lá em baixo está a morte.
— Podíamos viver em Brewer. Sabes bem isso.
— Como selvagens, como esses pássaros. Preferia morrer a ter de me alimentar de lixo. Da mão para a boca? Eu? Não,
mãe, eu faço coisas, e se não conseguir sobreviver desse modo, partirei envolto em chamas. Transformo-me numa tacha
humana, para que esses pássaros não me devorem. Ah!
— Então, e nós? – perguntou Clover.
— Arderemos todos! Não é nenhuma desgraça sermos os últimos a partir! Significa que provámos o nosso ponto de vista!
Continuava a sorrir e o seu rosto brilhava, como se já sentisse o calor dentro dele próprio.
Pensámos que falava a sério e ficámos muito admirados quando a mãe se riu. O pai desafiou-a com olhos furiosos.
— Allie, estamos demasiado molhados para podermos arder.
— Tenho combustível. – Abriu muito a boca, para troçar dela. Ficou com um ar selvagem.
— Não tens nada!
— Gasolina – uivou o pai. – Tomamos banho nela … Um só fósforo e … puf!
Era como se tivesse dito à mãe que tinha uma arma.
— Aqui não há gasolina – retorquiu a mãe, recuando.
— Um bidão dela. – A mãe não disse nada. – Encontrei-o na lama. Houve um parvo qualquer que o deitou fora, devia estar
muito ocupado a afogar-se. O bidão chegou à nossa costa. Amarrei-o a uma árvore.
— Sorriu para os nossos rostos assustados. – Não é nenhuma desgraça morrer à nossa própria maneira.
Jerry olhou para mim. Abanei a cabeça. Não queria que ele dissesse ao pai que fora o Sr. Haddy quem nos trouxera a
gasolina.
— O Charlie tem velas – declarou Jerry.
— Charlie não tem tal coisa.
— Mostra-lhas – pediu-me o Jerry.
Tirei o saco de plástico de debaixo da esteira e entreguei-o ao pai.
Rasgou o plástico com um esticão e verificou o estado das velas com a unha do polegar.
— Encontrei-as na lama – expliquei, olhando para o Jerry, desafiando-o a negar que tivesse sido assim.
O pai suava. Aproximou-se de mim. Tinha o rosto em brasa, os lábios brancos e estalados. Pensei que me ia bater, ou
exigir saber onde as arranjara – o local exacto – para me acusar de mentiroso. Hesitou, talvez envergonhado por ter falado de
suicídio e de nos encharcar em gasolina. Abriu a boca para dizer qualquer coisa mas antes de o conseguir fazer a mãe gritou.
— Allie! – o pai virou-se para ela. Com o medo nos olhos a mãe disse: – A casa mexeu-se!
O pai sentira-o – o mesmo acontecera com todos nós – no momento em que abrira a boca. Uma pancada suave, um
empurrão de encontro às tábuas, um deslizar lateral por debaixo dos nossos pés. O pai começou a rir-se e esqueceu-se de
mim. Correu para o exterior, gritando:
— Planeei as coisas assim!
Naquela noite fomos acordados por um trovão que abalou a cabana … mas o trovão era o motor fora de borda a vibrar na
tábua a que se encontrava preso. Ecoava por toda a lagoa e pelo pântano em volta. O pai desligou o motor e então pude ouvir
os morcegos, o constante martelar da chuva, os macacos a responderem ao barulho feito pelo motor.
A seguir ficámos a flutuar, sentia a água a lamber a cabana e a balouçar-nos nas redes. A enchente da lagoa elevara a
pequena cabana à prova de água e transformara-a numa barca. De manhã tínhamos água à nossa volta e éramos iluminados
pelo enlameado brilho das águas da lagoa. As árvores estavam distantes mas a corda continuava a manter-nos amarrados à
árvore solitária, no meio da água. Encontrávamo-nos fora da corrente e o motor estava fixado à amurada do curto convés
traseiro. A canoa, com o bidão da gasolina e alguma sucata que o pai salvara, estava amarrada à popa, pois o pai recordou-me
de que era assim que lhe devia chamar.
— Quem tinha razão? – Pegou na mão da mãe e declarou: – Não conseguiria morrer mesmo que o tentasse!
— E se meter água? – perguntou a mãe.
Há troncos debaixo de nós! Somos estáveis! Não nos afundamos!
Planeei as coisas assim!
A mãe estava junto do fogão, fritando o peixe do pequeno-almoço.
— Rebocador Annie – disse o pai. – Agora vou comer. Tenho andado a poupar-me para este momento … Pode chover à
vontade!
A cabana raspava no fundo, e quando oscilava com os nossos movimentos sentíamo-la bater na lama por debaixo de nós, a
deslizar em terra macia. O pai comeu um pequeno-almoço substancial, depois pegou na vara da canoa e começou a empurrar-
nos para águas mais abertas.
— Logo que chegarmos à costa – disse o Jerry-, vou à procura do Sr. Haddy. Pode levar-nos até La Ceiba. Podemos
apanhar aquele barco das bananas.
— Pai, o Jerry diz que vamos para a costa – gritou Clover. – Queres morrer, rapaz?
— Mas estamos salvos … foste tu que o disseste!
— Qualquer pessoa pode flutuar até à costa – retorquiu o pai, empurrando a vara. – Podia tê-lo feito sem motor. Mas
aguentei-me. Lutei contra essa tentação. – Voltou a fazer força na vara. – Não nasci para criar hortaliças. Sou um inventor …
fabrico coisas, Jerry. Essa costa de Mosquito não vale nada. É a beira do precipício. Um passo em falso … e desapareces. –
Continuou a empurrar a vara, levando-nos para águas mais profundas. – Há morte, lá em baixo. Destroços. Comedores de
restos. Tudo o que está partido, podre e morto segue por esse rio em direcção à costa. É o ponto que fica mais perto dos,
Estados Unidos. Como é que podemos saber que não está envenenado? Tenho lutado sempre contra a corrente mas foi difícil.
Não cedi um milímetro. Quando é que me ouviram dizer: «Muito bem, vamos à deriva e que Deus nos ajude?» Nunca! É por
isso que estamos a vencer.
— Não há sítio nenhum para onde ir … foi o que nos disseste! – insistiu Jerry.
— Estás a tirar essa frase do seu contexto! – O pai mergulhou a vara na lama e ficou agarrado a ela. – Estás a fazer uma
citação incorrecta. Não é verdade, Charlie?
— Se não vamos para a costa, então para onde vamos? – perguntei.
— Faço coisas! Tenho mapas na cabeça! Nesses mapas há mais lugares seguros do que podem imaginar. Olhem para a
casa que construí! Flutua! Olhem para este motor … – Enrolou a corda do arranque e pô-lo a funcionar. – Funciona! Um
estúpido qualquer deitou-o fora! Olha para nós, mãe … deslocamos apenas trinta centímetros de água, e quarenta centímetros
do lado de fora! Podemos ir a qualquer lado nesta jangada. Podemos fugir desses pássaros. Morrerão todos aqui, mas nós
continuaremos a viver. Acham que sou suficientemente louco para me arriscar a que nos afoguemos todos, quando todo o
mundo nos pertence?
Dizendo isto e muito mais coisas, apontou a cabana para o interior, em direcção ao Patuca, guiando-nos contra a corrente.
QUARTA PARTE – A SUBIDA DO PATUCA
XXVI

— Salvei-vos de uma morte certa – disse o pai.


Sim, estávamos vivos naquele mundo aquático.
— O que é que vão fazer por mim?
Que é que lhe podíamos recusar? Devíamos-lhe tudo. – Terão de fazer o que eu disser.
De que outra maneira lhe poderíamos pagar?
— Para cima – declarou. – Para a foz … é um esgoto. Sabem bem disso. Mesmo que fosse verdade, tal não servia para
tornar a viagem mais fácil. Cada quilómetro parecia um erro, porque já não estávamos livres. Era como a morte lenta dos
sonhos em que nos sentimos encurralados, tentando gritar e não o conseguindo. Ninguém disse nada.
No espaço de um dia, a nossa situação havia mudado. Dê uma família encharcada e discutindo, com as mãos sujas
agarradas a um sórdido monte de lama, cheia de medo ante a hipótese de inundações piores, tínhamo-nos transformado em
gente do rio. A nossa principal preocupação era de que o casco se abrisse ao embater em rochas submersas. Iríamos para o
fundo como uma pedra. Jerry eu trabalhávamos com a sonda, à proa. O martelar do motor fora de borda deixava as árvores
limpas de macacos – que aqui eram babuínos de focinhos brancos e macacos de rabo às riscas – e assustava tudo excepto as
borboletas.
As trovoadas e chuvas da lagoa, bem como a ruína da nossa horta, não passavam de uma memória. Mas no preciso
momento em que pensávamos estar salvos e que iríamos para Brewer à procura de um abrigo seguro numa daquelas casas
parecidas com campanários sobre estacas, o pai virava-nos para o outro lado e começava a lutar contra a corrente do rio.
Jerry afirmou que aquilo lhe parecia perigoso.
Eu disse ao pai que estava assustado.
— Allie, por que é que não nos arriscamos a ir até à costa? – perguntou a mãe. – Pelo menos sabíamos onde estávamos.
O pai chamou-nos selvagens. Afirmou que fora aquele tipo de pensamentos que provocara a perdição da carcaça da
humanidade. Queríamos morrer todos? O perigo não estava no desconhecido, mas sim no conhecido. Só os que se estão a
afogar se agarram aos destroços. Os que se dão ao trabalho de procurar o desconhecido serão salvos … mas quem se
preocupa em fazê-lo? Claro que era difícil fazer com que aquele barco pesado subisse a corrente de um rio cheio, só com um
motor! Isso era a prova de que valia a pena!
Tivera razão noutras coisas, portanto, acompanhámo-lo naquela e descobrimo-nos a concordar com tudo o que ele dizia.
— Os dentistas dos Estados Unidos tinham interesses nas fábricas de doces – declarou. – Os médicos eram donos de
hospitais. Os bancos de Detroit controlavam os poços de petróleo. A América sofria de cancro! Eu via que tudo ia por água
abaixo! Por que razão ninguém mais o via?
Um dia passou por nós um aerossol contra os insectos. O pai nem sequer se interrogou de onde viria, estava demasiado
ocupado a refilar a seu respeito. Surgiram jarros de plástico na água. Protestava ainda mais. Protestava contra as pessoas
gordas, os políticos, os bancos, os cereais para o pequeno-almoço, os comedores de restos … Havia abutres enlameados
mesmo na nossa frente. Gritava com eles e amaldiçoava as máquinas.
— Estou ansioso pelo dia em que possa ver-me livre deste motor fora de borda … Transformo-o naquilo que na verdade
é, uma picadora de carne.
Todas as máquinas escavavam túmulos, declarou. Bastava que as deixássemos em paz um minuto, para logo se estragarem.
Só serviam para uma coisa … para as enterrarmos.
— Já tive um poço! – Lambeu os lábios, congratulando-se a si mesmo. – Fiz gelo do fogo!
Baptizou a nossa casa flutuante de Francis Lungley, depois mudou-lhe o nome para President Fox, e finalmente escrevinhou
Victory num dos lados, com um prego. Disse que a casa era o mundo. Tinha cinco metros de comprimento por dois de largura.
Ele e a mãe dispunham da «cabina principal» (o fogão, a cadeira, o colchão de penas de pelicano). Com as madeiras em
excesso atiradas fora ou cortadas para lenha, a jangada movia-se na água com mais facilidade, com a graça de um barco de
canal ou das barcas motorizadas do vale de Connecticut. Logo que saímos do afluente, onde os ramos batiam no nosso telhado,
avançámos pelo meio do rio, contra a corrente. Para qualquer lado, dizia o pai, desde que fôssemos contra a corrente.
Entrámos no Patuca no primeiro dia. Ficámos surpreendidos quando descobrimos que aquele grande rio correra durante
todo o tempo por detrás do pântano, a leste da nossa pequena lagoa dos Mosquitos, a quatro horas de distância, mas o rio
estava bem escondido, só o vimos quando já quase estávamos em cima dele. O pai afirmou que não ficara nada surpreendido,
que mais uma vez tivera razão! A chuva fizera o rio galgar as margens e penetrar por entre as árvores, tornando-o silencioso e
tão largo que nalguns sítios nem parecia estar a correr.
O pai conduzia o barco ao longo das margens submersas, onde a corrente era mais fraca. Avançamos devagar, mas tal
como ele dizia: «Para quê a pressa? Isto não são férias … é a vida!»
À noite amarrávamos o barco a uma árvore, comíamos e dormíamos, com os potes de fumo a arderem por causa dos
mosquitos. Quando se aproximava uma nuvem de mosquitos, os seus milhões de insectos caíam sobre nós como uma terrível
rede e provocavam um zumbido agudo, o som que um rádio faz quando está sintonizado entre duas estações.
Com o rio a murmurar à nossa volta, lambendo os troncos, mais uma vez o pai afirmou que éramos os únicos que restavam
em todo o mundo. Se gritasse por socorro, ninguém apareceria. Oh, claro, podíamos encontrar gente perdida, ou selvagens, ou
até aldeias inteiras em terrenos elevados, que houvessem sido poupadas, mas éramos os únicos que sabiam que se dera uma
catástrofe … o fogo, seguido pelo trovão da guerra, e as inundações, que tinham acontecido na Terra. Como é que alguém ali
na costa de Mosquito podia saber que a América fora devastada? Um dos estreitos conceitos do homem era o de que a chuva
caía apenas em cima dele … mas o pai sabia que fora geral. Em cada um dos estágios, predissera o que viria a seguir. Até os
Americanos tinham visto a escrita nas paredes … e não haviam sido capazes de falar de outra coisa! Mas enquanto
permaneciam sentados, lamentando-se e girando os polegares em volta um do outro, o pai tomara contramedidas para evitar a
nossa destruição.
— Por vezes posso ter exagerado – disse-, mas isso foi apenas para vos convencer da seriedade do caso e para vos fazer
mexer. Vocês resistem à organização. Durante metade do tempo nem sequer acreditam em mim!
Que diferença fazia, perguntava, se se enganara a respeito de coisas sem importância? A justeza das suas acções fora
comprovada pelos grandes acontecimentos. O que tínhamos visto durante o último ano fora a mais elevada forma de criação.
Iludira o espectro que pairava sobre o mundo, removendo-nos para longe de uma civilização frágil e temporária. Todos os
mundos acabavam um dia, mas os Americanos haviam-se mantido convencidos de que o seu, apesar das falhas óbvias, duraria
para sempre. Impossível … mas o pai ia levar-nos em segurança rio acima.
— Conversa fiada! – exclamou Jerry. – Só conversa fiada!
O pai não o ouviu, porque gritava:
— Como é que posso estar enganado, se vou contra a corrente? A costa estava morta. A corrente do rio corria para a
costa. Portanto, era lógico que vinha do lado da vida … das montanhas e das nascentes. Aí, entre os vulcões de Olancho,
construiríamos a nossa casa.
Isto foi o que nos disse uma noite, na cabina, depois de atracarmos a casa a uma árvore e com as rãs a coaxar no exterior.
Durante o dia também falava, mas com o motor a trabalhar já quase não ouvíamos uma palavra do que dizia.
O rio parecia nascer do chão. Inundava a selva, era tudo uma vastidão de água. Troncos de árvores com as raízes à mostra
passavam por nós aos trambolhões. Chovia menos vezes … uma chuvinha de manhã, uma carga de água à tarde. Mas, tal como
o pai dizia, éramos à prova de água. Para beber, aproveitávamos a água da chuva. O sol a brilhar no rio enlameado dava-lhe
um tom de latão polido, e punha ligeiros reflexos na selva. Brilhando através da neblina da manhã, espessava o ar de vapores
dourados que dançavam por entre os ramos. Nalguns sítios havia verdadeiras nuvens de borboletas brancas, regatas delas
pairando mesmo junto à água. Ou então azuis, grandes como pardais, agitando as enormes asas tão lentamente que se moviam
como maravilhosos farrapos de seda caídos das árvores.
Por duas ou três vezes vimos mosquitos ou zambus em canoas, deslizando rapidamente a favor da corrente. Por vezes
acenavam-nos, mas a corrente levava-os com tal velocidade que mal os avistávamos e já tinham passado por nós, para lá da
última curva.
— Está perdido – dizia o pai quase sempre que passava um deles. – É um homem morto. Um zombi e não um zambu. Vai
para baixo, para morrer.
Tinham uma aparência molhada mas perfeitamente normal, remando vestidos com as espessas roupas interiores,
cavalgando a agitação da corrente.
Jerry disse que um daqueles dias saltava para a canoa e deixava que a corrente o arrastasse para a costa. O pai soube
daquilo, talvez por uma das gémeas, e ordenou-lhe que embarcasse na canoa.
— Pronto, aí vais!
Largou a canoa e deixou-a ir rio abaixo. O Jerry estava demasiado aterrorizado para remar. Agarrou-se ao assento e
agachou-se com a cabeça encolhida, gritando. Quando o Jerry já quase não estava à vista, a mãe disse:
— Allie, faz qualquer coisa!
O pai puxou pela ponta de uma corda. Estava amarrada à canoa. Deu-lhe um esticão, fazendo o Jerry cair com a cara no
fundo da canoa.
O Jerry tremia quado o pai puxou a canoa de volta para junto de nós.
— Isso foi uma loucura! – protestou a mãe.
— Provei o que queria. Satisfiz o meu desejo!
— E se a corda se partisse?
— Então o Jerry teria o seu desejo satisfeito – respondeu o pai. – Alguém mais quer experimentar? Para a próxima sou
capaz de me decidir a largar a canoa. Vai pelo esgoto abaixo. Alguém está interessado?
Noutro dia apanhou-me meio adormecido sobre a sonda. Como castigo, mandou-me para a canoa, que rebocou atrás do
barco («Espero que esse cabo não se parta! O melhor é não te mexeres muito.»), enquanto a minha pequena embarcação
saltava e oscilava no seu rasto.
Passámos por aldeias inundadas. Estavam desertas, com os esqueletos de madeira de pé na água, algumas tombadas, outras
apenas com telhados rebentados. Estas cabanas mortas e vazias provavam que o pai tinha razão. Afirmou que as pessoas
haviam sido arrastadas pelas águas, ou que eram aquelas que víramos a remar ao longo do esgoto, para se irem afogar no mar.
— Não precisam disto – afirmou, enquanto se apoderava de limas, abacates e outros frutos das suas árvores. Encontrámos
sacos de arroz e feijão nalgumas dessas aldeias. – Não é nenhum assalto – informou o pai. – Não é um roubo. Onde agora
estão, já não precisam disto.
Às vezes, porém, as aves chegavam lá primeiro.
— Devoradores de carniça!
Um dia pensámos avistar um avião, mas o nosso fora de borda fazia tanto barulho que não lhe conseguimos ouvir os
motores. O pai disse que era um abutre. Quem era o ser humano que tinha o bom senso de ir para ali? Esta era a parte mais
vazia de todo o mapa. Em todo o mundo, aquela parte das Honduras era a mais segura e a menos conhecida … a última zona
selvagem.
— Mas não me elogiem por isso … dêem graças a este barco! – o nosso Victory era como um porco de madeira dentro de
água, estalando e chiando rio acima. – É futurista!
A chuva molhara as formigas e fizera-as ganhar asas. Ao pôr do Sol estas térmitas voadoras amontoavam-se no telhado do
nosso barco-cabana. A selva estava cheia de formigas aladas em busca de alimento. A água do rio mudava de cor à medida
que mudava o tempo, e era diferente de hora para hora. Gostava do seu dourado, ou do verde das horas do dia, com a margem
de lama vermelha a ver-se por baixo como um bolo ensopado coberto por oscilantes espinafres, bem como do modo como se
movia na selva imóvel.
Ao crepúsculo, o ar ficava repleto de insectos enquanto os pântanos pareciam uma zona doentia nos espaços escuros por
debaixo das árvores. O céu clareava à medida que as sombras desciam. As sombras engrossavam e aprofundavam-se. De
súbito o céu ficava mais sujo … e era a noite, não se via nada, com um preto tão preto que conseguíamos sentir a sua pelagem
de encontro aos nossos rostos … Sem o Sol para o queimar, o cheiro vindo das árvores era como o odor da carne podre. O rio
cheio farejava como uma matilha de cães, e as aves andavam aos saltos nos ramos perto de nós, soltando gritos estridentes e
altos. Sentia-me sempre mal durante aquela hora de tempo parado, as sobras do dia. Atracávamos e sentávamo-nos entre os
potes de fumo da nossa cabana flutuante, comendo o que conseguíamos arranjar nas aldeias afogadas.
Isto é o futuro – dizia o pai. Espetava o nariz queimado pelo sol junto das nossas caras até concordarmos que estávamos
confortáveis, que tínhamos sorte e que nos divertíamos muito. – Assim é que é insistia. – O erro fatal que toda a gente cometeu
foi pensar que o futuro tinha algo que ver com a alta tecnologia. Eu próprio cheguei a pensar desse modo, mas isso foi antes
desta experiência. Oh, Deus, o mundo ia ser feito apenas de foguetões.
— Monocarris – disse eu.
— Cápsulas espaciais – acrescentou Clover.
— Fedorvisão. Videocassetes em vez de escola. Tudo aerodinâmico.
As refeições iam ser comprimidos … verdes para o pequeno-almoço, azuis para o almoço, encarnados para o jantar.
Atiravam-se para dentro da boca … e ali estava toda a nutrição necessária.
— Fatos espaciais – disse April.
— Isso mesmo. Gente estupidificada, com orelhas em bico e nomes como «grok», usando capacetes e vivendo em casas
cromadas. Passeios, rolantes, cúpulas de vidro sobre as cidades. Nenhum trabalho excepto brincar com computadores e
cheirar a fedorvisão. «Metam-se nos foguetes, rapazes, e vamos fazer um piquenique na Lua» … e outras coisas assim.
— Podia acontecer – afirmou a mãe.
— Nunca. São tudo tretas.
— Acho que o pai tem razão – declarou Clover.
— A ficção científica deu às pessoas mais falsas esperanças do que dois mil anos de Bíblia. Tudo mentiras. O programa
espacial … é nisso que estão a pensar? Era um poço sem fundo, um desperdício do dinheiro dos contribuintes. Não há nenhum
futuro no espaço! Adoro esta palavra … espaço! É isso mesmo o que eles estão a descobrir … espaço vazio!
— Também acho que o pai tem razão – acrescentou April.
— Isto é o futuro. Um pequeno motor num pequeno barco, num rio enlameado. Quando o motor rebentar ou se acabar a
gasolina … remamos! Nada de homens do espaço! Nada de combustíveis, foguetões ou cúpulas de vidro. Apenas trabalho! O
homem do futuro vai ser um cavalo de carga! Não há nada na Lua a não ser pedras e borbulhas, e aqueles de nós que herdaram
esta Terra senil e exaurida não terão nada a não ser rodas de madeira, carroças, alavancas e roldanas … a mais simples física
do liceu, que deixaram de ensinar quando toda a gente a largou para começar a ler ficção científica. Não … nada disso! Ou
cultivamos o que comemos, ou morremos. Nada de pílulas verdes e montes de comida da boa! Trabalho violento … simples
mas não fácil. Percebem? Nada de raios laser ou electricidade, apenas a potência dos músculos. O que estamos agora a fazer!
Somos as pessoas do futuro, utilizando a tecnologia do futuro. Descobrimo-las!

