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Contos de Vestland

1- Samuel

Acordei tonto e cambaleante, minha cabeça doía um pouco e tropecei


diversas vezes nas garrafas de vinho barato e em meus amigos, que
também começavam a acordar.

- Bom dia. - Disse-me Alano, o taverneiro, já com vassoura em mão


olhando o resultado da farra da noite anterior.
- Bom dia!- Respondi logo antes de tropeçar no nada e cair em cima
de meu alaúde.

Alano passou a mão em sua cabeça pálida e careca e me sorriu.

- Você não tem jeito, Samuel… Se bem que dessa vez foi por uma
razão justificável. Sentirei falta de suas músicas dando vida a
taverna, e - Parou e olhou em volta - nem tanto assim de limpar a
bagunça.

Ri um pouco sem graça, mas sem arrependimentos, levantei-me e dei-lhe


um aperto de mãos.
- Você já está de saída? - Perguntou-me Alano.
- Tenho que passar na casa de meu pai e pegar a bolsa com meus
pertences para partir, antes que minha madrasta- fiz uma pausa -
esposa de meu pai acorde.

Despedi-me do resto de meus amigos com um aceno enquanto saía para


fora da taverna. Senti vontade de chorar um pouco, então não queria que
a situação se prolongasse. Meu pai era Marco Lobos, vassalo do Barão
Joel Amorim do reino de Aragon. Meu pai teve um caso extraconjugal
com uma de suas criadas, minha mãe. Minha madrasta queria atirar-me
de uma catapulta logo que nasci, mas meu pai intercedeu por mim e
poupou minha vida, fazendo-me trabalhar junto aos seus servos. Minha
mãe morreu de peste antes de eu completar 7 anos de idade. Minha
madrasta era rancorosa e paranoica, sempre me batia quando eu lhe
cruzava o caminho, exceto é claro, na presença de meu pai, quando
somente me dava seu olhar sinistro e penetrante.

Vivo na grande casa de meu pai, nas terras que são suas por direito,
cresci correndo pelas fazendas ao redor da grande casa e fazendo
travessuras na vila dos servos que trabalhavam para meu pai. Em
determinado ponto no começo de minha adolescência um grupo de
bardos itinerantes chegou às terras de meu pai, havia uma grande festa
pelo nascimento de meu segundo meio-irmão, eu pouco participei pois
minha madrasta proibiu-me de entrar na casa grande durante as
festividades, mas naquele dia apaixonei-me por música, e decidi que
aquele era o caminho que eu buscaria trilhar.

E aqui estou eu anos depois, andando na vila dos servos de meu pai após
uma festa de despedida com alguns amigos que fiz ao longo dos anos.
Imagino a cara estática e feliz de minha madrasta ao ouvir os guardas
dizerem que finalmente parti. Se dependesse de minha madrasta eu seria
um analfabeto igual ao resto dos servos, mas ao saber de meu desejo de
virar um bardo itinerante ela insistiu para que meu pai me colocasse sob
a tutela do mesmo professor de meus irmãos, ao menos uma coisa aquela
mulher amarga fez por mim.

Caminhei pelos campos de trigo e cevada até a casa grande onde recolhi
meus pertences: meu fiel alaúde, algumas roupas, uma cama de peles,
alguns livros, um cantil de couro, um caneco de madeira, um mapa do
reino, um pouco de ouro que consegui de meu pai e uma faca de cozinha
velha que não fará falta. Fui até as cozinhas da casa grande e peguei um
pão que havia sobrado do dia anterior e coloquei junto de minhas coisas,
envolvido num pano.

Eu estava pronto.

Já havia me despedido de meu pai no dia anterior, então pus me a sair


pela porta da frente, para talvez nunca mais voltar. Senti medo e ao
mesmo tempo euforia, eu quase nunca saia da propriedade de meu pai,
estaria por conta própria, um homem de 17 anos em busca de uma vida
boa.

Dei uma boa olhada para trás após seguir a estrada, para ver onde cresci
uma vez mais, vi a vila dos servos com suas casas simples e pobres, os
campos dourados cultivados arduamente sendo iluminados pelo sol da
manhã, e vi a casa grande no topo da colina, acompanhada pela torre dos
guardas. Senti um pouco de melancolia, mas respirei fundo e segui pela
estrada que deveria me levar a cidade de Lisvera, a capital do reino.

