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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Thaís Limp Silva

ATO E FEMININO: o que nos ensinam


Madeleine Gide e Medeia?

Belo Horizonte
2019
Thaís Limp Silva

ATO E FEMININO:
o que nos ensinam Madeleine Gide e Medeia?

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Psicologia.

Orientadora: Prof.(a) Dra. Cristina Moreira Marcos.

Área de Concentração: Processos Psicossociais.

Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Thaís Limp


S586a Ato e feminino: o que nos ensinam Madeleine Gide e Medeia? / Thaís Limp
Silva. Belo Horizonte, 2019.
216 f. : il.

Orientadora: Cristina Moreira Marcos


Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981. 3. Psicanálise.


4. Mulheres e psicanálise. 5. Ato (Filosofia). 6. Gozo. 7. Feminilidade. I. Marcos,
Cristina Moreira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa
de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 159.964.2
Thaís Limp Silva

ATO E FEMININO:
o que nos ensinam Madeleine Gide e Medeia?

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Psicologia.

Área de Concentração: Processos Psicossociais.

____________________________________________________________________
Profa. Dra. Cristina Moreira Marcos (PUC Minas) – orientadora.

_____________________________________________________________________
Profa. Dra. Graciela de Lima Pereira Bessa (EBP- MG).

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Hélio Cardoso de Miranda Junior (PUC-Minas).

_____________________________________________________________________
Profa. Dra. Márcia Maria Rosa Vieira Luchina (UFMG).

_____________________________________________________________________
Profa. Dra. Rita Maria Manso de Barros (UERJ).

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2019.


AGRADECIMENTOS

Confesso que não foi fácil escrever uma tese em tempos de golpe e risco de perdas
democráticas. Agradeço aqui a todos que compartilharam comigo momentos de muita incerteza
e angústia, mas sobretudo aos que me ensinaram que psicanálise é política. Somente assim,
como um alento, a angústia pôde dar lugar à escrita.

Agradeço a todos que estiveram próximos a mim nestes quatro e que de alguma forma, cada
qual a sua maneira, foram importantes neste processo de escrita, nominalmente agradeço a cada
uma das pessoas que foram essenciais:

À minha mãe, que sempre otimista, acredita que cada passo meu dará certo, mesmo quando eu
tenho muitas dúvidas.

Ao meu avô, que ora desligado, ora atento, e mesmo sem entender bem este meu processo me
ensina que a vida pode ser sempre mais leve.

Aos meus tios, que são torcedores do meu percurso.

Ao Roni, que nos momentos mais tensos da escrita dessa tese suportou meu silêncio, meu
recolhimento e meu cansaço. Agradeço por todo amor ofertado.

Aos meus amigos queridos que já me acompanhavam antes, mas também aos que fui
encontrando nestes quatro anos e que sempre fazem o dia-a-dia ser mais gentil. Manu, Tiago,
Débora, Déia, Cláudia, Bel, Cristina, Ana Luiza e Renatinha, muito obrigada!

À Julia e ao Alexandre que foram companheiros de aventura e caíram na minha vida ao mesmo
tempo que o doutorado e à Carolzinha (irmã gêmea) que chegou um pouco mais tarde, mas se
tornou mais uma peça importante em minha vida. Agradeço a cada almoço, cada jantar e cada
hora de bate papo à toa.

Ao Lu Pacheco que num espaço pouco propício para afeto surgiu em minha vida e foi muito
importante no final de minha escrita.

Ao Hudson Freitas, pelas apostas de que os caminhos abrirão.

À querida Mônica Souza não só pela ajuda no francês, mas pela delicadeza do acolhimento, da
preocupação cotidiana e pelo carinho que aquece e conforta.

Aos meus alunos que me ensinaram que transmitir psicanálise é um trabalho delicado e de
insistência.

À Cristina Marcos, pela orientação precisa, delicada, leve e respeitosa. Por cada encontro que
sanava dúvidas, acalmavam e geravam mais produção. Pelo respeito com meu tempo e minhas
dificuldades.

À Marcia Rosa pelas contribuições generosas na banca de qualificação e por ser alguém que
desperta meu desejo para estudar cada vez mais a psicanálise.
Ao professor Hélio pela gentileza e contribuições dadas na qualificação e agora na defesa.
À Rita Manso por ter a delicadeza e generosidade de novamente compor minha banca de defesa
e contribuir com meu trabalho.

À Graciela pela disponibilidade de constituir a banca de defesa e contribuir para minha


formação.

À Juliana Motta por me permitir seguir, sempre que a desistência se apontava no horizonte.

À Fernanda Otoni, que num tempo curto que antecede essa defesa, também me permitiu seguir
sem me acovardar.

Aos administrativos do PPGP, Diego, Cláudia e Marcelo, por serem sempre gentis e nos
ajudarem em todos os trâmites administrativos,

À Fapemig, pela bolsa que permitiu arcar com os custos deste trabalho.
[. . . ]

Um homem não te define


Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra


Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa


Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

E um homem não me define


Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

E um homem não me define


Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

(Francisco, El Hombre
Triste, louca ou má)
RESUMO

Esta tese de doutorado tem como tema de investigação a particularidade do ato para as
mulheres. Seguindo o referencial teórico da psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan,
buscou-se elucidar o que os atos de Madeleine Gide e Medeia poderiam indicar sobre o modo
de aparição do ato quando se está do lado mulher da sexuação. A primeira queima as cartas que
seu marido, o escritor André Gide, lhe escrevera a vida inteira após este apaixonar-se por outra
pessoa. A segunda, personagem do dramaturgo Eurípedes, mata os próprios filhos quando o
marido a abandona para casar com uma princesa. Ambas têm em comum o fato de, no ato,
abrirem mão daquilo que lhes era mais valoroso – as cartas para uma e os filhos para a outra –
para atingir os homens que as abandonaram. Além disso, havia indicações que ambas
experimentavam, em seus corpos, a devastação. Contudo, foi um breve atendimento a uma
adolescente que suscitou as perguntas desta tese. Na busca de formular melhor uma questão de
pesquisa, deparou-se com o ensino de Lacan, que faz das mulheres citadas, uma da realidade e
outra da literatura, modelos paradigmáticos para se pensar se haveria algo de particular no ato
quando cometido por uma mulher. Tendo como ponto de partida a teorização sobre o feminino,
descarta-se de início uma suposta equivalência entre o significante mulher e a biologia, de modo
que a especificidade da mulher é seu modo de gozo não todo circunscrito pelo falo, e não apenas
seus caracteres sexuais secundários. Além disso, a partir da teoria do ato, compreende-se como
ele se difere de uma simples ação motora, sendo relevantes algumas características para que ele
tome seu valor. Verificou-se que os atos de Madeleine e de Medeia caracterizam-se, de fato,
como um ato, já que eles têm a dimensão de mudar o rumo do destino de cada uma delas. Após
um levantamento teórico sobre os dois principais eixos desta tese – o feminino e o ato –
verificou-se que existem quatro elementos que apontariam para uma particular relação do ato
com a mulher. O primeiro elemento trata-se da angústia feminina frente à perda do objeto de
amor, tento em vista que o ato é a última barreira contra a angústia. A isso, segue-se a relação
da mulher com os semblantes, que demonstra como o feminino pode surgir no ato, por meio de
uma revelação. Como terceiro elemento encontra-se a devastação e o gozo feminino, de modo
que o ato é tomado como uma possibilidade de retirada da mulher da devastação amorosa e,
por último, o supereu feminino, que exige um gozo além do falo. Esses quatro elementos
apontam como a estrutura do não-todo implica uma relação particular com o ato, diferente do
que pode-se verificar do lado todo fálico, no qual o que está em jogo é o medo da castração e a
virilidade.

Palavras-chave: Psicanálise. Feminino. Ato. Semblante. Não-todo.


RÉSUMÉ

Cette thèse de doctorat a pour thème la recherche des particularités de l’acte pour les femmes.
Suivant la référence théorique de la psychanalyse de Sigmund Freud et de Jacques Lacan, on a
cherché à élucider ce que les actes de Madeleine Gide et de Médée pouvaient indiquer à propos
de l'apparition de l'acte quand on est du côté féminin de la sexuation. La première de ces femmes
brûle les lettres que son mari, l'écrivain André Gide, lui avait écrites pendant toute sa vie, dès
qu’elle constate qu’il est tombé amoureuse d'une autre personne. La seconde, personnage du
dramaturge grec Euripide, tue ses propres enfants lorsque son mari la laisse pour épouser une
princesse. Ces femmes ont en commun le fait que, dans l'acte, elles renoncent à ce qui était le
plus précieux pour elles – les cartes à l'une et les enfants à l'autre – pour frapper les hommes
qui les ont abandonnés. De plus, il y a des indications qu’elles ont été expérimentées la
dévastation dans ses corps. Par ailleurs, les questions de cette thèse ont été soulevées à cause
d’une brève assistance à une adolescente. Dans une fouille théorique pour mieux formuler une
question de recherche, on a recueilli, dans l'enseignement lacanien des références à ces femmes
– l’une d’elles venue la réalité et l’autre de la littérature –, des mentions que puissent révéler
des modèles paradigmatiques pour penser s'il y avait quelque chose de particulier dans l'acte
commis par une femme. Notre point de départ a été les théories sur le féminin. Au début, on a
écarté une supposée équivalence entre le signifiant femme et la biologie, car la spécificité de la
femme réside dans son mode de jouissance pas-tout, circonscrit par le phallus, et non par ses
caractères sexuels. Par la suite, on s'est servi de la théorie de l'acte pour comprendre qu’il diffère
d'une simple action motrice, notant qu'il prenne sa valeur à condition de la présence de certaines
caractéristiques. On a constaté que les actes de Madeleine et Médée sont, en fait, qualifiés
comme actes, au sens psychanalytique, car ils changent le sens du destin de chacun d'elles.
Après une recherche théorique sur les deux axes principaux de cette thèse, le féminin et l'acte,
il a été vérifié qu'il existe quatre éléments qui indiquent une relation particulière entre l'acte et
la femme. Le premier est l'angoisse féminine face à la perte de l'objet d'amour, l'acte constituant
le dernier obstacle contre cette affection. Après ça, on voit la relation de la femme avec les
semblants, ce qui montre comment le féminin peut surgir dans l'acte, par l'intermédiaire d’une
révélation. Le troisième élément concerne à la dévastation et à la jouissance féminine, de sorte
que l'acte est considéré comme une possibilité d’enlever la femme de la dévastation amoureuse.
Enfin, le dernier trait le surmoi féminin, qui exige une jouissance au-delà du phallus. Ces quatre
éléments montrent comment la structure du non-tout implique un rapport particulier à l'acte du
côté féminin, différent de ce qui pourrait se produire du côté phallique, dans lequel l'enjeu est
la peur de la castration et de la virilité.

Mots-clés : Psychanalyse. Féminin. Acte. Semblant. Pas-tout


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Madona Sistina ………………………………………………….… 25


FIGURA 2 - Tábua da sexuação ………………………………………………… 69
FIGURA 3 - O êxtase de Santa Teresa…….…………………………………….. 74
FIGURA 4 - Esquema do parceiro-sintoma ..…………………………………… 77
FIGURA 5 - Esquema da devastação ….………………………………………... 78
FIGURA 6 - A fúria de Medeia …………………………………………………. 93
FIGURA 7 - Quadro da angústia ………………………………………………... 114
FIGURA 8 - Primeiro esquema da divisão ……………………………………… 118
FIGURA 9 - Esquema óptico simplificado ……………………………………... 118
FIGURA 10 - Acting out versus passagem ao ato ………………………………... 126
FIGURA 11 - Esquema de J-A Miller ………………………………………….… 153
FIGURA 12 - A alienação ………………………………………………………... 155
FIGURA 11 - A característica do terceiro termo ……………………………….… 169
Sumário

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10

2. O FEMININO EM PSICANÁLISE ........................................................................... 19

2.1 FREUD E O CONTINENTE NEGRO DA PSICANÁLISE. ................................................................ 19


2.1.1. DORA E A PERGUNTA O QUE É UMA MULHER? ................................................................................ 20
2.1.2. SEXUALIDADE FEMININA E COMPLEXO DE ÉDIPO. ............................................................................ 27
2.1.3. MASOQUISMO E FEMININO........................................................................................................ 38
2.1.4. O AMOR E A MULHER EM FREUD. ................................................................................................ 44
2.1.5. LADY MACBETH E A MULHER NA PSICANÁLISE FREUDIANA................................................................. 48
2.2. JACQUES LACAN E O FEMININO ............................................................................................. 52
2.2.1 DORA COM LACAN – O QUE QUER UMA MULHER? .................................................................... 52
2.2.2 O FEMININO EM TORNO DO FALO: A MASCARADA. ........................................................................... 55
2.2.3 DOS SEMBLANTES ..................................................................................................................... 63
2.2.4 O NÃO-TODO........................................................................................................................... 68

3. MADELEINE E MEDEIA: O ATO DE UMA VERDADEIRA MULHER ............. 80

3.1 DUAS MULHERES, DOIS ATOS. ................................................................................................ 80


3.1.1 MADELEINE GIDE. .................................................................................................................... 80
3.1.2 MEDEIA.................................................................................................................................. 89
3.2 MADELEINE E MEDEIA: VERDADEIRAS MULHERES?............................................................. 95
3.3 O ATO EM PSICANÁLISE. ...................................................................................................... 100
3.3.1 AS DIMENSÕES DO ATO. ........................................................................................................... 100
3.3.2 ATO, REPETIÇÃO E PULSÃO........................................................................................................ 126
3.3.3. OS ATOS DE MEDEIA E MADELEINE............................................................................................ 141

4. AS PARTICULARIDADES DO ATO NO LADO MULHER DA SEXUAÇÃO. .. 145

4.1. AS ESPECIFICIDADES DA ANGÚSTIA NA MULHER. ................................................................ 145


4.1.1 AS TEORIAS DA ANGÚSTIA EM FREUD. ......................................................................................... 145
4.1.2. AS ESPECIFICIDADES DA ANGÚSTIA NA MULHER EM LACAN. ............................................................. 153
4.2. ATO E SEMBLANTE. .............................................................................................................. 160
4.3 GOZO FEMININO E DEVASTAÇÃO. ........................................................................................ 172
4.4 O SUPEREU FEMININO .......................................................................................................... 186
4.5 AINDA SOBRE O ATO E O FEMININO: MORITZ, A FALHA DO SEMBLANTE E O ATO BEM-
SUCEDIDO. ..................................................................................................................................... 195

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 202

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 209
10

1. INTRODUÇÃO

Esta tese de doutorado tem como tema de investigação uma interrogação sobre o ato e
o feminino a partir da psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan, buscando encontrar o
que haveria de particular em relação ao ato no lado mulher da sexuação. A pergunta que levou
à formalização do tema surgiu a partir de um único e breve atendimento a uma adolescente,
quando a autora trabalhava como diretora de atendimento em uma Unidade Socioeducativa de
Internação. As Medidas Socioeducativas estão previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA, e são aplicadas aos adolescentes quando há cometimento de ato infracional
até os 18 anos incompletos. O ato infracional é uma conduta análoga ao crime ou à contravenção
penal e recebe a mesma tipificação do código penal. O ECA prevê seis Medidas: Advertência,
Reparação de dano, Prestação de Serviço à Comunidade, Liberdade Assistida, Semiliberdade e
Internação em Unidade Socioeducativa. A determinação da Medida mais adequada é feita pelo
juiz da Vara Infracional ou, na ausência desta, da Vara da Infância e Juventude. A decisão da
adequação da Medida deve levar em conta a gravidade do ato infracional, a reiteração dele e a
condição do adolescente em cumprir a Medida a ele aplicada.
Destacamos que não trabalharemos o caso atendido, já que houve apenas um único
atendimento à adolescente e não temos dados clínicos suficientes para abordá-lo. No entanto, o
apresentaremos de forma que possamos mostrar de onde partiu nossa trajetória de pesquisa.
O atendimento em questão foi à adolescente Ana1, de 16 anos de idade, que estava
cumprindo Medida Socioeducativa de Internação por ato infracional análogo ao crime de
homicídio. A adolescente não possuía histórico infracional e o ato infracional que ensejou a
aplicação da Medida é considerado gravoso. Sobre ele, Ana contou que possuía um namorado
e que após o término do relacionamento, ficou desamparada. Após esse término, ela encontrou,
em uma festa, a ex-namorada dele e desferiu uma facada fatal na jovem após esta ter lhe dito
que agora Ana também estava sozinha, que havia sido abandonada. Se Ana era marcada em sua
posição feminina como mulher de um homem, o que a vítima faz é mostrar que ela não ocupava
mais esse lugar. A adolescente conta que tem pouca lembrança da cena e que não estava com a
faca em mãos, mas frente à provocação, pega a faca em uma barraca próxima e esfaqueia a
vítima no peito, levando-a a óbito, na caracterização de uma passagem ao ato.
A partir deste pequeno fragmento clínico, algumas questões apareceram sobre a relação
entre esse ato e a posição feminina, que se transformaram em um projeto de doutorado.