Queria que nos sentíssemos, no barco-cabana que estalava, como sendo as pessoas mais modernas do mundo, que
detínhamos o segredo da existência na nossa enfumarada cabina. Agora nunca falava em transformar o mundo com gelo ou com
energia geotérmica. Prometia-nos porcaria e trabalho. Era essa a glória, dizia.
Porém, depois daquelas curtas noites, punha o motor a trabalhar e dirigia a frente da cabana contra a corrente, enquanto o
Jerry me sussurrava:
— Vai matar-nos a todos.
Mantínhamo-nos junto da beira do rio, dando a volta às saliências da margem e estudando a corrente antes de seguirmos
em frente. Fazíamos nove ou dez quilómetros por dia e ainda dispúnhamos de muita gasolina. Que diferença fazia, se a
gastássemos toda? Tínhamos o resto das nossas vidas para subir o rio …
Pensei que toda a gente, excepto o Jerry, estava convencida. Mas um dia, enquanto avançávamos, o motor fora de borda
enlouqueceu. Começou a gritar num som cada vez mais estridente, mais frenético e animalesco, e pouco depois lançava um
guincho agudo. As aves como que explodiram nas árvores. A seguir houve qualquer coisa que estalou, quatro ou cinco
estranhos ruídos e o motor parou. No entanto, os seus ecos continuavam a fazer estremecer a selva. O barco hesitou, fez-se
mais leve e sem direcção. Oscilava e girava na corrente.
Seguíamos rio abaixo, de lado, levados em silêncio pelo rio, sob as formigas que se precipitavam sobre nós.
— Âncora! – gritou o pai. – Lancem os cabos!
A nossa âncora era uma beleza – encontrada na praia perto de Mocobila-, um feixe de ferros encurvados na ponta de uma
grossa barra. Mas era também muito pesada, foi precisa a ajuda do pai para a deitar por cima da borda e, nesse momento, já
íamos com tanta velocidade que pensámos que não agarraria. O pai saltou para a água e nadou para a margem com uma corda.
Amarrou a cabana-barco e a âncora prendeu.
Estávamos numa curva do rio. A corrente fazia-nos oscilar na ponta da corda, no meio do rio, lançando-nos jactos de água
de cada lado do casco. Todo o barco vibrava quando ajudámos o pai a subir para bordo. Tínhamos perdido o contrapino – o
que não era grande coisa, afirmou-, mas significava que a hélice caíra para o fundo do rio.
— Não podes fazer uma nova? – perguntou a mãe.
— Claro que posso – respondeu o pai. – Passa-me aí o torno mecânico, o calibrador, as máquinas-ferramentas, e tudo o
resto. Quê? Quer dizer que só temos cuspo e uma chave de fendas? Então vou ter de mergulhar para procurar aquela hélice.
Olhámos para montante, para os negros cornos da corrente a embater na margem.
— Não se preocupem – disse o pai. – Temos o resto das nossas vidas para a encontrar. – Sorria e mordia a barba. Virou-
se para o Jerry e perguntou: – Por que é que te estás a rir?
— Por causa do resto das nossas vidas. Parece uma loucura quando diz isso assim.
— Veremos até que ponto é loucura. Vais mergulhar para a procurar.
— Então, e os aligátores? – perguntei.
— Tu não tens medo dos aligátores – retorquiu. – Mergulharás depois do Jerry.
— Não! – protestou a mãe. – Não deixarei que os rapazes saltem para a água.
— Escutem-me bem – retorquiu o pai. – Não se trata aqui do que vocês querem ou não querem. Sou o capitão deste navio
e estas são as minhas ordens. Quem desobedecer, vai para terra. As vossas vidas estão nas minhas mãos. Abandono-os a
todos!
As suas mãos grandes e cheias de cicatrizes ainda pingavam água do rio. A sua voz era uma arma … ameaçava abandonar-
nos a não ser que saltássemos … mas o que eu mais temia era ser atirado para a costa por aquelas mãos. A vida que ali
levávamos dera-lhes um aspecto terrível.
— Amarra-te com isto – disse para o Jerry, dando-lhe a ponta de uma corda para amarrar à cintura. Jerry, com olhos de
desafio, atirou fora as sandálias e dirigiu-se para a borda. – Está algures nesta zona – explicou o pai. – Perdemo-la perto
daquelas árvores, provavelmente bateu numa pedra. A corrente não tem força para levar para longe um bocado de latão
daquele tamanho. Nada primeiro para a margem e depois mergulha e procura-a.
Jerry tapou o nariz e atirou-se à água como uma pedra.
— Tenho andado a treinar-vos para uma coisa como esta – continuou o pai. – Foi tudo preparação para a sobrevivência. –
Tirou um prego de dentro do bolso. – Isto servirá de contrapino … mas precisamos da hélice. – Segurou o prego entre os
dedos. – É sempre algo muito pequeno o que nos salva da selvajaria. As velas de ignição. A hélice. Este prego. O contrapino
foi o que manteve a nossa civilização coesa. Não há melhor exemplo para o delicado equilíbrio entre … – Olhou para o rio,
para os pequenos e brancos pés do Jerry – Que tal vai ele?
Jerry veio à superfície e soprou água, mas antes de conseguir nadar foi arrastado pela corrente e agarrou-se ao barco.
— Não se vê nada, a água tem demasiada lama.
— Tenta outra vez.
— O Jerry está cansado, Allie.
— Poderá descansar depois de encontrar a hélice.
— Deixa-me ir eu – disse a mãe.
— E se te afogas? – perguntou o pai.
— E se o Jerry se afoga? – retorquiu a mãe numa voz baixa e sufocada. – Preciso de ti aqui, mãe – declarou o pai, coçando
a barba com os nós dos dedos.
O Jerry tentou quatro vezes e de todas elas a corrente o puxou para trás, de mãos vazias. Por fim já estava tão cansado que
nem conseguia levantar os braços e o pai teve de puxar pela corda para evitar que fosse arrastado pelo rio.
Era a minha vez. Nadei para a margem e depois mergulhei no sítio em que o pai indicara. Meti as mãos na lama e
vasculhei. A lama escorria-me por entre os dedos. O rio agitado era como sopa de hortaliça, onde o sol penetrava provocando
longas sombras que pensei serem aligátores. Quando fiquei sem fôlego, subi à superfície e descobri que nadara quase até ao
barco.
— Não estás a fazer isso a sério – disse o pai, obrigando-me a voltar para trás.
O lodo e as plantas no fundo do rio metiam-me nojo. A corrente puxava-me pelas pernas. A lama flutuava-me para a cara.
Mas o pior de tudo era que, preso pela corda do pai, me sentia como um cão à trela. Se permanecesse amarrado, estava à sua
mercê, mas se me libertasse da corda seria arrastado pela corrente, para me afogar.
Era uma vida de cão. Ainda bem que o Jerry lhe dissera o que dissera. Por que é que eu não dizia ao pai o que pensava
dele? Uma vida de cão … porque não contávamos, porque ele tinha sempre razão, estava sempre a explicar coisas, e acima de
tudo porque nos mandava fazer coisas difíceis. Mas não queria ver-nos ter êxito, queria rir-se à custa dos nossos falhanços. E
nem sequer um peixe conseguiria encontrar uma hélice tão pequena no fundo daquele rio.
Disselhe que tinha engolido água, que me sentia mal e não podia mergulhar outra vez.
Riu-se – como eu já sabia que faria – e disse:
— As crianças não servem para nada numa crise, o que é irónico, porque as crianças são a causa da maioria das crises.
Quer dizer … eu sei tomar conta de mim mesmo! Não preciso de comida, não preciso de dormir, não sofro! Sou feliz!
— Pai, isto é uma crise? – perguntou April.
— Algumas pessoas diriam que sim. Temos um motor que não podemos utilizar. Temos um barco que não pode navegar.
Temos dois aleijadinhos que não são capazes de encontrar a hélice. Se a âncora, ou aquele cabo, se soltarem, iremos pelo
esgoto abaixo. Está a escurecer e estamos no meio da selva. Sim, garota, algumas pessoas diriam que estamos numa situação
crítica.
— Quero experimentar, Allie – disse a mãe.
Porém, o pai já amarrava a corda em volta da cintura e prendia a ponta livre à borda do barco. Disse que para fixar aquela
corda salva-vidas só confiava num dos seus próprios nós.
Saltou borda fora com um forte chapão. Vimo-lo mergulhar e ficámos à espera de que encontrasse a hélice à primeira
tentativa. Voltou à superfície mas nem sequer levantou as mãos. Mergulhou outra vez. Era um nadador suficientemente forte
para se aguentar contra a corrente, mas quando mergulhou pela terceira vez, nunca mais o vimos aparecer.
Esperámos. Observámos a água no local onde mergulhara.
— Onde está ele? – perguntou Clover.
— Talvez a encontrasse – disse a mãe.
Surgiu uma nuvem de mosquitos a zumbir, que logo desapareceu. – Está lá em baixo há muito tempo – comentou April.
— Está escuro, no fundo – afirmou Jerry.
Deixámos de suster a respiração.
Passaram-se mais minutos, não seria capaz de dizer quantos, pois o tempo ali não passava com precisão. O dia era a luz, a
noite era a escuridão, o tempo era indiferente. As horas eram todas quentes e iguais, silenciosas e cegas. Podia já lá estar em
baixo há uma hora.
A mãe dirigiu-se à borda do barco e puxou a corda. Levantou-a com facilidade e puxou-a para bordo, enrolando-a até a
tirar toda de dentro de água. No sítio onde estivera o nó, a ponta estava esfiapada como a cauda de um vira-latas.
— Desapareceu! – gritou Clover, ficando rígida. Chorava com tanta força que ficava sufocada, e a seguir chorou ainda
mais por se sentir sufocada.
— Não o vejo – disse o Jerry.
Mas o Jerry deixara de olhar, estava virado para mim com a cara descontraída, muito branca e cheia de esperança, como
alguém sentado na cama, de manhã.
A mãe abanou a cabeça. Não tirava os olhos da corrente de água que corria rio abaixo e não dizia uma palavra.
De súbito sentime forte. Um instante antes a noite caía, mas agora tudo se tornara mais brilhante. O céu estava mais claro.
Havia pequenos insectos a agitarem-se por cima do rio. A tranquilidade pairou sobre nós, prateou as águas e fê-las brilhar em
faixas, como um túmulo recente. O silêncio selava-o.
— Está em qualquer lado! Está em qualquer lado – gritou April, mas a sua voz não perturbou o rio ou as árvores. Agarrou-
se aos cabelos, agarrou-se a Clover e juntas soluçaram até sufocar.
— Podemos ir à deriva – declarou o Jerry. – Ficamos amarrados durante a noite e amanhã descemos o rio. Será fácil.
— E se o pai tinha razão? – perguntei.
— Não tenham medo – disse-nos a mãe.
— Não temos medo nenhum! – retorquiu Jerry.
— Não consigo pensar – lamentou-se a mãe. A sua face atenta, à escuta, era encantadora. Não registava um único som.
Não ouviu a April dizer que íamos todos morrer, ou a Clover a chamar pelo pai, ou o Jerry a descrever a nossa fácil viagem
rio abaixo até à costa.
O pequeno Jerry, agora livre, andava aos pulos pelo convés.
— Escutem – pediu a mãe.
A água que chapinhava, prateada, a selva … tudo aquilo era um reino de pequenos zumbidos, um reino de insectos, um
reino de cigarras.
Passou por nós um zambu numa canoa. Era como o tempo a passar, a duração das suas idas e vindas. Era o único tempo
que ali existia … os movimentos de um homem. Aquele zambu estava vivo.
— Não morreremos – afirmei.
A mãe não me ouviu mas eu falava a sério. O nosso barco era pequeno e pairava de modo precário no meio do rio, seguro
por uma corda – a mim parecia-me que estava suspenso no ar-, mas nunca me sentira tão seguro. O pai fora-se. Que sossegado
que aquele local era. Dúvidas, morte, desgosto – haviam passado como a sombra da asa de uma ave roçando por nós. Agora –
ao fim de quanto tempo? – já nos tínhamos esquecido dessa sombra. Estávamos livres.
— Dentro de um par de dias estaremos na costa – disse o Jerry. – Na costa … morreremos! – lamentou-se Clover.
Era o que o pai sempre dissera e o que eu julgava acreditar, mas ele desaparecera e levara o medo consigo. Ouvi-me a
dizer:
— Podemos ver-nos livres deste motor. Construíremos um leme. A corrente leva-nos.
O Jerry tentou fazer com que as gémeas parassem de chorar, perguntando-lhes:
— Não querem ir para casa?
Ouviu-se um violento chapinhar na água, uma verdadeira explosão naquele mundo de zumbidos. Ali estava a cabeça do
pai, molhada, com a barba colada à borda do barco, a hélice de latão a cair nas tábuas e o seu uivo:
— Traidores!
A luz desapareceu de repente.
XXVII