Os primeiros dias de viagem foram empolgantes no começo, pois era


tudo tão novo, a estrada cruzava florestas calmas e colinas verdes, passei
uma ou duas noites com frio pois me dei conta de que não sabia acender
uma fogueira, e comecei a pegar frutinhas pelo caminho quando o pão
começou a acabar. No quinto dia de minha viagem acordei madrugada
adentro com um vento frio em meu rosto e a chuva a me encharcar,
levantei-me de minhas peles atordoado e logo catei minha cama
improvisada comecei a correr atrás de abrigo. Consegui abrigar-me
debaixo de um grande carvalho até a chuva passar, logo pelo amanhecer.

Segui viagem meio cansado pela forma abrupta que acordei, mas logo
animei-me ao ver no horizonte um lugar conhecido, a pequena cidade de
Trava. Era uma pequena cidade burguesa na beira do feudo, me lembro
que só a visitei 2 vezes, quando meu pai me levou junto em algumas de
suas viagens. Pus me a andar mais depressa e de semblante alegre, a
estrada deixou de atravessar bosques e colinas para dar lugar a um
campo semiaberto, ao chegar mais perto pude ver algumas plantações
sendo aradas por camponeses, haviam repolhos, cenouras e tomates
crescendo e amadurecendo. Ao caminhar distraído admirando a
paisagem senti subitamente o chão tremer perto de mim e mal vi uma
grande mancha marrom com crina a poucos palmos de minha fuça,
joguei-me para o lado em um pulo de susto. Caí sentado e pude ver um
homem montado com muita pressa, ele nem sequer se virou e pareceu
rir de meu susto.
Sacudi a poeira da estrada de minhas calças e pus me de volta a andar,
desta vez mais atento. A viagem estava um pouco menos gloriosa do que
imaginei nos dias que me preparava, mas ainda assim estava um pouco
cômica. Comecei a passar por um ou outro viajante, às vezes passava
uma carroça, pelo menos já estava vendo rostos novos.

Andei mais algumas horas e avistei melhor a cidade, seus muros de


madeira, e os telhados das casas burguesas. Senti uma briza no ar,
respirei fundo e senti primeiro o cheiro de comida no fogo e vinho, e no
final um cheiro não muito agradável de latrina. Quanto mais perto eu
chegava, mais eu via carroças e carruagens do lado de fora, algumas com
produtos e caixotes, e outros com pessoas descendo ou embarcando.
Os guardas nos portões não pareceram nem me notar entrando na
cidade em meio ao grande número de pessoas que entravam e saiam.

Admito que fiquei meio atordoado com todo o movimento de pessoas, fui
para um canto e pude ver melhor a grande rua que se estendia à minha
frente, havia uma grande feira que se estendia ao longo da rua abraçada
pelas charmosas casas de dois andares típicas desse tipo de cidade.
Haviam barraquinhas vendendo grande variedade de vegetais, e até
especiarias, e oficinas de artesãos abertas. Após poucos minutos
andando na grande feira avistei uma taverna bem grande de portas
abertas onde um grupo de senhores conversavam perto da porta.

