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Trigo, vinho e brasas

O sol regava suave e lentamente a campina que rodeava a casa de Galahan.


Enquanto os primeiros feixes de luz adentram o quarto do jovem, uma brisa matinal
remexe as cortinas do mesmo, acordando-o. Os seus belos olhos castanhos se abrem,
assimilando lentamente o tão usual ambiente de seu aposento.
— Que sonho foi esse? - me pergunto, ainda confuso e desnorteado. Ignoro.
Me dirijo à cozinha, como o habitual, procurando mamãe. Quando lá chego, uma bolsa
de couro estava na mesa e o café da manhã pronto, o que geralmente queria dizer que eu
precisava fazer as compras. Mãe ia pelo menos uma vez por Lua falar com seu amigo na
corte humana, em Leornan, e sempre voltava com dinheiro. Ela diz que são amigos de
infância, então faz sentido ele a ajudar tanto.
Comi os ovos com pão sovado e tomei o resto de leite que sobrou, peguei a bolsa e saí.
Como sabia que ela voltaria com outra bolsa de dinheiro mais tarde, usei o da bolsa todo
nas compras, e, ainda assim, não era muito. Comprei verduras, frutas, carne e cereais,
basicamente o de sempre, mas, quando estava saindo da feira, acabei comprando uma
garrafa de vinho. Não me culpe, faziam meses que não tomava um gole de bebida
fermentada, estava cansado de leite e água. Já que o comprador me conhecia, deixou que
eu o pagasse no outro dia.
Cheguei em casa antes do pôr do Sol, deixei as compras na sala e fui tirar as roupas
que estavam no estendal, deveria ter feito isso antes de fazer as compras. Antes que eu
pudesse terminar, avisto minha mãe subindo a campina, involuntariamente vou abraçá-la.
— Filho…
— Como foi lá? - pergunto, alegre por vê-la. - Demorou.
— Filho, não recebi dinheiro… Meu amigo não vai mais nos ajudar…
Cada palavra que ela disse parecia ter pesado toneladas. Já passamos por dificuldades
financeiras, óbvio, nem sempre a quantia era o suficiente para uma Lua inteira, mas
nunca, nunca ficamos mais do que isso sem um tostão. Não conseguia pensar em muitas
coisas além de arrumar um trabalho, algo que eu nunca precisei, mas queria faz um
tempo.
— Eu posso ir atrás de um trabalho. Vi que estão procurando soldados para a guarda
real, se eu conseguir passar eu posso receber um bom dinheiro.
— Não sei, anjinho, me parece perigoso - ela reflete um pouco, descendo seus olhos de
um azul cristalino à grama que cobria seus pés - Mas acho que é necessário… - conclui.
— Vou atrás disso agora. - digo colocando o resto das roupas no cesto e descendo a
campina.
— Boa sorte, querido. - ela sorri, claramente se forçando a esconder sua preocupação, e
falhando.
Caminho até a cidade evitando pensar muito. Me distrair é muito fácil nessas horas e
tudo que eu preciso é foco. Na metade do percurso percebo que poderia ter ido a cavalo -
teria tomado metade do tempo e não iria parecer um mendigo desgarrado. Voltei alguns
passos, demorei alguns longos segundos pra perceber que não tinha sentido algum voltar
todo o caminho agora. Como eu disse, pensar me distrai.
Demorei meia hora, aproximadamente, mas finalmente cheguei. O sol já havia se
escondido atrás do horizonte e as chamas da cidade iluminavam meu caminho. Ao me
aproximar das famosas paredes de ouro e ferro, enxergo o portão fechado. Antes que a
decepção me tomasse, avisto um jovem de cabelo negro com aparência nobre que abria

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os portões. Era minha chance.
— Ei! Posso falar com você?
— Boa noite, como posso ajudá-lo? - pergunta ele, cordialmente
— Eu gostaria de falar com o rei, é importante... - estava me esforçando para não
gaguejar e me perder nas próprias palavras - Quero… Gostaria de entrar para a Guarda
Real.
— Claro, será um prazer o ter como fiel servo do Rei, mas sinto lhe informar que terá de
vir amanhã pois não estamos recrutando na parte da noite.
— Uh, tudo bem, obrigado. - sorrio inquieto.
— Estarei te aguardando assim que o sol raiar, aqui.
— Combinado! - estendo a mão a ele, simulando um cumprimento formal
O jovem, um pouco receoso, estende a mão também, selando um contrato informal.
Ambos não faziam ideia do que aquele simples ato significaria na vida deles. Era apenas o
começo de uma longa e intrigante jornada.
Volto pra casa, cansado como nunca. Ao me deitar na cama, não penso muito no
ambiente, muito menos no que houve, e simplesmente caio no sono como um bebê.
Provavelmente passaram-se horas, mas pareceram minutos ao ser acordado pela minha
mãe.
— Querido - dizia ela com uma voz suave - tem um moço da Guarda Real na porta, ele
quer falar com você.
— Tão cedo? - questiono, ainda raciocinando. Logo me dou conta do que estava
acontecendo. - O TREINAMENTO! - pulo da cama rapidamente, ficando em pé em meio
segundo e me vestindo em um pouco mais.
Peguei as melhores roupas que tinha, que, ainda assim, não passavam dos pedaços de
seda barata menos desproporcionais ao meu corpo . Passei meus dedos entre os fios
curtos e castanhos de meu cabelo na esperança de alinhá-los, mas não fez muita
diferença. Pego uma sacola qualquer da compra de ontem e me dirijo à porta. Estendo a
mão para abrir a porta, focado em pensar no que deveria dizer sem parecer uma jumenta
parida; mas, para a minha tristeza, só percebo que a porta já estava aberta quando sinto o
gelado metal da armadura do guarda real em minha mão suada.
— Com licença, senhor. - o guarda retira minha mão do abdômen de sua armadura. -
Candidato para o exército real, certo?
— S-sim, e v… e o senhor é?
— Nabarett. Prazer, senhor…? - ele olha para minha mãe como se eu fosse uma
criança incapaz de saber meu próprio sobrenome.
— Burbidge, Burbidge Threston. - Layora sabia bem como os primeiros nomes eram
insignificantes para o povo da realeza.
— Certo. Vamos? - ele finalmente olha para Galahan depois de passar poucos segundos
(que para todos na cena pareceram eternos) olhando para o rosto delicado e o louro
cabelo de Layora.
— Vamos. - respondo firmemente, de repente mais confiante.
Subo em meu cavalo, o bom e velho Hal, e vou junto ao comandante até Leornan. Não
conversamos muito, Eu tentei perguntar algumas coisas sobre o trabalho dele e quanto eu
poderia receber caso passasse nos testes, mas ele era bem simplista; “sim”, “não” e,
algumas vezes, um silêncio avassalador eram suas principais respostas. Fiquei
imaginando o que as pessoas do vilarejo pensaram quando me viram ao lado de um
guarda real. Às vezes, até eu me esquecia.
Quando chegamos na área do Palácio Real, desço do cavalo e fico esperando que ele

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abra o portão, um pouco mais atrás dele, mas logo subo de novo, o portão abre antes que
ele sequer chegue perto. Ele olha pra trás, e eu para o lado, tentando esconder a
vergonha.
As enormes muralhas de pedras perfeitamente colocadas uma ao lado da outra me
impressionaram como nada antes, o máximo que sabia de arquitetura era que casas de
madeira podre eram mais frescas. Contornamos o Palácio e vimos parte do Jardim Real.
Não conseguia entender como as pedras poderiam ser tão perfeitamente esculpidas por
mãos humanas, faria mais sentido se o próprio Sol o tivesse feito. Estávamos há quase
dez minutos contornando o Palácio quando Jetrho interviu:
— Galahan, que bom vê-lo aqui, ainda mais tão cedo - ele sorri enquanto aponta uma
caneta de pena para mim
— Saudações, senhor Jetrho - comprimento-o gentilmente
— Você não precisa dessas formalidades, querido. Somos amigos. - ele se interrompe,
abaixando a cabeça para os livros abertos que segurava no braço direito. - Aliás, preciso
falar com você, assim que você se tornar um Cavaleiro Real.
— Certo, torça por mim.
— Podemos ir? - pergunta Nabarett, inquieto.
— Não seja chato, Nabarett. Estamos conversando. - Jetrho retruca revirando os olhos.
— Não, não. Tudo bem. Quanto mais cedo começar meu treinamento, mais cedo ele
termina.
— Sábio garoto. - O treinador segue com o cavalo
— Nos vemos mais tarde? - pergunto a Jetrho.
— Claro - ele sorri e sai.
Nos vimos um pouco mais tarde do que pensei que iríamos. Foi uma longa semana de
treinamento diário, intenso e quase ininterrupto. Acordava antes do raiar do Sol, corria ao
redor do palácio por algumas longas horas, treino de espadas, hipismo até o meio-dia,
comia uma boa comida real e exercícios variados até o pôr do Sol. Não pude voltar pra
casa, dormi todos os dias na casa de Nabarett. Aliás, ele parecia bem rico pra alguém que
mora fora do Palácio, talvez o trabalho dê bastante dinheiro. O treinador explicou que
antes do teste todos recebem um treinamento intenso de uma semana; disse que não
para que seja uma competição justa, mas sim para que, caso haja falta de guerreiros em
uma possível guerra, cidadãos comuns que não passaram no teste tenham conhecimentos
dignos de batalha. Teria achado inteligente da parte do rei se tivesse tempo de pensar em
alguma coisa que não fosse o treinamento, não queria que meu cérebro doesse tanto
quanto meus músculos doíam.
O treinamento era no último dia da semana, tinha o dia livre, pois ele aconteceria de
noite. Montei em Hal e fui direto pra casa. Estava com saudades da mamãe e do meu lar,
não me lembro de ter ficado tanto tempo longe de nossa pequena campina. Evito passar
pelo mercadinho no momento em que me lembro de estar devendo o dinheiro do vinho -
contornar a feira me custou mais tempo mas não queria mais problemas, ao menos não
agora. Depois de deixar Hal no estábulo, entro na casa pela janela, queria surpreender
minha mãe. Esgueirando-me pelo corredor, evitando o ranger das madeiras do piso, ouço
ela chorar baixo, debruçada na mesa da cozinha.
— Mãe? - pergunto no exato momento em que percebo seu choro.
— G-Galahan! - ela ergue o rosto. - Que susto, garoto. - rapidamente põe suas mechas
de cabelo por trás das orelhas e enxuga os olhos marejados.
— O que houve? - me agacho para poder olhá-la diretamente no rosto já que ela estava
sentada, e eu, que sempre fui alto, em pé.

