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M esmo os que só iam à igreja no Natal viam que haveria mais pessoas a
assistir do que lugares. Um engarrafamento de negro e cinzento estava já
a formar-se à entrada quando Aaron Falk chegou de carro, deixando atrás de si
uma nuvem de fumo e de folhas estaladiças.
Os vizinhos, decididos mas a tentarem não o parecer, acotovelavam-se para
passar à frente enquanto a multidão entrava a conta-gotas pelas portas. Do outro
lado da estrada, os jornalistas rondavam a cena.
Falk estacionou o seu automóvel ao lado de uma carrinha que também já
tinha visto melhores dias e desligou o motor. O ar condicionado chocalhou a
silenciar-se e o interior do automóvel começou imediatamente a aquecer. Falk
permitiu-se um momento para observar a multidão, embora não tivesse
realmente tempo a perder. Arrastara-se todo o caminho de Melbourne,
prolongando a viagem de cinco horas para mais de seis. Depois de confirmar
que ninguém lhe parecia familiar, saiu do automóvel.
O calor do final de tarde envolveu-o como um manto. Abriu a porta de trás
para tirar o casaco, queimando a mão ao fazê-lo. Depois de uma brevíssima
hesitação, pegou no chapéu do assento. O chapéu de abas largas e de uma lona
dura castanha não condizia com o seu fato de funeral. Mas, com a pele de um
tom azulado de leite magro durante metade do ano e um aglomerado de sardas
com um ar canceroso no resto do tempo, Falk estava disposto a arriscar-se a
violar as regras da moda.
Pálido de nascença, com cabelo louro-branco cortado muito curto e pestanas
invisíveis, sentira muitas vezes ao longo dos seus trinta e seis anos de vida que
o sol australiano tentava dizer-lhe alguma coisa. Era uma mensagem mais fácil
de ignorar nas sombras altas de Melbourne do que em Kiewarra, onde a sombra
era um bem fugaz.
Falk lançou um olhar à estrada que conduzia para fora da cidade e a seguir ao
seu relógio de pulso. O funeral, o velório, uma noite e ir-se-ia embora. Dezoito
horas, calculou. Não mais. Mantendo isso firmemente em mente, encaminhou-
se para a multidão, segurando o chapéu com a mão quando uma súbita rajada de
ar quente fez esvoaçar os vestidos das senhoras.
Lá dentro, a igreja era ainda mais pequena do que recordava. Lado a lado com
estranhos, Falk deixou-se levar para o meio da congregação. Reparou num
espaço livre junto à parede e furou até ele, arranjando lugar ao lado de um
agricultor cuja camisa de algodão lhe cobria, bem esticada, a sua barriga
saliente. O homem acenou-lhe com a cabeça e voltou a olhar em frente
fixamente. Falk via-lhe as rugas nas mangas da camisa na zona dos cotovelos,
onde até há pouco tempo tinham estado arregaçadas.
Falk tirou o chapéu e abanou-se discretamente com ele. Cedeu à tentação de
olhar à sua volta. Rostos que ao princípio não lhe pareciam familiares tornaram-
se mais nítidos e ele sentiu um acesso ilógico de surpresa ao ver algumas das
rugas, cabelos com fios grisalhos e quilos a mais espalhados por entre a
multidão.
Um homem de idade duas filas atrás olhou para Falk e acenou com a cabeça,
e trocaram um sorriso triste de reconhecimento. Falk tentou lembrar-se do seu
nome. Não conseguia concentrar-se. O homem tinha sido professor. Falk
conseguia imaginá-lo diante de uma turma, a esforçar-se com boa vontade por
tornar interessante a Geografia ou os Trabalhos Manuais ou qualquer outra
coisa aos adolescentes entediados, mas a recordação era fugidia. O homem
acenou com a cabeça para o banco ao seu lado, indicando que lhe arranjaria
espaço, mas Falk abanou delicadamente a cabeça e virou-se para a frente.
Evitava conversas de circunstância mesmo na melhor das hipóteses e aquela,
inquestionavelmente, estava a um milhão de horríficas milhas de ser a melhor
das hipóteses.
Por Deus, aquele caixão do meio era mesmo pequeno. O facto de estar entre
os dois de tamanho normal só o fazia parecer pior. Se tal fosse possível.
Rapazes pequenos, com o cabelo penteado colado ao crânio, apontavam para
ele: Papá, olha. Aquela caixa tem as cores do futebol. Os que já tinham idade
para saber o que estava dentro fitavam-no num silêncio chocado, inquietos nos
seus uniformes da escola, a encostarem-se um pouco mais às mães.
Acima dos três caixões, uma família de quatro pessoas olhava para baixo
numa fotografia ampliada. Os seus sorrisos estáticos eram demasiado grandes e
pixelizados. Falk reconheceu a imagem das notícias. Fora muito usada.
Por baixo, os nomes dos mortos estavam escritos em flores autóctones: Luke.
Karen. Billy.
Falk fitou a imagem de Luke. O seu farto cabelo preto tinha agora um ou
outro fio grisalho, mas ele ainda parecia estar em melhor forma do que a
maioria dos homens com mais de trinta e cinco anos. O seu rosto parecia mais
velho do que Falk recordava, mas já tinham passado quase cinco anos. O sorriso
confiante era o mesmo, assim como a expressão ligeiramente sabida nos olhos.
Ainda o mesmo, foram as palavras que lhe vieram à mente. Os três caixões
diziam outra coisa.
– Uma tragédia terrível. – O agricultor ao lado de Falk falou de repente.
Tinha os braços cruzados, com as mãos fechadas firmemente encaixadas nos
sovacos.
– Pois é – disse Falk.
– Conhecia-os bem?
– Nem por isso. Só o Luke, o... – Por um momento estonteante, Falk não
conseguiu pensar numa palavra para descrever o homem no caixão maior.
Vasculhou na mente, mas só conseguia encontrar descrições batidas de
tabloides.
– O pai – disse finalmente. – Éramos amigos em mais novos.
– Sim. Eu sei quem é o Luke Hadler.
– Penso que toda a gente sabe agora.
– Ainda vive por estas bandas? – O agricultor moveu ligeiramente o seu
corpo robusto e fitou diretamente Falk pela primeira vez.
– Não. Já não vivo cá há muito tempo.
– Certo. Mas dá-me a sensação de que já o vi. – O agricultor franziu a testa, a
tentar recordar-se. – Ei, não é um daqueles jornalistas da televisão, pois não?
– Não. Sou da polícia. Em Melbourne.
– Ah, sim? Vocês deviam mas era investigar o governo por deixar as coisas
chegarem a este ponto. – O homem acenou para onde o corpo de Luke estava
posto, ao lado dos corpos da sua mulher e do seu filho de seis anos. – Estamos
aqui a tentar alimentar este país, o pior tempo em cem anos, e eles andam com
merdas a cortar nos subsídios. De certa maneira, não se pode culpar o
desgraçado. É um cara...
Parou de falar. Olhou à volta da igreja. – É um caraças de um escândalo, é o
que é.
Falk não disse nada enquanto ambos refletiam sobre a incompetência de
Camberra. As causas hipotéticas responsáveis pela morte da família Hadler
tinham sido amplamente debatidas nas páginas dos jornais.
– Está a investigar isto, então? – O homem acenou com a cabeça na direção
dos caixões.
– Não. Só estou aqui como amigo – disse Falk. – Não tenho a certeza de que
haja alguma coisa ainda a investigar.
Só sabia o que tinha ouvido nas notícias, como todas as outras pessoas. Mas
era evidente, a fazer fé nos comentários. A caçadeira pertencia a Luke. Era a
mesma que tinha sido encontrada mais tarde enfiada no que restava da boca
dele.
– Não, suponho que não – disse o agricultor. – Só pensei que, como ele era
seu amigo e tudo...
– Não sou esse tipo de polícia, de qualquer maneira. Sou da polícia federal.
Estou na unidade de investigação financeira.
– Isso não me diz nada, amigo.
– Só quer dizer que ando atrás do dinheiro. Tudo o que acabe nuns zeros e
que não esteja onde devia estar. Branqueamento de capitais, fraudes, esse tipo
de coisa.
O homem disse algo em resposta, mas Falk não o ouviu. O seu olhar
desviara-se dos três caixões para as pessoas no banco da frente. O espaço
reservado para a família. Para que pudessem sentar-se à frente de todos os
amigos e vizinhos, que, por sua vez, poderiam fitar-lhes a parte de trás das
cabeças e agradecer a Deus por não estarem no seu lugar.
Já tinham passado vinte anos, mas Falk reconheceu imediatamente o pai de
Luke. O rosto de Gerry Hadler estava macilento. Os seus olhos pareciam
encovados no rosto. Estava sentado como seria de esperar no seu lugar na fila
da frente, mas tinha a cabeça virada. Estava a ignorar a mulher, que soluçava ao
seu lado, e os três caixões de madeira com os restos mortais do filho, da nora e
do neto. Olhava fixamente para Falk.
Algures na parte de trás, algumas notas de música saíram de altifalantes. O
funeral ia começar. Gerry inclinou a cabeça num aceno quase impercetível e
Falk meteu involuntariamente a mão ao bolso. Tocou na carta que aterrara na
sua secretária há dois dias. De Gerry Hadler, oito palavras escritas com mão
pesada:
Era uma provação ver as fotografias. Apareciam num ecrã na parte da frente
da igreja, numa montagem sem pausas. Luke a comemorar a vitória num jogo
de futebol infantil; Karen em pequena a saltar por cima de uma vedação,
montada num pónei. Havia algo de grotesco agora nos seus sorrisos fixos, e
Falk viu que não era o único a desviar o olhar.
A foto mudou mais uma vez e Falk sentiu-se surpreendido quando se
reconheceu a si mesmo. Uma imagem desfocada do seu rosto com onze anos
olhou para ele. Ele e Luke estavam lado a lado, em tronco nu e de boca aberta, a
exibirem um peixe pequeno numa linha de pesca. Pareciam felizes. Falk tentou
recordar-se do momento em que a fotografia fora tirada. Não conseguiu.
A apresentação de slides continuou. Imagens de Luke, depois de Karen,
ambos a sorrirem como se para sempre, e depois apareceu Falk de novo. Dessa
vez, sentiu os pulmões apertados. Pelo murmúrio baixo que perpassou na
multidão, apercebeu-se de que não era o único a sentir-se abalado por aquela
imagem.
Uma versão mais jovem de si mesmo estava de pé ao lado de Luke, ambos
agora altos e com acne. Ainda a sorrir, mas dessa vez num grupo de quatro
pessoas. O braço de Luke estava à volta da cintura fina de adolescente de uma
rapariga com cabelo louro como o de um bebé. A mão de Falk pairava mais
cautelosamente acima do ombro de uma segunda rapariga com cabelo comprido
escuro e olhos ainda mais escuros.
Falk não queria crer que aquela fotografia estivesse a ser mostrada. Disparou
um olhar a Gerry Hadler, que estava a olhar fixamente em frente, com os
maxilares contraídos. Falk sentiu que o agricultor ao seu lado mudava de
posição e se afastava um meio passo intencionalmente. Acabara de se fazer luz
no seu espírito, pensou Falk.
Forçou-se a voltar a olhar para a imagem. Para o grupo de quatro. Para a
rapariga ao seu lado na fotografia. Fitou aqueles olhos até eles se desvanecerem
do ecrã. Falk recordava-se de quando aquela fotografia tinha sido tirada. Numa
tarde perto do fim de um longo verão. Fora um bom dia. E uma das últimas
fotografias dos quatro juntos. Daí a dois meses, a rapariga dos olhos escuros
estava morta.
O Luke mentiu. Tu mentiste.
Falk fitou o chão por um longo minuto. Quando voltou a olhar para cima, o
tempo avançara e Luke e Karen estavam a sorrir com uma formalidade
empertigada no dia do seu casamento. Falk fora convidado. Tentou recordar-se
da desculpa que dera para não comparecer. O trabalho, quase com certeza.
Começaram a aparecer as primeiras imagens de Billy. De rosto vermelho em
bebé, depois com uma farta cabeleira aos dois, três anos. Já a parecer-se um
pouco com o seu papá. De pé, em calções, junto a uma árvore de Natal. A
família disfarçada de trio de monstros, com a tinta no rosto a estalar à volta dos
seus sorrisos. Avançando alguns anos, e uma Karen mais velha estava a
aconchegar outro recém-nascido ao peito.
Charlotte. A que teve sorte. Não tinha o nome soletrado em flores. Como se a
responder à deixa, Charlotte, agora com treze meses, começou a chorar do seu
lugar no colo da avó na primeira fila. Barb Hadler apertou a menina mais ao
peito com um braço, embalando-a com um ritmo nervoso. Com a outra mão,
enxugou o rosto com um lenço de papel.
Falk, não propriamente especialista em bebés, não tinha a certeza se Charlotte
teria reconhecido a mãe no ecrã. Ou talvez se sentisse furiosa por ser incluída
nas imagens em memória dos mortos quando estava ainda bem viva. Habituar-
se-ia a isso, apercebeu-se Falk. Não tinha grande escolha. Não há muitos sítios
onde se esconder para uma criança destinada a crescer com o rótulo «única
sobrevivente».
Os últimos acordes de música desvaneceram-se e apareceram as fotografias
finais perante um silêncio incómodo. Houve uma sensação de alívio coletivo
quando alguém acendeu as luzes. Enquanto um capelão com excesso de peso
subia a custo os dois degraus para o púlpito, Falk fitou de novo aqueles terríveis
caixões. Pensou na rapariga de olhos escuros e numa mentira forjada e
combinada há vinte anos, com o medo e as hormonas da adolescência a correr
pelas suas veias.
O Luke mentiu. Tu mentiste.
Quão curto era o caminho dessa decisão até este momento? A pergunta doía
como uma pisadura.
Quando uma senhora de idade na assistência desviou o olhar da frente da
igreja, os seus olhos pousaram em Falk. Ele não a conhecia, mas ela fez-lhe um
aceno de cabeça automático, de reconhecimento delicado. Falk desviou os
olhos. Quando voltou a olhar para a senhora, ela ainda estava a fitá-lo. Com os
sobrolhos subitamente franzidos, virou-se para a senhora idosa sentada ao seu
lado. Falk não precisava de ser capaz de ler nos lábios para saber o que ela
estava a segredar.
O rapaz dos Falk está de volta.
A segunda senhora dardejou-lhe um olhar e imediatamente desviou os olhos.
Com um aceno de cabeça quase impercetível, confirmou a suspeita da amiga.
Inclinou-se e segredou alguma coisa à senhora sentada do seu outro lado. Um
peso incómodo instalou-se no peito de Falk. Olhou para o relógio. Dezassete
horas. E depois iria embora. Mais uma vez. Graças a Deus.
CAPÍTULO 2
As estradas rurais pareciam ainda mais longas no regresso ao pub. Falk ligou
os máximos, que abriam um cone de luz branca no escuro. Sentia-se como se
fosse a única pessoa em milhas a toda à volta. Nada à sua frente, nada atrás.
Sentiu o baque horrendo debaixo das rodas quase antes de se aperceber da
pequena mancha a cruzar a estrada. Um coelho. Ali, e logo de seguida
desaparecido. O coração batia-lhe com força. Travou automaticamente, mas
eram mil quilos e oitenta quilómetros por hora demasiado tarde. Não havia
hipótese. O impacto foi como uma pancada no peito e soltou algo na mente de
Falk. Uma recordação em que não pensava há anos veio à tona.
O coelho era recém-nascido e estava a tremer nas mãos de Luke. Ele tinha as
unhas todas sujas. Como muitas vezes. Para os rapazes de oito anos de
Kiewarra, o entretenimento aos fins de semana era limitado. Iam a correr a
toda a velocidade pela erva alta, numa corrida para lado nenhum, quando
Luke estacou. Baixou-se entre as ervas altas e um momento depois ergueu-se,
com o pequeno animal na mão. Aaron correu para junto dele para ver. Fizeram
festas ao coelho, dizendo um ao outro para não fazer muita força.
– Ele gosta de mim. É meu – disse Luke. Discutiram, a tentar decidir o nome
a dar ao coelho, todo o caminho até à casa de Luke.
Encontraram uma caixa de papelão para o pôr dentro e debruçaram-se sobre
ela a examinar o seu novo animal de estimação. O coelho estremeceu um pouco
ao ver-se examinado, mas mantinha-se imóvel na maior parte do tempo. O
medo mascarado de aceitação.
Aaron correu para dentro de casa para ir buscar uma toalha para forrar a
caixa. Demorou mais tempo do que contava e quando voltou a sair para a luz
brilhante do sol Luke estava imóvel. Tinha uma das mãos dentro da caixa.
Virou a cabeça quando Aaron se aproximou e tirou a mão. Aaron chegou junto
da caixa, sem saber ao certo o que estava a ver, mas sentindo o impulso de
adiar o momento em que olharia para dentro dela.
– Morreu – disse Luke. A sua boca era uma linha fina. Não olhou Aaron nos
olhos.
– Como?
– Não sei. Morreu, sem mais.
Aaron fez a pergunta mais umas vezes, mas nunca teve uma resposta
diferente. O coelho estava deitado de lado, perfeito mas imóvel, com os olhos
negros e vazios.
«Pensa nisto», dissera Barb quando Falk se despediu. Em vez disso, enquanto
percorria aquelas longas estradas rurais, com o animal morto ainda fresco
debaixo das rodas. Falk não conseguia parar de pensar em Ellie Deacon e no
grupo de quatro adolescentes. E se os olhos escuros de Ellie teriam parecido tão
vazios depois de a água acabar de lhe encher os pulmões.
CAPÍTULO 4
A fita policial amarela ainda pendia à volta da porta da casa da quinta de Luke
Hadler. A luz do sol incidia nela quando Falk estacionou ao lado do carro da
polícia num terreno com erva crestada na frente da casa. O sol ainda não estava
ao rubro, mas Falk já sentia a pele picar por causa do calor quando saiu do
carro. Pôs o chapéu e observou a casa. Não precisara que lhe indicassem o
caminho. Em pequeno, passara quase tanto tempo naquela casa como na sua.
Luke não alterara muito aquele sítio desde que o recebera dos pais, pensou
Falk enquanto tocava à campainha. O som ecoou lá dentro e ele teve a súbita
sensação de que estava a viajar para o passado. Sentiu uma certeza tão
incómoda de que um rapaz atrevidote de dezasseis anos viria abrir a porta que
quase recuou um passo.
Não houve nenhum movimento. As janelas amortalhadas por cortinas
fechadas fitavam o exterior como um par de olhos cegos.
Falk passara a maior parte da noite acordado a pensar no que Gerry dissera.
De manhã, telefonou a Gerry e disse-lhe que poderia ficar mais um ou dois dias
na cidade. Só até ao fim da semana. Era quinta-feira. Esperavam-no no trabalho
na segunda. Mas entretanto iria à quinta de Luke. Investigaria a situação
financeira como Barb lhe pedira. Era o mínimo que podia fazer. O tom de voz
de Gerry deixou claro que concordava. Era literalmente o mínimo que Falk
poderia fazer.
Falk parou por um momento e a seguir dirigiu-se para a parte lateral da casa.
O céu pairava enorme e azul sobre os campos amarelos. À distância, uma
vedação de arame impedia que um emaranhado de mato na sombra alastrasse.
Aquela propriedade era muito isolada, como Falk reparou devidamente pela
primeira vez. Sempre lhe parecera cheia de vida quando era novo. O seu lar de
infância talvez ficasse a uma curta distância de bicicleta, mas era
completamente invisível dali, algures para lá da linha do horizonte. Olhando
agora à sua volta, só uma outra casa estava à vista: uma ampla construção
acocorada na encosta de uma colina distante.
A casa de Ellie.
Falk perguntou-se se o pai e o primo dela ainda viveriam lá em cima e
instintivamente desviou a cabeça. Vagueou pelo terreiro até encontrar o
sargento Greg Raco no maior dos três celeiros.
O sargento estava ajoelhado a um canto a vasculhar uma pilha de caixotes
velhos. Uma aranha-vermelha, imóvel e brilhante na sua teia, ignorava a
atividade a dois metros de si. Falk bateu na porta de metal e Raco virou-se, com
o rosto manchado de poeira e suor.
– Meu Deus, sobressaltou-me. Não ouvi ninguém aproximar-se.
– Desculpe. Aaron Falk. Sou amigo dos Hadler. A sua rececionista disse que
estava aqui. – Apontou para a aranha-vermelha. – Viu aquilo, por acaso?
– Vi. Obrigado. Há um par delas por aqui.
Raco pôs-se de pé e tirou as luvas de trabalho. Tentou sacudir a sujidade das
calças azuis da sua farda, mas desistiu ao ver que só piorava as coisas. A sua
camisa bem engomada tinha círculos de suor debaixo dos braços. Era mais
baixo do que Falk e tinha a constituição de um pugilista e o cabelo
encaracolado cortado à escovinha. Tinha a pele morena, de homem do
Mediterrâneo, mas o sotaque era puro australiano de província. Os seus olhos
amendoados faziam com que parecesse que estava a sorrir mesmo quando não
estava. Falk sabia-o, porque ele não sorria naquele momento.
– O Gerry Hadler telefonou e disse que ia passar por aqui – disse Raco. –
Desculpe ter de fazer isto, pá, mas tem algum documento de identificação? Já
andaram por aí uns marados a rondar. A ver as vistas ou coisa do género, não
sei.
Visto de perto, era mais velho do que Falk julgara inicialmente. Talvez tivesse
uns trinta anos. Falk reparou que o sargento o observava discretamente. De
modo aberto mas cauteloso. Tudo bem. Falk entregou-lhe a carta de condução.
Raco pegou nela como se estivesse à espera de outra coisa.
– Julguei que o Gerry tinha dito que era polícia.
– Estou aqui a título pessoal – disse Falk.
– Então, não oficialmente.
– De modo nenhum. – Algo perpassou no rosto de Raco que Falk não
conseguiu decifrar. Tinha a esperança de que aquilo não descambasse para uma
competição entre os dois. – Sou um velho amigo do Luke. Dos tempos em que
éramos ambos adolescentes.
Raco examinou atentamente a carta de condução antes de lha devolver.
– O Gerry disse que precisava de ter acesso aos extratos bancários. E aos
livros de contas, coisas desse género?
– É isso.
– Passa-se alguma coisa que eu devesse saber?
– A Barb pediu-me que desse uma vista de olhos – disse Falk. – Como favor.
– Certo. – Apesar de ser vários centímetros mais baixo, Raco quase conseguiu
olhar Falk nos olhos. – Olhe, se o Gerry e a Barb dizem que é de confiança, eu
não vou dificultar-lhe as coisas só porque posso. Mas eles estão bastante
vulneráveis neste momento, por isso, se encontrar alguma coisa que eu deva
saber, não se esqueça de ma comunicar. Entendido?
– Não se preocupe. Só estou aqui para os ajudar.
Falk não pôde evitar lançar um olhar por cima do ombro de Raco. No celeiro
cavernoso estava um calor abrasador e as claraboias de plástico davam a tudo
um tom amarelado doentio. Havia um trator parado no meio do chão de cimento
e várias peças de maquinaria ao longo das paredes que Falk não sabia
identificar. Uma mangueira serpenteava da parede mais próxima dos seus pés.
Pensou que poderia ser para mungir as vacas, mas não tinha a certeza. Em
tempos, saberia. Agora, aos seus olhos citadinos, tudo se parecia vagamente
com instrumentos de tortura. Falk acenou na direção dos caixotes ao canto.
– Do que está à procura aí dentro?
– Boa tentativa, pá, mas, como você próprio disse, está aqui a título pessoal –
respondeu Raco. – Os extratos bancários estão na casa. Venha daí. Eu indico-lhe
o escritório.
– Não é preciso. – Falk recuou um passo. – Eu sei onde é. Obrigado.
Ao voltar-se para sair, viu que Raco erguia o sobrolho. Se o tipo estava à
espera de uma luta por território, pensou Falk, não ia ter sorte. De qualquer
maneira, tinha de admirar a dedicação do homem. Era cedo, mas dava a ideia de
que Raco já metera mãos ao trabalho há horas.
Falk começou a encaminhar-se para a casa. Parou. Pensou por um momento.
Barb Hadler poderia ter as suas dúvidas, mas Raco parecia ser um polícia que
levava as coisas a sério. Falk deu meia-volta.
– Ouça – disse. – Não sei o que o Gerry lhe contou, mas sei que, quando
estou encarregado de um caso, é muito mais fácil quando estou a par do que se
está a passar. Há menos margem para erro.
Raco escutou em silêncio enquanto Falk lhe expôs a teoria de Barb de
problemas de dinheiro e dívidas a serem cobradas.
– Acha que há algo de verdade nisso?
– Não sei. Tenho a certeza de que haveria problemas de dinheiro. Vê-se logo
olhando à volta. Se isso significa que outra pessoa que não o Luke puxou o
gatilho já é outra questão.
Raco acenou lentamente com a cabeça.
– Obrigado. Agradeço que me tenha contado.
– Tudo bem. Vou para o escritório.
Falk ia quase a meio do quintal ressequido quando Raco o chamou.
– Ei. Espere um segundo. – O sargento limpou o rosto com o braço e piscou
os olhos para evitar o sol. – Era um bom amigo do Luke, certo?
– Há muito tempo.
– Digamos que o Luke queria esconder alguma coisa. Pequena. Faz ideia de
onde a meteria?
Falk pensou por um momento; apercebeu-se de que não precisava realmente
de pensar.
– Talvez. Que tipo de coisa?
– Se a encontrarmos, eu mostro-lha.
O hall de entrada estava abafado e fedia a lixívia. Uma mesa estreita ocupada
com uma pilha de contas e esferográficas estava encostada de esguelha contra a
parede mais afastada, empurrada da sua posição original. O chão de cerâmica
parecia sinistramente limpo. Todo o chão fora esfregado até parecer novo.
– O pessoal de limpeza profissional já cá esteve, por isso não vai haver
nenhuma surpresa desagradável – disse Raco. – Não conseguiram salvar a
alcatifa no quarto do rapaz. Não que alguém quisesse salvá-la.
As paredes estavam cobertas por fotografias da família. As poses fixas
pareciam de algum modo familiares e Falk apercebeu-se de que vira a maior
parte dessas pessoas no funeral. Toda a cena parecia uma imitação grotesca do
acolhedor lar que ele conhecera.
– O corpo da Karen foi encontrado aqui mesmo, no hall – disse Raco. –
Como a porta estava aberta, o estafeta viu-a imediatamente.
– Ela estaria a correr para a porta? – Falk tentou imaginar Luke a perseguir a
sua mulher na casa deles.
– Não, a questão é mesmo essa. Ia abrir a porta. Foi alvejada por quem quer
que estava na soleira. Vê-se pela posição do corpo. Mas diga-me cá uma coisa,
quando vai para casa à noite, a sua mulher vem-lhe abrir a porta?
– Não sou casado – respondeu Falk.
– Bem, eu sou. E já sou suficientemente crescido para ter chave de casa.
Falk refletiu. – Talvez fosse para a apanhar de surpresa? – sugeriu,
imaginando a cena.
– Para quê dar-se a esse trabalho? Se o papá voltasse para casa de caçadeira
carregada na mão, acho que ficariam bastante surpreendidos. Ele tem-nos a
ambos dentro de casa. Conhece os cantos à casa. É muito fácil.
Falk posicionou-se no hall e abriu e fechou a porta algumas vezes. Aberta, a
entrada era um retângulo de luz que cegava, comparada com a escuridão do
hall. Imaginou Karen a vir ver quem batera à porta, um pouco distraída talvez,
possivelmente irritada com a interrupção. A piscar os olhos à luz durante o
segundo crucial que o seu assassino demorou a assestar a arma.
– Parece-me estranho – disse Raco. – Alvejá-la à entrada. Só deu ao pobre do
rapaz uma oportunidade para se borrar todo e fugir, não necessariamente por
essa ordem.
Raco olhou para trás de Falk. – O que me leva ao ponto seguinte – disse. –
Quando estiver pronto.
Falk acenou com a cabeça e seguiu-o pelo corredor.
– Ora bem, vamos lá parar com isso, faz favor – disse o homem do bar por
trás do balcão. Tinha-se posto de pé e estava com as pontas dos dedos pousadas
no balcão. Por trás da sua barba ruiva, estava com um ar sério. – Isto é um bar
público. Qualquer pessoa pode beber aqui, ele, você, e é pegar ou largar.
– Qual é a terceira opção? – Dow mostrou os dentes amarelos aos seus
colegas, que se riram.
– A terceira opção é que o ponho na rua. Por isso, a escolha é sua.
– Pois. Mas anda sempre a fazer essas ameaças, não anda? – Dow fitou o
homem do bar. Raco pigarreou, mas Dow ignorou-o. As palavras do homem do
bar vieram à mente de Falk. Aqui na parvónia, esses crachás significam menos
do que deviam.
– O problema não é ele estar no bar. – O pub estava quase em silêncio quando
Mal Deacon falou. – É ele estar de volta a Kiewarra.
Ergueu um dedo grosso com artrite e apontou-o para o espaço entre os olhos
de Falk. – Compreende isto e di-lo ao teu rapaz. Não há aqui nada para vocês a
não ser uma data de pessoas que se lembram do que o teu filho fez à minha
filha.
– Balelas. Eu não tive nada a ver com o que aconteceu à Ellie. – Falk não
conseguiu controlar-se e imediatamente se arrependeu de ter falado. Mordeu a
língua. Não dês troco.
– Quem o diz? – Don Dow estava de pé por trás do tio. O seu sorriso frio já
há muito desaparecera. – Quem diz que tu não tiveste nada a ver com isso? O
Luke Hadler? – Ao ouvir-se aquele nome, deu a sensação de que o ar tinha sido
sugado do bar. – O problema é que o Luke já não está cá para dizer grande
coisa.
Q uando Aaron Falk tinha onze anos, viu Mal Deacon transformar o seu
próprio rebanho numa confusão de ovelhas cambaleantes a sangrarem,
usando tesouras de tosquiar e uma mão brutal. Aaron sentiu uma dor inchar-lhe
no peito enquanto ele, Luke e Ellie viam uma ovelha atrás de outra
arremessadas para o chão no barracão dos Deacon com um movimento seco e
tosquiadas demasiado rente à pele.
Aaron era um rapaz do campo, todos eles eram, mas aquilo era de mais. Um
grito de cortar o coração da ovelha mais pequena fê-lo abrir a boca e inspirar
fundo, mas Ellie impediu-o de falar, puxando-lhe pela manga para o afastar.
Olhou para cima, para ele, e abanou uma vez a cabeça.
Era uma criança franzina e intensa naquela idade, com tendência para longos
períodos de silêncio. Aaron, que também tendia para ser calado, aprovava a
atitude de Ellie. Usualmente, deixavam Luke fazer as despesas da conversa.
Ellie mal tinha ainda erguido a cabeça quando os sons do celeiro flutuaram
para onde os três se tinham ido sentar, no alpendre inclinado. Aaron sentiu
curiosidade, mas foi Luke que insistiu que abandonassem o trabalho de casa
para investigar. Agora, com os gemidos das ovelhas nos ouvidos e uma
expressão fixa no rosto de Ellie que ele nunca vira, Aaron soube que não era o
único a desejar que não tivessem ido ver o que se passava.