1
Nome alterado para resguardar o sigilo.
11

Partimos, primeiramente, da formalização de Lacan (1972-73/2008)2 no “O Seminário, livro


20, Mais... ainda”. Nesse seminário, Lacan ensina que o amor faz suplência à falta de um
significante que defina A mulher, ainda que a parceria amorosa não possa dizer tudo sobre uma
mulher. Tendo em vista essa assertiva e o atendimento à Ana, pensamos se poderíamos levantar
como uma pergunta de pesquisa a seguinte questão: com o término da parceria amorosa, que
poderia fazer uma borda ao não-todo da posição feminina, o gozo feminino poderia transbordar,
culminando num ato? Pensamos no gozo feminino a partir da contribuição de Morel (2010),
que propõe que o gozo feminino pode ser visto não apenas no campo do amor, mas também em
atos passionais que desafiam a lógica fálica. Ressaltamos que neste trabalho sempre que
propormos uma relação do ato com o amor, estamos visando a noção de amor elaborada por
Lacan na década de 70, tendo como foco seu vigésimo seminário.
Ao fragmento de caso citado e à pergunta levantada, outro encontro com a letra de Lacan
nos chamou a atenção, trata-se dos atos de Madeleine Gide e de Medeia. Medeia, personagem
do dramaturgo Eurípedes, mata os próprios filhos para ferir seu marido Jasão quando ele a
abandona. Madeleine, por sua vez, queima as preciosas cartas que seu marido, o escritor André
Gide, escreveu para ela por anos, quando ele se apaixonou por outra pessoa. Lacan
(1958a/1998)3 diz que Madeleine cometeu o ato “de uma verdadeira mulher em sua inteireza
de mulher” (p. 772). Posteriormente, ele assemelha Medeia à Madeleine, ao apontar que Gide
não reconheceu em sua esposa a bruxa bárbara capaz de matar os filhos. Por isso, damos ao ato
de Medeia o mesmo estatuto dado ao de Madeleine. Ambas têm em comum o fato de terem
cometido o ato após terem perdido o objeto de amor, e ainda de terem destruído aquilo que era
mais importante para os maridos, mas, principalmente, o que era mais importante para elas –
para Medeia, os filhos, para Madeleine, as cartas de amor.
Ainda que saibamos que não existiria uma verdadeira mulher, já que Lacan (1972-73)
ensina que por não existir A mulher, só podemos tomar as mulheres uma a uma, acreditamos
que a passagem citada nos abre um caminho de pesquisa. Ainda, parece que Lacan, na década
de cinquenta, já adianta as formulações propostas na década de setenta sobre a formalização do
feminino como não-todo, regido pela lógica fálica. Madeleine e Medeia tornam-se para nós,
então, paradigmáticas e é a partir delas que buscaremos os operadores que possam nos orientar

2
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
3
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
12

em torno de nossa pergunta de pesquisa: qual é a particularidade do ato quando nos referimos
ao lado mulher da sexuação?
Além disso, esclarecemos que nossa pesquisa parte de um percurso de trabalho de cinco
anos no campo do acompanhamento de adolescentes autores de atos infracionais. É importante
diferenciar que o estatuto do ato em psicanálise é diferente daquele definido pelo campo
jurídico, de forma que nem todo ato infracional terá o estatuto de um ato na concepção proposta
por Lacan. No entanto, o trabalho com os adolescentes nomeados como infratores desvelou
algo que a psicanálise de orientação lacaniana tem apontado no contexto pós-moderno: uma
prevalência do fazer em relação ao dizer.
É curioso como a prevalência de uma clínica do ato vem conjuntamente com o que a
psicanálise também de orientação lacaniana aponta em relação à feminização do mundo. Será
que a prevalência do ato que imputa um novo trabalho na clínica não é uma consequência dessa
feminização?
Marcos e Derzi (2013) explicam que existem várias formas de manifestações do ato,
como a impulsividade, tentativas de suicídio, violência, agressão, drogadicção, anorexia,
bulimia e outras. E que elas são denominadas como tal por apontarem “para a manifestação no
real daquilo que escapa ao simbólico” (Marcos & Derzi, 2013, p. 72). E é justamente essa
manifestação no real, devido a um desfalecimento do simbólico, que tem sido presente no
mundo pós-moderno e chegado à clínica.
O mundo pós-moderno é marcado pela queda das grandes certezas, de forma que há
uma pluralidade de possibilidades de crenças. Na vertente da psicanálise lacaniana, o que há é
uma vacilação do Outro como referencial. Se no período moderno, a crença no Outro marcava
a presença dele sob a forma de enigma, o sujeito tinha formas de estabelecer uma relação.
Marcos e Derzi (2013) indicam que a crença no Outro através do enigma faz com que o
significante da falta do Outro seja colocado em evidência e, com isso, há a mediação simbólica.

A descrença no Outro aparece exatamente quando a estratégia do sujeito em relação ao Outro


fracassa, o Outro não é mais referência do simbólico, nem marca a falta, assim a estratégia do
sujeito em relação ao Outro deixa de existir. [. . .] O desfalecimento do Outro é confrontado
com a predominância de uma clínica do real (Marcos & Derzi, 2013, pp. 72-73).

Assim, nessa vertente da clínica do real, os atos surgem como tentativa de tratar o mal-
estar contemporâneo, prescindindo do Outro, tomando o lugar da palavra e colocando o corpo
no agir. É cada dia menos raro chegarem aos consultórios adolescentes e jovens que encontram
na automutilação uma tentativa de apaziguar a angústia. Também são cada vez mais frequentes
13

quadros de distúrbios alimentares, tentativas de suicídios e diferentes atuações. O sintoma, não


interrogando o sujeito, traz à tona a clínica do ato.
Ainda no percurso pelo sistema socioeducativo, tornou-se evidente que há também
particularidades em relação às meninas em cumprimento de Medida Socioeducativa, e mais que
isso, no envolvimento das adolescentes com o ato infracional. Não desconsiderando a gravidade
dos atos cometidos, era comum receber meninas nas quais o ato estava vinculado ao parceiro.
A partir desse ponto, um primeiro trabalho foi construído, investigando a entrada das
adolescentes no tráfico de drogas pela via da parceria amorosa. Esse trabalho trata-se de uma
dissertação de mestrado, orientada pela professora Dra. Andréa Maris Campos Guerra,
defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG em 2014, que teve como
título “Feminilidade, parceria amorosa e a entrada das adolescentes no tráfico de drogas: uma
contribuição da psicanálise”. Nesse trabalho, contamos com dois estudos de caso e concluímos
que neles, o ato infracional aparecia como contingente para as adolescentes, enquanto o amor
era necessário na constituição de suas feminilidades.
As meninas, portanto, demonstram como o tráfico de drogas, sabidamente marcado pela
virilidade, toma outra significação quando estamos dizendo delas. Seja com seus corpos
carregando drogas, seja com a substituição do parceiro na criminalidade quando eles são presos,
elas trazem suas particularidades. Então, já houve uma primeira aproximação entre o ato, na
sua modalidade de ato infracional, e sua particularidade em relação ao feminino. Mas aqui, não
visamos trabalhar na vertente da prática socioeducativa.
Assim, propomos nesta tese de doutorado trabalhar a temática do ato em sua relação
com o feminino, que se mostra atual e relevante no campo da psicanálise, uma vez que os atos
colocam em xeque as formações sintomáticas clássicas. Ainda se faz necessário pensar as
particularidades do feminino, já que como aponta Lacan (1972-73), as mulheres, só podemos
contar uma a uma.
Nosso objetivo geral nesta tese é verificar qual é a particularidade do ato quando
estamos no campo feminino, e contamos com três objetivos específicos. O primeiro busca
compreender a teorização psicanalítica freudiana e lacaniana acerca do feminino. O segundo
visa investigar a elaboração lacaniana sobre Madeleine e Medeia, tendo como foco a relação
delas com o ‘ato de uma verdadeira mulher’. E o terceiro, discorrer sobre a teoria do ato em
psicanálise, tendo como foco a clínica do ato.
Em relação à metodologia, nossa tese é um trabalho teórico. Iribarry (2003) indica que
tem sido cada vez mais comum psicanalistas ingressarem no âmbito acadêmico, visando tanto
uma formalização conceitual, como tornar-se professor ou pesquisador. Posto isso, em diversas
14

universidades, principalmente dentro dos Institutos de Psicologia, existem áreas de


concentração destinadas à teoria psicanalítica, localizando uma possibilidade para a psicanálise
dentro do espaço acadêmico. Porém, essa inserção da psicanálise não se faz sem um
questionamento quanto ao método, que se difere em relação a outras ciências. Essa diferença
se dá, principalmente, em relação a dois pontos: 1) porque a pesquisa psicanalítica não inclui a
necessidade de uma inferência generalizadora; e 2) porque nela não se trabalha com o signo,
mas com o significante.
O signo é ligado à realidade do mundo, já o significante é determinado pelo sujeito em
uma situação particular. A psicanálise, portanto, guia-se pelos pontos singulares, por algum
ponto de real que colocou o pesquisador a trabalho. Mezêncio (2004) orienta que na pesquisa
em psicanálise, ao contrário da ciência e da própria academia, não se objetiva recobrir todo o
real, mas sim, diante de um ponto de real, colocar as perguntas, de forma a contornar o vazio
de dizer. São essas perguntas que podem produzir as escansões e os recortes no objeto de estudo.

A pesquisa psicanalítica na Universidade deve valer-se da própria psicanálise como método.


Uma metodologia de ensino e pesquisa em psicanálise não visa cobrir todos os pontos de uma
vez, nem em fazer bonito, completo, coerente. Miller sugere que é necessário falar de boa-fé,
ou seja, não se trata de repetir saberes pré-estabelecidos, mas de reinventar a psicanálise,
baseando-se nos pontos de tropeço de cada um que se coloca em causa em relação ao saber
(Mezêncio, 2004, p. 111).

Visto isso, nossa tese se organiza da seguinte maneira. Ela está distribuída em três
capítulos, cada um com um número diferente de seções. O primeiro capítulo é dedicado ao
estudo do feminino em psicanálise. De saída, achamos importante destacar aqui que não há nem
em Freud, nem em Lacan um esforço em diferenciar os termos: mulher, feminino e
feminilidade. Lacan (1971/2009)4 eleva os termos homem e mulher a semblantes e, desse modo,
nem mesmo esses termos podem ser considerados em seu nível biológico. Acreditamos que
Bassol (2017) no fornece uma leitura interessante dessa diferenciação, ao apontar que devemos
tomar a feminilidade como um modo de responder pelo semblante à ausência de significante
d’Ⱥ mulher, ou seja, a feminilidade é um modo de resposta pelas insígnias para o irrepresentável
do feminino.
Optamos por iniciar as contribuições freudianas a partir do caso Dora, já que é a partir
do atendimento à jovem que Freud se depara com o enigma do desejo das mulheres. Neste

4
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
15

capítulo, levantamos primeiramente em Freud o que pode a psicanálise dizer sobre a mulher e
encontramos aí contribuições e impasses. Se por um lado, Freud se esforça por formalizar como
a sexualidade da mulher se organiza, por outro, ele estanca na problemática fálica, elevando a
maternidade à equivalência com o feminino. Para ele, a maternidade é uma saída pela
feminilidade normal frente à inveja do pênis, que deixa uma marca irredutível no inconsciente
da mulher (Freud, 1933[32]/2006)5. Freud demonstra seu impasse quando, em sua conferência
sobre a feminilidade, aponta como saída para se saber mais sobre a mulher que se consulte os
poetas. Ora, ele aponta aí que a lente fálica é insuficiente. Também trabalhamos em Freud a
importância do amor para a mulher a partir de dois pontos: primeiro, quando ele levanta, em
1914, que é mais importante para a mulher ser amada que amar, e quando, em 1926, ele associa
a angústia da mulher ao medo da perda do objeto de amor.
No mesmo capítulo, seguimos com Jacques Lacan, destacando seu apontamento sobre
o caso Dora. Para ele, é a problemática da subjetivação do sexo da mulher que está em questão.
Num primeiro momento, Lacan segue com Freud, mantendo a centralidade fálica na
diferenciação entre os sexos, mas faz um giro. Se a questão era abordada em torno de um que
tem e outro que não tem o falo, Lacan (1958b/1998)6 indica que a divisão se dá entre um que
tem e outro que é o falo, inserindo a discussão da mascarada. Nesse mesmo período, ele já
separa os modos de amar da mulher e do homem, indicando o caráter erotomaníaco do amor
feminino. Lacan (1957-58/ 1999)7 também adianta que há algo da mulher que escapa à lógica
fálica quando indica que, no final do Édipo feminino, algo se extravia, além de colocar em
xeque a possibilidade do falo drenar tudo de pulsional na mulher (Lacan, 1960/1998)8.
Depois, vamos às contribuições de Lacan (1971) sobre a categoria de semblantes, já que
ele eleva o ser homem e o ser mulher à lógica do parecer. Quando faz essa construção, ele
também insere a noção de não-todo e traz, pela primeira vez, o aforisma A mulher não existe.
Desse modo, ele aponta que, nesse lugar inexistente, encontramos máscaras que visam velar o
vazio de significante. Com o termo semblante, ele também aponta que o ato surge na queda dos

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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semblantes, indicando que ele tem, portanto, uma afinidade com o campo do real. Seguimos
daí para o vigésimo seminário de Lacan, no qual o não-todo toma todas as suas consequências,
sendo indispensável a abordagem do gozo feminino, que tira a mulher da incompletude fálica,
lançando-a num mais além do falo. Via fórmulas pautadas na matemática, Lacan (1972-73)
constrói a tábua da sexuação, separando o lado homem do lado mulher em relação ao modo
como cada um se relaciona com o gozo: de um lado, o fálico, de outro, o feminino. Para terminar
o capítulo, tratamos a proposta de Miller (1998) sobre o parceiro-sintoma e o parceiro-
devastação, apontado como um homem pode ser uma devastação para uma mulher
Em nosso segundo capítulo, apresentamos Madeleine Gide e Medeia. Madeleine, prima
e esposa do escritor francês André Gide, mantém com o marido uma parceria amorosa marcada
pela ausência de relação sexual. Ela havia perdido o pai precocemente e mantinha-se ligada a
ele, de modo que a orientação sexual homoafetiva do marido e seu desejo por jovens garotos
não lhe causavam nenhum embaraço. Isso, no entanto, só se sustenta enquanto ele a mantinha
no lugar de objeto de amor. Gide acreditava que suas cartas lhe garantiriam um lugar na
posterioridade, dando a elas um valor fálico e fazendo de sua esposa sua principal destinatária,
acreditando que ela guardaria essas cartas. No entanto, quando ele se apaixona por Marc
Alegrett, localizando-o em seu campo amoroso, Madeleine, num ato determinante, queima
todas as cartas que ele lhe havia enviado por anos. Disso Lacan (1958a) desdobra que esse é o
ato de uma verdadeira mulher, indicando também que Gide foi incapaz de reconhecer Medeia
em sua esposa.
Personagem principal de peça que leva seu nome, Medeia é uma mulher que após ser
abandonada por seu marido Jasão, que decide casar-se com outra, mata seus filhos como
vingança pela traição. Esse ato toma importante relevo por não se ter nenhum indício de que
Medeia não amasse seus filhos. Ao contrário, ela sacrifica seus bens mais preciosos para atingir
o homem que a abandou. Assim como Madeleine, para quem as cartas queimadas possuíam o
mais alto valor, Medeia abre mão do ter para atingir o homem traidor no ponto do ser.
Ainda no segundo capítulo, fazemos uma leitura dos atos dessas duas mulheres, tendo
como base a teoria psicanalítica sobre o ato. Iniciamos com o seminário lacaniano sobre o ato
analítico, que nos dá dimensão do que se trata o ato em psicanálise. Identificamos que a
dimensão do ato ultrapassa a ação, uma vez que ele diz alguma coisa, revelando, como aponta
Freud (1901/2006)9, mais do que o sujeito gostaria.

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Algumas dimensões devem ser encontradas no ato para que ele seja reconhecido,
segundo decomposição de Guimarães (2009), pautada em Lacan: 1) Todo ato implica um
correlato significante; 2) O Outro está no horizonte do ato; 3) No instante do ato, não há nem
sujeito, nem Outro; 4) O sujeito encontra, após o ato, sua presença renovada e; 5) Todo ato,
exceto o suicídio, é falho. Além disso, verificamos também, nesse capítulo, como o ato dá um
tratamento para a devastação de cada uma de nossas personagens.
No segundo capítulo, ainda passamos pela teoria da angústia e sua relação com o ato, já
que Lacan (1962-63/2005)10 o eleva à ultima barreira contra a angústia, mostrando a
aproximação do ato com o real. Neste capítulo, fez-se necessário percorrer a compulsão à
repetição para chegarmos à formulação freudiana de pulsão de morte.
Chegamos, então, em nosso último capítulo, no qual buscamos, através de Medeia e
Madeleine, responder qual particularidade haveria em relação ao ato quando o abordamos no
lado mulher. Incluímos entre elas Jasmine, do filme “Blue Jasmine” de Woody Aleen. Neste
capítulo, buscamos articular nossos termos a partir de quatro direções: angústia, devastação,
semblante e supereu. Levantamos, em um primeiro momento, a relação da angústia com o
feminino, começando com Freud (1926/2006)11, que conclui em que a angústia é um sinal em
relação a uma situação de perigo. Se no caso dos homens o perigo remete à angústia de
castração, no lado mulher, ele está ligado à perda do objeto de amor. Dito isso, passamos a
Lacan (1962-63), que no seu décimo seminário aponta que a angústia surge quando, no lugar
do vazio, surge o objeto a.
Na segunda seção do último capítulo, trabalhamos com a psicanalista francesa Clotilde
Leguil (2015; 2016), que aposta que o feminino surge como uma revelação no ato quando os
semblantes dos quais uma mulher se utiliza caem. É ela quem nos apresenta Jasmine, que, para
nós, constitui-se numa Medeia e Madeleine contemporânea. Nesse momento, articulamos o
feminino com a queda dos semblantes. Em seguida, partimos para a devastação.
Apoiadas na proposta lacaniana, tomamos a devastação em sua íntima vinculação com
o amor. Miller (1998) explicita que a devastação é a outra face do amor, quando a demanda
erotomaníaca feminina retorna sobre o falasser. Usamos aqui o testemunho de passe de Holk
(2008), que localiza que é somente pela inscrição de um novo significante – patu – que sua

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devastação pode ser interrompida. Medeia e Madeleine não encontram a mesma solução,
somente saem da devastação por meio o ato, já que ele faz uma inscrição significante. Nesse
momento, também passamos pelo ponto de partida da devastação: a relação da menina com sua
mãe. Em seguida, apoiadas na leitura que Laurent (2012) faz de Lacan (1972/2003)12,
abordamos o supereu feminino, que, vinculado com o gozo feminino, coloca o empuxo ao gozo
num campo além do falo.
Encerramos o capítulo três com a apresentação do personagem Moritz da peça “O
despertar da Primavera”, pois um homem também pode estar do lado mulher da sexuação.
Quando Lacan (1974/2003)13 faz uma leitura dessa peça, ele eleva Moritz ao campo feminino.
Trabalhamos com esse personagem como um modo de concluir nosso terceiro capítulo, já que
ele demonstra como que o gozo não limitado pelo falo transforma-se em angústia ao não
encontrar ancoragem em nenhum semblante, levando o jovem ao suicídio.
Por fim, em nossa conclusão, buscamos demonstrar como nossa tese tentou destacar que
a particularidade do ato no campo feminino localiza-se exatamente nas consequências que o
não-todo traz para o falasser feminino.

