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COLEÇÃO

PALAVRAS SOLTAS
Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas
através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que
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quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio
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© 2018, Filipe Martins de Lellis e Chiado Books


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Título: Histórias de um coração sombrio


Editor: Vitória Scritori
Composição gráfica: Andreia Monteiro
Capa: XXXXXXX
Revisão: XXXXXXXXX

Impressão e acabamento:
Chiado
P r i n t

1.ª edição: XXXXXXX, 2018


ISBN: XXXXXXX
Depósito Legal n.º XXXXXXXX
Filipe Martins de Lellis

Histórias
de um
coração sombrio

Ilustrações de Rafael Damé Borges

Brasil | Portugal | Angola | Cabo Verde


Para Nadine, que gosta de histórias góticas...

Para minha irmã Samara, na esperança de


que ela leia...
Índice

O anjo da neve 9
O boné vermelho 13
O ditador audiovisual 21
Shureken, o yokai da vingança 27
As loucuras da tia Kelly 33
Os investimentos de Aurélio Steiner 37
Senhorita solitária 55
A verdadeira história do flautista de Hamelin 61
Meu pai 67
O mausoléu da Mansão Cruz de Louro 73
O festival de Montes Claros 87
Uísque na jarra 91
O mascarado 95
O anjo da neve
Essa história aconteceu há muito tempo, era uma noi-
te escura e fria de inverno, em que caía uma forte nevasca.
Qualquer pessoa inteligente estaria deitada com um cobertor
tomando um chocolate quente. Não era o caso de Nataniel
e Natasha que ainda estavam lá fora, lutando contra o frio.
– Vamos encontrar mamãe, Natasha. Vamos!
– Tem certeza que isso não é errado, mano?
– Tenho certeza de que é errado. Mas você não acha
que a mamãe ia preferir que quebrássemos as regras para
encontrá-la, do que ficar aqui obedecendo às freiras?
– Não sei o que ela pensaria, Nael. Não sei nem mes-
mo se ela ainda está viva.
– Não diga isso! – Disse Nataniel dando um tapa na
boca da irmã, que sangrou.
– É claro que ela está viva!
Longe dali as freiras foram avisadas que duas crianças
tinham escapado das camas. Um menino e uma menina. Não
entenderam como os dois conseguiram enganar os guardas,
os cachorros e pular o muro. A Senhorita Petra, uma das
freiras que cuidavam do orfanato, estava pasma com toda a
situação. Se sentia culpada por tudo que ela havia contado
para confortar os dois irmãos. Um dia, para que os dois se
acalmassem, ela havia inventado uma historinha até bonita.
Disse que a mãe deles tinha uma missão muito especial. Ela
era o anjo da neve. Em dias de muita neve, às vezes aconte-
cia que crianças perdidas ficavam na rua morrendo de frio, o
que era muito perigoso. Por isso existia o anjo da neve, ele
cuidava para que nenhuma criança ficasse perdida depois da
hora. Ele salvava as crianças perdidas, levando-as para casa.

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Filipe Martins de Lellis

– Eu não acredito que eles foram procurar a mãe. Não


acredito!
A mulher então foi falar com o novo guarda que havia
chegado há poucos dias.
– Por acaso alguém saiu há umas duas horas?
– Só duas crianças, mas relaxa! Disseram que iam en-
contrar a mãe.
– Como assim? Você não sabe que isso é um orfanato?
– Orfanato? Achei que era apenas um colégio de freiras.
– Seu irresponsável! Assim que eu encontrar as crian-
ças, vou voltar e demitir você!
Srta. Petra pegou seus agasalhos mais quentes e saiu de
bicicleta pelas ruas determinada a encontrar as duas crianças.
Olhou em cada canto das ruas que passava. Por fim concluiu
que eles tinham saído da cidade, porque estava tudo deserto
e ela não vira nenhum dos dois. Sorte que era uma cidade
pequena. – Já sei! – pensou ela, o menino falava sempre que
queria ver o desfiladeiro Nebrasca.
Era um desfiladeiro enorme que terminava no Rio Ice-
place de forte correnteza, desaguando no oceano. No dia em
questão o desfiladeiro encontrava-se com uma alta camada
de neve. Se não estivesse tão aterrorizada, talvez a Srta. Pe-
tra até achasse graça de si mesma, andando de bicicleta com
um casaco de pele. Ela pedalava desesperada, com medo do
que as crianças podiam fazer. Felizmente as encontrou logo.
Estavam as duas caminhando desfiladeiro abaixo. O menino
arrastava a garota pelo braço.
– Parem vocês dois!
– Srta. Petra, como você encontrou a gente? – Disse
Natasha, com um sorriso de felicidade.
– Não interessa, vamos embora está muito frio aqui...
– Não se preocupe Srta. Petra, o anjo da neve vai vir
buscar a gente! – Disse Nataniel, descendo um pouco mais e
arrastando Natasha pelo braço.

10
Histórias de um coração sombrio

– Não! Esperem. Não façam isso!


A freira correu desesperada atrás dos dois, mas cada
vez eles desciam mais e mais, sem medo do perigo. Ela
então desceu da bicicleta, deslizando com seus sapatos no
meio da neve.
Os três haviam chegado no limite do desfiladeiro, Srta.
Petra tropeçou sem querer e empurrou Nataniel e Natasha,
os três rolaram e chegaram ao extremo do abismo, olhando
para o rio lá embaixo. A única coisa que mantinha eles no ar
era o casaco de pele que estava trancado em um galho. Srta.
Petra estava sem fôlego, nem respirava. Natasha gritava e
Nataniel dizia sorrindo:
– Não se preocupem, o anjo da neve vai vir voando
salvar a gente.
O menino estava segurando na mão da menina, e ela
segurava a mão da Srta. Petra. De modo que quando a freira
escorregou deixando o casaco, que ela usava aberto, os três
caíram, batendo nas rochas e depois caindo no mar.
Dias depois os três corpos foram encontrados no
porto, com certeza foram levados pela forte correnteza do
Iceplace. No local encontraram a bicicleta e as pegadas, de
maneira que todos entenderam o que tinha acontecido. O
Desfiladeiro Nebrasca foi alvo de muitos curiosos que afir-
mavam ver um vulto durante a noite.
No momento em que a história veio a público, pro-
vocou muita comoção de toda a cidade, especialmente do
orfanato, que começou a contar a verdade às crianças; seu
pai morreu num acidente de carro, sua mãe morreu por gripe
espanhola, seu pai morreu na guerra...
Quando chegou a primavera e a neve começou a der-
reter, os habitantes da cidade perceberam que o suposto fan-
tasma não passava de um casaco de pele pendurado em um
galho.

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12
O boné vermelho
– Alô, Paty? É você? Só queria avisar que estou dis-
pensado, serviço militar já era, agora quero muito te encon-
trar...
– Ah Beto, quanto tempo! Eu também quero... Até
achei que você tinha esquecido de mim...
– Esquecido? Nunca! Eu estava era em uma missão,
mas não passou um dia sem que eu pensasse em ti. Agora
finalmente poderemos ficar juntos...
– Sim, juntos para sempre.
– Me espere as seis na frente do Edifício Carlos Verís-
simo, não se atrase... Beijo.
– Como é mesmo? Se você diz que vem as seis, desde
as quatro vou começar a ser feliz.
– Acho que as horas não eram bem essas, mas captei a
mensagem. Até logo!
– Até!
O Cabo Alberto Telles tinha acabado de dar baixa no
exército, depois de três anos em missão no Haiti. Estava
tranquilo agora, haveria um reajuste de quatro mil reais a
mais em seu soldo. Enfim poderia assumir um compromis-
so, comprar casa, carro, mas ele nem se importava com isso,
para Beto a única coisa que valia a pena era estar ao lado de
Patrícia, sua namorada.
O soldado desceu do avião, feliz como nunca estivera.
Ah como é bom voltar à terra natal! As pessoas falam do
Brasil, mas não tem ideia do que é estar num país de extrema
pobreza, onde é comum ver crianças mortas por desnutrição
na calçada. Comparado ao Haiti, o Brasil é um lugar ótimo
para se viver...

13
Filipe Martins de Lellis

Beto pegou um táxi e foi até seu apartamento. Lá dei-


xou suas fardas e algumas lembranças que trouxera: armas,
fotos de crianças que tinham feito amizade com ele, uma
medalha de honra e um coelho entalhado em madeira, que
ele comprara de um nativo pra dar de presente à Patrícia.
Almoçou e descansou durante a tarde, viu o noticiá-
rio e ficou por dentro da situação que o país se encontrava.
Logo depois tirou a farda, colocou uma camiseta verde,
uma calça jeans e se perfumou. Ele tinha combinado de se
encontrar com Patrícia quatro quadras dali. Não queria que
ela visse seu apartamento, estava muito bagunçado e sujo,
tinha que dar uma geral antes, talvez até mudar de apê.
Mas precisava ver a garota antes disso, tinha de falar com
ela, isso era essencial...
Caminhando em passos leves, o dia estava muito
quente, Beto se dirigia ao edifício pela rua. Estava meio
atordoado, ansioso para reencontrar sua garota. – O que
será que ela vai achar do meu novo visual – pensou. Ele
agora estava um pouco diferente, usava corte militar e ti-
nha raspado a barba. Quando Beto chegou na frente do pré-
dio, viu o nome “Edifício Manoel Vieira” e gritou:
– Merda! Não acredito que me confundi, o Edifício
Carlos Veríssimo, era perto do outro apartamento. Fica
uma meia-hora daqui, tenho que avisar a Paty, pensou.
Tentou ligar, mas o celular dela estava fora de área. Beto
então embarcou num ônibus circular que passava lá perto,
rezando pra Patrícia ficar lá esperando...
O veículo foi até mais rápido, em apenas 20 minutos
já estava se aproximando do Edifício, porém parou, pois
havia um acidente na rua. Uma menina loira havia sido
gravemente atropelada, mas o motorista que a atropelou ti-
nha fugido. Beto esperou alguns minutos lá dentro e depois
resolveu descer para ir a pé, já que o ônibus tinha parado
mesmo.

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Histórias de um coração sombrio

Tal foi a sua surpresa, quando descobriu que a moça atro-


pelada era a Patrícia. Beto se desesperou, não podia acreditar,
correu para o local, mas foi barrado pelos policiais e médicos.
Começou a chorar, não... não!
O traumatismo craniano acabou causando a morte de
Patrícia, Beto conversou com os investigadores e falou que era
namorado da vítima. Os policiais disseram a descrição do mo-
torista, era alto, cabelos negros longos, barba crescida e esta-
va usando uma roupa preta. O carro era uma Mercedes SL200
conversível vermelha. A melhor pista que tinham era um boné
vermelho que o assassino deixara na cena do crime.
Mas o grande mistério era como ele havia escapado em
um carro chamativo sem que ninguém o visse. O caso foi noti-
ciado, investigado, mas não solucionado e parecia ser impossível
solucionar. A família de Patrícia ia em cima das investigações, e
Beto também. Todo dia ele ia incomodar o delegado e o perito.
Tanto fez que o delegado tirou o boné do cofre, deu pra ele e dis-
se: Tome, procure alguma coisa sobre esse símbolo, investigue
você mesmo, porque eu não tenho mais nada a acrescentar!
Mas o símbolo era de um time americano de baseball.
Beto voltou para o exército, onde foi transferido para um
instituto de pesquisas, pelo menos ele não era mais obrigado a
cortar o cabelo nem fazer a barba. Muito amargurado, era mui-
to severo com os recrutas, ruim mesmo. Tão ruim, que foi até
promovido. Contudo, em sua cabeça ele ainda amava Patrícia,
nunca ia esquecê-la. Não importava o que acontecesse, ela esta-
ria sempre em sua mente.
Certo dia chegou ao instituto de pesquisa um cientista es-
panhol, chamado Joel Martinez, que trabalharia em um projeto
de armamento defensivo. Beto estranhou muito ele e seus equi-
pamentos, com os quais exigia muito cuidado. Agora Alberto
Telles ocupava uma posição de chefia lá dentro, portanto não
podia permitir que coisas irregulares acontecessem embaixo de
seu nariz.

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Filipe Martins de Lellis

No começo, só ficou de cara com Joel, mas depois de


uns dias as máquinas começaram a fazer muito barulho de
madrugada. O cara não sabia nem disfarçar. Em uma noite
de relâmpagos, Beto foi até o laboratório, lá havia uma cú-
pula em forma de cilindro no meio da mesa, o experimento
fazia descargas elétricas verdes pulsarem fazendo um som
estridente.
– O que está fazendo, hermano? Tá louco?
– Sargento Telles, usted por aqui?
– Não tente me enrolar, o que essa máquina faz?
– Ela canaliza la energia en el vidro.
– Que tipo de energia?
– Elétrica.
Beto se dirigiu ao equipamento e tirou as lonas que
estavam por cima, enquanto Joel protestava. Viu o símbo-
lo amarelo de perigo radioativo, estava escrito ядерных
боезаряда em cima do container.
– Isso são bombas russas?
– No, no son bombas. Eso é apenas urânio trazido de
la Rússia...
Beto segurou Joel apertando o pescoço dele e o im-
prensando na parede:
– Você ia explodir a gente, não ia? Seu espiãozinho
de quinta!
– No, no! – Disse Joel implorando.
– Então o que você está fazendo com isso?
– Se yo contasse o senhor não ia acreditar...
– Creio que você não tem muita opção. – Disse Beto
sacando um revólver e apontando pra ele.
– Está bien! Está bien! Eso és una máquina do tem-
po!
– Máquina do tempo? E ela funciona?
– Bem na teoria, sí. Mas na prática não tive la opor-
tunidad de testá-la ainda...

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Histórias de um coração sombrio

– Não seja por isso. Teste comigo agora! – Disse


Beto, ainda não acreditando totalmente na história e ainda
empunhando o revólver.
– Muy bien, antes usted do que yo! Tem alguma pre-
ferência por época?
– Claro! Dia 26 de setembro de 2005, às 17 e 40
perto do Edifício Carlos Veríssimo.
– Não funciona assim, usted vai aparecer neste mes-
mo lugar só que 11 anos atrás. E usted só pode transitar
pelo passado por mais ou menos 10 minutos...
– Não tem um jeito de me transportar para um outro
lugar, antes de mandar para o passado?
– Bien, existe um jeito, mas é perigoso e usted pode
aparecer em qualquer lugar, entre duas paredes, no meio
do trânsito...
– Não interessa! Faça isso!
Joel pegou um casaco preto feito de um material
parecido com o de sacos de lixo e deu para Beto. Colocou
um relógio com um cronômetro contando onze minutos,
quando o tempo vencesse todos os objetos que estivessem
em contato com Beto voltariam para 2016 junto com ele.
O cientista espanhol programou o lugar de volta para o
pátio do instituto, vai saber o que ele vai trazer de volta...
– Non reclame dessa roupa, ela diminui o risco de
alguma parte de usted se perder no caminho. Quando o
cronômetro marcar zero, usted vai ser trazido de volta,
junto com tudo que estiver perto, num raio de mais ou
menos três metros. Non se aproxime de nenhum elefante,
ouviu!
– Peraí que estou esquecendo umas coisas... – Falou
ele.
Beto voltou, agora com o boné vermelho, o coe-
lho de madeira e uma medalha com a foto de Patrícia no
bolso, pensava em tentar localizar mais alguém com um

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Filipe Martins de Lellis

boné daqueles e localizar o assassino. Porém, logo per-


cebeu a solução perfeita, “eu encontro a Patrícia e trago ela
comigo antes do atropelamento acontecer, perfeito!”
Joel abriu a porta da cúpula vazia e Beto entrou ani-
mado. O botão fez aparecer faíscas azuis ao redor de Beto e
verdes na outra cúpula. Então ele desapareceu.
– Eureka! Funciona!– Gritava Joel, por que será que
ele estava tão determinado? Aposto que tem a ver com una
mujer ...
Beto surgiu justamente onde Joel temia. Dentro de
uma Mercedes, fechada em uma loja. Acontece que não era
uma Mercedes qualquer, era uma Mercedes SL200 conversí-
vel vermelha. Beto sabia que tinha pouco tempo e realmen-
te a máquina tinha funcionado! O carro encontrava-se com
a chave, estava dentro de uma revenda. O que aconteceu
foi que Beto saiu dando uma grande arrancada, fazendo um
test-drive no carro esportivo recém-fabricado.
Ele estava certo que os homens da revenda não conse-
guiriam encontrá-lo em onze minutos. Continuou correndo,
o cronômetro marcava 07:00, seguia pela rua que terminava
no prédio. Estava muito quente naquele dia, Beto lembrou
que quando tinha corte militar suava menos. Para não se
queimar muito, colocou o boné vermelho que carregava no
bolso.
Cada vez que via algum pedestre na calçada, Beto per-
guntava se tinha visto Patrícia. Ele mostrava a medalha, mas
ninguém tinha enxergado uma moça assim. O tempo estava
passando, Beto estava desesperado. Se não desse certo, não
poderia voltar, pois corria o risco de encontrar consigo mes-
mo e isso poderia provocar um paradoxo temporal, aquela
era a única tentativa.
Quando marcavam 04:00 no aparelho, Beto decidiu
voltar ao começo da rua para ver se encontrava Patrícia por
lá. Enquanto corria, viu que os homens da revenda junto

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Histórias de um coração sombrio

com a polícia estavam se aproximando procurando por ele.