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— Estava com saudades de você, meu anjo… e preocupada - ela sorri e aperta minhas
mãos carinhosamente.
Passando o braço no rosto para secar lágrimas que não mais estavam lá, ela pergunta:

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— Quer fazer um piquenique de primavera como sempre fazemos?
— Claro! - respondo alegremente.
Todo ano eu e mamãe fazíamos um piquenique juntos na campina na época da
primavera. A primavera é com certeza o período do ano de maior fertilidade, não só das
plantas, mas parece que todos ficam mais alegres e radiantes. Lembro-me até hoje de ver
quatro garotinhas correndo com dois cachorros pela nossa plantação de trigo, vizinhas que
sempre vinham brincar com Hal e traziam seus cachorros. Tudo parece brilhar e sorrir
mais nessa época do ano, inclusive mamãe, o que me faz repensar sobre o motivo de seu
choro. Antes que pudesse aprofundar minhas reflexões, Layora me interrompe:
— Pode levar lá fora? - Ela me empurra uma caixa com frutas, me forçando a segurá-las
ou deixá-las cair, e sorri. - Vou levar a toalha e as outras comidas.
Foi uma ótima tarde, quase me esqueci do teste, ou melhor, quase me esqueci de
acordar. Quem nunca teve uma longa soneca depois de uma boa refeição? Comi bastante
frutas, um pão fresquinho e não pude evitar de tomar daquele vinho que, para ser sincero,
estava divino. Um pouco embriagado e definitivamente cheio, deito-me na macia grama
verde que dançava com a doce brisa do entardecer, debaixo de uma árvore que não
identifiquei, mas que tinha uma copa grande. Quando acordei, fui o mais rápido que pude
até Leornan, incerto se chegaria a tempo, coitado de Hal.
Quando deixei Hal no estábulo, fui direto ao interior do palácio, no Salão de Guerra Real.
Estava nervoso, mas confiante; me esforcei nos treinamentos, derramei lágrimas e suor,
agora era hora de derramar o sangue.
Jetrho veio falar comigo segurando uma espada e um escudo, só não me assustei
porque ele segurava muito formalmente as armas.
— Ei, já vai começar. - Ele empurra as armas em mim para que eu as pegasse - Vamos!
Pro centro do salão! - Ele me movia para lá com leves empurrões em minhas costas.
— Certo, vamos lá - Falo em voz alta, sem perceber. Uma carga de coragem e
determinação me envolve e seguro o escudo e a espada como se o fizesse todos os dias
desde que nasci.
Pela primeira vez na minha vida eu vi o Rei, uma honra enorme entre camponeses. Ele
tinha uma barba não muito longa, num tom de carvalho negro, talvez um pouco mais
escuro. Mal conseguia ver a cor de seus olhos com o brilho que sua coroa emanava; era
de ouro, mas parecia cristal de tanto que reluzia.
Jetrho anuncia as regras do combate, não era nada muito além de: "estritamente
proibido causar qualquer dano mortal”, “não é permitido o uso de magia” e “não
ultrapassem os limites do salão”. Após ir para seu trono a uma distância definitivamente
segura do combate junto ao bardo, Vossa Majestade dá início à batalha com o simples
levantar de sua mão.
A grande maioria dos concorrentes se posiciona de forma defensiva, erguem o escudo e
abaixam a espada, outros mais ingênuos avançam sem medo. O que eu fiz? Obviamente
avancei sem medo. Deu certo? Sim, e como deu! Para minha sorte o meu primeiro alvo
era um garoto adolescente que mal conseguia manter a espada erguida, muito menos o
escudo. Depois dele, derrubei mais dois candidatos para o cargo com um pouco mais de
esforço. Um era ex-guerreiro do exército Leoreano, caolho e com uma madeira amarrada
na perna esquerda, e o outro, um camponês com um corpo bem… curvilíneo. Estranhei
um pouco mas não o suficiente para me distrair. O meu suposto último adversário acabou
caindo junto com outro concorrente e ganhei sem ter nenhum corte na pele, só duas ou
três manchas arroxeadas.
— Parabéns! - Jetrho grita, mantendo o som do “s” por alguns poucos segundos.

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— Você é forte, sabia que ganharia. - O Rei se levanta e estende a mão para apertar a
minha. - Prazer em conhecê-lo, mais novo guerreiro do famoso exército de Leornan.
— Obrigado, Senhor! Será um prazer servi-lo! - Cumprimento-o, animado.
Depois de pegar um cesto com comida para o resto da Lua, minha armadura, espada e
escudo real, voltei para casa. Antes que chegasse na colina, percebo uma luz forte e
vermelha sendo emitida dos arredores da minha casa; corro sem hesitar. Ao chegar lá,
vejo chamas intensas e famintas consumindo a plantação de trigo de forma específica,
formando algo semelhante a uma cruz. Hal corria de um lado para o outro contornando o
calor causado pelo fogo.
— Mãe! Cadê você?! - Sou interrompido pela voz dela.
— Aqui! - ela grita, sob algumas telhas que pareciam ter caído da casa.

Rato de biblioteca

— …104, 105, 106, 107! Finalmente, A107-SD, estava doido pra ler essa saga! Desço a

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escada lentamente, dando uma folheada rápida pelo sumário e me atentando ao número
de páginas para poder calcular quanto tempo demoraria nessa obra literária tão aguardada
pela minha mente faminta.
O ambiente mais profundo de Leornan, fisicamente e não fisicamente. A Biblioteca de
Dekalett é conhecida como a maior de todas e, por sua vez, com maior número de livros
em todo o continente. Para a conservação de tamanho patrimônio histórico, os sábios
pensaram em mantê-lo a 70 palmos abaixo da terra. Pouquíssimas pessoas no continente
inteiro possuíam acesso à biblioteca. Jetrho, felizmente ou não, era uma delas.
— Eureka! - afirmou o jovem de cabelos negros, após horas e horas debruçado num
montante de literatura macróbia. Com rápidos movimentos, ele sobe escadas em espiral,
escala prateleiras e, finalmente, pega o pergaminho que guardara com tanto cuidado.
Depois de mais algumas escadas, ele chega ao Palácio e anda por alguns corredores
enormes para chegar ao Rei.
— Vossa Maj-.
— Sem essa, Jet. Já sabe que não precisa dessas formalidades, mesmo perto de outros
nobres. - Interrompe o governador daquelas terras. Sentado na ponta de uma mesa
extensa, recheada com comidas e bebidas do mais alto nível, ele supostamente discute
ideias para melhorias nos reinos próximos com outros governantes que rodeavam o
banquete.
— Certo. Podemos conversar? - A mão fechada do jovem se movia nervosamente,
direcionada pelo polegar estendido, para frente e para trás, indicando algo semelhante à
“lá atrás”. Eles se retiram da sala.
Leonarth e Jetrho tinham uma amizade de aproximadamente meia década. Não parece
muito, mas foi mais que o suficiente para que ambos conquistassem a confiança quase
absoluta um do outro. O jovem humano proporcionou ascensão de destaque para o
reinado de Leonarth, se tornando logo o administrador de quase todas as suas posses.
Já em outro cômodo, eu introduzo meu apontamento, ansioso:
— Eu estava folheando alguns livros, nada de novo, certo? - Não abro espaço para uma
resposta - Errado! Achei exatamente o que procurei por muito tempo: o mistério de
Morgousse.
— Jetrho, tem líderes de pelo menos 6 nações me esperando ali, pode agilizar?
— Tá, chato. Basicamente, há uma pedra mágica guardada por um antigo deus. Essa
pedra quebra todas as leis da realidade, do tempo e da física e, logo, pode realizar
qualquer - eu me asseguro de destacar a palavra “qualquer”, sei que mesmo sendo rei
Leonarth possui muitos quereres que ultrapassam os limites de seu poder aquisitivo. -
desejo que o senhor tenha.
— E como você tem certeza que não é mito? A literatura que geralmente te interessa é
bem fantasiosa. - Ele parecia querer evitar uma decepção, mas era óbvia sua animação.
— Bem… Quanto a isso, eu não tenho total certeza… Mas, eu aposto minha vida nisso. -
Eu não apostaria minha vida nisso, em nada. Mas, eu precisava que ele fosse convencido
dessa causa, assim, literalmente, não custaria nada tentar.
— Isso não é muito comum, vindo de você… - ele olha para baixo e coça a barba,
entrelaçando os dedos no pelo facial levemente crespo. - Certo, vou investir nisso, mas
espero resultados, ouviu?
— Eu agradeço imensamente, Leo. Eu lhe assevero muito mais do que apenas
resultados.
Eu devo minha vida a Leonarth. Pelo fim de minha infância e por boa parte de minha
adolescência eu vivi nas ruas do reino em ascensão, Leornan. Com as mãos pêndulas,

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cabeça acabrunhada e pernas trêmulas eu passava meus dias sentindo o gelado tijolo da
cidade machucar meus pés descalços. Dias ensolarados até demais, tardes tempestuosas
e noites congelantes eram a ambientação clássica desses fatídicos anos. A peça principal
da grande comédia que era a vida das pessoas de Leornan era eu, fazendo papéis
ridículos para obter migalhas monetárias. Um bobo da corte barato por pertencer ao povo
e não à corte, como deveria. Um palhaço caro pois cobrava por estultices amadoras que
qualquer um faria sem um pingo de talento, talvez um de cerveja fosse mais que o
necessário. Até que finalmente, alguém enxergou uma luz em mim.