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2. O FEMININO EM PSICANÁLISE

Neste capítulo, abordamos a teorização sobre o feminino em psicanálise a partir das


elaborações freudianas e lacanianas. Nosso objetivo é compreender o que Freud deixa como
herança a respeito da constituição da sexualidade feminina e a sequência e os avanços
realizados por Jacques Lacan. Achamos importante partir da histeria, já que são as perguntas
suscitadas do atendimento das histéricas que levam Freud a se interrogar sobre o desejo da
mulher. Veremos que Freud estanca neste ponto, declarando, com isso, que a lente fálica, pela
qual lia os processos psíquicos, não é suficiente para compreender as questões femininas.
Apontamos desde já que, para a psicanálise, ser mulher não se trata de um dado da
natureza, ou seja, tornar-se mulher ou homem não é definido pela exclusividade anatômica,
mas por algo ligado ao desejo e à relação com o Outro e com o gozo. Com a introdução que
Jacques Lacan faz do conceito de semblante no “O Seminário, livro 18, De um discurso que
não fosse semblante” em 1971, as categorias de homem ou mulher se mostram emancipadas do
sexo biológico. Em relação aos termos: feminino, feminilidade e mulher, verificamos que não
há uma definição tão clara entre eles em Jacques Lacan, principalmente a partir da denominação
da mulher e do homem como semblantes. Achamos interessante a proposição de Bassols (2017)
de que o feminino seria o irrepresentável, enquanto a feminilidade seria uma tentativa de
responder a isso por meio das insígnias.
Assim, faremos aqui o seguinte percurso: abriremos com o caso Dora, uma vez que a
partir dele Freud indaga sobre o que quer uma mulher. Em seguida, levantamos o percurso
freudiano sobre o feminino e sua conexão com o amor. Após Freud, seguimos com a teoria
lacaniana, iniciando pelas elaborações ainda ligadas à centralidade fálica para chegarmos à
mulher como não-toda inscrita no registro fálico, passando antes pela teoria do semblante. Para
finalizar, contamos com a formalização de Jacques-Alan Miller sobre a parceira-sintoma do
homem e o parceiro devastação da mulher.

2.1 Freud e o continente negro da psicanálise.

Freud só pôde interrogar sobre o inconsciente a partir do atendimento às pacientes


histéricas, e durante seu percurso de elaboração da psicanálise, sua teorização em torno da
questão feminina parece, algumas vezes, confundir-se com a própria noção de neurose histérica.
Não há, em Freud, uma clara diferenciação entre feminino, feminilidade e sexualidade
feminina, sendo estes termos usados indistintamente em sua obra. O que fica evidente é que a
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feminilidade é um processo de construção que surge a partir da constatação da castração na


mulher. Ela se dá a partir da marca de um menos, de um déficit de significação em torno do
qual a constituição do ser feminino passa a ser articulada. Veremos como a questão anatômica
é importante para a diferenciação entre o processo de sexuação masculino e feminino, mas
também veremos como não se trata, em Freud, de uma referência exclusivamente biologicista.
Optamos por começar a trabalhar a questão feminina a partir do caso Dora, uma jovem
atendida por Freud em 1900 durante três meses. A jovem apresentava “petite hystérie” (Freud,
1905a/2006, p. 33)14 e sua história clínica traz importantes apontamentos sobre a questão da
feminilidade, já que a problemática histérica pode ser anunciada através da pergunta: o que quer
uma mulher?. No caso escrito por Freud, temos alguns elementos essenciais que já anunciam
como Freud pensará a saída para os impasses da subjetivação feminina pela via fálica, por meio
do direcionamento da mulher a um homem com o advento de um filho, equivalendo
feminilidade com maternidade.
Dora ilustra como a sexualização do corpo está em jogo na histeria, um corpo no qual a
função orgânica é sujeitada ao significante, colocando assim a pergunta sobre o que é o corpo
de uma mulher. Se essa sexualização é típica da histeria, é o corpo feminino que levanta essa
questão. Assim, mais que uma neurose, a histeria é uma forma de colocar a problemática
feminina, afirma André (1987). Também Freud (1926) já afirmava essa afinidade “visto não
haver dúvida de que a histeria tem forte afinidade com a feminilidade” (p. 141).

2.1.1. Dora e a pergunta o que é uma mulher?

Em uma carta a Fliess de 25 de janeiro de 1901, Freud apresenta o texto sobre o caso
Dora que havia acabado de escrever, ainda com outro título:

Terminei ontem ‘Sonhos e Histeria’, e hoje já estou sentido falta de um soporífero. Ele é um
fragmento da análise de um caso de histeria em que complicações se agrupam em torno de dois
sonhos; assim, na verdade é uma continuação do livro do sonho. Além disso, contém resolução
de sintomas histéricos e vislumbres dos fundamentos organo-sexuais do conjunto. É a coisa
mais sutil que escrevi até agora e vai desconcertar as pessoas mais que de hábito (Freud,
1901/1986, p. 434).

Dora era a filha mais nova de um grande industrial e de uma mulher inculta, fútil e
concentrada nos assuntos domésticos. Ela possuía muita ternura pelo pai e uma relação

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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inamistosa com a mãe, já seu irmão tomava partido da mãe nos conflitos domésticos. Contudo,
anos antes, ele havia sido seu modelo.
A jovem faz uma primeira consulta a Freud em 1898, aos 16 anos. Depois, retornou em
1900, após seu pai encontrar em sua escrivaninha uma carta que continha ameaças de suicídio.
Freud (1905a) apresenta Dora como uma jovem inteligente e agradável, que apresentava
desânimo e alterações de caráter. Ela havia sido muito afetuosa com o pai, mas mantinha, há
dois anos, uma relação conflituosa com ele que a levou a Freud para que ele a colocasse no
“bom caminho” (Freud, 1905a, p. 36). Os primeiros sintomas de Dora surgiram aos oito anos
com uma dispneia; já aos 12 anos, ela apresentou enxaqueca e tosse, sendo que a primeira
desapareceu, tendo surgido, aos 16 anos, a afonia entre os acessos de tosse.
O pai de Dora havia sido atendido por Freud quatro anos antes, quando apresentou um
quadro confusional. É ele quem anuncia para Freud a relação da família com o casal K., central
na análise de Dora. Por causa da saúde do pai, mudaram-se de Viena para B., onde conheceram
o casal K. A amizade com o casal se estreitou quando a Sra. K. passou a cuidar dele quando
enfermo, enquanto Dora cuidava dos filhos do casal. Quando mocinha, o Sr. K. passou a levá-
la para passear e a presenteava. O pai relaciona o adoecimento da filha ao seguinte
acontecimento: quando estavam em L (uma região de lagos, por isso essa cena ficou conhecida
como a ‘cena do lago’), o Sr. K. fez uma proposta amorosa a Dora, que contou à mãe o ocorrido.
Frente a um pedido de explicações, o Sr. K. acusou a jovem de ter imaginado a cena, já que sua
esposa lhe contara que Dora lia textos cujo conteúdo versava sobre a sexualidade. O pai de
Dora acreditou prontamente nessa explicação e, desacreditada, a jovem passou a exigir que ele
rompesse com o casal, principalmente com a Sra. K., insinuando que havia entre eles uma
relação amorosa.
Dora queixava-se a Freud de ser usada pelo pai como objeto de troca, “de ter sido
entregue para o Sr. K. como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher
e o pai de Dora” (Freud, 1905a, p. 42), e contou a ele uma cena anterior à ocorrida em L: aos
14 anos, estava sozinha com o Sr. K. quando ele a surpreendeu com um beijo, apertando seu
corpo contra o dela. Este evento lhe causou repugnância e ela conseguiu escapar, mas não
rompeu relações com o casal K. A jovem apresentava reticência ao falar do Sr. K., mas havia
criado uma cadeia de pensamentos hipervalentes com acusações em relação ao relacionamento
do pai com a Sra. K. Segundo Freud, essa cadeia era uma forma de encobrir seu amor pelo Sr.
K.
Os sintomas somáticos de Dora eram todos ligados à oralidade e ganharam uma
interpretação de Freud: a tosse surgia sempre que o Sr. K. estava ausente, ou seja, ela adoecia
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na ausência dele, ao contrário da Sra. K., que adoecia quando o marido estava em casa. Nesse
jogo, Dora se identificava à Sra. K. e mostrava seu amor pelo Sr. K. Freud insiste neste ponto
do enamoramento de Dora pelo Sr. K.
A jovem julgava ainda que a Sra. K. amava seu pai porque ele era um homem de posses
- “ein vermogender Mann” (Freud, 1905a, p. 53), mas por detrás dessa frase, ocultava-se a ideia
dele ser um homem unvermogender, termo que serve tanto para de referir a alguém sem
recursos como impotente. O pai de Dora havia contraído Sífilis antes do casamento, resultando
numa impotência sexual. Freud (1905a) mostra a Dora essa aparente contradição e ela afirma
saber que há mais de uma maneira de obter satisfação sexual, referindo-se à região oral. Freud
(1905a) conclui, então, que o sintoma da tosse também “representava uma cena de satisfação
sexual per os15 entre as duas pessoas cuja ligação amorosa a ocupava incessantemente” (p. 54).
Importante ressaltar que Dora se lembra de uma cena em sua infância na qual ela segurava a
orelha de seu irmão com a mão direita enquanto chupava o polegar esquerdo, lembrando de ser
na infância uma ‘chupadora de dedos’, atividade que o pai tentou interromper de várias formas.
Freud (1905b/2006)16, indica, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, que o chuchar
é a primeira forma de satisfação da pulsão sexual e que “uma pulsão preênsil surgida ao mesmo
tempo pode manifestar-se através de puxadas rítmicas simultâneas do lóbulo da orelha e
apoderar-se de outra pessoa para o mesmo fim [de satisfação da pulsão sexual]” (p. 169). Sobre
a oralidade de Dora, Safatle (2016) indica que

No fundo, eles [esses sintomas] revelam a inscrição, no corpo sexuado, de um modo de


identificação e de demanda em relação ao pai (um grande fumante), o que não deixa de indicar
a representação oral da relação sexual (felação) prevalente devido à impotência paterna, assim
como os prazeres de chupeteadora (Dora chupou dedo até a idade de 4 a 5 anos) na sua primeira
infância e que estabelecem o gozo em uma área de cumplicidade com o pai (p. 382).

A região oral ganha, em Dora, status de zona erógena privilegiada. Na cena do beijo,
Freud (1905a) indica que ao invés do beijo despertar excitação sexual, o que seria esperado, ele
causou-lhe repugnância, além disso, após a cena, ela sente um aperto na altura do peito, um
deslocamento da sensação sentida do pênis ereto do Sr. K. contra seu corpo. Safatle (2016) diz
que essa sensação corporal que permanece é o que comprova a dificuldade de Dora em fazer o

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Latim: Por via oral.
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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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deslocamento da zona erógena para a região genital, ficando ela presa num gozo oral, assim
como seu pai. Temos aí uma primeira dificuldade de subjetivação do corpo feminino.
Quando se hospedava com os K., Dora dormia com a Sra. K e era sua confidente, a
jovem a elogiava principalmente por seu “‘adorável corpo alvo’ num tom mais apropriado para
um amante do que a uma rival derrotada” (Freud, 1905a, p. 65). A Sra. K., por sua vez, também
a acolhe, e Freud faz uma comparação interessante: “Medéia ficou muito contente em ver
Creusa tornar-se amiga de seus dois filhos, e também não fez nada para estorvar o
relacionamento entre a moça e o pai das crianças” (Freud, 1905a, p. 65). Havia um pacto.
Somente após a cena em L. que a relação entre as duas estremece. Curioso é que Dora não
passou a odiar a Sra. K por ela a ter traído (contando sobre suas leituras proibidas), mas mantém
sua censura somente em torno do relacionamento dela com seu pai. A relação de Dora com a
Sra. K. só é destacada por Freud (1905a) em uma nota de rodapé escrita posteriormente:

Quanto mais vou me afastando no tempo do término dessa análise, mais provável me parece
que meu erro técnico tenha consistido na seguinte omissão: deixei de descobrir a tempo e de
comunicar à doente que a moção amorosa homossexual (ginecofílica) pela Sra. K. era a mais
forte das correntes inconscientes de sua vida anímica. Eu deveria ter conjecturado que nenhuma
outra pessoa poderia ser a fonte principal dos conhecimentos de Dora sobre coisas sexuais senão
a Sra. K. [. . . ]. Eu deveria ter tratado de decifrar esse enigma e buscado o motivo desse estranho
recalcamento (p. 114).

Este é um ponto central que será destacado por Lacan: a direção de amor de Dora em
relação à Sra. K. nos aponta a dificuldade na sexuação feminina. É curioso como Freud
demonstra esse amor como a corrente mais forte na vida anímica da jovem, mas durante a
condução do tratamento, forçava em suas interpretações que Dora estava enamorado do Sr. K.
Dois sonhos são fundamentais no tratamento de Dora. O primeiro sonho que Dora
relatou era recorrente e ocorreu uma vez em Viena e três noites sucessivas em L, após a cena
do lago.

‘Uma casa estava em chamas. Papai estava ao lado da minha cama e me acordou. Vesti-me
rapidamente. Mamãe ainda queria salvar sua caixa de joias, mas papai disse: ‘Não quero que eu
e meus dois filhos nos queimemos por causa de uma caixa de joias’. Descemos as escadas às
pressas e, logo que me vi do lado de fora, acordei’ (Freud, 1905a, p. 67).

Na interpretação desse sonho, Dora traz mais detalhes do acontecimento em L. Na tarde


seguinte a esse episódio, ela se deitou para dormir e acordou com o Sr. K. parado à sua frente,
o que a fez passar a trancar a porta do quarto. Porém, no dia seguinte, percebeu que a chave
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havia sumido e pressupôs que o Sr. K a tivesse pegado. A partir daí, com medo de ser
surpreendida por ele, passou a vestir-se rapidamente.
Freud (1905a) indagou da jovem se ela sabia que caixa de joias se refere aos órgãos
sexuais femininos – “Sabia que o senhor ia dizer isso” (p. 70), ela respondeu. Freud interpreta
que o Sr. K. a está perseguindo e quer entrar no quarto: sua caixa de joias está em perigo, e se
acontecer alguma coisa, a culpa é de seu pai. O pai, no sonho, se apresenta como oposto, como
o que salva. Nessa parte do sonho, tudo está transformado em oposto por meio do deslocamento.
Um enigma presente nesse sonho é a mãe. Como ela entra nele? Vale lembrar que a mãe
quase não aparece no relato de Dora. Ela, no entanto, é também uma rival no complexo
edipiano. Há aqui um acontecimento anterior, a mãe rejeita uma pulseira dada pelo pai, pois
havia lhe pedido outro presente, enquanto Dora teria aceitado a pulseira com alegria. Dora
também relatou a Freud que o Sr. K. havia lhe dado uma caixa de joias, um presente que deve
ser retribuído.

Ou seja, você sabia disso… agora o sentido do sonho está ficando mais claro. Você disse a si
mesma: esse homem está me perseguindo; quer forçar a entrada no meu quarto, minha “caixa
de joias” está em perigo e, se acontecer alguma desgraça, a culpa é do papai. Foi por isso que
escolheu, no sonho, uma situação que expressa o oposto, um perigo de que seu pai a salva
(Freud, 1905a, p. 71).