Deu meia-volta e continuou no caminho inverso, aquela era
a hora. A hora dela aparecer. Onde estava?
O cronômetro marcava 01:00, Beto entrou numa rota
alternativa para despistar a polícia. A polícia não podia ver
ele sumir, isso poderia causar um grande problema. Ele era
mais acostumado com a direção de tanques do que de espor-
tivos e olhando para sua medalha, apavorado, não viu uma
moça loira que estava atravessando a rua.
A garota foi atropelada. O carro deu um soco. Beto
voou pra trás e o boné caiu de sua cabeça para o chão da
calçada. O primeiro impulso que teve foi olhar novamente
para o cronômetro. Agora marcava 00:00!

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O ditador audiovisual
Faz tempo que eu não vejo o Guilherme, que saudade
do meu amigo. Estudamos juntos todo o primário e parte do
médio. Ele era o mestre das humanas, eu sempre preferi as
exatas, por isso segui um curso de Engenharia. O Gui foi
cursar teatro numa turma em que a maioria era menina. Não
que isso seja ruim, preferia mil vezes ter as colegas do Gui
a estar trancado em uma sala com trinta barbados com chei-
ro de desodorante vencido, discutindo se tá mais em conta
comprar uma Fazer ou uma Twister atualmente.
Apesar do meu problema nasal com meus colegas,
estou numa carreira muito mais garantida que o Gui. Ele
teve que brigar muito com o pai, pra seguir nesse ramo. “Fi-
lho meu não vai virar ator e dançar num palco pra ganhar
a vida”. Esse era o discurso do seu Luigi. Pior que o velho
tinha razão, ele ia passar muito trabalho por essa escolha.
Teria que aceitar a oportunidade que viesse, fosse qual fosse.
Eu esqueci de dizer que o Gui não era fraco, ele era
apaixonado por cinema, música e literatura. Tinha mais ou
menos 1,75 de altura. Cabelos pretos e olhos azuis. E o cara
sabia interpretar. Eu mesmo vi várias apresentações dele no
teatro da escola. Ele fez a melhor interpretação de Tiraden-
tes que eu já vi (se bem que eu só vi essa, mas tenho certeza
que nunca verei melhor).
Agora vou contar a história que conto pra minha na-
morada Rute sempre que ela fica brava. Como eu estava di-
zendo, o Gui era um cara de sorte. Ele venceu um concurso e
ganhou a oportunidade de atuar numa co-produção da Globo
e Paramount. O filme se chamaria “Eu não esqueci de você”,
nome idiota né? Se você gosta ou não, não sei, mas eu acho

21
Filipe Martins de Lellis

idiota! A historinha era um casal que se conhecia durante


a Segunda Guerra Mundial e eram separados porque o ra-
paz iria servir. Que coisa mais clichê! Obra da cabeça do
“incrível diretor” Ernani Quiroga. Mas o diretor acredita-
va que a história iria virar sucesso. A atriz escolhida para
viver “Sara” foi Alice Bergmann, uma garota loira, tam-
bém estudante de teatro. O diretor pensou que usando no-
vatos economizaria nos cachês e estaria trabalhando com
pessoas esforçadas que querem se destacar nas atuações,
diferente de muitos atores consagrados que não estão nem
aí pra atuação, porque já são famosos.
Quando começaram as filmagens, Guilherme Leite
teve de ir direto pra São Paulo. Lá ele viu começarem as
loucuras do diretor. O cara era um excêntrico, pedia toa-
lha, pedia morango com chantilly, pedia para as figuran-
tes levantarem a saia para ver se elas se enquadravam na
cena. Fazia os atores repetirem a mesma cena mais de 30
vezes. Não deixava Alice comer para não engordar, ten-
tou ferir Guilherme para ficar mais convincente e nunca
estava contente com nada. Uma das poucas coisas que ele
gostou foi o rosto de Guilherme, perfeito para promover
o filme.
– Vamos lá, então?
– Gravando.
– Eu sei que talvez eu não volte, Sara. Mas imploro
que espere por mim.
– Eu vou esperar certamente, meu amor... Certa-
mente, ah fala sério Quiroga!
– O quê que é?
– Ridículo esses seus diálogos, Quiroga!
– Quem é tu para falar de mim, tu não é nada gu-
ria. Tá chovendo menina por aí, bem mais bonita até, que
morreria por este papel.
– Me demite então, panaca!

22
Histórias de um coração sombrio

– Opa, desta vez ela tem razão, tá muito chato isso


aí.
– Nem mais um pio, ouviram? Gravem essa maldita
cena, que eu sei o que estou fazendo! Se não gostam do meu
texto, vão embora e escrevam o de vocês!
Alice e Guilherme eram geniais em monólogos. Por-
que juntos em cena eram um desastre. Ficavam implicando
um com o outro. Cenas de beijo eram um problema. O Gui
sempre foi um cara turrão e estúpido, e a Alice tinha perso-
nalidade forte e não aceitava ordens. Deste modo, gravar
sempre era um problema, Guilherme queria que a cena fi-
casse de um jeito, Alice de outro e o diretor não gostava de
nenhum palpite em sua obra de arte.
O set de gravação ia à loucura, a história piorou quan-
do Alice e Guilherme começaram a namorar, todas aque-
las brigas não passavam de uma paixão escondida. Aí que
o diretor perdeu voz mesmo, porque os dois protagonistas
começaram a se unir contra ele.
Quando descobriram que podiam romper o contrato
sem pagar nada, se alegassem maus tratos no set de grava-
ção, os dois se mandaram. Ernani Quiroga ficou p... com os
dois. Ele publicou vários textos na internet falando mal de-
les. Regravou todo o filme com figurantes em duas semanas,
para ainda assim competir no festival de Bom Lago, mas
com nenhuma perspectiva de ganhar.
No dia do festival, lá foi Quiroga, todo bonito com um
paletó violeta e o com o pouco cabelo que ainda tinha, bem
penteado. Assistiu a todos os filmes do festival. A maioria
das pessoas dormiu durante a exibição de “Eu não esqueci
de você” e o filme não foi premiado em nenhuma categoria,
não foi nem citado no discurso do apresentador. Mas isso
não foi surpresa para Quiroga, a surpresa foi um filme in-
dependente que caiu no gosto da plateia. A história do filme
era sobre dois jovens que se apaixonavam durante a produ-

23
Filipe Martins de Lellis

ção de um filme e sofriam com os maus-tratos do diretor. O


nome, “O ditador audiovisual”, escrito, dirigido e estrelado
por Guilherme Leite e Alice Bergmann. Foi o filme mais
premiado da noite. Três prêmios: melhor roteiro original,
melhor ator e melhor atriz.
Quando o casal prodígio subiu no palco, Quiroga saiu
do evento enfurecido. No dia seguinte retirou todas as críti-
cas que tinha publicado e escreveu um convite pedindo mil
desculpas, perguntando se não queriam trabalhar com ele
novamente. A resposta dos dois, creio que o leitor pode adi-
vinhar.
Mas o que Ernani Quiroga não sabia é que grande par-
te do sucesso do filme foi por causa das críticas, que deixa-
ram os dois famosos na internet. Eles receberam ajuda de
alguns patrocinadores para fazer o filme num prazo curtís-
simo. Agora depois de tudo, tanto Guilherme quanto Alice
não têm nenhuma dificuldade em arranjar trabalho. Ouvi fa-
lar que o Quiroga foi fazer filmes no Japão, eu acho que lá
talvez seus enredos mirabolantes façam sucesso (Talvez!).
O Guilherme me contou essa história há alguns anos e
meses depois mandou uma cópia do filme num envelope. Eu
sempre conto e reconto para a minha namorada, porque ela
acha muito “romântica”. Mas o filme em si é ótimo em todos
os sentidos. Agora deu saudade mesmo. Quando a Rute che-
gar, vou perguntar se ela quer assistir mais uma vez.

24
Shureken, o yokai da vingança
Parte 1

Saori saiu da casa de telhado arcado com determina-


ção em seus olhos, “por nada vou deixar de pensar na car-
reira, ser modelo é tudo, tudo, tudo que eu quero pra mim.
Nasci pra isso, kuso! Velha rabugenta, sabe nada da vida,
sabe nada de correr atrás do sucesso, essa é uma oportunida-
de que vem só uma vez... Nada vai me fazer parar! Nada!”
O ruído daquele pensamento era visível em cada neu-
rônio estufado de raiva. Saori sabia o perigo que estava cor-
rendo, dirigindo enfurecida em uma das avenidas mais mo-
vimentadas de São Paulo. Mas com certeza ela o ignorava,
ou talvez seu subconsciente estivesse pedindo para que ca-
ísse mesmo embaixo de um caminhão e acabasse tudo ali...
Depois de incrivelmente descer ilesa de sua motoci-
cleta vermelha, ela avistou na calçada um edifício de uns
três andares, sujo e mal rebocado. A porta da frente estava
aberta. O porteiro não perguntou nada, pois estava acostu-
mado com a entrada frequente de moças grávidas naquele
lugar. Na segunda porta do 2° andar, estava escrito Dr. Vi-
cente Scarpa, depois das três batidas na porta, o próprio dou-
tor apareceu para cumprimentá-la, no fundo da sala havia
um gato persa, sentado no sofá.
– Olá. Sou o Dr. Vicente.
– Eu já percebi.
– Deve ser a senhorita Saori Moto, presumo? – Disse
ele.
– Sim.
– Mas você é muito jovem!

27
Filipe Martins de Lellis

– Sou jovem, mas de maior.


– Tem certeza? Essa é uma decisão que não tem volta.
– Doutor, se eu não tivesse não teria vindo...
– Vamos entrando, então. – Disse ele, pegando alguns
remédios na mesa. – Esse procedimento pode doer um pouco...
– Estou pronta.
A dor foi confirmada pelos gritos histéricos de Saori, três
minutos depois do aborto começar.

Parte 2

A velha Videl Moto estava encharcada em lágrimas por


causa da atitude da neta. Essa geração do novo mundo – pensa-
va ela – Minha filha já pensava diferente, mas tinha boa índole,
diferente da Saori, onde já se viu! Isso não é digno, não é dig-
no em nenhuma religião, qualquer um condenaria, até os mais
liberais. Aposto que a antiga religião também seria contra, a
minha verdadeira religião, aquela que eu fui proibida de seguir.

ó yokai1 do céu,
ó yokai da lua,
se ele deve viver ou morrer,
só cabe a você escolher,
essa é uma escolha só sua.

E dizendo isso, a velha se deitou para tentar adormecer e


esquecer o desgosto que estava passando. Pedia que realmente
o yokai do céu ouvisse seu pedido e salvasse a criança. Mas
acontece que o yokai do céu é muito ocupado, pois tem muitas
responsabilidades. E quem estava na escuta naquele momento
era Shureken, o yokai da vingança, e com seu incrível senso de
humor ele tratou de fazer alguma coisa... Que sádico...

1 - Yōkai (妖怪, lit. demônio, espírito, ou monstro), também escrito como


youkai, é uma classe de criaturas sobrenaturais do folclore japonês.

28
Histórias de um coração sombrio

Parte 3

No edifício da clínica clandestina o doutor estava dan-


do um fim nos restos do feto retirado. Guardou tudo num
saco preto que jogaria na ponte mais tarde. Enquanto toma-
va banho ouviu uns barulhos de alguém revirando plástico,
achou que podia ser o gato. Saiu do box e teve um arrepio.
Havia um menino oriental, com cabelo cogumelo e
pele amarela, estava nu em cima do sofá. Sem fôlego, ele
olhou para o lado e viu seu gato estripado no canto da sala.
O menino então sorriu, mostrando os dentes manchados de
sangue e saltou pra cima dele.

Na manhã posterior, Saori foi à clínica para acertar o paga-


mento com o doutor. Bateu na porta várias vezes, mas nin-
guém atendeu. Pressionou a maçaneta e a porta abriu. A vi-
são que teve foi assustadora, o corpo de Vicente Scarpa jazia
no chão, mutilado e com a cabeça parcialmente devorada.
Saori se curvou para vomitar, deu um grito e saiu correndo.
Avisou o porteiro do que havia acontecido e saiu de lá de-
pressa, sabia que se o assassinato fosse noticiado, a clínica
seria descoberta e os clientes também. Além de responder
processo, isso comprometeria sua carreira e suas viagens po-
deriam ser até suspendidas. Ai, ai, ai...

Parte 4

Videl Moto conseguiu dormir, embora teria sido me-


lhor se tivesse ficado acordada, teve vários pesadelos, uns
mostrando ela fazendo um aborto de seus filhos, outro sobre
uma modelo com o coração retirado e o último, o qual ela se
lembrava claramente.

29
Filipe Martins de Lellis

Ela estava na época da Segunda Guerra Mundial e


ainda era uma menina, aviões atiravam bombas, pessoas gri-
tavam. Então seu pai apareceu com a farda dos kamikazes
japoneses e disse:
– Videl, está tudo certo... Ele deu um jeito pra você,
ele me contou, Saori já foi detida, a honra da família está
reestabelecida.
– O quê?
– Ele a matou.
– Quem?
– O espírito, o yokai.
Atrás de seu pai, ela avistou um velho senhor oriental
com um daqueles trajes cheios de botões. Ele tinha cheiro
de fumo, estava com as mãos dentro das mangas e com os
olhos fechados...
– Oishikunai desu, oishikunai desu, shonen....
– Que garoto?
– Anata no mago. – E soltou uma risada aterrorizante,
antes de seu espectro avançar por cima de Videl, que caiu da
cama assustada.
Desesperada, acreditando cegamente que o sonho era
real, a velha pegou seu automóvel e partiu para o apartamen-
to da neta. Mesmo brigadas, a segurança estava acima de
tudo. Precisava avisá-la, ela estava correndo risco de vida.
Em antigas memórias, a senhora lembrou-se de alguns con-
tos que ouvia quando ainda era criança no Japão, todos aca-
bavam mal, ainda mais quando se colocavam yokais para
interferir na vida alheia. E ali estava ela, se culpando pela
menção ao nome do yokai do céu. Nem sempre invocações
davam certo, às vezes o espírito errado era invocado.
Minutos depois, subiu as escadas em desespero. A
porta estava fechada, mas ao forçar a maçaneta ela se abriu.
Olhou a sala de estar, gritou o nome de Saori, mas ninguém
respondeu. Procurou na cozinha, no banheiro e nada. Estra-

30
Histórias de um coração sombrio

nho ela deixar o apartamento aberto – pensou Videl – Mas


ainda bem que não aconteceu nada. Mais calma, ela se sen-
tou no sofá e suspirou de alívio, acalmando a respiração.
Tranquilamente, observando o tapete, ela viu uma pe-
quena mancha de sangue. Sentiu de repente um cheiro de
tripa. Virou a cabeça para cima. O corpo sem roupa de Saori
estava colado no teto e as gotas de sangue eram seguradas
por alguma força sobrenatural. Abriu a boca para gritar e
então avistou o menino. Um menino oriental se segurava nas
pás do ventilador. Ele olhou Videl e a encarou diretamente,
abriu a boca e mostrou os dentes, cheios de marcas averme-
lhadas. Ah, que sorriso sádico...
E então ele pulou.