Viraram-se para ir embora e Aaron deu um salto ao ver a mãe de Ellie a
assistir em silêncio da entrada do celeiro. Estava encostada à entrada, com uma
camisola castanha com uma mancha de gordura que não lhe ficava bem. Bebeu
um gole do líquido da cor do âmbar num copo sem tirar os olhos da tosquia. Os
seus traços faciais eram partilhados pela filha. Tinham os mesmos olhos
encovados e a mesma pele macilenta e boca larga. Mas a Aaron a mãe de Ellie
parecia ter cem anos. Passar-se-ia muito tempo até ele compreender que ela
nem sequer devia ter ainda quarenta anos.
Enquanto ele olhava para a mãe de Ellie, ela fechou os olhos e atirou a cabeça
com força para trás. Inspirou fundo, enrugando o rosto. Quando voltou a abrir
os olhos, pregou-os no marido, fitando-o com um olhar tão puro e concentrado
que Aaron sentiu terror que Deacon se virasse e o visse. Arrependimento.
O tempo naquele ano tornara o trabalho mais duro para toda a gente e daí a
um mês o sobrinho de Deacon, Don, mudou-se para a casa da quinta para lhes
dar uma mão. A mãe de Ellie foi-se embora dois dias depois. Talvez fosse a
última gota. Aturar ressentida um homem era o suficiente para qualquer pessoa.
Atirando com duas malas de viagem e um saco a tilintar com garrafas para
dentro de um carro velho, sem se esforçar muito tentou deter as lágrimas da
filha com promessas vagas de que voltaria em breve. Falk não tinha a certeza de
quantos anos tinham passado até Ellie deixar de acreditar na promessa da mãe.
Perguntou-se se em parte não teria acreditado naquilo até ao dia da sua morte.
– «Está sempre a acontecer alguma coisa»? – disse Raco. – O que é que ele
queria dizer com isso?
Sullivan olhou para a mesa com um ar atormentado. – Não sei. Não
perguntei. Devia ter perguntado, não devia?
Sim, pensou Falk. – Não – disse. – Provavelmente, não teria feito diferença
nenhuma. – Não sabia se isso era verdade. – O Luke disse mais alguma coisa
sobre o assunto?
Sullivan abanou a cabeça. – Não. Voltámos a falar do tempo. Como sempre.
A árvore não tinha hipóteses, pensou Falk. Sentia o calor através das solas
dos seus sapatos.
De novo no recinto da sua antiga escola primária, Falk foi mais uma vez
acometido pela sensação de que poderia ter recuado trinta anos. O recreio de
asfalto era uma versão miniatural do que ele recordava e os bebedouros
pareciam absurdamente baixos. Mas era instantaneamente familiar,
desencadeando vagas recordações de rostos e acontecimentos que esquecera há
muito.
Luke era um bom aliado para ter nessa época. Era um daqueles rapazes com
um sorriso fácil e resposta pronta que conseguia manobrar sem esforço na lei da
selva do recreio. Carismático seria a palavra que se lhe aplicava, se a
conhecessem naquela idade. Era generoso com o seu tempo, com as suas
piadas, com os seus pertences. Com os seus pais. Toda a gente era bem-vinda na
casa dos Hadler. Ele era extremamente leal. Quando, uma vez, Falk apanhou
com uma bola de futebol desgovernada na cara, teve de arrastar Luke para ele
não bater ao rapaz que a tinha atirado. Falk, alto e desengonçado naquela altura,
estava sempre ciente da sua sorte por ter Luke do seu lado.
Falk mexeu-se desconfortavelmente quando a cerimónia chegou ao fim.
– O Scott Whitlam, o diretor – disse Raco, acenando para um homem de
gravata com um ar atlético que estava a afastar-se de um grupo grande de pais.
Whitlam aproximou-se deles, com uma mão estendida. – Desculpem tê-los
feito esperar – disse, depois de Raco apresentar Falk. – Toda a gente quer
conversar numa ocasião como esta.
Whitlam tinha quarenta e poucos anos e movia-se com a energia fácil de um
ex-atleta. Tinha o tronco largo e um sorriso rasgado. Um centímetro de cabelo
castanho limpo era visível debaixo da orla do seu chapéu.
– Foi uma bela cerimónia – disse Falk, e Whitlam lançou um olhar à pequena
árvore.
– Era do que precisávamos. – Baixou a voz. – Mas a árvore não tem a mínima
hipótese. Deus sabe o que havemos de dizer aos miúdos quando morrer. Seja
como for... – Acenou na direção do edifício de tijolos amarelos. – Juntámos
tudo o que pertencia à Karen e ao Billy, como pediram. Não há muita coisa,
receio bem, mas está no gabinete.
Atravessaram o recreio atrás dele. Uma sineta soou algures à distância. Era o
fim do dia de aulas. De perto, os edifícios e os equipamentos para jogos
pareciam deprimentes. A tinta em todas as superfícies estava esfolada e o metal
à vista estava vermelho com ferrugem. Havia brechas no escorrega de plástico e
só um dos lados do campo de basquetebol tinha cesto. Os sinais de uma
comunidade pobre viam-se por toda a parte.
– Os fundos – disse Whitlam quando os viu olhar à sua volta. – Nunca há que
chegue.
Nas traseiras do edifício da escola, havia alguns pobres carneiros em cercados
castanhos. Atrás, a terra erguia-se abruptamente numa cadeia de colinas
cobertas de mato.
O diretor parou para tirar um punhado de folhas do bebedouro dos carneiros.
– Ainda ensinam Agronomia? – Falk recordava-se de ir verificar um
bebedouro como aquele em tempos.
– Alguma coisa. Mas tentamos aligeirar a coisa. Torná-la divertida. Os
miúdos já têm realidade crua que chegue em casa – disse Whitlam.
– É o senhor que dá essas aulas?
– Por Deus, não, eu sou um humilde citadino. Mudámos de Melbourne para
cá há um ano e meio e eu só aprendi há pouco a distinguir uma ponta da vaca da
outra. A minha mulher queria mudar de ares, sair da cidade. – Fez uma pausa. –
Não há dúvida de que mudámos de ares.
Empurrou uma porta pesada que dava para um átrio a cheirar a sanduíches.
Ao longo das paredes, estavam afixados desenhos e pinturas dos alunos.
– Meu Deus, alguns destes desenhos são deprimentes – murmurou Raco.
Falk via o que ele queria dizer. Havia famílias desenhadas com traços nas
quais todos os rostos tinham uma boca de cantos tombados delineada a lápis de
cor. Uma pintura de uma vaca com asas de anjo. A Toffee a Minha Vaca no Céu,
podia ler-se na legenda escrita numa letra tremida. Em todas as tentativas de
retratar a paisagem, os campos estavam coloridos a castanho.
– Havia de ver os que não expusemos – disse Whitlam, parando à porta do
gabinete. – A seca. Vai matar esta cidade.
Tirou um enorme molho de chaves do bolso e abriu a porta do seu gabinete.
Indicando-lhes um par de cadeiras que já tinham visto melhores dias,
desapareceu para uma despensa. Saiu um momento depois trazendo um caixote
de cartão selado.
– Está tudo aqui dentro. As coisas da secretária da Karen, alguns dos
trabalhos do Billy. Principalmente desenhos e fichas de trabalho.
– Obrigado. – Raco pegou no caixote.
– Sentimos-lhes a falta. – Whitlam encostou-se à secretária. – A ambos.
Ainda estamos abalados.
– Trabalhava de perto com a Karen? – perguntou Falk.
– Razoavelmente, temos pouco pessoal. Ela era excelente. Tratava das
finanças e das contas. Era boa no que fazia. Demasiado esperta para este
trabalho, na realidade, mas penso que lhe convinha, com o infantário e coisas
assim.
A janela estava entreaberta e os sons do recreio chegavam até eles. – Olhe,
posso perguntar porque é que estão aqui? – disse Whitlam. – Pensei que estava
tudo resolvido.
– Envolveu três membros da mesma família – respondeu Raco. –
Infelizmente, algo assim nunca é um caso facilmente encerrado.
– Certo. Claro. – Whitlam não soava convencido. – A questão é que, como eu
tenho a obrigação de garantir a segurança dos alunos e do pessoal, se...
– Não estamos a sugerir que há alguma coisa com que se preocupar, Scott–
disse Raco. – Se houver alguma coisa que precise de saber, assegurar-nos-emos
de que fica a sabê-la.
– Está bem, mensagem recebida – disse Whitlam. – O que posso fazer para os
ajudar?
– Fale-nos sobre a Karen.
– Passou por cá para falar comigo, no dia antes de ela e o Billy serem
assassinados – disse Whitlam. – Estava preocupada, é claro.
– Porquê «é claro»? – perguntou Raco.
– Desculpe, não era minha intenção falar com ligeireza. Mas viram os
desenhos dos miúdos na parede. Queria dizer que toda a gente anda assustada.
Não é diferente para os adultos.
Pensou por um momento.
– A Karen era um elemento realmente valioso da nossa equipa. Mas andava
muito tensa naquelas duas últimas semanas. Mostrava-se brusca, o que não era
habitual. Decididamente preocupada. E tinha cometido um ou dois erros nas
contas. Nada de grave, detetámo-los a tempo. Mas, mais uma vez, não era nada
típico dela. Incomodou-a. Normalmente, era muito rigorosa. Por isso, veio
falar-me sobre o assunto.
Karen fechou a porta atrás de si. Escolheu a cadeira mais perto da secretária
de Whitlam. Sentou-se de costas direitas e cruzou as pernas nos tornozelos. O
seu vestido-envelope favorecia-a, mas era discreto, com um estampado subtil de
maçãs brancas contra um fundo vermelho. Karen era o tipo de mulher cuja
beleza juvenil tinha sido suavizada com a idade e os filhos e se tornara algo
menos definido, mas igualmente atraente à sua maneira. Poderia facilmente
desempenhar o papel de mamã «como é que consegue?» num anúncio de um
supermercado. Qualquer pessoa poderia ter confiança numa marca de
detergente ou de flocos de cereais que Karen Hadler recomendasse.
Agora estava a agarrar uma pequena pilha de papéis no colo.
– Scott – começou, e parou de falar. Ele aguardou. Ela inspirou fundo, –
Scott, para ser franca, não sabia bem se devia vir ter consigo por causa disto.
O meu marido... – Karen fitava-o nos olhos, mas Whitlam sentiu que ela estava
a forçar-se a fazê-lo. – O Luke, bem. Olhe, ele não ficaria nada satisfeito.
*
– Fez uma nova amiga, pá? – perguntou Raco num tom ligeiro quando Falk
entrou no carro.
– É uma velha amiga – disse Falk, mas não conseguiu suprimir um sorriso.
– Então, o que quer fazer? – disse Raco, mais sério agora. Acenou para o
caixote de cartão no banco de trás. – Quer telefonar a Clyde e ficar de mãos
atadas para os convencer de que são capazes de ter feito asneira ou quer ir até à
esquadra e ver o que está no caixote?
Falk olhou para ele por um momento, imaginando aquele telefonema. – Sim,
está bem. Esquadra. Caixote.
– Boa decisão.
– Conduza mas é.
A esquadra era um edifício baixo de tijolos vermelhos no extremo da rua
principal de Kiewarra. As lojas de ambos os lados da esquadra tinham fechado
de vez e as suas montras estavam vazias. Do outro lado da rua, a história era a
mesma. Só a leitaria e a loja de bebidas pareciam ter alguma clientela.
– Meu Deus, isto por aqui está mesmo morto – disse Falk.
– É o que dão os problemas de dinheiro. São contagiosos. Os agricultores não
têm dinheiro para gastar nas lojas, elas vão à falência e depois há mais pessoas
sem dinheiro para gastar nas lojas. Parece que se têm ido abaixo como dominós.
Raco puxou a porta da esquadra. Estava trancada. Soltou uma praga e tirou as
chaves do bolso. Na porta estava afixado um aviso com o horário da esquadra:
de segunda a sexta, das 9 da manhã às 5 da tarde. Fora do horário de
expediente, as vítimas de crimes tinham de tentar a sorte em Clyde, segundo o
aviso. Falk olhou para o relógio. Eram quatro e cinquenta e um. Um número de
telemóvel para emergências tinha sido escrito por baixo à mão. Falk apostava
que era o de Raco.
– Vão sair mais cedo? – disse Raco alto depois de entrarem, com a irritação
evidente no seu tom de voz.
A rececionista, uma senhora dos seus sessenta anos, mas com o cabelo de
uma cor improvável de carvão como a jovem Elizabeth Taylor, ergueu o queixo
em desafio.
– Entrei mais cedo – disse, empertigando-se ligeiramente na sua posição por
trás do balcão. De carteira ao ombro como se fosse a arma de um soldado. Raco
apresentou-a, dizendo o seu nome, Deborah. Ela não apertou a mão de Falk.
No escritório por trás dela, o agente Evan Barnes olhou para cima com um ar
culpado, de chaves do carro na mão.
– Boa tarde, chefe – disse Barnes. – Está mais ou menos na hora, não está? –
Falou num tom excessivamente casual e olhou teatralmente para o seu relógio
de pulso. – Oh. Pois. Ainda faltam uns minutos.
Barnes, um homem grande com tez saudável e cabelo encaracolado espetado
em tufos ridículos, voltou a sentar-se à secretária e começou a mexer nuns
papéis. Raco revirou os olhos.
– Oh, vá lá, ponha-se a andar – disse, levantando a parte articulada do balcão
para passar para o outro lado. – Tenham um bom fim de semana. Resta-nos
esperar que a cidade não se reduza a cinzas às cinco menos um minuto, não é?
Deborah endireitou as costas como uma mulher compenetrada de que afinal
sempre tivera razão.
– Adeuzinho, então – disse a Raco. Fez um breve aceno a Falk, com o olhar
pregado na testa dele em vez de nos olhos.
Falk sentiu uma gota de entendimento cair algures no seu peito. Ela sabia.
Não o surpreendia, não realmente. Supondo que Deborah era nada e criada em
Kiewarra, tinha idade para se recordar de Ellie Deacon. Fora a coisa mais
dramática que alguma vez acontecera em Kiewarra, pelo menos até à morte dos
Hadler. Provavelmente, enquanto tomava café comentara os artigos dos jornais
por baixo da fotografia a preto e branco de Ellie. Trocara mexericos com os
vizinhos. Talvez tivesse conhecido o pai de Falk. Antes de acontecer aquilo,
claro. Depois, não admitiria que conhecia a família Falk.
Sentado numa cadeira dura, com a bexiga nervosa e a doer, Aaron manteve o
combinado. Eu estive com o Luke Hadler. A caçar coelhos. Dois, caçámos dois.
Sim, a Ellie é – era, quero dizer – minha amiga. Sim, vi-a na escola nesse dia.
Não! Não discutimos. Nem sequer a vi mais tarde. Não a ataquei. Estive com o
Luke Hadler. Estive com o Luke Hadler. Andámos a caçar coelhos. Estive com o
Luke Hadler.
Tiveram de o soltar.
Alguns dos boatos assumiram então uma nova forma. Não homicídio, talvez,
mas suicídio. Uma rapariga vulnerável enganada pelo rapaz do Falk era uma
versão popular. Perseguida e usada pelo seu pai ligeiramente estranho era
outra. Quem poderia saber? De uma forma ou de outra, entre os dois era como
se a tivessem matado. Os boatos foram bem alimentados pelo pai de Ellie, Mal
Deacon, e tornaram-se gordos e sólidos. Cresceram-lhes pernas e cabeças e
nunca chegaram a morrer.
Numa noite, foi atirado um tijolo à janela da frente da casa dos Falk. Dois
dias depois, o pai de Aaron foi escorraçado da mercearia da esquina. Forçado
a sair de mãos vazias com os olhos a arder e as compras empilhadas em cima
do balcão. Na tarde seguinte, Aaron foi seguido da escola até casa por três
homens numa furgoneta. Aproximavam-se por trás dele, enquanto ele pedalava
na bicicleta cada vez mais depressa, quase se desequilibrando sempre que
ousava olhar por cima do ombro, com a respiração a soar-lhe alto nos ouvidos.
Raco estendeu a mão para o caixote e pôs o seu conteúdo em fila em cima da
secretária.
Havia uma caneca para o café, um agrafador com o nome «Karen» escrito
nele a tinta branca, um casaco de malha grossa, um frasco pequeno de perfume
chamado Spring Fling e uma fotografia emoldurada de Billy e Charlotte. Era
uma pobre amostra.
Falk abriu a moldura e procurou por trás da fotografia. Nada. Voltou a montá-
la. Do outro lado da secretária, Raco tirou o tampo ao frasco de perfume e
borrifou um pouco dele. Um aroma cítrico ligeiro espalhou-se no ar. Falk
gostou do cheiro.
Avançaram para os pertences de Billy; três desenhos pintados de carros, um
par pequeno de sapatilhas de ginástica, um livro de leitura para principiantes e
um estojo de lápis de cor. Falk folheou o livro, sem saber ao certo o que
procurava.
Foi por volta dessa altura que se deu conta de que o seu pai andava a
observá-lo. Do outro lado da sala, por uma janela, por cima do jornal. Aaron
ficava com uma ligeira sensação na nuca e olhava para cima. Por vezes, o
olhar de Eric desviava-se. Outras vezes, não. Contemplativo e em silêncio.
Aaron esperava pela pergunta, mas ela não vinha.
Um vitelo morto foi-lhes deixado à porta, com um corte tão fundo no pescoço
que a cabeça quase estava separada do corpo. Na manhã seguinte, pai e filho
enfiaram o que puderam na carrinha. Aaron despediu-se à pressa de Gretchen
e mais demoradamente de Luke. Nenhum deles mencionou o motivo por que ele
se ia embora. Ao saírem de Kiewarra, a furgoneta branca de Mal Deacon
seguiu-os por cem quilómetros.
Nunca mais voltaram.
– A Karen obrigou o Billy a voltar para casa nessa tarde – disse Falk. Estava
a pensar naquilo desde que saíram da escola. – Ele ia brincar com a amiguinha e
ela fê-lo ficar em casa no dia em que foi morto. O que acha de atribuir isso a
uma mera coincidência?
– Não me convence. – Raco abanou a cabeça.
– A mim também não.
– Mas se ela fizesse ideia do que ia acontecer com certeza mandava os dois
filhos para o mais longe possível.
– Talvez suspeitasse que se preparava alguma coisa, mas não soubesse o quê
– disse Falk.
– Ou como ia ser terrível.
Falk pegou na caneca para o café de Karen e pousou-a outra vez. Revistou o
caixote, passou a mão à volta do seu interior. Estava vazio.
– Contava com mais alguma coisa – disse Raco.
– Eu também.
Ficaram a olhar para os objetos durante muito tempo e depois, um a um,
voltaram a metê-los no caixote.
CAPÍTULO 13
O sol já estava mais baixo no céu quando Falk estacionou o carro em frente à
casa da quinta dos Hadler no mesmo lugar de antes. A fita policial amarela
ainda pendia da porta.
Dessa vez, ignorou a casa e foi direto ao maior dos celeiros. Olhou para cima,
para a minúscula câmara de vigilância instalada por cima da porta. Tinha um
aspeto barato e funcional. De plástico cinzento baço com uma só luz vermelha a
brilhar, seria fácil não a ver se não se soubesse que estava ali.
Falk imaginou Luke em cima de um escadote, a pregá-la à parede, a colocá-la
no ângulo certo. Fora posicionada para captar o mais possível das entradas dos
celeiros e do barracão, onde o valioso equipamento agrícola era guardado. A
casa fora um mero extra, a pequena faixa do caminho dos carros captada por
acaso. A quinta não iria à falência se os ladrões roubassem o televisor com
cinco anos. Perder o filtro da água do celeiro seria outra história.
Se viera mais alguém naquele dia, perguntou-se Falk, teria consciência da
existência da câmara de vigilância? Poderia já lá ter estado e saber o que seria
captado? Ou teria simplesmente tido sorte?
Luke saberia que a chapa da matrícula da sua furgoneta seria filmada, se fosse
quem vinha a conduzir, pensou Falk. Mas nessa fase talvez simplesmente já não
se importasse. Falk atravessou o terreiro e fez um circuito completo do exterior
da casa. Raco fizera os possíveis por evitar que os mirones vissem alguma
coisa. Todas as persianas estavam corridas e todas as portas trancadas. Não
havia nada para ver.
F alk ficou sentado por bastante tempo na margem do rio, deixando uma
dormência invadi-lo enquanto o sol pesado descia no céu. Por fim, obrigou-
se a pôr-se de pé. Estava a ficar sem luz. Sabia para onde se dirigir a seguir, mas
não tinha a certeza de conseguir encontrar o caminho no escuro.
Voltou costas à vereda que levava à quinta dos Hadler e encaminhou-se na
direção oposta. Vinte anos antes, havia um pequeno trilho ao longo do rio.
Agora, Falk tinha de se fiar na sua memória, abrindo caminho por entre raízes à
superfície e mato seco.
Olhava para baixo, concentrado para não se perder. Sem o grande rio a correr
ao seu lado como um farol, viu-se quase a desviar-se do caminho várias vezes.
O que o rodeava parecia diferente agora, e os marcos que em tempos eram
familiares não apareciam. Quando começava a pensar que tinha ido demasiado
longe, encontrou-a. Experimentou uma sensação aguda de alívio. Estava a curta
distância da margem, quase ocultada pelo mato. Enquanto avançava por entre
os arbustos densos, percorreu-o uma sensação de felicidade e, pela primeira vez
desde que chegara a Kiewarra, sentiu que voltava a casa. Estendeu a mão.
Ainda ali estava, ainda era a mesma.
A árvore-penedo.
*
Falk passou as mãos pela árvore e sorriu verdadeiramente pela primeira vez
em dias. Em criança, parecia-lhe um milagre da Natureza. Um enorme eucalipto
crescera contra um penedo sólido, com o tronco a curvar-se para prender os dois
num abraço retorcido.
Quando era mais novo, Falk não compreendia porque é que as outras pessoas
não se sentiam fascinadas pela árvore. Pessoas em caminhadas passavam todas
as semanas sem mal olharem para ela e até para outros miúdos era pouco mais
do que um marco esquisito da paisagem. Mas de cada vez que Falk a via,
perguntava-se quantos anos tinham sido necessários para a árvore-penedo se
formar. Milímetro a milímetro. Dava-lhe a sensação estonteante de que ele
mesmo não passava de um minúsculo ponto no tempo. Gostava dessa sensação.
Mais de vinte anos depois, olhou para a árvore-penedo e sentiu-o de novo.
Aaron estava sozinho com Ellie nesse dia, uma situação que, aos dezasseis
anos, simultaneamente desejava e receava intensamente. Tagarelava
incessantemente, irritando-se até a si próprio. Mas estavam sempre a ficar sem
conversa, como um buraco inesperado na estrada. Dantes nunca acontecia,
mas recentemente parecia infiltrar-se em todas as interações dos dois como
uma fenda.
Aaron dava frequentemente consigo a tentar encontrar algo para dizer que
provocasse mais do que uma sobrancelha erguida ou um aceno de cabeça.
Ocasionalmente, acertava em cheio, e os cantos da boca dela curvavam-se
para cima.
Ele adorava esses momentos. Tomava nota mentalmente do que dissera,
arrumava-o para o analisar mais tarde. Esperava encontrar um padrão sobre o
qual pudesse assentar todo um repertório de ditos tão espirituosos que ela não
poderia deixar de sorrir. Até àquele momento, o padrão era
decepcionantemente aleatório.
Tinham passado a maior parte dessa tarde encostados à árvore- -penedo à
sombra. Ellie parecia mais distante do que o normal. Por duas vezes nessa
tarde ele perguntou-lhe alguma coisa e ela não pareceu sequer ouvi-lo. Por fim,
com medo de a maçar, ele sugeriu procurarem Luke ou Gretchen. Para seu
alívio, ela abanou a cabeça.
– Não acho que conseguisse enfrentar o caos neste momento – disse ela. –
Está bem assim, só nós os dois, não está?
– Sim, claro. – É claro que estava. Tentou manter um tom de voz ligeiro. –
Que planos tens para hoje à noite?
Ela fez uma careta. – Vou trabalhar.– Há um ano que tinha um emprego a
tempo parcial que, na maior parte do tempo, implicava ficar de pé com um ar
desinteressado por trás do balcão da leitaria.
– Não trabalhaste ontem à noite?
– As leitarias abrem todos os dias, Aaron.
– Eu sei, mas... – Eram mais horas do que o usual. Do nada, duvidou se ela
estaria a mentir-lhe, mas sentiu-se logo ridículo. Ela não se daria a esse
trabalho.
Ficou a olhar para Ellie, enquanto ela atirava o aro das chaves ao ar e o
apanhava, com as suas unhas brilhantes pintadas de púrpura a refletirem a luz
do sol da tarde. Estava a tentar arranjar coragem para levantar a mão e
agarrar as chaves no meio do ar. Podia troçar dela com meiguice, como o
Luke. E depois – bem, depois Aaron não tinha a certeza do que aconteceria.
Por isso, foi quase um alívio quando Ellie atirou as chaves demasiado alto e
elas caíram para trás por cima das cabeças deles.
As chaves tilintaram uma vez contra o penedo e eles ouviram o baque
metálico quando elas caíram ao chão.
*
– Ei, olha para isto. – Aaron inclinou-se para a frente e para trás no lugar
onde estava ajoelhado. Uma fenda funda no centro da árvore-penedo aparecia
e depois desaparecia quando ele se deslocava para um ângulo ligeiramente
diferente. Nunca tinha reparado nela. Um só sítio onde a base da árvore
curvava para fora em vez de estar rente ao penedo. Uma ilusão ótica, era quase
invisível de todos os ângulos menos de um.
Aaron espreitou para o espaço vazio. Era suficientemente grande para nele
enfiar o braço, o ombro e a cabeça, se quisesse. Em vez disso, viu aquilo de que
estava à procura encafuado dentro, mesmo à entrada. Triunfante, fechou a mão
à volta das chaves de Ellie.
Falk espreitou para a abertura do buraco. Não via nada para lá da entrada.
Encontrou um seixo e atirou-o lá para dentro, ouvindo-o fazer ricochete nos
lados. Nada correu ou deslizou para fora.
Falk hesitou, e a seguir baixou a manga até ao pulso e enfiou a mão na
entrada escura. As pontas dos seus dedos pousaram num objeto – pequeno e
quadrado e não pertencente ao mundo da Natureza – e pegou nele. Ao fazê-lo,
algo invisível passou pelo seu pulso e ele tirou a mão à pressa. Endireitou-se,
rindo-se do seu coração acelerado.
Falk abriu a mão e sentiu um choque de reconhecimento. Era um pequeno
isqueiro de metal. Amolgado, velho, mas ainda com a dobradiça da tampa a
funcionar. Falk sorriu e virou-o ao contrário, sabendo o que encontraria. Ali,
numa versão mais antiga da sua letra, estavam riscadas as suas iniciais: A. F.
Nunca tendo sido um fumador empenhado, andava com o isqueiro
principalmente para fazer figura, e um dia, perto do fim, escondera-o para não
se arriscar a que o pai o apanhasse com ele. Falk abriu a tampa, mas não se
atreveu a acendê-lo. Não naquelas condições. Esfregou o metal com a palma da
mão e pensou em meter o isqueiro ao bolso. Mas ele dava a sensação de
pertencer ali, e a um tempo diferente. Um momento depois, meteu a mão no
buraco e voltou a pôr o isqueiro lá dentro.
Falk nunca tinha falado a mais ninguém do buraco. Ou do beijo deles. Tinha
uma certeza razoável de que Ellie também não. Não que tivesse tido muito
tempo para guardar segredo. Três semanas depois e a vinte metros de onde ele
se encontrava, o corpo pálido de Ellie fora tirado do rio. Falk nunca mais
voltara ali depois de ela ser encontrada. Não tivera grande oportunidade, mesmo
que quisesse. Daí a menos de um mês, ele e o pai estavam a quinhentos
quilómetros de distância, em Melbourne.
Sempre se sentira contente por ele e Ellie terem descoberto o buraco naquela
altura, só os dois. Teria havido muitas oportunidades quando eram mais novos e
paravam por ali, junto à árvore-penedo, num trio inseparável com Luke. Mas
nesse caso teria sido automaticamente um achado de Luke. Ele teria reclamado
direitos de propriedade quando, por volta dos doze anos, o trio desenvolveu
uma cisão em termos de sexo.
Nenhum deles reparou até ser demasiado tarde. Ellie estava gradualmente a
ser industriada no mundo estrangeiro das raparigas e saias e mãos limpas e
conversas que faziam Aaron e Luke trocarem olhares de perplexidade. Era uma
migração lenta, mas um dia Aaron apercebeu-se de que eram só ele e Luke, e já
assim era há meses. Mal pensaram no assunto. Ela era só uma rapariga.
Provavelmente, era melhor que não andasse a reboque deles.
Ellie desvaneceu-se da consciência deles com uma facilidade que Falk achava
agora abismal, mas durante três anos mal recordava ter pensado nela uma vez
que fosse. Devia tê-la visto por ali – de modo nenhum poderiam tê-lo evitado.
Mas quando ela voltou a surgir na sua vida aos quinze anos, foi como se tivesse
renascido, completamente formada e a deixar um rasto de fascínio e mistério
como um perfume.
Era mais uma noite de sábado para ele e Luke, sentados nas costas de um
banco no parque Centenary. Com os pés em cima do assento como verdadeiros
rebeldes, de olho no bófia da zona como verdadeiros rapazes de cidade
pequena.
O som de cascalho a ser pisado e uma sombra passageira, e Ellie Deacon
apareceu como se vinda do nada. O seu cabelo era agora de um negro artificial
e as pontas espigadas quase lhe chegavam aos cotovelos. Brilhava seco à luz
laranja dos candeeiros do parque. Estava só.
Aproximou-se deles, de calças de ganga justas, botas artisticamente esfoladas,
alça do soutien de renda a ver-se no decote grande do top. Passou o seu olhar
debruado a eyeliner pelos dois rapazes que a fitavam, com as bocas
ligeiramente entreabertas. Ellie ergueu uma sobrancelha ao ver a lata de cerveja
morna que estavam a partilhar, meteu a mão na sua carteira de pele artificial e
tirou uma garrafa de vodka quase cheia.
– Há espaço para mais um? – perguntou. Quase caíram do banco na pressa de
se chegarem para o lado. Os anos desapareceram com a vodka e quando já
tinham esvaziado parte da garrafa o trio estava novamente formado.
Mas algumas minúsculas variações na amizade entre os três indiciavam novos
caminhos a serem explorados. As conversas tinham novos subentendidos. Os
rapazes ainda passavam ocasionalmente algum tempo só os dois, mas Aaron
deu consigo a envidar esforços para limitar as oportunidades de Luke e Ellie
estarem juntos sem ele. Nunca falou do assunto com Luke, mas o número de
vezes que as suas tentativas de ficar sozinho com ela eram defraudadas fazia-o
suspeitar de que o seu amigo estava a dirigir uma operação secreta semelhante à
sua. A dinâmica do grupo sofreu uma alteração subtil, mas real, sem nenhum
dos três saber ainda ao certo onde tinha ido aterrar.
Ellie nunca chegou a explicar realmente por que voltara para os dois amigos.
Quando Aaron lhe perguntou uma vez, ela revirou os olhos.
– São uma data de cabras – disse. – Se não tiver a ver com o reflexo delas no
espelho não lhes interessa. Pelo menos vocês os dois não querem saber se vos
faço fazer fraca figura. – Acendeu um cigarro e olhou para ele com franqueza,
como se aquilo explicasse tudo, e talvez explicasse.