Se eu conseguisse trabalho tocando para os fregueses já teria teto e renda


garantidos por algum tempo, senti empolgação e um pouco de
insegurança, mas respirei fundo e prossegui em direção a porta. Ao
passar ao lado dos senhores que conversavam pude ouvir que falavam de
rumores de que o rei de Aragon estava doente. Eu nunca havia visto o rei
pessoalmente, mas meu pai me contava histórias de como já serviu de
guarda a sua majestade em uma viagem diplomática ao império
meridiano. A rápida lembrança das histórias que meu pai contava deu
lugar a meu encanto pelo interior da taverna. Era bem construída e de
bom gosto, o chão era um pouco sujo e juro que vi uma mancha de
sangue logo perto da entrada. Havia cerca de 10 grandes mesas no meio
da taverna com 6 lugares cada e umas 5 mesas menores com 2 ou 3
lugares nas laterais. Haviam 4 pilares de madeira que sustentavam o
andar de cima e havia uma área aberta como uma grande sacada
quadrada aberta entre o primeiro e segundo andar, onde um candelabro
simples de ferro iluminava a parte central da taverna com várias velas. A
porta ficava na diagonal, aproveitando que a taverna era de esquina e vi
vários homens sentados com ar de mercadores e artesãos, bebendo
vinhos e cervejas enquanto conversavam, e logo vi que haviam jovens
moças com aventais que iam de mesa em mesa a servir comidas e
bebidas aos fregueses. Notei um homem alto e loiro sentado
acompanhado de uma criatura muito feia, ao olhar mais atentamente vi
que parecia ser um orc, grande e forte com salientes caninos inferiores,
ele devia ter uns 2 metros de altura e parecia forte, e
surpreendentemente acanhado, como se estivesse sendo julgado a todo
instante. Ele se passaria por qualquer homem alto e forte se não fosse
sua pele em tom de cinza escuro levemente esverdeada, seus caninos
saindo uns 2 centímetros da boca e suas orelhas pontudas apontando
para trás.

Ambos tinham espadas a seus lados e julguei que deveriam ser


mercenários, desviei o olhar para evitar problemas. Adentrei o recinto e
fui direto ao balcão e logo o tavernista veio atender-me. Era um homem
baixo, de um metro e meio e bem gordinho, seu rosto era redondo e
possuía olhos escuros brilhantes , bochechas rosadas e cabelos, barba e
bigode negros, parecia um sujeito carismático.
- Boa tarde rapaz! - Disse-me o homem com tom convidativo e fez
um gesto para que eu me sentasse em um dos bancos do balcão. - O
que vai ser?

Sorri por um segundo, abri minha boca, mas hesitei por um instante
para pensar em como melhor me expressar.
- Boa tarde, senhor. -Disse eu na minha melhor educação - Sou um
bardo viajante e acabei de chegar em trava, gostaria de saber se
estaria interessado em meus serviços.
O homem me fitou atentamente, coçou a barba e olhou seu
estabelecimento.
- Veja bem. -disse em tom sério e calmo- o último bardo que
trabalhou aqui me causou muitos problemas, roubava e bebia de
meus armazéns, cortejava as garçonetes enquanto estavam
ocupadas, e dormiu com a esposa de meu melhor freguês, no que
terminou naquela mancha de sangue perto da entrada.

O tavernista fez uma pausa ao me ver boquiaberto. De fato eu era festeiro


e meio inconsequente, mas não ao ponto do relato que acabara de ouvir.

- Pelos Deuses… - falei impressionado.


- Veja bem garoto, eu estou até precisando, mas não vou aceitar
comportamentos semelhantes a esses. Você entende? Não estou te
julgando…- disse ao levar as duas mãos ao peito e fazer um olhar
de transparência. - Estou apenas sendo cuidadoso!

Minha face ficou tranquila e simpatizei com o homem. Fiz um sinal


afirmativo com a cabeça e ambos aparentamos concordar um com o
outro sem dizer nenhuma palavra. Ao perceber que eu havia
compreendido suas preocupações ele pareceu aliviado e seu semblante
voltou a ser carismático e meio alegre.

- Pois bem! - disse ele ao colocar sua mão esquerda sobre o balcão. -
Vou te dar 3 dias como provação, eu quero esta taverna animada,
principalmente quando ela estiver mais cheia após os expedientes
dos trabalhadores acabarem. - Me disse enquanto gesticulava com
sua mão livre, em seguida apontou para cima.- Você vai ter um
quarto no final do primeiro corredor no segundo andar…-ele parou
por 1 segundo e deu uma leve risada.- Ainda não nos apresentamos
adequadamente, não? Diogo Alvim! A seu dispor! - Disse-me
alegre e com as bochechas vermelhas e estendendo a mão.

Apertei-lhe a mão e prossegui a me apresentar.


- Samuel.. Samuel do Porto.
- Do Porto?- me indagou Diogo.
- Meu pai me deu este sobrenome…- suspirei-pois infelizmente não
posso herdar o dele.

Diogo pareceu perceber o que eu estava tentando implicar e rapidamente


me sorriu como se estivesse tudo bem.

- Muito bem! Samuel. Espero poder contar com você.