31
30
As loucuras da tia Kelly
A coisa mais antiga que lembro da Tia Kelly é de uma
vez que ela apareceu vestida de Papai Noel lá em casa, em
Setembro de 1999. Distribuindo presente para todo mun-
do, com a bolsa cheia de pães e panetones. A coisa mais
estranha naquilo tudo foi que ninguém falou para ela que o
Natal era só em dezembro. Fiquei pensando comigo mes-
mo, todos já devem estar acostumados com as loucuras da
tia Kelly, só pode. Mas é uma lembrança muito boa que eu
tenho dela, cantando pela casa: “Deixei meu sapatinho na
janela do quintal, Papai Noel deixou meu presente de Na-
tal”, girando e dançando alegremente. Tempo bom aquele!
Tia Kelly era a madrinha da minha irmã, ela nunca
esquecia de presentear sua afilhada. Mas o presente rara-
mente era dado no dia certo, ou era antes ou depois. En-
graçado foi que minha irmã recebeu o anel de debutante na
sua festa de 16 anos. Pequena confusão da tia Kelly, nada
demais...
Mas a tia era uma pessoa muito alegre e prestativa.
Se dava bem com todo mundo, as pessoas ignoravam seus
erros grotescos. Posso dizer que ela tinha uma mão exce-
lente pra cozinha, cozinheira de mão cheia, vocês não tem
ideia. Só quem conhecia os pratos dela pode falar.
A única pessoa que gostava da curta memória da tia
Kelly era o tio Diego, ela brigava com ele e logo se esque-
cia da briga. O aniversário de casamento ela nunca apren-
deu que dia era, por isso ele comprava o presente o dia que
queria. Quando ele pedia alguma coisa, era só dizer: “Por
favor, este é o mês do meu aniversário.” Tia Kelly jamais
guardou o mês do aniversário do tio Diego.

33
Filipe Martins de Lellis

Lembrei agora de outra loucura dela. No dia do meu


aniversário de 17 anos, minha tia me deu de presente uma
entrada para uma boate +18. Isso é lá presente que se dê ao
sobrinho? Fora que esse bilhete era inútil, porque eu estava
fazendo 17! Será que a tia Kelly tinha problemas de memó-
ria ou fazia tudo isso por piada?
A verdade é que ela nunca decorou o próprio aniversá-
rio. Minha mãe, Dona Vanda, disse que o aniversário da tia
Kelly era dia 16 de março. Nunca havia perguntado a tia o
dia de seu aniversário. Agora, há poucos meses, quando ela
estava bem mal no hospital, eu perguntei.
– Olá, tia Kelly. Está melhor?
– Agora que você está aqui, Arthur, eu estou.
– Eu me inscrevi para doar sangue. Para a sua cirurgia.
É hoje não é? Dia 16 de março.
– É.
– Curioso, não acha? Tomara que não aconteça, mas
seria curioso se a senhora morresse no dia de seu aniversá-
rio...
– Meu filho, meu aniversário é dia 19 de junho!
Foram as últimas palavras que ouvi da tia Kelly. Antes
da enfermeira me correr do quarto, desejei boa sorte para
a tia, mas infelizmente ela não teve. Seu velório e enterro
foram no dia posterior, na lápide eu pude ver:

Kelly Souza Nunes


Nascimento 16/03/1964
Morte 16/03/2016
Descanse em paz.

Desculpe, mas não posso continuar. Minhas memórias


sobre a tia se encerram aqui. Era pra ter encerrado antes e
omitido essa parte do enterro... Não consigo conter as lágri-
mas... Chega... Fim.

34
Os investimentos de Aurélio Steiner
Lembro como se fosse ontem da manhã nublada e es-
cura em que Lauro Würdig apareceu no meu escritório. O
sujeito aparentava ter uns 40 anos, era um pouco gorducho,
usava uma blusa de lã verde musgo, um óculos e uma boina
marrom. Ele parecia estar cansado, com o coração saindo
pela boca, alguma coisa o incomodava, fazendo-o suar de
preocupação.
– Senhor. Ah? Doutor. Dou...tor Pedro Bender, que
bom que finalmente encontrei o senhor em casa!
– Estava na Argentina, de férias... Mas quem é você?
E para quê precisaria dos meus serviços?
– Eu sou Lauro Würdig. – disse ele, secando o suor
que escorria da testa.
O homem deu uma olhada na janela do escritório,
como se estivesse sendo perseguido e então continuou:
– Eu queria que o senhor analisasse uns documentos
de espólio e testamento de Aurélio Steiner.
– AURÉLIO STEINER! ELE MORREU ENTÃO,
nem fiquei sabendo, era um homem nobre...
– Ele era meu tio, tio emprestado na verdade, pois era,
quer dizer, foi casado com a minha tia Lisa.
– Então você que ficou com toda a fortuna dele e a
fábrica de perfumes também, que sujeito de sorte! Quer con-
tabilizar tudo?
– Não exatamente, eu quero mesmo é ver se não tem
nada faltando.
– Primeiramente, trouxe?
– O quê?
– Os documentos de espólio e testamento.

37
Filipe Martins de Lellis

– Não. Na verdade eu queria que o senhor fosse até a


propriedade, na casa de campo do tio Aurélio e fizesse parte da
investigação.
– Não costumo fazer esse tipo de trabalho, sou advoga-
do, não policial.
Ele me olhou com uma cara preocupada, depois foi mu-
dando para uma certa decepção, mas logo retrucou:
– Eu ouvi dizer que o senhor era bom porque conseguiu
livrar o governador de Alto Novo da cadeia, mas agora acho
que não é grande coisa.
– Já pensou se o senhor conseguisse encontrar a herança
do tio Aurélio, além de famoso, poderia sobrar uma boa quantia
pro advogado? O que me diz?
– Eu nunca recuso dinheiro e o senhor conseguiu aguçar
minha curiosidade agora. Você disse que não encontraram a he-
rança dele?
– É uma longa história, no caminho te explico. Então
aceita a causa?
– Eu estava brincando, advogado em começo de carreira
aceita qualquer coisa, já estava cansado dos ares da Argentina.
Vou pegar minhas coisas.
Ainda não tinha desfeito as malas, estavam cheias de
roupas, livros e armas Argentinas. Quase esqueci da minha car-
teira de cigarros, isso sim seria uma tragédia. Depois de sair
pela porta e trancá-la, avistei o carro do Sr. Lauro Würdig, um
Opala 74 preto.
– Desculpe senhor, não recebi a herança, nem troquei de
carro ainda.
– E por que trocar?
Ele sorriu e virou a chave, então a máquina deu uma ar-
rancada violenta seguindo com força pela estrada asfaltada.
Porém, mais adiante o trecho mudou, saindo numa estra-
da de chão onde tinha uma velha ponte de madeira. Enquanto o
carro atravessava, sentimos o balanço da estrutura.

38
Histórias de um coração sombrio

– Esta ponte é um perigo. O governo a ignora há muitos


anos, só depois que ela cair e fazer muito estrago é que o prefei-
to vai lembrar que ela existe.
A casa que outrora pertencera a Aurélio Steiner era mui-
to peculiar; absurdamente grande, cinco andares e toda branca.
Parecia o laboratório que o Dr. Frankenstein teria construído, se
ele tivesse tido tempo.
Eu e Lauro passamos o portão, ele fumava um cigarro
alemão enquanto eu observava a calmaria daquele lugar. Minha
barriga roncou quebrando o silêncio.
– Não se preocupe, Dr. Pedro! Logo que entrarmos já
pego umas coisas pra um café.
– Seria muito bom... aí você me explica melhor o caso,
Sr. Würdig.
– Ah, falta só fumar mais um pra terminar a carteira, vai
indo na frente que eu já vou. A porta tá aberta.
Pensei comigo, como esse Würdig é viciado! Eu fumei
dois de manhã e já estou satisfeito por hoje. As minhas carteiras
duram umas duas semanas, mais ou menos.
Entrei na casa, vi uma sala toda adornada de madeira,
com vários detalhes nos cantos. Na sala havia uns cinco sofás
enormes e uma lareira, mas o estranho é que não tinha televi-
são, receptor, nem videogame. Um quadro com um diploma era
o que tinha na sala, porém no piso cor de carne, tinha uma coisa
que chamava a atenção: um container de metal do tamanho de
um freezer, com várias travas e um código numérico na frente.
A primeira coisa que me passou pela cabeça quando vi
aquela trava numérica foi a lembrança de meu pai, Patrício Ben-
der, que também fora advogado, mas nunca lucrava muito nas
causas por causa da mania de querer ser justo. Ele contava que
quando criança gostava de ficar girando as travas numéricas
das bicicletas e das malas perdidas. Depois de um longo tempo
fazendo isso, ele descobriu que dava pra ouvir as engrenagens
e desvendar o código numérico sem conhecê-lo.

39
Filipe Martins de Lellis

Foi isso que eu fiz, me aproximei do container gigan-


te (bem louco mesmo, sempre fui meio impulsivo, se não
fosse não seria fumante) e ergui minha mão encostando na
trava gelada, logo depois de arrumar meu cabelo castanho
liso mais uma vez.
Verifiquei a casa da centena aproximando meu ouvi-
do, nos cinco primeiros dígitos (0, 1, 2, 3, 4) a trava não fez
barulho nenhum. Mas no número cinco, percebi um zunido
bem baixo que me fez constatar que a combinação começa-
va com cinco. Continuando o processo descobri também que
a casa da dezena era 4, então fui testar as dez combinações
possíveis para a casa da unidade, mas já no 2 a trava fez um
barulho e abriu. Eu ergui meu braço para abrir o container,
mas fui interrompido por uma voz.
– Mãos pro alto! E não se mexa! – Disse uma voz
feminina arrogante.
Me virei para trás e vi uma mulher, uma mulher ab-
surdamente bonita. Ela devia medir 1,70 mais ou menos, era
encorpada, tinha uma pele bronzeada, um cabelo grande, ne-
gro e cacheado, olhos verdes que pareciam duas azeitonas
e estava usando uma jaqueta de couro, jeans preto e botas.
A expressão no rosto me fez lembrar a da rainha Cleópatra
num filme antigo que vi uma vez na aula de história.
– QUEM É VOCÊ? POR QUE ESTAVA MEXENDO
NO CONTAINER? SEU MALUCO! PERDI TUDO QUE
EU ESTAVA FAZENDO!
– Calma, moça! Eu sou o Dr. Pedro Bender, o Sr. Wür-
dig que me trouxe aqui para ajudar com a papelada.
– Ele disse pra você chegar mexendo no container?
– Não.
– Nossa, como você tem bafo de cigarro! Que nojo! –
Disse ela virando a cara pro lado.
– Credo! Já chega xingando na cara, assim.
– Você mereceu.

40
Histórias de um coração sombrio

– Mas, moça, eu consegui destrancar a trava.


– Conseguiu? Como?
– Eu tenho meus truques. – Falei rindo pra ela.
– Seu idiota! Sai daí que eu quero abrir então.
A moça se aproximou do container, deu uma olhada
e foi levantar a tampa, mas o zíper de sua jaqueta ficou pre-
so na trava. Ela espraguejou, deu um passo pra trás e então
abriu a jaqueta, por baixo estava usando um casaco bege,
que tinha uma fita de identificação: Tenente P. B. Mattos.
– Você é da polícia então, agora vi porque é tão mal
educada.
– Mas qual é o seu primeiro nome? Pra eu não ficar te
chamando de moça.
– Paula.
– Pelo menos tem um nome bonito, e o B o que é?
– Não é da sua conta, idiota! – Ela terminou de falar e
levantou a tampa do container, eu me aproximei para ver o
que tinha lá dentro.
A maior parte do recipiente estava vazio, bem no fun-
do havia alguns objetos. Um suéter bordô, um monte de
livros de biologia, engenharia genética e biomedicina, um
boneco de plástico de um tigre-dente-de-sabre e uma sacola
de pano, bem no fundo.
– Que coisas valiosas pra se guardar num baú. – Eu
falei.
– Não é valioso pra você! Mas pra ele devia ser.
Então Lauro Würdig entrou na sala, parecia mais cal-
mo agora, depois de ter terminado a carteira.
– Ah, Dr. Bender, essa é a Tenente Paula Mattos, a
responsável pela investigação.
– Ah, prazer em conhecê-la!
– O desprazer é meu! – Disse ela fazendo uma cara
feia.
– Conseguiu abrir o container, Tenente Paula?

41
Filipe Martins de Lellis

– Não, mas seu amigo aí conseguiu, não sei como.


– Ótimo, abrimos depois do café, agora vamos para
a cozinha que eu estou morrendo de fome. – Disse Würdig.
Enquanto comia um sanduíche de presunto, queijo e
maionese, Lauro abriu a boca para explicar o motivo de es-
tarmos ali.
– Elisa Würdig era minha única tia. Depois que meus
pais morreram em um acidente de carro, ela me levou para
morar em sua casa, eu tinha 14 anos. Quando completei 18,
fui morar na capital para estudar Filosofia. Quando tornei a
visitá-la, anos depois, descobri que tinha se casado com um
milionário chamado Aurélio Steiner, um cientista formado
em biomedicina, com cabelos longos e barbas longas ruivas,
baixo, pálido e com olheiras. Steiner herdara uma grande
empresa, a fábrica de perfumes Steiner. Porém ele jamais pi-
sava lá, deixava que administrassem por ele, se contentando
com os altos lucros que caíam em sua conta todo mês.
– As poucas vezes que vi o “tio” Aurélio, ele apenas
me cumprimentou e quase nunca falou nada, era muito es-
tranho. Certa vez eu perguntei a tia Lisa como conheceu o
Steiner, ela disse que estava dando uma palestra sobre ci-
ências (era professora) e ele estava lá como representante
e benfeitor da instituição. Minha tia contou que o tio pu-
xou assunto sobre paleontologia, ela então disse que possuía
uma presa de tigre dente-de-sabre que encontrara uma vez
por acaso em um banhado e nunca o doara para nenhum
museu, ele então se interessou na hora.
– Passaram mais de vinte anos casados, minha tia ja-
mais reclamava dele, porém uns cinco anos atrás, ela co-
mentou de como ele parecia muito distante e concentrado
demais em suas pesquisas científicas, mas achava que Auré-
lio não tinha uma amante, era só o trabalho mesmo. Poucos
dias depois minha tia Lisa morreu de câncer de estômago.
Agora, uma semana atrás eu me encontrava endividado, dí-

42
Histórias de um coração sombrio

vida de jogo e empréstimo, num valor de mais ou menos


R$ 750.000,00, pois eu não consegui administrar direito as
mesadas que ganhei. Quando fui informado do falecimen-
to do tio Aurélio, não fiquei contente, mas senti um certo
alívio, só que na hora da papelada o problema apareceu.
– Nenhum dinheiro em conta, nenhum dinheiro em
casa e Empresa Steiner faliu devido as constantes retiradas
de Aurélio alegando ser “um dinheiro para investimento”.
Mas o fato é que nessa casa não tem nada de muito valor e
a herança que eu recebi veio junto com muitas dívidas, que
mesmo que eu vendesse a casa, não daria nem pra quitar
as dívidas do morto, que dirá as minhas. Então, a pergunta
que não quer calar é essa: onde estão os investimentos de
Aurélio Steiner?
– Como Aurélio Steiner morreu? – Perguntei.
– Infarto. A empregada disse que ele estava na sala,
mas ela não lembrava de ter visto ele descer a escada, o
sujeito tava lendo uns papéis e morreu na hora, batendo a
cabeça na mesa. – Respondeu Würdig.
– Isso destrói completamente a possibilidade de as-
salto. – Falei.
– Assalto? Como você é burro! Claro que não, ha-
via muitos seguranças trabalhando aqui! – Falou Tenente
Paula.
– Se ele tinha empregados, como pagava eles, se não
tinha dinheiro em conta? – Retruquei.
– Ele os pagava em dinheiro vivo. – Afirmou ela.
– Que estranho! Não acham que a empregada pode
ter pegado? – Pensei que fazia sentido por um minuto.
– Acho que não, mas ela está sendo observada, qual-
quer coisa cara que ela adquirir nós iremos em cima.
– A casa já foi revistada presumo, nada de dinheiro
ou objeto de valor?
– Nada. – Disse Würdig, desanimado.

