Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O uso da língua portuguesa passa a ser muito influenciado pela língua dos
musseques, permitindo que Luandino trabalhe em diferentes níveis da linguagem. Um
dos primeiros aspectos a serem evidenciados é a presença de períodos longos e a
ausência de pontuações que seriam normativamente necessárias, o que faz passar a
impressão da fluidez e da continuidade do discurso falado, livre das marcas da escrita.
Outra característica forte em textos de narração oral é a repetição, seja de sons, de
palavras, de construções sintáticas ou de estruturas narrativas, pois todos esses aspectos
facilitam a memorização do discurso.
No nível fonético, a repetição dos sons se dá pelo recurso da aliteração. A
sonoridade da reprodução consonantal pode ser percebida diversas vezes em Luuanda,
1
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo, Cia das Letras, 2006
2
VIEIRA (2006), p. 50
como no trecho seguinte, em que o som [s] é frequentemente reproduzido: “Assim, ali
sozinho, de todos os lados as grandes casas de muitas janelas olhavam-lhe, rodeavam-
lhe, parecia era feitiço” 3. Também se pode citar a aliteração do fonema [ʃ] em: ”A porta,
inchada com a chuva, não entrou no caixilho dela” 4. E de [v]: “Mas vavó não sente esse
barulho da vida à volta dela” 5.
A questão lexical é outra marca importante na linguagem de Luuanda também
no que diz respeito a variações fonéticas. O autor procura, do ponto de vista fonético,
representar como as palavras são pronunciadas, muitas vezes rompendo com a
ortografia padrão, como nos casos de ”fidamãe” 6 , ”sô Ruas” 7
e ”sung’o pé” 8
3
VIEIRA (2006), p. 30
4
VIEIRA (2006), p. 19
5
VIEIRA (2006), p. 22
6
VIEIRA (2006), p. 74
7
VIEIRA (2006), p. 76
8
VIEIRA (2006), p. 78
9
VIEIRA (2006), p. 87
10
VIEIRA (2006), p. 107
falando. No entanto, tal diferenciação poderia ser facilmente percebida caso a estória
estivesse sendo narrada oralmente.
Em relação à sintaxe, percebem-se mudanças que rompem com as estruturas
principais do português padrão. Tal movimento deve-se ao fato de o português angolano
ser uma língua de substrato, e isso permitiu que Luandino pudesse usar o idioma
português muitas vezes sobre uma estrutura sintática que pode ser do quimbundo. Como
se pode perceber em “mulher dele nasceu uma menina” 11, o verbo nascer é tratado
como se fosse um verbo transitivo, tendo, portanto o sentido de ‘fazer nascer’,
diferentemente do português, onde esse é um verbo intransitivo. Outro desvio da sintaxe
normativa que pode ser notado é em ”[...] o rapaz trabalha, tem seu carro dele [...]” 12,
onde o substantivo ‘carro’ é definido duas vezes com a mesma idéia de posse tanto pelo
pronome ‘seu’, quanto pelo adjunto adnominal ‘dele’.
Ainda quanto à sintaxe, ao analisar o trecho ”O caminho conhecia-lhe bem, não
13
precisava lua [...]” , pode-se notar, primeiramente, uma diferença em relação ao
português padrão quanto à regência verbal, já que o autor usa o verbo ‘conhecer’ como
transitivo indireto, ao mesmo tempo em que não emprega preposição junto ao verbo
‘precisar’. E no que diz respeito à ordem sintática, houve uma preferência de que o
verbo ‘conhecia’ fosse deslocado para depois do objeto ‘o caminho’. Um deslocamento
verbal semelhante também é percebido na sentença ”Nada, nem uma palavra para lhe
responder sabia”14.
No entanto, dos desvios do português padrão para a proximidade da fala dos
musseques, a mudança que talvez seja mais percebida pelos leitores é a ausência
frequente do conectivo ‘que’ entre duas orações subordinadas substantivas. No texto de
Luuanda, a maior parte dessas subordinações é feitas com o verbo ‘parecer’: ”Ri os
dentes brancos dela, parece são conchas [...]”15; mas há outros casos com outros verbos,
como em: “Eu só juro não falei mentira”16 e ”Gostava muito de Delfina, queria mesmo
ela sabia todas as coisas da vida dele [...]”17. E desse último fragmento, também se pode
destacar a ausência de verbos no modo subjuntivo, já que o português padrão prefere, no
caso anterior, a forma ‘soubesse’ invés de ‘sabia’. Novamente, pode-se apontar esse
11
VIEIRA (2006), p. 23
12
VIEIRA (2006), p. 34
13
VIEIRA (2006), p. 96
14
VIEIRA (2006), p. 65
15
VIEIRA (2006), p. 20
16
VIEIRA (2006), p. 132
17
VIEIRA (2006), p. 34
mesmo tipo de alteração em ”Zuzé mandou-lhes entrar e todo o pão [...] que estava a
sobrar e falava eles podiam comer ou mesmo levar na cela, se queriam” 18.
Outro traço que sugere a oralidade do texto é o emprego da preposição ‘em’. O
autor parece imitar muito da fala popular ao usar essa preposição para expressar uma
idéia de movimento cujo sentido é determinado apenas pelo verbo, como se pode
perceber nos seguintes exemplos: ”Mas na sopa de Maneco saía um cheiro bom [...]”19 e
“[..] podiam comer ou mesmo levar na cela [...]”20, nos dois casos, foram usadas as
mesmas preposições uma para expressar origem e outra para expressar destino, ambas
em desacordo com o português padrão, mas que parece refletirem a influencia do
idioma local de Luanda na língua portuguesa recriada por Luandino.
Quanto à questão semântica, o autor também faz uso de neologismos como o
utilizado no trecho ”O riso cabobo de Lomelino barulhou no meio do escuro [...]”21, no
qual o autor cuia o verbo ‘barulhar’ derivado do substantivo ‘barulho’. Há também
expressões que parece serem gírias de uso popular, como é o caso do verbo ‘ligar’
em ”Me liga só um bocado!” 22, dessa forma, ‘ligar’ toma o sentido de ‘dar atenção a’.
Por fim, durante todo o texto, podem-se notar as diversas palavras típicas da
variação do português falado em angola e que, provavelmente, vêm como uma
influência da linguagem original daquele lugar, como ‘cubata’, ‘nga’, ‘jinguba’ e
‘mona’, por exemplo.
18
VIEIRA (2006), p. 51
19
VIEIRA (2006), p. 25
20
VIEIRA (2006), p. 51
21
VIEIRA (2006), p. 49
22
VIEIRA (2006), p. 66