Durante os três dias seguintes, e como castigo, o Jerry e eu seguimos rebocados atrás do barco, na canoa. Comemos e
dormimos nela. Agitava-se e saltava como uma rolha de cortiça arrastada na ponta de uma linha de pesca. Mal havia espaço
para nos deitarmos. O bidão encontrava-se entre nós e os vapores amargos da gasolina misturavam-se com os fumos do escape
do motor fora de borda, que cheiravam a trapo queimado e me deram uma terrível dor de cabeça. Ajoelhávamos na água que
penetrava pelas fendas daquele tronco escavado e matávamos o tempo arrastando um anzol à popa, na esperança de apanhar
um peixe.
O pai sentava-se na outra ponta daquela corda de reboque de dez metros, na amurada da popa da cabana-barco, com as
costas viradas para nós. Adivinhava-lhe os ombros, o cabelo oleoso, a curva da espinha. Imaginava como seria espetar-lhe
uma faca, logo abaixo do colarinho rasgado. Por vezes até me via a fazê-lo. Nessas minhas imagens não havia sangue, gritos
ou luta, apenas o som de ar a libertar-se quando a lâmina deslizava e os copos da faca embatiam na carne. A partir daí
esvaziava-se, como uma câmara-de-ar com um rasgão. Via tudo tão claramente que até o braço me doía … como se já o
tivesse feito, o tivesse furado.
Escutava-o, pensando cá para mim que ele sabia o que se passava na minha cabeça e sentindo-me culpado. Mas tudo o que
ouvia era a mãe a argumentar, tentando convencê-lo a deixar-nos ir para bordo. Não queria discutir o assunto. Dizia que ainda
merecíamos pior. Era difícil ouvi-lo, por cima do barulho do motor. Tinha orgulho no facto de nunca nos ter batido nem
espancado, num momento de ira. Afirmava que teria sido melhor para nós se nos tivesse espancado no dia anterior, mas a
canoa, os insectos e o calor magoavam-nos mais do que se fôssemos chicoteados.
— Vamos cortar a corda! – disse o Jerry. – Vamos mostrar-lhe como é!
Jerry queria que seguíssemos à deriva. Talvez o pai nos estivesse a testar, para ver se tínhamos a coragem de o fazer. Não
deixei que o Jerry tocasse na corda, já me bastava ter medo de que se partisse sozinha ou o pai a cortasse. Naquele dia foram
muitas as vezes em que adormeci para de repente acordar em pânico, pensando que girávamos pelo Patuca abaixo naquela
minúscula canoa.
— Se tocares na corda – declarei-lhe-, salto borda fora e nado para a margem. Ficarás sozinho, Jerry! Morrerás.
Durante o breve período de desaparecimento do pai, quando eu pensara que se afogara tentando recuperar a hélice, não
sentira medo. Tínhamos o barco, as nossas redes de dormir e a mãe. Porém, quando trepara para bordo trouxera consigo todo
o medo. Mais uma vez me sentia tentado a acreditar que a tempestade varrera todo o mundo e que havia morte na costa.
— Não acredito nessa conversa – disseme o Jerry, quando lhe falei no assunto.
Jerry mostrava-se mais violento na canoa do que jamais estivera no barco ou em qualquer outro lado. Ali, rebocado na
ponta de um cabo, dizia muitas coisas proibidas. Falava continuamente a respeito de fugir e voltar para casa. O que dizia
dava-me pesadelos porque punha em palavras o que de pior surgia na minha imaginação. Pensei que merecíamos estar de
castigo ali na canoa. Aquele era o nosso lugar.
— Odeio-o – afirmou o Jerry. – É louco.
Disselhe que sem a minha ajuda nunca conseguÍria atingir a costa.
— Não conseguiremos subir o rio. É impossível.
— Como é que sabes?
Pontapeou o bidão da gasolina, duas pancadas que soaram a oco e ressoaram como um tambor.
— Está quase vazio. O pai não pode manter o motor a trabalhar se não tiver gasolina.
— Remará.
— Pois … e andará para trás! – Jerry riu-se ao pensar naquilo e disse estar satisfeito por me ver preocupado. – Vou dizer-
lhe que a gasolina está a acabar. Vais ver o ataque de fúria …
— Acaba com isso – pedi-lhe.
— Tens medo dele, Charlie. És mais velho do que eu e tens medo.
Eu não tenho.
No entanto, a voz falhou-lhe quando o disse e teve de engolir em seco duas vezes para acabar a frase. O castigo a bordo da
canoa fazia-o sofrer, mal conseguia dormir e aparentava um ar doente. Quando não se queixava do pai, balbuciava e soluçava
como um bebé. Choroso, parecia muito mais novo. Escondia a cabeça entre as mãos e baixava-a, para que o pai não o visse.
Uma noite, ao ouvir o pai a rir-se na «cabina principal», Jerry declarou: – Gostaria de o matar.
Depois de a sua voz surgir da escuridão, ouvi-o a respirar pesadamente, como se dizer aquilo tivesse sido um grande
esforço.
— Não seria difícil – insistiu, ofegante. – Podíamos cair-lhe em cima, com um martelo. No cérebro …
— Não digas isso, Jerry. – Tens medo.
«Sim, porque está a dizer as coisas terríveis que me vão na cabeça», pensei para comigo. Sentia o macio cabo do martelo
na minha mão, ouvia-o estalar de encontro ao crânio do pai, via a cabeça a abrir-se ao meio como um coco e uma pálida água
a escorrer.
— Não – respondi.
— Quem me dera que ele morresse – declarou, começando outra vez a chorar. Consolava-me com as suas lágrimas.
Chorava por mim.
Uma manhã afirmou ter visto um avião, um pequeno monomotor cinzento a passar por cima das nossas cabeças. Não o vi e
disselhe que devia ter sido um sonho. Ou que talvez fosse um abutre, ou um papagaio. Todas as aves que por ali voavam se
pareciam com um Cessna ou um Piper Club. Jerry chorou por eu me recusar a acreditar nele. Afirmou que eu falava como o
pai, ou ainda pior.
— O Sr. Haddy deu-te as velas e a gasolina, e foi o pai quem ficou com o crédito! Quem é que pescou na lagoa? Fomos
nós. Tratava-nos como escravos, mas o que aconteceu à horta e a todas aquelas estúpidas invenções? Foram destruídas!
Fomos nós que lhe salvámos a vida!
Mais uma vez exprimia os meus pensamentos e assustava-me. Respondi-lhe:
— Se falares ao pai no Sr. Haddy, conto-lhe que disseste que o querias matar. – O Jerry entrou em pânico, sabia que tinha
ido demasiado longe. – De qualquer modo, o pai negará tal coisa.
— Porque é um mentiroso. Está errado a respeito de tudo.
— Não sabes, não há provas. É possível que tenha razão, O Sr. Haddy concordou com ele! Tens doze anos e a cara suja.
Quando o pai te soltou nesta canoa a semana passada, ias morrendo a chorar. Ficaste muito satisfeito quando te puxou para
bordo.
— Enganou-me. Agora não choraria, deixava-me ir – retorquiu, mas tinha os olhos vermelhos como duas feridas.
O pai olhou para trás e vendo-nos discutir (não podia ouvir o que dizíamos por cima do barulho do motor), acenou com a
cabeça e sorriu, como se estivessem a dizer: «É aí que vocês estão bem, estupores!»
A mãe afirmara que se ele tinha razão então nós éramos as pessoas com mais sorte em todo o mundo, mas que se ele
estivesse errado, então cometíamos um erro terrível. Mas a mãe obedecia-lhe … também estava com medo.
— Talvez acabemos por descobrir se tem, ou não razão – disse eu para o Jerry. – Não quero ir para a costa, se esta for um
túmulo. E para que serve falar da América, se ela já não existir? O pai diz que já lá não está … e o Sr. Haddy também. Que é
que tu sabes, parvo?
— Temos uma casa branca num campo verde, com árvores em volta – respondeu Jerry. – Há pássaros nas árvores, pardais
e gaios. O sol brilha. A sereia do meio-dia está a tocar nos Bombeiros de Hatfield. As pessoas passam pela nossa casa e
olham para a entrada. Perguntam umas às outras: «Onde estão os Fox?»
— Não – respondi-lhe, mas também eu via tudo aquilo com clareza. Via as nuvens por cima do celeiro do Polski, as
colinas do vale e o milho. Chegava-me o cheiro a couves, a pinheiros, a relva cortada, à doçura do esterco a adubar os dentes-
de-leão, ao alcatrão quente das nossas estradas de campo.
— Será que o pai os levou? É o que elas dizem. – Jerry olhou para mim, surpreendido e um pouco assustado. – Charlie,
por que é que estás a chorar?
Coloquei as mãos em frente da cara. – Por favor, não chores. Assustas-me.
Por fim, o pai deixou-nos ir para bordo. Estávamos tão envergonhados das coisas que havíamos dito que fomos
directamente para a proa e começámos a trabalhar com a sonda. Tínhamos a pele queimada e mordida e não nos sentíamos
muito bem. O Jerry protestara muito mas no barco limitava-se a ter um aspecto miserável e não dizia uma palavra contra o pai.
Em vez disso, amaldiçoava as gémeas. Chegou a dar uma dentada no braço de April e as marcas dos dentes ficaram
avermelhadas. Fiquei satisfeito, também eu há muito lhe queria dar uma dentada, bem como à Clover.