43
Filipe Martins de Lellis

– É uma história e tanto, Sr. Lauro Würdig. – Eu dis-


se, me engasgando com um pedaço de biscoito, a Tenente
Paula Mattos riu da minha cara.
Depois disso, fomos abrir o tal container.
– Mas que droga! Achei que o dinheiro poderia estar
aqui! – Disse Lauro Würdig, irritado.
– Não tem mais nada, além dessas quatro coisas. –
Falou Paula.
– Amanhã vamos revistar cada cantinho. Se não tiver
nada, vou entrar com um pedido de rastreamento do nome
dele. Agora já está muito tarde. – Disse Würdig olhando
para a noite lá fora.
Então ouvimos batidas na porta. Era o antigo segu-
rança dizendo que não podia ir embora, pois a ponte tinha
caído. Lauro fez uma careta e disse:
– Com a ponte caída o trajeto muda pra três dias de
viagem, acho melhor passarem a noite.
– Eu já trouxe mala pronta. – Falei rindo.
– Mas é bem capaz que eu vou ficar aqui, tenho que
voltar pra minha casa, HOJE! – Falou a Tenente Paula.
– Você não ouviu o segurança falando? A ponte caiu,
aquela ponte é bem larga e pelos lados é banhado, não tem
como sair.
– SÓ ACREDITO VENDO!
Foi isso que a maluca falou antes de sair de moto de-
terminada a atravessar, o que aconteceu depois foi que ela
tentou passar pelo restinho da ponte que ainda ficava de pé e
despencou dentro do rio, tomando um banho gelado.
Eu e Lauro tivemos que arrumar um cobertor pra tra-
zê-la até a casa, parece que a Tenente Paula não estava tão
acostumada a aventuras. Mais tarde nós três se acomoda-
mos em quartos diferentes, Lauro ficou no quarto maior no
terceiro andar, à direita. Já eu fiquei no segundo andar, à
esquerda e Paula no quarto central no mesmo andar.

44
Histórias de um coração sombrio

Até a meia-noite tudo correu bem, fiquei deitado len-


do um livro do Júlio Cortázar da capa azul, que eu trouxe da
Argentina. Depois de um tempo comecei a fumar na janela,
o quarto era violeta e passava uma sensação muito boa pra
dormir, me deitei e pronto, caí no sono.
Lá pelas três da madrugada ouvi um barulho mui-
to alto. Parecia que alguém estava derrubando as paredes.
Logo depois, os estrondos pararam um pouco, eu pensei en-
tão que poderia ser os ratos do porão. Mas logo continuou
e ainda mais forte. E se fosse alguém tentando arrombar a
casa? Pensei em chamar o Würdig, mas não adiantaria nada.
Ele não devia ter armas, era professor de Filosofia. Apelei
pra Tenente Paula.
Corri na porta dela, bati, bati, e nada. Tentei abrir a
maçaneta, estava trancada. Muito estranho... Dei um pas-
so para trás e pá! Arrombei a porta do quarto da Tenente.
Ela pulou da cama aterrorizada, se jogando contra a parede.
Estava com headphones nos ouvidos, uma arma na mão e
usando um sutiã preto, deixando grande parte de seus seios
à mostra.
– VOCÊ TÁ QUERENDO MORRER! QUE SIGNI-
FICA ISSO, RETARDADO?
– Calma Tenente Paula! Você não ouviu os barulhos?
– Não ouvi barulho nenhum, seu medroso!
Mas então um forte estrondo soou no corredor, fazen-
do a Tenente Paula pular de novo.
– OUVIU AGORA?
– Mas que raios é isso?
A Tenente vestiu um casaco vermelho e saiu comigo
pelo corredor. Estávamos tão assustados que nem pensamos
em chamar o Würdig, só seguimos o barulho. Dava numa
parede que ficava um pouco antes da escada e a batida con-
tinuava. Nessa parede não havia nada, só um quadro do Ro-
bert Hooke.

45
Filipe Martins de Lellis

A Tenente Paula rapidamente arrancou o quadro da


parede, havia um buraco de forma redonda e outro em forma
de animal, aquilo era muito estranho. Notamos então que
havia um pequeno risco na parede indicando que poderia ser
uma porta.
– É uma porta, com certeza. A questão é como abrir?
– Vocês não encontraram nenhuma chave? Desde que
vieram pra cá?
– Não, mas onde está o buraco na fechadura, sabi-
chão?
– Tem razão. – Eu disse contrariado.
– Mas espera. A única coisa que nós encontramos de
diferente foi o container. É claro, o container! Exatamente.
Trás aquela bolsa, lá.
– Mas o Würdig olhou várias vezes e não achou nada.
– Würdig é um bundão!
Ao som de várias batidas e barulhos, eu desci a escada
e fui até a sala buscar as coisas do container, o animal de
plástico e a sacola.
– Tome, espertalhona! Encontre a chave.
Ela começou a chacoalhar aquilo, mas não caiu nada.
Então ela rasgou com a unha e para a nossa surpresa, havia
uma presa enorme entre o algodão que ficava dentro da sa-
cola.
– Será que cabe no buraco?– Disse ela enfiando a pre-
sa na fenda da parede.
Então uma luz verde acendeu no cantinho da suposta
porta.
– Agora até admiro sua inteligência, Tenente. Mas a
porta não abriu ainda.
– Você é muito burro mesmo! – Disse ela colocando
o mini tigre-dente-de-sabre no buraco em forma de animal.
Outra luzinha verde se acendeu e a porta começou a girar,
destacando ainda mais o barulho que vinha lá de dentro.

46
Histórias de um coração sombrio

– Parece que o seu Aurélio gostava de tigres-dente-


-de-sabre.
Logo depois da porta tinha uma pistola, com um tubo
verde e um dardo na ponta, jogada no chão. Porém eu e Pau-
la nem prestamos atenção nela, pois tinha uma coisa muito
mais fantástica lá dentro.
No interior da câmara havia uma cúpula conectada por
um monte de canos em várias máquinas, máquinas bastante
sofisticadas. Dentro da cúpula havia um gramado enorme e
bem em cima, um contador. Paula procurou algum interrup-
tor para ligar a luz daquele lugar e encontrou.
Levamos um baita susto do rugido que se seguiu. Ha-
via um felino maior que um terneiro com presas enormes,
ele era dourado e tinha pintas negras. O fato é que tinha um
tigre-dente-de-sabre vivendo naquela cúpula.
– Não acredito! Será que esses foram os investimentos
do Steiner? Trabalhando em engenharia genética.
A Tenente Paula seguiu para uma escrivaninha lá no
fundo. Mas eu fiquei encarando o bichano através da cúpula,
ele me viu e se aproximou, dando outro rugido e arranhando
o vidro. Eu dei uma risada.
– Eu não acredito que estamos diante de um verda-
deiro tigre-dente-de-sabre pré-histórico. Imagina quanto di-
nheiro vamos ganhar com isso.
– Escuta só, Pedro. Encontrei o diário dele: Cons-
truindo um smilodon através da engenharia genética, por
Aurélio Steiner. Ele realmente reconstruiu o animal, mas
como ele conseguiu a matriz? Bem deve ter sido através da
presa da tia do Würdig.
– Imagina quanto dinheiro poderíamos ganhar, por
esse animal e por esse diário? Cientistas, países, todos mor-
reriam por isso.
– Mas o correto seria doar todo esse material para o
governo. Eles vão saber o que fazer com essas máquinas.

47
Filipe Martins de Lellis

– Ah, governo? Olha só! – Eu disse me aproximando


dos canos pra dar uma olhada na marca da máquina, vi que
era alguma coisa atômica com certeza, por que tinha aquele
símbolo.
– Essas máquinas devem valer milhões, vamos ficar
ricos! – Então eu mexi num cano, mas algo deu errado, um
barulho de gás vazando começou a soar e o tigre não parecia
nada bem dentro da cúpula.
– O QUE VOCÊ FEZ IDIOTA? ELE É UM ANIMAL
DA ERA GLACIAL, TEM QUE SER MANTIDO DEN-
TRO DA CÚPULA!
O tigre parecia bem cansado lá dentro, corria de um
lado para o outro, desesperado.
– Você obstruiu a passagem do ar, vai matar ele sufo-
cado. A não ser que eu... – A Tenente Paula ergueu uma arma
e atirou na cúpula. Não aconteceu nada instantaneamente,
porém depois de uns três segundos, ela se fragmentou em
milhares de floquinhos. Eu e Paula nos escondemos abraça-
dos num cantinho. Já o tigre, para sorte dele, tinha desmaia-
do e fechado os olhos.
– Será que ele tá vivo ainda?
– Se não tiver eu vou te matar! Mas primeiro vamos
chamar o Würdig.
– Tá bom. PAULA, CUIDADO!
– O que é?– Ela se assustou e deixou a arma cair.
O tigre tinha se levantado, parece que ele estava se
adaptando ao ar, se adaptando tão bem que veio correndo
atrás da Tenente Paula, como um gato perseguindo um ca-
mundongo.
– CORRE PAULA! Distrai ele que eu atiro...
– NÃO ATIRA NELE, SEU IMBECIL!
– O que eu faço, então?
– PEGA A ARMA COM DARDO QUE TAVA CAÍ-
DA NA PORTA, RÁPIDO!

48
Histórias de um coração sombrio

Eu me desloquei até a entrada rapidamente e peguei


a pistola com o tubo verde. Quando me virei vi uma cena
linda, a Tenente Paula Mattos correndo do tigre.
– Ainda bem que eu fiz treinamento de corrida pra
ser policial! ATIRA LOGO RETARDADO!
Então eu mirei a pistola bem na cabeça do “tigrinho”,
foi tiro e queda, literalmente. Até ouvi um “obrigada” sair
da boca da Tenente Mattos.
– Temos que dar um nome pra ele, tem que ser um
que comece com ti.
– Que tal Tim?
– Perfeito.
– Agora vamos contar pro Würdig. – Falou ela sem
fôlego.
– O Dr. Pedro Bender tem razão, o melhor pra todos
nós é ficarmos calados, aposto que consigo uns compra-
dores hoje mesmo pela internet, claro que são do mercado
negro. Mas o que importa é o dinheiro. – Disse Würdig,
vendo o tigre adormecido na câmara.
– Eu não vou compactuar com isso, Würdig. Eu vou
contar tudo que encontramos para o governo tomar uma
providência. De repente eles te dão uma bonificação.
– De repente? Não gosto de “de repentes”, quero
essa fortuna toda para mim. Não queria fazer isso Tenente
Paula, não queria mesmo, mas a senhora acha que alguém
ia acreditar na senhora. CALE A BOCA! E SAIA DAQUI!
Aposto que seus próprios colegas não acreditariam nessa
história.
Ela o fitou de uma maneira cruel. E depois olhou pra
mim não com uma cara de raiva, mas sim com cara de de-
sapontamento.
– E você Pedro, não vai falar nada?
– Eu não posso trair ele, o que iriam pensar de um
advogado que vai contra os interesses do cliente?

49
Filipe Martins de Lellis

– Iriam pensar que você tem ética, mas eu vejo que você
não tem. Adeus duas-caras!
Ela saiu dali furiosa e eu fiquei pensando se tinha feito
a escolha certa. Se valia a pena mesmo todo aquele dinheiro.
Horas mais tarde quando eu estava fumando no jardim, Lau-
ro Würdig me mostrou o recibo, tudo indicava que ele tinha
vendido as máquinas, o diário e a experiência (no caso o Tim)
para um cientista espanhol, financiado por russos, chamado
Joel Martinez, que viria buscar o equipamento dali a três dias,
dois dias depois da audiência.
Quando fui dormir, finalmente caiu a ficha da burrice
que eu tinha feito. Meu pai jamais faria a mesma coisa, com
sua mania de querer ser justo. Senti que eu deveria consertar
tudo aquilo, mas como? Ah, mas que pena! Que pena que eu
não tenho a inteligência da Tenente Paula Mattos.
Acordei de madrugada para fumar no jardim e então vi
o container. A ideia começou a se formular na minha cabeça,
talvez daria certo porque o senhor Würdig é muito distraído,
também pudera, professor de Filosofia.
Pela manhã, convenci o Sr. Lauro Würdig a levar o con-
tainer para a audiência. Ele estranhou muito o peso da caixa,
mas não quis conferir, só chamou alguns ex-funcionários que
estavam lá por perto para ajudar a carregar. O Würdig estava
muito feliz, finalmente iria se livrar das dívidas. Estava muito
bem vestido aquele dia, com um paletó e um óculos mais novo.
Depois de cruzarmos a ponte que já havia sido conserta-
da e rodar mais de 200 km, chegamos ao cartório onde ia acon-
tecer a audiência do espólio do testamento de Aurélio Steiner.
Além do Sr. Lauro, havia também alguns primos em 3° grau
reclamando herança do morto.
Na hora que tive que falar, eu comecei e fui até o fim.
– Hoje eu não estou aqui defendendo os interesses de
Lauro Würdig, mas sim os de Aurélio Steiner e do povo bra-
sileiro.

50
Histórias de um coração sombrio

– COMO ASSIM? – Disse Würdig assustado.


– Aurélio Steiner foi um grande cientista, trabalhava
em sigilo, mas sempre deixou claro que queria que suas des-
cobertas fossem de todos. Aqui, senhores, está o diário dele,
com todas as suas descobertas.
Os policiais e o juiz olharam surpresos para Lauro, e
então ele disse:
– Mas eu não cometi crime nenhum, foi só falta de
ética.
– Não cometeu? E se eu dissesse, senhores, que Lauro
Würdig está realizando comércio de equipamentos atômi-
cos.
– Óhhhhh! – Gritaram todas as pessoas do recinto.
– É verdade! Vão a casa dele conferir, olhem na pare-
de do segundo corredor.
– Seu filho da mãe!
– E como se não bastasse isso, ele também está metido
no tráfico de animais! -Depois de falar isso, eu abri o contai-
ner, onde estava o corpo do tigre adormecido.
Todas as pessoas se assustaram, alguns dos supostos
primos pegaram os celulares e tiraram foto. Logo depois o
resultado saiu e Lauro Würdig recebeu um bocado de di-
nheiro, porém o laboratório, o Tim e o diário foram confis-
cados pelo governo. Fora que ele recebeu uma pena de cinco
anos pelas acusações cometidas.
Depois da audiência, Lauro falou de longe, pois os
policiais não deixavam ele se aproximar.
– Eu só não sei o que você ganhou com isso? Dinheiro
não teve nenhum, nem parte da herança. Além de que agora
sua carreira como advogado acabou.
– Não me importo, sabe... Tô pensando seriamente em
seguir a carreira policial.
Então Würdig foi levado a contragosto pelos tiras.
Dias depois eu vi a foto do tigre no jornal, com certeza foi

51
Filipe Martins de Lellis

obra dos primos que venderam as fotos por um dinheirinho.