Eu não havia sequer saído da cidade quando Galahan veio correndo em minha direção,
ofegante como um cão e pálido como lã. Estranhei, pois ele não estava com o seu cavalo,
Vir correndo da área campestre até Leornan não é coisa pra qualquer um.
— Ei, tá tudo bem? - Questionei-o, colocando minha mão sobre seu ombro.
— Casa… Chamas… Médico… - Em meio a violentas inspirações e expirações ele se
encontrava incapaz de formular uma simples frase. Assumo uma posição tensa,
instantaneamente.
Não me parecia uma situação que me proporcionasse tempo o suficiente para
perguntas. Tinha que resolver o que quer que fosse. “Casa” não poderia se referir à minha,
afinal de contas eu morava no Palácio, poucos metros atrás de onde estávamos. Ligando
“chamas” e o estado de cansaço dele não poderia deduzir nada de bom, obviamente.
Portanto, acredito que “médico” se refira à vítima do fogo, afinal, quase todas as áreas
campestres possuem no mínimo um médico; ele não viria até aqui para pedir por um
sabendo que tem um alguns celeiros ao lado.
Atravessei duas ruas correndo. Com Galahan ao meu lado, peguei o cavalo de um
mercador e deixei para ele algumas moedas que pagariam muito bem três cavalos
daquela raça e estado. Quando estávamos quase chegando no limite de Leornan, desci e
voltei poucos minutos depois com o médico mais caro da província.
Eu não tenho muita fé em sorte, mas aquele médico não deveria estar lá. Naquela época
da temporada ele deveria estar em qualquer outra província no norte, era comum os
curandeiros viajarem constantemente entre as províncias para obter novos conhecimentos.
Sorte, intervenção divina, improbabilidade; não sei qual, mas provavelmente salvou a vida
de alguém.
Após alguns minutos cavalgando, Galahan recupera o ar e, por sua vez, a capacidade
de formular frases com sentido. Minha mente estava extremamente focada em planejar o
que deveria ser feito assim que chegasse no local, então demoro um pouco para me
atentar ao que ele falava.
— …e quando eu cheguei ela estava entre alguns escombros em chamas. Consegui tirar
ela de lá, mas ela ainda está machucada e tem algumas queimaduras. - Ele olhava para
baixo e mal conseguia manter seu corpo firme enquanto o cavalo corria agressivamente.
— Entendi, vai me guiando até sua casa, estamos quase chegando. Senhor Kiron, como
posso te ajudar a lidar com as queimaduras?
— Um balde de água corrente seria de grande ajuda.
Quando chegamos, corri, peguei um balde e fui para o rio mais perto que pudesse achar.
Kiron e Galahan foram rapidamente em direção à moça. Não muito tempo depois eu voltei
com a água e ouvi Galahan se referindo a ela como mãe.
— Então sua mãe é a curandeira da vila? - Entrego a água para o médico tranquilamente

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ao perceber que a situação e a vítima estava bem estabilizada.
— Curandeira? - ele se interrompe - Obrigado por tudo, Jethro, ela está bem melhor
graças a você e ao médico. Prometo que quando tiver dinheiro pago pelo cavalo.
— Eu não quero parecer desumilde mas o dinheiro do cavalo não fez sequer cócegas no
meu bolso. É uma honra poder te ajudar por um preço tão insignificante.
— Ma… - sua impotência verbal dessa vez fora minha culpa, o intercepto sem hesitar.
— Na na na não. O rei já cobra impostos o suficiente de camponeses. Não aceitarei uma
moeda sequer. Mudando de assunto, se sua mãe não é a curandeira da vila, porque veio
até a cidade atrás de um se ele seria bem mais caro que o daqui? - Indago-o, curioso em
saber como deduzi algo errado, afinal, modéstia à parte, não é muito comum.
— Ah, verdade… esqueci de te falar, estava muito confuso e preocupado com tudo isso.
Quando fui atrás dele, ele estava decapitado, com uma cicatriz de cruz no peito e um
círculo de sangue envolta do corpo.
Um silêncio denso envolve o ambiente, torna o ar mais pesado e pensamentos mais
cautelosos. Todos na cena se entreolham e, finalmente, Jethro se pronuncia:
— Uh… E-eu vou comunicar o Rei, estejam atentos para qualquer perigo. Evitem sair de
casa, mantenham ela trancada sempre que possível e nem sequer cheguem perto de onde
o médico supostamente estaria. - Pensei em deixar o médico com eles para evitar que eles
tivessem que voltar para Leornan considerando que, além de ser distante, eles podem
passar por uma área perigosa no caminho. Conclusivamente, não valeria a pena botar em
risco a vida de mais uma pessoa, principalmente um dos únicos médicos da província
nessa temporada. - Se importa de se mudar para uma casa um pouco mais afastada do
centro de Leornan? - Pergunto, olhando para o doutor.
— De modo algum, senhor.
— Ótimo. Um terço do problema fora resolvido.
Após tomar um café da tarde com Kiron e a família Threston, ganho um pouco mais de
intimidade com eles. Aparentemente a mãe de Galahan não falou muito porque ela tem
certo receio de pessoas da realeza. Não sei se entendi muito bem, mas ela parece ter tido
alguns problemas com Leonarth; algo relacionado a um passado distante o suficiente para
ser paralelo a minha inexistência como Jethro nesse planeta. Enfim, voltei para o centro da
capital com o médico, deixei-o em uma casa de vigia quase encostada nas muralhas de
Leornan e, após me banhar na piscina real, fui alertar Leo. Não me julgue, eu merecia.
Vossa Soberania mandou uma equipe de soldados para as áreas pastoris e eu pedi para
que Nabarett aproveitasse a oportunidade e avisasse Galahan sobre a futura viagem ao
Reino Élfico, havia me esquecido. Segundo o que achei na Biblioteca de Dekalett o
oráculo mais perto, ciente da localização da pedra, fica no reino dos elfos. Que o acaso
esteja ao nosso lado.
Mais tarde, folheei alguns relatórios de dois sóis passados sobre os arredores de
Leonarth, não faz parte de meus gostos morrer de frio, assassinado por bandidos ou
comido vivo por Knares, por mais peculiares que sejam meus interesses. Guardei tudo que
julguei ser de possível futura importância, desde variações de flora até lugares com
registros incomuns sobre suas peculiaridades.

O menino das flechas de ouro

À beira do rio Völdakín deitava-se um jovem elfo com cabelo de labareda e olhos de um

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azul especialmente cristalino. Se a coloração de seu cabelo não fosse extremamente
insólita, seria bela entre o povo élfico. Passara horas apenas encarando as diferentes
luzes que eram formadas ao longo do dia, algumas apenas resultantes da refração na
água pura, algumas com sua cor alterada pela fina camada de flores matizadas nas copas
das árvores.
— S-senhor? - pergunta um elfo, tenso.
— Já vou. Vá na frente e fale para o instrutor que eu acabei me perdendo.
Não é difícil se distrair com a natureza: tudo nela emana alegria, liberdade, equilíbrio e
paz. A mistura dos aromas, das cores, texturas e o frescor. Eu amo-a. Entretanto, não é
algo que deveria ocupar a mente de um príncipe, herdeiro do Trono da Folha Bronze,
futuro governador supremo dos Elfos e da Floresta Sagrada.
Carregando minha aljava, arco e uma coxa de faisão, caminhei em direção ao campo de
treinamento calma e silenciosamente, tentando evitar com que a jardineira me visse. Em
vão.
— Vossa Excelência! Como está belo hoje, mais que nunca, como de costume. - Ela se
embaralha nas palavras, “como de costume”.
— Acho que aquelas Jade Vine precisam de mais água, Astella.
— Por falar em flores, Senhor, - eu já sabia do que se tratava, rezava pelos deuses para
que partissem as terras entre eu e ela antes que continuasse - trouxe algumas para ti.
— Certeza que ficarão belas nos vasos do Palácio, coloque-as lá. - Digo, sem lhe dar a
atenção de meus olhos.
— Mas… Não vai nem v-
Eu agarro a jardineira pela cintura com um só braço, puxando-a para mais perto. Com a
mão livre trago o rosto dela perto para que pudesse beijá-la. Isso já seria o suficiente para
manter a moça calada por pelo menos dois dias, inerte, contudo, fazia um certo tempo que
não sentia a doçura dos lábios de uma fada. Não durou mais que dois segundos, para
mim.
— O que houve com a jovem? - pergunta o treinador, após horas, percebendo a fada
deitada na grama.
— Não sei. Você é pago para perguntar o que houve com os 30 alvos que rachei ao
meio, não com uma garota qualquer.
— Perdão - ele abaixa a cabeça, provavelmente pela força do hábito - não se repetirá.
As finas árvores que cercavam o campo de treinamento estavam mais que acostumadas
a me ver detonar alvos com tiros rápidos e precisos, mas todo novo treinador se
impressionava o suficiente para pedir demissão. Talvez não fosse realmente por isso, mas
quem se importa? Enfim, eu não reclamaria tanto daquelas árvores pacatas se eu
soubesse o que estava prestes a acontecer.
Logo após ter terminado o treino, voltei ao rio e lá fiquei por mais algumas horas.
Banhei-me e deitei-me na grama para tirar uma soneca. Não lembro exatamente o que
sonhei, mas me recordo de luzes fortes esverdeadas iluminarem um caminho até alguma
caverna desconhecida até então; costumo desconsiderar sonhos desse tipo. Desconsidero
todo tipo de sonho, para ser sincero.
De repente, sou acordado por uma barulheira não muito distante. Assim que abro meus
olhos avisto linhas de fumaça rasgarem o céu, o tingindo em listras densas de cinza. Só
então o resto de meus sentidos acordam, todos de uma vez. Em rápidas investidas eu
avanço por entre as árvores, mantendo-me oculto no verde opaco do souto. Buscava mais
sinais do que poderia estar acontecendo, mas não esperava encontrar o corpo
ensanguentado do meu treinador, logo no fim da floresta. Sem tempo para surpresas.