Todas as aldeias porque passávamos estavam desertas ou destruídas, restavam apenas paus espetados no ar e algumas
árvores de fruto. Eram lugares verdes e fantasmagóricos, enxameados de ratos molhados, com todas as canoas afundadas e
trepadeiras novas em volta dos pilares das casas. Nos sítios em que as raízes das árvores estavam à vista, estas pareciam-se
com dedos eriçados, manchados de vermelho e preto, enquanto longas ervas pendiam em cachos das junções dos troncos,
como escalpes de bruxas.
Uma manhã, depois de onze dias a subir o rio Patuca, chegámos a uma aldeia que não fora nem destruída nem inundada,
pousada numa alta margem vermelha, numa curva do rio. Havia uma criança agachada na água baixa da margem do rio,
fazendo o serviço com um ar distante estampado na cara, como um cão escondido no mato.
O pai esticou o pescoço para ver melhor a aldeia. A seguir sorriu, parecia reconhecê-la.
— Sei onde estamos – declarou.
— Onde, Allie?
— Já vais ver.
A criança ouviu o barulho do motor. Tapou-se com o farrapo que segurava e correu para terra. O pai desligou o motor e
amarrou o barco a uma árvore.
Agora, à beira da margem, onde havíamos visto fumo e os cimos dos telhados de palha, encontravam-se cerca de quinze
homens. Vestiam farrapos e miravam-nos com os olhos vazios.
— Mosquitos – disse o pai. – índios.
Eram negros, eram castanhos, eram amarelados, estavam muito magros. A sua magreza era como a suspeita. Não se
moviam.
O pai saltou para terra e levantou a mão.
— Eh, olá! Naksaa!
Pouco depois trocava apertos de mão com os homens e falava a um quilómetro por minuto, tal como sempre fazia quando
queria encantar os estranhos. Há muito que não o víamos tão cheio de energia e tão amigável. Tinha o hábito, quando estava
bem disposto, de meter o coto do dedo no peito de uma pessoa e fazer-lhe uma espécie de cócegas enquanto falava. Aquilo
funcionava com os cães selvagens e com as vacas. Funcionara com o Sr. Haddy. Deu também resultado com os mosquitos.
Espetava-lhes o dedo nas costelas e dizia:
— Desta vez safaram-se hein? És um tipo esperto, não és? Estás muito satisfeito contigo mesmo. Não se riam – insistia,
espetando-os com o dedo. – Onde é que está a graça?
Os mosquitos riam-se e davam saltos. Apesar de ao princípio parecerem ferozes, agora conversavam amigavelmente com
o pai. Já não tinham o ar de estarem interessados em comer-nos, apesar de continuarem esfomeados. Chamaram-nos para a
aldeia.
— Mantenham-se juntos – disse a mãe. – Não gosto deste sítio.
Deixem, que seja o pai a falar.
— É a única coisa para que ele serve – comentou Jerry.
— Cuidado com o que dizes – retorquiu a mãe, deixando chateado.
— A aldeia é uma porcaria – afirmei. – Esta gente está a morrer de fome. – O pai sabe onde estamos. Escutem o que ele
diz.
Que podia ele dizer? A aldeia era uma assustadora colecção de cabanas feitas de folhas de bananeira e amarradas umas às
outras com nós de trepadeiras. Os telhados estavam cobertos com montões de palha. Havia uma savana nas traseiras da aldeia,
e a selva – que parecia uma mancha de bolor – ficava para lá dela. O chão estava enlameado das chuvas recentes e tudo aquilo
cheirava a porcaria e a wabool azedo, bem como ao fumo de lenha verde. Já antes havíamos visto aldeias iguais. Era a
miséria dos índios. Ali perto, um cão mastigava uma cabeça suja de peixe. Uma mulher de cara achatada arrastava um trenó
com uma enorme pilha de ramos partidos. Murmurava como louca, enquanto andava. Disse qualquer coisa diabólica para a
mãe e riu-se por entre os dentes. Uma outra mulher de cabelos desgrenhados esfregava farrapos num alguidar de folha. Olhou
para cima, fez uma careta e voltou ao trabalho.
— Que vos disse eu? – perguntou o pai, virando-se para nós. Enxames de moscas barulhentas zumbiam em volta da cara
das pessoas, dos seus pés sujos e tornozelos cheios de crostas. Passeavam por cima da comida, deslizavam por cima dos
potes de cozinhar, de três pés. Não vi qualquer espécie de horta mas havia tufos de bananeiras e mandiocas raquíticas perto de
algumas das cabanas. Um porco à solta resfolegava e empurrava uma papaia com o focinho. No meio das cabanas avistámos
um telheiro aberto, coberto a chapa. Por cima havia uma tabuleta a dizer «La Bodega». Jerry e eu espreitámos para o interior
mas só vimos prateleiras vazias, alguns sacos de farinha pendurados e um candeeiro.
— Vêem? – disse o pai. – Eu tinha razão.
Dois mosquitos arrancavam a casca a um tronco. Um deles servia-se de um maço de madeira e o outro de um machadinho.
Deixaram de trabalhar e olharam o pai. De repente ficou tudo silencioso, excepto quanto aos grunhidos do porco e aos
zumbidos das moscas.
— É assim mesmo – afirmou o pai.
Juntara-se uma pequena multidão. As pessoas olhavam para o cabelo da mãe – a viagem pelo rio e o sol tinham-lhe feito
aparecer madeixas mais louras do que outras – mas escutavam o pai. Tinham caras mirradas e esfomeadas, com o aspecto
envelhecido provocado pela fome. Dois homens usavam peles de cobra em volta do pescoço, vermelhas com tiras pretas.
— Isto é o futuro! – exclamou o pai, olhando em volta com admiração. O solo enlameado fumegava ao sol. O fumo e o
cheiro a ervas podres e a wabool fazia-me semicerrar os olhos. Junto das cabanas esqueléticas, os esfarrapados mosquitos
semicerravam-nos também.
— Tenho de vos dar os parabéns – disselhes o pai. – Apertem estes ossos.
Os índios ficaram surpreendidos, mas voltaram a apertar-lhe a mão e a sorrir.
— Vocês têm boas ideias.
Ficaram satisfeitos como se nunca ninguém lhes tivesse dito tal coisa.
Sorrindo, pareciam menos esfomeados. Um dos mosquitos pigarreou e disse, apontando para dois homens escarranchados
sobre o tronco:
— Estamos a fazer uma nova canoa.
— Boa ideia.
— Tens uma machadinha a mais? – perguntou o mosquito que trabalhava com o maço de madeira.
— Vocês não precisam de um machadinho. Talvez de um escopro para condizer com esse maço. Tenho um escopro.
Podemos chegar a um acordo. Vai ser uma bela canoa.
— Dá muito trabalho, tio.
— Sei bem isso. Mas para quê a pressa? Têm todo o tempo do mundo. – Tens uma serra, tio? – A pergunta veio de um dos
mosquitos com a pele de cobra em volta do pescoço.
— Para que é que querem uma serra? Não conseguirão arranjá-la em lado nenhum. Acabaram-se. Acredita no que te digo,
amigo, pode muito bem viver-se sem ter uma serra.
Um homem com cara de cavalo perguntou-lhe se tinha algum enxofre para fazer goma de mascar das árvores da borracha.
— Nem me fales em enxofre – retorquiu o pai.
Havia um carrinho de mão tombado de lado num fosso. O pai pegou-lhe e endireitou-o. Olhou-o com um ar adorador, tal
como outrora olhara para o «Menino Gordo». Afirmou que se tratava de uma bela peça de engenharia, a rosa no fulcro, as
pegas que funcionavam como alavancas, o perfeito equilíbrio. Um homem podia carregar quatro vezes o seu peso naquele
carrinho, sem o menor esforço.
Os mosquitos ouviam o pai a gabar o velho carrinho de mão com a madeira toda estalada e começaram a olhá-lo como se
se tratasse de um objecto mágico.
— Não vendo o carrinho! – O homem que disse aquilo cuspiu num dedo e limpou o cuspo numa das pegas do carrinho.
— Não te censuro. Pode vir a fazer-te muita falta, agora que o mundo está meio destruído.
Já não estavam a olhar para o carrinho de mão. O pai sorriu ante todas aquelas bocas abertas.
— Ainda não sabiam?
Os olhos muito abertos disseram que não.
— Pois é verdade, desapareceu quase tudo. – O pai agitou os braços. – Foram poucos os que escaparam. Para além – fez
um novo gesto ou estão todos mortos ou a morrer.
Para além, para jusante, ficava o mundo. Os índios olharam nessa direcção.
— Por que é que nós não morremos, tio? – perguntou o homem com cara de cavalo.
— Porque vocês são demasiado espertos, e porque vivem como deve ser.
Fez-lhes muitos mais cumprimentos, disselhes aquilo que nos dissera a nós, que aquela era a aldeia do futuro e que eles
eram as pessoas do futuro, os novos homens. Tinham sorte porque viviam uma vida simples, enquanto os outros haviam ido
todos para o inferno. Ao ouvi-lo dizer-lhes que estavam no céu, naquela aldeia miserável, com galinheiros a cair aos bocados,
frutos podres, um porco e cabanas quase desfeitas, os índios ajeitaram os seus farrapos ao corpo e animaram-se.
— Pensavam que íamos para a Lua – disse o pai. – Escutem, ninguém irá para a Lua.
Ofereceram-nos cabaças de wabool e o pai comeu um bocado. O café era feito de cereais esmagados e queimados, mas o
pai bebeu-o. Deram-lhe bananas. O pai disse: «Gosto imenso de bananas.» Ofereceram-lhe um charuto malcheiroso. O pai
fumou-o e declarou: «É a melhor coisa que conheço para afastar os insectos.»
A seguir disseram-nos que aquilo não era uma aldeia, mas sim uma família. Chamavam-se Thurtle. Todos os mosquitos
dali eram Thurtles. Eram pais e mães, filhos e sobrinhos, de uma maneira muito complicada, todos Thurtles, grandes e
pequenos.
O pai afirmou não ter ficado surpreendido com o facto. As famílias eram o único laço social que restava. Apresentou-nos
e obrigou Clover e April a cantarem uma canção para eles. As gémeas cantaram-lhe o Bye-Bye, Blackbird. Os índios
executaram uma dança lenta, andando em círculo e batendo as palmas.
Esta aldeia, a família Thurtle, era igual a vinte outras que tínhamos avistado e ignorado, mas isso fora meses atrás e o pai
era agora diferente. Aquela era a prova de que se modificara. Tornara-se muito paciente. Não lhes pedira para que se
modificassem. Não virava a cara quando lhe ofereciam o amargo wabool. Não chamava a atenção para a latrina cheia de
moscas nem para o porco magro e amalucado. Disse que aquele era um local notável, que era a aldeia do futuro que nos
descrevera havia menos de uma semana, no rio. Louvou a maneira como os índios viviam e disse que tinha uma grande
admiração pelos nós de trepadeiras que sustentavam as suas cabanas.
Enquanto falava as nuvens haviam começado a amontoar-se por cima das nossas cabeças. Surgiu uma chuva miudinha e ao
longe ouviu-se a trovoada de barris a rebolar. Os Mosquitos tinham medo dos trovões, a tempestade preocupava-os. O pai
afirmou que fora o sentido do medo que os salvara … Cheiravam o perigo ao longe, tal como ele.
Encontrou um bidão de gasolina nas traseiras da loja. Os índios disseram que era para o gerador, mas que estava avariado.
Enferrujara. Aguardavam um novo induzido.
— Não percam tempo com isso – replicou-lhes o pai. – Para que precisam da electricidade?
Responderam-lhes que era por causa da luz.
— E que farão quando as lâmpadas se fundirem? Precisarão de lâmpadas novas, que já não se conseguem arranjar nem por
amor nem por dinheiro.
Não há lâmpadas! Não há nada!
Acrescentou que tinham o que tinham, e que o que não tinham não existia. Os mosquitos compreenderam a ideia muito mais
depressa do que acontecera connosco, a bordo do barco.
Explicou-lhes que se quisessem óleo poderiam tirá-los das tripas dos peixes ou da gordura de porco, que necessitava
daquela gasolina mais do que eles porque já tinha pouco combustível para o motor. Estava disposto a trocar a gasolina por um
formão e por um assento de retrete. Acrescentaria também um espelho, se na verdade o quisessem.
Responderam que estava bem.
— Trocas – disse-nos, enquanto carregava o bidão da gasolina para a canoa. – É assim que vai ser daqui para a frente.
Deviam ficar satisfeitos por lhes ter tirado a gasolina das mãos, porque era perigosa e podia provocar um incêndio.
— Admitam-no! – declarou, espetando o dedo no peito de um homem.
— Acabei de vos fazer um grande favor!
O homem soltou uns risinhos por causa do dedo do pai e os outros mosquitos soltaram gargalhadas.
— Creio que acertaste em cheio, Allie – comentou a mãe.
— Não consigo evitá-lo, mãe. Gosto desta gente.
— Estão esfomeados – sussurou-me Jerry. – Estão porcos. Olha para aquelas casas. Não têm nada … Até lhes podemos
ver os ossos. Têm o nariz a pingar. Estão a morrer.
— Foi isso o que o pai disse que aconteceria – respondi-lhe.
— É horrível.
— Jerry, o pai tinha razão. – Até o Jerry teve de concordar que o pai previra aquilo.
— Conhecem o Up lenkins? – perguntava-lhes o pai. Responderam-lhe que vivera um certo Jenkins em Mocoron, mas que
morrera da mordidela de uma cobra.
— Este Up lenkins é um jogo.
Era um dos nossos jogos em Jerónimo e na lagoa de Mosquitos.
O jogo envolvia dois grupos de pessoas. Num dos grupos, havia uma pessoa com uma moeda escondida na mão. O
segundo grupo tentava adivinhar quem tinha a moeda e gritava coisas como «bater palmas», «coçar» e outras. O grupo que
tinha a moeda era obrigado a fazer esses gestos … e geralmente a moeda caía antes de alguém descobrir quem a tinha. Era um
jogo idiota mas os Mosquitos gostavam dele e toda a gente se ria. Jogámo-lo no balcão da loja até a chuva passar.
Por fim o pai olhou para o Patuca e declarou: – Está na hora de partir.
Queriam que ficássemos, estavam a divertir-se com o Up lenkins e com as cócegas amigáveis feitas pelo dedo do Pai, mas
este disse que não queria abusar deles. No rio, quando se juntaram para se despedirem de nós, veio-me à ideia que a terrível
predição do pai fora correcta. Eram índios mas pareciam-se connosco. Estavam mordidos, enlameados e esfarrapados, tal
como nós. Aquele era o futuro que nos prometera e nós éramos selvagens nesse futuro.
— Vão subir o rio na jangada?
O pai disse que sim.
— Até Mobilgasna?
— A que distância fica Mobilgasna? – Quatro horas.
— Vamos mais longe.
— Wumpoo?
— A que distância?
— Dois dias.
— Então irei subi-lo durante um mês ou um ano. Vou continuar a subir o rio até ele acabar … e não faço conta de parar até
lá chegar. – Já no barco, o pai perguntou: – Foi Wumpoo o que eles disseram?
— Qualquer coisa do género – respondeu a mãe.
— Wumpoo não me é estranho. Já ouvi esse nome … Mas onde?
A mãe disse que não sabia. Mas o pai tinha razão, o nome era familiar. Nessa noite, atracados por debaixo de Mobilgasna
(a margem era ali mais alta e inclinada, tinha pinheiros e estava coberta de pedras), jazíamos nas nossas redes quando
ouvimos o pai dizer para a mãe:
— Acabaste de ver o futuro. Não é assim tão mau … mas tem um aspecto sujo …
Nesse momento quase caí da cama. Wumpoo … Guampu … lembrava-me do que era.
XXVIII