Fiquei sabendo que o governo tinha construído um labora-
tório onde as máquinas tinham sido montadas e tudo estava
sendo usado para pesquisas em engenharia genética. O mas-
cote do Instituto Aurélio Steiner era o Tim.
No entanto, o que Lauro Würdig tinha dito era ver-
dade, eu não tinha recebido dinheiro pela causa e também
perdi toda a minha reputação como advogado, mas numa
coisa ele estava errado, eu tinha ganhado alguma coisa sim.
Pela tarde fui até a delegacia, perguntar quando have-
ria concursos para novos milícias. Depois de conversar com
o delegado, dei uma olhada no mural da delegacia. Num car-
tãozinho bem no canto estava escrito:

Tenente Paula Mattos


Investigação Particular
993862544

– Alô, aqui é o Pedro Bender. Viu a matéria do Tim


no jornal?
– Vi sim, eu sabia que você não era um caso perdido.
Queria te ligar, mas não sabia o número. – Ela disse rindo.
– Mas onde você tá, Paula?
– Estou em uma outra investigação de herança na ci-
dade de Rio Largo. No edifício São Domingos, 458 – Ave-
nida Tancredo Neves.
– Ótimo, vou arrumar minhas coisas e vou pra aí. Es-
tou pensando em seguir a carreira policial.
– Depois daquela audiência, só isso mesmo.
– Mas você não falou o número do quarto.
– Não lembro agora. Chega na recepção e pergunta
pelo quarto de Paula Berenice Mattos.
– Berenice? Mas você tem boas razões pra esconder o
B. do nome, hein!

52
53
Senhorita solitária
“O desprezo é a forma mais sutil de vingança.”
Baltasar Morales

Eu acho que não se deve humilhar ninguém, porque


você nunca sabe se vai precisar de ajuda amanhã. Quer di-
zer, o que se ganha rebaixando os outros? Isso parece coisa
de quem sabe que é inferior e necessita provar ser melhor do
que a sua “auto-opinião”.
Hoje, se estou numa situação relativamente boa, é
porque batalhei por isso. Ninguém ganha nada sem esforço,
ainda mais se você é um cantor. É uma estrada e tanto o ca-
minho do sucesso e apenas recentemente que cheguei perto.
Mas é muito difícil e estressante. Para que talvez dê
certo, você precisa ter um conjunto de fatores a seu favor.
Não vou citar quais são, porque me chamariam de precon-
ceituoso. Mas sempre que me perguntam sobre minha car-
reira, eu falo que sou um cara de sorte.
Uma coisa que preciso dizer é que fiz faculdade. Mi-
nha mãe nunca me deixou cair na vida em nome da música.
Ela dizia que a música era uma coisa à parte e eu precisava
me garantir de alguma forma. Deste modo, fui obrigado a
cursar quatro anos de jornalismo na UDBL. Até que foi inte-
ressante, não posso dizer que foi um curso totalmente ruim.
A parte didática era legal, mas eu tinha uns problemas com
alguns colegas.
Eu posso resumir esses problemas com os colegas em
um nome: Monique Beaumont Lamartine, também conheci-
da como “Moninha” entre os mais chegados. A “Moninha”

55
Filipe Martins de Lellis

era a líder da nossa turma. Como se não bastasse, ela era


filha do Sr. Leonardo Cardoso Lamartine, dono da rede de
televisão “Planetária”, uma das maiores do país.
Imagine como essa garota se sentia na turma. Ela se
sentia como o filho do presidente estudando com diploma-
tas. Estava acima de tudo e de todos. Discutia com os pro-
fessores, não importava se tinha razão ou não.
Minha situação financeira não era muito boa. Então,
quando a turma resolvia fazer alguma coisa absurdamente
cara, eu tinha de ir saindo fora. O pior era que “Moninha”
não era o que podemos chamar de um poço de inteligência,
ela se escorava muito nos outros e na maioria das vezes em
seu dinheiro.
– Oi Fred.
– Oi Monique.
– Eu ouvi dizer que tinha um trabalho pra hoje, queri-
do. Você podia passar pra mim? – Disse ela com um brilho
nos olhos cinza.
– Não. Eu tive um trabalhão pra fazer tudo.
– Achei que não me daria de graça. Tome cinquenta
reais!
– Eu disse que não vou te dar, garota!
Ela riu e disse:
– Eu acho que devia ser mais compreensivo, Fredi-
nho... Meu pai é dono da “Planetária” e tem contatos em
vários outros ramos de entretenimento. Eu acho que você
não iria querer virar inimigo da família Lamartine. Amanhã
ou depois está batendo na nossa porta pedindo emprego.
– Eu preferia trabalhar de Gari a ter que pedir empre-
go pro seu pai naquela maldita empresa manipuladora!
– Ótimo, você que sabe... Hum!
Isso não foi nada comparado as outras coisas que ela
me fez. Convenceu o pai a fazer uma reportagem na rua da
minha casa, só para todos os meus colegas me verem na fa-

56
Histórias de um coração sombrio

vela. Ficava me provocando durante as aulas. Horas e mais


horas falando em voz alta suas excentricidades, gato siamês
de 600 dólares, égua importada da Grécia de 12 mil dólares.
Enchia a cara o final de semana e chegava no dia da aula
querendo ajuda.
Ela zombava das pessoas que estudavam. Zombava
das pessoas que se contentavam com a jornada de trabalho
por um ou dois salários mínimos. Zombava de tudo, esse era
o seu hobbie eu acho.
Aconteceu que no último ano da faculdade as coisas
começaram a mudar. A “Planetária” começou a ser acusada
de difamação e o novo presidente eleito, fora justamente o
contrário ao que a “Planetária” apoiava. A empresa teve de
devolver muito dinheiro dado por políticos. O Sr. Leonardo
Lamartine estava envolvido em muitos escândalos e acabou
sendo delatado como chefe de um esquema bilionário. Além
disso tudo, a mãe de Monique ainda estava traindo o mari-
do. O que culminou no suicídio do Sr. Leonardo em maio
daquele ano.
Aconteceu que a “Moninha” parou de ir às aulas.
Quando ia, era ignorada pelo seu grupinho, para ver que
aquelas pessoas não gostavam dela, só queriam se aproveitar
para conseguir uma ponta na “Planetária”. “Moninha” pas-
sou de “Senhorita da Planetária” à “Senhorita Solitária”.
Enfim, ela acabou desistindo do curso e sumindo, não
sei que rumo ela tomou. Mas quem diria que isso iria acon-
tecer. Por isso que eu digo, não se deve humilhar ninguém,
porque você nunca sabe se não vai precisar de ajuda amanhã.
Agora que terminei essa entrevista, vou pedir alguma
coisa, deve ter alguma bebida interessante nesse hotel. “Alô,
me tragam uma Vodka, apartamento 314, nome Fred Fran-
cis”. Uma voz bastante familiar falou: “Claro, só um minuto
e já subo.” Ué, será que tenho alguma conhecida trabalhan-
do nesse hotel?

57
Filipe Martins de Lellis

Depois de uns minutos, ouvi o barulho da campainha.


A moça havia trazido o carrinho com a bebida. Ela esta-
va usando uma roupa preta e branca de camareira. Ficava
olhando fixamente para baixo. Peguei minha carteira para
dar a gorjeta pra moça. Quando vi seus olhos cinza arrogan-
tes, reconheci a garota na hora.
–“Moninha”!
– Fredinho? Não sabia que o famoso cantor Fred
Francis era você...
– Sou eu, não lembra? Frederico Francisco Silva.
Você fez tanta piada com esse nome.
– Ah é, desculpe tudo aquilo, Fred. Eu não sabia de
nada...
– Tudo bem, agora está sentindo na pele.
– É, eu tô nesse emprego temporário de camareira pra
conseguir me manter e terminar a faculdade. Mas eu queria
conseguir um emprego fixo.
– Se eu souber de algum, te aviso com certeza, “Mo-
ninha”. Tchau.
– Tchau.
Em meus pensamentos decidi ajudar a garota, mas não
sem pregar uma peça antes. Desci o corredor rápido com um
jornal na mão. Falei bem na hora que ela voltou para falar
com as colegas.
– “Moninha”, estão abrindo uma seleção pra Gari,
porque você não se inscreve?
As outras camareiras riram e os garçons também.
“Moninha” se virou, me fuzilando mais uma vez com aque-
les olhos cinza.

58
A verdadeira história do flautista
de Hamelin
Certo dia, uma menininha avistou um rato perambu-
lando pelas ruas da cidade de Geldville. Era um rato co-
mum; cinzento, gorducho e dentuço. Em sua cabeça, a ga-
rotinha pensava que um roedor andando pela rua era algo
normal, rotineiro, nada de importante. Obviamente, ela ti-
nha toda a razão. Quem iria se assustar com “um” rato na
rua? O que ela não sabia, era que aquilo era um prelúdio,
um prelúdio do que estava por vir...
Em menos de duas semanas a cidade inteira se infes-
tou de roedores. Eles se espalharam por cada canto aper-
tadinho e sujo. O cheiro dos animais havia se tornado o
cheiro das pessoas. E agora seria mais instrutivo se a cida-
de se apresentasse aos viajantes como Mausville, a cidade
dos ratos.
A morte chegou na cidade trazida pelas pestes e pela
leptospirose. Ninguém mais confiava na comida, os mais
ricos começaram a se mudar. E mesmo os pobres estavam
pensando em desistir daquele lugar, aceitando a vitória dos
ratos, enfim.
O administrador do local, Rufus, era o mais indigna-
do, trabalhara durante três anos em seu mandato para levan-
tar a moral e a economia de Geldville. Para em duas sema-
nas tudo ser arruinado por um bando de ratos. Todos os seus
pactos econômicos com outras cidades haviam sido anula-
dos, pois nenhuma cidade queria ter contato com os animais.
Rufus fez o que pôde para expulsar as feras. Mas
nada funcionava, nem veneno, nem benzedura, nem mes-

61
Filipe Martins de Lellis

mo bruxaria. E parecia que a população de roedores só


aumentava a cada dia. Aconteceu que o administrador,
num momento de desespero, prometeu pagar 500 moedas
de ouro, uma quantia que garantiria boa vida por um bom
tempo, à alguém que conseguisse livrar a cidade da praga.
Vários homens tentaram coisas absurdas. Alguns
tentaram novas receitas de veneno, outros acreditavam que
os bichos vinham do esgoto principal, mas mesmo depois
de incinerarem o esgoto, ainda havia rato saindo pelo la-
drão. E o episódio do incêndio só fez com que eles ficas-
sem mais bravos, invadindo as casas das pessoas e assus-
tando a todos.
Um dia chegou um rapaz pobre em Geldville, que
viera a cavalo da cidade de Hamelin. Ele se chamava Hans
e disse ter partido na esperança de salvar a vila. Perguntou
a Rufus qual era a recompensa para quem conseguisse lim-
par a cidade. “500 moedas, mas esqueça, porque até agora
ninguém conseguiu. Estou pensando em jogar esse dinhei-
ro no rio Danúbio.”– Disse Rufus. Hans franziu os lábios e
pegou um objeto de sua bolsa.
Todos viram que era uma flauta longa e prateada.
Hans começou a tocá-la e para o espanto de todos, os ratos
começaram a dançar. Dançavam excitados e cada vez mais
ratos saiam dos bueiros para dançar. Formando um bata-
lhão bem no meio da cidade. Hans então mudou a música
para uma mais animada e os ratos começaram a marchar
em fila rumo à ponte sobre o Rio Bremen (O Rio Bremen
desaguava no Danúbio) que ficava perto do centro. Os ani-
mais marchavam até lá e depois iam se jogando e morren-
do afogados.
Rufus assistia aquela cena maravilhado, falando:
“Vocês viram o que ele está fazendo? Viram!”. Em cerca
de uma hora a cidade estava limpa e todos os ratos estavam
mortos, descansando no fundo do rio Bremen. Mas naquele

62
Histórias de um coração sombrio

momento as 500 moedas pesaram para Rufus, ele ia precisar


de algum dinheiro extra para consertar os estragos, aquele ra-
paz era só um garoto pobre, podia cair na sua conversa facil-
mente...
“Parabéns, meu jovem, porém não vou poder te pagar
agora. Tenho algumas dívidas a acertar, mas talvez eu possa
beneficiá-lo de alguma forma...”. “Eu só quero minhas 500
moedas!”, disse Hans. Rufus se levantou e falou na frente dos
nobres: “Eu disse 500, me enganei, eram 50 moedas o com-
binado.” Os nobres concordaram. “Eu exijo minhas 500 moe-
das! Eu limpei a cidade”. Falou Hans irritado. “Exige! Quem
é você para exigir alguma coisa, plebeu! Guardas!”.
Os guardas avançaram para capturar o flautista, mas
este foi mais rápido, pulando no cavalo e desaparecendo rapi-
damente. Algum tempo depois os guardas voltaram dizendo
que não havia sinal de Hans, tudo indicava que ele tinha se es-
condido no mato. Rufus disse: “Deixem, se algum dia ele apa-
recer reclamando as moedas, então vocês podem matá-lo”.
O resto do dia foi apenas festejos, muita comilança: lin-
guiça, schimier e cucas, tudo que havia escapado dos ratos.
Todo o povo andava feliz e tranquilo pelas ruas. Não havia
sinal de roedores na cidade. Rufus não sentia nenhum tipo de
arrependimento pelo que tinha feito. Normalmente políticos
não sentem muito remorso, deve ser porque o poder os cor-
rompe.
Quando chegou a noite, a madrugada na verdade, pois
todos já estavam dormindo, ouviu-se uma música diferente.
Era um som de flauta, mas Rufus jamais ouvira uma melodia
tão estranha. Quando levantou, viu uma cena mágica... Todas
as crianças da cidade estavam dançando. Dançavam excitadas
e cada vez mais pivetes levantavam das camas para dançar,
formando um batalhão bem no meio da cidade. A música en-
tão mudou para uma melodia fúnebre e todas elas começaram
a marchar em fila rumo à ponte do Rio Bremen.

63
Filipe Martins de Lellis

Rufus enxergou Hans sentado na sacada de um so-


brado tocando a flauta. A primeira criança que se atirou foi
a menininha que viu o primeiro rato em Geldville, ela se
chamava Alexia e era a filha mais nova de Rufus. A música
continuou a tocar e todos os meninos e meninas marchavam
até a ponte, onde se jogavam no rio, morrendo afogados.

64
Meu pai
Eu sempre odiei meu pai, mas também sempre o
amei. Vocês devem estar me condenando por odiar a pes-
soa que me pôs no mundo, mas vão por mim, vocês tam-
bém o odiariam. Ele tinha o talento excepcional de estragar
tudo. A opinião dele se formava deste modo: primeiro eu
dava a minha opinião e a dele era sempre contrária a mi-
nha. Entenderam como funcionava a cabeça do meu pai?
Apesar de tudo, depois que ele se foi, senti muita
saudade das suas implicâncias, birras e tudo mais. Eu te-
nho certeza que a morte dele não estava programada para
aquele sábado, há quinze anos, quando ele foi atravessar
de moto uma rodovia e virou “presunto” debaixo de um
caminhão.
Perdoem a minha insensibilidade, é que eu trabalho
em uma funerária e estou acostumado com isso agora, é a
“epifania” como dizem. Sei que meu pai se foi, eu tinha 22
anos, queria dizer várias coisas, pedir desculpa por outras
e ainda tinha muitas perguntas pra fazer a ele. Mesmo com
nossas diferenças, havia coisas que nós dois gostávamos.
Pescar, tocar violão na rua até tarde, e consertar motores
eram coisas que sempre fazíamos juntos.
Esta manhã, acordei e fui tomar meu café. Enquanto
isso revisava meu celular vendo se tinha alguma chamada
ou mensagem, requisitando um agente funerário para a tar-
de. Olha, devo-lhes dizer que o meu negócio está em alta,
principalmente com toda essa violência que anda solta por
aí. Tal foi a minha surpresa quando encontrei essa mensa-
gem no meu smartphone.