Para Freud, esse sonho demonstra que Dora estava evocando o amor do pai para
proteger-se do seu amor pelo Sr. K., porém, ela rejeita esse raciocínio. O sonho aponta também
o medo que a jovem tem do encontro sexual, ou seja, se Freud (1933[32]) propõe que a saída
pela “feminilidade normal” só pode se dar pela via da maternidade, parece que Dora se enrijece
na posição histérica, afastando o contato sexual. Ela não se coloca como objeto de desejo de
um homem, refugiando-se na histeria.
Após algumas semanas depois do primeiro sonho, ela relatou o segundo:

Estava eu passeando por uma cidade que não conhecia, vendo ruas e praças que me eram
estranhas. Cheguei então a uma casa onde eu morava, fui até meu quarto e ali encontrei uma
carta de mamãe. Dizia que como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus pais, ela não
quisera escrever-me que papai estava doente. ‘Agora ele morreu e, se quiser, você pode vir’ Fui
para a estação [Bahnhof] e perguntei cem vezes: ‘Onde fica a estação?’ Recebia sempre a
resposta: ‘Cinco minutos’. Vi depois à minha frente um bosque espesso no qual penetrei, e ali
fiz a pergunta a um homem que encontrei. Disse-me ‘mais duas horas e meia’. Pediu-me que o
deixasse acompanhar-me. Recusei e fui sozinha. Vi a estação à minha frente e não conseguia
alcançá-la. Aí me veio o sentimento habitual de angústia de quando, nos sonhos, não se
consegue ir adiante. Depois, eu estava em casa; nesse meio tempo, tinha de ter viajado, mas
nada sei sobre isso. Dirigi-me à portaria e perguntei ao porteiro de nossa casa. A criada abriu
25

para mim e respondeu: ‘A mamãe e os outros já estão no cemitério [Friedhof]’ (Freud, 1905a,
p. 93).

Esse sonho foi de difícil interpretação e não foi totalmente esclarecido. Freud (1905a)
adverte que quando Dora relatou o sonho, ela estava se perguntando sobre sua implicação em
relação aos seus sintomas, girando suas questões em torno de duas perguntas: por que não
contou o ocorrido em L logo após o evento? E por que, de repente, contou a sua mãe?
O ambiente do sonho foi retirado de um álbum de paisagens que um jovem engenheiro
havia enviado a ela. Ele tinha se mudado para a Alemanha e tinha interesse em desposá-la
quando tivesse condições financeiras e profissional. Sobre encontrar-se perdida, ela se lembra
que quando estava em Dresden pela primeira vez, perambulou sozinha pela cidade até chegar à
galeria de arte, onde ficou por duas horas parada diante da Madona Sistina:

Figura 1: Madona Sistina.

Fonte: https://santhatela.com.br

A Madona Sistina é uma pintura de 1512, pintada pelo italiano Rafael Sanzio por
encomenda do Papa Júlio II. Em uma nota de rodapé, Freud (1905a) interpreta que a
contemplação de Dora pela Madona é, na verdade, ela mesma: primeiro por ser admirada pelo
engenheiro e

depois por ela haver conquistado o amor do Sr. K., sobretudo por sua maternalidade em relação
aos filhos dele, e, finalmente, porque, sendo virgem, a ‘Madona’ dera à luz um filho, numa
alusão direta à fantasia de parto [. . . ]. Se a análise tivesse prosseguido, é provável que a ânsia
maternal por filhos tivesse se mostrado, em Dora, como uma motivação obscura, mas poderosa
de suas ações (p. 101).
26

Novamente, Freud coloca em jogo a maternidade como um desejo feminino, mas


também aponta uma identificação masculina com o engenheiro que a admirava. Essa dupla
identificação, uma masculina e outra feminina (com a Sra. K.), é típica na histeria e, identificada
a um homem, pode indagar sobre o que quer uma mulher.
Freud (1905a) prossegue a interpretação e Dora se lembra que a passagem “se você
quiser”, contida na carta do sonho, tinha um ponto de interrogação, igual à carta que a Sra. K.
havia lhe enviado com o convite para passar uns dias em L. Freud pede que ela retome a cena
do lago e descreva o que o Sr. K. lhe disse, e ela se lembra da seguinte fala: “Sabe, não tenho
nada com minha mulher” (Freud, 1905a, p. 97). Após o Sr. K. ter dito isso, ela o esbofeteia e
tenta voltar a L, mas um homem lhe diz, no meio do caminho, que L estava há dois horas e
meia de distância; ela volta ao lago e vai embora de barco com o Sr. K. Ela associa ainda que
o bosque do lago é muito parecido com o bosque do sonho.
No terceiro dia da interpretação desse sonho, Freud é surpreendido pelo aviso de Dora
de que aquela seria a última sessão e que a decisão havia sido tomada há quatorze dias. Freud
(1905a) afirma que isso lhe parecia um aviso prévio de uma governanta, ao que ela respondeu
que “havia também uma governanta que deu aviso prévio na casa dos K. quando os visitei em
L.” (p. 102). Essa governanta lhe contou que o Sr. K. lhe fez uma proposta amorosa, dizendo
que não tinha nada com sua mulher e que após ela ceder ao galanteio, ele passou a não lhe dar
mais importância.
Freud (1905a) comunica à Dora: “Agora conheço o motivo daquela bofetada com que
você respondeu à proposta do Sr. K. Não foi a afronta pela pertinência dele, mas uma vingança
por ciúme” (p. 103). Dora aguardou os quatorze dias antes de contar à sua mãe o galanteio do
Sr. K. porque queria verificar se ele renovaria a proposta, buscando saber se ele estaria agindo
seriamente ou a enganando como fez com a governanta. Quando ele não a renovou, ela decidiu
contar o ocorrido como uma forma de vingança, ficando, a partir daí, também vigilante em
relação a seu pai e a Sra. K.
Após essa interpretação, Dora se despede e vai embora. Antes, Freud havia interpretado
que o sonho possuía um conteúdo sexual e que a penetração dela na floresta representava o ato
de defloração. É importante lembrar que quando Freud atende Dora, ele já havia abandonado a
teoria da sedução e a substituído pela teoria da fantasia de sedução e por isso é possível
compreender a conotação sexual dos sonhos de Dora como manifestações do desejo recalcado.
Dora ensina muito sobre o feminino. Lacan demonstrará como a lente fálica freudiana
foi insuficiente para que ele pudesse, na época, dar continuidade ao caso, já que ele tinha como
pressuposto o fato de que Dora amava o Sr. K. e negligenciou o amor dela pela Sra K., como
27

ele mesmo percebeu tardiamente. Safatle (2016) pontua que não estava em jogo uma posição
homossexual de Dora em relação à Sra. K., mas sim uma organização libidinal do corpo
feminino. A mãe de Dora é praticamente ausente em seu relato, desprezada pelo marido e, ao
que parece, indiferente aos filhos, ela “não se apresenta, no interior do núcleo familiar, como
capaz de dar conta do desejo de um homem. Tal destruição do desejo materno provoca um
problema no plano das identificações. Na questão sobre o que é uma mulher, a mãe não conta
para Dora” (Safatle, 2016, pp. 383-4) e, por isso, a Sra. K. entra também nesse lugar
identificatório, mais do que no de uma escolha de objeto.
Assim, desde o início da teoria psicanalítica, as histéricas colocam em xeque a
feminilidade enquanto uma construção, um devir que Freud vai tentar apreender no complexo
de Édipo, marcando a diferença entre a subjetivação feminina e a masculina. É curioso como
Freud vai destacando as tentativas de Dora em compreender a feminilidade inconscientemente
via Sra. K., mas também pela via do saber. Em mais de um momento, ele conta que ela fazia
leituras de conteúdo sexual, ouvia conferências para mulheres, além de aparecer, na
interpretação do segundo sonho, a lembrança de que após saber que os pais estavam mortos, foi
para seu quarto e, calmamente, leu um grande livro, pois somente com o pai morto pode-se ler
livros proibidos. Ela busca, no saber, uma forma de responder o que é ser uma mulher.

2.1.2. Sexualidade feminina e complexo de Édipo.

Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905b) postula diferenças
essenciais no processo de desenvolvimento da sexualidade feminina e masculina,
principalmente na puberdade, quando a necessidade de um novo alvo sexual atribui aos dois
sexos funções muito diferentes. Ele destaca, contudo, que o desenvolvimento sexual do homem
é mais acessível à compreensão que o da mulher.
Nesse texto, há uma passagem interessante sobre a diferenciação entre feminino e
masculino, destacada como uma nota de rodapé acrescentada em 1915:

É indispensável deixar claro que os conceitos de “masculino” e “feminino”, cujo conteúdo


parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência e se
decompõem em pelo menos três sentidos. Ora, se empregam “masculino” e “feminino” no
sentido da atividade e passividade, ora no sentido biológico, ora ainda no sentido sociológico.
O primeiro desses três sentidos é o essencial, assim como o mais utilizável em psicanálise
(Freud, 1905b, p. 207, destaque do autor).
28

Freud (1905b) aponta aí que não há uma naturalização da sexualidade, de forma que a
biologia não poderia definir nem o feminino nem o masculino. Essa elaboração freudiana tem
como consequência a proposição da libido como masculina, mesmo que ela tenha fins passivos.
Já a associação do feminino com o passivo e do masculino com o ativo tem relação com as
transformações da puberdade no desenvolvimento psicossexual.
Freud (1905b) postula a existência da sexualidade infantil, indicando que a pulsão
sexual é presente desde a mais tenra infância, ainda de maneira autoerótica. O chuchar é o
exemplo de como a pulsão sexual se expressa no lactente e pode persistir por toda a vida, já que
as marcas de satisfação pulsional adquiridas na infância servem de modelo para os modos de
satisfação posteriores. Em Dora, vimos a marca da oralidade na apresentação de seus sintomas.
No início do desenvolvimento psicossexual, não há uma diferença sexual clara entre
meninos e meninas, pois a atividade autoerótica das zonas erógenas é idêntica nos sexos, de
forma que, nesse período, “a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino”
(Freud, 1905b, p. 207). Isso acontece já que, nas meninas, a zona genital dominante, – o clitóris,
é homóloga à masculina, e um dos trabalhos necessários no desenvolvimento sexual da mulher
é recalcar a sua sexualidade masculina, passando da atividade para a passividade. É necessário,
nesse processo, que a mulher transfira a excitabilidade do clitóris para a vagina, mudando de
zona erógena dominante. Freud (1905b) localiza nesses dois elementos – recalcamento e troca
de zona erógena – “os principais determinantes da propensão das mulheres para a neurose,
especialmente a histeria” (p. 209), indicando a afinidade entre a histeria, a sexualidade e a
mulher. A histeria traz ainda uma contradição curiosa: ao mesmo tempo que apresenta uma
“necessidade sexual desmedida”, ela também demonstra uma “excessiva renúncia sexual”
(Freud, 1905b, p. 156).
O autor diz que há uma transformação da menina em mulher, indicando, assim, um
processo de construção da feminilidade. Especificamente em três textos mais tardios (“Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, de 1925, “Sexualidade
Feminina”, de 1931, e a “Conferência XXXIII, de 1933[32]), ele irá discorrer de forma mais
detalhada sobre esse processo, mas é necessário que façamos uma indicação anterior. Em
1923a, há uma correção na sua teoria sobre a sexualidade infantil. Em 1905, Freud apostava
que era a escolha de objeto que ligava a vida sexual do adulto à vida sexual infantil, porém, ele
indica que essa ligação não se limita a isso, já que na infância, mesmo antes da fase fálica do
desenvolvimento psicossexual, “o interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma
significação dominante, que está pouco aquém da alcançada na maturidade” (Freud,
29

1923a/2006, p. 158)17. O que difere, principalmente, a organização genital infantil da adulta é


sua característica central: o fato de que na infância o único órgão que é colocado em questão é
o masculino. “O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas do
falo” (Freud, 1923a, p. 158).
A primazia do falo não indica que o menino não distinga o homem da mulher, mas ele
o faz pela presença ou ausência do falo. Na infância, após descobrir seu órgão genital, o
menininho presume que todos os seres vivos, e mesmo os elementos inanimados, possuem o
mesmo corpo que o seu, além disso, o órgão peniano oferece uma série de sensações ao menino,
ocupando sua atenção. Dessa forma, o sexo feminino fica velado e é marcado pela falta quando
o menino se depara com a diferença anatômica. Poderíamos dizer que o que está em jogo é um
significante que falta à mulher.
A diferença sexual nesse período se dá não pela masculinidade e feminilidade, mas pela
presença do órgão sexual masculino e a castração. É somente na puberdade que a polaridade
masculino e feminino encontra seu auge, de forma que a masculinidade engloba o sujeito, a
atividade e a posse do pênis e a feminilidade englobam o objeto e a passividade. André (1987)
esclarece que, em 1923a, Freud é claro ao demonstrar que não é a materialidade do órgão
feminino que se mantém não descoberta, mas, sim, que essas constatações não são significadas
no inconsciente como oposição entre dois sexos complementares. “A vagina é bem conhecida
como órgão, mas não é reconhecida a nível significante como sexo feminino” (André, 1987, p.
13), nesse sentido, só é possível dizer que o sexo feminino se mantém desconhecido, uma vez
que o sexo ultrapassa a materialidade da anatomia.
A compreensão da sexualidade feminina se dá a partir do processo de construção
edípica, já que para Freud (1931/2006)18 é somente ao entrar no complexo de Édipo que a
mulher caminharia em direção à feminilidade normal. O termo complexo de Édipo refere-se ao
mito do Édipo Rei, uma peça do dramaturgo grego Sófocles (497 a.C – 406 a.C) que faz parte
da trilogia Tebana escrita por volta de 430 a.C. A história de Édipo é antecedida por um
acontecimento: em sua juventude, Laio nutria uma paixão por Crísipo e o raptou. Como castigo,
foi amaldiçoado a morrer sem deixar descendentes por Pélope, pai de Crísipo. Mais tarde, Laio
casou-se com Jocasta, tornou-se rei de Tebas e ao consultar o Oráculo, foi informado que se

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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tivesse filho este estava destinado a matá-lo e a casar-se com Jocasta. Apesar desse anúncio,
Laio e Jocasta tornaram-se pais de um menino – o Édipo. Para evitar a realização do destino,
eles entregaram o filho a um pastor de rebanhos que deveria abandoná-lo para morrer no monte
Citéron. Entretanto, ao invés disso, ele entrega a criança para outro pastor que a leva para o rei
Pólibo e para a rainha Mérope, que se lamentavam por não terem filhos. Chegada a maturidade,
Édipo é insultado por um bêbado que o chama de filho adotivo e, intrigado, ele consulta os
Oráculos de Apolo que nada lhe dizem de sua descendência, mas lhe contam que ele estava
destinado a matar seu pai e a casar com sua mãe (Sófocles, 2014a).
Édipo decide abandonar Corinto após tomar ciência de seu destino. Durante sua fuga,
ele encontra Laio em uma encruzilhada que, após gritar de forma insolente com ele, ordena que
seu criado o agrida. Sem saber que se tratava do seu pai, Édipo mata Laio e foge para Tebas,
que estava alarmada pela esfinge que devorava os tebanos. Ele desvenda o enigma da Esfinge
salvando o povo de Tebas e recebendo como prêmio a rainha Jocasta, sua mãe. Assim, Édipo
confirma a predição do Oráculo. Do casamento entre Édipo e Jocasta nasceram duas filhas,
Antígona e Ismênia, e dois filhos, Polinice e Etéocles. Após anos de tranquilidade em Tebas,
os deuses fazem uma peste assolar a cidade e, para tentar compreender o motivo, Édipo faz
Creonte, irmão de Jocasta, ir a Delfos consultar os Oráculos sobre a causa da peste e a forma
de contê-la. É neste ponto que se inicia a peça Édipo Rei, quando Édipo descobre ter matado
seu pai e casado com sua mãe. (Sófocles, 2014a).
Freud se apropria da peça “Édipo Rei” para colocar em evidência o desejo da criança
pelo genitor do sexo oposto, que é acompanhada da hostilidade pelo genitor do mesmo sexo,
durante o período fálico do desenvolvimento psicossexual. O complexo de Édipo ganha, na
psicanálise, estatuto de conceito nuclear em relação à neurose e ao ser articulado com o
complexo de castração, ele torna-se o organizador da sexualidade adulta. Lacan (1958b) afirma
que o complexo de castração faz a função de um nó, não somente na estruturação psíquica –
neurose, psicose ou perversão, mas também por permitir instalar no sujeito uma posição em
que ele se identifica a seu sexo. É através da articulação entre o complexo de Édipo e o de
castração que Freud irá construir sua teorização sobre a sexualidade adulta e diferenciar a
sexualidade feminina da masculina. No entanto, ele adverte, em 1933[32]: “De acordo com sua
natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher – seria essa uma tarefa
difícil de cumprir -, mas empenha-se em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher
se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual” (p. 117).
Em 1924, Freud se pergunta qual a razão para o complexo de Édipo se dissolver, se seria
um caminho natural, como dentes de leite que precisam dar lugar aos definitivos, ou se estaria
31

em jogo alguma experiência de desapontamento. Advertindo que ainda não saberia responder
como acontece com as meninas, ele explica o processo edípico dos meninos.
Na fase fálica do desenvolvimento psicossexual, o menino volta seu interesse para os
seus genitais, tirando deles satisfação libidinal através da manipulação. Há, por parte dos
adultos, uma reprovação desse comportamento e a advertência de que essa parte, tão valorizada
pelo menino, lhe será retirada. Freud (1924a/2006) 19 afirma que essa ameaça, geralmente, é
anunciada pela mãe, que a reforça por meio da autoridade do pai ou do médico. A ameaça,
muitas vezes, se dá não porque o menino manipula o genital com tamanha frequência, mas
porque urina na cama à noite. Freud (1924a) faz essa equivalência, pois a enurese noturna de
longa duração é o equivalente da polução nos adultos e “é uma expressão da mesma excitação
dos órgãos genitais que impeliu a criança a masturbar-se neste período” (p. 195). É por essa
razão – a ameaça de perder o órgão sexual, que a organização genital fálica é destruída. Porém,
acrescenta-se a isso um fator indispensável, uma nova experiência: a visão dos órgãos genitais
femininos. Sem este último fator, as ameaças verbais de castração não parecem surtir efeito, já
que é somente a partir dessa visão que se abre para a criança a possibilidade de ser castrada.
Essa visão da mulher como castrada pode ser a razão para a depreciação da mulher pelo
homem, diz Freud. Miller (2016) acrescenta que o ser feminino, pensando como marcado pelo
menos, “se trata de uma ideia, é uma ideia que se enraíza na comparação imaginária dos corpos”
(p. 4), e é dessa comparação que Freud elabora o complexo de castração. Miller (2016) destaca
que há um hiato entre a observação do órgão feminino e a elaboração que o menino faz disso,
e daí o homem passa a ser pensado como completo e o sexo feminino “marcado por uma
irremediável incompletude” (p. 5). Nesse sentido, se por um lado a experiência do complexo
de castração é o princípio da degradação do ser feminino, por outro lado, esse ser pode encarnar
para o homem uma ameaça, já que a mulher castrada não teria nada a perder.
É importante esclarecer que a vida sexual da criança na fase fálica não está somente
ligada aos genitais, mas também ligada aos pais, e a “sua masturbação constitui apenas uma
descarga genital da excitação sexual pertinente ao complexo [de Édipo]” (Freud, 1924a). Para
ambos os sexos, a mãe é, enquanto cuidadora, o primeiro objeto de catexia libidinal, pois é
quem, por meio do cuidado e higiene, estimula a região genital das crianças.
No Édipo, o menino tem duas possibilidades de satisfação que são destruídas pelo
complexo de castração: na primeira, ele colocar-se-ia no lugar de seu pai e teria relações com a