A amizade estava ainda a ser cimentada quando se deparou com a sua
primeira prova real. Quando a pressão foi aplicada, veio inesperadamente do
salto dos sapatos cor-de-rosa de Gretchen Schoner.
Mesmo em Kiewarra as hierarquias sociais tinham de ser respeitadas, e
Gretchen era um ser habitualmente avistado a sacudir os seus cabelos louros e a
rir-se entre um grupo de seguidores. E por isso Aaron e Ellie tinham ficado de
boca aberta quando Luke apareceu no parque Centenary com o braço por cima
do ombro da rapariga.
Luke crescera subitamente e era agora meia cabeça mais alto do que a maior
parte dos colegas da turma e tinha os ombros largos e o tronco forte. No parque
ensombrado nessa noite, com o cabelo de Gretchen a cair numa cortina revolta
sobre a manga do casaco dele e um andar decididamente gingão, Aaron
compreendeu pela primeira vez que o seu amigo parecia um homem.
Gretchen estava corada e soltou risadinhas quando Luke fez as apresentações.
Olhou por cima da cabeça de Gretchen para Aaron e piscou-lhe o olho não
muito subtilmente. Aaron acenou com a cabeça, devidamente impressionado.
Havia milhares de lugares onde Gretchen Schoner poderia estar num sábado à
noite e no entanto estava ali, ao lado de Luke.
Como raramente tivera oportunidade de trocar umas palavras com Gretchen
no passado, Aaron ficou agradavelmente surpreendido. Ela era encantadora e
inesperadamente espirituosa. Tagarelava com à-vontade e daí a uns momentos
já estava a fazê-lo rir. Ele via porque é que as pessoas se apinhavam à sua volta.
Irradiava uma energia que atraía.
Por trás de Aaron, Ellie pigarreou emitindo um som baixo e ele apercebeu-se
sobressaltado de que quase se tinha esquecido de que ela estava ali. O olhar dela
quando ele se virou era de ligeiro desdém, mas não de surpresa, como se ele e
Luke tivessem reprovado numa prova em que não se esperava que passassem. O
olhar dele saltou do sorriso de Gretchen para a expressão fria de Ellie, com
sinais de alerta a soarem alto e bom som, mas demasiado tarde. Lançou um
olhar a Luke, esperando ver a mesma perceção a aparecer no seu rosto. Em vez
disso, Luke estava a olhar para a cena com uma curiosidade divertida. Por um
tenso momento, ninguém disse nada.
Subitamente, Gretchen sorriu com um ar de conspiração à outra rapariga e fez
um comentário espetacularmente maldoso sobre uma das ex-amigas de Ellie.
Houve uma pausa cheia de significado e a seguir Ellie soltou uma pequena
gargalhada. Gretchen selou o acordo oferecendo os seus cigarros. Arranjaram-
lhe lugar no banco do parque, nessa noite e em todas as noites de sábado
durante o ano que se seguiu.
– Meu Deus, ela é o equivalente humano de um banho de espuma – segredou
Ellie a Aaron numa noite pouco depois, mas não conseguiu esconder um
sorrisinho enquanto falava. Tinham todos estado a rir com a história de
Gretchen sobre um rapaz mais velho que a convidara para sair recortando
palavras num campo de cultivo do seu pai e dando cabo dele. Agora, ela e Luke
estavam embrenhados numa conversa, com as cabeças tão perto que quase se
tocavam. Gretchen soltou uma gargalhada brincalhona e baixou os olhos
quando Luke murmurou algo que Aaron não conseguiu ouvir. Ele voltou-se
para Ellie.
– Tu e eu podíamos ir para outro lado se ela te está a irritar – disse Aaron. –
Não temos de ficar aqui.
Ellie olhou-o através de um véu de fumo por um momento e depois abanou a
cabeça. – Não. Ela é fixe – disse. – Um bocado levezinha. Mas inofensiva.
– Tudo bem. – Aaron suspirou interiormente e pegou no cigarro que ela lhe
ofereceu. Virou-se para o acender, e viu Luke passar o braço à volta dos ombros
de Gretchen e inclinar-se para um beijo rápido. Quando Luke voltou a recostar-
se, olhou por cima da cabeça de Gretchen na direção deles. Ellie, que estava a
examinar a ponta acesa do seu cigarro com uma expressão de quem estava
longe, não reagiu.
Apareceu e desapareceu num instante, mas Aaron viu a expressão de
contrariedade passar no rosto do seu amigo. Ocorreu-lhe o pensamento de que
não era o único a ressentir-se um pouco por as duas raparigas parecerem estar-
se a dar tão bem.
CAPÍTULO 15
Demorou só uns minutos a chegar ao fim da vereda, mas quando saiu de entre
as árvores o céu já estava azul-escuro índigo. Do outro lado de um campo, uma
casa de quinta brilhava cinzenta no lusco-fusco. Falk atravessou o campo a
direito, como fazia sempre. Abrandou o passo ao se aproximar até parar a cerca
de vinte metros da casa. Fitou o que fora o seu lar na infância.
A porta do alpendre, que dantes era amarela, era agora de uma insípida
tonalidade de azul, reparou com algo parecido com indignação. Tinha bolhas
onde a tinta estava a esfolar. Vislumbrou partes em amarelo por baixo nas
brechas como cicatrizes grossas. Os degraus de madeira onde se sentara com
brinquedos e cromos do futebol estavam agora abaulados de velhos. Por baixo,
uma lata de cerveja estava caída na relva seca.
Combateu o súbito impulso de pegar nela e procurar um caixote do lixo. De
pintar a madeira. De arranjar os degraus. Em vez disso, deixou-se ficar onde
estava. As janelas estavam todas às escuras, menos uma, iluminada pelo clarão
azul de uma televisão.
Falk sentiu uma pontada aguda de saudade do que poderia ter sido. Via o seu
pai de pé junto à porta-mosquiteiro ao fim do dia, uma figura alta emoldurada
pelo clarão de luz de dentro de casa. A chamá-lo para deixar a brincadeira e vir
para dentro. São horas do jantar, Aaron. Banho, cama. Entra, filho. São horas de
vir para casa. O pai raramente lhe falava sobre a mãe, mas quando era mais
novo Aaron gostava de fazer de conta que a sentia dentro de casa. Passava os
dedos por coisas em que sabia que ela tinha tocado – as torneiras na cozinha, a
louça da casa de banho, as cortinas – e imaginava-a nesses mesmos sítios.
Tinham sido felizes ali em tempos, Falk sabia. Ele e o seu pai, pelo menos.
Olhando naquele momento para a casa, era como uma linha na sua vida. Uma
marca na divisória entre o antes e o depois. Sentiu um acesso de raiva, dirigida
pelo menos em parte contra si mesmo. Não sabia porque é que tinha vindo.
Recuou um passo. Era só mais uma casa a precisar de obras. Não restava ali
nada de si ou do seu pai.
Estava a virar-se para ir embora quando a porta-mosquiteiro se abriu com um
rangido. Uma mulher saiu, a sua figura atarracada iluminada por trás pelo
clarão da televisão. O seu cabelo castanho baço estava apanhado num rabo de
cavalo solto e tinha as ancas à mostra por cima da cintura das calças. Tinha o
rosto vermelho arroxeado de uma mulher cujos hábitos de bebida estavam a
passar de sociais a sérios. Acendeu um cigarro e inalou o fumo profundamente,
fitando Falk em silêncio com um olhar frio.
– Posso ajudá-lo, pá? – Soltou uma baforada, semicerrando os olhos para
evitar o fumo que lhe envolveu o rosto.
– Não, eu... – Parou de falar, repreendendo-se mentalmente. Devia ter
pensado em alguma coisa. Numa desculpa qualquer para rondar a porta da casa
de uma pessoa estranha ao cair da noite. Examinou a expressão dela. Detetou
surpresa, mas não reconhecimento. Ela não sabia quem ele era. Isso era uma
ajuda. Num só momento, pôs a hipótese de lhe dizer quem era e rejeitou-a.
Podia mostrar-lhe o crachá de polícia. Fá-lo-ia se tivesse de ser. No entanto,
Falk, o polícia, sentia-se embaraçado por se encontrar ali.
– Desculpe – disse. – Eu dantes conhecia as pessoas que viviam aqui.
A mulher não disse nada e deu mais uma passa no seu cigarro. Levou a mão
livre atrás e soltou pensativamente o tecido dos calções que se tinha metido
entre as nádegas. Não tirava os olhos semicerrados de Falk.
– Eu e o meu maridão somos os únicos aqui. Estamos cá há cinco anos. E a
casa era da mãe dele quinze anos antes disso ou mais.
– Foi mais ou menos há esse tempo – disse Falk. – Eram as pessoas antes
dela.
– Foram-se embora – disse ela no tom de voz de alguém que se vê obrigado a
dizer o que é óbvio. Com o indicador e o polegar tirou da língua um pedaço de
tabaco.
– Eu sei.
– E então?
Era uma boa pergunta. Falk não sabia bem ele próprio qual era a resposta. A
mulher virou-se ao ouvir um ruído vindo de dentro de casa. Abriu a porta-
mosquiteiro o suficiente para espreitar para dentro de casa.
– Sim, querido – Falk ouviu-a dizer. – Estou a tratar do assunto. Está tudo
bem. Não é ninguém. Volta para dentro. Não... volta para dentro, está bem? – A
mulher esperou um momento e a seguir voltou a sair, de rosto corado e com
uma expressão carrancuda. Virou-se para Falk e saiu do alpendre a encaminhar-
se para ele. Parou a alguns metros de distância.
– É melhor ir-se já embora, se sabe o que é bom para si. – Falava em voz
baixa, mas num tom hostil. – Ele já bebeu um bocado e não vai ficar nada
contente se tiver de vir cá fora, certo? Nós não temos nada a ver com nada do
que se passou dantes. Compreende? Nunca tivemos nada a ver com o assunto.
Nem a mãe dele. Por isso pode pegar no raio do seu cartão de imprensa ou lata
de tinta ou saco de cocó de cão ou seja lá para o que é que está aqui e pôr-se a
andar, está bem?
– Olhe, desculpe. – Falk recuou um passo e mostrou-lhe as palmas das mãos.
Não era uma ameaça. – Não era minha intenção incomodá-la. Nem a si nem ao
seu marido.
– Sim, bem, mas incomodou. Isto é a nossa casa, certo? Comprámo-la e
pagámo-la. E era só o que faltava virem-nos aqui chatear. Já passaram vinte
anos. Vocês não se cansaram já, seus cabrões?
– Olhe, tem razão. Eu vou...
Ela deu um só passo em frente, apontou para a casa com uma mão e estendeu
a outra com o telemóvel.
– Ai vai, vai. Ou não vai ser à bófia que eu telefono. Vai ser ao que está lá
dentro e a alguns dos colegas dele, que vão ficar todos contentes por lhe fazer
entender o recado. Está-me a ouvir? Ponha-se. A andar. – Inspirou fundo, a falar
mais alto agora. – E pode dizer isto a quem quiser saber. Não temos nada a ver
com os que cá viveram antes. Nada a ver com esses anormais.
A palavra pareceu ecoar pelos campos. Falk ficou imóvel por um momento.
Em seguida, sem responder, virou-se e afastou-se.
Não olhou para trás uma única vez.
CAPÍTULO 16
O cabelo louro de Gretchen apareceu por entre as pessoas que estavam no pub
e Falk sentiu uma pontada rápida de gratidão por ela não ter cedido ao impulso
de cancelar o encontro.
Virando costas à sua antiga casa na noite anterior, dirigiu-se diretamente ao
carro e ficou ali parado durante muito tempo, a resistir à tentação de regressar
de imediato a Melbourne. Depois de uma noite mal dormida, ficou todo o dia
fechado no quarto, a analisar a pilha de documentos que trouxera da quinta dos
Hadler. Foi uma pesquisa bastante infrutífera, mas continuara a passar tudo em
revista metodicamente, tomando um apontamento ocasional quando algo lhe
chamava a atenção. Baixar a cabeça, fazer o trabalho. Ao sair por breves
instantes para comprar comida, ignorou o movimento do fim de semana na rua
e, após um momento de culpa, pôs o telemóvel em silêncio quando Gerry
telefonou. Falk faria o que tinha prometido. Isso não queria dizer que quisesse
falar sobre o assunto.
Naquele momento, ali em baixo no pub, pela primeira vez nesse dia não
sentiu tanta pressa de se ir embora. Gretchen encontrou-o sentado a uma mesa
encafuada no canto mais afastado, com o chapéu puxado para os olhos. Ela
estava novamente de preto, mas dessa vez com um vestido. Era curto, com um
debrum que roçava pelas suas pernas nuas ao andar. Ficava-lhe muito melhor do
que a indumentária do funeral. Algumas cabeças entre a clientela de sábado à
noite viraram-se à sua passagem. Não tantas como no liceu, observou Falk, mas
algumas.
– Estás gira – disse ele.
Gretchen pareceu ficar contente e deu-lhe um beijo na face quando ele se
levantou para ir buscar as bebidas ao balcão. Ela cheirava bem. Um perfume
floral.
– Obrigada. Tu também. Gosto da tua camisa. Está muito na berra em
Kiewarra. – Acenou para a compra recente dele e ele sorriu. Encaixou-se no
lugar do canto. – Esta era a única mesa livre ou estás-te a esconder?
– Estou-me a esconder. Por assim dizer. – Falk não conseguiu deixar de sorrir.
– Voltei à minha antiga casa ontem à noite.
Ela ergueu as sobrancelhas. – E?
– Não foi bem o que esperava.
– Nunca é.
Ele foi ao balcão e o homem barbudo do bar serviu-lhe uma cerveja e um
copo de vinho branco ligeiramente suspeito. Depois de voltar para a mesa,
Gretchen ergueu o copo.
– À tua. Lembras-te de quando estávamos mortinhos por sermos servidos
aqui? Todas aquelas noites no parque a emborcar tudo a que conseguíssemos
deitar a mão. – Arregalou os seus olhos azuis numa expressão teatral de
incredulidade enquanto apontava para o que os rodeava. – Agora olha para nós.
Um sonho tornado realidade.
Falk riu-se e olharam-se nos olhos enquanto pensavam no passado. Falk sabia
que os anos da adolescência de Gretchen, com os seus lábios pintados e as suas
pernas compridas, lhe proporcionavam um poço de alegria juvenil mais fundo
do que a maioria das outras pessoas. Mas olhando para ela naquele momento,
com o seu vestido, ocorreu-lhe o pensamento de que esses anos, antes de Ellie
morrer e de tudo mudar, talvez tivessem sido os mais felizes da vida dela.
Esperava que não. Esperava que ela tivesse tido mais anos felizes. Franziu a
testa sem querer e o momento perdeu-se.
Gretchen inclinou-se para a frente. – Ouve, devias saber. Já é do domínio
comum. Consta-se pela cidade toda que andas a bisbilhotar para descobrir o que
aconteceu aos Hadler. Tu e o sargento.
– Não é oficial.
– E julgas que isso tem importância?
Falk acenou com a cabeça. Bem visto. – Qual é a opinião geral?
– Depende de a quem perguntes. Algumas pessoas pensam que já ontem era
tarde. Outras têm a certeza de que tu, logo tu, devias olhar mas é pela tua vida.
– Baixou a voz. – E toda a gente está borrada de medo ao pensar no que
significa se outra pessoa qualquer os matou.
Falk sentiu uma pontada de culpa ao pensar na série de chamadas perdidas de
Gerry Hadler no seu telemóvel. Resolveu telefonar-lhe logo de manhã.
– E tu, o que achas? – perguntou Falk, curioso.
– Acho que devias ter cuidado. – Mexeu no pé do seu copo de vinho. – Não
me interpretes mal, adorava saber que não foi o Luke.
– Mas achas que foi ele?
Gretchen franziu a testa. Pensou antes de responder. – Não sei. Não queria
crer quando ouvi a notícia. Mas era mais incredulidade que acontecesse alguma
coisa assim. Pelo que nos chegou aos ouvidos a todos, parecia bastante
evidente. Não parei realmente para pensar se tinha sido o Luke ou não, sabes?
– Nem a maior parte das pessoas. Nem eu.
Ela fez um pequeno sorriso de esguelha. – Eu não diria isto a ninguém a não
ser a ti, mas isso é em parte culpa do Luke por ser um tal parvalhão.
Os campos abaixo deles brilhavam prateados ao luar, com uma por outra
casa de quinta a destacar-se como um borrão na terra. Os quatro estavam
sentados na beira do precipício, com os pés a penderem. Luke fora o primeiro a
trepar a vedação, dando ao mesmo tempo um pontapé à tabuleta a proibir a
entrada. Era deliberadamente que já não se barbeava há uns dias, reparou
Aaron com irritação, e tinha uns pelos curtos a sombrearem-lhe o queixo. Eram
mais visíveis ao luar quando ele se aproximou da beira do penhasco e estirou
os braços, a observar a vista.
Aaron sentira o estômago a dar-lhe uma volta ao ver a ribanceira sem
guardas, mas içou-se sobre a vedação sem um olhar aos outros. Ellie estava
mesmo atrás dele. Luke estendeu o braço teatralmente para ajudar Gretchen.
Ela não precisava de ajuda, mas aceitou-a com um sorriso. Agora estavam ali
sentados a conversar e a rir-se, a sentirem-se quentes por dentro por causa da
garrafa meio vazia que passavam de uns para os outros. Só Ellie abanou a
cabeça quando lhe foi passada a garrafa. À vez, desafiavam-se uns aos outros
para se inclinarem para a frente no precipício e olharem lá para baixo. Cheios
de bazófia e de tretas. Assustadores, mas não assustados.
Luke tinha o braço à volta da cintura de Gretchen, viu Aaron pelo canto do
olho. Luke inclinou-se para ela para murmurar qualquer coisa e Gretchen
olhou para baixo, dengosa, com as pestanas a lançarem sombras azuis nas suas
faces.
Aaron sentia a presença de Ellie ao seu lado, mas não se mexeu. Era a
primeira vez que a via em condições desde o beijo da semana anterior na
árvore-penedo, e ainda sentia que se encontrava numa situação tremida. Ela
tinha dito que ia trabalhar todas as noites. Ele só se atrevera a ir à leitaria uma
vez. Ela acenou-lhe por trás da caixa registadora, mas não era um lugar onde
pudessem conversar.
No caminho até ao miradouro, ele ficou para trás, esperando conseguir
alguns minutos a sós com ela, mas, irritantemente, Luke mantivera-se ao lado
dele. Ellie não dava sinal de estar a pensar no que acontecera junto à árvore.
Quando chegaram à colina, Aaron já começava a sentir que imaginara aquilo
tudo.
Subiram pela vereda, com Aaron a escutar distraidamente a história que
Luke estava a contar em voz muito alta. De súbito, Ellie olhou para ele e
fitaram-se por cima da cabeça de Luke. Ela revirou os olhos numa expressão
exagerada de sofrimento. A seguir sorriu. Um sorriso puro, sabido, secreto,
destinado só a ele.
Animado agora pela recordação, Aaron mexeu-se, pensando aproximar-se
um pouco mais. Virou-se, mas estacou, o movimento paralisado antes de
começar. A luz era fraca, lá em cima no miradouro, mas era suficiente para
Aaron ver algumas coisas claramente. Entre elas, os olhos de Ellie e a maneira
como estavam focados em Luke Hadler enquanto ele segredava ao ouvido de
Gretchen.
– O Luke conseguia ser muito egoísta às vezes – disse Gretchen. Passou um
dedo por um círculo de condensação em cima da mesa, estragando-o. – Punha-
se a ele em primeiro, segundo e terceiro lugar e nem sequer se dava conta. Não
era? Ou era só eu que o via? – Pareceu ficar agradada quando Falk concordou
com um aceno de cabeça.
– Desculpa – disse ela. – Estou a ter dificuldade em separar o Luke que
conheci do que as pessoas andam a dizer. Ou antes, o Luke que julgava que
conhecia.
– Sempre achei que o Luke era muito direto quando éramos mais novos –
disse Falk. – Era muito aberto, dizia o que pensava. Uma pessoa podia nem
sempre gostar, mas pelo menos sabia onde estava com ele.
– E agora?
– Não sei. A gabarolice dele punha-me louco, mas por baixo daquilo senti
sempre que ele era um tipo bom.
– Bem. Esperemos que sim. – Gretchen revirou os olhos. – Detestava ter de
pensar que ele não valeu a pena.
– O que queres dizer?
– Oh, nada. – Parecia embaraçada. – Coisas estúpidas. Só me referia a ter-me
tornado amiga dele, para começar. E tu e a Ellie. Isso mudou imensa coisa para
mim. Pessoas da minha idade a quem eu antes nem ligava começaram a evitar-
me depois de a Ellie morrer. Como se eu tivesse ficado marcada por andar
convosco. Mas eram uns problemas parvinhos da adolescência, comparados
com tudo o resto. Nada com que valesse a pena preocupar-me.
Não conseguia disfarçar completamente uma nota de melancolia na voz. Falk
pensou nos círculos sociais alargados dela, que pareceram encolher-se quando
se tornou membro efetivo do malfadado quarteto. Ocorreu-lhe pela primeira vez
a ideia de que sem ele e sem Ellie, a loura Gretchen poderia de facto ter-se
sentido só. Nunca pensara nessa hipótese antes. Estendeu a mão e tocou-lhe no
braço.
– Lamento não ter mantido o contacto. Não era que não quisesse saber, era
só... – Parou de falar. – Não pensei. Devia ter feito o esforço.
Gretchen fez um pequeno sorriso. – Esquece. Eu não fui melhor. Deito as
culpas à idade e às hormonas. Éramos todos estúpidos nessa altura.
– Por vezes, dá a sensação de que tu eras a única pessoa a quem o Luke era
leal – disse Gretchen. – A maneira como ele se manteve do teu lado na morte da
Ellie. Sofreu as consequências depois de tu te ires embora. Uma data de gente
pressionou-o para ele mudar a versão dele, para te denunciar. – Bebeu o seu
copo de vinho até ao fim e olhou para Falk por cima da borda. – Ele recusou-se
sempre.
Falk inspirou fundo. Aquele era o momento para lhe contar. O Luke mentiu.
Tu mentiste. – Escuta, Gretchen, sobre isso...
– Tiveste sorte, na verdade – interrompeu-o ela. A sua voz baixara um tom. –
Sorte por estares com ele, para começar. Mas à quantidade de críticas que ele
teve por cá, ter-lhe-ia sido muito mais fácil ceder e mudar a história dele. Sem o
Luke, acho que a polícia de Clyde teria conseguido acusar-te daquilo, não há
dúvida.
– Sim, eu sei. Mas escuta, Gretchen...
Ela lançou um olhar à volta do bar. Mais do que uma ou duas pessoas que
estavam a observá-los desviaram o olhar à pressa.
– Olha, o Luke manteve a história dele... manteve-se do teu lado, na
realidade... durante vinte anos – disse ela, mais baixo agora. – Isso é mais ou
menos a única coisa que impediu que tivesses uma data de problemas por cá.
Por isso, dou-te um conselho de amiga, no teu lugar fazia tudo por tudo por ler
alto e bom som pela mesma cartilha.
– Meu Deus, Gretchen, e é o que estou a fazer – disse Falk, tentando manter
um tom ligeiro de voz. Mas a mensagem dela era clara. Não faças perguntas,
não reveles nada. – Porque é que não o faria?
Fitaram-se por um momento. A seguir, Gretchen recostou-se na cadeira e
sorriu-lhe rasgadamente. – Ainda bem. Por nenhuma razão. Só quero assegurar-
me de que estás a ser sensato. Mais vale prevenir do que remediar. – Ergueu o
seu copo, apercebeu-se de que estava vazio e voltou a pousá-lo. Falk bebeu o
resto da sua cerveja e foi ao balcão buscar mais duas bebidas.
– Se toda a gente tinha tanta certeza quanto a mim – disse, quando voltou –,
surpreende-me que não escorraçassem o Luke da cidade também.
Gretchen pegou no copo, com o sorriso a desvanecer-se.
– Algumas pessoas tentaram, sabes? Ao princípio – disse ela. – Com bastante
empenho. Mas sabes como era o Luke, aguentou tudo. Não vacilou, não
hesitou. Por fim, acabaram por aceitar, de certo modo. Não tinham outra
alternativa.
Olhou de novo à volta do pub. Menos rostos os observavam agora.
– Olha, para serem sinceras, muitas pessoas teriam de dizer que sabem que a
Ellie se suicidou. Era uma rapariga de dezasseis anos que precisava de apoio,
que obviamente não tinha, e sim, devíamos todos sentir-nos culpados por causa
disso. Mas em geral as pessoas não gostam de se sentir culpadas e ao fim e ao
cabo era o teu nome que estava na mensagem que ela deixou. Nunca houve
realmente uma explicação para isso... – Fez uma pausa e ergueu ligeiramente as
sobrancelhas.
Falk acenou com a cabeça quase impercetivelmente. Não conseguiu explicá-
lo na altura, não conseguia explicá-lo naquele momento. Pensara
obsessivamente naquilo ao longo dos anos. Recordava as suas últimas
conversas com Ellie, tentava decifrar uma mensagem ou um sentido nas suas
palavras. Para ela, ele era Aaron, não Falk. O que lhe passava pela cabeça
quando escreveu aquilo? Por vezes, não tinha a certeza do que o perturbava
mais: os problemas que causara ou o facto de nunca ter chegado a saber a razão.
– Bem – disse Gretchen. – Realmente não importa. Ela estava a pensar em ti
de alguma maneira por volta da altura em que morreu e, para quem andasse à
procura de alguém a quem apontar o dedo, era quanto bastava. Quer se gostasse
quer não, o Luke era uma personalidade importante, estava envolvido na
comunidade. Tornou-se uma espécie de líder nesta cidade, e nós não podíamos
dar-nos ao luxo de perder muitos deles. Penso que, de uma maneira geral, as
pessoas simplesmente optaram por esquecer.
Encolheu os ombros. – É a mesma razão porque toda a gente por cá atura uns
atrasados como o Dow e o Deacon. Estamos em Kiewarra. É duro. Mas estamos
todos juntos nisto. Tu foste embora, o Luke ficou. Tu arcaste com as culpas.
Gretchen estendeu a mão sobre a mesa riscada e tocou a ponta dos dedos de
Falk. O ruído do pub desvaneceu-se um pouco em pano de fundo. Ela tinha
mãos de trabalho. Não trazia as unhas pintadas, mas estavam limpas, e a polpa
dos seus dedos era áspera contra a pele fina do trabalho à secretária de Aaron.
Ellie enganara-se a respeito dela, Falk sabia-o. Gretchen nunca fora uma
cabeça no ar. Era muito mais rija do que isso. Ficara e enfrentara as coisas.
Construíra uma vida na comunidade e levara a melhor sobre os outros, até
mesmo sobre ele, e, possivelmente, agora também Luke Hadler. Gretchen era
uma resistente. Era uma lutadora. E estava a sorrir-lhe.
– Sei que não foi fácil para ti voltares cá, mas é realmente bom ver-te – disse
ela. – Sempre foste o que tinha juízo. Quem me dera...
Fez uma pausa. Encolheu os ombros. Um ombro bronzeado ergueu-se contra
a alça do vestido. – Quem me dera que tivesses podido ficar. Talvez então tudo
tivesse sido diferente.
Olharam um para o outro até Falk sentir o calor trepar-lhe pelo peito e pelo
pescoço. Pigarreou e ainda estava a pensar numa resposta quando alguém se
veio pôr diante dele.
CAPÍTULO 17
Falk tinha um pé nas escadas para o seu quarto quando soou a voz do homem
do bar.
– Venha cá um momento, pá. Se não se importa.
Falk suspirou, com a mão no corrimão. Olhou pelas escadas acima, cheio de
vontade de as subir. Um retrato mal emoldurado da rainha de Inglaterra fitava-o
sem simpatia do patamar. Virou-se e voltou a entrar no bar. Estava vazio. Sentiu
o aroma ácido a limão do produto de limpeza que o homem do bar estava a
aplicar com um pano no balcão.
– Uma bebida?
– Julguei que estava fechado. – Falk puxou um banco e sentou-se.
– E estou. Esta é por conta da casa. – O homem do bar pousou uma cerveja
diante de Falk e depois tirou uma para si. – Considere-a um agradecimento.
– Por quê?
– Já vi o Don Dow meter-se com uma data de pessoas, e o mais frequente é
acabar comigo a limpar o sangue de alguém. Como não foi esse o caso hoje à
noite, posso relaxar e beber uma cerveja fresquinha consigo. – Estendeu a mão.
– David McMurdo.
– À sua. – Falk bebeu um gole de cerveja, surpreendido com a facilidade com
que lhe desceu pela garganta. Já bebera mais nessa semana do que bebia
normalmente num mês. – Desculpe lá aquilo tudo. Eu sei que disse que não ia
haver problemas.
– Meu amigo, se todos os problemas cá por estas bandas se resolvessem
assim, eu seria um homem feliz – disse McMurdo, passando a mão pela barba.
– Infelizmente, há uma tendência um pouco excessiva para passar às vias de
facto nesta terra.
– Há quanto tempo está cá?
– Vai fazer dez anos. Mas muitos deles ainda me consideram um recém-
chegado. Nado e criado aqui ou para sempre um forasteiro parece ser o lema de
Kiewarra.
– Nado e criado aqui também não dá direito a tudo – disse Falk com um
sorriso sombrio. – Como é que acabou aqui tão longe, de qualquer maneira?
McMurdo fez uma pausa. Passou a língua pelos dentes. – Que razão é que
você dá para ter saído de Kiewarra?
– Oportunidades de carreira – respondeu Falk secamente.
– Bem. Acho que digo o mesmo e deixamos a coisa por aí – McMurdo
apontou à volta do bar vazio com um piscar de olhos. – De qualquer maneira.
Parece que teve sorte. Umas dicas suas sobre como lidar com o Dow teriam
dado jeito ao seu amigo Luke, para ser franco. Mas é demasiado tarde agora,
claro.
– Tinham conflitos?
– A toda a hora e momento – disse McMurdo. – Apertava-se-me o coração
quando um deles estava aqui e o outro entrava. Eram como... sei lá, um par de
ímanes. Gémeos siameses. Ex-amantes ciumentos. Algo do género. Nenhum
dos dois conseguia deixar o outro em paz.
– Por que motivo se zangavam um com o outro?
McMurdo revirou os olhos. – Por tudo e por nada. O tempo, o críquete, o raio
da cor das meias deles. Estavam sempre a implicar um com o outro. Qualquer
coisa servia.
– Está a falar de quê? De andarem ao murro?
– Ocasionalmente – respondeu McMurdo. – A coisa ficou negra algumas
vezes, mas não tanto nos últimos tempos. Nos últimos anos eram mais brigas,
zangas acaloradas. Não me interprete mal, não morriam de amor um pelo outro.
Mas acho que ambos tiravam prazer daquilo, de certa forma. De brigarem. De
desabafarem.
– Nunca compreendi isso.
– Eu também não. Prefiro tomar uma bebida em paz. Mas deve resultar para
alguns tipos. – Limpou o balcão como um homem que sabia que os inspetores
sanitários não estavam a ver. – Para ser justo para com o Dow, não deve ser
fácil olhar pelo tio.
Falk lembrou-se de que Mal Deacon o tinha confundido com o seu pai.
– Sabe qual é o problema dele?
– Está um bocado avariado do juízo. Se é da bebida ou de um problema
médico não sei dizer. Mas dá-lhe para se manter sossegado, seja lá o que for.
Entra aqui e senta-se com uma bebida às vezes ou vagueia pela cidade a fazer
má cara às pessoas, lá com o cão dele, mas é tudo.