67
Filipe Martins de Lellis

Oi, Nando. Como está? Não vejo a hora de


me reencontrar com você. Temos muita coi-
sa pra conversar. Me encontre hoje às 21:00,
nesse endereço: Avenida João Jorge, 1800 –
Santo Aparício. Vá sozinho.
Papai

Meu corpo gelou na hora. Como assim? Uma pes-


soa morta estava me contatando para um encontro à noite.
Eu havia acompanhado o funeral de meu pai, há quinze
anos. Aliás, foi lá onde eu conheci o homem que me le-
varia a se tornar agente funerário. Eu tenho certeza que
meu pai morreu, não há nenhuma dúvida de minha parte.
Isso só pode ser uma peça, uma peça de mau gos-
to. Se eu falar alguma coisa vão dizer que estou ficando
maluco. Quando a morte do meu velho ainda era recen-
te, aconteceu que eu comecei a ouvir a voz dele durante
a noite. Minha família se preocupou e me mandaram ao
médico, custou até eles acreditarem que eu estava bem
novamente. O doutor falou que era o stress que estava
criando vozes do subconsciente durante pesadelos e so-
nhos lúcidos.
Se eu falo alguma coisa, pronto, é internação na
certa! Vou ficar quieto, excluir essa mensagem e fingir
que nada aconteceu. É o melhor a fazer, com certeza.
Na manhã de Domingo, revisei meu celular pela
manhã bastante nervoso. Não havia nenhuma mensagem
SMS. Entretanto tinha uma mensagem no WhatsApp de
um número desconhecido.

Você me decepcionou, Nando. Achei que ia


aparecer ontem, não sabe o trabalho que tive
para estar ali. De qualquer jeito me encon-
tre segunda às 19:00, no endereço: Rua São

68
Histórias de um coração sombrio

Simão, 1715 – Vila Verde. Acredito que deve


estar desconfiando que não sou eu. Por isso
mando uma foto da sua boia da sorte azul e as-
sino essa mensagem com meu nome completo.

Fausto Horácio Valdéz

Abaixo ele colocou a foto da boia da sorte azul. Com


essa boia, eu pesquei uma carpa gigante em 1989. Virou
minha boia da sorte então, só pescava com ela. Depois da
morte do meu pai, eu a procurei pelo seu valor sentimental,
mas não a encontrei. Mamãe disse que o papai tinha jogado
muitas coisas fora na semana em que morreu.
Segunda de noite, lá estava eu no endereço combina-
do. Mas quando às sete horas estavam se aproximando co-
mecei a entrar em pânico, sempre tive medo do sobrenatural.
E se não fosse meu pai, se fosse um espírito maligno tentan-
do se passar por ele? Se fosse o próprio demônio? Quando o
relógio deu 18:58, saí correndo e voltei pra casa, morrendo
de medo.
Me arrependi amargamente no outro dia. O que é isso,
que atitude de covarde. Perdi a chance de conversar com o
meu pai. Com certeza era ele. Recebi outra mensagem no
celular pela manhã.

Mas você está me dando nos nervos, Fernan-


do Horácio Valdéz! Já falei que sou eu mesmo!
Vou te dar uma última chance, sexta à meia-
-noite, no endereço: Rua Encruzilhada, 0656 –
Coqueiros –. Mas atenção, essa é a sua última
oportunidade, se você não aparecer não terá
outra chance!
Fausto Valdéz

69
Filipe Martins de Lellis

Pensei comigo mesmo, o nervosismo aconteceu por-


que eu cheguei muito antes. É. Se eu me organizar para che-
gar lá exatamente à meia-noite não vou ter como dar pra
trás. Perfeito! É o que vou fazer.
Saí de casa apenas alguns minutos antes, aconteceu
que o trânsito estava lento e faltavam poucos minutos para a
meia-noite. Comecei a correr loucamente para não perder o
horário. Não vi as duas carretas virem de frente ultrapassan-
do e batendo no meu carro. Eu vi só um clarão. Dor.
Acordo e enxergo algumas folhagens, um barulho de
água. Meu pai está sentado em um barquinho encostado na
beira do rio com um caniço de pesca, na linha do caniço está
a minha boia da sorte azul. Olho meu reflexo e vejo um me-
nino de nove anos. Meu pai se levanta, tira o chapéu e fala:
– Nando! Vejo que chegou dois minutos mais cedo!

70
O mausoléu da Mansão Cruz de Louro
Pedra Verde, 1984.
O Sr. Olavo Hoff sabia que era um sujeito sortudo,
porém jamais poderia imaginar o tamanho da sua sorte. Ele
trabalhava no escritório de uma pequena empresa de ma-
deira compensada, chamada CERNE Ltda., recebendo um
mísero salário, pouca coisa acima da média.
Olavo não tinha nem casa própria, precisava pagar um
aluguel bem alto todo mês pra continuar morando perto da
CERNE e trabalhar ali. No cubículo, ainda viviam suas fi-
lhas: Vitória, Mirian e Helena, ele era viúvo. Você deve estar
pensando: Como assim um sujeito sortudo? Ele tinha sorte,
sim! Muita saúde, três belas filhas e ainda conseguia se man-
ter, muita gente almeja apenas isso para sua vida.
Acontece que um belo dia, quando estava indo traba-
lhar, Olavo viu um cara de roupa verde gritando na rua.
– BILHETES! SORTEIO!
Ele passou perto do homem como quem não quer
nada, mas o sujeito o puxou para perto, incomodando:
– Bom dia senhor! Não quer comprar um bilhete, con-
corre a um sorteio de uma...
– Não, obrigado. Estou atrasado.
– ESPERE! Não deixou nem eu terminar de falar...
esse bilhete concorre a uma mansão histórica, a “Mansão
Cruz de Louro” que fica numa grande propriedade longe do
perímetro urbano. O terreno foi hipotecado e quitado por
uma lotérica, já que nenhum comprador particular se inte-
ressou na propriedade, a lotérica está sorteando para ver se
ganha algum dinheiro em cima. O ganhador também recebe
um prêmio em dinheiro, além da propriedade.

73
Filipe Martins de Lellis

– Eu não tenho muita sorte pra essas coisas...


– Bobagem, se o senhor não comprar, aí que não vai
ganhar mesmo.
–Vou pensar no caso. – Disse Olavo, saindo de fini-
nho.
– NÃO PENSE DEMAIS, ESSES CUPONS NÃO
VÃO DURAR MUITO!
A história do sorteio da mansão atormentou Olavo
pelo resto do dia, tanto que ele nem conseguia se concentrar
no trabalho. Só pensava em quanto seria bom se ganhasse.
Nunca mais teria de pagar aluguel, suas filhas não iam mais
reclamar de falta de espaço. Vivi, que tinha 18 anos, era a
que mais reclamava, a Mimi, que tinha 12, também e a caçu-
la, Leninha, a mais graciosa das três com seus cabelos loiros
cacheados, sempre dizia que faltava espaço pras bonecas.
Se ele fosse premiado, o orçamento do aluguel ia pelo
ralo. Agora que não precisava mais de babá, pois já fazia
um ano que Vivi ficava em casa cuidando das irmãs, Olavo
teria em suas mãos uma boa quantia todo mês, não tendo que
quebrar o seu salário no meio.
Entretanto, a imagem dele ganhando a Mansão ain-
da estava distante. As chances eram minúsculas e será que
valia a pena gastar dinheiro com aquele bilhete que possuía
um preço acima do normal? O fato é que quando chegou no
apartamento, Olavo decidiu não comprar, tinha outras prio-
ridades como a consulta ao dentista da Mirian. Estava claro
que não ia ganhar, melhor deixar pra lá.
Ele passou o portão e o estacionamento. Logo depois
entrou no elevador para o terceiro andar, que estava vazio.
Tocou a campainha e uma menininha sorridente saltou da
porta e o abraçou enquanto entrava:
– Oi Papai! Como tava o trabalo?
– Ótimo Leninha, estava ótimo. E a Vivi e a Mimi, o
que estão fazendo?

74
Histórias de um coração sombrio

– A Vivi passou a tade intera no elefone... e a Mimi


tá chorando no baneiro com dor de dente... Tentei ajudá ela,
mas não sei...
– VITÓRIA, VEM AQUI JÁ!– A garota apareceu com
um pijama branco, os cabelos castanhos lisos bagunçados e
uma expressão de desânimo no rosto.
– O quê que é pai?
– Como assim, “O quê que é pai”, sua irmã morrendo
de dor de dente no banheiro e você não faz nada?
– Ela brigou comigo, pai. Não quer ajuda.
– Quem é a mais velha, você ou ela?
– Eu.
– Então! E o quê eu te falei sobre ficar a tarde inteira
no telefone, não podemos gastar muito! Se você continuar
fazendo isso, não vou poder comprar o carro que você tanto
quer, nem sua carteira de motorista.
– Tem razão. Vou pegar um remédio pra dor. MIRIAN!
Olavo já estava um tanto acostumado com as bagun-
ças das três meninas depois de tanto tempo. Desde que sua
esposa tinha morrido de câncer, ele assumira o papel de mãe
e pai daquelas garotas. Vitória era a que mais lembrava da
mãe, por isso era a mais rebelde, ainda não havia aceitado a
morte dela.
Depois que a dor de Mirian foi enfim contida, Olavo
arrumou as camas. Tudo era tão apertado que Vitória dormia
com Mirian em uma cama e ele dormia com a Leninha na
outra. Normalmente a garotinha se remexia muito durante
a madrugada, porém aquela noite ela ficou bem quietinha.
Olavo também dormiu como uma pedra e teve um sonho
muito real.
Ele estava sentado em uma parada de ônibus e uma
mulher acenava do outro lado, logo então se levantou para
ver quem era. Era sua esposa, com os cabelos castanhos li-
sos, iguais aos de Vitória e Mirian, soltos. Ele fez um gesto

75
Filipe Martins de Lellis

pra ela, a mulher então tirou um bilhete do bolso e balança-


va, assim Olavo conseguiu ver o número do bilhete: 2605.
Ela então sorriu, Olavo tentou atravessar a rua para falar
com sua mulher, mas passou um ônibus na frente.
Quando acordou, o sonho ainda estava claro em sua
mente. O que tinha sido aquilo? Olavo não era muito su-
persticioso e não acreditava em sonhos. Mas a estranheza do
acontecido, havia mexido com ele, precisava jogar aquele
número. Com certeza precisava, aquilo tinha sido um sinal e
se não jogasse iria se arrepender depois. Se por acaso faltar
dinheiro vendo a minha aliança, pensou Olavo.
– O que é, papai? Tá tão sério hoje!
– Nada não, Leninha. Só tava pensando numa coisa...
– Hum.
“Dois mil seiscentos e cinco”, aquele número ator-
mentava Olavo, será que seria o número sorteado? O fato é
que ele saiu de casa vinte minutos mais cedo, determinado a
comprar o bilhete.
– Olá Senhor! Ainda tem bilhetes do sorteio da man-
são?
– Tenho alguns, sim. Mas estão quase no fim.
O suor escorreu pela testa, no momento em que pen-
sou que o número já pudesse ter sido comprado.
– Pode me conseguir o número “dois mil seiscentos e
cinco”?
– Deixa eu dar uma olhada... é, acho que você tem
sorte, ainda tá disponível esse.
– Ótimo. – Falou Olavo com um sorriso no rosto.
– Mas o número não faz muita diferença, não é? São
tantos! Quem sabe não quer comprar mais um?
– Não. Tá bom esse.
– Obrigado senhor, boa sorte! Mas já vou avisando
que um senhor comprou cem bilhetes! – Disse o sujeito dan-
do o cupom com uma cara de desprezo.

76
Histórias de um coração sombrio

Enquanto se dirigia a CERNE, Olavo pensava como


não tinham encontrado um comprador para uma mansão his-
tórica. Muito estranho isso, a foto no cupom mostrava uma
casa enorme, com um jardim incrivelmente trabalhado em
estátuas de mármore preto. Um lugar chique, por que será
que nenhum milionário se interessou em comprar?
No dia 16 de junho de 1984, a cidade de Pedra Verde
parou para ver o sorteio da Mansão Cruz de Louro na pra-
ça principal. Lá estavam todos os moradores sentados em
cadeiras de plástico, olhando para o sujeito de terno que fa-
laria o número no microfone. Ele se chamava Hildebrando
Casagrande e era o representante das Lotéricas Casagrande,
responsável pelo sorteio.
No meio da multidão, estava Olavo Hoff com seu úni-
co terno, otimista com seu bilhete no bolso. Suas filhas o
acompanhavam usando vestidos azuis. A Vitória emburrada
como sempre, Mirian com sono e Leninha contente por estar
usando um vestido.
Hildebrando utilizava um daqueles aparelhos de re-
tirar bolinhas numeradas para sortear, na primeira tentativa
saiu uma bolinha branca, sem número algum.
– Que coisa mais estranha! Aposto que não conferiram
as bolinhas, desculpem, mas vamos ter que tentar de novo...
Novamente saiu uma bolinha branca, sem número.
Todas as pessoas se olhavam se perguntando se aquilo era
uma combinação pra fazer suspense, ou se era real mesmo.
Porém na terceira tentativa saiu, enfim, uma bolinha que
continha um número: 2605.
– Dois mil seiscentos e cinco, alguém? Dois mil seis-
centos e cinco.
– Aqui! Sou eu! – Falou Olavo saindo do meio da
multidão para subir no palanque. Ele cumprimentou Hilde-
brando, as assistentes e entregou o cupom.
– Qual é o seu nome, senhor?

77
Filipe Martins de Lellis

– Olavo. Olavo Hoff.


– Eu acho que vai ter muito trabalho esse final de se-
mana, Sr. Olavo.
– Por quê?
– ORA, PARA ENCAIXOTAR SUAS COISAS E
PREPARAR A MUNDANÇA PARA A MANSÃO CRUZ
DE LOURO! – Ele encerrou a frase e o povo começou a
aplaudir, enquanto os dois trocavam um aperto de mão. Ola-
vo observou a multidão, suas filhas sorriam para ele no meio
do povo e ele também sorria. De repente, notou outra pessoa
conhecida acenando lá de baixo, a senhora usava um vestido
preto e tinha longos cabelos castanhos. A mulher sorriu, era
Angelina sua falecida esposa. Olavo fez uma cara de espan-
to e desmaiou lá em cima.
– Sr. Olavo? Sr. Olavo? Como está se sentindo? – Dis-
se uma mulher vestida de branco.
– Estou bem.
– Entendo o que aconteceu com o senhor. Foi mui-
ta emoção, eu também ficaria emocionada se ganhasse uma
mansão daquelas.
– Sr. Olavo Hoff venha comigo, tenho que explicar
umas coisas. – Hildebrando tinha uma expressão séria no
rosto.
– Você pode arrumar suas coisas hoje mesmo se qui-
ser. A lotérica irá fornecer três caminhões para sua mudança.
– Eu acho que um caminhão já é suficiente, senhor.
– Tenho mais uma coisa pra falar também, nós da Lo-
térica tentamos esconder essa informação para que isso não
nos prejudicasse, mas agora não tem porquê não contar... A
Mansão Cruz de Louro foi construída pelo conde Diógenes
Cruz de Louro há mais de cem anos como um presente para
sua esposa. Entretanto quando eles se mudaram, começaram
a acontecer coisas estranhas nos arredores da propriedade.
Um tempo depois, a condessa ficou completamente louca e

78
Histórias de um coração sombrio

acabou se suicidando, o conde então construiu um mausoléu


muito bonito para enterrar a esposa, pois a amava e todo
dia ia colocar rosas vermelhas na lápide. Em menos de uma
semana, o conde não foi mais visto. Depois de muita busca,
ele foi encontrado morto dentro do mausoléu. Uns dez anos
atrás, uma família ignorou todos esses fatos e se mudou pra
lá, os filhos do Sr. Carvalho ficavam brincando no mausoléu.
Um tempo depois Eugênio o caçula, tentou matar a família
e foi internado num manicômio. O Sr. Carvalho sumiu de
Pedra Verde e nunca mais quis saber da mansão. Não sou um
sujeito supersticioso Sr. Olavo, não sou mesmo, mas acho
que deveria quebrar aquele mausoléu e por enquanto alertar
suas filhas para ficarem longe dele...
– É uma história e tanto, Sr. Hildebrando, não tenho
medo de fantasmas, mas vou tomar cuidado.
– É assim que se fala!
Depois que Hildebrando Casagrande foi embora, Ola-
vo ficou pensando o que ele pretendia com aquela historinha
de fantasmas, será que queria assustar para ele desistir do
prêmio? Bem, a história não era muito assustadora. Na ver-
dade, a única cena que ainda o incomodava, era a visão de
sua esposa falecida durante o sorteio. Bem, eu estava muito
emocionado, com certeza era só uma mulher parecida com
ela.
– Vamos nos mudar pra uma casa nossa, então, pai? –
Falou Vitória.
– Sim, vamos.
– Isso quer dizer que você vai poder comprar meu car-
ro?
– Vamos com calma mocinha.
– Papai, eu quero o quarto maior da casa! – Disse Mi-
rian.
– É ÓBVIO QUE O QUARTO MAIOR VAI SER
PRA FILHA MAIOR, NÃO É PAI?