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Agacho-me e tento interpretar a situação. Considerando que ele estava com a barriga para
baixo, ele não tentou lutar, foi atacado pelas costas. O buraco não é muito alargado, então
ele não se debateu muito, o que, para a minha sorte, indica com a precisão necessária o
diâmetro da espada, logo, o dono.
Não podia negar que os conflitos políticos entre elfos e humanos estavam mais tensos
que nunca, mas jamais imaginaria em uma guerra. Não tão cedo. Pego o arco e a aljava
largados no chão e atiro uma flecha próximo ao lugar onde a jardineira havia ficado,
humanos costumam matar apenas homens adultos. Ela sai correndo como uma lebre
assustada. Acharia engraçado se não estivesse no contexto da possível maior guerra em
décadas.
Adentro o castelo com mais cautela que jamais tive em todos os meus quase 20 anos
vivo. Atento-me a cada centímetro do palácio e tento chegar ao topo o quanto antes
possível. Os barulhos de gritos e pancadas não mais ressoavam pelo reino élfico, mas eu
ainda buscava saber de onde vinha a fumaça. Esperava achá-los vivos, mas tudo o que
tinha pelas escadas eram corpos de humanos chorando sangue e espumando um líquido
rosa. Não me recordo de ter estudado sobre isso. Deduziria ser efeito de algum veneno
cutâneo.
Chegando ao topo do castelo, encontro o Oráculo Élfico, nosso maior ancião, um dos
mais sábios elfos do planeta. Estava quase inteiramente no salão quando percebi um
humano me atacando pela lateral. Devo admitir, me surpreendeu. Não esperava de uma
raça tão carente de inteligência ataque tal. Usar os limites do meu campo de vista a favor
dele? Quem poderia imaginar isso vindo de um humaninho. De qualquer forma, eu desviei
a tempo.
— Foge! - grito para o Oráculo, a alguns metros da sacada. Ele apenas me encara, sem
mover nada mais que sua cabeça.
— Quem é? - O humano espertinho cessa os ataques, mas põe-se em posição de
defesa. O jeito que segurava a espada era no máximo fofo.
— Galahan, esse é quem você deverá proteger com a vida até encontrarem a pedra.
Anrell é o príncipe do Reino Élfico e, enquanto ele respirar, os elfos não perderão as
esperanças.
— O senhor conhece-o? Não preciso da defesa do garoto. Vamos, vou te levar para os
subterrâneos até que seja seguro.
— Não vou a lugar algum. Vocês irão atrás da Pedra do Destino para restaurar a paz e
equilíbrio entre os reinos e as raças. Procurem por Etrighan, ele os ajudará.
— Eu não sei se entendi bem, o que eu tenho a ver com isso tudo?
— Levem com vocês Rose, ela é tão importante quanto o elfo.
— Veja bem, senhor, suas palavras não estão fazendo muito sentido e eu, mais que
esse bobalhão, preciso de respostas claras e concisas. Se puder…
A conversação é interrompida por um gesto brusco do Oráculo que, em segundos,
resulta em um apagão de minha visão. Quando, aos poucos, ela retorna, eu enxergo o que
parecia ser o ambiente da Academia Faérica. Ignorando completamente o tal de Galahan,
eu corro pelos corredores do lugar rezando aos deuses que não fosse tarde demais.

Inferno florido - parte 1

Não lembro nem de existir antes dessa academia. Passei tanto tempo aqui que sinto

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como se minha vida fosse ligada à ela. Ela é o meu lar; casa de quase todas as minhas
lembranças. Mas hoje, finalmente, realizarei meu sonho. Eu sempre quis, mamãe sempre
quis…
— Senhora, - Agnes era uma das minhas servas favoritas - o que vai querer para a
refeição da tarde?
Querer? O que eu quero? Eu… Quero? De novo não! Não posso passar por isso de
novo, não agora! Eu segurei tudo isso por tempo demais, não posso desabar agora.
— Liberdade. Digo, ensopado. Pode colocar uma pasta de sementes de girassol pra eu
passar no pão? Faz tempo que não como e acho que hoje eu mereço né? - Falo mais
rápido do que gostaria. Sorrio.
— Certo. Virei te avisar quando estiver pronto. Todas estamos muito felizes por seu
grande dia, parabéns. - Ela sorri de volta e fecha a porta, levando consigo sua simpatia,
uma bandeja de madeira e um balde de água.
Eu preciso de ar. Não acontecerá novamente, não vou jogar tudo fora. Abro a janela e
voo para o pátio exterior. Lá, levanto um pedaço lascado do chão e pego um livro de
cultura humana enterrado; adorava ler coisas de fora do reino e, sinceramente, o fato de
que era proibido tornava a leitura ainda melhor. Ao passar pelas árvores baixas do jardim e
sentir o aroma perfumado das flores que, em poucos dias, estariam murchas, relembro-me
do que houvera alguns sóis passados, também na véspera do outono. Eu poderia ter
evitado aquilo?
Especificamente três sóis atrás, Atarah - minha melhor amiga de infância - foi morta
violentamente por guardas na prisão élfica, nos subsolos. Seu corpo foi encontrado
perfurado várias vezes por lanças, mas, não foi um ataque que a matou e sim um
contra-ataque. Segundo os guardas que interroguei incontáveis vezes na esperança de
obter uma mínima alternância de suas respostas, ela tentou fugir com magias proibidas e
os guardas se viram obrigados a matá-la. Fiquei abalada na época. Por Luas chorava dia e
noite, não aceitava o que acontecera. Não devia se esperar menos, passei quase a vida
toda com Atarah.
Tento sair daquele lugar antes que fosse esfaqueada pelas memórias. Todas eram
pontudas e refletiam muito bem a dor, como espadas humanas. Enfim, fui comer o pão
com pasta de semente de girassol. Não é tão gostoso quanto eu fiz parecer ser, mas ainda
assim é bom.
Nāi estava lá. Abracei-a e assentei-me a algumas cadeiras de distância. Faziam alguns
dias que não comia com minha mãe, senti a falta. Enquanto eu brincava com algumas
uvas pequenininhas, conversamos.
— Onde estava, querida? Agnes disse que foi te chamar, mas você não estava lá. - Eu
sabia que ela tinha insistido fervorosamente para que a serva dissesse alguma coisa.
Nada novo.
— Fui dar uma volta pela academia, afinal de contas, são minhas últimas horas no
ambiente de praticamente a minha vida toda. Nada que você deva se preocupar, Nāi. -
Nāe, com a mesma pronúncia, significa Deusa Suprema, ou seja, mãe de todos. Nāi, por
outro lado, possui o “i” no final, que, em certas palavras, tem significado de posse ou
relação íntima. Talvez seja difícil pra você entender, mas é um apelido com muito
significado pra mim… Ela é tudo que eu tenho. Eu a amo mais do que posso descrever em
simples palavras; e como eu tentei.
— Legal, filha. Soube que os humanos viriam nos visitar hoje para o acerto de um
possível tratado de paz e censura armamentista entre nossas nações por três sóis. Acho
que usariam algum trato de magia de sangue para garantir que ambas as partes

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cumprissem os requisitos do contrato. Nabasac pediu pra que eu estudasse esse tipo de
magia e garantisse que, caso ele quisesse fechar o trato, não ofereceria risco algum para
o Reino.
— E aí? O que descobriu? - Obviamente ela não teve o mínimo esforço, se tem algo que
ela é boa é magia, não é a toa que ela sempre me cobrou tanto com isso. De qualquer
forma, nunca tive dificuldade em atingir as expectativas dela. Gostaria de poder justificar
isso com laços sanguíneos.
— Pelo jeito, é uma magia que foi criada há muito tempo atrás, mas foi guardada à sete
chaves por séculos pelos humanos. Algumas luas atrás, um movimento de soldados
especialmente abençoados pelo Deus Sol tem avançado pelas terras do continente nas
quatro direções dos ventos, como uma cruz. Pelo que eu entendi, eles estão diretamente
ligados à volta do uso da magia de sangue.
— Devo me preocupar? - Rio, nervosamente.
— Acredito que não.
Conversamos um pouco sobre a cerimônia, terminei de comer e fui andar pelos amados
corredores da Academia. Após algum tempo, estava novamente entrelaçada em memórias
lindas que repentinamente se tornavam trevosas e sufocantes. Eu sinto falta de Atarah.
Gostaria de poder sentir falta de ter o controle, mas nunca sequer senti as rédeas da
minha própria vida em minhas mãos. Contudo, desistir de tudo e fugir, apesar de ser
exatamente meu desejo, não era uma opção, então decidi ir ver meu vestido, estava
curiosa em saber como ficaria em mim. No meio do caminho, tive alguns imprevistos:
— Ei! Rose! - Gritou a voz almofadada e, ainda assim, máscula de Anrell. Eu imaginei
que ele iria acordar uma hora antes do evento e aparecer duas atrasado, o fato de ele
estar ali tão cedo era mais do que incomum.
— Oi, tá tudo certo?
— Precisamos sair do reino o quanto antes possível! - Ele faz um intervalo em sua fala
para terminar de se aproximar, até agora estava à uma distância considerável até para
fadas.
— Não estou entendendo, Anrell, você vai ter que me explicar um pouco mais do que só
isso.
O elfo fecha a cara e quando abre a boca para me esclarecer a situação, ou, mais
provavelmente me xingar, e é interrompido. Não havia percebido que ele tinha um
acompanhante até tal momento, acredito que ele estava mais para trás do que minha vista
conseguiria enxergar. Toda a distância do acompanhante até mim fora desconsiderada em
questão de segundos quando ele levou um chute nas costas de um terceiro alguém.
Quando a pessoa caiu ao meu lado eu percebi rapidamente que era um humano. Não
consegui esconder as minhas reações, meus olhos abriram como se tivesse visto a morte
em minha frente, voei para trás. Por mais que eu adorasse literatura humana, eu não
deixava de alertar-me do quão propensos a maldade eles eram e, por consequência,
extremamente perigosos.
Logo após o susto começo a perceber os detalhes. O humano fez mais barulho do que
devia ao bater no chão, estava vestido em uma armadura semi-pesada. O metal que os
humanos usam é engraçado, brilha como cristal, mas é frágil como um tronco de madeira
apodrecida. Enfim, talvez os padrões de metais élficos sejam altos demais. Tornei minha
vista para Anrell, em busca de saber o que amassou a armadura do jovem orelha
pequena. Pelo corpo esguio eu diria que é um elfo mas eu posso afirmar com certeza
absoluta que era um humano. Seu cabelo era escuro demais, até para um Elfo da Lua;
além do mais, suas orelhas não eram aparentes, o cabelo era grande mas não o suficiente

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para esconder as de um elfo. Claro, sem citar as roupas engraçadas de humanos.
— Mil perdões! - O moreno correu em aparente preocupação na direção do humano no
chão. - Por que você entrou na frente? - Voo rapidamente em direção a Anrell. Um humano
já era tenebroso, dois então…
— Vamos logo então! - Estava finalmente acontecendo, a liberdade batia à porta.
Segundos atrás eu estava completamente contentada com o rumo que minha vida estava
tomando, mas os deuses me responderam, deram-me a chance de finalmente guiar minha
vida. - Não preciso de nada daqui. - Sigo em direção à saída, mas sou parada.
Anrell ignora minha fala e corre em direção aos humanos. O moreno coloca-se na frente
do de cabelos castanhos e saca uma espada tão fina que, em certo ângulo, era quase
invisível. O impacto deles é impedido por um berro do que estava no chão, ainda.
— Para! Ele é meu amigo! - Galahan tenta se levantar, desnorteado.
— Acho que você precisa revisar o que entende como amigo. Não sou especialista no
assunto, mas não acho que se considera amigo alguém que te golpeia, por trás, com um
chute mortal.
— Não precisa ficar ressentido, o golpe era pra você. - Jethro redireciona seus olhos
para Galahan, agora em pé. - Está melhor? Aliás, ótimo reflexo, apareceu entre o elfo e
meu pé tão rápido que não pude desviar o golpe. Achei que o orelhudo oferecia algum
perigo.
— Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? Por favor? - Pergunto
irritada pelo fato de que simplesmente me ignoraram.
— Os humanos invadiram o Reino Élfico e um velho bruxo me disse para fugir daqui com
o ruivo. Acho que tem alguma coisa a ver com uma rocha mágica.
— Vamos. - Anrell ajusta a bagagem em suas costas e dá meia-volta. Não parecia ter
muita coisa, principalmente para um príncipe.
— É uma pedra, Galahan. Rochas são maiores e, pelas pinturas, o nosso alvo não é
muito maior que o palmo da mão de um Knar.
— Isso já é bem grande. - O cavaleiro retruca em um tom divertido.