– O Don Dow nunca me pareceu ser do tipo Florence Nightingale. Olha pelo
tio a tempo inteiro?
McMurdo sorriu. – Por Deus, não. Trabalha. Faz uns biscates, canalizações,
trabalha nas obras. O que dê para pagar a cerveja. Mas é incrível o que a
promessa de umas massas faz, não é? O Deacon vai-lhe deixar a quinta, ou pelo
menos é o que se consta. É capaz de valer bastante, com aqueles grupos
asiáticos de investimento a andarem sempre por aí a rondar à procura de terras.
A seca não vai durar para sempre. Ao que parece.
Falk bebeu um gole de cerveja. Interessante. A terra dos Hadler confinava
com a dos Deacon. Não fazia ideia de qual seria o preço de mercado, mas duas
parcelas juntas valiam sempre mais para o comprador certo. Desde que a
propriedade dos Hadler fosse posta à venda, claro. Uma hipótese muito menos
provável quando Luke ainda era vivo e controlava as coisas do que agora. Falk
arquivou aquele pensamento para futura reflexão.
– Então o que se consta por aí sobre você andar a investigar as mortes dos
Hadler é verdade? – estava a dizer McMurdo.
– Não é oficial – respondeu Falk, pela segunda vez nessa noite.
– Já topei – disse McMurdo com um sorriso de entendido. – Provavelmente, é
a melhor maneira de conseguir fazer alguma coisa por estas bandas, de qualquer
maneira.
– Dito isto, aconteceu alguma coisa que eu deva saber?
– Refere-se a se o Luke teve uma zanga colossal na noite antes de morrer? Se
o Don Dow declarou diante do pub todo que ia matar-lhe a família a tiro a
sangue-frio?
– Isso seria útil.
– Desculpe dececioná-lo, pá. – McMurdo sorriu, mostrando os dentes
amarelados.
– O Jamie Sullivan disse que esteve aqui com o Luke na noite antes das
mortes – disse Falk. – A fazerem planos para dizimarem os coelhos.
– Acho que foi mais ou menos isso.
– O Dow também cá estava?
– Sim, claro. Vem cá quase todas as noites, é por isso que detesta que eu lhe
proíba a entrada. O que não me serve para nada. É mais uma irritação para ele
do que outra coisa qualquer. Tenho muita dificuldade em fazer cumprir a ordem,
e ele sabe-o. Sempre que tento, ele e os idiotas dos amigos plantam-se lá fora no
alpendre com uma pilha de latas de cerveja. Aturo a chatice toda sem lucro
nenhum, sabe? Seja como for – McMurdo abanou a cabeça. – Para responder à
sua pergunta, o Don Dow esteve aqui naquela última noite em que o Luke cá
veio. Ele e praticamente todas as outras pessoas. Estava a dar o críquete na
televisão, por isso estávamos cheios.
– Viu-o a falar com o Luke? A interagirem? Um deles a implicar com o
outro?
– Não que me lembre. Mas, como disse, foi uma noite cheia de movimento.
Eu não tinha mãos a medir. – McMurdo pensou por um momento, enquanto
bebia o último gole de cerveja e tentava não soltar um pequeno arroto. – Mas
quem sabe, com aqueles dois? Nunca se sabia, de uma noite para a outra, o que
ia acontecer. Eu sei que o Luke era seu amigo e o Dow é um cabrão, mas, em
muitas coisas, eram bastante parecidos. Os dois cheios de si, excessivos, com
mau feitio. Dois lados da mesma moeda, sabe?
Falk acenou com a cabeça. Sabia. McMurdo pegou nos copos vazios e Falk
aproveitou a deixa para se retirar. Desceu do banco e disse boa noite, deixando
o homem do bar a desligar as luzes, mergulhando o andar de baixo no escuro.
Quando Falk subia as escadas um pouco trôpego, o seu telemóvel deu sinal de
nova mensagem de voz. Esperou até estar fechado no quarto e deitado na cama
para martelar as teclas desajeitadamente. Fechou os olhos e uma voz familiar
soou do aparelho.
– Aaron, atende o telefone, atendes? – As palavras de Gerry Hadler soavam-
lhe em tropel aos ouvidos. – Olha, estive a pensar bastante sobre o dia em que a
Ellie morreu. – Uma longa pausa. – Vem à quinta amanhã se puderes. Há algo
que devias ficar a saber.
Falk abriu os olhos.
CAPÍTULO 18
A quinta dos Hadler parecia diferente quando Falk estacionou o carro. A fita
amarela da polícia na porta da rua tinha sido retirada. De ambos os lados da
porta, as cortinas e as persianas estavam descerradas e todas as janelas estavam
entreabertas.
O sol do meio da manhã já estava fortíssimo e Falk estendeu a mão para o
chapéu ao sair do carro. Meteu debaixo do braço o caixote com as coisas de
Karen e Billy da escola e subiu o caminho até à casa. A porta da rua estava
aberta. Lá dentro, o cheiro a lixívia atenuara-se um pouco.
Falk encontrou Barb a chorar no quarto principal. Estava sentada na beira da
cama grande de Luke e Karen, com o conteúdo de uma gaveta despejado em
cima do edredão verde-pálido. Meias dobradas e boxers amarrotados
misturavam-se com moedas e tampas de esferográficas. As lágrimas deslizavam
pelas faces de Barb e tombavam num pedaço de papel colorido no seu colo.
Ela deu um salto quando Falk bateu delicadamente à porta e quando ele se
dirigiu para ela viu que tinha na mão um postal artesanal do Dia do Pai. Barb
limpou o rosto à manga e acenou com o postal a Falk.
– Não há segredo que resista quando se faz uma boa limpeza, não é? Afinal, a
ortografia do Billy era tão má como a do pai dele.
Tentou rir-se, mas tremeu-lhe a voz. Falk sentiu-lhe os ombros estremecer
quando se sentou e a abraçou. O quarto estava sufocante de quente, com um ar
tórrido a entrar pelas janelas entreabertas. Falk não disse nada. O que quer que
as janelas estivessem a deixar sair da casa era mais importante do que o que
pudessem deixar entrar.
– O Gerry pediu-me para passar por cá – disse Falk quando os soluços de
Barb se atenuaram um pouco. Ela fungou.
– Sim, meu querido. Ele disse-me. Está a tirar as coisas do celeiro grande,
acho eu.
– Disse-lhe sobre o que era? – disse Falk, perguntando-se quando, se alguma
vez, Gerry acharia por bem confidenciar o que sabia à sua mulher. Barb abanou
a cabeça.
– Não. Talvez queira dar-te alguma coisa do Luke. Não sei. A ideia de fazer
esta limpeza foi dele. Diz que já são horas de encararmos isto.
A última frase quase ficou perdida, com ela a pegar num par de meias de
Luke e a desatar a chorar de novo.
– Tenho estado a tentar pensar se há alguma coisa de que a Charlotte poderia
gostar. Está a sofrer tanto. – A voz de Barb estava abafada por um lenço de
papel. – Nada do que fazemos parece ajudá-la. Deixámo-la com uma babysitter,
mas o Gerry chegou a sugerir que a trouxéssemos connosco. Para ver se voltar
ao ambiente de antes a acalmaria. De maneira nenhuma vou permitir isso, disse-
lhe eu. De maneira nenhuma vou voltar a trazê-la a esta casa depois do que
aconteceu aqui.
Falk fez uma festa nas costas de Barb. Olhou à sua volta enquanto ela
chorava. Além de uma camada de poeira, o quarto estava arrumado e limpo.
Karen tentara evitar tralhas, mas havia um número suficiente de toques pessoais
para tornar o quarto acolhedor.
Havia fotografias dos filhos em bebés emolduradas em cima de uma cómoda
que parecia ser de boa qualidade, mas que, provavelmente, era em segunda ou
terceira mão. Todo o dinheiro para a decoração de interiores fora claramente
canalizado para os quartos dos filhos. Por uma fresta no guarda-fatos, Falk viu
filas de roupas penduradas em cabides de plástico. À esquerda, tops simples
estavam pendurados ao lado de blusas, calças, um ou outro vestido de verão. As
calças de ganga e as t-shirts de Luke estavam encafuadas menos ordenadamente
à direita.
Ambos os lados da cama pareciam ter sido ocupados regularmente. Na mesa
de cabeceira de Karen estava um robô de brinquedo, um boião de creme de
noite e um par de óculos para ver ao perto em cima de uma pilha de livros. Um
carregador de telemóvel estava metido na tomada do lado de Luke, ao lado de
uma chávena de café suja, pintada à mão, com a palavra «Papá» escrita em
letras como aranhiços. As fronhas ainda apresentavam leves sinais das marcas
deixadas pelas cabeças. O que quer que Luke Hadler andasse a fazer nos dias
antes de ele e a sua família morrerem, pensou Falk, não dormira no sofá.
Aquele era decididamente o quarto do casal.
Uma imagem do quarto de Falk passou-lhe pela mente. Na maior parte das
vezes, dormia no meio da cama ultimamente. A colcha era a mesma azul-escura
que tinha na adolescência. Nenhuma mulher que a tivesse visto nos últimos dois
anos chegara a ter o à-vontade suficiente para sugerir algo menos masculino. A
empresa de limpezas que vinha ao seu apartamento duas vezes por mês
frequentemente tinha dificuldade em encontrar o que fazer, ele sabia. Não
acumulava coisas, não guardava quase nada por razões sentimentais e
remediava-se com a mobília com que ficara três anos antes, quando o seu
apartamento de duas pessoas se tornara o lar de uma só.
– Tu és um livro fechado – disse-lhe ela uma última vez antes de se ir
embora. Dissera-o muito ao longo dos dois anos em que estiveram juntos. Ao
princípio intrigada, a seguir preocupada, finalmente acusadora. Porque é que ele
não podia deixá-la entrar? Porque é que ele não queria deixá-la entrar? Não
confiava nela? Ou não a amava o suficiente? A resposta dele àquela pergunta
não foi suficientemente rápida, apercebeu-se demasiado tarde. Uma fração de
momento de silêncio foi tempo que chegasse para ambos ouvirem o toque a
finados. Desde então, na mesa de cabeceira de Falk normalmente não havia
mais nada a não ser livros, um despertador e, ocasionalmente, uma embalagem
velha de preservativos.
Barb fungou alto, trazendo-o de volta ao quarto. Falk pegou no postal do Dia
do Pai do colo dela e olhou em vão à sua volta à procura de um lugar adequado
para o expor.
– Estás a ver. Esse é exatamente o problema – disse Barb, a observá-lo com
os olhos vermelhos. – Mas o que é que eu hei de fazer com as coisas todas
deles? Há tanta coisa e não há sítio para pôr nada. Não consigo meter tudo em
minha casa, mas não posso propriamente dar tudo, como se nada importasse...
Falava numa voz aguda enquanto pegava ao acaso em objetos ao seu alcance
e os apertava ao peito. Calcinhas pousadas na cama, o robô de brinquedo, os
óculos de Karen. Pegou nos livros da mesa de cabeceira e praguejou em voz
muito alta: – Oh, por amor de Deus, e são livros da biblioteca, com um raio. Há
quanto tempo é que não terá passado o prazo de entrega? – Virou-se para Falk,
corada e furiosa.
– Ninguém nos avisa como vai ser, pois não? Oh, sim, lamentam todos muito
a nossa perda, toda a gente ansiosa por nos vir visitar e saber as novidades
quando acontece, mas ninguém menciona que tem de se esvaziar as gavetas do
filho falecido e devolver os livros que trouxe emprestados da biblioteca, pois
não? Ninguém nos diz como lidar com isso.
Com uma sensação de culpa, Falk lembrou-se do caixote extra com os
pertences de Karen e Billy que deixara à porta do quarto. Tirou os livros das
mãos de Barb, pô-los debaixo do braço e conduziu-a firmemente para fora do
quarto.
– Eu trato disso. Vamos só... Fê-la passar pelo quarto de Billy sem parar e
saiu com algum alívio para a cozinha soalheira. Levou-a até um banco. – Vamos
lá arranjar-lhe uma chávena de chá – disse por fim, abrindo os armários mais
perto de si. Não fazia a mínima ideia do que encontraria, mas até mesmo a
cozinha de um local de um crime costumava ter chávenas.
Barb ficou a olhar para ele por um minuto e a seguir assoou-se e levantou-se
do banco. Deu-lhe uma palmadinha no braço.
– Deixa estar, que eu sei onde está tudo.
Por fim tiveram de se remediar com café instantâneo, sem leite. O frigorífico
não era esvaziado há duas semanas.
– Nunca te cheguei a agradecer, Aaron – disse Barb enquanto esperavam que
a água fervesse. – Por nos ajudares. Abrindo uma investigação ao que
aconteceu.
– Barb, eu não fiz nada disso – disse Falk. – Compreende que o que ando a
fazer com o sargento Raco é oficioso, não compreende? Só andamos a fazer
umas perguntas. Não é nada oficial.
– Oh, sim. Claro, compreendo perfeitamente – disse ela, de uma forma que
revelou a Falk que não compreendia. – Mas puseste as pessoas a pensar. Isso
faz toda a diferença. Revolveu as coisas.
Uma imagem de Ellie perpassou na mente de Falk, e esperou que Barb não
viesse a lamentar que andassem a revolver as coisas.
– O Luke sentiu-se sempre tão grato por te ter como amigo – disse ela
enquanto deitava água a ferver em três canecas.
– Obrigado – disse ele simplesmente, mas Barb olhou para cima em reação a
algo no seu tom de voz.
– Sentia-se – insistiu. – Eu sei que ele não sabia pô-lo em palavras, mas
precisava de alguém como tu na vida dele. Uma pessoa calma, com a cabeça no
seu lugar. Sempre pensei que foi em parte o que atraiu o Luke na Karen. Via o
mesmo tipo de qualidades nela. – Abriu automaticamente a gaveta do lado
direito e encontrou uma colher. – Chegaste a conhecer a Karen?
Falk abanou a cabeça.
– É uma pena, penso que realmente terias gostado dela. Ela lembra-me...
lembrava-me tu em muitas coisas. Penso que por vezes ela se preocupava por
ser um bocadinho... não sei, sem interesse, talvez. Que fosse a única coisa entre
o Luke e as ideias grandiosas dele. Mas não era. Era constante, e realmente
esperta, aquela rapariga. E era exatamente do que ele precisava. Mantinha o
meu filho com os pés na terra. Vocês ambos o faziam. – Barb olhou para Falk
por um longo momento, com a cabeça inclinada para o lado e uma expressão
um pouco triste. – Devias ter vindo ao casamento. Ou noutra ocasião. Sentimos
saudades tuas.
– Eu... – Ia dizer que tivera de trabalhar, mas algo na expressão dela impediu
que pronunciasse aquelas palavras. – Honestamente, não senti que seria bem-
vindo.
Barb Hadler deu dois passos largos a atravessar a cozinha que fora em tempos
dela, estendeu as mãos e puxou Falk a si. Abraçou-o firmemente até ele sentir
uma tensão enterrada bem fundo dentro de si começar a vacilar.
– Tu, Aaron, és sempre bem-vindo na minha família – disse Barb. – Nunca
penses o contrário. – Afastou-se e por um momento era a Barb Hadler de outros
tempos. Pôs-lhe nas mãos duas canecas de café a fumegar, enfiou-lhe os livros
da biblioteca debaixo do braço e acenou para a porta das traseiras com um
brilho de matriarca nos olhos.
– Vamos levar o café ao meu marido para eu lhe dizer que se quer tirar as
coisas desta casa pode deixar de se esconder no celeiro e fazê-lo ele.
Falk seguiu Barb pela porta das traseiras para a luz do sol que cegava. Evitou
por pouco entornar café no pulso, contornando um taco de críquete de criança
caído no chão.
Falk pensou subitamente se era assim que a sua vida poderia ter sido. Tacos
de críquete de criança e café em cozinhas de casas de quinta? Tentou imaginá-
la. A trabalhar lado a lado com o seu pai ao ar livre, à espera do momento em
que o seu velho lhe desse um aperto de mãos e lhe passasse as rédeas. A passar
os sábados à noite no Fleece com Luke, a admirar as beldades de sempre até um
dia os seus olhos pararem numa. Um casamento de aldeia rápido mas lindo, o
primeiro bebé a chegar nove meses depois. O segundo um ano depois. O papel
de pai não lhe viria de um modo totalmente natural, sabia-o, mas esforçar-se-ia.
Dizem que é diferente com os próprios filhos.
Os seus filhos seriam amigos do filho de Luke, inevitavelmente. Teriam todos
de aguentar aquela escola de província desorganizada, sim, mas também teriam
hectares e hectares de terra onde poderiam andar à rédea solta.
Os dias a trabalhar a terra seriam longos, claro, mas as noites em casa seriam
calorosas e cheias de ruído e de caos e de riso. De amor. Haveria sempre
alguém à sua espera com a luz acesa. Quem poderia ter sido? Ellie?
Imediatamente, a imagem começou a esfumar-se e a desvanecer-se. Se ela
não tivesse morrido. Se ele tivesse ficado. Se tudo fosse diferente. A ideia era
uma completa fantasia. Havia demasiadas oportunidades perdidas para que
aquela visão se tivesse concretizado.
Falk escolhera a sua vida em Melbourne. E estava contente com ela, pensou.
Gostava de poder andar pelas ruas, rodeado de pessoas mas sem que vivalma o
reconhecesse. Gostava de um trabalho que requeria esforço mental e não físico.
Na vida tinha de se fazer concessões. O seu apartamento estava em silêncio e
vazio quando ele regressava ao fim de cada dia, mas não era observado por
olhos curiosos que sabiam tudo e mais alguma coisa sobre ele. Os seus vizinhos
não o julgavam, não o incomodavam nem espalhavam boatos sobre a sua
família. Não lhe punham animais mortos na soleira da porta. Deixavam-no em
paz.
Sabia que tinha o hábito de manter as pessoas à distância, colecionando
conhecidos mais do que amigos. Mas ainda bem, se algum deles alguma vez
aparecesse a flutuar inchado e todo despedaçado na superfície de um rio, a curta
distância da casa da sua família. E sim, perdia tempo todos os dias a ir para o
trabalho e passava uma grande parte do dia sob luzes fluorescentes no
escritório, mas pelo menos o seu ganha-pão não estava dependente dos
caprichos do tempo. Pelo menos os céus uniformes não lhe provocavam um
medo e um desespero tais que houvesse sequer a hipótese de o cano de uma
arma lhe parecer a resposta adequada.
Luke Hadler podia ter uma luz acesa à sua espera quando voltava para casa,
mas outra coisa qualquer daquela comunidade desgraçada e desesperada se
tinha infiltrado por aquela porta da rua para dentro de sua casa. E era algo
suficientemente podre e espesso e negro para extinguir para sempre aquela luz.
Falk estava a sentir-se abatido quando chegaram junto a Gerry, que estava
encostado a uma vassoura à porta de um dos celeiros. Olhou para cima
surpreendido quando eles se aproximaram e lançou um olhar nervoso à mulher.
– Não sabia que tinhas chegado – disse, quando Falk lhe passou uma das
canecas para as mãos.
– Esteve lá dentro a ajudar-me – disse Barb.
– Certo. Obrigado. – Gerry soava indeciso.
– Ainda há muito a fazer, quando acabares de cirandar por aqui. – Barb fez
um sorrisinho ao marido. – Parece que avançaste ainda menos do que eu.
– Eu sei. Desculpa lá. Custa mais estar aqui do que julguei. – Gerry virou-se
para Falk. – Pensei que já era altura de virmos cá e enfrentarmos a coisa.
Confrontarmos isto. – Olhou na direção da casa. – Ouve, há lá dentro alguma
coisa que gostasses de ter? Fotografias ou qualquer outra coisa? Faríamos todo
o gosto.
Falk não conseguia imaginar-se a querer levar uma só recordação que fosse
daquela terrível casa para a sua vida. Abanou a cabeça.
– Tudo bem, obrigado, Gerry.
Bebeu um grande gole de café, engolindo-o tão rapidamente que quase se
engasgou. Queria desesperadamente afastar-se daquele lugar. Queria que Barb
se fosse embora para ele poder falar a sós com Gerry.
Em vez disso, beberam os três o café em silêncio, a olhar para o horizonte.
Falk divisava à distância a casa da quinta de Mal Deacon, baixa e feia na
encosta do monte. Recordou-se do comentário do homem do bar de que a
quinta de Deacon iria para o sobrinho.
– O que vão fazer com esta propriedade? – perguntou Falk. Gerry e Barb
olharam um para o outro.
– Ainda não decidimos, realmente – disse Gerry. – Vamos ter de a vender,
suponho. Se conseguirmos. Pôr o dinheiro num fundo fiduciário para a
Charlotte. Mas talvez tenhamos de deitar abaixo a casa, vender só a terra. –
Barb emitiu um som de reprovação em voz baixa e Gerry olhou para ela.
– Sim, eu sei, amor. – Uma nota de derrota insinuara-se na sua voz. – Mas
não consigo imaginar ninguém aqui das redondezas a querer viver nela depois
de tudo isto, tu consegues? E as pessoas de fora não estão propriamente a fazer
fila para se mudarem para cá.
– O Deacon ou o Dow mencionaram alguma coisa sobre unir esforços? –
perguntou Falk. – Juntar as duas propriedades para vender a investidores
asiáticos?
Barb virou-se para ele com uma expressão de repugnância no rosto. – Nós
não venderíamos a esses dois uma nota de cinco dólares por dez, muito menos
alinharíamos com eles. Pois não, Gerry?
O marido de Barb abanou a cabeça, mas Falk suspeitava que ele tinha uma
visão mais realista do estado do mercado de propriedades de Kiewarra.
– Não tivemos mais nada a não ser trinta anos de problemas desse lado da
vedação – prosseguiu Barb, em voz um pouco mais alta. – Não vamos agora
pôr-nos a ajudá-lo. O Mal costumava sair à socapa à noite para mudar o sítio às
vedações, sabias disso? Como se nós fôssemos demasiado estúpidos para
repararmos. Pegava em tudo o que conseguisse encontrar que não estivesse
pregado. Eu sei que foi ele que atropelou o cão do Luke há uma data de anos,
por mais que o tenha negado. Lembras-te disso?
Falk acenou com a cabeça. Luke adorava aquele cão. Tinha catorze anos, mas
chorara abertamente, com ele ao colo na berma da estrada.
– E tinha sempre a casa cheia de tipos da cidade até de madrugada quando era
mais novo, não tinha, Gerry? A beberem e a andarem como loucos nas estradas
nas carrinhas deles. Com a música aos berros, quando sabia que tínhamos de
nos levantar ao nascer do dia para tratar da quinta.
– Isso já foi há muito tempo, amor – disse Gerry, e Barb virou-se a ele.
– Estás a defendê-lo?
– Não. Por Deus, não. Só estou a afirmar um facto. Ele já não consegue andar
em folias como essas há bastante tempo, pois não? Tu sabes isso.
Falk pensou no seu estranho encontro com Deacon no bar.
– Dá a ideia de que tem alguma espécie de demência.
Barb resfolegou. – É isso que lhe chamam agora? Aquele filho da mãe
daquele bêbedo está mas é a sofrer as consequências de uma desgraça de uma
vida inteira a praticar o mal, se queres saber o que penso.
Bebeu um gole de café e olhou para cima, para as terras de Deacon. Quando
voltou a falar, Falk detetou pena na sua voz.
– Era da Ellie que eu tinha mais pena. Pelo menos nós podíamos fechar a
porta àquilo, mas a pobre rapariga tinha de viver com ele. Acho que ele gostava
dela, lá à sua maneira, mas era muito defensivo. Lembras-te do campo de cima,
Gerry?
– Não pudemos provar que foi ele.
– Não, mas foi. O que mais poderia ter sido? – Barb virou-se para Falk. – Foi
quando vocês os três tinham uns onze anos, pouco depois de a mãe da Ellie dar
à sola... não que eu a censure. A menina ficou desolada, não ficou, Gerry?
Estava muito magrinha, não se alimentava em condições. E tinha uma
expressão nos olhos. Como se fosse o fim do mundo. Por fim, fui lá acima dizer
ao Mal que ela não estava bem e que ele precisava de fazer alguma coisa ou ela
ainda se punha doente com aquela preocupação toda.
– O que é que ele disse?
– Bem, pôs-me na rua ainda eu mal tinha falado, como seria de esperar. Mas
uma semana depois o nosso campo de cima morreu. Sem aviso, sem nada.
Fizemos alguns testes e a acidez do solo estava toda errada.
Gerry suspirou. – É. Pode acontecer, mas...
– Mas acontece muito mais facilmente se o vizinho lhe deitar para cima uma
carrada de produtos químicos – disse Barb. – Custou-nos uns milhares nesse
ano. Tivemos dificuldade em nos mantermos à tona. E o campo nunca
recuperou em condições.
Falk recordava-se desse campo e recordava também as conversas tensas à
volta da mesa ao jantar na casa dos Hadler nesse ano.
– Porque é que ele escapa sempre? – perguntou.
– Não havia provas contra ele – disse Gerry de novo. – Mas... – Ergueu a mão
quando Barb ia interrompê-lo. – Mas tu sabes como é por estas bandas, pá. São
precisas muitas pessoas com vontade de tomar uma atitude e fazer ondas. Era o
mesmo nessa altura que é agora. Todos precisávamos uns dos outros para nos
safarmos. O Mal Deacon tinha negócios com muitos de nós e todos nós
tínhamos negócios com ele. E ele fazia favores, perdoava um pagamento por
outro para ter as pessoas debaixo de mão. Se alguém se antagonizasse com o
Deacon, não era só com ele que se antagonizava. Subitamente, fazer negócio e
beber uma cerveja em paz na própria cidade tornam-se muito mais difíceis. A
vida já era difícil que bastasse.
Barb fitou-o.
– A rapariga era tão infeliz que se deitou a afogar, Gerry. – Pegou em todas as
canecas do café, com um tilintar de cerâmica. – Que se lixem os negócios e a
cerveja. Todos nós devíamos ter feito mais. Vejo-te lá dentro. Há uma data de
coisas a fazer à tua espera quando estiveres despachado.
Virou-se e marchou na direção da casa, a limpar o rosto à manga.
– Ela tem razão – disse Gerry, ficando a vê-la afastar-se. – O que quer que
tenha acontecido, a Ellie merecia melhor, de longe. – Virou-se para Falk, com
os olhos esvaziados de emoção. Como se tivesse queimado a emoção de toda a
vida nas últimas semanas. – Obrigado por ficares por cá. Ouvimos dizer que
tens andado a fazer perguntas sobre o Luke.
– Comecei.
– Posso perguntar-te o que achas? O Luke matou a Karen e o Billy?
– Eu penso – disse Falk cuidadosamente – que há uma possibilidade de ele
não o ter feito.
– Meu Deus, tens a certeza?
– Não. Eu disse uma possibilidade.
– Mas pensas que poderia estar envolvida outra pessoa.
– Talvez, sim.
– Está relacionado com o que aconteceu à Ellie?
– Honestamente, não sei, Gerry.
– Mas talvez?
– Talvez.
Um silêncio. – Meu Deus. Ouve, há uma coisa que eu devia ter-te dito logo
desde o princípio.
Gerry Hadler estava com calor, mas isso não lhe desagradava. Batia um
ritmo ligeiro com os dedos no volante, a assobiar sozinho. O sol do fim da tarde
aquecia-lhe o braço através da janela enquanto conduzia ao longo da estrada
vazia. Tinham tido uma precipitação substancial nesse ano e lá na quinta, por
essa altura, agradava-lhe o que via.
Gerry lançou um olhar à garrafa de espumante pousada no assento do lugar
do passageiro. Tinha dado um saltinho à cidade para comprar algumas coisas
e impulsivamente entrara na loja de vinhos. Ia levá-la para casa como surpresa
para Barb, que, esperava ele, naquele momento estaria a cozinhar o borrego de
caçarola das sextas-feiras à noite. Gerry ligou o rádio. Era uma canção que ele
não reconhecia, mas tinha um ritmo profundo de jazz que lhe agradava. Acenou
com a cabeça a acompanhar o ritmo e começou a travar quando apareceu um
cruzamento à sua frente.
*
– Eu sabia que tu e o Luke estavam a mentir sobre os vossos álibis para o dia
em que a Ellie Deacon morreu. – Gerry falava agora tão baixo que Falk teve de
se esforçar por o ouvir. – O caso é que penso que uma outra pessoa também o
sabia.
Gerry ainda estava a vinte metros do cruzamento quando a figura familiar
passou de repente numa bicicleta. O seu filho ia de cabeça baixa e a pedalar
furiosamente. A essa distância, o cabelo de Luke parecia acamado para trás e
brilhante à luz do sol do fim da tarde. Era diferente do seu estilo despenteado
do costume, reparou Gerry vagamente. Não lhe ficava lá muito bem.
Luke atravessou o cruzamento a toda a velocidade sem lançar sequer um
olhar para as duas direções. Gerry resmungou uma reprovação entredentes.
Teria de dar uma palavrinha ao rapaz. Tudo bem, as estradas costumavam
estar vazias, mas isso não significava automaticamente que fosse seguro. A
comportar-se assim, Luke arriscava-se a ser atropelado.
– Vinha do sul, da direção do rio. De modo nenhum perto dos campos em que
vocês os dois disseram que tinham estado. Tu não estavas com ele. Ele não
trazia a caçadeira.
– O rio não é a única coisa que fica para sul – disse Falk. – Há quintas, por
exemplo. E os trilhos para bicicletas, outro exemplo.
Gerry abanou a cabeça. – O Luke não tinha estado em nenhum trilho para
bicicletas. Trazia aquela camisa cinzenta que adorava na altura. Sabes qual era,
aquela horrível, brilhante, com botões, que ele reservava sempre para ocasiões
especiais. A minha impressão foi que ele estava todo aperaltado naquela tarde.
Como se se tivesse vestido para um encontro ou coisa do género. Tinha o
cabelo acamado. Disse para comigo na altura que devia estar a experimentar um
penteado novo. – Gerry cobriu os olhos com a mão durante um longo momento.
– Mas sempre soube que tinha mas era o cabelo molhado.
*
F alk ficou sentado no seu carro na berma da estrada a pensar no que Gerry
dissera. O que não faltava em Kiewarra eram furgonetas brancas, tanto
nessa altura como agora. Podia não ser nada. Se alguém tivesse visto Luke a vir
da direção do rio nesse dia, pensou Falk, porque é que não teria dito alguma
coisa na altura? A quem aproveitaria guardar esse segredo durante vinte anos?
Um pensamento incomodava-o como uma comichão. Se o condutor da
furgoneta tinha visto Luke, não seria possível que Luke também tivesse visto o
condutor? – Talvez – a ideia avolumou-se, exigindo a sua atenção – talvez fosse
ao contrário. Talvez fosse Luke quem tivesse tido de guardar o segredo de outra
pessoa. E talvez, por qualquer razão, Luke se tivesse finalmente fartado.
Falk fitava sem ver a paisagem desolada enquanto revolvia aquela ideia na
mente. Por fim, suspirou e pegou no telemóvel. Ouviu um restolhar de papéis
do outro lado da linha quando Raco atendeu.
– Está na esquadra? – perguntou Falk. Estava um belo dia de domingo.
Perguntou-se o que a mulher de Raco acharia daquilo.
– Estou. – Um suspiro. – A passar em revista alguma da papelada dos Hadler.
Não que sirva de grande coisa. E o Falk?