Fui o único que se recordou daquele nome, «Guampu», mas tinha motivos para isso. Guardei a descoberta para mim,
saboreando o segredo como se fosse um rebuçado. Nunca mais ninguém mencionou o assunto. Os outros estavam calmos, ou
então tão deprimidos pela aldeia dos Thurtles que haviam perdido toda a esperança.
Durante os dias que passámos no meio do cheiro a lama quente, naquela tranquila zona superior do rio, os outros deviam
estar a pensar que havíamos atingido o fim da nossa viagem. Todo o resto das nossas vidas seria assim, como o pai gostava de
dizer, mas eu queria continuar em frente e a flutuar, por causa de Guampu.
Vimos mais aldeias miseráveis, onde as pessoas tinham queimado bocados de selva para aí instalarem as suas cabanas.
Vimo-los a colher arroz, a espalhar sementes, a puxar carros desajeitados e a serrarem troncos em tábuas. Apareceram
montanhas, uma cordilheira de cumes amarelos, para Norte e Oeste, com as nuvens a passar por elas, como se fossem
cabeleiras postiças a escorregarem dos picos das montanhas. O pai congratulava-se por nos levar de barco em direcção ao
futuro. Tínhamos sorte, afirmou. Estávamos salvos, estávamos livres e bem confortáveis. Tínhamos muito que comer e um
motor por trás de nós … e talvez fosse o último motor da Terra. Navegávamos em grande estilo. Pelo menos era o que ele
dizia.
Porém a gasolina dos mosquitos era má, tinha água misturada que dava cabo das válvulas, e depois de um dia de pragas e
reparações o pai atirou com o motor fora de borda para o rio.
— Não o quero! Já não preciso dele! É apenas uma dor de cabeça … vou dar-lhe um enterro decente!
Afundou-se entre as ervas e começou a sangrar arco-íris.
Impulsionámos o barco com compridos bambus, atirando todo o nosso peso sobre eles à proa e depois caminhando até à
popa. Desta maneira avançávamos silenciosamente junto da margem do rio, sem provocarmos ondas.
A corrente ali era mais lenta, até preguiçosa, e o Sol brilhava todo o dia, dando à água um quente aspecto amanteigado.
As árvores da floresta estavam cheias de aves trepadoras, dos clique-cliques provocados pelos macacos e dos sons de
fritura soltos pelos insectos. Das trepadeiras pendiam flores que pareciam cachos de farrapos coloridos, enquanto outras me
faziam lembrar os volantes do badminton. Havia clareiras e praias nas curvas do rio. Qualquer daqueles locais serviria,
declarou o pai. Podíamos parar em qualquer lado e dizer que era ali a nossa casa.
— Então, por que não o fazemos? – perguntou a mãe. – Por mim está bem. Que tal ali?
A mãe disse que sim, as gémeas concordaram e até o Jerry parecia reconciliado com a sorte apesar do seu mau humor um
pouco estúpido. Haviam sido todos dominados pelo pai e atacados pelo calor … Tinham os cérebros queimados pelo sol e
pelo vapor do rio como bocados de peixe sobre uma grelha.
— Não – disse eu-, continuemos. Fiz força na vara de bambu e fingi que ainda estava cheio de energias.
O pai ficou satisfeito e serviu-se de mim como desculpa para continuar.
Empurrou a vara e declarou:
— Se não fosses tu, Charlie, teríamos feito um acampamento ali atrás. O local tinha boa drenagem e uma costa arenosa.
Estou espantado … Creio que finalmente consegui fazer qualquer coisa de ti. Só com catorze anos e começas a mostrar que
tens têmpera.
O que eu queria era chegar a Guampu. Como é que o pai se esquecera daquele nome? Talvez por odiar pensar no passado,
nos erros e nos fracassos. «Vira as costas e afasta-te depressa …», era esse o seu mote. Inventa uma desculpa para partir.
Desaparece. Era isso que fizera dele aquilo que era. Era esse o seu génio. «Não olhes para trás.» No entanto, para mim o
passado era a única coisa real, a minha única esperança … e a própria palavra «futuro» deixava-me logo assustado. O futuro
dizia alguma coisa ao pai, mas para mim era silencioso, cego e negro. Guampu era parte do passado, e era com este nome em
mente que o incitava a continuar a subir o rio.
O pai acreditava que avançávamos para o futuro, enquanto eu sentia o contrário, como se seguindo em frente pudesse vir a
ter um relance do passado. De qualquer modo não era longe e mesmo que estivesse enganado interessava-me saber se a
memória me atraiçoara ou não.
Cinco dias depois de abandonarmos a aldeia dos Thurtles, cerca do meio-dia, ouvimos um avião. O rugido dos motores
aproximou-se. Apesar de não o podermos ver, trouxe-me uma sensação familiar … Um avião a passar-me por cima da cabeça
era quase como … cortar o cabelo. Baixei-me quando o ouvi e senti-lhe os dentes trepidantes na parte de trás do pescoço. O
pai negou que fosse um avião. Era o vento, disse, mas depois ficou silencioso e com a cara de alguém que acaba de se sentar
em cima de relva molhada ou de bosta de vaca. Fiquei ainda com mais esperanças em Guampu.
Mantive-me à proa, observando o rio. Esticando-se na corrente viam-se manchas coloridas de óleo. Avistei uma garrafa
verde no fundo de areia e uma lata de Pepsi flutuando, direita na água, bem como uma espuma semelhante à espuma de sabão
em pó. Vi uma folha de papel submersa, enrolando-se e desenrolando-se arrastada pela corrente, logo seguida por outras.
Pensei na nossa antiga casa, porque cada coisa deitada fora era parte do passado. Aquele era o lixo de um outro mundo.
Parecia-me maravilhoso.
Nesse mesmo dia ouvi cantar, música abafada pelas árvores. A água captava o som, tal como captava a luz, o calor e as
mudanças no céu. Fiquei à espera de que alguém falasse.
— Allie – disse a mãe, à escuta.
— São pássaros.
Não eram pássaros, era música de igreja.
— Quem é que está a cantar? – perguntou o Jerry. – Selvagens – retorquiu o pai.
— Isto pode ser Guampu – disse eu.
Descrevemos uma curva, a selva afastou-se um pouco e o sol batia em cheio na margem. Um pouco afastada desta havia
uma série de habitações com telhados de chapa ondulada ainda nova, que reflectiam o sol e o atiravam para cima de nós. No
centro de uma ampla clareira encontrava-se uma igreja de madeira, pintada de branco, com um telhado muito inclinado e uma
torre sineira. Tudo tinha um aspecto glorioso, ordenado e limpo, com uma baía branca entre as árvores pendentes e as
trepadeiras, muito direita no meio daquele rio retorcido.
A cara do pai ficou negra. Do nariz e do rosto haviam-lhe caído bocados de pele fina como papel, deixando marcas
vermelhas. Observou as casas, a igreja, os canteiros de flores. Baixou a cabeça como um homem atraiçoado e do pescoço
começou a escorrer-lhe suor.
— Deve ser uma missão – afirmou a mãe que depois, pressentindo a raiva do pai e o cheiro que este largava quando se
zangava, não pronunciou mais uma palavra.
À nossa frente surgiu um cais de atracação, uma pequena plataforma de tábuas fixas e uma fileira de bidões flutuantes. AÍ
amarradas avistámos uma lancha baleeira e outras pequenas embarcações.
— Onde é que estamos, pai? – perguntou Clover. O pai tinha a boca muito fechada, mas nos olhos brilhava-lhe o fogo da
energia a que chamava «ira». Passou os dedos pelo cabelo comprido e enfiou a vara no rio, empurrando-nos para mais perto
daquele lugar, para mais perto dos cantos e de um outro som, o de um gerador a matraquear debaixo de um telheiro, junto da
margem. Ali eram as traseiras da missão. Vimos um cano de esgoto a correr para o rio, e um monte de garrafas e bocados de
papel colorido … que para mim era mais uma esperança.
As canções deixaram de se ouvir. Agora só se ouvia o gerador.
Avançámos em direcção ao cais. Que corcovada e negra parecia a nossa cabana-barco, quando junto do esguio casco da
baleeira, com a sua amurada amarela. O que era a nossa embarcação excepto os restos requeimados e flutuantes de madeiras
aproveitadas ao acaso? Tinha um aspecto ridículo e fazia com que o pai parecesse um louco.
— Veremos o que é isto. – A voz do pai era como lixa de encontro a um balde enferrujado.
— Vamos embora daqui … – disse a mãe, perdendo o controle dos nervos.
— Deixemos isto, não temos nada a ver com o assunto. Allie, não!
— Têm casas verdadeiras – comentou April.
— Olha, uma tabela – exclamou Jerry. – Jogam basquetebol!
— São os Spellgood – expliquei, depois de me agarrar com toda a força ao barco.
— Bah!
— Diz-nos o que sabes, Charlie – pediu a mãe.
— São os Spellgood … não se lembram? Disseram-nos que viviam em Guampu. Foi Emily quem o disse. O pregador e a
família do …
— Quem é a Emily?
— Uma das raparigas. Estava no Unicorn. Aquela gente que rezava.
— Logo vi que se tratava de selvagens – respondeu o pai.
— Allie, talvez eles nos possam ajudar!
— Não precisamos de ajuda.
— Estamos nojentos! Olha para nós!
— Esses moralistas desprezíveis têm-se escondido aqui, a poluírem este sítio. Era de pensar que tivessem mais bom
senso. Já nada resta do mundo!
Saltou para o cais, furioso, fazendo oscilar as tábuas:
— Tenho novidades para esta gente …
Seguimo-lo – ou antes, perseguimo-lo – pelas escadas, até onde os caminhos eram bordejados por pedras caiadas de
branco. Não havia ali mais do que dez pequenas casas, mas estavam todas elas muito limpas, com canteiros de flores em frente
das portas. Dos telhados de metal elevavam-se tremeluzentes e vaporosas ondas de calor. Por detrás das casas havia uma pista
relvada, uma pista de aterragem aberta na selva. Não avistámos nenhum avião e não apareceu ninguém para nos receber. Não
vimos vivalma, mas as portas da igreja estavam abertas e agora escutávamos o que de certeza era a voz o Reverendo
Spellgood.
— Jee... sus … – dizia ele, lentamente.
— Isto também é o futuro? – perguntou Jerry.
— Não me esquecerei do que acabaste de dizer, filho! – exclamou o pai, dando um pontapé numa pedra caiada de branco.
– Sigam-me! – Voltemos para o barco, Allie. Vamos embora daqui!
— Estás com medo.
— Nunca te vi tão zangado.
— Isso mesmo – replicou o pai-, diz mal de mim em frente dos garotos.
Spellgood pregava numa voz esganiçada de papagaio, citando as Escrituras. Samuel, disse, e depois qualquer coisa a
respeito de queijos e dos filisteus de Gath.
— Vai lamentar não se encontrar em Gath.
Espreitámos pela janela aberta. Fiquei à espera do grito do pai, mas este não o soltou, emitiu apenas um silvo de desgosto
vindo das profundezas da garganta, como gás venenoso a escapar-se de um tubo, como o «Menino Gordo» a fervilhar.
A igreja era sombria mas ao fundo, assente em cima de uma mesa e observado por toda uma congregação de índios
envergando camisas e vestidos brancos, encontrava-se um aparelho de televisão.
O aparelho tinha um grande ecrã, talvez do tamanho da porta de um automóvel, e lá estava o rosto de Spellgood a tagarelar
no ecrã, a cores, mas num tom amarelo-esverdeado, segurando uma funda e contando uma história. A seu lado encontrava-se
um gigante verde com cara de gorila, de presas saídas e capacete, que parecia de plástico. Enquanto Spellgood pregava,
colocou uma pedra na funda e preparou-se para a atirar ao boneco gigante que se encontrava a seu lado.
— Têm aqui televisão – disse o Jerry.
Os índios estavam tão espantados com o programa que nem davam por nós. Era um milagre para eles … e era um milagre
para mim.
— Este programa deve vir de qualquer lado – comentei. – Talvez venha dos Estados Unidos, via satélite.
— Impossível – respondeu o pai, numa voz fina e chorosa como a que tivera no dia em que chorara por causa de Jerónimo
ter ardido.
— A América foi destruída.
— Então, de onde vem o programa?
— De dentro daquela caixa. É uma videocassete. Uma gravação, um truque, a velha tecnologia. Os índios pensam que é
magia! Patético!
Entrou na igreja acorrer, caminhou ao longo da coxia e desligou o cabo da tomada. Começou a pregar-lhes um sermão e
depois gritou «Esperem!», pois logo que a imagem desapareceu os índios levantaram-se e saíram da igreja. Não se mostravam
espantados mas apenas aborrecidos e faladores. Pouco depois a igreja estava vazia e os índios vestidos de algodão branco
encaminhavam-se para a selva.
Os Spellgood não estavam à vista em lado nenhum.
— Voltemos para o barco – ordenou o pai.
— Não podemos ir dar uma vista de olhos por aqui? – perguntou Clover. – Este lugar não existe!
Não se contentou em deixar-nos ficar sentados no convés, vendo as casas e gozando aquela visão do passado. Mandou-nos
para o interior da cabina e colocou uma tábua de encontro à porta. Ficámos dentro da cabana, perguntando a nós mesmos o que
iria acontecer a seguir.
— Creio que estamos a andar – disse o Jerry. – Está a levar-nos para longe – respondi.
No entanto, dez minutos mais tarde, a cabina ficou outra vez imóvel. Ouvimos o barulho da âncora a ser lançada à água e o
pai a mexer em cordas. Murmurou qualquer coisa para a mãe mas não conseguimos entender nenhuma palavra.
Quando o sol desapareceu nas fendas da cabina e o ar ficou mais frio, ouvimos um avião por cima das nossas cabeças.
Voava baixo, tão baixo como as tesouras do barbeiro, e depois fez-se silêncio.
Clover perguntou-me por que é que o pai agia daquela maneira tão esquisita e April disse que queria beber. Aborreceram-
me com perguntas, até que por fim adormeceram. Adormeci também, mas acordei quando já era escuro. Por que não ir a terra
na canoa?
O Jerry já estava acordado e pronto para fazer tudo o que eu dissesse. Escapámo-nos pela portinhola que o Sr. Haddy
partira, quando me dera as velas e a gasolina. Encontrávamo-nos ancorados a meio do rio, um pouco acima de Guampu.
Ouvíamos o gerador e víamos as luzes das casas. Porém, mesmo sem aquelas luzes, havia luar suficiente para verificarmos
que a canoa desaparecera.
Jerry encostou a boca à minha orelha e murmurou: – O pai levou-a.
— Vamos a nado – respondi-lhe.
Escorregámos para dentro de água e nadámos de bruços para a margem distante, para não fazermos barulho. Todas as
luzes da missão se encontravam acesas, piscando de um modo amigável. Nunca pensara em voltar a ver uma luz eléctrica
durante o resto da minha vida. O único som que ouvíamos era o do matraquear do gerador, um pouco mais abaixo.
Avançámos em direcção às casas escondendo-nos em todas as sombras que conseguíamos encontrar, e depois
aproximámo-nos da casa maior, onde víamos uma luz que variava de intensidade. Era na sala dos Spellgood. Encontravam-se
todos lá dentro a olhar para a televisão com o mesmo ar hipnotizado com que os índios viam o programa religioso. Os
Spellgood comiam gelados em grandes taças, levando as colheres até às caras azuladas. De vez em quando riam-se. O
espectáculo era com uns bonecos, um sapo de tecido verde e uma porca de borracha com cabelos sedosos, bem como um
homem verdadeiro, com um fato completo, que conversava com eles como se os bonecos fossem humanos … o tipo de
espectáculo que provocava ataques de fúrias no pai.
Emily Spellgood estava deitada no chão. Só se passara um ano desde que a vira pela última vez, mas agora era muito mais
alta e magra. Tinha o cabelo curto e usava jeans e ténis. Vendo-a tão bem vestida, fiquei preocupado. Jerry e eu andávamos
com o cabelo demasiado comprido e cobertos de lama do rio. Vestíamos apenas calções completamente encharcados. Sentime
como um selvagem e não queria ficar ali.
Os Spellgood divertiam-se com o espectáculo de marionetas e até o Jerry se riu, mas obriguei-o a sentar-se debaixo da
janela comigo, para pensarmos no que fazer a seguir.
Permanecemos assim à escuta do programa e dos comentários dos Spellgood. O programa terminou ao fim de vinte
minutos. Houve então uma pequena discussão e muitas sugestões.
— Vamos jogar aos «Invasores do Espaço» – sugeriu um dos garotos.
— Quero atirar com o teu módulo para o hiper-espaço!
— Não, vamos ver outra vez Os Marretas. Gostei daquela parte com os bebés que cantavam. Eram bonitos!
— E que tal O Caminho das Estrelas? – perguntou Emily. – Podemos ver como conseguiram sair daquela deformação
temporal.
— Não – declarou Gurney Spellgood. – É demasiado tarde. Vamos ver qualquer coisa mais apropriada.
Enfiou uma cassete na caixa preta e apareceu um programa com música de órgão e sermões, chamado Cruzada Mundial
por Cristo. Todos comeram mais gelados e cantaram os hinos da televisão.
— Vamos ficar aqui toda a noite – sussurrei.
— Não me importo – respondeu Jerry, que parecia a cria de um lobo. – Pelo menos isto é real. Quem me dera que o pai o
visse. Onde estará ele?
Preparava-me para dizer «Ainda bem que não está aqui», quando ouvi bater a porta de rede da entrada. Seguiu-se um ruído
de solas de borracha no cimento, semelhante ao das borrachas de apagar. Alguém saíra. Gatinhei para a frente da casa e vi um
rapaz mais ou menos da idade do Jerry a olhar, com um ar sonhador, para os insectos que esvoaçavam em volta das luzes. Era
um dos garotos dos Spellgood.
Estava tão arranjado e limpo, com os cabelos tão bem cortados e a camisola branca, que me deu uma boa ideia. Soltei o
meu cabelo, que me dava até aos ombros, e agachei-me nas sombras. Soltei um assobio baixo. O rapaz deu um pulo.
— Quem és tu? – perguntou, nada preocupado.
— Soy una amiga di su hermana, Emily – sussurrei, pois era-me mais fácil imitar a voz cantada de uma rapariga.
— Como é que te chamas? – perguntou-me em inglês.
— Rosa – guinchei. – Emily a casa?
— Está a ver televisão.
Disselhe, sempre num guinchado espanhol de índios, que a queria ver. – Não devias estar aqui – respondeu-me. – Os
tuacas não podem aqui entrar à noite.
Fingi que se tratara de um capricho e disselho, com um ar triste … e estava mesmo triste!
— Lo siento mucho, chico. Voy a mi kiamp! – dizendo-lhe que lamentava muito e voltava para casa.
— Ah, espera um momento. Emily! – gritou, entrando em casa.
Emily apareceu um momento depois, mas enquanto ainda me procurava na escuridão, levantei-me e disselhe:
— Sou eu, Charlie Fox, do barco das bananas. O que matou a gaivota …
Não tenhas medo, não te quero fazer mal. Lembras-te de mim? Ficou com cara de palerma e perguntou-me:
— Que estás tu aqui a fazer? Eh, isto é esquisito!
— Este é o Jerry – expliquei, porque o meu irmão acabava de aparecer das traseiras da casa, como um lobo. – Estamos a
subir o rio com os nossos pais. Tivemos de parar.
— Eh, que te aconteceu? – perguntou Emily quando se aproximou de mim. Estás todo sujo e mais pequeno. Passa-se
alguma coisa? Tens o cabelo comprido!
Fiz-lhe sinal para não fazer barulho.
— Podemos falar onde ninguém nos oiça? – perguntei, mas era demasiado tarde, Gurney Spellgood já estava à janela.
— Falem baixo, Emily – disse, e depois viu-me. – Os teus pais vão andar à tua procura, menina. Amanhã terão muito
tempo para conversar.
A minha cabeça era a única coisa que sobressaía por sobre o terraço da entrada, o que era bom porque eu só tinha os
calções vestidos, e o meu cabelo parecia o de uma índia.
— Não é nada pai – disse Emily. – Apenas um par de tuacas que querem ser baptizadas.
— Deus ama-te – retorquiu Spellgood. – Toma nota dos nomes, querida, dá-lhes um banho e mais alguma coisa que
queiram.
— Sigam-me – ordenou Emily. Riu-se baixinho enquanto nos conduzia pelo campo, em direcção à igreja que estava
mergulhada na escuridão. Fomos para trás dela e sentámo-nos debaixo de uma árvore. – Pensou que vocês eram índios … e eu
também! Estão metidos nalgum sarilho, ou quê?
— Mais ou menos – respondi. – Chegámos aqui esta tarde.
— Fomos a um baptismo em Pautabusna. Um verdadeiro buraco.
Fomos todos no avião. Já o viste? É um Cessna Directorial, de nove lugares! O pai tem licença de pilotagem. Já voou
quinhentas horas. Um belo avião, com rádio, ventoinhas, tudo …
— Como é que o arranjaram?
O que eu estivera quase a perguntar fora «Como diabo o arranjaram», mas ela respondeu:
— Com donativos. Comprámo-lo em Baltimore e o pai trouxe-o para aqui. Regressámos lá no Unicorn. Pensei que também
fosses nele. Andei à tua procura … É verdade. Eh, as coisas que me passaram pela cabeça a teu respeito foram mesmo …
proibidas! Por que é que o teu cabelo …
— Emily – interrompia-, como está Baltimore?
— Está esquisita. Fecharam a igreja drive-in do pai. Não podíamos pagar os impostos, não havia gente suficiente. Foi por
isso que lhe deram o avião.
— A América ainda lá está?
— Estás maluco; ou quê? – exclamou Emily, rindo-se. – Eh, este miúdo está mesmo esquisito!
— O meu pai diz que a América foi destruída e que só nós nos salvámos porque estávamos aqui. Foi o que ele disse.
— Isso é uma parvoíce! – retorquiu Emily.
Um país inteiro reapareceu aos nossos olhos e começou a brilhar no momento em que ouvi aquelas palavras simples. O pai
pareceu-me minúsculo e assustadiço, como uma barata quando se acende a luz.
— Pois! – concordou o J erry.
— Eh, e eu que pensava que o meu pai era doido!
— Pois o meu diz que a América ardeu toda. É o que ele pensa. – Estivemos lá há três semanas. Está na mesma. Aprendi a
dançar com patins, mas tivemos de voltar para aqui. Se não fosse o avião, isto seria uma miséria … mas trouxemos cassetes
novas. Temos um sistema de vídeo, com jogos. E o Rocky. O pai até nos deixa vê-lo. Diz que tem uma grande mensagem … é
acerca do boxe …
— Eu bem dizia! – exclamou Jerry, dando-me empurrões. – Mentiu-nos durante todo o tempo. Mentiroso! Vou para casa!
Não quero continuar a subir o rio no barco!
— O teu irmão é … esquisito!
— Emily, temos um grande problema.
— Sim? Isso é incrível!
— Podes ajudar-nos?
— Claro! Posso e quero! Eh, eu pensava muito em ti. Vocês podem aqui ficar.
— Não. Temos de ir para a costa.
— O pai pode levá-los no avião. É apenas hora e meia!
— Não há outra maneira?
— Pelo rio.
— Foi por aí que viemos. O pai seguia-nos. Não há estradas?
— Apenas uma, para ali … – Levantou a mão e apontou para a escuridão do outro lado do rio. – Vai para Awawas. É
onde está o nosso jipe, do outro lado do rio. Um Landcruiser da Toyota. Tracção às quatro rodas. É verde, com estofos pretos.
Fazemos baptismos em Awawas. Há aí um rio a sério, o Wonks, por onde poderão viajar até à costa. Há muitos barcos.
— Emily, se nos desses as chaves desse jipe, poderíamos fugir. A mãe guiará até esse lugar que disseste …
— Awawas.
— Sim, e aí largaremos o jipe e seguiremos para a costa de qualquer maneira.
— O teu pai não vai ficar como doido, se não o levarem?
— Doido já ele é – disse o Jerry.
— Que faça o que quiser – respondi. – Isso é lá com ele!
— Não tens medo?
— Tinha, quando pensava que ele sabia o que dizia. Agora que sei que está enganado, não tenho. E tu, tens medo do teu
pai?
— O pai tem uma arma, uma Mossberg de repetição, com uma mira telescópica. É por causa dos comunistas. Há milhões
de comunistas aqui em volta. Eh, se penteasses o cabelo ficavas bonito, parecido com o James Taylor.
— Dá-nos as chaves do carro, por favor. Teremos cuidado com ele.
— Não é um carro … é um jipe. Eh, é verdade que o teu pai diz que a América foi destruída? É incrível, sabes? As
pessoas do barco falavam muito dele, diziam que era uma pessoa estranha, o passageiro mais esquisito que já lá tinha andado.
Eh, espero que não te importes por eu dizer isto! Se alguém dissesse tal coisa do meu pai eu chorava, apesar de ser mais ou
menos verdade. Toda a gente dizia que vocês viviam como os Zambus e que andavam de um lado para o outro nus e a
treparem às árvores. Quis escrever-te uma carta. Gostas do meu cabelo? Fiz caracóis, mas o pai obrigou-me a cortá-los.
Precisas de dinheiro? Tenho andado a poupar. Posso dar-te catorze dólares. Eh, quem me dera ser rapaz!
Nesse momento, com um silêncio que era quase uma pancada repentina, apagaram-se todas as luzes de Guampu. Fora
como se alguém pousasse uma tampa preta sobre o local. O gerador deixara de matraquear. Agora consegui ouvir as rãs.
— Acontece constantemente – disse Emily. – Acabou-se o combustível do gerador.
Dentro de casa, as vozes ouviram-se muito altas.
— Estão zangados, estavam a ver a Cruzada Mundial por Cristo! Eh, já te falei no vídeo? É um Sony. O pai faz pregações
com ele, pode dizer a missa mesmo quando cá não está, como aconteceu hoje. Os índios ficam malucos quando a vêem,
preferem-na aos sermões verdadeiros. Por vezes só cá ficam quando vêem o pai na TV. Agora todos querem ser baptizados,
para poderem assistir …
— Emily, se não consegues as chaves …
— Não te preocupes – disse, levantando-se. – Vou buscá-las. No escuro ainda será mais fácil. É melhor que não estraguem
o jipe. Afastou-se, exclamando: – Que coisa esquisita!
O Jerry agitou-se logo que Emily se foi embora. E se ela não conseguisse encontrar as chaves? E se o pai andasse à nossa
procura? Chorou, riu-se, deu pontapés nas ervas.
— É um aldrabão … um mentiroso! – exclamou. – Jesus, que vamos nós fazer?
— Vamos para casa.
— Hatfield fica tão longe. Nem sequer sabes conduzir um carro.
Talvez fosse melhor ficarmos aqui. Odeio-o, era capaz de o matar.
Pegou-me na mão.
— Jerry, tenho medo.
— Disseste que não tinhas.
— Aquela rapariga tem razão. O pai é maluco.
Emily regressou agitando uma lanterna eléctrica e fazendo tilintar as chaves.
— O gerador avariou-se – explicou. – O meu pai está danado, mandou-o arranjar há pouco tempo. A igreja mandou um
homem de Tegoose.
Apontou a lanterna para a sua própria cara. Estava mais branca, pusera bâton nos lábios e sombra verde nas pálpebras. O
vermelho gordurento nos lábios fazia-a mais velha. Sorriu e perguntou:
— Gostas? – Tinha pintas vermelhas nos dentes. Assustava-me e excitava-me. – Eh, tenho estado a pensar, não precisam
de ir embora já,.. Podem aqui ficar algum tempo. Talvez até vejam os Tuacas, alguns são formidáveis. Depois podíamos ir no
avião. Não querem ver televisão?
— O pai matava-nos – respondi.
— É incrível … é pior do que o meu. Eh, por que é que o teu irmão está a chorar?
— Deixa-o … e lembra-te de que isto é segredo. Não fales de nós a ninguém. Tens de o jurar. Jura-me que não dirás a
ninguém, nem ao teu pai.
— Não direi, juro.
— E se te fizerem perguntas?
— O pai já te viu e pensa que vocês são índios! Não é a primeira vez que lhe levam o jipe, já têm feito maluqueiras como
essa. Atirarei a culpa para os Tuacas. Será fácil.
Acompanhou-nos até à margem do rio. Antes de nos metermos na água, disse que me queria beijar. Não podia fazê-lo com
o Jerry a ver, pelo que lhe pedi para começar a nadar. Quando ouvi o barulho dentro da água, beijei-lhe as faces. Agarrou-me
e encostou a sua boca à minha. Tinha os lábios macios, os nossos dentes tocaram-se, cravou-me os dedos nas costas e espetou-
me todos os seus ossos no corpo. Mantive os braços caídos.
Preocupara-me com o regresso ao barco, mas fiquei tão satisfeito por me ver livre dos beijos que o rio até me pareceu
fácil de atravessar … mas estava frio. Olhei para trás, avistei a pequena luz da lanterna e apeteceu-me beijá-la outra vez.
XXIX