Interlúdio: Religião

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O Sol é a medida do que atualmente conhece-se por ano. Por exemplo, dez Sóis
representam uma década ou dez anos. Já a Lua define-se como a medida correspondente
ao mês. Por exemplo, dezembro seria a décima-segunda Lua do Sol. As Estrelas medem
os dias. A segunda Estrela do primeiro quarto de Lua é sempre uma segunda-feira, como
exemplo. A Lua é dividida em quatro fases, tal como o mês em quatro semanas. Por
último: a Eternidade. Ela corresponde ao tempo médio que uma linha temporal, uma
dimensão, termina e, por consequência, começa outra. Por ser uma medida de tempo
colossal, é geralmente utilizada por divindades supremas e seres de alto padrão de poder
e tamanho. Além de estarem ligados aos ciclos dos astros em questão, fazem referência
direta às divindades supremas: Sol, Lua e Estrela.
O Panteão Supremo é resumido nos quatro maiores deuses que regem a criação e
manutenção do espaço-tempo e suas ramificações. Sol, o maior de todos, divindade do
fogo, luz e força mantém-se distante das criações maléficas de sua filha, Terra. A Lua,
esposa do Sol, coordena o plano espiritual e, às vezes, o físico, apenas quando se fizer
estritamente necessário. Ela é a deusa da água, do ar e da alma. O deus Estrela domina a
magia, mente e a trevas. Segundo antigos escritos, Estrela é uma criação do Sol para
cuidar de partes mais periféricas do universo, mas ele se rebelou contra seu próprio pai e
foi preso numa jaula dimensional. Finalmente, a Terra é a deusa da vida, do amor e da
proteção.
Solthae, o deus Sol, não foi criado, ele sempre existiu. Sentindo-se sozinho ele resolveu
criar a Lua, sua eterna companheira. Ainda afetado pelo ócio e solidão, ele criou seu
primeiro filho, Estrela, e o designou para cuidar dos extremos do universo. A rebelião de
seu primogênito foi inesperada, mas como qualquer outra coisa, não chegou perto de sair
do controle do deus supremo. Enfim, inconformado com tudo isso, ele resolve ter uma filha
com a Lua, e, assim, nasce a Terra. A deusa da vida, impressionada com seus próprios
poderes, como uma criança ao saber das funcionalidades de seu corpo, decide criar
formas viventes no planeta que tinha por sua posse. E assim nascem os elfos, seres
incrivelmente fiéis às divindades supremas e devotos aos seus propósitos. Logo após, ela
cria os humanos, uma raça que, inicialmente, deveria ser complementar aos elfos, se
tornou oposta. Oposta até demais.

Inferno florido - Parte 2

Chegamos rapidamente na parte de floresta densa do reino. Não sabíamos ao certo para
onde estávamos indo, mas conforme Anrell me explicava com mais detalhes o que estava
acontecendo, sendo acrescido nos detalhes pelo humano simpático, Jethro, eu me

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empolgava ao me sentir tão livre e, ao mesmo tempo, em perigo. É difícil descrever, mas é
como se essa sensação fizesse meu coração bater mais rápido, meus sentidos se
aguçarem e minhas asas moverem-se involuntariamente.
Galahan sugeriu que achássemos algum lugar para descansarmos ao concluir que não
conseguiríamos sair do Reino Élfico em menos de dois dias. Jethro retirou de sua bolsa
lateral um tipo de mapa e deu-nos uma direção a seguir. O pedaço de papel possuía vários
traços coloridos demarcando possíveis caminhos, áreas de difícil e fácil acesso, civilizadas
e de baixo e alto relevo, cada uma representada por uma cor. Acho encantador como
humanos usam cores para trazerem diferentes sentidos para as coisas. No meu contexto,
as cores também tem um conceito belo, mas é bem diferente. Para as fadas e elfos, elas
têm um sentido totalmente subjetivo. Não tentamos interpretá-las ou dar significados à elas
pois elas constituem, da forma mais natural possível, nosso mundo. E, acredita-se, que
assim deva permanecer sendo.
Os dois humanos eram muito diferentes do que me fora descrito em livros. Não pareciam
nada ameaçadores, suas vozes não eram tremendas e não tinham dentes afiados e
chifres como nas histórias. Ambos, mesmo que de formas diferentes, eram muito
simpáticos e comunicativos. Galahan me explicou que não sabia que vinha para realizar
uma invasão, o rei apenas o avisou que seria uma viagem às terras élficas. Ele deixou
claro que não concordava com a atitude do rei e, junto com Jethro, ajudaram muitos elfos
a escaparem. Jethro explicou que havia combinado com Leonarth de ir em busca à pedra
do destino assim que estivesse pronto e, bem, essa era a desculpa perfeita para que os
dois sumissem por um tempo. Parando para pensar, me pergunto se eles me falaram tudo
isso porque estava fazendo inúmeras perguntas, como uma criança cega de curiosidade.
Não me culpe, sempre quis ver humanos de perto e, agora, conversava com eles. Sem
falar que, pelo menos ao meu ver, não mostraram nenhum desconforto. Gostei deles.
Não me lembro de ter andado tanto assim. Evitei usar minhas asas, elas costumam
gastar mais energia que simples esforço físico já que a energia que uso nelas, além de
física, é também mágica, mesmo que bem menos comparada a outra. Conforme Galahan
cortava as plantas no nosso caminho com uma espada estranha, Jethro dizia com uma
voz alta e clara para onde deveríamos ir para achar a hospedagem mais próxima e Anrell
ficava atrás de nós, cuidando da retaguarda. Após algumas horas, as variadas frestas por
entre as folhas que possibilitavam vários feixes de luz iluminarem o caminho, agora abrem
espaço para a escuridão e, logo, nos vemos envoltos por um denso breu.
— Hum… - Jethro mexia em sua bolsa. - Alguém tem algum líquido de fácil combustão?
Material inflamável não nos falta.
— Não precisa dessas coisas. - Levanto o braço e, depois de ter sussurrado o nome do
Sol e orado a ele no idioma élfico, uma pequena esfera de luz avermelhada é criada acima
de minha mão.
O moreno apenas agradeceu e continuou o caminho junto a Anrell, mas Galahan
encantou-se. Seus olhos brilharam intensamente, mas não por causa da luz que criei. Era
como a primeira vez que se vê o arco-íris, ele não parecia nada menos que hipnotizado
pelo brilho mágico da esfera.
— C-como você faz isso? - Ele indaga, tomado pelo lampejo inconstante. É como se ele
se movimentasse vagarosamente junto à oscilação da luz. É como se a alma dele tivesse
se conectado aquele pequeno fragmento de magia.
— É uma magia básica, - rio baixo - eu só peço poder a quem tem e abro minha mão.
— Queima? - Não entendo muito bem a pergunta no primeiro instante, mas ao ver como
se aproximava do globo, respondi.

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— Pode tocar, não faz mal algum. - Aproximo minha mão dele. Ele estende o braço e
transpassa-o lentamente pela forma mágica. Ele fitava minuciosamente cada detalhe da
magia em contato com sua pele levemente bronzeada.
— Ei! Querem mesmo ficar sozinhos no meio da floresta ao entardecer? Com prováveis
humanos sedentos de sangue? Sintam-se à vontade. - Anrell fala sem ponderar qualquer
uma de suas palavras, como sempre.
— Estamos indo, Anrell. - Seguro-me para não revirar os olhos, não que fosse afetar ele
de alguma forma, tínhamos intimidade pra isso, mas fui educada de qualquer jeito.
— Eu achei… encantador! - Galahan sorri, estava quase saltitante.
— Fico feliz que tenha gostado. Sinto que vamos nos dar muito bem, Galahan. - Meu
sorriso, já aparente, aumenta. Ele sorri de volta.

Andamos por mais algumas horas. Já estava bem cansada, mas a conversa me
manteve acordada. Em todos os meus anos no Palácio Real, nos jantares com Anrell e
seu pai, festas em que dançamos, por obrigação, juntos, não me recordo de ter
conversado tanto com o elfo. Ele é mais profundo do que parece, provavelmente porque
tenta não parecer. Sua sensibilidade é constantemente afogada por orgulho e amassada
por sua arrogância. Independentemente de suas tentativas abobalhadas de esconder, ele
tinha sua beleza interna. Eu vejo um cintilar no fundo de sua amarga alma.
Finalmente chegamos à hospedaria. Ela chamava-se Banco de Aço, e fazia jus ao nome.
Era uma estalagem bem cúbica, três andares e uma porta de entrada bem grande. No
telhado do lugar, bem ao lado da pequena placa que anunciava o nome, um grande banco
de aço. Várias versões menores deste se encontravam ao redor da casa, tornando o
ambiente bem mais agradável.
Não conseguiria dormir nem se eu tentasse, então fiquei no térreo, bebendo qualquer
bebida sem álcool enquanto Galahan levava as coisas para cima junto a Jehtro e Anrell
pagava nossa estadia. Não havia nada sem álcool senão água e leite. Enchi-me de água
e, ao achar uma posição confortável na bancada do bar, dormi.