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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mãe, tornando o pai um estorvo (maneira masculina); ou, então, colocar-se-ia no lugar da mãe,
querendo ser amado pelo pai, tornando a mãe supérflua (maneira feminina). Ambas as posições
o colocariam em risco em relação à castração. Na maneira masculina, a castração viria como
punição pelo pai, e a segunda, seria resultante da própria posição feminina. Daí, surge um
conflito entre sua tão valorizada parte do corpo, pois é dela que ele tira suas sensações
prazerosas e suas escolhas de objeto, e o menino faz a escolha narcísica de salvar o órgão
(Freud, 1924a).
O processo edípico do menino encerra-se quando ele escolhe salvar seu órgão genital,
ou seja, seu Édipo é dissolvido pelo complexo de castração, de forma que as escolhas objetais
incestuosas são abandonadas. Por um lado, a autoridade do pai é introjetada no eu, formando o
supereu e, por outro, as inclinações libidinais são sublimadas, inaugurando uma etapa em que
as manifestações da sexualidade ficam retraídas, que Freud chamou de período de latência.
Freud (1924a) destaca, e essa é uma diferença essencial em relação ao processo feminino, que
o complexo de Édipo do menino é mais que recalcado, ele é totalmente destruído, pela ameaça
de castração.
Sem conseguir elaborar ainda claramente o processo edípico na mulher, Freud (1924a)
afirma que ele não pode ser igual ao do homem, “pois a distinção morfológica está fadada a
encontrar expressão em diferenças no desenvolvimento psíquico. A anatomia é o destino, para
variar um dito de Napoleão” (p. 197). Longe de fazer da psicanálise uma disciplina biologicista,
o que Freud nos aponta é que as diferenças anatômicas inscrevem consequências psíquicas,
principalmente levando-se em conta o desenvolvimento da sexualidade em cada um dos sexos.
Para afastar de vez a ideia de que a anatomia definiria por completo o homem e a mulher, ele
afirma:

Quando encontramos um ser humano, a primeira distinção que fazem é ‘homem ou mulher?’ e
os senhores estão habituados a fazer essa distinção com certeza total. A ciência anatômica
compartilha dessa certeza dos senhores num ponto, não mais que isto. [. . . ] aquilo que constitui
a masculinidade e a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da
anatomia. (Freud, 1933[32], p. 114-115).

Morel (1995) explica que a via anatômica é privilegiada em Freud pelas suas
consequências e não por uma observação direta. A autora segue afirmando que essas
consequências têm relação com um gozo presente na fase fálica, que é o gozo masturbatório
retirado do pênis pelo menino e do clitóris pela menina. Na menina, esse gozo deverá ser
recalcado, pois o clitóris sucumbe à competição com o órgão masculino. “A descoberta da
anatomia feminina desempenha um papel fundamental, reverberando de forma violenta,
33

podemos dizer, no psiquismo. Especialmente na menina” (Morel, 1995, p. 45, tradução


nossa).20
O desenvolvimento da feminilidade é, então, um longo processo, já que as meninas
precisam fazer duas tarefas: trocar de zona erógena do clitóris para a vagina e mudar o objeto
de investimento, passando da mãe para o pai. Freud (1931a) afirma que antes do período
edípico, existe uma fase igualmente intensa e apaixonada da menina com sua mãe.
O período pré-edípico da menina comporta uma natureza tão importante a ponto de
Freud (1931a) questionar se não deveríamos ampliar o conteúdo do complexo de Édipo para
todas as relações estabelecidas com os genitores. Isso coloca em questão como o período
antecessor ao Édipo tem sua importância na constituição da neurose histérica, já que o
complexo de Édipo é o núcleo da neurose:

acha-se a suspeita de que essa fase de ligação com a mãe está especialmente relacionada à
etiologia da histeria, o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase quanto a
neurose são características femininas, e, ademais, que nessa dependência com a mãe
encontramos o germe da paranoia posterior nas mulheres, pois esse germe parece ser o
surpreendente, embora regular, temor de ser morta devorada pela mãe (Freud, 1931a, p. 235).

Freud (1931a) destaca aí a importância do período pré-edípico na estruturação não


apenas da sexualidade feminina, mas também sua relação com a estruturação clínica. Ele faz
algumas conjecturas sobre qual seria o motivo do afastamento entre a menina e sua mãe.
Primeiro, levanta a ideia de que, sendo o amor infantil ilimitado, a criança não aceitaria nada
menos que tudo vindo da mãe e isso só pode acabar em desapontamentos com um colorido
hostil. Portanto, o ciúme da criança seria uma das razões para o afastamento. Também é a mãe
(ou quem faz o seu papel) quem se comporta como a primeira sedutora ao cuidar da higiene da
criança, e as mais fortes sensações genitais que as meninas sentem ocorrem quando estão sendo
limpas pela mãe. A mãe é a sedutora, mas é também quem vai proibir a masturbação infantil da
filha advertindo-a, e essa advertência faria a criança se rebelar contra a mãe que a proíbe.
Contudo, as duas causas citadas também estão presentes nos meninos, mas não os faz
abandonar a mãe como objeto de amor, havendo, portanto, algo a mais em relação às meninas.
Desse modo, o evento que causaria o afastamento da menina de sua mãe é a constatação da sua
castração e da castração materna, havendo, nesse momento, uma depreciação tanto da mãe
como da mulher. É somente a partir do complexo de castração que podemos compreender o
afastamento da menina da mãe, que culmina em sua entrada no complexo de Édipo: “seja como

20
No original: «La découverte de l’anatomie féminine joue un rôle fondamental, se répercutant d'une manière
violente, on peut dire, dans le psychisme. Spécialement chez la fille».
34

for, ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, emerge, como motivo mais forte para a
menina se afastar dela, a censura por a mãe não lhe ter dado um pênis apropriado, isto é, tê-la
trazido ao mundo como mulher” (Freud, 1931a, p. 241-242). Anos antes, Freud (1916/2006)21
já havia indicado essa censura da menina em relação à mãe e a consequência que esse evento
traz na relação mãe e filha:

Conforme aprendemos pelo trabalho psicanalítico, as mulheres se consideram como tendo sido
prejudicadas na infância, como tendo sido imerecidamente privadas de algo e injustamente
tratadas; a amargura de tantas filhas contra suas mães provém, em última análise, da censura
contra estas por as terem trazido ao mundo como mulheres e não como homens (p. 329).

Essa censura que a menina faz à mãe vai sendo acompanhada de diversas outras por
meio de uma decomposição. Em um primeiro momento, a menina toma a castração como uma
infelicidade individual, depois a estende à sua mãe e depois às mulheres em geral. Só é possível
abandonar a mãe após descobri-la também castrada, pois “seu amor estava dirigido à sua mãe
fálica” (Freud, 1933[32], p. 126).
Essa primeira ligação comporta grande carga de ambivalência que, reforçada pelos
motivos citados, culmina no afastamento da mãe e da filha. É somente a partir desse
afastamento que a menina entra no complexo de Édipo. Ao contrário do menino, no qual o
complexo de castração culmina na dissolução do complexo de Édipo, na menina, ele é o
responsável por introduzi-la na triangulação edípica.
Ainda sobre a relação pré-edípica, Freud (1931a) adverte que a relação libidinal da
menina com a mãe é marcada por objetivos passivos e ativos que seguem o desenvolvimento
da sexualidade infantil. Toda criança tende a produzir uma reação ativa após receber uma
impressão ativa, por exemplo, quando um médico abre sua boca para examinar a garganta, ela
mais tarde faz isso com um irmãozinho ou colega mais novo que ela. Nas primeiras experiências
de colorido sexual da criança com a mãe, está em jogo o caráter passivo e nelas uma parte da
libido se fixa nesse modo de satisfação, mas uma outra parte busca transformá-la em atividade,
graças à revolta contra a passividade presente no psiquismo infantil. Uma forma que Freud
(1931a) traz como exemplo de transformação da passividade para atividade é a amamentação
que se transforma num sugar ativo. Outro meio de promover essa transformação é também por
meio da brincadeira.

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
35

O brincar com as bonecas é um meio da menina exercer a atividade e é visto como um


sinal de feminilidade, mas Freud (1931a) adverte que se trata do “lado ativo da feminilidade e
que a preferência da menina por bonecas provavelmente constitui prova da exclusividade de
sua ligação à mãe, com negligência completa do objeto paterno” (p. 245, destaque do autor).
Como já dissemos acima, a mãe como primeira sedutora da filha marca nela uma impressão
passiva de satisfação libidinal, mas a masturbação clitoridiana que surge na fase fálica é uma
satisfação ativa dirigida à mãe.
Ao indicar um lado ativo da feminilidade, Freud desvinculou de maneira definitiva a
equivalência do feminino com a passividade e do masculino com a atividade, algo que, no
entanto, já vinha fazendo. Em 1933[32], ele esclarece melhor essa relação ao constatar que há,
na posição feminina, uma preferência por fins passivos, e que se dedicar a fins passivos é
diferente de passividade, pois para atingir essa finalidade, uma grande cota de atividade é
necessária.
O afastamento da menina de sua mãe não se trata apenas de uma mudança de objeto
sexual, mas traz consigo uma diminuição das pulsões sexuais ativas, com o aumento das pulsões
sexuais passivas, ligadas a modos passivos de satisfação. Isso acontece já que as tendências
ativas são mais nitidamente afetadas pela frustração e, por isso, mais facilmente abandonadas
pela libido. A partir do afastamento da mãe, a menina direciona-se ao pai, entrando no conflito
edípico e abrindo caminho para o desenvolvimento da feminilidade.

A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida
em que escaparam à catástrofe. O caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora
aberto para a menina, até onde não se ache restrito pelos remanescentes da ligação pré-edipiana
à mãe, ligação que superou (Freud, 1931a, p. 247, destaque nosso).

A ligação pré-edipiana, portanto, deixa marcas importantes na sexualidade feminina e


deve ser superada para dar acesso à constituição da feminilidade. A menina teria acesso à
feminilidade querendo ter aquilo que falta à mãe, tornar-se mulher consiste num impasse
(André, 1987) e se localiza em torno de uma ausência.
Ao falar do processo edípico e do complexo de castração da menina, temos de início
uma distinção fundamental: enquanto o menino vive a castração como uma ameaça, a menina
vive como um fato consumado e se rebela contra esse fato. Após ver o genital do sexo oposto,
Freud (1933[32]) adverte que as meninas se sentem injustiçadas e caem vítimas da “inveja do
pênis; que deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter,
36

não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia”
(p. 125).
Frente à inveja do pênis, a menina encontra três saídas possíveis: a inibição da
sexualidade, o complexo de masculinidade ou a via da feminilidade normal. Na primeira saída,
que Freud, em 1933[32], equivale à neurose, a menina perde o prazer que retirava da
masturbação do clitóris, pois o toma como um órgão inferior, e passa a reprimir boa parte da
sexualidade em geral, não obtendo satisfação sexual. Nesse momento, há a renúncia de uma
cota de atividade e caso não haja a perda de muitos elementos pelo recalque, abre-se, aqui, a
via para o desenvolvimento da feminilidade normal, voltando-se para o pai. Caso esse caminho
não se abra, há uma repulsa completa da sexualidade feminina.
Com relação ao complexo de masculinidade, a menina se nega a reconhecer a ausência
do pênis como falo e se refugia numa identificação com o pai ou com a mãe fálica. Essa saída
não significa necessariamente que haverá uma escolha de objeto homoafetiva, nem que a
menina não passará pelo complexo de Édipo. O que acontece é que, depois de um tempo
direcionada ao pai como objeto de amor, um desapontamento com ele é inevitável e isso fará a
menina voltar para a sexualidade masculina, como era no período infantil (Freud, 1933[32]).
A saída pela feminilidade normal se dá com a entrada da menina no complexo edipiano,
quando após afastar-se da mãe e abrir mão da masturbação clitoridiana, a menina direciona-se
ao pai para obter dele o pênis. No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo de
ter um bebê substituir o desejo pelo pênis. No período edípico, a hostilidade contra a mãe é
aumentada, pois soma-se aos fatores já elencados o fato de agora ela ser uma rival e “talvez
devêssemos identificar esse desejo de pênis como sendo, par excellence, um desejo feminino”
(Freud, 1933[32], p. 128). Há em Freud a equivalência entre mulher e mãe. Para além disso,
Freud tenta apreender esse desejo como sendo um desejo único a todo grupo de mulheres,
reunindo-as num conjunto, ele busca encontrar um aspecto especificamente feminino.
Quando escreve o caso Dora, Freud (1905a) aposta que “se a análise tivesse
prosseguido, é provável que a ânsia maternal por filhos tivesse se mostrado, em Dora, como
uma motivação obscura, mas poderosa de suas ações” (p. 101). A aposta na maternidade como
uma saída feminina aparece em Freud desde cedo e o que é mais interessante nessa passagem
é como ele aposta que o que está em jogo em Dora é a questão feminina. A jovem nos ensina
como a feminilidade é um processo de construção.
Se, no menino, o temor da castração o conduz a abandonar o Édipo, instalando como
herdeiro o supereu, no caso das meninas, o que faria o Édipo ruir? Freud (1933[32]) indica que
falta à menina o motivo principal para a destruição do complexo edípico e que ela o faz de
37

maneira incompleta, acarretando prejuízo na formação do supereu feminino. Ele havia admitido
em “A dissolução do complexo de Édipo” que o fato do pai não lhe dar o filho é o que a faz
afastar dele, ainda que de maneira incompleta, e a isso se somam as influências dos fatores
externos – educação, intimidação e o medo da perda do amor que, em parte, suprirão a falha do
supereu.
Há também outras consequências para a personalidade da mulher advindas de seu
processo de sexuação. Freud (1933[32]) aponta que é atribuída às mulheres uma quantidade
maior de narcisismo, uma presença mais acentuada da vaidade (usada como uma compensação
por não ter o falo) e a vergonha como um modo de velar sua “deficiência genital” (p. 131). Na
escolha de objeto, prevalece a conformidade com o modo narcisista e a mulher busca um
homem que ela gostaria de ter se tornado. Também como consequência da inveja do pênis, a
mulher só encontraria uma satisfação sem limites na relação com um filho do sexo masculino.
Além disso, Freud (1933[32]) imputa à mulher menos capacidade sublimatória e menos senso
de justiça, pois ela possuiria dificuldade de se conduzir fora do elemento emocional.
O período pré-edipiano, apesar de ser substituído pelo Édipo, é uma fase decisiva para
a vida da mulher, pois

nessa fase, são feitos os preparativos para a aquisição das características com que mais tarde
exercerá seu papel na função sexual e realizará suas inestimáveis tarefas sociais. É também
dessa identificação [com a mãe] que ela adquire aquilo que constitui o motivo de atração para
um homem; a ligação edipiana desta a sua mãe transfigura a atração da mulher em paixão. No
entanto, com tanta frequência sucede que apenas o filho obtém aquilo que o homem aspirava!
Tem-se a impressão de que o amor do homem e da mulher psicologicamente sofrem uma
diferença de fase (Freud, 1933[32], p. 133).