Falk pô-lo ao corrente do que Gerry tinha dito.
– Certo. – Raco respirou audivelmente. – O que é que acha?
– Não sei. Podia ser alguma coisa. Ou podia não ser nada. Vai ficar aí mais
algum tempo?
– Lamento dizer que vou ficar aqui por muito mais tempo.
– Eu vou até aí.
Falk mal tinha desligado quando o seu telemóvel deu sinal de mensagem.
Abriu-a e o seu ar sombrio transformou-se num pequeno sorriso quando viu de
quem era.
Atarefado?, escrevera Gretchen. Com fome? Vou almoçar com o Lachie no
parque Centenary.
Falk pensou em Raco, a trabalhar afincadamente na análise dos relatórios na
esquadra, e no café que estava a dar-lhe voltas no estômago desde que saíra da
quinta dos Hadler. Pensou no sorriso de Gretchen quando o deixou sob as
estrelas à porta do bar. Aquele vestido deve ser só para ti, seu cabrão.
Vou a caminho, escreveu. Pensou por um momento. Mas não posso ficar
muito tempo. Não lhe atenuava realmente a sensação de culpa. Mas realmente
não queria saber.
O parque Centenary era o primeiro sítio que Falk viu em Kiewarra que dava a
impressão de ter tido algum investimento. Os canteiros eram novos e tinham
sido plantados com catos resistentes à seca, dando ao parque um ar luxuriante
que Falk sentia que já não via há semanas.
O banco em que tinham passado tantos sábados à noite já não estava lá,
reparou com alguma mágoa. No seu lugar, brilhava em cores primárias o
equipamento do parque infantil. Estava cheio de crianças e todas as mesas para
piqueniques à volta se encontravam ocupadas. Os carrinhos de bebé competiam
pelo espaço com malas térmicas, e os pais conversavam uns com os outros, só
se interrompendo para, alternadamente, ralhar ou dar de comer aos seus filhos.
Falk viu Gretchen antes de ela o ver e parou, a observá-la por um momento.
Estava sozinha a uma mesa mais afastada, sentada num banco de piquenique
com as suas compridas pernas estendidas e os cotovelos pousados no tampo da
mesa por trás de si. Trazia o seu cabelo louro apanhado numa banana
despenteada no topo da cabeça, encimada pelos óculos de sol. Estava a olhar
para a atividade no parque infantil com uma expressão divertida. Falk sentiu
uma sensação calorosa de familiaridade. À luz do sol, à distância, ela quase
poderia ter outra vez dezasseis anos.
Gretchen deve ter sentido os olhos dele pousados nela, porque subitamente
olhou para cima. Sorriu e ergueu uma mão e ele encaminhou-se para ela. Ela
cumprimentou-o com um beijo na face e um Tupperware aberto.
– Come uma sanduíche, o Lachie não consegue comê-las todas.
Ele escolheu uma sanduíche de fiambre e sentaram-se lado a lado no banco.
Ela voltou a estender as suas pernas compridas, com a coxa quente contra a
dele. Trazia havaianas e as unhas dos pés pintadas num cor-de-rosa brilhante.
– Bem, isto não é absolutamente nada como eu me lembrava. Está incrível –
disse Falk, a olhar para as crianças a brincarem no parque. – De onde veio o
dinheiro para isto tudo?
– Eu sei. Foi uma organização de solidariedade social rural. Tivemos sorte há
uns dois anos e recebemos donativos de uns beneméritos. Eu não devia gozar, é
realmente fantástico. É o sítio mais agradável na cidade agora. E está sempre
cheio. Os miúdos adoram-no. Embora eu tenha ficado desolada por ver
desaparecer o nosso velho banco. – Sorriu enquanto viam uma criança pequena
enterrar o seu amiguinho na areia. – Mas é ótimo para os mais pequenos. Sabe
Deus, não há muito mais para eles por estas bandas.
Falk recordou a tinta a descascar e o único cesto de basquetebol no recreio da
escola. – Compensa a falta de condições na escola, suponho. Estava mais
degradada do que me lembrava.
– Pois é. Mais uma coisa que podes agradecer à seca. – Gretchen abriu uma
garrafa de água e bebeu um gole. Inclinou-a para ele da mesma maneira que
costumava oferecer-lhe vodka. Uma intimidade fácil. Ele pegou na garrafa. –
Não há dinheiro na comunidade – disse ela. – Tudo o que esta cidade recebe do
governo vai para os subsídios aos agricultores, por isso não resta nada para os
miúdos. Mas andamos com sorte por termos o Scott como diretor cá. Pelo
menos, ele dá a ideia de se importar. Mas há pouco que se possa fazer sem
dinheiro no banco. De maneira nenhuma podemos pedir mais aos pais.
– Não podiam abordar os tais beneméritos outra vez?
Ela fez um sorriso triste. – Já o tentamos, na verdade. Julgámos que íamos
receber alguma coisa este ano. Mas era uma instituição diferente da do parque
infantil. Era um grupo privado qualquer, o Fundo Crossley para a Educação. Já
alguma vez ouviste falar dele?
– Acho que não.
– Era a típica organização de caridadezinha, mas dava a ideia de vir mesmo
ao encontro do que precisávamos. Fazem donativos a escolas rurais em
dificuldades, mas parece que há outras escolas mais rurais ou com mais
dificuldades do que a nossa, se é possível. Que Deus as ajude. Chegámos à
final, mas desta vez não ganhámos. Vamos procurar, tentar de novo no próximo
ano, acho eu, mas até lá, quem sabe? Seja como for... – Interrompeu-se para
acenar ao seu filho, que estava de pé ao cimo de um escorrega a tentar chamar-
lhes a atenção. Escorregou com eles a vê-lo. – ...o Lachie dá-se bem lá, por
agora, por isso já é alguma coisa.
Gretchen pegou no Tupperware quando o rapaz correu para eles. Estendeu-
lhe uma sanduíche, mas o filho ignorou-a, fitando Falk.
– Olá, pá. – Falk estendeu a mão. – Eu sou o Aaron. Conhecemo-nos no outro
dia, lembras-te? A tua mamã e eu éramos amigos quando éramos mais novos.
Lachie apertou-lhe a mão e sorriu perante a novidade daquele ato.
– Viste-me no escorrega?
– Vimos – disse Gretchen, mas a pergunta não lhe era dirigida. Falk acenou
com a cabeça.
– Foste mesmo corajoso, pá – disse Falk. – Parece bastante alto.
– Sou capaz de fazer outra vez. Ora vê. – Lachie partiu de novo. Gretchen
ficou a vê-lo afastar-se com uma expressão estranha no rosto. O rapaz esperou
até ter toda a atenção de Falk antes de subir. Correu à volta do escorrega para
voltar a descê-lo. Falk ergueu os polegares.
– Obrigada – disse Gretchen. – Anda obcecado com homens adultos. Acho
que começa a ver os outros miúdos com pais e... bem, sabes como é. –
Encolheu os ombros. Não olhou Falk nos olhos. – Seja como for, é o que dá ser
mãe, não é? Dezoito anos de uma sensação esmagadora de culpa?
– O pai dele não se envolve? – Falk ouviu a nota de curiosidade na sua
própria voz.
Gretchen também a ouviu e sorriu como se já a esperasse.
– Não. E não tem mal, podes perguntar. O pai dele foi-se embora. Não é
ninguém que conheças. Não é de cá, era um trabalhador agrícola que esteve por
cá uns tempos. Não sei grande coisa sobre ele a não ser que me deixou com este
miúdo incrível. E sim, sei a impressão que isto dá.
– Não dá impressão nenhuma. Dá a impressão de que o Lachie tem sorte por
te ter – disse Falk. Mas enquanto via o miúdo subir atleticamente a escada pôs-
se a imaginar que aspeto teria o seu pai.
– Obrigada. Nem sempre dá essa sensação. Por vezes, pergunto-me se devia
fazer um esforço para encontrar alguém. Por nós os dois, para tentar dar uma
família ao Lachie. Para ele poder ver como é ter uma mãe que não está sempre
sob pressão e exausta, o que quer que isso seja. Mas não sei... – Parou de falar e
quando Falk começava a preocupar-se que pudesse estar a sentir-se embaraçada
ela desfechou-lhe um sorriso. – O reservatório de candidatos a pretendentes em
Kiewarra é pouco fundo. É uma poça enlameada, na melhor das hipóteses.
Falk riu-se.
– Então nunca casaste? – perguntou, e Gretchen abanou a cabeça.
– Não. Nunca casei.
– Eu também não.
Gretchen enrugou os olhos, divertida. – Pois é, eu sei.
Falk não compreendia bem como, mas as mulher pareciam sabê-lo sempre.
Olhavam de lado e sorriam umas às outras. Falk imaginou Gretchen e Lachie a
viverem sozinhos na enorme propriedade dos Kellerman que ela tinha
comprado e recordou-se do isolamento fantasmagórico da quinta dos Hadler.
Até mesmo Falk, que gostava mais do que a maioria das pessoas de ter o seu
próprio espaço, começava a ansiar por companhia ao fim de algumas horas sem
nada a não ser campos.
– Deves sentir-te só na quinta sem mais ninguém – disse, e apeteceu-lhe
morder a língua. – Desculpa. Era uma pergunta genuína, não uma frase
horrorosa de engate.
Gretchen riu-se. – Eu sei. Com frases como essa, encaixavas-te por estas
bandas melhor do que julgas. – Ficou com uma expressão anuviada. – Mas sim.
Pode ser um problema. Não é realmente a falta de companhia, é sentir-me
isolada que me afeta um bocado. Não consigo ter Internet sempre e até a rede
do telemóvel é incerta. Não que haja uma data de gente a tentar telefonar-me, de
qualquer maneira. – Fez uma pausa, com a boca comprimida numa linha firme.
– Sabes que só descobri o que tinha acontecido ao Luke na manhã seguinte?
– A sério? – Falk sentiu-se chocado.
– A sério. Nem uma só pessoa pensou em me telefonar. Nem o Gerry nem a
Barb, ninguém. Apesar de tudo aquilo por que passámos, suponho que... –
encolheu os ombros quase impercetivelmente – ...eu não era uma prioridade. Na
tarde em que aquilo aconteceu, fui buscar o Lachie à escola, fomos para casa,
jantámos. Ele foi para a cama, eu vi um DVD. Foi uma noite tão comum e
desinteressante, mas foi a última noite normal, sabes? Nada de especial, mas
dava tudo para voltar a isso. Só na manhã seguinte, ao portão da escola, é que,
quando me virei, vi que toda a gente estava a falar daquilo. Dava a sensação de
que todos sabiam e... – Uma única lágrima escorreu-lhe pelo nariz. – E ninguém
se tinha dado ao trabalho de me telefonar. Eu não queria acreditar. Quer dizer,
literalmente não conseguia acreditar no que estava a ouvir. Passei de carro pela
quinta, mas não consegui aproximar-me. A estrada estava cortada e havia
polícias por todo o lado. Por isso, fui para casa. Nessa altura já estava a dar nas
notícias, claro. Não havia hipótese de escapar à minha atenção, nessa altura.
– Lamento imenso, Gretchen – disse Falk, pousando a mão no ombro dela. –
Se te serve de consolo, também ninguém me telefonou. Só descobri quando vi a
cara dele num site de notícias. – Falk ainda tinha bem presente o choque que
sentira ao ver aquelas feições familiares relacionadas com aquela terrível
notícia.
Gretchen acenou com a cabeça e o seu olhar subitamente concentrou-se em
algo por cima do ombro. Ficou com uma expressão anuviada e limpou os olhos
à pressa.
– Meu Deus. Atenção. Está a vir para cá – disse. – A Mandy Vaser. Lembras-
te dela? Chamava-se Mandy Mantel dantes. Meu Deus, não posso aturar isto
neste momento.
Falk virou-se. A rapariga ruiva de feições severas que recordava como Mandy
Mantel transformara-se numa mulher minúscula muito bem arranjada e com
cabelo brilhante cortado à pajem. Tinha um bebé amarrado ao peito numa faixa
complicada que dava a ideia de ser feita de fibras naturais e anunciada como
«biológica». O seu rosto continuava a ser severo, viu Falk enquanto ela
atravessava em passo de marcha a relva amarelada.
– Casou-se com o Tim Vaser. Ele andava um ano ou dois à frente de nós –
segredou Gretchen antes de ela se aproximar. – Tem dois filhos na escola.
Também desempenha a tempo inteiro o papel de porta-voz do grupo das mães
ansiosas.
Mandy parou diante deles. Olhou de Falk para a sanduíche de fiambre que ele
tinha na mão e de novo para ele, de lábios retorcidos com repugnância.
– Olá, Mandy – disse ele. Ela ignorou-o ostensivamente, para além de colocar
uma mão protetora à volta da nuca do seu bebé, a protegê-lo do cumprimento de
Falk.
– Gretchen. Lamento muito interromper. – Não soava nada pesarosa. – Não te
importas de vir à nossa mesa por um momento? Queríamos dar-te uma
palavrinha. – Os seus olhos pousaram por instantes em Falk, mas logo se
desviaram.
– Mandy – disse Gretchen sem entusiasmo. – Lembras-te do Aaron? Dos
velhos tempos? Está na polícia federal agora. – Disse as últimas palavras com
ênfase.
Ele e Mandy tinham-se beijado uma vez, Falk recordou-se. Num baile para
jovens, ao que se lembrava. Ela surpreendera-o metendo-lhe pela boca dentro a
língua de menina de catorze anos, que tinha um sabor forte a limonada barata,
com as luzes a incidirem nas paredes do ginásio da escola e uma aparelhagem a
tocar alto a um canto. Perguntou-se se ela se recordaria. Pela maneira como
estava a enrugar a testa e a evitar olhá-lo nos olhos, tinha a certeza que sim.
– Prazer em voltar a ver-te. – Falk estendeu a mão, não porque quisesse
particularmente apertar a dela, mas porque via que isso a deixaria pouco à
vontade. Ela fitou a mão dele, fazendo um esforço visível para resistir à reação
delicada automática. Conseguiu, e deixou-o de mão pendurada no ar. Falk quase
a respeitava um pouco mais por isso.
– Gretchen. – Mandy estava a perder a paciência. – Uma palavra?
Gretchen olhou-a nos olhos. Não deu sinal de se mexer.
– Quanto mais depressa a disseres, Mandy, tanto mais depressa eu posso
dizer-te que te metas na tua vida e podemos voltar todos a desfrutar do nosso
domingo.
Mandy empertigou-se. Lançou um olhar por cima do ombro para onde um
bando de mães com penteados semelhantes ao seu estava a observá-los por
detrás dos seus óculos de sol.
– Certo. Muito bem, Eu... nós.. não nos sentimos à vontade com o Aar... com
o teu amigo... aqui tão perto dos nossos filhos. – Olhou diretamente para Falk. –
Gostaríamos que te fosses embora.
– Está recebido o recado – disse Gretchen.
– Então ele vai-se embora?
– Não – disseram Falk e Gretchen em uníssono.
Falk pensava que de facto talvez estivesse na hora de se dirigir para a
esquadra para se encontrar com Raco, mas recusava-se a obedecer à parva da
Mandy Mantel. Os olhos de Mandy semicerraram-se. Ela inclinou-se para a
frente.
– Ouve – disse ela. – Neste momento, somos eu e as outras mães a pedir-te
delicadamente. Mas podem facilmente ser os pais a pedir-te não tão
delicadamente, se achares que a mensagem assim é mais fácil de compreender.
– Mandy, por amor de Deus – ripostou Gretchen. – Ele é polícia. Não ouves o
que te digo?
– Pois é, e também ouvimos o que ele fez à Ellie Deacon. – À volta do parque
infantil, os pais estavam a assistir. – A sério, Gretchen, não podes estar
realmente assim tão desesperada, pois não? Para expores o teu próprio filho
desta maneira? Agora és mãe. Começa a comportar-te como tal.
O homem que acabaria por se tornar marido de Mandy escrevera em tempos e
recitara em público um poema a Gretchen num Dia de São Valentim, recordou
Falk. Não admira que Mandy estivesse encantada por se encontrar em vantagem
por uma vez.
– Se vais passar o teu tempo com esta... pessoa, Gretchen – prosseguiu
Mandy –, eu não sei se deva contactar os serviços sociais. Para bem do Lachie.
– Ei... – começou a dizer Falk, mas Gretchen falou ao mesmo tempo.
– Mandy Vaser – disse, com a voz baixa, mas firme. – Pensas que sabes tudo?
Então faz uma coisa inteligente por uma vez na vida. Dá meia-volta e vai-te
embora.
Mandy endireitou as costas, sem vontade de ceder terreno.
– E, Mandy? Ficas avisada. Se fazes alguma coisa que leve o meu filho a
perder um só minuto de sono que seja ou a verter uma lágrima... – Falk nunca
antes ouvira aquele tom gélido da voz de Gretchen. Ela não terminou a frase,
deixando-a a pairar no ar.
Mandy arregalou os olhos.
– Tu estás-me a ameaçar? Isso é linguagem agressiva, e encaro-a como uma
ameaça. Nem quero crer. Depois de tudo aquilo por que esta cidade passou.
– És tu quem me está a ameaçar. Serviços sociais, uma ova.
– Estou a tentar manter a segurança em Kiewarra para os nossos filhos. É
pedir demasiado? As coisas já não são más que cheguem? Eu sei que tu não
morrias de amores pela Karen, mas podias pelo menos mostrar algum respeito,
Gretchen.
– Basta, Mandy – disse Falk rispidamente. – Por amor de Deus, cala-te e
deixa-nos em paz.
Mandy apontou para Falk.
– Não. Tu vai-te embora. – Deu meia-volta e afastou-se toda empertigada. –
Vou telefonar ao meu marido. – As palavras ficaram a pairar no parque infantil
atrás dela.
Gretchen estava com as faces coradas. Enquanto ela bebia um gole de água,
Falk viu que as mãos lhe tremiam. Estendeu a mão para lhe tocar no ombro,
mas parou, consciente de que as pessoas estavam a observá-los e não querendo
piorar a situação.
– Lamento muito – disse. – Não devia ter-me encontrado contigo aqui.
– Não és tu – disse ela. – Estamos todos muito tensos. O calor torna tudo pior.
– Inspirou fundo e fez um sorriso trémulo a Falk. – Além de que a Mandy
sempre foi uma cabra.
Ele acenou com a cabeça. – Bem visto.
– E, para que conste, eu não desgostava da Karen. Simplesmente não éramos
amigas íntimas. Há uma data de mães na escola. Não se pode ser amiga delas
todas. Obviamente. – Acenou com a cabeça para as costas de Mandy.
Falk estava a abrir a boca para responder quando o seu telemóvel soou a
indicar nova mensagem. Ignorou-o. Gretchen sorriu.
– Tudo bem. Vê o que é.
Com uma expressão a desculpar-se, abriu a mensagem. Já estava de pé quase
antes de acabar de a ler.
Seis palavras de Raco: O Jamie Sullivan mentiu. Venha já.
CAPÍTULO 20
– O que é pior do que ser acusado de um triplo homicídio? – disse Falk daí a
meia hora enquanto viam Sullivan entrar no seu jipe e arrancar. O interrogatório
andara às voltas até Sullivan cruzar os braços. Recusara-se a dizer mais nada a
não ser para insistir que tinha de ir ver como estava a sua avó ou telefonar a
alguém para lhe pedir que o fizesse.
– Pois é, ele tem medo de alguma coisa – disse Raco. – Exatamente do quê é
a questão.
– Vamos mantê-lo sob vigilância – disse Falk. – Vou voltar ao pub por um
pedaço, passar em revista o resto dos dossiês dos Hadler.
Quando em dúvida, sempre dissera um instrutor a Falk, segue a pista do
dinheiro. Fora um bom conselho. Raco acendeu um cigarro e acompanhou-o até
ao carro, que estava estacionado num pedaço de terreno por trás da esquadra.
Contornaram a esquina e Falk estacou. Ficou parado a olhar em frente, à espera
de que o seu cérebro processasse o que os seus olhos estavam a ver.
Nas portas e no capô do carro, a mensagem tinha sido gravada uma e outra
vez na tinta. As letras brilhavam prateadas ao sol.
G retchen parou de dizer o que quer que fosse que estava dizer, com a boca
paralisada a meio de uma palavra, quando Falk chegou no seu carro
danificado ao parque de estacionamento do pub. Estava a falar com Scott
Whitlam no passeio com Lachie a brincar aos seus pés. Pelo espelho, Falk viu
os dois de olhos pregados no carro enquanto ele estacionava.
– Que raio – disse ele entredentes. Eram só algumas centenas de metros da
esquadra até ao pub, mas dera a sensação de ser uma longa viagem a atravessar
o centro da cidade. Saiu do carro, e os riscos prateados na pintura pareceram
piscar-lhe o olho quando fechou a porta com força.
– Oh, meu Deus. – Quando é que isso aconteceu? – Gretchen correu para ela
seguida por Lachie. O rapaz acenou a Falk antes de voltar a sua atenção para o
carro, de olhos arregalados. Estendeu um dedo batatudo para traçar as letras
gravadas e, para horror de Falk, começou a pronunciar a primeira palavra antes
de Gretchen o afastar à pressa. Mandou-o brincar no outro lado do parque de
estacionamento, e ele foi a arrastar os pés pôr-se a escarafunchar coisas num
cano.
– Quem é que fez isto? – disse ela, virando-se para Falk.
– Não sei – disse Falk.
Whitlam assobiou baixinho enquanto andava lentamente à volta do carro.
– Alguém realmente não se poupou a esforços. O que é que usaram? Um
canivete ou uma chave de parafusos ou coisa do género?
– Pois, realmente não sei.
– Uma data de cabrões – disse Whitlam. – Nesta terra. É pior aqui do que nas
grandes cidades, por vezes.
– Estás bem? – Gretchen tocou no ombro de Falk.
– Estou – disse Falk. – Melhor do que o carro, de qualquer forma. – Sentia
uma pontada de raiva. Já tinha aquele carro há mais de seis anos. Não era nada
que desse nas vistas, mas nunca lhe dera problemas. Não merecia ser danificado
por um atrasado mental de um parolo qualquer.
VAMOS ESFOLAR-TE.
Falk virou-se para Whitlam. – Tem a ver com algo do passado. A rapariga de
quem éramos amigos...
– Tudo bem. – Whitlam acenou com a cabeça. – Já ouvi a história.
Gretchen passou um dedo pelas marcas. – Aaron, ouve, tens de ter cuidado.
– Eu fico bem. É irritante, mas...
– Não. É pior do que isso.
– Pois, bem. Que mais é que eles realmente me vão fazer? Esfolar-me?
Ela fez uma pausa. – Não sei. Olha o caso dos Hadler.
– Isso é um bocado diferente.
– Tens a certeza? Quer dizer, não sabes realmente.
Falk olhou para Whitlam à procura de apoio, mas o diretor da escola encolheu
os ombros.
– Isto por aqui é uma panela de pressão, pá. As coisas pequenas tornam-se
grandes mais depressa do que se espera. Mas deve saber isso. Não faria mal
nenhum ser um pouco mais cuidadoso. Especialmente com ambas as coisas a
acontecerem no mesmo dia.
Falk olhou-o fixamente.
– Ambas as coisas?
Whitlam lançou um olhar a Gretchen, que se mexeu desconfortavelmente.
– Desculpe – disse ele. – Pensei que já os tinha visto.
– O quê?
Whitlam tirou um papel do bolso traseiro e passou-lho para as mãos. Falk
desdobrou-o. Um vento quente fazia restolhar as folhas mortas à volta dos seus
pés.
– Quem é que viu isto?
Nem um nem o outro responderam. Falk olhou para cima.
– Bem?
– Toda a gente. Estão por toda a cidade.
O Fleece estava com muito movimento, mas Falk ouviu o sotaque celta de
McMurdo a sobrepor-se à cacofonia. Parou à entrada atrás de Whitlam.
– Eu não vou entrar em debate consigo, meu amigo – estava a dizer
McMurdo por trás do balcão. – Olhe à sua volta. Isto é um pub. Não é uma
democracia.
Tinha um punhado de folhetos amarrotados na sua grande mão fechada. Eram
iguais ao que estava a queimar o bolso de Falk, e ele teve de combater o
impulso para o tirar e voltar a olhar para ele. Era uma reprodução de má
qualidade, provavelmente fotocopiada quinhentas vezes na minúscula biblioteca
da cidade.
No topo, em maiúscula em negrito, estavam as palavras RIP Ellie Deacon, 16
anos de idade. Por baixo, havia uma fotografia do pai de Falk com quarenta e
poucos anos. Ao seu lado aparecia uma fotografia do próprio Falk tirada à
pressa que dava a impressão de ter sido tirada quando ele ia a sair do pub.
Aparecia a olhar de lado, com o rosto paralisado num sorriso momentâneo. Por
baixo das fotografias, em letra mais pequena, estavam as palavras: Estes
homens foram questionados sobre o afogamento de Ellie Deacon. Mais
informações necessárias. Proteja a nossa cidade! Mantenha Kiewarra segura!
Antes, no parque de estacionamento, Gretchen dera-lhe um abraço.
– São uma data de rematados parvalhões – segredara-lhe ao ouvido. – Mas
tem cuidado, pelo sim pelo não. – Pegou ao colo em Lachie, que protestou, e foi
embora. Whitlam conduziu Falk para o pub, arredando com um gesto os seus
protestos.
– Eles estão como tubarões aqui dentro, pá – dissera Whitlam. – Saltam em
cima ao primeiro sinal de sangue. A sua melhor jogada é sentar-se ali dentro
comigo e beber uma cerveja fresquinha. Como é nosso direito concedido por
Deus, como homens nascidos debaixo do Cruzeiro do Sul.
Ambos estacaram à entrada. Um homem grande com o rosto roxo, que Falk
se lembrava de ter visto virar as costas a Erik Falk na rua, estava a discutir ao
balcão com McMurdo. O homem espetou um dedo enfaticamente nos folhetos e
disse algo que Falk não conseguiu ouvir, e o homem do bar abanou a cabeça.
– Não sei o que sugerir, meu amigo – disse McMurdo. – Se quer protestar
contra alguma coisa pegue numa caneta e num papel e escreva ao seu deputado.
Mas o lugar para o fazer não é aqui. Afastou-se para enfiar os folhetos no
caixote do lixo e nesse momento deu com os olhos em Falk, que estava do outro
lado do bar. Abanou quase impercetivelmente a cabeça.
– Vamos embora – disse Falk a Whitlam, e recuou da entrada. – Obrigado de
qualquer maneira, mas não é uma boa ideia.
– Penso que é capaz de ter razão. Infelizmente. Meu Deus, por estas bandas,
por vezes, é como aquele filme, Fim de Semana Alucinante – disse Whitlam. –
O que é que vai fazer?
– Meter-me no meu quarto, acho eu. Passar em revista uma papelada. Esperar
que a coisa passe.
– Que se lixe isso. Venha tomar um copo a minha casa.
– Não. Mas agradeço-lhe. É melhor eu tentar não dar nas vistas.
– Não, isso não me parece nada melhor. Venha daí. Mas levamos o meu carro,
hein? Whitlam tirou as chaves do bolso com um sorriso. – Faria bem à minha
mulher conhecê-lo. Talvez a ajude a sentir-se um pouco mais sossegada. – O
seu sorriso desvaneceu-se um pouco e a seguir tornou-se mais vivo. – E, de
qualquer maneira, tenho uma coisa para lhe mostrar.
D e novo no seu quarto, Falk pôs-se à janela a olhar para a rua principal
vazia lá em baixo. Whitlam levara-o de carro até ao pub e acenara-lhe
amigavelmente à vista dos transeuntes. Falk ficou a vê-lo afastar-se e depois foi
ao parque de estacionamento verificar se a pintura do seu automóvel estava tão
mal como se lembrava. Estava pior. As palavras riscadas no carro brilhavam ao
lusco-fusco e, para compor as coisas, alguém prendera um punhado de folhetos
antiFalk debaixo da vareta do limpa-para-brisas.
Subiu as escadas do pub sem ser visto por ninguém e passou o resto do serão
deitado na cama e a passar em revista os últimos dossiês dos Hadler. Ardiam-
lhe os olhos. Já era tarde, mas ainda sentia os nervos em franja devido às muitas
chávenas de café de Sandra Whitlam. Pela janela, viu um carro solitário passar
com os faróis ligados e um gambá do tamanho de um gato pequeno correr ao
longo de um fio da eletricidade com a cria às costas. E depois a rua voltou a
ficar silenciosa. Num silêncio campestre.
Era o que, em parte, apanhava de surpresa os citadinos como os Whitlam,
pensou Falk. O silêncio. Conseguia compreender que procurassem o estilo de
vida idílico do campo; muitas pessoas o faziam. A ideia tinha um brilho
saudável que era atraente quando se considerava num engarrafamento ou
encafuado num apartamento sem jardim. Todas as pessoas tinham as mesmas
visões de respirar ar puro e fresco e conhecer os vizinhos. Os filhos comeriam
vegetais de colheita própria e aprenderiam o valor de um dia de trabalho
honesto.
Ao chegarem, quando o camião das mudanças vazio desaparecia de vista,
olhavam à sua volta e ficavam sempre abismados com a vastidão esmagadora
da terra que os rodeava. O espaço era o que primeiro lhes chamava a atenção.
Havia tanto. Havia o suficiente para se afogarem nele. Olhar e não ver nem
vivalma entre si e o horizonte podia ser uma experiência estranha e
perturbadora.
Daí a pouco, descobriam que os vegetais não cresciam com tão boa vontade
como no vaso à janela na cidade. Que cada rebento verde tinha de ser
incentivado a sair do solo relutante e que os vizinhos andavam demasiado
atarefados a fazer o mesmo a uma escala industrial para demonstrarem grande
animação nas suas saudações. Não havia viagens diárias de casa para o trabalho
e do trabalho para casa em engarrafamentos, mas também não havia muito
aonde ir de carro.
Falk não censurava os Whitlam. Vira-o muitas vezes antes, quando era
pequeno. Os recém-chegados olhavam à sua volta, para a desolação e a escala e
a dureza pura e dura da terra, e pouco depois os seus rostos diziam todos
exatamente a mesma coisa: Não sabia que isto era assim.
Abandonou aqueles pensamentos, recordando como a crueza da vida local se
infundira nos desenhos dos miúdos na escola. Rostos tristes e paisagens
castanhas. Os desenhos de Billy Hadler eram mais felizes, pensou Falk. Vira-os
espalhados pela casa da quinta, coloridos e hirtos com a tinta seca. Aviões com
pessoas sorridentes às janelas. Muitas variantes de carros. Pelo menos, Billy
não tinha sido um menino triste como alguns dos outros, pensou Falk. Quase se
riu alto perante o absurdo do seu pensamento. Billy estava morto, mas pelo
menos não se sentira triste. Até ao fim. No fim, devia estar aterrorizado.
Falk tentou pela centésima vez imaginar Luke a perseguir o seu próprio filho
pela casa. Conseguia divisar a cena, mas aparecia-lhe esfumada e sempre um
pouco desfocada. Falk pensou no seu último encontro com Luke. Há cinco
anos, num dia cinzento como outro qualquer em Melbourne. Quando a chuva
ainda era um incómodo e não uma benção. Nessa altura, Falk tinha de o admitir
a si mesmo, de muitas maneiras sentira que mal conhecia Luke.