Dia da caça

A noite de hoje trará penosamente o árduo luto para alguém. Lá se vai mais um nobre
com vontades lúgubres, saciadas por um vulto que ceifa gargantas como um lavrador faz
com o trigo. De cabelos pálidos reluzentes, vestes escuras dignas da temida morte e uma
pele delicadamente rosada, a assassina de aluguel adentra o estabelecimento em uma
noite comum, para ela. Vestindo um manto que assemelhava-se à própria noite, a jovem

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senta-se perto do balcão.
Ao perceber a moça, o atendente descansa a garrafa vazia e o pano umedecido sobre
uma mesa lateral e serve à ela uma garrafa de alguma bebida cítrica com hortelã e limão.
Como o gosto era mais refrescante do que amargo, ela bebia com calma, aproveitando
cada gole. Seus hábitos ébrios seriam interrompidos em poucos segundos, para a alegria
de uns e tristeza de outros.
Sinto, de repente, uma mão puxar meu manto. Normalmente, já seria o suficiente para
que eu tingisse a madeira polida daquele lugar com sangue, independentemente de sua
cor; mas, hoje, resolvi dar uma chance ao indivíduo desafortunado. Virei-me para visualizar
meu possível alvo.
— Você está morta! - O homem tinha um rosto bruto. Sua face era compacta como uma
pedra, o que tornava sua atual expressão de raiva, até para uma assassina, intimidante.
Sua fronte parecia borbulhar em ódio, e isso era expresso com facilidade pelo vermelho
fervoroso que se intensificava, do centro da testa até suas bochechas, em sua pele clara.
Ele agarra com uma força que não parecia medir, o braço de Kera.
— Seus dentes não são tão desprezíveis quanto sua cara, recomendo me soltar se
ainda quer ter algo minimamente aceitável nela.
Antes que ele pudesse abaixar a mão que levantara contra a moça, é acertado por uma
cadeira que quebra-se em grandes lascas de madeira. Não por Kera. Não pelo dono do
bar. Não por Rose, mas sim por Galahan. Só então Rose acorda de seu sono.
— Não se mete nisso garoto, não preciso de sua ajuda. - Kera interrompe o que quer
que fosse sair da boca do humano com um soco na barriga do brutamontes. Ouviram-se
alguns estalos e estouros inegáveis nos interiores do mesmo.
Giro velozmente e chuto o homem para fora da taverna. Não ligava de fato para o
incômodo de ninguém ali, mas o atendente tinha o mínimo da minha empatia. Nos
conhecíamos há um tempo e não odiava a presença dele, dois aspectos no mínimo
incomuns para mim.
Assim que ultrapasso as portas sou agarrada por dois homens que, em relance, eram
bem maiores do que o outro que chutei. Não seria problema algum, eu poderia me
transportar para longe, rematerializar meu corpo atrás deles, atirar em suas bolas ou algo
desse tipo; porém, antes que eu o fizesse, um deles colocou a mão na minha boca,
tampando-a com um pano avermelhado e o outro perfurou minhas costas com uma adaga
arcana. Assim que puxei o ar para executar o movimento, inalei o que quer que estivesse
naquele maldito pano e quase desfaleci.
Tudo que ouvi depois de um longo fechar e abrir de olhos foi um grande estrondo em
uma árvore por perto. Ao recuperar-me, percebo que o humano que tentou me ajudar
anteriormente estava amassando o peito de um dos homens em um pinheiro com socos
constantes. O outro humano parecia indeciso se deveria ajudar o colega ou continuar me
prensando contra o chão. Estava começando a me preocupar um pouco. Nada muito sério,
mas havia um tempo que não usava meu cérebro para lutar. Naquela posição, tudo que
conseguiria morder era a terra úmida do chão, então o melhor era recorrer à força. Lancei
minha cabeça para trás e, por pouco, acertei a clavícula do javardo em cima de mim.
Desferi uma cotovelada em sua costela no breve momento de fraqueza dele e consegui
dobrar uma de minhas pernas, deixando-o inclinado. Com essa abertura, impulsionei-o
para longe e pus-me de pé, saquei minha arma e atirei três vezes na cabeça do acéfalo
que resolveu mexer comigo. O barulho do disparo chamou inegavelmente a atenção do
humano perto da árvore e aproveitei o fato.
— Você é surdo? - Dou dois passos para me aproximar violentamente do garoto e caio

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no chão. Não tropecei, apenas perdi as forças, assim, repentinamente.
— Ei! Você tá bem? - Galahan solta o homem de rosto, agora, ensanguentado.
— Juro que se você ousar chegar um passo mais perto eu te divido ao meio. -
Levanto-me; ou melhor, cambaleio até chegar perto de estar em pé. - Não preciso da sua
ajuda. - Tirando do bolso mais rápido do que poderiam ver uma adaga de lâmina azul
neon e bainha negra, lanço-a no ponto mortal do acéfalo número dois, centro da parte
traseira de seu pescoço.
Fui voltar ao bar, queria terminar de beber e mudar novamente meus horizontes, aquela
região me trouxera problemas demais em tão pouco tempo. Não dei mais que meia dúzia
de passos e esmoreci totalmente. Lembro-me apenas de perder a força de minhas pernas
por completo e, de repente, tudo escureceu.

Na primeira oportunidade, acordo, instintivamente, num impulso. Tento analisar


rapidamente o ambiente, mas minha visão não acompanha minha mente e, apenas após
três segundos piscando violentamente, consigo enxergar alguma coisa. Uma fada que
tinha um cabelo dourado e olhos azulados estava sentada em uma cadeira perto da cama
onde eu estava, com ambas as mãos em suas coxas descobertas. Suas vestes eram bem
mais curtas do que costumam ser para a maioria das fadas que já vi.
— Quem é você? - Após verificar que minha ferida nas costas ainda estava parcialmente
aberta, rasgo um pedaço do cobertor daquela cama e amarro-o na região de minha
cintura, fechando a ferida.
— Prazer, sou Rose Murrough! - Ela estende a mão para cumprimentar-me enquanto
abre um sorriso radiante, sua beleza era inegável. - Está melhor?
— Que horas são? - Ignoro o cumprimento, levanto-me e, depois de pegar algumas
coisas que julguei úteis naquele cômodo, abro a porta para sair.
— O sol está alpino... - a fada não parecia saber lidar com o que aconteceu e acontecia.
- não prefere aguardar um pouco? O veneno na faca era de Jallaran. - Ela se levanta e
corre para me acompanhar conforme eu descia as escadas da taverna. - É uma pimenta
que só cresce em carne de cadáveres! - Inconformada por tal fato não ter me afetado nem
um pouco, ela prossegue. - Ei! Por favor, pode me ouvir?
Sinceramente, eu odeio a ideia e, ainda mais, a sensação de dever alguma coisa. Eu
não devia nada ao humano e, mesmo assim, se eu devesse algo, não me importaria em
mudar isso. Mas, não suportava o sentimento de que ele havia me salvado. Por anos e
anos eu lutei para me defender e sozinha, eu venci. De repente, um maldito humano
assume que pode tomar posse da minha segurança?! Não enquanto eu estiver viva.
Ao passar pelo salão principal, ouço uma conversa entre dois jovens que pareciam ser
de alguma alta classe. Nessas horas eu adoraria não ter tanta sensibilidade sonora.
— … camponês, um menestrel e uma fada. Você em algum momento achou que isso
seria o suficiente pra derrotar a própria divindade da magia arcana?
— Realmente, não contava com a sua inutilidade. Enfim, eu confio que vamos conseguir.
O caminho até lá é longo e, nele, podemos achar mais pessoas interessadas na causa
para nos ajudar. Afinal, quem não tem um desejo supostamente irrealizável? - Jethro
parecia um pouco desesperado em convencer-se de que a sua atitude não fora irracional.
Não aceitava nem a hipótese de ter errado tanto assim.
— Do que eles estão falando? - pergunto para a fada que insistia em falar, apesar de eu
apenas ouvir suas asas se agitando e o cozinheiro fatiar alguma coisa. Me irritava seu

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ritmo inconsistente, deveria ser novato.
— É… - Rose se perguntava o quão confidencial era a informação - estamos numa
jornada de uma relíquia… de família, uma relíquia de família. - A fada tinha claras
dificuldades em mentir, apesar de adorar atuação.
— Família? Qual?
— P-Phen' Oran. - Mais uma vez ela falha em esconder sua tentativa de despistar a
Cronoariana.
— Claro.
Já matei mentirosos o bastante para saber identificar um. A família que ela citou é de um
bando de humanos afogados em riquezas que moram ao norte, é claramente uma das
primeiras que ela pensaria em um momento de pressão já que a família Murrough e a
Oran são extremamente próximas, apesar do sigilo.
Sento me perto da bancada e finjo dar atenção à fada enquanto ouço a conversa dos
dois nobres por mais alguns segundos. Foi mais do que o suficiente pra descobrir do que
se tratava.
Mal podia acreditar, tantos anos depois. Desde o Hospital Arcano, esse virou o rumo da
minha existência. Uma fagulha de esperança acende no horizonte do terrivelmente escuro
e infinitamente desesperador que minha vida se tornou. Quando Yezzoth me falou da tal
pedra, tive a força e vigor que precisava pra sair daquela distopia concretizada.
Finalmente, tudo que aconteceu poderia ser facilmente revertido e eu poderia ter uma
família novamente. Uma nova chance.
— Eu sei como derrotar o deus, vocês têm sorte que estou no grupo.
Anrell e Jethro não souberam exatamente como reagir, mas o humano não deixou de
tentar. Após olhar para o elfo em busca de respostas e, frustradamente obter apenas o
franzir de seu cenho, ele sorri para a cronoariana e forçando-se a cortesia, enuncia:
— Perdão, a senhora é? Acho que me perdi na conversa.
— Meu cabelo não tem relação alguma com minha idade. Eu os ajudo com a divindade e
vocês me ajudam com o trajeto, simples assim. Mas que esteja claro: se vocês se
tornarem incômodos, mato os dois e pego o mapa; é tudo que preciso.
Anrell acabara de empurrar a cadeira com suas costas em um impulso agressivo, estava
pronto para levantar e fazer sabem os deuses o que, mas Rose interviu graças aos
mesmos. Se o elfo oferecesse alguma ameaça à Kera, por menor que seja, ela teria
reagido. Porém, não foi o caso, ela não se deu o trabalho de tirar o olhar de Jethro.
— Ela vai vir com a gente, tá tudo bem. - A voz dela era aconchegante e suave, parecia
almofadar os ouvidos de quem a escutava.
— Coitada, é só sair de perto da mãezinha que perde completamente a sanidade. Ela
não virá conosco, Rose.
— É um prazer discordar de você, Anrell, mas eu estou com ela por outro motivo: como
você mesmo disse, não temos gente competente o suficiente para atingir nosso objetivo.
Todo mundo aqui viu pelo menos um pouco do que aconteceu ontem, ela quase morreu
mas até que lutou muito bem, não sei se teremos a sorte de achar alguém com habilidades
parecidas no decorrer da jornada.
— Vocês devem estar loucos! Ela ameaçou nos matar! Em que hipótese isso é um
aspecto tolerável de um companheiro de jornada? - Ele indaga, indignado.
— Eu confio nela. - Essa garota é a mais louca do grupo, mas eu gostei dela.
— Eu também! - Responde Galahan, do outro lado do salão. Parecia ter acordado há
pouco tempo.
A sala encontrou-se silente por alguns minutos e então, o som repentino de Anrell

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levantando, bruscamente.
— Certo, se querem colocar suas vidas desprezíveis em risco da forma mais estúpida
possível, façam-no. - Ele tentava não transparecer, mas seu incômodo era tamanho,
grande o suficiente para fazer seus cabelos parecerem mais vermelhos, como se
estivessem em chamas. Talvez seja apenas efeito das pílulas que tomei ontem.