Com essa passagem, fica claro que Freud indica que tem um ponto da transmissão da
feminilidade que é passada da mãe para a filha. Não à toa, a leitura que Lacan fará sobre o caso
Dora é que a Sra. K. encarna, para ela, a figura de uma feminilidade corporal, pois a mãe de
Dora nada lhe transmitiu sobre o feminino. Essa passagem também é curiosa ao mostrar o
impasse nas relações amorosas, já que no ponto do amor, há um descompasso entre os homens
e as mulheres.
Uma primeira conclusão essencial que podemos tirar da teoria freudiana sobre a
feminilidade é que a feminilidade não é um dado da natureza, mas se constitui numa construção.
Nas palavras de André (1987), “se não há sexo feminino enunciável como tal, a feminilidade
não pode ser concebida como um ser que seria dado desde o início, mas um se tornar – e um
se tornar que, paradoxalmente, se inaugura para a menina a partir de seu complexo de
38

masculinidade” (p. 23-24, destaque do autor). Além disso, André (1987) destaca como, na
elaboração de Freud, a feminilidade aparece pouco natural.
O que está em jogo é o processo edípico que conta com identificações e escolha de
objeto, o que inclui no processo de desenvolvimento da sexualidade uma lógica discursiva.
Também encontramos em Freud a congregação dos discursos sobre a mulher que se
apresentavam em sua época: sua aliança com a fragilidade e a maternidade, a passividade e a
ausência de razão. Ainda, encontramos em Freud (1919a/2016)22 uma curiosa afirmação:

Portanto, o recalcante seria sempre uma moção pulsional masculina, e o recalcado, uma
feminina. Mas o sintoma também seria resultado e uma moção feminina, pois não podemos
deixar de lado o fato de o sintoma ser um substituto do recalcado que se afirmou apesar do
recalcamento (p. 150).

Dessa passagem, pensamos que Freud reafirma a ideia do feminino como um devir após
um processo de recalcamento da sexualidade masculina, como ele havia postulado, mas mais
que isso, não estaria Freud apontando uma aproximação maior do feminino com as formações
do inconsciente? Ainda que não haja uma evidência clara disso, a colocação do sintoma como
uma moção feminina parece nos indicar essa aproximação.
Finalizando a conferência dedicada à feminilidade, Freud (1933[32]) eleva a
feminilidade ao nível de enigma e coloca o limite da psicanálise em esclarecer este ponto ao
dizer: “se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem a própria experiência de
vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes
informações mais profundas e mais coerentes” (p. 134).

2.1.3. Masoquismo e feminino.

Para além de tratar a sexualidade feminina em textos específicos, Freud traz mais uma
contribuição para o estudo do tema ao dar ao masoquismo o estatuto de ser feminino. Não se
trata de afirmar que a mulher é masoquista, mas que esse modo de satisfação libidinal comporta
as características femininas.
O tema do masoquismo está presente no primeiro de seus três ensaios sobre a
sexualidade, no qual Freud (1905b) indica que o sadismo e o masoquismo são os mais
frequentes tipos de perversão, enquanto o primeiro indica a forma ativa desta, o segundo indica

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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a forma passiva. Vale lembrar que Freud coloca a perversão como um modo de satisfação da
pulsão que não está condicionado à zona erógena genital. A perversão, portanto, é um
componente constituinte da sexualidade e somente torna-se uma questão patológica caso haja
fixação em um modo de satisfação pulsional que substitua o genital, ou quando o modo de
satisfação supera as resistências de asco, vergonha e horror. Mesmo nestes últimos casos, não
se pode dizer que os autores das fantasias perversas possam apresentar quadros de doenças
mentais, pois pode-se encontrar condutas patológicas no campo da sexualidade, sem que a falta
de normalidade – termo que o próprio Freud usa para dizer das pessoas não perversas, ou seja,
sem a fixação libidinal nesse modo de satisfação – esteja presente em outros campos da vida
do sujeito.
Anteriormente a Freud, e mesmo hoje em algumas psicologias, alega-se que nos
neuróticos haveria uma coincidência entre a sexualidade e a pulsão sexual normal (não
perversa). No entanto, nas neuroses, os sintomas representam “a expressão convertida de
pulsões que seriam designadas de perversas (no sentido mais lato) se pudessem expressar-se
diretamente, sem desvio pela consciência, em propósitos de fantasias e ações” (Freud, 1905b,
p. 157). Daí Freud afirma que a neurose é o negativo da perversão, ou seja, a neurose é uma
tentativa de inibir a pulsão sexual, precisamente a pulsão sexual perversa.
Freud (1905b) escolhe usar os termos sadismo e masoquismo no mesmo sentido que
foram empregados por Krafft-Ebing, que coloca o prazer em qualquer forma de humilhação e
sujeição, diferente de outros autores que usam o termo ‘algolagnia’, que designa, mais
especificamente, o prazer na dor. No caso do sadismo, ele é facilmente identificado em pessoas
não perversas, principalmente nos homens, nos quais a sexualidade se mescla a uma cota de
agressão. O sadismo, portanto, é “um componente agressivo autonomizado e exagerado da
pulsão sexual, movido por deslocamento para um lugar preponderante” (Freud, 1905b, p. 149).
Já o masoquismo “abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto
sexual, a mais extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento
de dor física ou anímica advinda do objeto sexual” (Freud, 1905b, p. 150). Freud se pergunta
se podemos considerar o masoquismo como um fenômeno primário e até 1924, conserva a ideia
de que o masoquismo é derivado do sadismo, ou seja, é um sadismo realizado contra o próprio
eu.
O par sadismo e masoquismo ganha um destaque especial, pois mostra o contraste entre
atividade e passividade que está na base da vida sexual dos sujeitos. Além disso, Freud nos
esclarece que as formas ativa e passiva dessa perversão se encontram presentes numa mesma
pessoa, ou seja, o sádico é também um masoquista que teve o caráter ativo predominante.
40

Esse par de opostos é reelaborado em 1915, em “As pulsões e seus destinos”. Nesse
texto, Freud (1915/2015)23 mostra quais são os destinos pulsionais24 possíveis além da
satisfação direta da pulsão, sendo eles: reversão ao seu contrário, retorno em direção ao próprio
eu, recalque e sublimação. A reversão ao seu contrário pode ser da atividade para a passividade
ou a inversão de conteúdo do amor para o ódio. No caso do par sadismo e masoquismo,
encontramos a reversão da atividade para a passividade, bem como o retorno ao próprio eu.
Freud divide essa transformação em três momentos: 1) Violência (humilhação, etc) dirigida
para outra pessoa tomada como objeto (sadismo); 2) Abandono do objeto e retorno da pulsão
para o próprio eu: aqui há a transformação da atividade para a passividade; 3) Encontro de uma
pessoa que deverá fazer o papel de sujeito. Há aqui a transformação do sádico em masoquista.
Freud (1915) considera que todo masoquista foi um sádico um dia, mas que por alguma
razão ligada ao sentimento de culpa, teve que abandonar esse modo de satisfação ativo. “Nele,
a satisfação também ocorre pela via do sadismo original, na medida em que o Eu passivo põe-
se, no plano da fantasia, em seu lugar anterior, que agora foi deixado para outro sujeito” (Freud,
1915, p. 37). Aqui já podemos questionar a passividade no masoquismo, pois parece que, no
campo de sua fantasia, é o masoquista que desenha como se dará sua posição passiva. Isso se
assemelha à ideia de que a libido é sempre ativa, ainda que tenha fins passivos, o mesmo que
Freud elabora em relação ao feminino.
Em 1919a, Freud faz um grande avanço na elaboração do masoquismo, localizando as
fantasias sádicas e masoquistas tanto na histeria como na neurose obsessiva – “A representação
fantasística: ‘bate-se numa criança’ é admitida com surpreendente frequência por pessoas que
procuram tratamento analítico por causa de uma histeria ou uma neurose obsessiva” (Freud
1919a, p. 123). Essas fantasias são inconscientes, misturam prazer e repugnância e são
posteriormente recalcadas. Elas são admitidas pelos pacientes somente com muita hesitação e
não é possível localizar com certeza seu início, mas ela emerge na primeira infância. Lacan
(1957-58) esclarece que Freud segue acompanhando as transformações da economia da fantasia
‘bate-se numa criança’ articulando-as às etapas do Édipo: o primeiro tempo localiza-se antes do
processo edípico, o segundo está ligado ao Édipo e o terceiro tempo trata-se de depois da saída
do processo edipiano.

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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No desenvolvimento de sua metapsicologia, Freud elabora duas dualidades pulsionais. No texto de 1915,
formaliza a repartição das pulsões em auto-conservação (ou pulsão do eu) e pulsão sexual, que já vinham sendo
trabalhadas até então. Em 1920, ele inaugura a segunda versão da dualidade pulsional: pulsão de vida e pulsão de
morte.
41

É interessante como Freud (1919a) busca localizar o masoquismo na neurose,


localizando nela traços primários de perversão. A fantasia de espancamento é divida em 3
estágios e vão sendo modificados nesse processo o autor da fantasia, o objeto dela, o seu
conteúdo e o seu significado. O que lhe interessa são as transformações dessa fantasia. Freud
explicará a fantasia, primeiramente, a partir das mulheres que constituem maior parte de seus
casos, e depois esclarece alguns pontos da fantasia masculina.
O primeiro estágio localiza-se em um tempo muito remoto da infância e se tem escassas
informações sobre ele, mas o que está em questão é a fantasia de que uma criança está sendo
espancada. A criança que apanha não é a autora da fantasia e o agente da surra é indeterminado,
vindo mais tarde a ser reconhecido como o pai da menina. Pode-se enunciar essa fase assim:
“O [meu] pai está batendo na criança” (Freud, 1919a, p. 130). Freud questiona se podemos
atribuir a essa fase preliminar o estatuto de fantasia ou se trata de lembranças de eventos, mas
diz que essa diferenciação não importa. Nessa fase, a menina encontra-se ligada ao amor e ao
ciúme de outra criança que desvia o pai dela, por isso, a frase enunciada pode ser completada
como: ‘o meu pai está batendo numa criança que eu odeio’. O conteúdo e o significado dessa
fase são: “meu pai não ama essa criança, ele só ama a mim” (Freud, 1919a, p. 133, destaque
do autor). Ela não é puramente sexual, já que contém também uma carga de ciúmes da criança
em relação a outras, contudo, essa fase já está a serviço de uma excitação que pode encontrar
uma descarga via masturbação. Lacan (1957/58) destaca que o pai já está presente mesmo antes
do complexo de Édipo e que sua intervenção exerce um valor primordial para o sujeito.
No segundo estágio, o agente se mantém, o pai, mas muda a criança em questão na cena:
quem apanha é a autora da fantasia. Trata-se de uma fantasia prazerosa que seria enunciada
assim: “Estou sendo surrada pelo meu pai” (Freud, 1919a, p. 131), tendo um caráter masoquista,
diferente da primeira. A passagem do primeiro para o segundo estágio se dá com a ajuda do
sentimento de culpa, que surge juntamente com o recalcamento do amor incestuoso. Ele
encontra na inversão do ‘meu pai bate em outra criança porque ama somente a mim’ para ‘agora
ele está me batendo’ uma forma de castigo para o eu, transformando a fantasia em masoquista.
O sentimento de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo, mas não somente
ele, soma-se também o conteúdo erótico. O recalque da fantasia incestuosa comporta também
uma regressão da organização genital,

O que era: “meu pai me ama” foi dito no sentido genital, e através da regressão se transforma
em: ‘Meu pai me bate’ (estou apanhando do meu pai). Esse “ser surrado” é agora um encontro
do sentimento de culpa com o erotismo, ele não é apenas o castigo pela relação genital
proibida, mas também seu substituto regressivo, e dessa última fonte a fantasia recebe a
42

excitação libidinal que, de agora em diante, se aderirá a ela e encontrará descarga em atos
onanistas. Mas essa é, pois, a essência do masoquismo (Freud, 1919a, pp. 135-136, destaque do
autor).

Essa fantasia permanece inconsciente devido à força do recalque, ela é a fase mais
importante e nunca teve existência real, sendo uma construção feita em análise. Ao ser
reconstruída, ela pode indicar um retorno do desejo edipiano na menina (Lacan, 1957-58), o
que faz sentido, já que Freud mostrou que o complexo de Édipo da menina não é totalmente
destruído como do menino. Freud acrescenta que, nessa segunda a fase, há uma inversão a mais
no caso dos meninos, já que eles precisam substituir a atividade pela passividade.
Na última fase, o pai é substituído por um terceiro, por exemplo, um professor, ou o
agente fica desconhecido e a autora da fantasia também não aparece mais na cena. Quando
relatam a cena, as pacientes dizem à Freud que, provavelmente, estão apenas olhando a surra.
Nela, há uma regressão à primeira fase por conta do recalcamento da fase intermediária, e ela
significa: “meu pai está batendo em outra criança, ele só ama a mim” (Freud, 1919a, p. 137).
Porém, aqui, a fantasia toma a forma sádica, com um modo de satisfação masoquista, pois as
crianças que apanham são substitutas da própria pessoa. Nesse estágio, a fantasia é
acompanhada de excitação sexual e proporciona satisfação masturbatória. Na realidade, não é
a fustigação real que causa a excitação, já que anos mais tarde, ao se deparar com uma cena em
que uma criança é espancada, há mesmo uma “aversão, um desviar de olhos” (Lacan, 1957-58,
p. 250), mas sim o caráter simbólico erotizado da cena.
Esse processo, na última fase, é complicado para a menina, pois ao afastar-se do amor
ao pai, ela reaviva o complexo de masculinidade, rompendo com o papel feminino, e então,
quer ser menino. Não à toa, a criança que apanha é um menino.
Nesse texto, há uma primeira tentativa de equivaler o processo feminino com o
masculino, no entanto, a partir do estudo de casos de masoquismo em homens, Freud (1919a)
conclui que não é possível seguir uma analogia, já que os homens masoquistas assumem o papel
de mulher tanto na fantasia como nas encenações e, portanto, “seu masoquismo coincide com
uma posição feminina” (p. 145, destaque do autor). Lacan (1957-58), ao falar da fantasia
masoquista de alguns homens, complementa essa posição freudiana:

Não é pelo fato de os masoquistas manifestarem, em suas relações com o parceiro, certos sinais
ou fantasias de uma posição tipicamente feminina que, inversamente, a relação da mulher com
o homem é uma relação masoquista. Nas relações entre homem e mulher, a ideia de que a mulher
é alguém que recebe pancadas pode muito bem ser uma perspectiva do sujeito masculino, na
medida em que a posição feminina o afeta (p. 257).
43

Assim, não há uma equivalência entre feminino e masoquismo na proposta freudiana,


mas talvez o que Freud afirme é que há uma coincidência entre masoquismo e posição feminina,
ligados aí por um modo de satisfação com fins passivos. Lacan (1957-58), na passagem acima,
complementa que é o homem que busca a ideia de uma mulher masoquista. Veremos que, na
década de 70, Lacan eleva o masoquismo feminino ao estatuto de fantasia masculina.
Em 1924, Freud (1924b/2016)25 reelabora alguns pontos sobre o masoquismo, trazendo
uma correção em relação à inexistência de um masoquismo primário, e ainda nos aponta,
explicitamente, a afinidade entre masoquismo e feminino. Cabe esclarecer que este texto é
produzido após a elaboração da noção de pulsão de morte em 1920, bem como após o desenho
da segunda tópica do aparelho psíquico formalizada em 1923. A questão de que parte o texto é
referente às complicações que o masoquismo traria para o campo econômico do psiquismo –
“É perfeitamente razoável, numa ótica econômica, designarmos como enigmática a existência
de um anseio masoquista na vida pulsional humana” (Freud, 1924b, p. 287), pois o princípio
do prazer que domina a vida psíquica tem como meta a evitação do desprazer. Freud buscará a
resposta para essa questão a partir da dualidade pulsional elaborada na segunda tópica: pulsão
de vida e pulsão de morte.
Nesse momento, o masoquismo apresenta três diferentes configurações: o masoquismo
erógeno, o masoquismo feminino e o masoquismo moral. Freud (1924b) inicia a explicação
pelo masoquismo feminino, que se tornou conhecido por ele a partir da fantasia de pacientes
homens.
No masoquismo feminino, as atividades do sujeito masoquista coincidem com as
fantasias, tendo como conteúdo manifesto “ser amordaçado, amarrado, dolorosamente
espancado, açoitado, de alguma maneira maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado
e humilhado” (Freud, 1924b, p. 290). Em fantasias mais ricamente elaboradas, também podem
surgir como conteúdo “uma situação característica da feminilidade [que] significam: ser
castrado, ser possuído sexualmente ou dar à luz” (Freud, 1924b, p. 291). Essa configuração de
masoquismo baseia-se no masoquismo erógeno.
O masoquismo erógeno, ou primário, trata-se da obtenção de prazer na dor. Essa forma
de obtenção de prazer, que originalmente contrariaria o princípio do prazer, pode ser entendida
a partir do amalgamento da pulsão de morte com a libido. A pulsão de morte pode ser desviada
para o mundo externo com a ajuda da libido, colocando-a a serviço da função sexual. Entretanto,

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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uma parte dessa porção pulsional não se direciona para fora e permanece no organismo ligada
libidinalmente a ele, e é nesse montante pulsional que podemos encontrar o masoquismo
erógeno e originário. Com isso, Freud (1924b) faz uma correção de que o masoquismo seria
secundário, derivado de um retorno do sadismo sobre o próprio eu.
Diferente das duas primeiras configurações de masoquismo que estão enlaçados com a
sexualidade e que tem como condição que o sofrimento venha da pessoa amada, no masoquismo
moral o que conta é o sofrimento em si, “o verdadeiro masoquista sempre oferece sua face
quando vê a oportunidade de receber uma bofetada” (Freud, 1924b, p. 294-5). Freud o relaciona
com o supereu e com o sentimento inconsciente de culpa.
Desse texto, pode-se incorrer o erro de interpretar que o masoquismo é inerente ao
feminino, supondo que a mulher obteria satisfação ao ser humilhada, agredida e aviltada. O que
Freud (1924b) afirma, no entanto, é que tanto o feminino como o masoquismo teriam como
características centrais a busca de satisfação por um meio passivo. Ele também assemelha o ser
castrado e seu correlato, ser cegado, a uma fantasia masoquista, mostrando a afinidade disso
com o feminino. Daí, assimilam-se ambos – o masoquismo e o feminino – com a marca de um
menos, da falta. Essa marca do menos acompanhará toda a elaboração de Freud em torno da
questão feminina.
Freud (1933[32]) faz outra aproximação entre masoquismo e feminino. Ele diz que tanto
pela via constitucional como por uma imposição social há uma supressão da agressividade nas
mulheres que “favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem
ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro. Assim, o
masoquismo, como dizem as pessoas, é verdadeiramente feminino” (Freud, 1933[32], p. 117).
Em sequência, ele diz que o masoquismo é muito encontrado em homens, e que sobre isso só
resta dizer que esses homens apresentam traços femininos. Assim, longe de dizer que as
mulheres ou mesmo o feminino é masoquista, ele aponta que há uma afinidade num modo de
satisfação com finalidade passiva, tanto no modo feminino quanto no masoquismo.