Falk meteu-se na cama e apagou a luz. Ficou deitado imóvel por muito
tempo. A aranha-caçadora reaparecera ao princípio da noite e a sua figura
ensombrada acocorava-se agora por cima da porta da casa de banho. A noite
estava num silêncio de morte lá fora. Falk sabia que precisava de dormir, mas
fragmentos de conversas recentes e passadas competiam pela sua atenção. Uns
vestígios de cafeína a atravessar-lhe o sistema contribuíam para lhe manter os
olhos abertos.
Virou-se para o lado e acendeu a luz na mesa de cabeceira. Os livros da
biblioteca que tirara a Barb nesse dia estavam debaixo do seu chapéu em cima
de uma cadeira. Entregá-los-ia na secção de devoluções no dia seguinte. Pegou
no primeiro. Um guia prático para criar um jardim de catos amigo do ambiente.
Bocejou só de ler o título. Esse livro quase com certeza surtiria efeito, mas
simplesmente não conseguia encarar a ideia de o ler. O outro era um policial de
bolso. Uma mulher, uma figura desconhecida a espreitar das sombras, vários
cadáveres. A coisa do costume. Não bem ao seu gosto, mas não teria a profissão
que tinha se não lhe agradasse um bom mistério. Recostou-se na almofada e
começou a ler.
Era um enredo óbvio, nada de especial, e já tinha lido cerca de trinta páginas
quando começou a sentir as pálpebras pesadas. Decidiu fechar o livro quando
chegasse ao fim do capítulo e, ao virar uma página, uma folha fina caiu e
aterrou no seu rosto.
Pegou nela e leu o que estava escrito. Era um recibo da biblioteca que
mostrava que o romance tinha sido emprestado a Karen Hadler na segunda
feira, 19 de fevereiro. Quatro dias antes da sua morte, pensou Falk. Ela usara o
recibo como marcador de livros, e saber que aquele policial medíocre poderia
ter sido a última coisa que ela lera na vida fê-lo sentir-se profundamente
deprimido. Falk tinha começado a amarrotar o recibo quando reparou nas letras
a tinta na parte de trás dele.
Curioso, alisou o papel e virou-o. Estava a contar com uma lista de compras.
Em vez disso, sentiu o coração começar a bater com força. Alisou mais
cuidadosamente o papel e pô-lo debaixo do candeeiro da mesa de cabeceira
para melhor iluminar a letra cursiva de Karen.
A certa altura nos quatro dias entre Karen Hadler requisitar o livro na
biblioteca e ser morta à porta de casa, escrevera duas linhas nas costas do
recibo. A primeira era uma só palavra, escrita à pressa e sublinhada três vezes.
Don??
Falk tentou focar os olhos na palavra, mas o seu olhar foi arrastado para
baixo, para o número de telefone com dez dígitos escrito por baixo. Fitou o
número até lhe arderem os olhos e os dígitos se baralharem e parecerem
indistintos. O sangue latejava-lhe na cabeça com um rugido ensurdecedor.
Piscou os olhos com força, e mais outra vez, mas os números continuavam
resolutamente na mesma ordem.
Falk não perdeu um só momento a perguntar-se de quem seria o número de
telefone. Não precisava de o fazer. Conhecia-o bem. Era o seu.
CAPÍTULO 23
Já estava a anoitecer quando Falk e Raco chegaram à travessa, mas não havia
muito a ver. Tinham dispensado Barnes depois de ele ter feito um bom trabalho.
Falk pôs-se por baixo da câmara de vigilância e olhou à sua volta. A pequena
rua era estreita e paralela à rua principal de Kiewarra. Num dos lados dava para
as traseiras da agência imobiliária, de um cabeleireiro, do centro de saúde e da
farmácia. Do outro, lotes de terrenos baldios tinham sido transformados em
parques de estacionamento improvisados. Estava completamente deserta.
Falk e Raco percorreram a travessa. Não demorou muito tempo. Podia entrar-
se nela nos dois sentidos e dava para as estradas para sair da cidade para leste e
para oeste. Em horas de ponta, seria um atalho perfeito para atravessar a cidade
sem passar pela rua principal. Mas estavam em Kiewarra, pensou Falk, onde
não havia hora de ponta.
– Então, porque é que o nosso amigo Jamie Sullivan quis evitar ser visto na
cidade vinte minutos antes de os Hadler serem assassinados? – A voz de Falk
ecoou nas paredes de tijolos.
– Vêm à mente algumas razões. Nenhuma delas boa – respondeu Raco.
Falk olhou com atenção para a lente da câmara.
– Pelo menos, agora fazemos uma ideia de onde ele estava – disse Falk. –
Podia ter ido daqui até à casa dos Hadler dentro do tempo previsto, não podia?
– Sim, sem problema nenhum.
Falk encostou-se à parede e inclinou a cabeça para trás. Os tijolos tinham
absorvido o calor do dia. Sentia-se exausto. Os olhos arderam-lhe quando os
fechou.
– Então, temos o Jamie Sullivan, que diz ser grande amigo do Luke, a mentir
sobre o seu paradeiro e a ser apanhado na câmara a andar à socapa uma hora
antes de o amigo ser morto a tiro – disse Raco. – E depois temos o Don Dow,
que admite que não suportava o Luke, com um álibi inabalável enquanto que,
ao mesmo tempo, o nome dele está num papel escrito pela mulher morta.
Falk abriu um olho e fitou Raco.
– Não se esqueça do condutor da misteriosa furgoneta branca que pode ou
não ter visto o Luke Hadler a ir de bicicleta do rio no cruzamento há vinte anos
– disse.
– E também isso.
Ficaram em silêncio por bastante tempo, a fitar a travessa como se a resposta
pudesse aparecer-lhes ali em graffiti.
– Que se lixe – disse Falk, afastando-se da parede e endireitando-se. Custou-
lhe. – Vamos proceder metodicamente. Primeiro, voltamos a trazer o Sullivan
para a esquadra e perguntamos-lhe que diabo estava a fazer numa travessa
escusa. Já estou farto de o tipo nos trocar as voltas.
– Agora? – Raco tinha os olhos injetados. Parecia tão cansado como Falk se
sentia.
– Amanhã.
Quando iam a atalhar por uma passagem para a rua principal, o telemóvel de
Raco tocou. Parou no passeio e tirou-o do bolso.
– É a minha mulher. Desculpe lá. É melhor eu atender. – Levou o telemóvel à
orelha. – Olá, minha beleza. – Tinham parado à porta da leitaria. Falk acenou
com a cabeça para a loja e imitou o gesto de beber. Raco acenou que sim com
vontade.
Lá dentro, a leitaria estava fresca e sossegada. Tecnicamente, era a loja onde
Ellie trabalhara, passando os serões a receber o pagamento de leite e cigarros na
caixa registadora. Tinham posto cartazes com o seu rosto na montra depois de o
seu corpo ser encontrado, numa coleta para uma coroa de flores para o funeral.
A organização do espaço fora tão alterada desde essa altura que ele estava
quase irreconhecível. Mas Falk ainda se recordava de vir conversar com Ellie
quando ela estava atrás do balcão, sempre que conseguia arranjar desculpa para
o fazer. Gastava o dinheiro em coisas que não queria ou de que não precisava.
Os frigoríficos antigos da loja tinham sido substituídos a certa altura por
câmaras frigoríficas abertas e Falk demorou-se junto a elas, sentindo algum do
calor abrasador evaporar-se-lhe da pele. Interiormente, continuava
desconfortavelmente quente, como um indício de uma febre persistente. Por
fim, pegou em duas garrafas de água e escolheu uma sanduíche de fiambre e
queijo com as pontas ligeiramente retorcidas e um queque embalado para o seu
jantar.
Falk virou-se para levar as suas compras ao balcão e gemeu interiormente
quando se deu conta de que, mais uma vez, reconhecia o rosto por trás da caixa
registadora. Não via o lojista desde que ambos estavam sentados a carteiras em
salas de aula abafadas.
O tipo tinha menos cabelo agora, mas as suas feições pesadas ainda lhe eram
familiares. Fora um daqueles rapazes de entendimento lento, mas rápidos a
enfurecerem-se, recordou Falk enquanto tentava desesperadamente lembrar-se
do nome dele. Suspeitou, com uma sensação passageira de culpa, que ele fora
alvo das piadas de Luke de tempos em tempos, e que Falk nunca se dera ao
trabalho de intervir. Forçou um sorriso no rosto quando se aproximou e pôs as
compras em cima do balcão.
– Que tal vai isso, Ian? – disse, conseguindo no último momento sacar o
nome do tipo da sua memória ao mesmo tempo que tirava a carteira do bolso.
Ian qualquer coisa. Willis.
Willis pôs-se a olhar fixamente para os itens como se se tivesse esquecido do
que fazer.
– É só isto, obrigado, pá – disse Falk.
O outro homem não disse nada, limitando-se a erguer a cabeça e a olhar por
cima do ombro de Falk.
– O seguinte – disse claramente.
Falk olhou à sua volta. Não estava mais ninguém na loja. Virou-se para o
balcão. Willis ainda estava a olhar em frente com determinação. Falk sentiu um
acesso de irritação. E de algo mais. De vergonha, quase.
– Tudo bem, pá. Não quero causar-te problemas. Compro isto e desamparo-te
a loja – tentou Falk de novo, empurrando o seu jantar para mais perto de Willis.
– E não digo a ninguém que me serviste, palavra de escuteiro.
O homem continuou a olhar em frente. – O seguinte.
– A sério? – Falk ouvia a fúria na sua voz. – Esta cidade está a morrer de pé e
tu podes dar-te ao luxo de recusar uma venda, é isso?
O lojista desviou o olhar e mudou o peso do corpo de um pé para o outro.
Falk estava a considerar a hipótese de levar as compras e deixar o dinheiro em
cima do balcão quando Willis abriu a boca.
– Ouvi dizer que tinhas voltado. A Mandy Vaser acha que andaste a meter-te
com crianças no parque. – Tentou soar enojado, mas não conseguiu disfarçar
um tom de malícia encantada na voz.
– Deves estar a brincar – disse Falk.
O seu velho colega de turma abanou a cabeça, voltando a olhar em frente. –
Por isso, não estou interessado em servir-te. Nem hoje nem nunca.
Falk olhou-o fixamente. Provavelmente, o tipo andava há vinte anos à espera
de poder sentir-se superior a alguém e não ia perder aquela oportunidade,
apercebeu-se Falk. Abriu a boca para argumentar, mas parou. Era a verdadeira
definição de um desperdício de energia.
– Esquece. – Falk deixou as compras em cima do balcão. – Boa sorte para ti,
Ian. Vais precisar dela por estas bandas. – A sineta da porta tocou atrás dele
quando saiu para o calor.
Raco tinha guardado o telemóvel e olhou das mãos vazias de Falk para a
expressão no seu rosto.
– O que é que aconteceu?
– Mudei de ideias.
Raco lançou um olhar à loja e de novo a Falk, e adivinhou o que se passara.
– Quer que lhe vá dar uma palavra?
– Não, deixe para lá. Obrigado, de qualquer maneira. Vemo-nos amanhã.
Pense no plano para o Sullivan.
Falk virou-se, sentindo-se mais enervado do que gostaria de admitir com a
troca de palavras na loja. Sentia-se subitamente desejoso de se afastar dali,
embora só o aguardasse uma longa noite no seu minúsculo quarto no pub. Raco
olhou para a loja mais uma vez, tentado, e depois para Falk.
– Olhe. Venha jantar. Lá a casa – disse Raco. – A minha mulher anda há dias
a insistir para que eu o convide.
– Não, honestamente, não é preciso...
– Pá, ou discuto consigo agora ou discuto com ela mais tarde. Pelo menos
contra si tenho hipóteses de ganhar.
CAPÍTULO 25
Q uarenta minutos depois, Rita Raco pôs uma taça de massa quente diante de
Falk. Afastou-se com um toque leve como uma pena no ombro dele e
regressou um momento mais tarde com uma garrafa de vinho. Estavam
sentados no jardim à volta de uma pequena mesa de pinho coberta por uma
toalha colorida, com o céu a ficar de um azul-escuro arroxeado. Os Raco viviam
numa loja convertida em habitação no outro extremo da rua principal. A curta
distância a pé da esquadra. No jardim das traseiras havia um arbusto de
alfazema e um limoeiro, e uma fiada de luzes pendurada ao longo da vedação
dava à cena um brilho festivo.
Vinha luz das janelas da cozinha e Falk via Rita desaparecer lá dentro para ir
buscar isto e aquilo. Tentou ajudá-la, mas ela arredava-o com um gesto e um
sorriso. Era uma mulher pequenina e forte, com uma auréola de cabelo castanho
brilhante até aos ombros, e passava inconscientemente a mão pela barriga de
grávida. Parecia conter uma enorme concentração de energia, e, apesar da
gravidez, movia-se com agilidade de tarefa em tarefa com total eficiência.
Ao sorrir, o que era frequente, aparecia-lhe uma covinha na face esquerda, e
quando pôs a comida diante de Falk, ele já compreendia porque é que Raco
estava tão apaixonado por ela. Quando começaram a comer – massa com
tomate, beringela e chouriço empurrada por um vinho shiraz bastante bom – já
ele próprio se sentia um pouco apaixonado por ela.
A noite estava quente, mas a escuridão parecia embeber algum do calor. Rita
bebeu uns goles de água mineral e olhou com um desejo bem-disposto para o
vinho.
– Oh, o que eu não daria. Já há tanto tempo! – disse, e riu-se da expressão
reprovadora do marido. Estendeu a mão e acariciou-lhe a nuca até ele sorrir. –
Ele está tão preocupado com a bebé – disse a Falk. – Tão superprotetor, e ela
ainda nem chegou nem nada.
– Para quando é? – perguntou Falk. Aos seus olhos de leigo, ela parecia-lhe
estar prestes a ter o bebé.
– Daqui a quatro semanas. – Olhou para o marido e sorriu. – Ainda faltam
quatro longas e enormes semanas.
Com a comida deliciosa, a conversa fluía facilmente. Falaram de política,
religião, futebol. De tudo menos do que estava a acontecer em Kiewarra. De
tudo menos dos Hadler. Só quando Raco levantou a mesa e desapareceu para
dentro de casa com os pratos é que Rita finalmente perguntou.
– Diga-me – disse a Falk. – Honestamente, por favor. Vai ficar tudo bem?
Olhou na direção da porta da cozinha e Falk compreendeu que não estava só a
falar do caso Hadler.
– Olhe, nunca é um trabalho fácil, policiar uma comunidade pequena – disse
ele. – Pouco se pode fazer, a vários respeitos. Há política envolvida, demasiadas
pessoas que sabem demasiado umas sobre as outras. Mas o seu marido está a
fazer um excelente trabalho. A sério. É esperto. Genuinamente dedicado. Os
superiores reconhecem coisas como essas. Ele vai longe.
– Oh. – Rita soltou uma delicada interjeição a enjeitar o que ele dissera e
acenou com a mão. – Não é tanto isso que o preocupa. O pai dele foi polícia
numa pequena comunidade toda a vida. Num ponto minúsculo no mapa, algures
perto da fronteira com o Sul da Austrália. Não deve conhecer. Ninguém
conhece. – O seu olhar voltou a desviar-se para a entrada vazia da cozinha. –
Mas era altamente respeitado, ao que sei. Dirigia a cidade como um pai firme
mas justo e eles adoravam-no por isso. Até ao dia em que se aposentou e
depois.
Fez uma pausa. Estendeu a mão e dividiu o resto do vinho entre o copo de
Falk e o seu.
– Chiu – disse, e pôs um dedo nos lábios ao erguer o copo à boca. Falk sorriu.
– Foi aí que se conheceram? No Sul da Austrália?
– Foi, mas não na cidade dele. Ninguém lá ia – respondeu ela, pragmática. –
Foi no restaurante dos meus pais em Adelaide. Ele estava a trabalhar lá perto.
Era o primeiro emprego dele na polícia e era tão correto! Tão desejoso de fazer
o pai orgulhar-se dele. – Sorriu à recordação e esvaziou o seu copo pequeno. –
Mas sentia-se só e andava sempre a vir ao nosso restaurante, até eu ter pena
dele e deixar que me convidasse para ir beber um copo. – Passou a mão pela sua
barriga. – Esperou até eu acabar o mestrado e depois casámos logo. Foi há dois
anos.
– Um mestrado em quê?
– Farmacologia.
Falk hesitou. Não sabia como formular a pergunta. Rita veio em seu socorro.
– Eu sei – disse com um sorriso. – Então o que é que eu estou a fazer descalça
e grávida no meio de lado nenhum, quando podia estar a usar as minhas
qualificações académicas noutro sítio? – Encolheu os ombros. – É pelo meu
marido, e não é para sempre. As ambições dele, sabe, não são as mesmas de
alguns dos outros. Ele venera o pai e é o mais novo de três rapazes, por isso
acho que sente, erradamente na minha opinião, que tem sempre de lutar pela
atenção do pai. Então, mudámo-nos para esta pequena cidade rural e ele tinha
tanta esperança de que fosse como foi para o pai dele, mas quase imediatamente
tudo correu tão... – Hesitou. – Mal. Ele tem um peso em cima dos ombros
constantemente. Foi ele que encontrou o corpo do rapazinho, disse-lhe isso?
Falk acenou com a cabeça.
Rita estremeceu, apesar do calor. – Eu ando sempre a dizer-lhe, sempre: O
que está a acontecer nesta terra não é culpa tua. Esta terra é diferente. Não é
como a comunidade do teu pai.
Rita ergueu as sobrancelhas, a olhar para Falk, e ele acenou com a cabeça.
Ela abanou a cabeça e surgiu-lhe uma meia covinha na face.
– De qualquer maneira. O que é que eu posso fazer? É demasiado complexo
para se abordar com lógica, não é? A relação de um homem com o seu pai?
Raco apareceu à porta da cozinha quando ela ainda estava a falar. Trazia três
canecas de café.
– Pus os tachos de molho. De que é que estavam a falar?
– Eu estava a dizer que tu te pões sobre demasiada pressão para estar à altura
dos padrões do teu pai – disse Rita e estendeu a mão para alisar o cabelo
encaracolado do marido. A covinha no rosto voltou a aparecer
momentaneamente. – O teu parceiro aqui concorda comigo.
Falk, que não tinha dado uma opinião, decidiu que, provavelmente, Rita tinha
razão. Raco corou um pouco, mas aproximou a cabeça da mão dela.
– Não é bem assim.
– Tudo bem, meu amor. Ele compreende. – Rita bebeu um gole de café e
olhou por cima da caneca para Falk. – Não compreende? Quer dizer, é em parte
a razão por que está aqui, não é? Pelo seu pai.
Fez-se um silêncio de perplexidade.
– O meu pai já morreu.
– Oh, lamento muito. – Rita fitou-o com uma expressão compreensiva nos
olhos. – Mas com certeza isso não faz com que seja menos verdade? A morte
raramente altera o que sentimos em relação a alguém. Acentua-o, na maior
parte das vezes.
– Meu amor, de que raio estás para aí a falar? – perguntou Raco, dando-lhe
um pequeno encontrão amigável enquanto pegava na garrafa de vinho vazia. –
Eu bem sabia que não devias beber.
Rita franziu a testa, hesitante. Olhou de Falk para o seu marido e de novo
para Falk.
– Peço desculpa – disse. – Talvez eu tenha compreendido mal. Mas ouvi os
boatos, claro, sobre a sua jovem amiga que morreu. Dizem que o seu pai sofreu,
que foi até acusado, que teve de o levar embora, deixar a sua casa. Isso deve ter
provocado alguma... fricção. E até mesmo agora, aqueles folhetos horrorosos a
serem espalhados pela cidade com a fotografia dele. – Parou de falar.– Peço
desculpa. Por favor, ignore o que eu disse. Ando sempre a encontrar mais
significado nas situações do que elas têm.
Por um longo momento, ninguém falou.
– Não, Rita – disse Falk. – De facto, penso que encontrou o significado mais
ou menos correto.
Sullivan percorreu de carro a curta distância até à cidade. Não passou por
ninguém nas estradas rurais e só se cruzou com um punhado de veículos ao se
aproximar do centro. Antes de chegar à rua principal, virou à direita para uma
pequena travessa por trás da fila de lojas. Estava a ser excessivamente
cauteloso, sabia. Ninguém pensaria nada por ver o seu carro estacionado na
cidade. Mas o sentido de secretismo estava marcado nele como uma cicatriz, e
era agora impossível de ignorar. Na parte de cima de uma parede, uma câmara
de vigilância do lado de fora da farmácia piscou quando ele passou.
Havia duas vozes diferentes a vir do terreiro. Uma alta, outra mais calma.
Aaron, que tinha na altura doze anos, pousou a mochila da escola na mesa da
cozinha e foi à janela. O seu pai estava de pé, com os braços cruzados e uma
expressão irritada no rosto enquanto Mal Deacon espetava um dedo na sua
direção.
– Faltam seis – estava a dizer Deacon. – Um par de ovelhas, quatro
cordeiros. Alguns dos mesmos que tu estiveste a ver na outra semana.
Erik Falk suspirou. – E eu estou-te a dizer que não estão aqui, pá. Se queres
perder o tempo a vir cá confirmar, podes estar à vontade.
– Então, é uma coincidência, é isso?
– É mais um sinal da tua vedação de fraca qualidade, acho eu. Se eu quisesse
as tuas ovelhas, tinha-as comprado. Não valiam nada, na minha opinião.
– Elas não tinham nenhum defeito. E mais, para quê comprá-las quando mas
podias roubar? Não foi isso? – disse Deacon, erguendo a voz. – Não seria a
primeira vez que te servias do que é meu.
Erik Falk fitou-o por um momento e a seguir abanou a cabeça, incrédulo.
– É melhor ires-te embora, Mal. – Ia virar-se, mas Deacon agarrou-o
bruscamente pelo ombro.
– Ela telefonou de Sydney a dizer que não volta, sabes? Já estás contente?
Faz-te sentir um grande homem, é isso? Teres conseguido convencê-la a dar à
sola?
– Eu não convenci a tua patroa de nada – disse Erik, afastando-lhe a mão. –
Diria que tu te encarregaste bem disso, com a bebida e os punhos, pá. A única
surpresa é ela ter ficado tanto tempo como ficou.
– Oh, sim, és mesmo o cavaleiro a salvar donzelas. Sempre aqui para ela te
vir chorar no ombro, a envenená-la contra mim. A convencê-la a ir-se embora e
ao mesmo tempo a convencê-la a meter-se na tua cama, hein?
Erik Falk ergueu as sobrancelhas. Riu-se, um genuíno acesso de hilaridade.
– Mal, eu não andava a comer a tua patroa, se é isso que te preocupa.
– Tretas.
– Não, pá, não são nada tretas. É a verdade. OK, ela aparecia por cá para
tomar um chá e verter umas lágrimas quando já estava farta. Precisava de
passar algum tempo longe de ti. Mas é tudo. Era jeitosa, não digo o contrário,
mas gostava quase tanto da pinga como tu. Talvez se tu tomasses mais bem
conta do que te pertence, das tuas ovelhas, da tua mulher, elas não te
deixassem, com um raio. – Erik Falk abanou a cabeça. – Honestamente, não
tenho pachorra nem para ti nem para a tua patroa. É da tua filha que tenho
pena.
O murro de Mal Deacon surgiu como um cão a ser libertado de um canil e
acertou por sorte acima do olho esquerdo de Erik. Ele cambaleou e caiu para
trás, batendo com força com a cabeça no chão.
Aaron correu para fora de casa com um grito e debruçou-se sobre o pai, que
estava a fitar o céu com uma expressão estonteada. Gotejava-lhe sangue de um
corte na risca do cabelo. Aaron ouviu Deacon rir-se e saltou para o homem
mais velho, atirando-se contra o seu peito. Deacon viu-se obrigado a recuar um
passo, mas a sua grande estatura permitiu-lhe manter-se a pé firme. Num
instante, Deacon estendeu a mão e agarrou o antebraço de Aaron num
torniquete, beliscando-lhe a pele enquanto lhe torcia o braço e lhe aproximava
o rosto do seu.
– Ouve cá. Quando o teu velho se levantar do chão, diz-lhe que isto lhe vai
parecer uma festinha na cabeça em comparação com o que lhe faço se
descubro... se o descubro a ele ou a ti... a meter-se com o que é meu.
Atirou Aaron para o chão e depois virou-se e atravessou o terreiro em
grandes passadas, a assobiar entredentes.
O tiro soou do outro lado do campo distante, com o seu eco a atravessar o ar
quente. Antes de se instalar o silêncio, soou outro. Falk estacou no caminho da
quinta de Gretchen, com uma mão parada a meio do gesto de fechar a porta do
carro.
O pensamento voou-lhe para o chão esfregado do hall dos Hadler, para a
carpete manchada. Imaginou uma mulher loura por terra a sangrar, dessa vez
não Karen, mas Gretchen.
Soou outro tiro e Falk desatou a correr, atravessando os campos na direção do
ruído. Tentou seguir o som, mas ele ressaltava e ecoava do chão duro, deixando-
o desorientado. Perscrutou o horizonte freneticamente, com lágrimas a virem-
lhe aos olhos por fitar o sol que cegava, à procura em toda a parte, não vendo
nada.
Por fim, avistou-a, com os calções caqui e a camisa amarela quase invisíveis
contra os campos desbotados. Estacou, sentindo um acesso de alívio seguido
por uma vaga de embaraço. Gretchen virou a cabeça, fitou-o por um momento e
a seguir pôs a caçadeira ao ombro e ergueu a mão a acenar-lhe. Ele esperava
que ela não o tivesse visto correr. Gretchen começou a atravessar o campo na
sua direção.
– Ei, chegaste depressa – disse alto. Trazia uns protetores de ouvidos cor-de-
rosa pendurados ao pescoço.
– Espero que não tenha mal. – Tinha-lhe telefonado da porta do cemitério. –
Senti necessidade de ver um rosto amigo.
– Tudo bem. É bom ver-te. Tenho uma hora antes de ir buscar o Lachie à
escola.
Falk olhou à sua volta, a ganhar tempo enquanto a sua respiração voltava ao
normal. – Tens aqui uma bela propriedade.
– Obrigada. Os coelhos também parecem pensar o mesmo. – Acenou com a
cabeça por cima do ombro. – Preciso de dar cabo de mais alguns antes de dar a
tarefa por terminada. Anda daí, podes ajudar-me a vê-los.
Falk atravessou o campo com Gretchen até onde ela tinha deixado o seu saco.
Remexeu nele e tirou outro par de protetores de ouvidos. Meteu de novo a mão
e tirou uma embalagem de munições. Winchester. Não as Remington
encontradas nos cadáveres dos Hadler, pensou Falk automaticamente. Sentiu-se
aliviado e imediatamente culpado por ter reparado. Gretchen abriu o cano da
caçadeira e carregou-a.
– A toca é ali. – Apontou, semicerrando os olhos contra o sol. – Aponta
quando vires um coelho.
Falk pôs os protetores e tudo ficou abafado, como se estivesse debaixo de
água. Via os eucaliptos a balouçarem-se silenciosamente ao vento. Os sons na
sua cabeça tornaram-se amplificados; o sangue a correr, o ligeiro bater dos
dentes.
Olhou para a zona à volta da toca. Nada se mexeu durante um bom pedaço e
depois houve um estremecimento na paisagem. Ia fazer um gesto a Gretchen
quando ela encostou a arma ao ombro, com um olho bem fechado. Centrou a
arma, seguindo o coelho num arco regular. Houve um estrondo abafado e um
bando de catatuas voou de uma árvore próxima.
– Ótimo, acho que lhe acertamos – disse ela, tirando os protetores.
Atravessou o campo e baixou-se, com os calções caqui a retesarem-se por um
momento. Ergueu-se triunfante, com a carcaça flácida de um coelho a pender-
lhe da mão.
– Belo tiro – disse ele.
– Queres experimentar?
Falk não estava particularmente interessado. Já não caçava coelhos desde a
adolescência. Contudo, como ela já estava a estender-lhe a arma, ele encolheu
os ombros.
– Está bem.
A arma estava quente quando ele a recebeu das mãos dela.
– Já sabes como é – disse Gretchen. A seguir, ergueu as mãos e voltou a
colocar-lhe os protetores dos ouvidos. Falk sentiu um arrepio no pescoço onde
os dedos dela lhe tocaram. Semicerrou os olhos na direção da toca. Havia
sangue a empapar o chão. Recordou-lhe a marca deixada por Billy Hadler e
essa imagem fê-lo sentir calafrios. Subitamente, não queria estar a fazer aquilo.
Mais acima, houve um movimento.
Gretchen bateu-lhe no ombro e apontou. Ele não reagiu. Ela voltou a bater-
lhe no braço. – O que se passa? – viu, mais do que ouviu, que ela dizia. – Está
ali mesmo.
Ele baixou a arma e tirou os protetores dos ouvidos.
– Desculpa lá – disse. – Acho que já há muito tempo que não fazia isto.
Ela fitou-o por um momento e a seguir acenou com a cabeça.
– Tudo bem. – Deu-lhe uma palmadinha no braço e pegou na arma. – Sabes
que eu vou ter de disparar contra ele de qualquer maneira, não sabes? Não
posso tê-los na minha terra.
Ergueu a arma, imobilizou-se por um breve momento e depois disparou.
Falk soube ainda antes de se encaminharem para o local que ela tinha
acertado.
Ellie libertou o braço da mão de Luke e esfregou a nódoa negra. Ele não
pareceu reparar.
– Para onde é que vais a correr? Queres ir até ao centro beber uma cola ou
coisa do género? – A voz de Luke era excessivamente casual. Ellie perdera a
conta às vezes em que ele tentara arranjar maneira de estar a sós com ela
desde a discussão no miradouro. Até àquele momento, conseguira sempre evitá-
lo. Ocorrera-lhe a ideia de que talvez ele estivesse a tentar pedir-lhe desculpa,
mas não conseguia arranjar energia ou interesse suficientes para descobrir se
assim era. Era mesmo típico do Luke, pensou. Uma pessoa tinha de se esforçar
até mesmo para o tipo pedir desculpa. De qualquer modo, mesmo que ela já
não estivesse chateada com ele, hoje não ia ser o dia de sorte dele.
– Não posso. Agora não.
Deliberadamente, não pediu desculpa. Perguntou-se de passagem se devia
tentar fazer as pazes, em nome dos velhos tempos. Já se conheciam há anos.
Havia ali história. Mas então o rosto dele ficou anuviado e, pela maneira
amuada como olhou para Ellie, ela viu que não valia a pena esforçar-se. Ellie
Deacon tinha homens que bastassem na sua vida a quererem mais dela do que
lhe davam. Não precisava de mais um. Virou-se. Era melhor esquecer. Luke
Hadler era quem era, e isso nunca mudaria.
– Ei, Ellie.
Ela ia a meio do corredor, a sentir os olhos de Luke na sua nuca, quando a
voz veio de uma sala de aulas vazia. Lá dentro, Aaron Falk estava a meter
vasos com plantas etiquetados num caixote de cartão. Ela sorriu para consigo e
entrou na sala.
– Que tal correu a apresentação do trabalho? Mais notas máximas? –
perguntou ela, enrolando um rebento de feto no dedo e voltando a enfiá-lo no
caixote.
Aaron encolheu os ombros modestamente. – Não sei. Foi mais ou menos. As
plantas não são realmente o que me interessa mais. – Ellie sabia que ele não o
diria, mas devia ter sido um sucesso. No que dizia respeito aos estudos, Aaron
mal tinha de levantar um dedo. Ela também mal levantara um dedo nesse
último ano, mas com resultados acentuadamente diferentes. Os professores
tinham parado de a incomodar sobre isso há uns tempos.