A dor não passou totalmente, então decidi tomar mais alguns comprimidos de ecstasy. O
efeito foi quase nulo. Eu sinto falta de quando saí do Hospital Arcano, as drogas ainda me
faziam transcender dessa existência desprezível, eu voava ao pós-realidade em questão
de segundos, dançava entre cores que se materializavam disformemente, nadava em sons
do ambiente amplificados pelas substâncias dopantes e via, lentamente, meus problemas
serem substituídos por sensações sempre inéditas. Sinceramente, não me considero uma
dependente química, quando quiser parar, eu paro… o problema é querer parar. Termino
de colocar algumas tralhas que juntei no tempo que fiquei na área élfica em uma bolsa
interdimensional que roubei de uma das minhas últimas vitimas.
Acho absolutamente apropriado dar ao elfo uma atenção maior de meus olhos, ele
parece explosivo e eu não tenho intenção alguma de me conter, em qualquer sentido.
Conheci bem os elfos e não me faltaram boatos sobre o impiedoso príncipe Keenliph para
que eu me atentasse aos seus movimentos mais sutis. Ao que notei ele parece ser muito
bom em combate, se mexe minuciosamente, nunca foca o olhar em apenas uma coisa,
posiciona-se de forma a possuir o maior campo de visão possível e não bebeu uma gota
de álcool durante todo o período que permaneceu na taverna. Apesar de tudo isso, é idiota
da parte dele deixar as duas mechas de seu cabelo preso cobrindo, mesmo que
parcialmente, seu campo de visão lateral. Deve ser bem confiante em suas habilidades
para julgar esse um fator indiferente num combate intenso.
Kera passara algumas luas transitando entre tabernas e estadias de fora e dentro da
cidade florestal. Ouvia por pura diversão verdades que se distorciam nas bocas das fadas
e adentravam os ouvidos afiados dos elfos. Envoltas pelo ócio do trabalho doméstico e
presas à funcionalidade de reprodutoras, as fadas não viam outro passatempo mais
entretivo que cuidar da vida alheia e assim como todas as outras coisas, faziam-no muito
bem. Exercitadas a serem meticulosas com tudo desde a infância, as fadas crescem como
máquinas que possuem aplicabilidades diretamente restritas às vontades de seus
programadores, os elfos. Por outra ótica, isso lhes proporciona uma capacidade notável de
perceber, ouvir e sentir coisas que dificilmente um elfo notaria, inclusive informações
supostamente frívolas, mais conhecidas como fofocas.

. Olhos, portões da alma

A matéria girava rapidamente, o tempo dobrava-se sob a minha vontade e a realidade se


distorcia insignificantemente. Preciso chegar rápido lá pois eles correm risco. Eu transitava
entre o material e imaterial continuamente, em busca das quatro almas ingênuas. Tive um
sonho na noite passada: uma fada, um elfo e dois humanos estavam sendo perseguidos
por uma cria abissal tomada pela lazeira. Provavelmente são os desventurados que Oldian
citou em meus sonhos. Devo guiá-los para seus destinos e, então, terei acesso ao meu.

21
Apesar de tudo, eu… Sinto uma presença.
Em um intervalo de tempo equivalente a um piscar de olhos, Etrighan localiza a
succubus e transpassa sua mão no peito da Abissal. Impossibilitando-a de ter o ínfimo
tempo de reação, ele implanta no núcleo dela uma runa de Expurgo Solar. A maligna
forma de vida é lançada imediatamente para mais longe do que os olhos do mago
poderiam enxergar sem esforço, o que por si só é uma distância imensa. Então, apenas
então, o mago encosta os pés na terra apodrecida pelo rastejar da besta luxuriosa e move
os orbes portadores de um verde inconfundível, vertiginosamente, à procura de seus
quatro protegidos.
Todo Abissal possui um núcleo, ele equivale a um coração. Mas, além de um coração,
ele também é a mente e alma da malévola criatura em questão. Por isso, coloquei no
núcleo da succubus a minha última runa do Sol e liguei a magia de expurgação à alma de
um dos quatro. Não prestei atenção em quem era, pois o demônio estava quase
devorando o tal e eles nem se deram conta de que suas vidas estavam apenas algumas
garras de distância. Não os culpo, succubus são temidas por suas incomparáveis
habilidades furtivas, tamanhas para arrancar a alma de um deus ou o pão de um pobre
sem que percebam. Enfim, achei-os.
— Galahan? - Torci para que a pronúncia fosse a certa.
O cavalo do humano relincha, ele vira e então os outros três.
— Sim?
— Então é você mesmo, o jovem que Oldain disse para guardar. Onde está o outro
humano? Só vejo um.
— Je…
Os pensamentos de Etrighan são novamente interrompidos. Uma barreira de energia
imaterial é criada pelo mago no tempo exato para evitar o esquartejamento de um dos
cavalos. A succubus aparentava estar sem seu núcleo, o que não fazia sentido algum para
o loiro de olhos esmeralda, um abissal não sobrevive sem o mesmo. Só então ele nota que
a succubus estava, também, sem uma de suas mãos.
— Ela transferiu o núcleo pra mão e simplesmente cortou ela. Não há outra resposta. -
digo em tom inaudível, apenas tomando notas para mim mesmo. - Ótimo, só tenho que
achar a mão e desintegrá-la.
A barreira criada projeta espinhos que fazem a Abissal se afastar, evitando ser perfurada
pela magia que vibrava uma aura verdejante. Após sumir nas trevas projetadas pelas
espessas copas de pinheiros enormes, Galahan consegue sacar sua espada, Anrell
posiciona sua flecha no arco há pouco tempo armado, Rose levanta voo e Jethro desce de
seu cavalo.
Transporto-me para alguns metros acima das extremidades arbóreas e lá permaneço
pairando por algum tempo. Tentei achá-la apenas com meus olhos e então, depois de
falhar tentando, realizo algumas sequências de símbolos mágicos manuais e uma onda
fina de pura magia, quase imperceptível para seres triviais como os da região, alastra-se
pelos corrimentos viçosos do reino élfico. O encanto funciona como um grande radar
mágico, e, apesar de poder cobrir cidades inteiras, limitei-me ao raio de apenas um
pequeno vilarejo, aproximadamente. Logo detecto uma força peculiar mágica, era muito
grande mas estava presa em um pequeno corpo, pequeno até demais. Sem a dúvida de
que era a mão da succubus, projeto uma lâmina de magia imaterial e lanço-a em direção
ao núcleo, sem hesitar. Feito, posso voltar minha atenção aos quatro.
— Vocês estão bem? - Pergunto surgindo das folhas de árvores imensuráveis para seres
simples.

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— Estaria melhor se conseguisse ao menos entender o que acabou de acontecer. -
Responde Jethro.
— Não, a primeira pergunta é: quem é você e o que quer conosco? - Intercepta o elfo.
— Meu nome é Etrighan e sou o mago que Oldain mandou para ajudá-los. Não sei ainda
com exatamente o que, mas vou tentar. - Ele sorri e abaixa o capuz que até agora
escondia seu cabelo, ou como seria melhor descrito, fios dourados que ondulavam na
cabeça do feiticeiro de olhos fundos, estendendo-se até o pescoço.
— Prazer! - Galahan e Rose dizem o mesmo, quase ao mesmo tempo, a fada mais
controladamente e o humano, jovial e vigoroso como sempre.
Kera apenas continuou andando e depois de me interrogar mais um pouco, fez o mesmo
Anrell, aparentemente satisfeito com as respostas. Dispensando muitas apresentações
desnecessárias foquei-me em responder a pergunta do humano de cabelos negros, para
ele e seus simpáticos dois amigos que ficaram. Ao mesmo tempo que a fada e o garoto
mostravam-se entretidos como crianças atentas a contos bobos, Jethro demonstrava
entender profundamente termos que utilizei propositalmente para desinteressá-los do
assunto. Além de conhecer bem, fez comentários relevantes a minhas reflexões em
relação às razões para uma succubus encostar sua imundice no sagrado solo do reino
élfico.
Depois de um bom tempo insistindo eles me deixaram pegar o mapa e ajudei eles a se
guiarem, estavam tão perdidos quanto um morcego surdo. Expliquei-lhes quase tudo que
sabia sobre o assunto pois já havia lido sobre em meus anos de estudo em relação à
história da magia. Um dos doze fragmentos mágicos necessários para o ritual estaria
relativamente perto, em uma vila oculta de Knares.

Minhas impressões, no geral, foram boas. Todos eles tem bastante empatia e
compaixão, apesar de alguns reprimirem intensamente isso. Jethro é gentil, mas não tenho
total certeza se isso é apenas consequência de seu ofício na realeza, conveniência ou
genuína cortesia. Galahan é ingênuo mas é certamente uma boa pessoa; e estranhamente
veio do campo. Rose é adorável… é isso, sinceramente não acho que haja outra palavra
que melhor descreva-a. Vossa majestade, Anrell, mantém um certo equilíbrio entre a
relação dos dois, ele atua muito bem como o completo oposto da fada. E finalmente a
cronoariana. Apesar das insistentes tentativas de Galahan com o objetivo de incluir a
garota ao grupo, Kera não falou muito mais que cinco palavras nos dois dias de viagem.
De qualquer forma, não precisaria de mais para deduzir que ela teve problemas em sua
infância, como um mago do véu eu posso ver o espectro de tudo, inclusive da alma, mente
e corpo dos seres. A mente da garota cronoariana me assustou, era fragmentada e
ondulava em hostilidade sobre si mesma. Em suma, isso geralmente significa que ela é
assombrada por coisas resolvidas da pior forma possível, ela sofreu alguma lesão
espiritual e estancou-a com algo que, definitivamente, não possui qualquer aspecto
curativo. Não acho que eu esteja sendo claro, vou esperar mais detalhes para desenvolver
melhor isso.
Sem explicar ou ser percebido, desviei minha rota. Tinha que resolver assuntos mágicos
de magnitude incalculavelmente maior, não entenderiam mesmo se eu desenhasse. Antes
disso eu obviamente esclareci toda a situação: a tribo trata-se de um conjunto antigo de
Knares que sobreviveram à Perseguição com o poder do fragmento que buscamos. Ele
reside no subsolo da tenda do líder da tribo e é protegido por quatro guardas. Eles

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deveriam tentar um acordo pacífico utilizando de burocracia e poder político que possuem
ou, em último caso, roubar a pedra.