Quando subimos para bordo a mãe estava acordada, de pé no exterior da cabina.


— Por onde é que vocês andaram? – Procurava mostrar-se zangada mas parecia assustada. É fácil de saber como as
pessoas se sentem pela maneira como falam na escuridão. Emily já mo mostrara e agora era a vez da mãe.
— Por ali – respondi. – A ideia foi minha, portanto, não culpe o Jerry. – Olhei em volta em busca da canoa, mas não
consegui vê-la. – Onde está o pai?
— Pensei que vocês estavam com ele. Fiquei aqui de vigia e de repente todas as luzes se apagaram.
— O gerador avariou-se. – Esforcei-me por conseguir ver a outra margem, mas Guampu estava mergulhada na escuridão.
Só se via a selva e as manchas brancas das casas, que pareciam feitas de giz. O pai tem andado a mentir-nos, mãe.
Contei-lhe o que Emily nos dissera acerca de Baltimore e da América.
«Isso é uma parvoíce.»
— Não faz diferença – respondeu a mãe.
— A América está na mesma, Ma! Não se passou nada!
— O pai odiava-a tal como era. Foi por isso que partiu. É por isso que estamos aqui. Nunca voltará para lá.
— Pois eu não ficarei aqui! – declarou o Jerry.
— Nem eu – concordei.
— Não temos alternativas – disse a mãe. – Somos obrigados a fazer o que ele manda.
— Estamos a cometer um erro terrível … Foi o que tu disseste!
— Nunca vos devia ter dito isso – proferiu a mãe, numa voz triste e derrotada. – É verdade, mas temos de nos sujeitar.
Agora, esta é a nossa vida.
Ia para dizer mais qualquer coisa mas o choro impediu-a … um choro miudinho, como os soluços de Clover.
— Podemos sair daqui, mãe. Está um jipe estacionado ali no meio daquelas árvores, deste lado do rio. – Mostrei-lhe as
chaves e expliquei-lhe como as conseguira. – Tu podes levar-nos … aos cinco, antes que ele volte. – Estás a sugerir que
abandonemos o pai? Não posso acreditar no que estás a dizer.
— Pode ser a nossa última oportunidade – respondi. – Por favor, mãe. Acorda as gémeas e vamos. Depressa, ou o pai
impedir-nos-á de escapar.
— Queres que o pai regresse a este barco e descubra que fugimos dele? Isso é uma coisa horrível, Charlie.
— Quero ir para casa! – exclamei, agarrando no ombro da mãe e sacudindo-a.
— Então, e eu? Achas que não daria saltos ante a o fazer? Mas olha para esta escuridão … e o pai não sempre muito
assustada quando se afasta.
Não se libertou das minhas mãos mas tremia tanto que a larguei. Se a mãe não queria conduzir o jipe, então nós próprios
não poderíamos escapar nele. No entanto, percebia que a mãe começava a ceder … falava como se pudesse vir a acabar por
concordar, mas tinha medo. O pai encontrava-se algures no meio da escuridão, na margem ou na canoa.
— Talvez nos tenha abandonado.
— Não podemos fazer nada sem ele!
— Pode não voltar!
— Por favor, mãe, por favor! – implorou o Jerry.
— Não consigo pensar bem, com toda esta escuridão – afirmou a mãe, numa voz abalada.
— Amanhã será demasiado tarde. O Spellgood vai andar à procura das chaves do jipe. Verá o nosso barco … e seremos
presos!
Enquanto falava, surgiu uma luz em Guampu. Agora conseguíamos ver os rígidos perfis das casas. Por detrás delas, tal
como o clarão do nascer do Sol, qualquer coisa ardia. As chamas altas deram tons verdes e dourados às árvores mais
próximas, inundando-as de luz e dando-lhes frenéticas sombras zambus. O fogo levou as aves a agitarem-se e a piarem. Gritos
humanos atingiram-me ao mesmo tempo que o cheiro de gasolina a arder.
— Fogo – disse Jerry e as chamas iluminaram-lhe o rosto.
O gerador incendiou-se a seguir. Os tanques rebentaram com um estrondo e atiraram com todo o telheiro para o rio. Lagos
de fogo e paus a arder avançaram rapidamente, dançando na corrente. As pessoas de Guampu gritavam e toda a selva estava
acordada com os uivos dos macacos e com os ruídos das asas dos pássaros agitando os ramos.
— Oh, meu Deus! – exclamou a mãe.
As gémeas acordaram e começaram a chamar de dentro da cabina.
A garganta de Jerry emitia sons baixos e assustados. A mãe choramingava, batendo na amurada do barco com a palma da
mão e dizendo:
— Oh, Deus. Oh, Deus, não devíamos ter parado aqui! Por que é que não continuámos em frente?
— Jerry, pega nas gémeas – ordenei. – Vamos, mãe, fujamos daqui!
— Sentem-se! – Era a voz do pai. Apareceu no rio, de pé dentro da canoa com as chamas por detrás dele, a face sombria
de ameaças. – Vocês não vão para lado nenhum!
Debatia-se com a canoa. Mergulhava a pagaia nos reflexos de fogo e acabou por parar junto de nós.
— Allie, que se passa ali?
— O fogo está controlado. Ninguém sofreu nada. Não sentirão a falta daquele avião. Ainda bem que o vi … fiz-lhes um
favor, acabei com ele. Muito bem, mexam-se, vamos embora!
— És um mentiroso! – gritou Jerry, atirando-se ao pai. – Mentiste-nos sobre tudo! Disseste que a América foi destruída!
— E tinha razão – retorquiu o pai. – Olha para aquelas chamas!
— Mentiroso! Mentiroso!
— Charlie, leva este chorão para a proa. Vamos partir!
— Não iremos contigo, depois de todas as mentiras que nos contaste – disselhe. – Fizeste-nos sofrer para nada!
— Para a proa!
— Allie, escuta-o! O Charlie tem um plano!
— Tu! – gritou o pai, empurrando a mãe de encontro à cabina. Estiveste sempre contra mim! Tentaste sempre minar as
minhas decisões. És tão útil como esses garotos!
A luz do fogo de Guampu e do avião a arder avermelhavam-lhe o rosto, dando-lhe destaque aos cabelos e abrindo-lhe
buracos escuros no lugar dos olhos. Nesse momento tive tanto medo dele e das gémeas a chorarem na cabina, que puxei o
Jerry para a proa.
O barco oscilava, preso à âncora. Da amurada partiam dois cabos amarrados a uma árvore suspensa sobre o rio na
margem oposta a Guampu. Conseguia ouvir a confusão dos Spellgood e as chamas a estalarem como velas ao vento.
— Vamos matá-lo – disse o Jerry. – Amarramo-lo e damos-lhe com um martelo. Então, já não nos poderá deter … e
merece-o.
— Está bem – respondi.
— Terás de ser tu a fazê-lo.
— Como?
— Com um martelo – sussurrou. – Rebenta-lhe a cabeça.
Nunca imaginara a coisa com aquelas palavras. Ouvi-lo a repeti-las tornava o acto impossível. Eram palavras selvagens e
violentas, «martelo» e «rebentar», que me assustavam com o sangue nelas implícito. Os gritos de Guampu eram como a minha
consciência aos berros.
— Não sou capaz.
— Se não o fizermos, virá atrás de nós e mata-nos. – Não fales … não digas …
— Mentiu-nos – disse Jerry. – É perigoso. Queimou-lhes o avião e estoirou com o gerador. Bateu na mãe. É assim que irá
ser a partir de agora, se continuarmos com ele … Ou talvez ainda pior …
— Levantem a âncora! – gritou o pai. – Soltem a corda dessa árvore!
— Não o faças – continuou o Jerry. – Quer ir-se embora e leva-nos
Ainda mais para o interior. Seremos obrigados a ficar lá. Está metido num sarilho por ter provocado aquele incêndio.
Nunca voltaremos para casa!
— A âncora! Depressa!
— Fujamos daqui – respondi. – Podemos saltar para a margem e ir embora. Vamos, Jerry.
— Mata a mãe e as gémeas! Sei que o fará.
De súbito o pai apareceu por trás de nós aos gritos.
— Que estão vocês a fazer? Ajuda-me com estas cordas, Charlie. Jerry, pega num bambu e começa a empurrar o barco. Se
esses selvagens nos vêem, cairão em cima de nós como uma tonelada de tijolos.
Pousou os pés no centro do rolo da corrente da sonda. Antes de conseguir pensar ou parar, apertei-lha com força em volta
dos tornozelos. Tentou mover-se e caiu. Caiu com força, batendo com a cabeça na amurada. Não ficou inconsciente, mas
apenas tonto e com um meio sorriso.
— Desculpa! – disse, aterrorizado. Continuei a pedir-lhe desculpa e avancei para o ajudar, mas, nesse momento, já o Jerry
amarrava as mãos do pai, enrolando-lhe um bocado de corda em volta dos pulsos e dos polegares.
— Os pés! – gritou Jerry. – Ajuda-me! Enrolei o resto da corrente em volta dos pés do pai.
— Não vou bater-lhe – afirmei. – Não o vou matar.
— Então, amarra-o com força – continuou o Jerry, ainda a amarrar as mãos do pai, que fora quem nos ensinara aqueles
nós.
— Allie, vem aí gente! – gritou a mãe, da popa do barco.
O pai pareceu compreender mas continuou deitado de costas, suficientemente quieto para podermos fazer-lhe nós duplos
nas mãos e nos pés. Murmurou qualquer coisa de um modo desconexo, como se estivesse drogado, enquanto eu continuava a
pedir desculpa por aquilo que estávamos afazer.
— Têm lanternas – disse a mãe, que não nos podia ver. – Allie, o que é que queres que faça?
O avião continuava a arder por detrás das casas, mas o incêndio do gerador fora abafado pela selva. Na margem, na
escuridão, vimos luzes que se agitavam, candeeiros e lanternas eléctricas.
A mãe continuava a chamar. Foi a sua voz que acordou o pai, que abriu os olhos e se atirou a nós. Porém, os nós
aguentaram-no e fizeram-no cair outra vez. Voltou a bater com a cabeça. Ajoelhou-se e tentou libertar as mãos. O Jerry pegou
num tubo de ferro que se encontrava no convés e ergueu-o sobre a cabeça do pai. Arranquei-lho das mãos e atirei-o borda
fora. O pai não olhava para cima, resmungava com os nós e depois soltou um lamento de embaraço e ira por não conseguir
quebrar as cordas com um esticão.
— Eh! – disse, numa voz de bêbado, e começou a morder os pulsos.
Não queria encontrar-me ali quando se conseguisse libertar. Jerry e eu corremos para a popa. Puxei a canoa para o nosso
lado do barco, oculto de Guampu, e disse à mãe para embarcar. Agachada no escuro, segurava as gémeas olhando para a
margem de Guampu, onde as pequenas luzes dançavam na escuridão e o avião ardia.
Atingiu-nos um grito vindo da margem. Era Spellgood gritando em espanhol e também numa qualquer linguagem índia,
talvez tuaca. A sua voz ressoava como num túnel, como se gritasse por um megafone.