79
Filipe Martins de Lellis

– MAS, EU QUERO! PAI!


– SILÊNCIO, VOCÊS! Depois a gente vê isso.
Leninha se aproximou sorrateiramente de Olavo e pu-
lou nos seus braços, sussurrando no ouvido.
– Papai! Eu sei que você tá sem dinheiro, mas pode
consertar o olho da minha boneca?
A Mansão Cruz de Louro era magnífica! Viver ali seria
como voltar no tempo. Ela era enorme e tinha três andares,
os dois andares superiores possuíam seis janelas. As paredes
eram cinza e as janelas marrons. O telhado era negro e bem
na frente ainda havia um jardim abandonado, pois há tem-
pos ninguém cuidava dele. Nos fundos, um pouco afastado
da mansão, existia uma pequena casinha com um portão de
ferro, em cima tinha uma pequena estátua de anjo esculpida
em mármore negro. Aquele era o mausoléu.
– Papai, aquela casinha lá atrás parece sê muito teres-
sante, posso ir lá olhar?
– Acho melhor não, Leninha. Deixa pra ir depois, que
eu acho que pode ter alguma coisa perigosa lá dentro.
– Que coisa, papai?
– Não sei, um bicho papão, um lobisomem ou espi-
nhos pra você se arranhar... mais tarde nós vamos lá juntos.
Tudo bem?
– Tá bom. Papai.
– Gostou do lugar Vivi?
– Parece um cemitério isso aqui.
– E você Mimi?
– Adorei, papai. Tanto que já vou ir correndo pro meu
quarto. O QUARTO MAIOR! – Vitória fuzilou Mirian com
os olhos.
Naquele dia, foi realizado um jantar de comemoração
depois que todas as coisas foram postas no lugar. A mudança
foi bem rápida, pois Olavo Hoff não tinha muitas coisas em
seu cubículo anterior e também muita coisa nem tinha saído

80
Histórias de um coração sombrio

da caixa, pois havia muitos móveis em excelente estado


na Mansão Cruz de Louro, na verdade a casa estava prati-
camente mobiliada. Faltavam só eletrodomésticos.
Na sala de jantar havia um retrato de um homem
gordo com costeletas e cabelos grisalhos, usava terno e
cartola. Sentada ao lado dele estava uma mulher estranha.
Tinha cabelos castanhos lisos, olheiras e era muito pálida.
– Quem são essas pessoas do quadro, pai? – Falou
Vitória na hora do jantar.
– São os antigos moradores daqui. O conde e a con-
dessa Cruz de Louro.
– Pai, o senhor não acha que essa mulher parece
muito com a mamãe?
– Não tinha reparado, mas parece mesmo.
– Papai, será que eles não vão voltar e expulsar a
gente daqui?
– Não se preocupe, Leninha. Eles já estão mortos há
mais de 90 anos.
Na noite que se passou, Olavo não conseguiu dor-
mir. Não por pesadelos, mas por causa de um barulho alto
de ferro. Tão alto que não deixaria ninguém pegar no sono
mesmo. Irritado, se levantou do quarto maior, que tinha
ficado com ele para evitar brigas e abriu a janela. Parecia
que o barulho estava vindo de perto dali, decerto algum
vento batendo no portão do mausoléu. Amanhã vou ir lá.
Pela manhã, tudo corria bem. O final de semana es-
tava começando. Parecia que as meninas haviam gostado
da casa. Já que elas reclamavam tanto de espaço, Olavo
havia colocado as três em quartos diferentes. Depois do
café da manhã, ele aproveitou para ler alguns de seus re-
latórios de estoque da CERNE, no antigo escritório do
conde, as gavetas eram cheias de penas de escrever. De
repente, apareceu Leninha, com seus cabelos de anjo ba-
gunçados.

81
Filipe Martins de Lellis

– Oi papai. Vim te trazer um presente. Tome. – A


menina segurava uma rosa vermelha em suas mãos.
– Ah! Muito obrigado filha. Agora vá brincar e deixe
o papai trabalhar, está bem?
Quando seus olhos se cansaram de tanto ler relatórios,
Olavo resolveu caminhar no jardim da Mansão. Deu uma
olhada na frente e notou que não havia nenhuma roseira.
Onde será que Leninha tinha buscado aquela rosa, será que
ela andava passeando pelo mato sozinha? Que menina im-
possível!
Ele então lembrou do acontecido na noite anterior,
dos barulhos de ferro. Foi até o mausoléu, mas não dava pra
enxergar nada. Tudo escuro. Forçou o portão, estava muito
bem trancado com um cadeado antigo e não abria de jeito
nenhum. Nem mesmo com uma marreta que Olavo buscou
lá dentro depois. Bem, pelo menos as meninas não vão con-
seguir entrar aí, pensou ele.
Na hora do jantar, tudo foi colocado em pratos limpos.
– Leninha, onde você pegou aquela rosa que me deu
de presente?
– Eu achei ela, papai.
– Mas como, se não tem nenhuma roseira nessa pro-
priedade?
– No meu quarto, papai. Estava do lado do meu tra-
vesseiro quando eu acordei.
– VITÓRIA, MIRIAN! SE EU DESCOBRIR QUE
ISSO É PEÇA DE VOCÊS...
– Não, papai! Desta vez eu não fiz nada.
– Eu também não, pai.
Quando a noite chegou, o barulho voltou a soar, uma
batida de ferro horrível, Olavo até conseguiu dormir um
pouco antes, mas agora não conseguia de jeito nenhum. Pro-
meteu para si mesmo que ligaria para um chaveiro para des-
travar aquele cadeado no outro dia.

82
Histórias de um coração sombrio

Lá pelas nove da manhã, Olavo foi acordado pela ima-


gem desesperada de Vitória.
– PAI, A LENINHA SUMIU!
– Como assim?
– Não sei, eu acordei, fui no quarto dela e a cama estava
vazia.
– Não ouvi nada durante a noite. – Disse Olavo acor-
dando e se vestindo desesperado.
Ali começaram uma busca incessante por Leninha,
olharam em todos os cantos da casa. Acharam que ela podia
ter ficado brava e se escondido. Procuraram em cada lugarzi-
nho, mas nada. Olavo estava desesperado, não entendia o que
podia ter acontecido. Deitado no assoalho, ele não respirava
de preocupação. O telefone não funcionava. Desceu as esca-
darias rapidamente e saiu correndo. Parou no meio da estrada
e pediu para um senhor levar as meninas para informar o de-
saparecimento à polícia.
De noite, quando a busca cessou, Olavo concluiu que o
único lugar da casa que não tinha sido revistado, era o mauso-
léu. Mas ele estava trancado, como Leninha poderia estar lá?
A não ser pensou ele, QUE ELA TENHA ENCONTRADO
A CHAVE!
Ele se dirigiu aos fundos, se aproximando do mausoléu.
No cadeado havia um molho de chaves. O portão havia sido
aberto. Olavo entrou se deparando com uma escada subter-
rânea, parecia bem profunda, já fazia uns vinte minutos que
ele estava descendo. Bem lá embaixo, ele enxergou Leninha,
gritou seu nome e ela começou a correr, levando-o para uma
lápide coberta de rosas vermelhas. Lá estava escrito: Semíra-
mis Cruz de Louro, data de falecimento 26/05/1884.
– Vinte e seis de maio (26/05) junto é dois mil seiscen-
tos e cinco (2605). – Pensou ele.
Bem atrás surgiu uma mulher usando um vestido bran-
co. Olavo empalideceu-se com aquela figura, pois já havia

83
Filipe Martins de Lellis

visto antes... em seu sonho, na multidão, no quadro da sala


de jantar. Aquela não era sua esposa, ela era a condessa Cruz
de Louro.
A mulher sorriu levantando o braço e indicando algu-
ma coisa com o dedo. Olavo percebeu que eram dois corpos,
o primeiro quase totalmente decomposto e o segundo era o
cadáver de uma menina loira e pálida, com um pedaço da
cabeça mutilado.
Desesperado ele começou a correr, mas uma pedra
caiu de cima do túnel bem em sua cabeça. A ferida foi tama-
nha que deixou exposto um pedaço de seu cérebro.
Enquanto isso, as duas meninas voltavam à proprieda-
de acompanhadas de um policial, não sabendo que o mauso-
léu que antes abrigava apenas dois corpos, agora acomodava
quatro.

84
85
O festival de Montes Claros
Roberto Silva subiu no palco naquela noite como se
estivesse flutuando. Seus acordes, solos, vibratos, bends, li-
gatos emocionaram a plateia. Para um público bastante en-
torpecido, aquela música proporcionou uma grande experi-
ência junto com o baseado. Do chão já estavam enxergando
um deus, uma figura misteriosa, era o próprio Jimi Hendrix
que estaria se apresentando aquela noite?
Desceu do palco para o camarim, pensando que a
vitória era garantida, sentou-se num sofá verde que havia
por perto. Largou sua Fender Stratocaster creme no chão,
puxou um cigarro e começou a fumar. Enquanto a fumaça
exalava pelo camarim, Roberto lembrou-se de sua infância;
jogo de futebol na rua, 10 ou 11 meninos negros correndo
jogando com um litrão, ele próprio catando lixo para trazer
dinheiro pra casa. Sua mãe tinha uma doença na perna, mas
o governo ainda não pagava salário para pessoas encostadas,
ainda mais para uma que em sua juventude tinha sido uma
mulher da vida.
Apesar de sua infância triste, quando cresceu conse-
guiu um emprego na construção, era um menino inteligente,
com seu salário comprou um barraco na Vila Santa Isabel.
Um dia sentiu curiosidade de ouvir a nova música que fazia
muito sucesso, o rock psicodélico. Assim comprou um disco
do Jimi Hendrix Experience, as músicas mexeram com ele
a tal modo, que meses depois comprou uma Fender e com
muito esforço aprendeu a tocar sozinho.
Certa vez ouviu falar sobre um Festival em Montes
Claros, Minas Gerais, trabalhou duro e economizou bas-
tante para a viagem. Chegando lá, ele encontrou os jovens

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Filipe Martins de Lellis

acampados três dias antes para os shows de várias bandas


nacionais e internacionais, os Rolling Stones estariam lá,
o Led Zeppelin também. Hendrix havia combinado de vir,
mas morrera duas semanas antes, engasgado com o próprio
vômito. Chegando ao festival teve contato com a maconha,
droga que todos os rapazes usavam, a maioria fazia parte do
movimento hippie, mas faziam isso apenas por delinquência
juvenil, porque a maioria eram filhos de empresários, que
tinham o futuro garantido e podiam fazer suas rebeldias sem
medo.
Vários rapazes haviam tocado antes de Roberto, po-
rém nenhum com toda sua emoção, técnica e perfeição em
cada nota executada. Por esta razão Roberto já se conside-
rava campeão e teria o prêmio esperado: a possibilidade de
gravar um disco e aparecer ao vivo na televisão.
Sentado no sofá verde esperando o resultado, Roberto
era premiado. Silvia, uma garota hippie também de família
rica, vinha trazer um prêmio para ele, ela tinha um fetiche
por guitarristas e com o efeito da maconha estava ainda mais
louca que o normal. Naquele sofá os dois se uniram num
êxtase de sensações, Roberto puxava o cabelo de Silvia, que
suava num calor intenso, tudo isso ao som de Satisfaction
dos Rolling Stones.
Minutos depois, Robert Plant estava cantando Heart-
breaker, a música de encerramento. Logo depois ele leria o
nome do vencedor, Roberto já estava na plateia esperando
loucamente o resultado. Ele teria fama, seria reconhecido
nacionalmente, quem sabe até internacionalmente, levaria o
nome do Brasil para o mundo.
De repente um barulho o acordou de seu devaneio,
carros chegando, mais de dez, deles saíram sujeitos altos e
fortes com roupa camuflada, todos com escopetas na mão. A
frente vinha um homem mais velho de cabelo grisalho, com
uma expressão rígida no rosto.

88
Histórias de um coração sombrio

– Mas que putaria é esta?


Ele revistou rapidamente os camarins e viu as quanti-
dades de jovens fazendo sexo no corredor e fumando base-
ado. Ordenou os soldados para desligarem os amplificado-
res, mandou os artistas para o hotel e interrogou um jovem
hippie.
– Onde você conseguiu toda essa droga? Fala mole-
que!
– Não sei...
– Fala moleque!
– Ah, foi aquele negro. Aquele que veio da vila lá de
Porto Alegre, como é que o nome mesmo? Ah, Roberto. Ro-
berto Silva.
– Senhor Dalstrin, o seu pai já ligou e avisou que você
não estava envolvido, com certeza foi culpa das más com-
panhias.
Roberto foi levado pela polícia, não foi nem interro-
gado, mandaram ele direto para o xadrez. O Tenente Linsen-
bröder comentava com seus soldados.
– Só podia ser negro mesmo, por causa dessa gente
que o país não se endireita! Ainda bem que o General Médi-
ci é casca grossa com marginais.

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Uísque na jarra
– Viva! Viva! Viva, Ryan Ronan!
Os homens da taverna gritavam vivas ao maior ladrão
de toda a região das montanhas Cook & Kerry.
– Quem é o maior atirador?
– Viva! Viva! Viva, é Ryan Ronan!
– Qual é a arma mais mortal?
– Viva! Viva! Viva, é a pistola do Ryan Ronan!
– Até hoje em Cook & Kerry, quem foi que mais rou-
bou?
– Ninguém conseguiu mais do que o Ryan Ronan “en-
controu”!
– Viva! Viva! Viva, Ryan Ronan!
Na euforia da bebida, onde o espírito de Loki se apo-
derava de todo homem que ousava pisar naquela taverna,
cantaram outra canção:

Fazendo uísque para tolos


Chorando pelo meu pai
Chorando pelo pai
Mas com uísque na jarra

Depois de sua canonização, Ryan Ronan limpou a


barba ruiva e disse:
– Senhores, vou embora! Tenho um compromisso
inadiável com Jenny esta noite.
– E quem, senhores, é a mais bela de todas?
– É Jenny! É Jenny, a mulher de Ryan Ronan!
Saindo, à luz da lua, Ronan montou em seu cavalo e
seguiu para casa.