2.1.4. O amor e a mulher em Freud.

Freud localizou, em alguns momentos de sua obra, a diferenciação entre a forma de


amar do homem e da mulher, e também como a constituição da feminilidade passa pelo
encontro amoroso com um homem. Como nosso tema trata de pensar o ato e o feminino,
considerando uma estrita relação com a parceria amorosa, acreditamos ser essencial trazer aqui
45

dois pontos: a relação da angústia feminina frente à falta de amor e a proposição de que ser
amada é mais importante que amar para a mulher.
Em “À guisa de introdução ao narcisismo”, Freud (1914a/2004)26 elabora um conceito
essencial para sua metapsicologia, colocando o narcisismo como um período necessário do
desenvolvimento libidinal, no qual o investimento da libido se dá no eu. Importante diferenciar
que no período do autoerotismo não há ainda um eu formado e por isso a satisfação pulsional
se dá de forma anárquica e parcial, sendo uma satisfação do órgão, já que o eu enquanto unidade
ainda não se constituiu.
Nesse texto, há a inserção da diferenciação das duas classes de libido – a libido do eu e
a libido objetal. A distinção entre elas não reside em uma dessexualização da libido, mas no
objeto de investimento, pois enquanto a primeira investe no próprio eu como objeto de amor, a
segunda é investida em objetos externos. A vida amorosa dos sujeitos “com toda sua rica
diferenciação no homem e na mulher” (Freud, 1914a, p. 107) é uma via de acesso ao estudo
desse período do desenvolvimento psicossexual. Freud divide o narcisismo em dois tipos: o
primário, que é a fase intermediária entre o autoerotismo e o investimento libidinal, e o
secundário, quando há uma retomada da libido sobre o próprio eu, após ela já ter sido investida
nos objetos.
A escolha de objeto sexual se dá precocemente na criança, que adota seus objetos com
base nas primeiras experiências de satisfação pulsional. Ainda num período precoce do
desenvolvimento, a pulsão sexual se satisfaz apoiando-se nas pulsões do eu, tornando-se
independente somente mais tarde. Com isso, é comum que a mãe seja o primeiro objeto de
amor, tornando-se o modelo para os investimentos posteriores. A esse modo de escolha que
toma como modelo a mulher que alimenta, Freud (1914a) nomeou como escolha por veiculação
sustentada ou escolha anaclítica. Inclui-se nela também a escolha objetal que toma como
modelo o homem protetor.
Contudo, tomando como base os perversos e os homossexuais, Freud (1914a) descobre
um tipo de escolha de objeto que não toma por base as experiências de satisfação com a mãe,
mas sim a própria pessoa, pois “procuram abertamente a si mesmo como objeto de amor [e]
exibem um tipo de amor a ser chamado de narcísico” (p. 107, destaque do autor). Esse modo
de amar não é exclusivo dos perversos e dos homossexuais, e nele incluem-se mais alguns

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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elementos: 1) ama-se o que se é; 2) ama-se o que se foi; 3) ama-se o que gostaria de ser e 4)
ama-se a pessoa que um dia fez parte de si próprio – um filho para uma mulher.
Os dois modos de escolha de objeto não são excludentes, mas um ou outro caminho irá
ser dominante em cada sujeito. E aí reside a diferença do amor na mulher e no homem, embora
essa diferença não seja universal, adverte Freud (1914a). Para a mulher, há uma prevalência da
escolha narcísica, e para o homem, da escolha por veiculação sustentada/anaclítica.
No modo de amar anaclítico, há uma transferência do narcisismo para o objeto com
supervalorização sexual deste, permitindo o surgimento da paixão, o que leva a um
empobrecimento da libido do eu. No caso da mulher, há uma diferença. Freud (1914a) adverte
que, na puberdade, há uma intensificação do narcisismo da menina, pois com a maturação dos
órgãos sexuais femininos antes latentes, se estabelece uma dificuldade da valorização do objeto
sexual, o que é necessário para a “estruturação de um amor objetal regular” (p. 108). Quando a
mulher cresce bela, nas palavras de Freud, produz-se nela uma autossuficiência que
compensaria a restrição social que as mulheres sofrem no momento de escolherem seus objetos
de amor na vida adulta. Essas mulheres amariam somente a si próprias e aos homens que as
amam, na mesma intensidade. O que Freud localiza aqui é que o que está em jogo para a mulher
é mais ser amada do que amar e, com isso, aceitam de bom grado o homem que preencher a
posição de amá-las. Mais adiante no texto, ele diz que não tem como objetivo depreciar as
mulheres e admite que há um número de mulheres que amam segundo o modelo masculino.
Freud (1914a) prossegue afirmando que algumas mulheres narcísicas se mantêm
indiferentes em relação ao homem, havendo a possibilidade de encontrar o amor objetal através
da maternidade. “A criança que gerará apresentar-se-á diante delas como se fosse uma parte de
seu próprio corpo, na forma de outro objeto, e, assim, partindo do seu próprio narcisismo, elas
podem dedicar-lhes todo o seu amor objetal” (Freud, 1914a, p. 109). Há, ainda, uma terceira
forma de amar feminina, e nela, as mulheres que se sentiam e se desenvolveram de modo
masculino até antes da puberdade interrompem este modo de desenvolvimento “quando
entraram no período de maturação da feminilidade” (Freud, 1914a, p. 109), sendo que o que
resta a elas é almejar um ideal masculino e investir a libido no objeto que o componha, ou seja,
escolhem o parceiro baseado no modelo de homem que gostariam de ter sido.
Nesse texto, mostra-se um descompasso no campo das parcerias amorosas, pois Freud
(1914a) indica que a mulher narcísica exerce sobre o homem uma grande atração não somente
pela sua beleza física, mas por sua interessante “constelação psicológica” (p. 108). Esse fascínio
comporta seu reverso, pois o homem apaixonado por essa mulher narcísica carrega uma
insatisfação de não ter certeza do amor dela por ele e destila queixas em torno do enigma que
47

ela carrega. Isso se dá por uma razão: “a incongruência entre esses dois tipos de escolha objetal”
(Freud, 1914a, p. 109).
Dessa forma, além de evocar a mulher como mais narcisista que o homem, Freud
(1914a) levanta a importância do amor para uma mulher, mas dá um giro. Não se trata da
importância de amar, mas de ser amada, de ser reconhecida como objeto de amor de um homem,
que lhe forneceria a chave para a saída da feminilidade normal. Esse ponto de ser tomada como
objeto de amor por um homem foi insuportável para Dora, por exemplo. Não à toa, pode-se
pensar que ela estanca em alguns pontos da construção de sua feminilidade.
Em “Inibição, Sintoma e Angústia”27, Freud (1926) busca diferenciar e compreender a
correlação entre esses três termos. A inibição como uma restrição relativa às funções do ego,
podendo vir ou não a ser um sintoma. O sintoma em sua relação com o recalcado, como uma
formação substitutiva à ideia recalcada. A angústia, por sua vez, como um afeto não recalcado,
um sinal.
Na psicanálise freudiana, há duas diferentes teorias sobre a angústia: uma primeira que
vai desde o início de sua construção teórica até 1917 (que ganha uma formalização com a
conferência XXV – A ansiedade), e a segunda, formulada no texto supracitado – Inibição,
Sintoma e Angústia.28
Em 1926, a angústia é tomada como um afeto não recalcado, ela é algo que se sente e
que possui um caráter de desprazer, sendo acompanhada de sensações físicas. Freud (1926)
adverte que, no entanto, nem todo desprazer pode ser chamado de angústia, sendo que ela possui
aspectos próprios, “algo não muito óbvio, cuja presença é difícil de provar e que, contudo, ali
se encontra com toda sua probabilidade” (p. 131). Lacan (1962-63) afirma que a angústia é um
afeto que não engana, ainda que o sujeito não saiba a causa da angústia, ele sabe que está
angustiado.
Freud (1926) designa que há, no estado de angústia, o caráter do desprazer, seguido de
atos de descarga por trilhas específicas, e a percepção destes atos, sendo que a angústia é
acessível à consciência. Trata-se de uma reprodução de uma experiência anterior que exigiu o

27
Esclarecemos que quando usamos textos da edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, da editora Imago, o termo que foi traduzido por angst foi ansiedade. No entanto, não se trata de uma
tradução correta. Para que possamos deixar a leitura mais fluida iremos alterar automaticamente ansiedade por
angústia mesmo quando houver uma citação literal e, neste caso, a tradução correta angústia virá entre colchetes.
Também optamos fazer o mesmo com os termos: ego, superego, id, instinto e repressão. Eles serão escritos
conforme e melhor tradução: eu, supereu, isso, pulsão e recalque. Destacamos que este último termo será alterado
apenas quando de fato se tratar do recalque, já que o termo repressão também é de uso corrente em psicanálise,
mas com um sentido diferente.
28
A angústia será um eixo essencial do nosso trabalho, já que ela é um importante operador teórico. Dedicaremos
uma seção para ela em nosso último capítulo.
48

aumento da excitação e a descarga por essas trilhas, e Freud toma o nascimento como a
experiência prototípica dos estados de angústia. O nascimento é, então, o momento inaugural
da angústia, pois nele, o bebê é lançado numa situação de total desamparo, com um excesso de
estímulos que ele ainda não consegue descarregar sozinho.
A angústia é “um sinal para a evitação de uma situação de perigo” (Freud, 1926, p.137).
Freud descreve que, na criança, as manifestações da angústia surgem quando ela está sozinha,
ou no escuro, ou quando encontra uma pessoa desconhecida. Essas três situações podem ser
reduzidas, na verdade, à condição de sentir falta de alguém que é amado. O perigo é, então, a
situação que pode levar ao estado de desamparo.
Freud (1926) desdobra, de sua leitura da angústia, um ponto que nos é importante nesta
tese: “É precisamente nas mulheres que a situação de perigo da perda do objeto parece ter
permanecido mais efetiva” (p. 141). Aqui, Freud (1926) faz referência ao complexo de
castração e como ele impele a menina a fazer uma tenra catexia objetal com o pai. Não à toa, a
perda do objeto de amor torna-se tão perigosa para a mulher, pois a construção de sua
feminilidade passa, exatamente, pelo direcionamento a um homem. A mulher encontra-se
desamparada, já que ela não possui um significante que lhe diga de sua feminilidade, uma vez
que o único significante em jogo é o falo, o que marca a mulher com um menos.
Ao pensar a angústia nas mulheres, Freud (1926) procede uma pequena modificação,
pois, na mulher, não se trata do perigo de perder o objeto, mas de perder o amor dele. Com isso,
coloca de vez a importância do amor para as mulheres.

2.1.5. Lady Macbeth e a mulher na psicanálise freudiana.

A partir das elaborações levantadas nesta seção, podemos verificar como o


desenvolvimento sobre a feminilidade por Freud segue o próprio desenvolvimento da teoria
psicanalítica. O enigma sobre a mulher tanto desafiou Freud que ele confessou à Marie
Bonaparte que a grande questão que continuava para ele é sobre o que quer uma mulher, ou
seja, por mais que a própria fundação da psicanálise tenha começado pelo atendimento às
mulheres histéricas, o enigma sobre o desejo feminino permaneceu em suspenso para ele.
Dizer que a questão sobre a mulher permaneceu em suspenso não significa que Freud
não tenha desenvolvido importantes pontos sobre o tema. É de extrema importância o modo
como ele eleva o feminino a um devir, ou seja, ele coloca em pauta a importância de se pensar
a construção da feminilidade não como um fato dado. A feminilidade em Freud tem duas
49

marcas nessa construção: 1) ela é uma transformação da sexualidade masculina, e 2) ela é


pautada pelo déficit – a ausência do falo.
É digno de nota que Freud coloca a feminilidade como uma construção não somente
para a mulher, mas também para o homem que não reconhece desde o princípio o sexo
feminino. Afinal, é assim que, ao constatar a ausência do falo na mulher, surge o horror e a
depreciação do sexo feminino.
Concluímos também que é inegável que Freud tenha usado dos instrumentos que
dispunha em sua época para sustentar e construir sua teoria das diferenças sexuais, e imputa, à
mulher, características socialmente partilhadas sobre o feminino. Essas características já foram
apontadas por nós, mas no texto “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho analítico”,
isso fica mais evidente, quando Freud refere-se à Lady MacBeth.
Nesse texto, Freud (1916) propõe que existem diferentes tipos de caráter encontrados
pelo analista quando empreende o tratamento psicanalítico. Ele elenca três tipos de caráter mais
surpreendentes: as exceções, os arruinados pelo êxito e os criminosos em consequência de um
sentimento de culpa. É a partir do segundo que ele se refere à Lady Macbeth, personagem de
peça “Macbeth” de William Shakespeare (1564-1616). Macbeth era general do exército do rei
da Escócia e a peça se inicia com três bruxas decidindo que irão se encontrar com ele após ele
ganhar uma batalha. Num campo, Macbeth estava com o general Banquo quando as bruxas
surgem e o saúdam como Thane (Barão) de Cawdor, um título da nobreza, e a terceira bruxa
ainda lhe diz: “Viva Macbeth, que há se de ser rei mais tarde” (Shakespeare, 2000, p. 16).
Macbeth, assustado, silencia-se, enquanto Banquo indaga as bruxas sobre seu próprio destino,
escutando como resposta: “gerarás reis, embora rei não seja! Assim, Viva Macbeth, viva
Banquo!” (p. 17).
Essas bruxas não só anunciam, mas de fato determinam o futuro de Macbeth e também
de Banquo. Antes de poder inquiri-las sobre a predição, elas desaparecem no ar e logo em
seguida mensageiros do rei encontram Macbeth e o nomeiam como Barão de Cawdor. Macbeth
escreve uma carta a sua esposa, Lady Macbeth, anunciando a ela a profecia das bruxas e sua
nomeação. Enquanto Lady Macbeth lia a carta, um mensageiro anuncia que o rei Duncan
chegará a sua casa naquela noite e, imediatamente, ela se decide pelo crime de matar o rei,
tornando seu marido rei e ela rainha: “Rouco está o próprio corvo que crocita a chegada fatídica
de Duncan à minha fortaleza. Vinde espíritos que os pensamentos espreitais de morte, tirai-me
o sexo, cheia me deixando, da cabeça até os pés da mais terrível crueldade!” (Shakespeare,
2000, p. 27, destaque nosso).
50

Freud (1916) comenta que, nessa passagem, Lady Macbeth “se mostra pronta a
sacrificar até mesmo sua feminilidade à sua intenção assassina, sem refletir no papel decisivo
que esta feminilidade deverá desempenhar quando posteriormente surgir a questão de preservar
a finalidade de sua ambição, alcançada através de um crime” (p. 333). Ele aponta que essa
crueldade é desvinculada da feminilidade, e que ela mesma indica isso na passagem ‘tirai-me o
sexo’ ou ‘dessexuai-me’, como consta na tradução de Jayme Salomão das obras completas de
Freud editadas pela Imago.
A personagem não hesita em relação ao cometimento do crime e é quem avança quando
o marido recua com medo de matar o rei. Tomado de coragem pelas palavras da esposa,
Macbeth entra no aposento onde o rei Duncan e a rainha dormiam e os mata. Após o ato,
Macbeth fica abalado e a esposa toma o controle da situação. Eles, que haviam embebedado os
guardas do rei, colocam os punhais ensanguentados em suas mãos e vão embora. Pela manhã,
quando vai aos aposentos do rei e da rainha junto com Macduff, outro nobre, Macbeth encontra-
os mortos e assassina os guardas sem lhes dar a chance de se dizerem inocentes. Os filhos do
rei fogem com medo e tornam-se suspeitos, deixando livre o caminho para que Macbeth assuma
o trono. Com medo de que a profecia se realize por completo, Macbeth manda matar Banquo,
que planejava fugir com seu filho, por também temer as consequências dos presságios das
feiticeiras.
Freud (1916) destaca que Lady Macbeth, após assumir o trono como rainha, é arruinada.
É ela quem dá coragem e suporte ao marido que fica atormentado após o ato, mas depois de
algum tempo, ela também se atormenta, ou seja, após o êxito, ela é arruinada. No ato 5, Lady
Macbeth, em estado de sonambulismo, enquanto lava as mãos, diz:

Sai, mancha amaldiçoada! Sai! Estou mandando. Um, dois… sim, já é tempo de fazê-lo o
inferno é sombrio… Ora, marido! Ora! Um soldado ter modo? Por que termos medo de que
alguém venha a saber, se ninguém poderá pedir contas a nosso poder? Mas quem poderia
imaginar que o velho tivesse tanto sangue no corpo? […] Estas mãos nunca ficarão limpas?
Basta, senhor; não falemos mais nisso. Estragais tudo com essa vacilação. […] Aqui ainda há
odor de sangue. Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixar cheirosa esta mãozinha
(Shakespeare, 2000, p. 27, p. 114-115).