— Para a canoa, depressa, mãe. Por favor, despacha-te!


Ouviu-se um tiro, não muito alto mas que tinha a malícia de um dardo envenenado, e que provocou um ruído nas árvores
por detrás de nós, na margem mais próxima.
— Onde está o pai?
— O pai não vem.
Outro tiro e mais gritos em dialecto índio por parte do Spellgood.
— Allie! – chamou a mãe, enquanto colocava April e Clover dentro da canoa. As gémeas taparam as caras. Estavam tão
assustadas que já nem tinham fôlego para chorar. O Jerry embarcou a seguir, e depois a mãe, que ainda chamava: – Allie!
Allie!
Saltei lá para dentro e remei para longe do barco. Estávamos apenas a seis metros de distância da margem oposta a
Guampu, mas antes de conseguirmos percorrer metade do caminho – uma remadela-, uma luz pousou na cabina do barco e
iluminou-a por detrás. Estávamos escondidos na sua sombra, olhando para cima.
O pai levantou-se e enfrentou a luz. Quando tentou tapar a cara vimos que ainda tinha as mãos amarradas.
— Comunistas – gritou Spellgood. – Satanás!
— Allie, aqui! – disse a mãe. – Mas que se passa com ele?
O pai esfregou as mãos amarradas de encontro ao telhado da cabina, batendo os nós de encontro à madeira.
— Satanás! Diabos!
— Ajudem-me – pediu o pai, numa voz muito calma.
Quando falou, ouviu-se um som fraco, quase inocente, como o de uma ameixa muito madura a cair no chão.
O pai caiu de joelhos gritando:
— Estou bem! Estou bem! Estou vivo!
Entretanto, tínhamos atingido a margem. Os garotos saltaram para terra mas a mãe continuou na proa.
— Allie!
— Não me abandonem – pediu, levantando as mãos amarradas. – Estou ferido, mãe!
A mãe arrancou-me a pagaia das mãos e no mesmo movimento mergulhou-a no rio e empurrou-nos em direcção ao barco,
enquanto eu me agarrava.
— Quem está aí? – perguntou Spellgood pelo megafone, do outro lado do rio. Procurava descobrir-nos com a lanterna. –
Quem disse isso?
— Não me posso mexer – gemeu o pai de novo.
Mantendo a canoa protegida pelo barco, conseguimos rolar o pai do convés para dentro da canoa. Deu um grito, como se
lhe tivéssemos partido o pescoço, mas não hesitámos. Com uma das suas pernas caída para dentro do rio e com a água a
passar por cima da amurada, remámos para a margem onde nos aguardavam os garotos.
— Depressa – pediu a mãe.
— Irei atrás de vocês! – gritou Spellgood.
— Não consigo sair desta coisa – disse o pai.
A mãe arrastou-o para a margem. Ainda ocultos da margem oposta pela sombra do barco, desamarrámos-lhe os nós que o
prendiam. Mesmo com as mãos e os pés livres, não conseguia mexer-se. Levantava a cabeça mas o resto do corpo jazia,
pesado, no chão.
— Ajuda-me, Charlie – disse a mãe. – Vocês todos, segurem-no! Arrastou-o pelo meio dos arbustos enquanto lhe
pegávamos nas pernas.
Agora já havia mais gente na margem oposta. Deviam ter ouvido os tiros. Parecia-me escutar dezenas de vozes.
Chamavam-nos e uma ou duas vezes pensei ouvir Emily a pronunciar o meu nome, mas o rio era ali muito largo e a margem de
Guampu ficava a mais de cinquenta metros de distância. Continuámos a avançar sem proferir uma palavra até encontrarmos o
jipe. Do outro lado, as vozes continuavam. Era como se estivessem perdidos e feridos, gritando por ajuda na escuridão … mas
não por nós.
XXX

Ao longo do túnel escuro de folhagem que era a estrada, com a noite a comprimir-se de encontro ao tejadilho, os quarenta
quilómetros de trilho cheio de raízes que conduzia a Awawas pareceram-se mais com cem. A mãe conduzia o mais depressa
que podia, desviando-se dos obstáculos e moendo as mudanças. Os restantes seguiam em silêncio. Observávamos as aves
aninhadas na estrada e as bolas de pêlo que eram juparás, com olhos como lâmpadas eléctricas, imóveis no meio do caminho
por onde chocalhava o jipe. Quando a mãe falava, era sempre com o pai.
— Vais ficar bom – dizia. – Não te abandonaremos, Allie.
O pai não respondia. Seguia no banco traseiro, com os olhos quase abertos. A camada de lama da margem do rio que o
cobria libertava um cheiro a morte.
Então, ainda no escuro, a estrada acabou. Fomos atirados para o meio de um beco sem saída de árvores, fetos e arbustos
que brilhavam sob os faróis, o barulhento estômago da selva. A mãe desligou o motor e puxou o travão. Trepou por cima do
seu assento e foi para junto do pai para o confortar, falando-lhe baixinho como se ele estivesse a dormir.
— Viverás, Allie.
Com as luzes apagadas podíamos ver as estrelas e o buraco da lua no cobertor do céu. A Lua foi descendo e os ramos
desenharam-lhe fendas na face. Não houve sol durante algum tempo, mas apenas uma luz acinzentada que ia subindo e
penetrava entre as árvores como a água de uma cheia, dando-lhe um tom ceroso com os farrapos de nevoeiro que, quando o
dia nasceu, foram cortados por faixas de sol que se espessaram e nos cegaram. A selva à nossa volta alterava-se de segundo a
segundo, de escura para aquosa, enevoada, cerosa e cinzenta. A luz começou a fazer fugir as sombras da selva, uma maré alta
de luz com um espelho atrás. Era como se durante todo o tempo houvéssemos fugido da escuridão para a claridade, deslizando
para a frente como gente assustada numa canoa silenciosa, para aquele lugar mais brilhante.
Toda a escuridão escorrera já das árvores da manhã, desfazendo-se em lama e água.
A madrugada mostrou-nos que estávamos sozinhos. Durante a noite a selva era alta e o seu brilho frio pingava escuridão,
mas à luz do dia era de um amarelo escasso, quebrado por árvores anémicas, aqui e acolá mais verdes. Aquilo era a margem
de um rio, a folhagem da noite tornara-se frágil e cheia de ervas. A nossa frente, onde esperávamos encontrar mais selva,
estava a água. Era o Wonks, de onde surgira toda a escuridão.
— Mãe – chamava o pai e a sua voz era como aquela frágil luz. Não conseguia suportar o seu rosto branco como o de uma
cabra, o sangue por debaixo da barba, as meias-luas azuis por debaixo dos olhos. Caminhei para o rio com o Jerry, saltando
por cima das raízes. Estava um sapo a meus pés, apeteceu-me trespassá-lo com uma lança, mas depois de ter visto o pai não
seria capaz de o fazer. Em vez disso comecei à procura de iautias e de goiabas.
— Não quero que ele morra – declarou o Jerry.
Ouvimos vozes e olhámos para trás, para o jipe. Havia dois índios a espreitar pelas janelas. Deviam ter reconhecido o
jipe dos Spellgood, porque sorriam e conversavam com a mãe. Aproximámo-nos quando a mãe saiu do carro.
— Descubram-me um barco – disse. – Água e comida! Depressa! Do pai, só a cabeça estava viva, percebemo-lo quando o
pousámos no chão. Era bem óbvio, quando a mãe lhe lavou a ferida. Tinha a cabeça viva, mas o corpo era como uma saca de
sementes. A bala entrara-lhe pelo lado do pescoço e saíra pela nuca. Não tinha a espinha partida, mas havia fios vermelhos e
de gordura na boca da ferida, e uma mancha azul à sua volta. A mãe cobriu-a com algodão que os índios ferveram, e depois
colocaram-no em cima de uma tábua e transportaram-no para o rio. Levavam-no com os pés para a frente como os portadores
de um caixão, talvez por pensarem que estava morto.
A mãe colocou-o na proa do barco, que era uma embarcação muito achatada e com um comprido timão de leme. Por essa
altura já o choro das gémeas atraíra outros índios, e toda aquela gente parou na margem, observando-nos sem fazerem
perguntas. Alguns correram em busca de mais tigelas de arroz e feijão – «comida inglesa», como lhe chamavam – bem como
de wabool e de café. Um dos índios disse à mãe que não era nem bom nem mau que o pai tivesse morrido … que todos
morriam, era assim o mundo, não se podia nada contra isso, portanto que fosse feliz.
— Vocês acreditam nisso – respondeu-, mas eu não, portanto não mo peçam. Levem-mo daqui para fora e entreguem as
chaves do carro ao pregador.
Era o que o pai teria respondido. Apoderara-se da sua determinação, numa espécie de pânico. Obrigou-nos a procurar
pagaias e varas e dava ordens aos índios. Não tinha o jeito do pai para as improvisações mas sabia como levar os índios a
erguerem uma cobertura para a cabeça do pai. Quando um índio tentou insistir em ir connosco, declarou-lhe com firmeza que
ficava grata pela oferta mas que não queria a sua ajuda. – Não fico aqui nem mais um minuto – declarou.
Um dos homens mencionou um serviço religioso, mais gabarola do que piedoso. Eram do tipo de gente a que o pai outrora
denominara de «índios das rezas».
— Não rezo – retorquiu a mãe.
Partimos naquele barco de fundo achatado, com a mãe à popa, as gémeas ao centro, com a comida, e o Jerry e eu a
remarmos à proa, de cada lado do pai.
— Subimos o rio? – O pai percebera que navegávamos. Esforçou-se por espreitar por cima das amuradas, mas não o
conseguiu.
— Sim – respondeu a mãe. – Subimos o rio.
Conduziu-nos para o meio da corrente e aproou para jusante.

A apressada corrente daquele rio era como a do avanço de uma maré, mas permanente. A água corrente tinha ali um
aspecto estranho, deslizando ao longo das mais mortas e despovoadas margens. A última vez que havíamos descido um rio
fora o rio Sico, quando da fuga de Jerónimo. Porém, comparado com o Wonks, o Sico era um riacho, e isso fora na estação
seca. Este era muito mais cheio e largo do que o próprio Patuca. Viajávamos a meio da corrente e avançávamos depressa.
Quase não era preciso remar, excepto para equilibrar o barco nas curvas.
O pai pensava que ainda estávamos no Patuca, e que seguíamos em direcção à nascente. Estava feliz, ou antes, a sua
cabeça estava feliz, porque o resto era um saco de areia.
— Remem com força – disse. – Afastem-se da costa, afastem-se dos selvagens. Há morte, lá em baixo. Escutem, a costa de
Mosquito é a costa da América. Sabem o que isso quer dizer.
Demos-lhe água e wabool, mas não queria comer. Afirmou que queria passar fome até recuperar as forças.
— Aleijado, não lhes servirei de grande coisa. Passa-se algo com as minhas pernas.
Com os braços também, pois não podia mexê-los. Éramos nós que lhe enxotávamos as moscas da cara.
A sua enorme cabeça estava fixa no nicho da proa como a de uma cabra no cabresto, olhando para nós enquanto descíamos
o rio a toda a velocidade, dizendo-nos que estávamos salvos porque o subíamos, e, por vezes, chorava.
Chorava mais quando via os pássaros. Ao princípio eram pássaros inofensivos como os papagaios, mas delirava e os
pássaros transformaram-se em criaturas viciosas. Tornaram-se maiores. Ganharam plumas e garras. Primeiro, por cima de nós
pairavam cegonhas, depois falcões-pescadores e por fim abutres, os que ele mais odiava. Nunca antes havíamos visto abutres
daqueles. Eram negros e enormes, já não eram cinzentos, com as pontas das asas esfarrapadas, pescoços depenados e enormes
bicos recurvos. Planavam sem bater as asas, como maldosos papagaios de papel, com um aspecto frágil e paciente no céu de
Verão.
— Levem daqui esses pássaros! – gritava.
Era o seu velho horror aos «comedores de restos», mas agora que não conseguia mexer os braços ainda tinha mais medo
deles, bem como de outras coisas. Do modo como o barco oscilava, pois não poderia nadar. Das moscas que se lhe juntavam
em volta os olhos. Dos barulhos súbitos. Do fogo. Não queria ser deixado sozinho e odiava as paragens. Quando nesse
primeiro dia nos detivemos numa aldeia da margem, chamada Susca, para procurar ligaduras novas e água, fez com que eu e o
Jerry ficássemos junto dele até ao regresso da mãe. Não se mostrava surpreendido por existirem ali aldeias, por passarem
outros barcos junto do nosso, por ouvir o clamor dos Mosquitos.
— É aqui que se encontram os últimos humanos … no alto do rio. Tínhamos descido já mais de vinte quilómetros e
deslizávamos para a costa.
— Tapem-me – pediu. Obrigou-nos a mudar a cobertura da cabeça para não poder ver os abutres que nos seguiam. Além
disso, afirmou odiar aquele céu vazio. – Se estivesse na cadeia, nunca espreitaria pela janela.
Tínhamos sorte, declarou, porque aquele rio era um labirinto. Fácil de entrar, difícil de sair.
Delirava quando estava acordado, e quando dormia uivava durante os sonhos. Tinha sempre espuma nos lábios.
Fácil de entrar? Não poderíamos subir o rio contra a corrente mesmo que o desejássemos. A noite atracávamos o achatado
barco junto das aldeias. Nalgumas havia missionários morávios, índios a rezar e gente da Pensilvânia. Não, a América não
fora destruída. A mãe pedia comida, água e medicamentos. As pessoas eram simpáticas, davam-lhe tudo o que ela queria.
Parámos em Wiri-Pani e Pranza, e num lugar chamado Kisa-Laya onde avistámos carroças cobertas de lama. Informaram a
mãe de que nos encontrávamos apenas a três dias da costa, do cabo Gradas a Dios, a que chamavam apenas «O Cabo».
As gémeas não tinham nada para fazer. Seguiam preocupadas, a tremer de medo por causa da velocidade a que
viajávamos. A mãe conservava-se à popa, usando um chapéu de palha de Susca. Segurava no longo timão, sem olhar nem para
a esquerda nem para a direita, mas sim sempre em frente, para a foz, por cima da cabeça do pai.
Só falava com as gémeas e estava demasiado longe do pai para responder às coisas que este dizia. Queria explicar-lhe que
não desejara qualquer mal para o pai, mas apenas permitir-nos escapar. Tínhamo-lo feito da pior maneira possível, descendo
um rio que não conhecíamos e com as raparigas doentes. Transportávamos a cabeça do pai para a costa. Mais ou menos de dez
em dez quilómetros surgia uma aldeia de onde os índios nos gritavam em inglês, mas com estranhas pronúncias. Os índios
eram cada vez mais pretos à medida que nos aproximávamos da costa, enquanto os abutres que pairavam por cima se faziam
maiores e mais repulsivos. Às vezes apareciam aligátores durante a noite, que saltavam das margens e nadavam contra a
corrente. Eram cobardes, não nos atacavam e quando nos batiam com os focinhos, fazíamos tochas de farrapos. Por vezes
bastava a luz súbita para os deter. As chamas perto das suas narinas verdes detinham-nos sempre.
Perto da costa o rio era mais enlameado e retorcido, e a terra mais pantanosa, pelo que as garças pareciam camisas
penduradas em postes de vedação. Ali fazia mais calor e este levava o pai a delirar ainda mais. O seu delírio levou-me a
recordar mais uma vez como em Jerónimo, enquanto trepava pelo interior do «Menino Gordo», tivera um relance da sua mente
e verificara como era confusa. Sentia-me esmagado por aquelas canalizações misturadas e contorcidas. Construíra-o tal como
ele próprio era, os delírios provinham de todas aquelas órbitas e circuitos, dos feixes de tubos, válvulas, suportes e bobinas
… A fábrica de gelo fora a sua dor de cabeça.
Do que se queixava mais era deste mundo imperfeito. A maior parte do que dizia já eu sabia de cor, mas também afirmou
coisas novas.
— Estou ferido – dizia-o e repetia-o, como se acabasse de o descobrir e não fosse capaz de acreditar. – Não me posso
mexer … Não posso fazer nada.
— Vais ficar melhor.
— O homem nasceu deste n; tundo imperfeito, Charlie. Portanto, sou imperfeito. Não prestamos para nada. O corpo
humano está mal desenhado. A pele não é suficientemente espessa, os ossos não têm a resistência necessária, temos poucos
pêlos, não temos nem garras nem presas. Caímos e partimo-nos! Nem sequer somos simétricos. Um pé é maior do que o outro,
temos uma mão esquerda e uma mão direita, os nossos narizes pingam. Repara onde temos o coração. Não fomos feitos para
caminhar de pé … pois essa posição expõe as partes mais sensíveis do corpo, o coração e os órgãos genitais. Devíamos andar
a quatro patas e sermos peludos, mais resistentes ao calor e ao frio, e com caudas. Gostaria de saber o que aconteceu à minha
cauda. Tive de me fazer inventor, era demasiado fraco para viver de outro modo. Olha para mim. Olha para que serviram as
setenta e cinco elevações por dia! Sim, senhor, vou viver a quatro patas a partir de agora. Só para isso é que sirvo … para
andar em cima das mãos e dos joelhos!
Prosseguia assim, repetindo as coisas vezes sem conta, enquanto corríamos rio abaixo sob os bandos de borboletas e sob
as sombras de aves hirsutas que voavam tão alto no céu que para as conseguir ver bem tinha de me deitar de costas como o
pai.
— Há pessoas para quem as coisas ainda são piores, Charlie. As mulheres estão em más condições. Escorrem e vertem
líquidos. É terrível o modo como vertem os corpos das mulheres. Todo aquele sangue, toda aquela gordura inútil … e têm de
carregar sempre com aqueles corpos de um lado para o outro. Não admira que sejam tão loucas, perguntando a si mesmas para
que servem. É humilhante ter um corpo com deficiências de construção. Pensei que era o homem mais forte do mundo. Sou
apenas polpa. A fraqueza faz-nos inteligentes, mas não há inteligência suficiente quando tudo está contra nós. Vou dizer-te
quem vai herdar o mundo … os pássaros devoradores de carniça. Estão preparados para isso, têm tudo a seu favor.
Alimentam-se dos falhados. Neste momento o céu da América está negro, coberto desses pássaros. Limitam-se a pairar, à
espera. Afasta-os de mim! Tenho areia nos olhos! Estou vivo mas não consigo ver, mãe!
Era terrível tentar remar com os gritos do pai mesmo junto aos meus ouvidos. Era tão terrível que eu quase não notava as
curvas do rio, e impedia-me de pensar no que aconteceria quando chegássemos à costa.
O pai insistia em que lhe cobrissem a cabeça. Usava um capuz, como um condenado, e suava lá dentro. Não viu os bandos
de patos que levantaram voo, as desajeitadas tarambolas, os flamingos, as aves marinhas que encontrávamos junto de aldeias
com nomes ingleses tal como Living Creek e Doyle. Permaneceu silencioso durante longos períodos. Os seus silêncios eram
sempre piores do que os uivos, porque pensávamos que tinha morri do. Ainda cheirava a morte. Sabíamos que estava vivo por
causa da sua pele, que caía aos bocados.
Foi mordido pelas moscas, foi mordido pelas baratas que existiam no barco. As febres abalaram-no. Delirava, lutava e
abria os ferimentos.
— A natureza é contorcida. O que eu queria era ângulos rectos e linhas direitas. Gelo! Oh, por que é que elas vertem?
Cortamo-nos ao abrir uma lata de atum e morremos. Uma coisa espetada num pé e a vida escorre-nos pelos dedos dos pés.
Para que servem os chifres dos veados? Andemos a quatro patas e viveremos. Com as mãos e os joelhos no chão ficaremos
protegidos. Ou isso ou asas.
Naquele rio inundado, a voz do pai crepitava debaixo do capuz patibular.
— Escutem-me todos! Deixem crescer asas e nunca mais vos apanham!
O rio tornou-se mais largo e perdeu a corrente. Agora para avançar precisávamos de remar com força. Com pântanos nas
duas margens não havia onde atracar o barco, pelo que prosseguimos durante toda a última noite. Um pouco antes da
madrugada avistámos um facho luminoso um farol – e ouvimos o marulhar das ondas na praia, junto à foz do rio. Era o Cabo.
— Que é aquilo? – O pai reconhecera o som. – Não! – gritou, levantando os braços pela primeira vez.
Arrancou o capuz da cara e disseme:
— Charlie, não me mintas. Diz-me onde estamos.
Dobrei-me, incapaz de falar. Depois tive de me virar para o outro lado pois já estava de dentes à mostra e dentro de mim
havia qualquer coisa muito violenta que me incitava a arrancar-lhe uma orelha à dentada.
— Abutres! – declarou, pronunciando logo de seguida uma frase terrível: – Cristo é um espantalho!