O sr. Diogo bateu palmas 2 vezes e chamou uma das moças servindo as
mesas.
- Joanne! - Gritou-lhe - Leve o novo bardo para o quarto dele! O do
final do corredor!

Era uma moça alta, com roupas simples e podia ver um pouco de seu
cabelo loiro por baixo do pano que usava em sua cabeça, nariz fino e
pequeno e olhos castanhos que ela rolou para cima ao ser chamada pelo
sr. Diogo para me ajudar.

- Venha bardo!- ela me disse com pressa e sem paciência.

Dei uma risadinha por dentro e a segui até o segundo andar. Subimos as
escadas até um corredor, ao andar pelo corredor cheguei na sacada
aberta que dava para o primeiro andar formando um quadrado, podia
ver a taverna de cima e logo percebi que começavam a chegar mais
fregueses!

Levei um susto ao Joanne estalar os dedos perto de meu ouvido


esquerdo enquanto eu estava distraído olhando o andar de baixo.

- Vamos! Eu ainda tenho muita coisa pra fazer!


- Desculpe!- respondi ainda meio assustado.
Chegamos ao final do corredor e ela abriu a porta para que eu pudesse
adentrar o quarto. Era um quarto modesto, sem nada de especial. Havia
uma cama simples de palha coberta por um grande lençol com um
cobertor por cima, uma mesa e cadeira no meio do quarto, uma pequena
janela na parede, um lavabo simples com água, um armário para colocar
roupas e um baú no pé da cama.

Considerando que nos últimos dias eu estava dormindo no chão a beira


da estrada somente com meu manto de peles exposto a insetos e ao
tempo era definitivamente uma melhora.

- Obrigado. - agradeci de forma humilde e amistosa.


- Ah sim, nada nada…- disse ela já andando de volta no corredor
apressada. - Não demore pra descer! Já já a casa estará cheia!-
Gritou enquanto já estava longe no corredor.

“Que mulher apressada” pensei para mim mesmo. Dei uma leve risada e
pus me a organizar meus pertences. Ajeitei minhas roupas no armário e
lavei minhas mãos e rosto no lavabo. Peguei meu alaúde e um de meus
livros de canções e desci com pressa ao andar de baixo.

A taverna estava quase cheia, o sr. Diogo fez sinal para que eu
começasse. Toquei varias musicas e cantigas animadas e o clima
rapidamente ficou alegre e descontraído. O grande movimento deve ter
durado umas 3 horas, até que os fregueses começaram a ir embora,
alguns cambaleantes devido a bebedeira, outros ainda dançando e
cantarolando. Ajudei as moças a arrumar e limpar a taverna e sr. Diogo
parecia bem satisfeito. Me senti muito bem como não me sentia a muito
tempo.

Dormi profundamente, somando o cansaço da viagem e a farra na


taverna. Os dias que se seguiram foram bem tranquilos, eu tinha boa
parte da manhã livre, e começava a tocar no horário de almoço até umas
9 da noite. Sr. Diogo ficou satisfeito com minhas performances e minha
conduta e assegurou meu trabalho na taverna.
2- Justiliano

Fui designado para escolta do príncipe Augustino II em sua viagem de


caça. Era um trabalho que traria honra para minha familia, e tambem
uma grande responsabilidade para mim. O príncipe era meu primo de
algum grau alto, mas minha familia era de baixa nobreza de qualquer
forma.

Estavamos a cavalo, o príncipe, eu e mais 8 guardas, e faltava poucos


dias para chegarmos na floresta da família real e passamos os dias
cavalgando e as noites acampando. Sua majestade era alegre e
brincalhão, um tanto arrogante e esnobe, mas isso já é algo que se espera
do herdeiro de um reino poderoso. De qualquer forma a viagem estava
sendo divertida, mesmo que cansativa.

Eu era o unico herdeiro homem de meu pai, Barão Thiago Asturias, e


minhas duas irmãs mais velhas já estavam casadas com nobres de
mesma casta de minha familia, Helena a mais velha se casou com um
barão do reino de Leon, e Rosalina a mais nova com um barão de nosso
próprio reino de Aragon.

O peso da responsabilidade me incomodava as vezes, mas sempre achei


que era melhor isto do que viver a vida como um servo arando os
campos, ou apertado como um rato na multidão em uma cidade
burguesa.

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