91
Filipe Martins de Lellis

No caminho, quando passava na estrada mais próxima


às montanhas Cook & Kerry, que davam nome ao vilarejo,
Ronan avistou o Capitão Farrell andando num cavalo cheio
de provisões. Farrell era um inimigo de longa data. Esta-
va sempre na cola dos assaltantes, sempre atrás de quadri-
lhas. Ronan esperou o capitão passar, escondido atrás de um
mato, depois saiu correndo com sua pistola e disse:
– Levante as mãos e me entregue tudo ou vou te man-
dar pro inferno!
Sem pestanejar, o capitão entregou tudo. Estava sob a
mira certeira de Ryan Ronan. Mira que ele sabia que um tiro
era o suficiente para matá-lo.
Feliz da vida, Ryan levou todo o dinheiro para casa.
Chegando lá, encontrou Jenny o esperando na varanda. Ela
cumprimentou-o e ele a contou sobre o roubo, juntos os dois
fizeram planos de irem embora da Irlanda com aquela gran-
de quantia de moedas.
– Tem certeza que quer ficar comigo, Jenny? Antes
eram roubos anônimos, mas hoje eu ataquei diretamente um
oficial, temos que ir embora ou seremos presos.
– Escute, eu te amo! Vamos continuar juntos, onde
quer que estejamos.
Ela se escorou alguns minutos no ombro dele e depois
disse:
– Vou ir tomar um banho agora, depois te espero na
cama...
Ryan Ronan foi até a cozinha e tomou seu uísque, can-
tando novamente a canção:

Fazendo uísque para tolos


Chorando pelo meu pai
Chorando pelo pai
Mas com uísque na jarra

92
Histórias de um coração sombrio

Antes de se deitar com Jenny, por precaução, deixou


suas pistolas no costado da cama. Lá pelas seis ou sete, ou-
viu o barulho da porta abrindo. Sacou rápido as pistolas, era
o Capitão Farrell. O gatilho rápido de Ryan Ronan foi pro-
vado mais uma vez, matando o capitão antes que ele pudesse
falar, exalando um forte cheiro de pólvora pela casa toda.
Naquela situação, o que se esperaria de um homem astuto,
era partir imediatamente, antes que o exército chegasse. Ro-
nan era astuto, porém estava muito bêbado e por isso conti-
nuou dormindo.
Quando acordou, ouvia-se claramente o barulho de
passos a quilômetros de distância. A casa estava cercada
por mais de trinta soldados, Ryan tentou lutar pegando suas
pistolas, mas não adiantou nada, estavam todas desarmadas.
Nenhum sinal de Jenny, tudo indicava que ela havia fugido.
Na cadeia, todos os homens contavam uns aos outros
suas lembranças. Uns recordavam suas pescas, outros as ca-
çadas, alguns os tempos de piratas, outros não lembravam
de nada. Ronan lembrava muito bem da noite que ele passou
com Jenny, mas nunca entendeu o porquê dela o ter abando-
nado. Amargurado ali, ele cantou a canção outra vez:

Fazendo uísque para tolos


Chorando pelo meu pai
Chorando pelo pai
Mas com uísque na jarra

No lugar onde ele estava agora não tinha uísque. Só


uma bola e uma corrente.

Conto inspirado na canção folclórica Irlandesa,


“whiskey in the jar”.

93
94
O mascarado
O barulho eletrônico do computador de Amanda
Hesse era o único som que ecoava no apartamento des-
de que ela havia começado a frequentar chats na internet.
Todo dia a mulher passava horas e mais horas ali, conver-
sando com vários homens ao mesmo tempo, sempre procu-
rando por alguém especial. Alguém que verdadeiramente
pudesse interessá-la a iniciar um relacionamento. Acontece
que o fato de Amanda ser divorciada fazia com que fosse
muito exigente em sua busca por um namorado; ela procu-
rava alguém que não bebesse, nem fumasse e tivesse um
emprego, pelo menos.
Mas seus problemas acabaram quando ela conheceu
Grigore Danut, um sujeito definitivamente incomum. Sa-
bia de tudo, parecia ser muito culto, educado e a elogiava
bastante. E mesmo depois dele ter falado que não era jo-
vem e beirava os cinquenta, Amanda continuou o admiran-
do muito, apesar da diferença de idade entre os dois.
As conversas com Grigore eram muito interessantes
e foram ficando cada vez mais, quando ela descobriu que
ele era um milionário e morava em uma grande proprieda-
de numa das ilhas de Trindade. Porém, ela achava que Gri-
gore deveria ter algum segredo para não gostar de sair da
tal ilha e querer ficar sempre lá, odiando a cidade grande.
Amanda trabalhava no jornal “Voz do Povo”, era
colunista e tinha um salário muito baixo. Era bem vista
por todo o pessoal da imprensa e até por seu chefe, mais
por causa de sua beleza do que pela habilidade de escre-
ver. Agora, com quase quarenta anos ela não era mais tão
bonita quanto já fora, porém ainda conservava os cabelos

95
Filipe Martins de Lellis

negros lisos e os olhos azuis, que combinavam muito bem


com sua pele clara, tornando-a muito sensual.
O jornal “Voz do Povo” estava passando por uma
crise enorme, igual ao resto do país. As vendas de jornais
diminuíam a cada dia por causa da internet e com a amea-
ça de redução dos pacotes de conexão, os jornais até tive-
ram uma esperança de retomarem um pouco das vendas,
mas a redução não ocorreu, o que acarretou num grande
prejuízo para o dono e acabou falindo o jornal, fazendo
Amanda perder seu emprego.
A situação de Amanda foi se deteriorando, até che-
gar num ponto em que pagar a conta de água era compli-
cado. Em contraponto, as conversas com Grigore foram
aumentando e na medida em que o sentimento foi apare-
cendo, o medo foi sumindo. Tanto, que resolveu aceitar o
convite para ir morar numa das ilhas com ele, a Ilha das
Escunas.
– Você tem certeza que qué pagá a viage, moça? O
mar não tá calmo hoje.
– Ai, seja o que Deus quiser… mas não se preocu-
pe senhor, Grigore falou que vai estar me esperando no
porto.
– Olha, moça, pelo que eu sei ninguém mora mais
lá, a Ilha das Escuna não recebe nenhum ser vivo desde
1975.
– É que o Grigore é discreto, não quer ninguém per-
turbando ele.
– A moça é que sabe.
O vento soprava forte, desarrumando os cabelos de
Amanda. O dono da embarcação, um sujeito bronzeado
cheio de cicatrizes que andava sempre com uma garra-
fa de vinho a tiracolo, não pronunciara nenhuma palavra
desde que o barco tinha se jogado ao horizonte. Porém, o
silêncio foi quebrado no momento em que ela falou:

96
Histórias de um coração sombrio

– Tem certeza que não tem ninguém lá, o que acon-


teceu em 1975?
– Um acidente nas indústria do porto. Os habitante
não recebero ajuda e ficaro desfigurado por causa dos ácido.
– Mas por que ninguém fez nada?
– A cidade só ficô sabendo muito tempo depois que as
Indústria Danut tinho explodido.
– Danut?
– Firma famosa por fabricá solvente.
Amanda se calou. Danut era o sobrenome de Grigore,
com certeza sua grande fortuna vinha daquela empresa, que
deveria ter pertencido ao seu pai ou avô, ou a ele mesmo já
que tinha quase cinquenta.
O sol já havia se escondido no instante em que o barco
se aproximou da terra. Amanda desceu com suas malas num
porto de madeira rústica, pagou o marinheiro que a trouxe e
disse pra ele esperar um pouco, pois não havia ninguém ali
e não queria ficar sozinha. Uns trinta minutos depois, ainda
continuava na companhia de sua sombra, se dirigiu então ao
barco se arrependendo da viagem que realmente fora inútil.
Sob o convés ninguém, mas dentro do porão estava o
marinheiro jogado no meio de um monte de vômito, abraça-
do com uma garrafa de vinho do porto.
– Senhor... ãh? Como era mesmo o nome dele?– Pen-
sava Amanda. Ah Lionel.
– Acorda, Senhor Lionel! Acorda! Eu quero voltar!
Não tem ninguém aqui!
Ela chacoalhava a camisa xadrez, cutucando o ma-
rinheiro, tentando fazê-lo acordar, mas ele não se mexia.
Estava quase sem pulso. Amanda sentiu um arrepio, estava
sozinha agora, o que iria acontecer?
Passos interromperam seu pensamento, alguém vinha
caminhando sorrateiramente nas sombras do porto.
– Amanda! Amanda!

97
Filipe Martins de Lellis

O vulto usava um sobretudo e um chapéu antigo.


Amanda gelou quando dirigiu os olhos para sua face, ele
tinha o rosto oculto por uma máscara. Uma máscara toda
branca com círculos pretos no lugar dos olhos.
– Amanda! Sou eu, Grigore!
Se era ele a pessoa com que tanto conversava, por que
usava aquela coisa na cara, por que não havia comentado
nada com ela todo este tempo?
– Amanda! Sou eu mesmo, lembro que você me falou
que odeia gatos e adora bife de fígado. Gosta das músicas
do Frank Sinatra.
– Tudo bem, acredito. – Falou ela como se tivesse
muitas opções.
– Desculpe, querida, eu devia ter contado sobre a más-
cara, mas fiquei com medo de você se assustar.
– Onde fica sua mansão?
– Uns 5 km daqui, vamos! Aqui é muito rochoso para
carros, ou cavalos, só a pé mesmo.
– O homem que me trouxe aqui está caído lá no barco.
Acho que morreu!
– João!
Apareceu outro homem parecido com Grigore, porém
mais baixo. Também usava máscara.
– Sim?
– João, pegue o homem e leve, está bem? Ele precisa
de ajuda.
Dizendo isso ele abraçou Amanda, que estava morren-
do de medo daquelas criaturas mascaradas no meio da noite.
Grigore tinha cheiro de formol.
– Grigore, você vai ter que me explicar essa história
das máscaras.
A casa praticamente não tinha eletrodomésticos, com
a exceção de um computador antigo no quarto de Grigore.
Durante a janta, Amanda comia à luz de lampiões, velas e

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Histórias de um coração sombrio

lustres, já Grigore não comia na frente dela por causa da


máscara. Ele então falava:
– Foi em fevereiro de 1975, o container central de
ácido sulfúrico estourou em cima de quase todos os funcio-
nários e de mim também, desfigurou nossos rostos, nunca
mais fomos os mesmos.
– Nossa, que horrível!
– Para manter a pele de maneira que possamos sobre-
viver, temos que ter uma dieta diferenciada com coisas bem
difíceis de conseguir.
– Tipo leite de cabra?
– Não, isso até tem bastante aqui.
– Como está o Lionel, o marinheiro que me trouxe até
o porto?
– Ãh... bem, até já foi embora.
– Foi embora mesmo?
– Sim.
– Ah! Que pena! Eu queria ter agradecido a ele.
– Pois é. Mas vamos ao banquete agora. Traga a ban-
deja Lurdes!
Amanda viu uma moça gorducha com máscara apare-
cer no grande salão e colocar um objeto prateado na mesa,
revelando um grande pedaço de fígado cozido.
– Hum, que delícia! Você sabe que é meu prato favo-
rito, né?
– Sim.
Amanda foi provando a textura macia e sentindo o
sabor exótico daquela receita. Notou um sabor diferente en-
quanto mastigava.
– Dona Lurdes, por acaso a senhora colocou molho de
vinho nesse fígado?
– Esse é o meu molho favorito, sabe? Fígado ao mo-
lho de vinho.

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Filipe Martins de Lellis

Depois de uns dias, Amanda já estava se acostuman-


do a rotina de Grigore, porém ainda não tinha entendido
os seus hábitos estranhos. Grigore tinha a mania de tirar
uma soneca depois do almoço. Enquanto ele dormia, ela
resolveu caminhar um pouco na pequena vila. Em um
chalezinho tinha uma velhinha sentada na varanda, com
os olhos fechados. Quando Amanda apareceu ela acordou
rapidamente.
– Moça bonita! Que apareceu...
– O que disse senhora?
– Moça bonita, dos olhos bonitos, tem que tomar cui-
dado...
– Como assim?
– Está enrolada morando na casa dos Danut. Todo
mundo sabe da criatura que trouxe riqueza pro Senhor Da-
nut, o Neftali2
– O nef... o quê?

– O senhor Danut deu o próprio filho para invocar o demô-


nio. Neftali, uma criatura sem rosto, que se alimenta dos
órgãos das pessoas. O velho pensou que ia ficar ainda mais
rico– disse ela rindo – mas acabou morto junto com o resto
da família. O cheiro do demônio ainda exala naquela casa.
– Mas o que devo fazer, senhora?
– Fuja! Fuja desta ilha o mais rápido possível!
As palavras da velha ficaram ecoando na cabeça de
Amanda até o almoço do outro dia. Ela não parava de pen-
sar em como os moradores da Ilha das Escunas eram atra-
sados e supersticiosos.
– Ouvi dizer que você conversou com a Dona Tânia,
espero que ela não tenha enchido sua cabeça de bobagens.
– Não, ela já tá caduca eu acho.

2 - Neftali é um demônio sem rosto, conhecido como uma das encarnações


do mal, aliado de Lúcifer e Asmodeu na captura de almas inocentes através
do roubo de corpos humanos atraentes.

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Histórias de um coração sombrio

Amanda tentava cortar o coração que tinha sido servido


no almoço, mas era muito duro, estava quase entortando a faca.
– Mas esse coração deve ter sido tirado de um porco
muito velho! Olha isso!
Depois de duas semanas a cabeça de Amanda finalmen-
te começou a funcionar, principalmente, quando ela viu o mes-
mo barco de Lionel sendo usado por um pescador mascarado
no porto. Naquela mesma tarde a conversa que surgiu na vila
foi que a velhinha Dona Tânia tinha finalmente conseguido
descansar em paz.
Um belo dia, Amanda acordou mais cedo e foi ao ba-
nheiro, ela tinha o costume de ler livros enquanto fazia as ne-
cessidades. Olhou na prateleira um monte de livros estranhos,
pegou um da capa azul mesmo, mas o livro não saiu da prate-
leira. Abriu uma passagem no lado. Ela então entrou numa sala
horrível com um cheiro de carne podre, lá havia vários órgãos
humanos, em mesas, em bandejas e em conservas.
Bem embaixo havia um jornal com uma matéria na pri-
meira página:

Tragédia nas Indústrias Danut:

Esta madrugada houve um incidente terrível nas Indús-


trias Danut, situada na Ilha das Escunas, na devida hora fo-
ram reconhecidos os corpos de Vladimir Danut, Sofia Danut
e do seu filho Grigore Danut, todos mortos em razão de uma
explosão de um container de ácido sulfúrico. Dia 15 de feve-
reiro de 1975.

Um espírito de terror invadiu o corpo e a mente de


Amanda, fazendo-a perder um pouco o raciocínio. Saiu cor-
rendo em direção à porta, dava bordoadas, socos, tentava abrir,
mas estava trancada. Ela batia, se machucando naquele de-
sespero.

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Filipe Martins de Lellis

Ouviu passos descendo a escada, lá vinha Grigore


com um punhal de prata na mão.
– Então você percebeu? A razão pela qual eu te trouxe
aqui? Você é meu alimento! Vai me proporcionar vida por
muito tempo!
– Seu louco! Como teve a coragem de forjar sua morte?
– Eu não forjei nada. Grigore Danut, realmente está
morto.
O sujeito foi se aproximando, enquanto passava pela
cabeça de Amanda que talvez a máscara fizesse com que
não enxergasse muito bem. O fato é que quando ele tentou
dar o bote, Amanda pegou um lampião e jogou rapidamente.
Naquele momento a cabeça da criatura começou a incendiar
com o fogo que tinha caído do lampião. Em pouco tempo a
máscara se dissolveu, revelando uma face branca sem rosto,
num cadáver coberto de queimaduras...

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