Ele fechou o caixote e pegou nele, equilibrando-o desajeitadamente nos seus
braços compridos. – Vai ser uma chatice para levar isto para casa. Não te
importas de me dar uma mão? Pago-te com uma cola.
A voz dele era tão casual como a de Luke, mas corou ligeiramente e evitou os
olhos dela. As coisas entre eles andavam um pouco estranhas desde que se
tinham beijado na árvore-penedo. A discussão no miradouro não ajudara nada.
Ela sentiu um impulso para se explicar, mas não conseguia encontrar as
palavras para o fazer. Em vez disso, apetecia-lhe pegar no rosto dele, beijá-lo
outra vez e dizer-lhe que ele tinha feito tudo o que podia.
Ele ainda estava à espera, e ela hesitou. Podia ir com ele. Não demoraria
muito tempo. Mas não, disse a si mesma com firmeza. Tomara a sua decisão.
Tinha outro lugar aonde ir.
– Não posso. Mas tenho pena – disse, com sinceridade.
– Não faz mal. – O sorriso dele era genuíno e ela sentiu um baque de
profundo arrependimento. Aaron era um dos tipos bons. Fazia-a sempre sentir-
se segura.
Devias contar-lhe.
A ideia veio-lhe à cabeça, sem querer. Abanou a cabeça uma vez. Não. Não
podia contar-lhe. Isso era uma estupidez. Era demasiado tarde. Ele só tentaria
detê-la. Mas então, quando olhou para o seu rosto aberto, sentiu as entranhas
revolvidas com uma solidão que a fez perguntar-se se talvez, de facto, era isso
exatamente que ela queria.
– Pobre Ellie – disse Falk. – Meu Deus, supostamente éramos amigos dela e
todos a deixámos ficar mal.
Gretchen olhou para as mãos. – Eu sei, também me sinto culpada disso. Mas
tenta não te atormentares demasiado. Outras pessoas devem ter suspeitado e
fizeram vista grossa. Tu ainda eras pequeno. Fizeste o melhor que podias. E
sempre foste bom para ela.
– Mas não o suficiente. O que quer que ela sentisse que estava a passar-se,
acontecia mesmo debaixo dos nossos narizes e nós mal demos conta.
A cozinha era confortável e sossegada, e Falk sentia-se como se nunca mais
tivesse a energia suficiente para levantar as pernas pesadas e ir embora.
Gretchen encolheu os ombros quase impercetivelmente e pousou a mão em
cima da dele. A palma da mão dela estava quente.
– É uma lição que todos tivemos de aprender a grande custo. Passavam-se
muitas coisas nessa altura. Nem tudo tinha a ver com o Luke.
*
Ellie olhou para Aaron e ele sorriu. Conta-lhe, segredava-lhe a pequena voz
na sua cabeça, mas ela calou-a. Para. Estava decidido. Não contaria a
ninguém.
– Tenho de ir embora. – Ellie começou a afastar-se, mas parou. A ideia do
que estava para vir submergiu-a numa onda de imprudência. Antes de saber
realmente o que estava a fazer, deu um passo, inclinou-se sobre o caixote com
as plantas e beijou Aaron levemente nos lábios. Estavam secos e quentes.
Recuou um passo, batendo com a anca numa mesa na sua pressa.
– OK. Vemo-nos por aí. – A sua voz soava falsa aos seus próprios ouvidos, e
não esperou pela resposta dele.
Quando Ellie se virou para a porta da sala de aulas, quase deu um salto de
susto. Encostado à ombreira da porta, a assistir em silêncio, estava Luke
Hadler. O seu rosto estava inescrutável. Ellie inspirou e forçou-se a afivelar um
sorriso.
– Até logo, Luke – disse ao passar por ele.
Ele não lhe retribuiu o sorriso.
CAPÍTULO 30
F alk estava sentado em cima da cama com uma dúzia de folhas espalhadas à
sua frente. Lá em baixo, o pub estava sossegado. Os últimos clientes tinham
saído há horas. Falk olhou fixamente para os seus apontamentos sobre o caso.
Traçou tantas linhas a ligarem os vários elementos que acabou por ficar com
uma teia emaranhada e uma série de becos sem saída. Pegou numa folha em
branco e tentou de novo. O mesmo resultado. Pegou no telemóvel e ligou para
um número.
– Penso que a Ellie Deacon era vítima de abuso do próprio pai – disse quando
Raco atendeu.
– O que disse? Espere aí. – A voz do outro lado da linha era sonolenta. A
ligação ficou abafada e Falk ouviu uma conversa segredada. Era Rita, supôs
Falk. Olhou para o relógio. Era mais tarde do que julgara.
Passou um minuto até a voz de Raco se voltar a ouvir. – Ainda aí está?
– Desculpe. Não reparei nas horas.
– Não tem mal. O que era isso sobre a Ellie?
– Foi só uma coisa de que a Gretchen e eu estivemos a falar. Sobre o facto de
a Ellie andar triste. Não só triste, deprimida. Tenho a certeza de que o Mal
Deacon era um abusador.
– Fisicamente? Sexualmente?
– Não sei. Talvez ambas as coisas.
– Certo – disse Raco. Fez-se um silêncio.
– O Deacon não tem álibi para a tarde em que os Hadler foram assassinados.
Raco suspirou pesadamente do outro lado da linha. – Pá, ele anda pelos
setenta e tem problemas mentais. Talvez seja um cabrão, mas é um cabrão velho
e caquético.
– E então? Ainda consegue empunhar uma caçadeira.
– Então – ripostou Raco –, penso que a sua opinião do Deacon está afetada
pelo facto de que o odeia pelo que lhe aconteceu a si há mais de vinte anos.
Falk não respondeu.
– Desculpe – disse Raco. Bocejou. – Estou cansado. Falamos amanhã. – Fez
uma pausa. – A Rita manda cumprimentos.
– Cumprimentos para ela também. E desculpe lá. Boa noite.
Fim da chamada.
Dava a sensação de terem passado só alguns minutos quando o telefone do
quarto acordou Falk com o seu toque agudo. Abriu um olho a custo. Ainda nem
eram sete horas. Deixou-se ficar deitado com o braço a tapar o rosto, a esforçar-
se por reagir. Olhara para os seus apontamentos até tombar num sono
peganhento e perturbado, e agora sentia a cabeça a latejar em protesto. Sem
conseguir aguentar aquele ruído, arranjou forças para estender a mão e pegar no
auscultador.
– Meu Deus, por fim – disse McMurdo. – Acordei-o?
– Acordou.
– Seja como for, meu amigo, não importa. Ouça, tem de vir cá abaixo
imediatamente.
– Não estou vestido...
– Confie em mim – disse McMurdo. – Vejo-o nas traseiras. Dou-lhe uma mão
o melhor que puder.
*
A advogada era jovem e infundida com uma profunda paixão pelos direitos
do seu cliente. Raco escutou-a pacientemente enquanto acompanhava ambos até
à sala de interrogatórios. Falk ficou a vê-los afastar-se e depois reclinou-se na
cadeira, frustrado. Deborah saiu do balcão da receção e deu-lhe uma garrafa de
água fresca.
– Não é ideal estar aqui fora com o Mal Deacon ali dentro – disse ela.
– Pois não. – Falk suspirou. – São as regras. Resultam para uma pessoa até
deixarem de resultar.
– Sabe o que precisa de fazer? Tornar-se útil enquanto espera. – Acenou para
o corredor. – A sala de arrumos está a precisar de uma limpeza.
Falk olhou para ela. – Eu não acho...
Deborah olhou-o por cima dos óculos. – Siga-me. – Abriu uma porta e
mandou-o entrar. A divisão cheirava a mofo e tinha prateleiras à volta com
papel e materiais de escritório. Ela pousou um dedo no lábio e depois tocou na
orelha. Através de uma saída de ar acima das prateleiras, Falk ouvia vozes.
Abafadas, mas audíveis.
– Para a gravação, eu sou o sargento Raco, presente com o meu colega, o
agente Barnes. Por favor, declarem os vossos nomes para ficarem registados.
– Cecilia Targus. – A voz da advogada soava viva e nítida pela saída de ar.
– Malcolm Deacon.
Na sala de arrumos, Falk fitou Deborah.
– Isto tem de ser consertado – segredou, e ela piscou-lhe o olho quase
impercetivelmente.
– Eu sei. Mas não vai ser hoje.
Fechou a porta atrás de si e Falk sentou-se em cima de um caixote e pôs-se à
escuta.
A advogada de Deacon tentou iniciar a conversa. – O meu cliente... –
começou a dizer, mas parou.
Falk imaginou Raco a erguer a mão a silenciá-la.
– Deu-nos uma cópia da queixa contra o agente federal Falk, obrigado. – A
voz de Raco atravessava a saída de ar. – Como sabe, visto que ele não está
oficialmente ao serviço e não pertence a esta força policial, essa queixa será
encaminhada para o elemento apropriado na cadeia hierárquica dele.
– O meu cliente gostaria de ter garantias de que será deixado em paz e...
– Receio não poder dar-lhe garantias desse tipo.
– Porque não?
– Porque o seu cliente é o vizinho mais próximo de uma casa onde três
pessoas foram mortas a tiro, e atualmente continua sem álibi – disse Raco. – É
também suspeito de um ato de vandalismo num automóvel na noite passada, por
acaso. Mas lá chegaremos.
Fez-se silêncio.
– Em relação às mortes de três elementos da família Hadler, Mr. Deacon não
tem nada mais a acrescentar a... – A advogada foi interrompida por Deacon
dessa vez.
– Eu não tive nada a ver com esses tiros, e pode registar isso – disse ele.
A voz aguda de Cecilia Targus interrompeu-o. – Mr. Deacon, aconselho-o...
– Oh, cale-se lá, minha querida, está bem? – Deacon falou num tom de
desprezo cortante. – Não faz ideia de como isto funciona cá por estas bandas.
Estes tipos acusam-me do crime num abrir e fechar de olhos se lhes derem
hipótese, e eu não preciso da sua ajuda ainda por cima para ir dentro.
– De qualquer modo, o seu sobrinho pediu-me que aconselhasse...
– Qual é o problema? Essas suas mamas põem-na surda além de estúpida?
Houve um longo silêncio. Falk, sentado sozinho, sorriu sem querer. Não
havia nada como uma velha e boa misoginia para levar um ignorante a recusar
um bom conselho. Bem, Deacon não podia dizer que não tinha sido avisado.
– Talvez nos pudesse contar outra vez o que se passou naquele dia, Mal. Por
favor. – A voz de Raco era calma, mas firme. O sargento tinha uma boa carreira
diante de si, pensou Falk, se aquele caso não lhe desse cabo do seu entusiasmo
antes de ela começar realmente.
– Não tenho nada a dizer. Estava no lado da casa a consertar a vedação e vejo
a furgoneta do Luke Hadler a subir o caminho para a casa dele.
Deacon soava mais alerta do que Falk alguma vez o ouvira, mas as suas
palavras tinham o tom de cantilena de uma história decorada mais do que
recordada.
– O Hadler anda sempre de um lado para o outro, por isso eu nem presto
atenção – prosseguiu Deacon. – Depois, ouço um tiro vindo lá de baixo da
quinta. Entro na minha casa. Depois, um pouco mais tarde, há outro tiro.
– Fez alguma coisa?
– Como o quê? É o raio de uma quinta. Há tiros todos os dias. Como é que eu
havia de saber que era aquela mulher e o filho dela?
Falk imaginou Deacon a encolher os ombros.
– De qualquer maneira, como já lhe tinha dito antes, não estava a prestar
atenção, não é? Porque estava a falar ao telefone.
Houve um silêncio chocado.
– O quê?
Falk ouviu a sua própria perplexidade ecoada no tom de voz de Raco. Não
houvera menção a um telefonema no depoimento de Deacon. Falk sabia. Lera-o
várias vezes.
– O quê? – disse Deacon, aparentemente sem consciência da importância do
que afirmara.
– Recebeu uma chamada? Durante os tiros?
– Recebi – respondeu Deacon. – Eu contei-lhe. – Mas a sua voz mudara.
Soava menos segura.
– Não, não contou – disse Raco. – Disse que foi para dentro de casa e que foi
aí que ouviu o segundo tiro.
– Pois, eu fui para dentro porque o telefone estava a tocar – disse Deacon,
mas hesitou. A sua voz era agora mais lenta, e tropeçou um pouco na última
palavra. – Era a miúda da farmácia a dizer-me que a receita estava pronta.
– Estava ao telefone com uma funcionária da farmácia quando ouviu o
segundo tiro? – perguntou Raco, com incredulidade evidente.
– Sim – disse Deacon, não soando nada seguro. – Estava. Acho que estava.
Porque ela perguntou o que era aquele estrondo e eu disse que não era nada, que
eram coisas da quinta.
– Estava a falar ao telemóvel?
– Não. Era o fixo. Tenho pouca rede no telemóvel lá em cima.
Houve outro silêncio.
– Porque é que não nos disse isto antes? – perguntou Raco.
Houve um longo silêncio. Quando Deacon voltou a falar, soava como um
rapazinho.
– Não sei porquê.
Falk sabia. Era a demência. Na sala de arrumos, encostou a testa à parede
fresca. Interiormente, estava a gritar com frustração. Através da saída de ar
ouviu uma pequena tosse. Quando a advogada falou, soava contente.
– Penso que terminámos.
CAPÍTULO 31
Luke Hadler sentia o coração na garganta. Parou, com uma mão no rádio
quando os sul-africanos quase ganharam vantagem. Com o batedor
restabelecido e o pânico a passar, desligou o rádio.
Perfumou liberalmente o peito nu e abriu de par em par o guarda-fatos.
Automaticamente, estendeu a mão para a camisa cinzenta que ela admirara
uma vez. Luke olhou para o seu reflexo no espelho e sorriu enquanto abotoava
a camisa. Gostava do que via, mas sabia por experiência que isso não queria
dizer nada. Era preciso ser bruxo para saber o que passava pela cabeça
daquelas raparigas metade do tempo.
Hoje, por exemplo. A imagem de Ellie a pressionar a sua boca quente na de
Aaron na sala de aulas veio-lhe à cabeça, e o seu reflexo no espelho franziu a
testa. Seria a primeira vez que aquilo acontecia? De algum modo, tinha a
certeza de que não era. Luke sentiu um acesso intenso de algo como ciúme e
sacudiu a cabeça vigorosamente. Que lhe importava? Não queria saber. Mas,
meu Deus, a Ellie Deacon conseguia ser uma bela cabra por vezes. A ignorá-lo
e depois a correr para o Aaron. Não que o incomodasse, mas, por Deus,
bastava olhar para aquela imagem para saber que havia qualquer coisa
seriamente errada.
Os dedos compridos de Deacon enterravam-se dolorosamente na face de Falk
e ele agarrou-lhe o pulso, arrancando-lhe a mão do rosto. Atirou Deacon de
costas e pôs-se de pé, afastando-se um passo. Aquilo terminara numa questão
de segundos, mas ambos os homens estavam ofegantes, excitados com a
adrenalina. Deacon olhou para cima, para Falk, com os cantos da boca brancos
com saliva.
Falk inclinou-se sobre ele, ignorando o cão que lhe mostrava os dentes.
Debruçou-se sobre um homem doente deitado por terra. Mais tarde, odiar-se-ia
por o ter feito. Naquele momento, não queria saber.
– Julga que matei a sua filha naquele dia? – perguntou Falk, olhando para
baixo para Deacon. – Pensa que lhe segurei o corpo debaixo de água até ela se
afogar e depois menti a toda a gente, ao meu próprio pai, estes anos todos?
– Não sei o que aconteceu naquele dia.
– Penso que sabe.
– Eu adorava-a.
– Desde quando – disse Falk – é que isso impediu fosse quem fosse de fazer
mal a alguém?
– Dê-me o raio de uma pista então. Numa escala de um até dar direito a ir
parar à cadeia, quanta merda andou a revolver?
Raco estava a berrar ao telefone. Falk apercebeu-se de que nunca o ouvira
falar zangado.
– Nenhuma. Olhe, está tudo bem. Deixe para lá – respondeu Falk. Estava
sentado no carro da polícia na estrada, a um quilómetro da propriedade de
Deacon. Tinha oito chamadas perdidas de Raco no telemóvel.
– Nenhuma? – disse Raco. – Julga que eu nasci ontem, pá? Tem uma queixa
contra si. Pensa que não adivinho onde é que está exatamente? Que sou um
palerma de um moina de província que não entende nada?
– O quê? – perguntou Falk. – Não. Raco, pá, é claro que não. – Sentia-se
abalado pela sua própria falta de autocontrolo. Parecia-lhe errado, como se
tivesse vestido um disfarce.
– Dá à sola mal o interrogatório acabou... Eu sei que esteve à escuta, já agora.
E ouço na sua voz que se meteu nalguma com o Deacon. Num carro da polícia.
Por isso, não está nada bem, pois não? Eu ainda mando aqui, ao que me consta,
e se o Falk foi assediar alguém que já fez queixa de si, por amor de Deus, então
temos um problema grave, pá.
Houve um longo silêncio. Falk imaginava Raco a andar de um lado para o
outro na esquadra, com Deborah e Barnes a escutarem a conversa. Falk respirou
fundo algumas vezes. Ainda tinha o coração a bater descontrolado, mas o senso
comum estava a começar a voltar.
– Nós não temos problema nenhum – disse Falk. – Desculpe. Perdi as
estribeiras por um minuto. Se houver algum problema, eu assumo a
responsabilidade, não você. Prometo.
Fez-se um silêncio tão longo que Falk não tinha a certeza se Raco ainda
estaria ao telefone.
– Ouça, pá. – Raco falou mais baixo. – Penso que tudo isto talvez esteja a ser
demasiado para si. Com os seus antecedentes aqui.
Falk abanou a cabeça, embora não estivesse ninguém com ele para o ver. –
Não. Já lhe disse. Foi um momento de loucura. Não há danos nenhuns. – Mais
nenhuns danos, de qualquer maneira.
– Olhe, o Falk já fez tudo o que poderia pedir-se de si. Mais até – estava a
dizer Raco. – Chegámos mais longe do que eu chegaria sozinho. Sei bem isso,
pá. Mas talvez seja o momento de desistirmos. De contactarmos Clyde. Eu
culpo-me a mim, devia tê-lo feito há que tempos. A responsabilidade não é sua.
Nunca foi.
– Raco, pá...
– E você está obcecado com o Deacon e o Dow. Tem a obsessão de os
incriminar. É como se sentisse a necessidade de os culpar do caso dos Hadler
para compensar o que quer que tenha acontecido à Ellie...
– Não tem a ver com isso! O nome do Dow apareceu escrito pelo punho da
Karen!
– Eu sei, mas não há mais nenhuma prova! Eles têm um álibi. Ambos, agora.
– Raco suspirou ao telefone. – O telefonema que o Deacon recebeu na altura
dos disparos em casa dos Hadler parece que se confirma. O Barnes está a
verificar os registos dos telefonemas agora, mas a funcionária da farmácia
confirmou. Lembra-se de falar com ele.
– Merda. – Falk passou a mão pela cabeça. – Porque é que ela não o
mencionou antes?
– Nunca lhe perguntaram.
Houve uma pausa.
– Não foi o Deacon – disse Raco. – Ele não matou os Hadler. O Falk tem de
abrir os olhos, e depressa. Está a olhar tão fixamente para o passado que isso
está a cegá-lo.
CAPÍTULO 32
E ra uma longa caminhada até à cidade. Falk sentia todos os passos a fazerem
ricochete das plantas dos pés na sua cabeça a latejar. Os pensamentos eram
como um enxame de moscas. Recordou as conversas que tivera com Gretchen,
submetendo-as àquela nova luz mais crua, examinando-as, procurando as
falhas. Telefonou a Raco. Não teve resposta. Talvez ele ainda estivesse
zangado. Falk deixou uma mensagem a pedir-lhe que telefonasse.
Era quase a hora do fecho quando finalmente chegou ao Fleece. Scott
Whitlam estava nos degraus do pub, a apertar o fecho do capacete. O nariz
magoado parecia melhor do que na outra noite. Whitlam olhou para o rosto de
Falk e parou.
– Está bem, pá?
– Foi uma noite de farra.
– É o que parece. – Whitlam tirou o capacete. – Venha daí, eu pago-lhe um
copo.
O que Falk mais queria era subir as escadas para se deitar, mas não tinha a
energia suficiente para recusar o convite. Seguiu Whitlam para dentro do bar.
Estava quase vazio e McMurdo estava a passar um pano pelo balcão. Parou
quando entraram e pegou em dois copos de cerveja sem perguntar nada.
Whitlam pousou o capacete no balcão.
– Eu pago. Põe na minha conta, pá? – disse ele a McMurdo.
O homem do bar franziu a testa. – Não há cá fiado.
– Vá lá. Para um cliente habitual?
– Não me faça dizê-lo outra vez, meu amigo.
– OK. Tudo bem. – Whitlam tirou a carteira do bolso e procurou dentro dela.
– Talvez eu esteja um bocado... talvez tenha de pagar com cartão...
– Eu pago. – Falk interpôs-se e pousou uma nota de vinte em cima do balcão,
acenando a arredar os protestos de Whitlam. – Tudo bem, esqueça. À sua.
Falk bebeu um grande gole. Quanto mais depressa bebesse a cerveja, tanto
mais depressa podia dar a noite por terminada.
– O que é que aconteceu, então? – perguntou Whitlam.
– Nada. Só estou farto de morte desta terra.
Magoou-me. O Luke magoou-me.
– Há alguns progressos?
Num momento de loucura, Falk considerou a hipótese de lhe contar.
McMurdo tinha parado de limpar o balcão e estava a escutar. Falk acabou por
encolher os ombros.
– Vou ficar contente quando puder ir-me embora. – Acontecesse o que
acontecesse, ele teria de estar em Melbourne na segunda-feira. Mais cedo, se
Raco levasse a melhor.
Whitlam acenou com a cabeça. – Quem me dera ter metade da sua sorte.
Embora... – Ergueu uma mão e fez figas. – Sou bem capaz de lhe seguir o
exemplo mais cedo do que pensava.
– Vai-se embora de Kiewarra?
– Espero que sim. Tenho de fazer alguma coisa pela Sandra. Ela já está farta.
Tenho andado a ver de um sítio novo, uma escola lá para o Norte, talvez. Uma
mudança de ares.
– O tempo é mais quente no Norte.
– Pelo menos, chove – disse Whitlam. – É a falta de água aqui. Põe a cidade
toda louca.
– Bebo a isso – disse Falk, esvaziando o copo. Sentia a cabeça pesada. Vinho,
cerveja, emoções.
Whitlam acusou o toque e seguiu-lhe o exemplo.
– Ora bem, é melhor ir indo. Amanhã é dia de aulas. – Whitlam estendeu-lhe
a mão. – Espero vê-lo antes de se ir embora, mas, se não o vir, boa sorte.
Falk apertou-lhe a mão. – Obrigado. Para si também. Lá no Norte.
Whitlam partiu com um aceno amigável e Falk passou os copos vazios a
McMurdo.
– Ouvi-o dizer que se vai embora em breve?
– Provavelmente – disse Falk.
– Bem, vou ter pena de o ver ir embora, acredite ou não – disse McMurdo. –
É o único que posso ter a certeza de que paga. O que me lembra... – Abriu a
caixa registadora e devolveu a Falk a nota de vinte dólares. – Pus as bebidas na
conta do seu quarto. Pensei que talvez fosse mais fácil, para as ajudas de custos
ou lá o que é que vocês os polícias têm.
Falk pegou na nota, surpreendido.
– Oh, certo. Obrigado. Pensei que tinha dito que não havia fiado para
ninguém.
– Só disse isso ao Whitlam. Mas para si, tudo bem.
Falk franziu a testa. – Mas não para o Whitlam? Deve conhecê-lo
suficientemente bem.
McMurdo soltou uma risada curta. – Oh, sim. Conheço-o suficientemente
bem. É por isso que também sei onde mete o dinheiro. – Acenou com a cabeça
para as máquinas de póquer iluminadas nas traseiras do bar.
– O Whitlam é fã do póquer? – perguntou Falk.
McMurdo acenou com a cabeça. – E do resto. Corridas de cavalos, de cães.
Tem sempre um olho no canal das corridas e o outro nas aplicações do
telemóvel.
– Está a brincar. – Falk sentia-se chocado, mas ao mesmo tempo não
surpreendido. Pensou nos livros sobre desporto em casa de Whitlam. Na sua
carreira, já conhecera muitos jogadores. Não havia um só tipo. A única coisa
que tinham em comum era a ilusão e a deceção.
– Ele é subtil, mas vê-se de tudo atrás de um balcão – disse McMurdo. –
Especialmente no que diz respeito a ter dinheiro para pagar as bebidas. E não
me parece que goste das máquinas do póquer por aí além.
– Não?
– Não, dá-me a sensação de que são coisa de somenos para ele. Mesmo
assim, não o impede de meter nelas o peso dele em moedas de cada vez que cá
vem. Era o que estava a fazer quando foi acidentalmente atingido na outra noite.
Quando o Jamie e o Don andaram à bulha.
– Ah, sim?
– Seja como for, eu não devia contar estas coisas – disse McMurdo. – Não há
nada de ilegal em gastar o dinheiro mal gasto. Graças a Deus. De outra forma,
eu ia à falência.
– Assim como muitas outras pessoas. – Falk conseguiu fazer um sorriso.
– Mas esses tipos viciados no jogo são uns papalvos de primeira. Sempre à
procura de estratégias e de oportunidades. Ao fim e ao cabo, só resulta se uma
pessoa apostar no cavalo certo.
O quarto de Falk nunca lhe tinha dado mais a sensação de ser uma cela do
que naquele momento. Escovou os dentes sem acender a luz e deixou-se tombar
na cama. Apesar do caos na sua cabeça, sentia-se dominado pela exaustão. O
sono não tardaria.
Lá fora na rua, uma lata rolou, com o seu ruído metálico a tilintar no silêncio.
No estado de sonolência de Falk, recordou-lhe os sons artificiais das máquinas
de póquer. Fechou os olhos. McMurdo tinha razão quanto aos jogos de azar.
Como aquele caso. Por vezes, nenhuma estratégia deste mundo podia ajudar.
Só resulta se uma pessoa apostar no cavalo certo.
Uma peça de uma engrenagem rodou bem fundo no cérebro de Falk.
Lentamente, porque era uma peça bem incrustada. Incrustada e difícil de
desalojar. Relutantemente, rodou uma vez e depois parou, instalada.
Falk abriu os olhos lentamente. Estava demasiado escuro para ver fosse o que
fosse, mas fitou a escuridão negra como tinta, a pensar.
Imaginou Kiewarra disposta em três dimensões. Imaginou-se a si mesmo, a
trepar, talvez para o miradouro, com a cena lá em baixo a ficar cada vez mais
pequena à medida que ia subindo. Quando chegou ao cimo, olhou para baixo.
Para a cidade, a seca, os Hadler. A reparar, pela primeira vez, no aspeto que as
coisas tinham quando eram vistas de uma perspetiva diferente.
Falk pensou naquilo, com os olhos abertos, a fitar o nada, por uns longos
minutos. A testar a peça da engrenagem na sua nova posição. Finalmente,
sentou-se na cama, completamente desperto. Vestiu uma T-shirt e meteu os pés
nas sapatilhas. Pegou na lanterna e num jornal velho, desceu as escadas
silenciosamente e foi até ao parque de estacionamento.
O seu carro estava onde o tinha deixado. O fedor a excremento fez-lhe vir
lágrimas aos olhos, mas mal reparou nele. Puxou para trás o oleado e, usando o
jornal como uma luva improvisada, abriu a mala do carro. Estava separada do
resto do carro pelos assentos traseiros e ficara protegida da tempestade de
excrementos.
Falk acendeu a lanterna e fez incidir a luz na mala vazia. Ficou ali parado por
muito tempo. A seguir, pegou no telemóvel e tirou uma fotografia.
De regresso ao quarto, o sono tardou muito tempo a vir. Ao nascer do dia,
acordou e vestiu-se cedo e depois aguardou impacientemente. Mal o relógio
marcou as nove, Falk pegou no telemóvel e fez uma chamada.
Falk abriu o dossiê dos Hadler com dedos trémulos, ao mesmo tempo
excitado e frustrado consigo mesmo.
– Temos andado a dar nós cegos a tentar encontrar ligações ao Luke... o que é
que ele estava a esconder, quem o queria morto? E com que é que acabámos?
Com nada. Bem, com nada substancial. Uma data de motivos menores, mas não
suficientes. E o Raco tinha razão.
– Tinha?
– Eu andava de facto com palas nos olhos. Mas andávamos ambos. Temos
estado a apostar no cavalo errado.
– Parece que tem aí um problema? – Luke inclinou-se para fora. Acenou com
a cabeça ao objeto que estava aos pés da pessoa.
– Obrigado. Acho que sim. Traz ferramentas?
Luke desligou o motor e saiu da furgoneta. Acocorou-se para ver de mais
perto.
– O que é que se passou?
Foram as últimas palavras que Luke Hadler pronunciou antes de um objeto
muito pesado lhe assentar com força na nuca. Houve um baque surdo e um
súbito silêncio atordoado quando a toda a volta as aves nas árvores
emudeceram com o choque.
Com a respiração entrecortada, de pé junto ao corpo caído de Luke Hadler,
Scott Whitlam olhou para baixo, para o que tinha feito.
Falk folheou o dossiê e tirou uma fotocópia do recibo da biblioteca de Karen
Hadler. A palavra Don?? destacava-se acima do número de telefone de Falk.
Empurrou a folha por cima da secretária de Raco e espetou um dedo na palavra.
– Don. Por amor de Deus. Não é o raio de um nome.
Karen foi direta do gabinete de Whitlam para a casa de banho das senhoras.
Fechou-se num cubículo e encostou a testa à porta antes de deixar sair
lágrimas de raiva. Até àquele encontro tivera uma réstia de esperança. Quisera
que Whitlam olhasse para a carta e se risse. «Vejo exatamente o que
aconteceu», diria ele, antes de explicar tudo de uma maneira que fizesse todo o
sentido.
Tivera a forte esperança de que ele dissesse isso, e ele não o disse. Karen
limpou os olhos com a mão trémula. E agora? Em parte, continuava a não
acreditar completamente que Scott tivesse roubado aquele dinheiro, embora
soubesse agora que era verdade. Já o sabia antes, se quisesse admiti-lo a si
mesma. Examinara os registos da contabilidade pessoalmente. Os erros que
tinham aparecido eram dele, não dela. Um trilho de migalhas a denunciar a
fraude dele. O seu roubo. Tentou dizer mentalmente a palavra. Parecia tão
errado.
Karen acreditava que ter suspeitas não era o mesmo que ter certezas, mas a
visão do mundo do seu marido sempre fora mais a preto e branco.
– Querida, se achas que o cabrão gamou o dinheiro, telefona à polícia e
denuncia-o. Eu denuncio-o, se tu não quiseres fazê-lo – dissera-lhe Luke há
duas noites.
Karen estava sentada na cama, com um novo livro da biblioteca aberto no
colo. Não estava a conseguir concentrar-se. Viu o marido tirar a roupa e atirá-
la num monte para cima de uma cadeira. Ficou ali nu e arqueou as suas costas
largas enquanto bocejava. Desferiu-lhe um sorriso sonolento e ela pensou
como era atraente assim, à meia-luz. Falaram em murmúrios para o som não
chegar aos quartos das crianças.