Interlúdio: Reavount, parte I

Pedras rolam, pássaros voam assustados e árvores estremecem com o impacto da


minha cabeça no chão. Tropecei em uma pedra quando estava quase chegando à base da
montanha porque me distraí olhando para a beleza daquela floresta tingida pelo alaranjado
do nascer do sol. Havia um bom tempo que não descia de Reavount, levando em conta
que costumava descer diariamente para meditar perto do rio. O que me chamou atenção é
que eu vi um rastro de fumaça vindo da floresta e aproveitei a deixa para explorá-la.
Afastando alguns arbustos e torcendo alguns galhos consigo chegar ao lugar de onde saía

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a fumaça. Era uma casinha bonitinha de tijolos e madeira. Aproximei-me mais, procurando
algum sinal de vida. A fumaça não saía da chaminé e sim da janela aberta da casa.
Temendo que houvesse alguém na casa enquanto ela pegava fogo, abri a porta e
adentrei-a. A janela que expelia fumaça ficava nos fundos da casa, então corri pelo
corredor até achar uma moça de meia-idade deitada numa cama, aparentemente
dormindo. Corri para dentro do quarto onde ela estava, peguei-a em meus braços e levei
para fora da casa. Ao deitá-la delicadamente na grama do quintal para voltar e procurar
mais alguém na casa, sinto um toque gentil em minhas costas junto a um barulho grave de
impacto. Ao virar-me percebo que um garoto com pouco mais de um metro e meio me
dera uma machadada. Graças a Skagriör, minha pele petrificou-se por puro reflexo e
impediu que o golpe tivesse o impacto desejado. Olhando melhor para o garoto, percebo
que ele chorava e tremia segurando aquele machado que provavelmente pesava tanto
quanto ele.
— Ei, tudo bem? - pergunto, sentindo uma necessidade incompreendida de consolar o
garoto.
— Sai de perto dela! - ele grita, rouco.
— Ah, desculpa! Não tenho a mínima intenção de machucá-la, estava tentando salvá-la do
incêndio.
— Não tem nenhum incêndio, seu bastardo! Sai daqui antes que eu te mate!
— Acho que você entendeu errado a situação, eu n…
— Sai daqui logo! Eu conheço bem sua raça, não vou deixar que cometa atrocidade
alguma com minha mãe!
— Garo…
— Sai demônio! - Ele tenta acertar novamente o machado, em vão.
— Moleque, com quem cê acha que está falando?
— Com um perdedor resumido a um monte de carne e osso. É isso que sua raça é! - Ele
constantemente mexia seu machado em minha direção esperando que de alguma forma
seria ameaçador. Ri em minha mente.
— O que você acha que sabe dos Knar, pirralho?
— Que se glorificam por seus tempos de glória há quinhentos sóis atrás mas não passam
de selvagens insensíveis que não servem pra mais nada que não seja a escravidão nos
dias atuais. Agora sai da minha frente e deixa minha mãe em paz!
Recuo e volto para a floresta. Enquanto subia a montanha reflito sobre o como eu teria
reagido diferentemente antes de conhecer os Vashta. Talvez teria matado o garoto com
minhas próprias mãos. Não teria tirado a mãe dele da casa; na verdade, teria matado os
dois por puro ódio aos humanos. Mas sinceramente, aquele garoto passou por muita dor
em uma vida tão curta, pude ver em seus olhos a angústia que um dia quase me
consumiu.

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O rígido e descoberto torso do Knar atravessava espinhos da floresta sem qualquer
incômodo, muitas vezes quebrando-os. Shakon sabia muito bem identificar na natureza os
vestígios de Knares e, assim, encontrar suas tribos escondidas. Essa habilidade dá-se
pois não há muito tempo que ele aprendeu a perceber-se como um ser individual e vívido,
coisa que jamais passaria na cabeça de alguém de sua raça em condições normais.
Liberatara-se da escravidão mental que o torturava com a ajuda dos Pajevs, mas esse
evento está longe de seu gênese.
Os Knares foram, um dia, a raça que esteve sobre qualquer outro ser vivo no planeta;
eram simplesmente imparáveis. Eles eram chamados de cinzentos pela cor de suas peles.

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Ao nascerem, eram alvos como a neve, e ao envelhecerem escurecia-se a pele até chegar
a um tom totalmente negro, tom esse que marca a morte do Knar. Suas construções
cobriam a longa extensão de quase um terço do continente. Castelos, fortes, templos e até
cidades inteiras foram construídas pelos Knares e sua magnífica força. Nós éramos
conhecidos por termos exatamente tudo o que é necessário para ser uma nação
inabalável: a intensidade do dia, furtividade da noite, a magnitude do sol e a magia da lua.
Implacáveis.
Bem, na verdade, eu diria que nada é um obstáculo grande demais para os humanos e
sua crueldade. Quando a civilização humana estava sendo massacrada pelo crescente
avanço dos cinzentos, em sua última oportunidade de sobrevivência, viraram o jogo. Os
humanos sabiam que os Knares teriam mais dificuldade para invadir e tomar o último
núcleo, a cidade de Thauro. Ela foi a que mais resistiu até agora e é o que concentra toda
a força militar sobrevivente de outras invasões, e então, desenvolveram uma armadilha
divinal. Muitos guerreiros deram suas vidas na guerra que aconteceu nas estreitas ruas da
cidade para tentar ao máximo diminuir o número de oponentes, mas não morreram mais
do que cinquenta cinzentos. Entretanto, o maior sacrifício foi o do sacerdote da cidade.
Orando no centro do Palácio ele aguardava calmamente os Knares avançarem e, pela
luminescente glória do Deus Sol e suas misteriosas vertentes de poder, quando o fizeram,
foram incinerados pela Luz do Sol e implodidos pelo esplendor do Sangue Escarlate. Ali
nascia uma nova era, o domínio estava nas agora rubras mãos humanas.
Tudo aconteceu muito rápido. Depois daquela reviravolta na cidade de Thauro, os
humanos avançaram de forma avassaladora por todo o continente conquistando,
subjugando e explorando tudo que era vivo ou não. Mas como sua maior vingança, eles
escravizaram a minha raça. A cada cidade que era retomada pelos humanos, os Knares
mais velhos eram mortos, os adultos escravizados para expandir a cidade, erguendo
templos para adoração ao Deus Sol, e as crianças e mulheres levadas para cercos de
reprodução. Nelas os pequenos eram treinados para servir fielmente às vontades dos
humanos e as mulheres forçadas a exercer trabalhos domésticos, também como treino,
até que as crianças crescessem e as “fecundassem”, como diziam os malditos humanos.
Com toda essa estrutura desenvolvida, os baixinhos de pele rosada passaram a ocupar o
elevado lugar de raça imparável, constantemente contaminando o continente com suas
crueldades.
Depois de tanto tempo arquejando na dor das chicotadas, gemendo em silêncio
resmungos de aflição e amargor, cuspindo sangue sobre o seco solo que nos sustém,
infelizmente, apenas alguns de nós temos a enorme sorte de nos libertarmos da
escravidão. Conseguir fugir já é uma vantagem e tanto, mas não morrer depois é um
privilégio para pouquíssimos cinzentos. Como animais, eles são vorazes ao nos caçarem,
pode-se imaginar o valor que nossa força tem para seres tão frágeis que mal sabem o que
fazem com o poder que possuem. Enfim, não posso dizer que tive exatamente sorte pois
fui rejeitado não só pelos humanos, mas também por aqueles que compartilham do
mesmo sangue.
O vultoso montante de músculos, coberto em pequenas partes por couro e grandes
partes por marcas mágicas em sua pele, caminha silenciosamente. Era certamente
confuso olhar para uma imagem tal qual a de um ser com a altura de quase dois humanos
adultos, um em cima do outro, andando e produzindo nenhum som senão o da própria
respiração, que facilmente se dispersava nos sons que a própria floresta reverberava. A
grama parecia acolher os pés dele, a relva parecia abrir-se para que ele pudesse passar e
os galhos magicamente se desdobravam sem produzir um mínimo ranger. Não, era

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apenas habilidade. Quase toda a magia que se concentrava no grande Shakon era
externalizada de forma definitivamente barulhenta, mas não era o caso de usá-la.

Finalmente! Eles fizeram um ótimo trabalho em esconder esse lugar pra tribo, ele se
oculta tão profundamente na floresta que nem os animais mais rasteiros chegavam perto
nem a luz iluminava sem obstáculos. Pequenas cabanas de folhas e barro - elementos
definitivamente abundantes no ambiente - compunham a paisagem rústica de uma cultura
tribal com vários sóis de história, construindo barreiras sociais tão fortes quanto as físicas,
e que igualmente resistem às mudanças que o tempo normalmente traria.
Vim aqui só para pegar algumas coisas, sei que não sou bem vindo. Senti saudades da
culinária Knar e decidi saciar minha vontade de comer a inesquecível sopa de carneiro. Os
sabores possuíam tudo que uma língua precisa para ser feliz: o ardor de temperos
delicadamente moídos, o frescor de ervas do campo, a maciez de uma carne devidamente
preparada desde a seleção do animal enquanto filhote e, por último, mas com certeza mais
importante, o gosto incomparável de um pão de sabor divinal encharcado no caldo. Enfim,
vesti-me com o couro peludo de algum animal grande e típico da floresta élfica. Coloquei
um chapéu de palha grande e enrolei uma serpente em meu pescoço, ela estava morta
obviamente. O disfarce pode parecer bobo para outras raças mas um verdadeiro Knar
reconhece um bom vendedor.
Não foi nada difícil entrar na tribo, imaginei que teria pelo menos um pequeno empecilho.
Me misturei na multidão de algum tipo de festival, mas não lembrava de nenhuma
celebração parecida nessa época do ano.

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