Parecia que era verdadeiro tudo aquilo que o pai receara. Predissera aquilo. O céu estava cheio de aves, feios pelicanos,
gaivotas e abutres. Circulavam e pairavam por cima da grande curva da praia tropical. Por vezes precipitavam-se para baixo
para se alimentarem, porque entre a rebentação remavam enormes tartarugas com bicos de papagaio e pescoços como sacos.
As carapaças das tartarugas estavam incrustadas de pervincas, e restos de algas. Havia mais tartarugas a agitar as
barbatanas na areia, e outras enfiadas nas dunas baixas. Pestanejando e reproduzindo-se, punham ovos castanhos. Tinham os
bicos salpicados da saliva espumosa resultante do esforço.
Não produziam qualquer som. Apenas as aves gritavam, e quando uma tartaruga era lançada à costa por uma onda inimiga,
virada de patas para o ar, os abutres atiravam-se ao seu pescoço desprotegido e arrancavam-no da casca. As gaivotas ficavam
com os restos. A luz do Sol fazia com que aquele pesadelo ainda fosse mais horrível, com as tartarugas a patinharem em massa
ao longo da costa, pondo ovos na areia, as aves a planarem no céu, à espreita, e as ondas violentas. Era o inferno costeiro que
o pai nos prometera.
Escolhemos um sítio isolado no meio de um grupo de palmeiras junto à praia, virámos o nosso barco e montámos
acampamento. O pai chorava. Cada vez que tentava falar, rebentava em lágrimas. Era a visão do mar, a costa de Mosquito. As
lágrimas diziam-nos que o tínhamos enganado, desiludido, levado para ali para morrer.
Surgiram índios negros em canoas para nos verem. O pai gritava-lhes que se fossem embora. A mãe foi a pé até Cabo
Gracias, à povoação, e tentou arranjar um médico. As pessoas disseram-lhe que os médicos se encontravam no rio, nas
missões, ou então em La Ceiba ou em Trujillo, e não ali. Disselhes que queria um barco que nos levasse a subir a costa, mas
os barcos iam todos para sul, para Bluefields, Porto Cabezas e Lagoa das Pérolas. Riram-se dela quando lhes disse que não
tinha dinheiro.
Matámos uma tartaruga e enquanto os abutres pairavam em volta, agitando as asas e observando-nos, assámos a carne
gordurosa na nossa fogueira. Agora acreditávamos que todas as previsões do pai se haviam concretizado. Morríamos na costa
de Mosquito, na areia quente, entre devoradores de carniça e tartarugas que se afundavam. Era pior do que ele dissera.
A América estava a salvo – os morávios haviam confirmado a palavra dos Spellgood-, mas estávamos tão longe que isso
não nos servia para nada. O inferno é aquilo que não podemos ter. As nossas melhores recordações eram as da vida na selva.
Era demasiado tarde para regressar, o rio só podia ser subido com um barco a motor e o vasto e inexpressivo mar fazia-nos
sentir solitários e pequeninos. Tínhamos fugido para a costa, mas éramos agora, mais do que nunca, gente abandonada e
agarrada a uma faixa de praia. Estávamos cansados, vazios e mal falávamos. O pai conseguia mexer os braços, mas as pernas
continuavam imóveis. Jazíamos olhando para as ondas, as tartarugas, as aves. Sempre que nascia o dia víamos monstros
marinhos espreitando entre as vagas.
Ao longo surgiam barcos à vela, dos pescadores, mas nenhum se aproximou o suficiente para podermos ver se o Sr. Haddy
andava entre eles. Nenhum barco aportava àquela praia e o pai afugentara os negros. As gémeas encontravam-se demasiado
doentes para se levantarem. Permaneciam debaixo do barco, junto do pai.
A nossa esperança estava na mãe. Continuava todos os dias a caminhar os quase cinco quilómetros através das palmeiras
até Cabo Gracias, exigindo remédios e pano para fazer as ligaduras do pai.
— Não sou uma mendiga – dizia. – Não aceito um «não» como resposta. As pessoas chamavam-lhe «tiazinha» e diziam
que era louca. O Jerry e eu apanhávamos ovos de tartaruga e lenha para a fogueira. Escutávamos o pai a implorar que o
fizéssemos subir o rio e matávamos as moscas que lhe pousavam em cima.
— Para que lado fica o rio? – perguntou, numa voz muito baixa. Falava como um bebé a respeito de viver a quatro patas,
bem longe, no interior de Mosquitia, e acerca de ir para o mar numa peneira, mas em geral não dizia nada. Ficava a olhar. Os
pensamentos toldavam-lhe a testa. As lágrimas amontoavam-se-lhe nos olhos e rolavam-lhe pelas faces, sem que o pai soltasse
um som.
Cinco destes dias enfraqueceram-nos mais do que o rio conseguira, e agora a costa parecia-nos um grande erro. As
criaturas que ali viviam alimentavam-se umas das outras. Vestíamos farrapos. Quanto mais tempo ali permanecíamos, mais
receávamos o oceano. Nunca nadávamos por causa das tartarugas, e mantínhamo-nos a coberto por causa das aves.
Quando dormia, sonhava com comida. Sonhava com bolo de chocolate e leite frio. Sonhava com a nossa cozinha em
Hatfield, em como algumas noites eu lá fora, às escuras, abrira o frigorífico para me refrescar, e olhara para as prateleiras
iluminadas, o queijo, o leite, o bacon, um frasco de compota, uma garrafa de água, uma empada, um jarro com sumo fresco de
laranja. A cozinha estava escura, mas o interior do frigorífico era brilhante e cheio de boa comida.
Um dia os gritos de Jerry interromperam-me esse mesmo sonho, e nunca mais me viria a esquecer dessa interrupção. Jerry
avistara um barco à vela vindo de sul. O vento soprava do mar. O barco aproximou-se, navegou sobre uma onda com a grande
vela a bater e deteve-se na areia.
— Pai, um barco!
O pai ergueu a cabeça e observou o Jerry a correr para o barco à vela. – Pode ser o Sr. Haddy – disse eu.
— Onde está a mãe?
Olhei em volta. Estivera a dormir, não sabia para onde ela fora. – Deve estar na aldeia.
As gémeas dormiam ao lado do pai, de mãos dadas.
— Vai ver quem é – pediu o pai. Lançou-me um olhar de esguelha, a sua mirada de cobarde, fraca e necessitada de
conforto, pronto para abandonar tudo só para se poder escapar … um olhar de culpado, com um pouco de tristeza e de ódio
por si mesmo. Vi-lhe o rosto mas só mais tarde compreendi a expressão. – Não há pressa – continuou – não sairei daqui.
Deixei-o com as gémeas e corri ao longo da praia. Jerry já atingira o barco à vela. Falava com o homem que vinha a bordo
e tinha tartarugas amontoadas em volta do mastro e no interior da pequena cabina. Não era o Sr. Haddy, mas estava disposto a
conversar. Rasgara a vela principal e precisava de cordas. Falava a respeito das cordas quando ouvi o grito.
— As gémeas! – exclamou Jerry.
Fora um grito de criança, agudo, lamentoso e patético.
— Mãe! Mãe! Mãe!
— De certeza que aconteceu qualquer coisa – disse o homem do barco ao ouvir as vozes.
Quando chegámos ao nosso pequeno acampamento, encontrámos as gémeas acordadas, a esfregarem os olhos. O pai
desaparecera mas víamos o sulco que o seu corpo deixara na areia, como os rastos de um lagarto, com as marcas das mãos
dos dois lados. Andara a quatro.
— Mãe!
O som estrangulado chegou-nos do outro lado da duna.
Conseguira arrastar-se até uma boa distância do campo. Fizera-o com pressa. Jazia num monte de areia virado para Oeste,
a direcção da foz do rio. Agora estava imóvel. Por cima dele encontravam-se cinco abutres, que lhe atacavam a cabeça.
Davam-lhe cruéis bicadas no crânio e projectavam sombras terríveis sobre o corpo. Tinham bocados de carne nos bicos. As
aves olharam para cima, para mim. Interrompera-as, gritando e agitando os braços.
Não ficaram assustadas, a vitória conseguida fizera-as perder o medo. Hesitaram, deram uns pulos para o lado, deixaram-
me ver a cabeça do pai. Apanhei um pau na areia, mas mesmo no momento em que avancei um abutre dobrou-se, bicou e
arrancou mais carne, como uma criança que se apodera de qualquer coisa extra porque sabe que será afugentada e que aquele
bocado já ninguém lho tira.
QUINTA PARTE – A COSTA DE MOSQUITO
XXXI

Podíamos continuar a morrer de fome ali, morria gente na costa todos os dias. Porém, a morte de um branco era uma
novidade … Um missionário, diziam. Ah, como o pai odiaria tal coisa! A notícia propagou-se e chegou aos ouvidos do Sr.
Haddy. Apareceu por simples curiosidade e ficou connosco quando viu de quem se tratava. Quando chorou, as suas lágrimas
recordaram-nos que nenhum de nós chorara. A exaustão era mais forte do que o desgosto.
Pouco depois as brisas que nos haviam queimado na praia das tartarugas, abaixo do cabo Gracias a Dios, empurraram-nos
para norte ao longo da costa de Mosquito. Navegávamos com bom vento, com uma carga de tartarugas moribundas.
Depois da morte do pai, o próprio tempo se modificara. Os dias eram compridos e ininterruptos como uma frase sem
vírgulas e sentíamo-nos perdidos.
Momentos houve em que quase esperávamos vê-lo aparecer, apesar de sabermos que estava morto. Esperávamos vê-lo
surgir algures a nosso lado, saltando para bordo e gritando-nos, tal como no Patuca no dia em que o contrapino da hélice se
partira. As aves marinhas pousavam no barco. Vi-as e o vento levou-me os uivos do pai. Quem mais aguardava o
aparecimento do pai era o Sr. Haddy. Mantivemo-nos vigilantes. Nunca falávamos dele, nem uma só palavra.
Navegávamos ao largo de Caratasca e quando atingimos Mocobila quase não a reconhecemos vista do mar. Passámos ao
lado da praia de Brewer, onde andáramos em busca de despojos, Paplaya e Camaron. Sentia que me dirigia para casa, mas
também que podíamos morrer de um momento para o outro. Não merecíamos mais sorte do que a que fora a nossa, não
mencionávamos a morte do pai.
À noite navegávamos sob velas enfunadas, e de dia o calor fazia-nos parar. O barco subia e descia, mergulhando nas água
verdes, levando-nos para onde calhava.
Outrora acreditara no pai e o mundo parecera-me muito pequeno e velho. Agora que ele desaparecera, mal acreditava em
mim mesmo e o mundo era ilimitado. Uma parte de nós morrera com ele, mas a parte de mim que restava temia-o mais do que
nunca, continuava a esperá-lo, continuava a ouvir a sua voz a gritar: «Vão apanhar-me primeiro … Sou o último homem!» Era
o vento, as ondas, todas as aves, todos os gritos da costa. Tal como ele, pensavam em voz alta.
Uma madrugada, muito cedo, avistámos as luzes de La Ceiba, mas o vento soprava do lado errado. Agarrou-nos e
empurrou-nos mais para oeste, para lá das cabanas, mas depois fez-nos voltar para trás até só podermos atracar perto de umas
palmeiras, numa praia igual àquela de onde havíamos escapado, a trezentas milhas de distância, e onde o pai jazia sepultado,
no meio de ovos enterrados. Nesta nada existia. Detritos de cocos, lixo atirado pelo mar, cabanas sobre estacas, pelicanos,
uma vaca … Outro local selvagem e solitário. O pai não se encontrava ali mas a sua voz ainda chegou até nós.
O desgosto é um sentimento posterior, quando a tristeza se tranquiliza, tornando a nossa memória pesada e sem esperança.
Era demasiado cedo para sentirmos fosse o que fosse excepto o choque do alívio, as últimas dores. Havíamos sido esfolados
vivos e estávamos em carne viva. Havíamos atravessado um fogo e ainda ardíamos.
Não, o pai não estava ali … mas a dor era tão forte que nem conseguia lamentá-lo.
Descemos as velas. Puxámos o barco para terra e caminhámos entre as palmeiras. O que usávamos era tudo o que
possuíamos. O Sr. Haddy, porém, tinha uma riqueza em tartarugas. Ajudou a mãe a caminhar, tocando-lhe no braço pela
primeira vez e depois enfiando-o no seu, dando-lhe apoio e tomando um ar orgulhoso.
Para lá das palmeiras havia uma estrada pavimentada, uma carripana estacionada, um motorista. Pouco depois estávamos
dentro dela, de regresso à cidade de La Ceiba e a casa. O mundo estava na mesma, nem pior nem melhor do que quando o
havíamos deixado … mas apesar de tudo o que o pai nos dissera, o que víamos era um verdadeiro esplendor. Era um mundo
glorioso mesmo ali, naquele velho táxi, com o rádio a tocar.
FIM

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