– Não, Luke – disse. – Não interfiras. Por favor. Eu posso fazê-lo, mas quero
ter a certeza. Depois, denuncio-o.
Em parte, sabia que estava a ser demasiado cautelosa. Contudo, o diretor da
escola era uma peça importante da comunidade. Karen conseguia imaginar
como os pais reagiriam. As pessoas andavam com os ânimos tão alterados que
se sentia preocupada que pudessem de facto fazer mal a Scott. Não podia
divulgar uma acusação daquela importância sem provas sólidas. Kiewarra já
estava bastante fragilizada sem mais aquilo. Tinha de ser feito em condições. E
havia também o seu emprego a considerar. Perdê-lo-ia num abrir e fechar de
olhos se estivesse enganada.
– Eu devia falar primeiro com o Scott – disse Karen quando o marido se
meteu na cama ao seu lado e pôs uma mão quente na sua coxa. – Dar-lhe uma
hipótese de se explicar.
– O mais provável é que lhe desses uma hipótese de o ocultar. Karen,
querida, deixa a polícia encarregar-se do assunto.
Ela ficou em silêncio, contrariada. Luke suspirou.
– Está bem. Se não o queres denunciar, pelo menos aconselha-te sobre como
obter a tal prova de que pensas que precisas. – Luke virou-se para o outro lado
e estendeu a mão para o seu telemóvel. Percorreu a lista de contactos até
encontrar o que pretendia e passou o telemóvel a Karen. – Telefona a este tipo.
Aquele meu amigo que é polícia. Ele faz qualquer coisa relacionada com
dinheiro na polícia federal em Melbourne. É bom sujeito. Mesmo esperto. Além
de que me deve um favor. Podes confiar nele. Ele ajuda-te.
Karen Hadler não disse nada. Prometera a Luke que resolveria o assunto, e
fá-lo-ia. Mas já era tarde, e mais fácil não discutir. Encontrou uma
esferográfica na confusão da sua mesa de cabeceira e pegou no primeiro papel
que lhe veio à mão, o recibo da biblioteca que estava a usar como marcador de
página. Serviria. Virou-o e escreveu uma só palavra, como lembrete, antes de
copiar o número de telefone de Aaron Falk. A seguir, como o seu marido ainda
estava a olhar para ela, meteu o recibo cuidadosamente no livro que andava a
ler e pô-lo ao lado da cama.
– Para não se perder – disse, apagando a luz e deitando a cabeça na
almofada.
– Telefona-lhe – disse Luke ao estender os braços e os pôr à volta da sua
mulher no silêncio da noite. – O Aaron saberá o que fazer.
CAPÍTULO 36
N oventa minutos depois, Falk e Raco estavam a vigiar a escola dos assentos
da frente do carro da polícia não identificado da esquadra. Estavam
estacionados a meio de uma colina numa rua transversal, num local que
proporcionava uma boa vista do edifício principal e do recreio da frente.
A porta traseira do carro abriu-se e o agente Barnes entrou. Subira a encosta a
correr e estava sem fôlego. Inclinou-se no espaço entre os dois assentos da
frente e estendeu a palma da mão, exibindo orgulhosamente dois cartuchos
Remington novinhos em folha.
Raco pegou na munição e inspecionou a marca. Acenou com a cabeça. Era a
mesma marca encontrada nos corpos de Luke, Karen e Billy Hadler. Na
peritagem, provavelmente conseguiriam identificá-los mais especificamente,
mas por agora era suficiente.
– Estava fechado à chave no barracão do zelador, como você disse. – Barnes
estava quase aos saltos no assento.
– Teve dificuldade em entrar? – perguntou Falk.
Barnes tentou aparentar modéstia, mas não conseguiu. – Fui direto ao zelador.
Usei o velho truque da «inspeção de rotina». Licenças, tretas sobre segurança.
Ele abriu-me logo a porta. Foi fácil como tudo. Consegui encontrar coisas
erradas que cheguem para ele guardar a notícia da visita para si mesmo. Disse-
lhe que fazia vista grossa se ele resolvesse as coisas antes da minha visita
seguinte. Ele não vai dizer nada a ninguém.
– Bom trabalho – disse Raco.– Desde que ele não conte ao Whitlam durante
umas horas, estamos a salvo. Os reforços de Clyde vão demorar cerca de
quarenta minutos.
– Não vejo porque é que não entramos por ali dentro e não prendemos o
cabrão – resmungou Barnes do assento traseiro. – Clyde não fez nada para
merecer o crédito por esta operação.
Raco olhou para trás. – Nós vamos ter o crédito que merecemos, pá, não te
preocupes – disse. – Eles não vão ficar cobertos de grande glória por lhe
cercarem a casa e confiscarem os extratos bancários.
– Quem dera que se apressassem, então – disse Barnes.
– É, eu também – disse Falk.
Os três viraram-se para fitar o edifício à distância. Soou uma sineta e as
portas da escola abriram-se. Um bando de crianças começou a sair aos poucos,
a formar grupos, às corridinhas, encantadas com a sua liberdade temporária.
Atrás delas, Falk divisou uma figura encostada à ombreira da porta principal.
De chapéu, com uma caneca de café na mão, um vislumbre de gravata vermelha
contra a camisa. Scott Whitlam. Falk sentiu Barnes mexer-se atrás dele.
– Cinquenta milenas. É uma quantia demasiado pequena para matar três
pessoas por causa dela – disse Barnes.
– Deve ser menos pelo dinheiro do que pensa – disse Falk. – Os jogadores
compulsivos como ele andam sempre atrás de outra coisa qualquer. Já vi
situações a ficarem bastante desesperadas bem depressa. Pensam que cada rolar
dos dados é uma segunda oportunidade. A questão é do que é que o Whitlam
andava atrás.
– Não importa o que era. Não pode justificar isto – disse Barnes.
– Não, mas o dinheiro é mesmo assim – disse Falk. – Pode-se tornar
repugnante como tudo.
Whitlam ficou a ver Karen sair do seu gabinete. Quando a porta se fechou
com um estalido nas costas dela, ele virou-se na sua cadeira giratória e
vomitou em silêncio para o cesto dos papéis. Não podia ir para a cadeia. Não
conseguiria pagar o que devia na cadeia e as pessoas a quem ele devia não
eram do tipo de querer saber a razão. Ou pagava ou a sua família pagaria por
ele. Era esse o acordo. Assinado e selado. Ele vira a pistola de pregos.
Fizeram-no tocar nela. Sentir o seu peso de chumbo na mão. Pague, ou a sua...
Não. Não havia alternativa. Pagaria. É claro que pagaria.
Ficou sentado sozinho no seu gabinete e forçou-se a pensar. Karen sabia. O
que significava que, provavelmente, contaria ao marido, se é que não lhe
contara já. Quando o denunciaria? Era uma mulher cautelosa. Quase
demasiado diligente em muitas coisas. Isso tornava-a mais lenta. Karen Hadler
quereria estar cem por cento certa antes de tomar alguma iniciativa. Luke, no
entanto, era outra história.
Não tinha muito tempo. Não podia deixar que aquilo se soubesse. Não podia
mesmo deixar que aquilo se soubesse. Não havia alternativa.
O dia de aulas chegou ao fim, mas não lhe trouxe uma resposta real. Whitlam
esperou tanto tempo quanto pôde e a seguir fez o que fazia sempre em tempos
de grandes pressões. Pegou em todo o dinheiro que tinha e em mais algum que
não tinha e foi para a sala das máquinas de jogo do pub. Foi ali, aconchegado
à luz das máquinas e com o seu tilintar otimista, que o primeiro esboço de uma
solução lhe ocorreu. Como acontecia com muita frequência.
Só e fora da vista entre as máquinas de jogo, Whitlam ouviu a voz de Luke
Hadler vinda de uma mesa ao dobrar da esquina. Imobilizou-se, quase sem se
atrever a respirar, enquanto esperava que Hadler contasse a Jamie Sullivan o
caso do dinheiro da escola. Sentia a certeza de que vinha aí, mas o segredo
ficou por contar. Em vez disso, lamentaram-se por causa dos coelhos e
planearam uma caçada na terra de Sullivan no dia seguinte. Combinaram uma
hora. Luke levaria a sua arma. Interessante, pensou Whitlam. Talvez o jogo não
tivesse acabado de vez. Ainda não.
Depois de mais cem dólares em moedas metidas na máquina, tinha o esboço
de um plano. Passou-o em revista mentalmente repetidas vezes até ele ganhar
corpo. Era razoável. Não perfeito. Não uma certeza. Mas talvez uns cinquenta
por cento. E Whitlam aceitaria uma probabilidade dessas sem hesitar.
Com o estômago às voltas, Whitlam saiu do pub e passou uma noite sem
dormir a encontrar defeitos no seu plano. No dia seguinte, deixou-se ficar
sentado no gabinete, arrasado e com um olhar vazio, à espera da pancada
inevitável na porta. Karen devia ter contado. Com certeza. Viria alguém, só não
sabia quem seria. A polícia? O diretor da assembleia da escola? A própria
Karen de novo, talvez? Receava aquela pancada na porta e ansiava por ela ao
mesmo tempo. Uma pancada na porta significaria que Karen tinha contado.
Significaria que era demasiado tarde. E ele não teria de fazer o que estava a
planear.
Não precisava de se perguntar se conseguiria levar a cabo o plano. Sabia
que conseguiria. Provara-o com o tipo na travessa de Footscray. Era um tipo
que devia ter tido mais cuidado. Alegadamente, era um profissional.
Whitlam cruzara-se com ele uma vez antes. E depois, o homem encurralou-o
num parque de estacionamento, aliviou-o da carteira e entregou a mensagem
com um murro forte contra os rins de Whitlam. Supostamente, passar-se-ia o
mesmo em Footscray, supunha Whitlam. Mas depois o homem ficou todo
furioso, começou a acenar com a navalha e a exigir mais do que tinham
combinado. As coisas ficaram feias em pouco tempo.
O tipo mostrara-se descuidado e estava quase com certeza sob a influência
de alguma coisa. Ouvira a palavra «professor» e subestimou a boa forma física
de Whitlam. Um arremesso mal calculado foi recebido com uma finta do
râguebi e caíram os dois no cimento com um estrondo.
A navalha brilhou cor de laranja à luz do lampião e Whitlam sentiu a ponta
riscar-lhe a barriga, deixando uma linha vermelha quente. A adrenalina e o
medo percorreram-no e agarrou a mão que empunhava a navalha. Segurou-a e
torceu-a, usando o peso do seu corpo para a forçar a dirigir-se para o tronco
do seu atacante. O homem não largava a navalha. Ainda a tinha na mão
quando ela se enfiou no seu próprio corpo. Roncou lançando perdigotos para o
rosto de Whitlam enquanto o professor o segurava no chão, sentindo o ritmo
lento do sangue a bombear para a estrada. Esperou até o homem parar de
respirar e depois mais um minuto.
Whitlam tinha lágrimas nos olhos. O corpo tremia-lhe e receava desmaiar.
Mas algures, enterrado sob muitas camadas, havia um ponto de calma. Fora
encurralado e agira. Fizera o que era necessário. Whitlam, a quem era tão
familiar a sensação nauseante de queda livre de cada vez que estendia a mão
para a carteira, por uma vez sentiu que controlara a situação.
Com dedos trémulos, examinou o seu tronco. O corte era superficial. Parecia
muito pior do que era. Debruçou-se sobre o seu atacante e fez-lhe duas rodadas
de reanimação, assegurando-se de que os seus dedos manchados de sangue
refletiam convenientemente os seus atos de bom cidadão. Encontrou uma casa
na vizinhança com as luzes acesas e deixou sair a emoção que estivera a
reprimir ao pedir que comunicassem à polícia um assalto. Os atacantes tinham
fugido, mas depressa, por favor, alguém estava gravemente ferido.
Sempre que Whitlam pensava agora no incidente, o que acontecia com mais
frequência do que esperava, sabia que tinha sido um ato de autodefesa. Aquela
nova ameaça talvez envolvesse um gabinete em vez de uma travessa, papelada
em vez de uma navalha, mas bem no fundo sentia que não era assim tão
diferente. O tipo na travessa. Karen do outro lado da secretária. A pressioná-lo.
A obrigá-lo a agir. Eram eles ou ele. E Whitlam escolheu-se a si.
O dia de aulas chegou ao fim. As salas de aulas e o recreio ficaram vazios.
Ninguém veio bater-lhe à porta. Ela ainda não o tinha denunciado. Ele ainda
podia remediar aquilo. Era agora ou nunca. Olhou para o relógio de parede.
Era agora.
CAPÍTULO 37
Mal Falk se sentiu com forças suficientes, foi a pé todo o caminho até à casa
de Gretchen. Ela estava nas traseiras a matar coelhos outra vez e quando ele se
aproximou apontou-lhe a arma e manteve-a apontada uns momentos mais do
que o necessário.
– Gretchen. Lamento – disse Falk em voz alta do outro lado do campo.
Estendeu as mãos. – É só o que quero dizer.
Ela olhou-lhe para as ligaduras e baixou a arma. Suspirou e aproximou-se.
– Não te fui visitar ao hospital.
– Eu sei.
– Eu queria, mas...
– Tudo bem. Estás bem?
Ela encolheu os ombros e ficaram parados, em silêncio, a escutar as catatuas
nas árvores. Ela recusava-se a olhar para ele.
– O Luke adorava a Karen – acabou por dizer. – Adorava mesmo. E antes
dela, a Ellie. – Olhando à volta do campo, tinha lágrimas nos olhos. – Não acho
que alguma vez eu tenha sido a sua primeira escolha.
Falk queria dizer-lhe que estava enganada, mas sabia que ela era demasiado
esperta para isso.
– E no dia em que a Ellie morreu? – perguntou ele.
Gretchen enrugou o rosto.
– Eu sempre soube que o Luke tinha mentido por ti. – Falava num tom
reprimido e as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces. – Porque ele estava
comigo.
– Quando ouvi dizer que ela tinha andado a apanhar pedras para meter nos
bolsos, não dormi durante três noites. – Gretchen assoou-se a um lenço de
papel. – Eu vi-a. Se tivesse ido ter com ela, podia tê-la impedido. Mas não o fiz.
– As suas palavras quase se perderam por entre as lágrimas. – Fui-me embora.
É claro. Pelo Luke.
– Quando ouvi dizer que a Ellie não tinha voltado para casa, fui outra vez ao
rio para verificar. Estava meio à espera de a encontrar lá escondida, com um
saco-cama, a evitar o pai. Não havia sinal dela. – Gretchen pôs-se a roer a unha
do polegar. – O Luke e eu discutimos se devíamos dizer alguma coisa. Mas
nessa altura não estávamos ainda realmente preocupados, sabes? Ela andava tão
ensimesmada nessa fase que, honestamente, pensei que ia aparecer quando lhe
desse na gana. – Não disse nada por um longo momento. – Nunca imaginei uma
única vez que ela estivesse naquela água.
Virou-se para olhar para Falk.
– Quando disseram que ela se tinha afogado, não consegui perdoar-me. E se
nós tivéssemos ficado e falado com ela? Eu tinha achado que havia qualquer
coisa que não estava bem e tinha-lhe virado as costas. Sentia-me tão
envergonhada. Simplesmente calei-me. Obriguei o Luke a prometer que não
contava a ninguém que a tínhamos visto. Não queria que ninguém soubesse que
maus amigos nós tínhamos sido.
Gretchen limpou os olhos.
– Depois, quando pensei que as coisas não podiam ficar piores, toda a gente
começou a apontar o dedo para ti. Até o Luke ficou assustado. Se as pessoas
pensavam que tu estavas envolvido, o que diriam se soubessem que nós
estávamos lá em baixo? O Luke arquitetou aquele plano. Ia dizer que tinha
estado contigo. Ajudava-te a ti e ajudava-nos a nós. E eu podia fingir para o
resto da vida que não tinha estado lá. Que não fui atrás do Luke quando devia
ter ido ter com ela.
Falk tirou um lenço de papel do bolso e deu-o a Gretchen. Ela aceitou-o com
um pequeno sorriso.
– Tu não és responsável pelo que aconteceu à Ellie Deacon – disse ele.
– Talvez não. Mas podia ter feito mais. – Encolheu os ombros e assoou-se. –
Não sei o que havia no Luke. Ele não era mau tipo, mas foi bastante mau para
mim.
Ficaram lado a lado durante algum tempo a olhar para os campos, ambos a
verem coisas que já há muito tinham passado. Falk inspirou fundo.
– Ouve, Gretchen, não é da minha conta, mas o Gerry e a Barb e a Charlotte,
eles...
– O Luke não é o pai do Lachie.
– Mas se...
– Aaron. Por favor. Para. – O seu olhar azul encontrou-se com o dele, mas só
por um momento.
– Tudo bem. – Ele acenou com a cabeça. Tentara. O suficiente. – Tudo bem,
Gretch. Mas eles são boas pessoas. E perderam muito nos últimos tempos. Tu
também. Se há hipótese de salvar algo de positivo desta desgraça toda, devias
aproveitá-la.
Ela não disse nada, limitando-se a fitá-lo, sem o seu rosto trair fosse o que
fosse. Por fim, ele estendeu-lhe a mão que não estava queimada. Gretchen
olhou para ela e depois, para surpresa de Falk, estendeu-lhe os braços e apertou-
o ao peito por uns instantes. Não foi um abraço namoradeiro, nem sequer
amigo, mas talvez de paz.
– Vemo-nos daqui a outros vinte anos – disse ela.
Dessa vez, ele pensou que provavelmente assim seria.
CAPÍTULO 42
A casa de família de Falk parecia agora ainda mais pequena do que ele a
recordava. Tanto da infância como de há umas semanas. Passou por ela a
caminho do rio, à volta do perímetro da propriedade. Não o preocupava
excessivamente a possibilidade de ver a proprietária dessa vez.
No hospital, McMurdo revirara os olhos ao contar a Falk como muitas
pessoas tinham rapidamente mudado de cantiga. Começaram a reprovar
absolutamente aqueles folhetos, de repente. Vinte anos passados eram vinte
anos passados, por amor de Deus. Já tinha corrido muita água debaixo da ponte
e o que lá ia lá ia.
Falk atravessou os campos, com a cabeça mais desanuviada agora. Vinte anos
eram vinte anos, mas algumas coisas não deviam ser esquecidas. Ellie Deacon.
Ela, mais do que qualquer outra pessoa, fora uma vítima daquela cidade. Dos
seus segredos e das suas mentiras e do seu medo. Precisara de alguém. Precisara
dele, talvez, e ele falhara-lhe. Ellie era a que se arriscava a ser esquecida em
todo aquele caos. Como Karen quase fora esquecida. Como Billy.
Mas não hoje, pensou Falk. Hoje, recordaria Ellie, no lugar que sabia que ela
adorara. Chegou à árvore-penedo quando o sol começava a descer no céu. Era
quase abril. A ferocidade do verão começava a dissipar-se. Diziam que a seca
talvez acabasse nesse inverno. Para bem de todos, queria que tivessem razão
dessa vez. O rio continuava desaparecido. Esperava que um dia ele voltasse.
Falk sentou-se no penedo e tirou do bolso o canivete que trouxera. Encontrou
o ponto onde a fenda secreta se abria e começou a riscar. Letras minúsculas, E.
L. L. O canivete estava rombo e ele avançava lentamente, mas perseverou até
ao fim. Por fim, recostou-se contra o penedo e limpou a testa. Passou o polegar
pelas letras, admirando a sua obra. Sentia a perna que tinha queimado em
chamas por causa da pressão de ter estado ajoelhado.
A dor lembrou-lhe algo. Com um gemido, virou-se e enfiou a mão na fenda, à
procura do isqueiro antigo que lá deixara da última vez. Uma coisa era a
nostalgia, outra, depois dos acontecimentos recentes, era deixar ali a tentação
para alguém encontrar.
Falk sabia que o tinha metido bem lá para o fundo e ao princípio não
encontrou nada com a mão que não tinha sido afetada pelo fogo a não ser terra e
folhas. Enfiou ainda mais a mão, esticando os dedos. Sentiu o metal do isqueiro
quando roçou com o polegar em algo suave mas sólido. Deu um salto, e com a
pancada afastou ainda mais o isqueiro. Irritado, voltou a enfiar a mão, fez uma
pausa, e bateu com a mão no mesmo objeto. Era áspero mas maleável e bastante
grande. Um objeto fabricado.
Falk espreitou para dentro da fenda. Não via nada e hesitou. Mas então
pensou em Luke, em Whitlam, em Ellie e em todas as pessoas que tinham
sofrido por causa de segredos enterrados. Já bastava.
Falk enfiou a mão e mexeu-a até conseguir agarrar o objeto. Deu um puxão e
o objeto soltou-se com um súbito solavanco. Ele caiu para trás e sentiu uma dor
gritante no peito quando o objeto aterrou em cima dele com um baque. Olhou
para baixo e susteve a respiração quando viu o que tinha nas mãos. Uma
mochila de cor púrpura.
Estava coberta de teias de aranha e de terra, mas reconheceu-a
imediatamente. Mesmo que não a tivesse reconhecido, saberia a quem
pertencia. Só uma outra pessoa estava a par da existência do buraco na árvore-
penedo e levara o que sabia consigo para dentro do rio.
Falk abriu a mochila. Pondo o que continha no chão, tirou um par de calças
de ganga, duas camisas, uma camisola, um chapéu, roupa interior, um pequeno
estojo com cosméticos. Havia uma carteira de plástico com um documento de
identificação de uma rapariga que se parecia um pouco com Ellie Deacon. O
nome no documento era Sharna McDonald e a idade dezanove anos. Um rolo
de notas, de dez, de vinte, até algumas de cinquenta. Dinheiro poupado.
Mesmo no fundo da mochila estava outro item, embrulhado há vinte anos
num impermeável para o proteger quando ela fez a mala. Tirou-o e ficou com
ele nas mãos durante muito tempo. Encontrava-se em mau estado e com as
pontas retorcidas, mas por trás da capa dura, na primeira página, ali estava,
preto no branco. O diário de Ellie Deacon.
Ele chamou-a pelo nome da mãe, da primeira vez que lhe bateu. Ela via nos
olhos toldados do seu pai que a palavra lhe escapara, tão escorregadia como
óleo, quando assestou o punho no ombro dela. Estava bêbedo, e ela tinha
catorze anos, com uma aparência de criança a tornar-se mulher. A fotografia
da mãe há muito que tinha sido retirada da prateleira por cima do fogão de
sala, mas as feições distintivas da mulher estavam a regressar à casa da quinta
todos os dias à medida que Ellie Deacon ia crescendo.
Ele bateu-lhe uma vez e ao fim de muito tempo voltou a acontecer. Depois
outra vez. E outra vez. Ela tentou misturar água na bebida. O seu pai
apercebeu-se logo ao primeiro gole e ela nunca mais fez essa asneira. Em casa,
usava tops que deixavam as nódoas negras à mostra, mas o seu primo Don
limitava-se a ligar a televisão e dizia-lhe para parar de irritar o velhote. Os
resultados na escola deterioraram-se. Se os professores reparavam, era com um
comentário ríspido sobre a falta de atenção dela. Nunca perguntavam porquê.
Ellie começou a falar cada vez menos e a descobrir cada vez mais porque é
que os seus pais gostavam tanto de levar uma garrafa aos lábios. As raparigas
que ela julgava serem suas amigas olhavam-na com um ar estranho e
segredavam umas com as outras quando pensavam que ela não podia ouvi-las.
Já tinham bem com que se preocupar, com a pele e o peso e os rapazes, sem
que Ellie as fizesse parecer ainda mais deslocadas. Algumas manobras táticas
de adolescentes, e Ellie viu-se isolada dos outros.
Estava só no parque Centenary num sábado à noite, com uma garrafa na
mochila e sem nenhum lado aonde ir, quando ouviu duas pessoas conhecidas a
rirem-se baixo no banco. Aaron e Luke. Ellie Deacon sentiu um
estremecimento, como se tivesse encontrado alguma coisa que esquecera, mas
que em tempos fora sua.
Demorou a todos algum tempo a acostumarem-se. Os rapazes olharam para
ela como se nunca a tivessem visto. Mas aquilo agradou-lhe. Ter duas pessoas
na sua vida a fazer o que ela dizia em vez de lhe dizerem o que fazer convinha-
lhe na perfeição.
Quando eram muito mais pequenos, ela preferia a animação e a audácia de
Luke, mas agora sentia-se mais atraída pela personalidade subtilmente
compassiva de Aaron. Luke não era nada como o seu pai e o seu primo, sabia-
o, mas ela não conseguia libertar-se da sensação de que bem lá no fundo uma
pequena parte dele não era completamente diferente deles. Foi quase um alívio
quando Gretchen desviou a atenção de Luke pelo menos em parte com o seu
canto de sereia radiante.
Durante uma temporada, foi bom. Mais tempo com os amigos significava
menos tempo em casa. Arranjou um emprego em part-time e aprendeu à sua
custa a esconder o dinheiro do pai e do primo, que andavam sempre nas lonas.
Sentia-se mais feliz, o que a tornou mais descuidada e atrevida com o pai.
Pouco tempo depois, o seu rosto de dezasseis anos, com uma boca inteligente
com uma forma tão parecida com a da sua mãe, estava a ser empurrado contra
uma almofada do sofá até ela pensar que ia desmaiar.
Um mês depois, um pano de cozinha imundo tapou-lhe o nariz e a boca
enquanto ela tentava agarrar as mãos do pai. Quando por fim ele a soltou, o
primeiro ar que ela inspirou cheirava à bebida no hálito dele. Foi nesse dia que
Ellie Deacon parou de beber. Porque foi esse o dia em que decidiu fugir de
casa. Não imediatamente, e não de uma situação má para algo pior. Mas em
breve. E para isso precisaria de ter a cabeça no sítio. Antes que fosse
demasiado tarde.
O impulso decisivo deu-se a meio de uma noite escura, quando acordou no
seu quarto e deu com o peso dele em cima dela e os seus dedos a
escarafuncharem-lhe o corpo todo. Uma pontada de dor e a voz arrastada dele
a dizer-lhe o nome da mãe ao ouvido. Finalmente, conseguiu afastá-lo de si e
ele, antes de sair do quarto, empurrou-a com tal força que a cabeça dela
tombou para trás e bateu contra o varão da cama com um estalido. À luz da
manhã, passou o dedo pela amolgadela na madeira e, ainda estonteada, limpou
a mancha de sangue da alcatifa cor-de-rosa. Doía-lhe a cabeça. Sentia as
lágrimas picarem-lhe os olhos. Não sabia onde lhe doía mais.
Quando Aaron descobriu o buraco na árvore-penedo na tarde seguinte foi
como um sinal de Deus. Foge. Estava escondido, era secreto, e suficientemente
grande para ocultar uma mochila. Era perfeito. Cheia de uma tímida centelha
de esperança. olhou para o rosto de Aaron e deixou que ele compreendesse
pela primeira vez as saudades que teria dele.
Quando se beijaram, sentiu-se melhor do que julgara que poderia sentir-se,
até a mão dele se estender e lhe tocar a cabeça dorida. Afastou-se
bruscamente, com dores. Olhou para cima e viu a expressão desolada no rosto
de Aaron e nesse momento odiou o pai mais do que nunca.
Queria muito contar a Aaron. Mais do que uma vez. Mas de todas as
emoções que percorriam o corpo de Ellie Deacon, a mais aguda era o medo.
Sabia que não era a única pessoa que receava o pai. A paga dele por
qualquer desfeita, real ou imaginária, era rápida e brutal. Vira-o fazer
ameaças e executá-las. Acumular favores, envenenar campos, atropelar cães.
Numa comunidade a debater-se pela sobrevivência, as pessoas tinham de
escolher com cuidado as suas causas. Quando todas as cartas estavam na
mesa, Ellie Deacon sabia que não havia uma única pessoa em Kiewarra em
quem pudesse verdadeiramente confiar para fazer frente ao seu pai.
Por isso, elaborou o seu plano. Pegou no dinheiro que tinha poupado e fez a
mala discretamente. Escondeu a mochila perto do rio, no lugar onde sabia que
não seria encontrada. À sua espera quando ela estivesse pronta. Reservou um
quarto num hotel anónimo a três cidades de distância. Perguntaram-lhe o nome
para a reserva e ela automaticamente disse o único que a fazia sentir-se
segura. Falk.
Num pedaço de papel, escreveu o nome dele e a data que tinha escolhido e
meteu-o no bolso das calças de ganga. Um talismã para lhe dar sorte. Um
alerta para lhe recordar que não podia regressar. Tinha de fugir, mas só teria
uma oportunidade. Se o meu pai me encontra, mata-me.
Foram as últimas palavras que escreveu no seu diário.
Falk ficou sentado durante muito tempo depois de ler as palavras de Ellie, a
fitar o rio vazio. Por fim, fechou o diário e voltou a metê-lo na mochila com os
outros pertences de Ellie. Pôs-se de pé e pôs a mochila ao ombro.
Apercebeu-se de que o sol se tinha posto e tombara a noite à sua volta. Acima
dos eucaliptos, as estrelas estavam brilhantes. Não se sentiu preocupado.
Conhecia o caminho. Ao regressar a pé a Kiewarra, corria uma brisa fresca.
AGRADECIMENTOS
N unca me tinha apercebido de quantas pessoas são necessárias para dar vida
a um romance e sinto-me verdadeiramente grata às muitas pessoas que me
ajudaram ao longo do percurso.
Um grande agradecimento às minhas editoras, Cate Paterson da Pan
Macmillan, Christine Kopprasch e Amy Heinhorn da Flatiron Books e Clare
Smith da Little, Brown, que elevaram o livro através das suas observações e
perceções inteligentes e dos seus conselhos. Muito obrigada por me
proporcionarem uma oportunidade tão maravilhosa como autora de uma
primeira obra.
Sinto-me também muito grata para com todas as pessoas que trabalharam tão
arduamente para pôr este livro pronto e nas prateleiras das livrarias, entre elas
os vários talentosos revisores de provas, designers gráficos e equipas de
marketing e de vendas.
Sinto todos os dias que sou uma pessoa cheia de sorte por ter o apoio
constante e o trabalho incansável dos meus agentes literários, Clare Forster na
Curtis Brown Australia, Alice Lutyens e Eva Papastratis na Curtis Brown UK,
Daniel Lazar na Writers House e Jerry Kalajian na Intellectual Property Group.
Ultrapassaram a cada passo o que seria de esperar.
Agradeço ao Wheeler Centre em Melbourne e aos juízes, organizadores e
apoios do Victorian Premier’s Literary Award for an Unpublished Manuscript.
(prémio literário para uma obra não publicada do Estado de Vitória) O prémio é
uma oportunidade inestimável para autores de primeiras obras, e ganhá-lo em
2015 deu-me uma chave que abriu mil portas.
Para publicar um livro, tive de o escrever primeiro, e por isso ficarei para
sempre em dívida para com os meus colegas escritores no Curtis Brown
Creative online course 2014 (curso online de escrita criativa da agência Curtis
Brown). Obrigada pela sabedoria do vosso talento coletivo; este livro quase
com certeza não existiria nesta forma sem vós. Um agradecimento especial à
professora Lisa O’Donnell, ao meu amigo Edward Hamlin e à diretora do curso,
Anna Davis.
E os meus agradecimentos e todo o meu afeto, claro, para a minha família,
Mike, Helen, Michael e Ellie Harper, por fazerem dos livros uma parte tão
importante da nossa vida. E para o meu adorável marido, Peter Strachan, que
sempre acreditou neste romance.