Nessa cena, fica claro o estado de perturbação da rainha, que se mata no final. É curioso
que, desde o planejamento até a execução do regicídio, não há nenhuma vacilação por parte de
Lady Macbeth. Ao contrário, é ela quem apazigua o marido nos momentos em que ele se
desespera ou se apavora. A partir daí, Freud (1916) pergunta “o que foi que quebrantou esse
caráter que parecia ter sido forjado do metal mais rijo?” (p. 335). A profecia das bruxas dizia
que era Banquo quem teria filhos reis, no entanto, Macbeth esperava ter filhos com sua esposa
51

e, ao ouvir Macduff dizer que ele não os teria, isso “toca também no único ponto fraco do
caráter insensível de sua esposa” (Freud, 1916, p. 335).
Tendo exilado o nobre Macduff por causa do perigo que lhe inspirava suas suspeitas,
Macbeth manda matar sua mulher e todos os seus filhos que haviam ficado em seu castelo.
Desolado, Macduff grita sobre o casal criminoso: "Ele não tem filhos!". Macbeth não teve
filhos. Teria Lady Macbeth sofrido a dessexualização que exigira dos espíritos malignos para
poder perpetrar o assassinato? Sem filhos, o crime que cometem é insuficiente para satisfazer a
ambição que tinham. Eles desejavam mais que o poder de governar: queriam uma dinastia para
poder perpetuá-lo. Sem isso, era como se tivessem cometido em vão seus crimes, pois os filhos
de outros seriam favorecidos com a descendência real. Macbeth chega a dizer: “Na cabeça
puseram-me a coroa sem frutos e nas mais o cetro estéril para que me arrebate um punho
estranho, pois para herdeiro nenhum filho tenho. Se for assim, para a posterioridade de Banquo,
tão-somente sujei a alma; matei para eles o gracioso Duncan!” (Shakespeare, 2010, p. 60).
Nessa lógica, quando Lady Macbeth se dessexualiza para realizar o cruel regicídio, ela abre
mão da maternidade, ligada aí com a feminilidade. É sobre esse ponto que gira a obra
shakespeariana, pois sem filhos, sua ambição é sem sentido. Sobre a dessexualização da rainha,
diz Freud (1916):

Creio que a doença de Lady Macbeth, a transformação de sua impiedade em penitência, poderia
ser explicada diretamente como uma reação a sua infecundidade, pela qual ela se convence de
sua impotência contra os ditames da natureza, sendo ao mesmo tempo lembrada de que foi
através de sua própria falta que seu crime foi roubado da melhor parte de seus frutos (p. 337).

Parece que Freud (1916) imputa a crueldade dela à sua infecundidade e, mais que isso,
ele imputa à infertilidade de Lady Macbeth o móvel da ação da peça, pois somente alguém fora
do campo da maternidade seria capaz de tais ações. O que parece que está em jogo aqui é como
Freud a exclui do campo feminino, já que ela demonstra uma separação radical da maternidade.
Esse ponto é importante para nossa tese, já que quando dizemos de uma afinidade entre
o ato e o feminino, não eximimos os atos cruéis, como veremos com Medeia. Talvez haja aí um
ponto de dissonância em relação a Freud, pois apostamos que frente à angústia da perda do
amor, atos mais diversos possam emergir em uma mulher, sem que necessariamente ela abra
mão de sua feminilidade. Lady Macbeth nos ensina como uma mulher pode fazer tudo por seu
parceiro, se inscrevendo no campo feminino e se distanciando radicalmente do campo da
maternidade. Destacamos também que ela é colocada como uma mulher ambiciosa, mas comete
seu ato a partir de uma provocação do marido que estava destinado a ser rei. Parece que ela se
52

aproxima mais daquilo que seria uma loucura feminina ao não colocar limites nas concessões
que uma mulher faria a seu homem (Lacan, 1975/2003)29, mesmo que essa concessão seja abrir
mão de sua maternidade. Lady Macbeth nos abre toda uma via para a psicanálise lacaniana.
Vamos a ela.

2.2. Jacques Lacan e o feminino

Jacques Lacan, psicanalista francês, contribui essencialmente para pensar a questão do


feminino em psicanálise. Em um primeiro momento, ainda quando fazia seu retorno a Freud
criticando as distorções realizadas pelos psicólogos do ego, ele se aproxima da forma freudiana
de compreender a divisão sexual, mantendo o falo como eixo norteador. Porém, após esse
primeiro tempo, Lacan avança e, mesmo sem romper como o falo, ele demonstra que a mulher
está localizada num além do falo. Também optamos aqui por trazer alguns elementos sobre o
tema vinculados à leitura do caso Dora.

2.2.1 Dora com Lacan – o que quer uma mulher?

Lacan dedicou-se, durante seu período de retorno a Freud, a trabalhar alguns elementos
do caso Dora, e nos interessa, aqui, destacar as contribuições que essa leitura nos fornece em
relação à teorização sobre o feminino, sem adentrar nos aspectos clínicos da histeria. Nesse
sentido, temos como principal ponto o modo como Dora precisa da Sra. K. para constituir sua
feminilidade corporal.
Em “O seminário, livro 3 – as psicoses”, Lacan (1955-56/2002)30 descreve que a questão
neurótica gira em torna da construção da sexualidade: “Quem sou eu? Um homem ou uma
mulher? E sou eu capaz de gerar?” (p. 195). Essa pergunta só é possível de ser feita porque a
sexualidade está ligada ao reconhecimento simbólico e não é um dado da natureza:

Se o reconhecimento da posição sexual do sujeito não está ligado ao aparelho simbólico, a


análise, o freudismo, não tem mais porque existir, não significam absolutamente nada. O sujeito
encontra seu lugar num aparelho simbólico pré-formado que instaura a lei na sexualidade. E

29
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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essa lei não permite mais ao sujeito realizar sua sexualidade senão no plano simbólico. É o que
quer dizer o Édipo (Lacan, 1955-56, p. 195).

Lacan (1955-56) reitera aqui a construção freudiana de que há um processo de


construção da sexualidade, mas usa os recursos que Freud ainda não dispunha em sua época. A
pergunta fundamental, sou homem ou mulher, se dá para ambos os sexos e “a mulher se
interroga sobre o que é ser uma mulher da mesma forma que o sujeito macho se interroga sobre
o que é ser uma mulher” (Lacan, 1955-56, p. 197), e essa questão está evidenciada em Dora. A
histeria facilita o caminho para encontrar essa resposta, já que nessa estrutura a mulher está
identificada imaginariamente ao pai, por um desvio. A histeria é, portanto, uma das respostas
possíveis para a questão feminina, pela via de sua negação. É por essa interrogação que a mulher
faz sobre o que é ser mulher que Lacan (1958b) poderá dizer que ela é Outro para ela mesma.
Quando Freud assumiu ter se equivocado em relação ao desejo de Dora, isso aconteceu
porque ele não se indagou quem desejava em Dora, já que ela desejava a Sra. K. estando
identificada imaginariamente ao Sr. K. Somente a partir dessa identificação, podemos
compreender os sintomas orais da jovem. A afonia não surge em razão do Sr. K. não estar
presente, mas por ficar diretamente na presença da Sra. K. e “tudo o que ela [Dora] pôde
entender das relações desta com seu pai gira em torno da felação, e aí está algo infinitamente
mais significativo para compreender a intervenção dos sintomas orais” (Lacan, 1955-56, p.
200).
A pergunta que a jovem faz através de sua neurose é: o que é ser uma mulher? E Lacan
(1955-56) vai demonstrar como essa pergunta advém da situação edípica que é dissimétrica nos
meninos e nas meninas, já que não há, para as meninas, um equivalente do falo. No Édipo, está
em jogo a dialética do imaginário e do simbólico, e a dissimetria entre os sexos é localizada ao
nível do significante: “Não há, propriamente, diremos nós, simbolização do sexo da mulher
como tal” (p. 201). Freud já havia advertido sobre isso ao levantar que o que está em jogo é a
prevalência do falo, ficando o sexo feminino não descoberto. Lacan completa que o sexo
feminino tem como característica o buraco, o vazio, pois a forma imaginária do falo tem uma
prevalência e o torna o elemento simbólico central no Édipo. A ausência do significante fálico
tem uma consequência para a mulher, pois “o sujeito feminino só pode entrar na dialética da
ordem simbólica pelo dom do falo” (Lacan, 1956-57/1995, p. 144)31.

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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Não há algo que particularize o sexo feminino e a histérica toma um atalho


identificando-se imaginariamente com o pai e seguindo o caminho masculino. Com isso,
quando Dora se interroga sobre o que é uma mulher, ela tenta simbolizar o órgão feminino
como tal. Explica Lacan (1955-56) que identificar-se com um homem é uma forma de escapar
do que lhe falta, “o pênis lhe serve literalmente de instrumento imaginário para apreender o que
ela não consegue simbolizar” (p. 203). Com isso, Lacan (1956-57) diz que a histérica ama por
procuração, ou seja, é alguém cujo objeto é homossexual, mas que só pode ser abordado estando
identificada com alguém do outro sexo.
Interrogar-se sobre a mulher é diferente de tornar-se uma mulher e, por isso, há uma
exclusão do feminino na histeria. Ao identificar-se com o homem para interrogar-se sobre o
que é ser mulher, Dora mostrou como que, para ela, ser uma mulher ficava em suspensão.
Lacan (1951/1998)32 demonstra que Dora participava do jogo dos casais (seu pai, a Sra.
K., o Sr. K. e ela), localizando-se tanto como objeto de troca de seu pai, mas também
reconhecendo seu papel na corte que o Sr. K. fazia a ela. A partir daí, levanta-se a pergunta
sobre o sentido do ciúme de Dora em relação ao pai e a resposta só pode aparecer articulada à
relação dela com a Sra. K. e à descoberta do real valor que a Sra. K tinha para ela: “não de um
indivíduo, mas o valor de um mistério, o mistério de sua própria feminilidade corporal – como
se evidencia, sem nenhum véu, no segundo dos dois sonhos” (Lacan, 1951, p. 220).
Para esclarecer, Lacan (1951) lembra a passagem que Dora conta a Freud de quando,
em sua infância, ela chupava seu polegar esquerdo e com a mão direita puxava a orelha do
irmão. Essa lembrança fornece a “matriz imaginária em que vieram desaguar todas as situações
que Dora desenvolveu em sua vida. [. . .] Por aí, podemos tirar a medida do que agora significam
para ela o homem e a mulher” (Lacan, 1951, p. 220), estando a mulher ligada ao desejo oral
primitivo. A afonia de Dora, portanto, “exprime o violento apelo da pulsão erótica oral no
‘enfim sós’ com a Sra. K.” (p. 220). Para que Dora tivesse acesso a sua feminilidade, ela deveria
ter realizado a assunção de seu próprio corpo, sem o qual ela se encontra no despedaçamento
funcional, como se pode ver nos sintomas de conversão. Aqui, Lacan remete às suas
elaborações do “Estádio do espelho”.

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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Nesse texto, Lacan (1936/1998)33 demonstra como o Eu é formado a partir da imagem


especular antes mesmo que o bebê tenha maturidade orgânica para reconhecer seu corpo como
uma unidade. Após o ato de se olhar no espelho e reconhecer sua imagem projetada, ainda no
momento em que não possui inteligência instrumental, a criança assume a imagem refletida “e
desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com
as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações” (Lacan, 1936, p. 96-97). O
estádio do espelho é uma identificação que produz uma transformação na criança após ela
assumir a imagem que lhe fornece uma unidade corporal. A assunção dessa imagem é a matriz
simbólica do eu.
Dora encontrou, em seu irmão, sua matriz identificatória, ou seja, é um parceiro
masculino que “lhe permitiu identificar-se na alienação primordial em que o sujeito se
reconhece como [eu]” (Lacan, 1951, p. 221). Essa identificação masculina, típica da histeria,
não permite a Dora aceitar-se como objeto de desejo de um homem tal qual uma mulher.

Assim como em toda mulher, e por razões que estão no próprio fundamento das mais
elementares trocas sociais (justamente as que Dora fórmula nas queixas de sua revolta), o
problema de sua condição está, no fundo, em se aceitar como objeto de desejo do homem, e é
esse mistério, para Dora, que motiva sua idolatria pela Sra. K., do mesmo modo que, em sua
longa meditação diante da Madona e em seu recurso ao adorador distante, ele a empurra para a
solução que o cristianismo deu a esse impasse subjetivo, fazendo da mulher o objeto de um
desejo divino ou um objeto transcendental do desejo, o que dá no mesmo (Lacan, 1951, p. 221).

Lacan refere-se aqui ao mistério que a Sra. K. encarna para Dora, que é de como ser
objeto de desejo de um homem. Sua meditação frente à Madona é também um recurso, pois a
Madona representa essa mulher que foi mãe sem passar pela relação com um homem, mas tendo
sido objeto de um desejo. A histeria, portanto, é uma das formas da mulher poder interrogar-se
sobre o feminino. Veremos agora como Lacan localiza o falo na constituição da sexualidade e
mais, como ele também elabora que a lógica fálica não dá conta de dizer tudo sobre a mulher.

2.2.2 O feminino em torno do falo: a mascarada.

Iremos, nesta seção, abordar a proposição de Lacan sobre o feminino, no momento em


que ele utilizava o falo como operador. Lacan (1958b) apresenta que o complexo de castração

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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tem uma função de nó, 1º ) na instalação, no sujeito, de uma posição inconsciente sem a qual
ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo, nem tampouco responder, sem graves
incidentes às necessidades de seu parceiro na relação sexual ou até mesmo acolher com justeza
as da criança daí procriada (p. 692).

O que ele indica aqui é a função do falo no processo de estruturação de uma posição
sexuada, mas também como o que situa o sujeito em relação ao desejo, já que é somente após
a castração que o sujeito pode tornar-se desejante. Ele diz mesmo que “o falo como significante
dá a razão do desejo” (Lacan, 1958b, p. 700). Razão aqui considerada em sua significação
matemática de divisão, ou seja, é somente a partir do falo que se divide o feminino e o
masculino. Nessa passagem, Lacan reforça a proposta freudiana ao indicar que existe um
processo no qual a sexualidade é construída e, com isso, ser homem ou mulher responde a uma
identificação a um tipo ideal.
Assim, o complexo de castração tem sua função na sexuação, deixando uma marca
irredutível no inconsciente do homem, enquanto que o Penisneid, como o derivado do
complexo de castração na mulher, deixa sua marca no inconsciente da mulher. Lacan (1958b)
destaca que essa aporia freudiana só é compreensível tomando por base os fatos clínicos que
“demonstram uma relação do sujeito com o falo que se estabelece desconsiderando a diferença
anatômica entre os sexos e que, por essa razão, é de interpretação especialmente espinhosa na
mulher e em relação à mulher” (Lacan, 1958b, p. 693). Ele assinala quatro pontos sobre essa
dificuldade para a mulher: 1) A menina se considerada castrada por alguém. 2) A mãe é, em
um primeiro momento, fálica. 3) A significação de sua castração só é possível mediante a
castração materna. 4) Estes três pontos culminam na fase fálica do desenvolvimento
psicossexual, na qual o clitóris, de onde a menina retira gozo sexual, funciona como o falo,
excluindo para ambos os sexos a vagina como lugar de penetração genital e, portanto, de gozo
sexual.
O que Lacan traz aí é que existem efeitos inconscientes advindos da comparação
imaginária que a menina faz de seu corpo. Dessa forma, o que fica evidente é que se tanto o
masculino quanto o feminino estão referidos ao falo, não há uma inscrição do feminino no
inconsciente, já que o falo é somente um significante masculino.
Lacan (1958b) justifica o porquê de o falo ser elevado a um significante privilegiado:

Pode-se dizer que esse significante foi escolhido como o mais saliente do que se pode captar no
real da copulação sexual, e também como o que é mais simbólico no sentido literal (topográfico)
desse termo, já que ele equivale aí à cópula (lógica). Também podemos dizer que, por sua
turgidez, ele é a imagem do fluxo vital na medida em que ele transmite a geração (p. 699).
57

Existem, portanto, três características significativas do falo que dão a ele a magnitude
de ser o significante privilegiado da sexuação: 1) pela sua significação visual na cópula, ou seja,
numa relação mais próxima com a realidade biológica; 2) pelo seu caráter simbólico, necessário
em relação à sexualidade, na ausência de instinto; 3) pelo seu caráter imagético de fluxo vital,
já que é necessário para a reprodução humana que o órgão masculino chegue à ereção e à
detumescência (Bonfim, 2014). O falo, no entanto, “só pode desempenhar seu papel velado”
(Lacan, 1958b, p. 699), nem ausente, nem revelado, mas como um significante que irá ordenar
a sexualidade humana.
Naveau (2017) indica que o falo é, por um lado, positivado, constituindo-se como um
signo de valorização e, por outro lado, porta um vestígio de negativação, uma desvalorização,
assinalado como -φ. Um exemplo para entender essa duplicidade pode ser encontrado na
fantasia de espancamento de “Bate-se numa criança”. Nela, o falo pode estar identificado ao
outro que apanha, mas também ao instrumento – o chicote. O psicanalista também nos ajuda a
compreender a relação do falo com o véu. Ele conta que nos ritos de adoração em que ele era
exibido, ele era guardado em segredo até que após desvelado, a cerimônia iniciava-se. Ele tinha
valor como simulacro.
O falo, na relação entre os sexos, girará então em torno de um ter e de um ser. Se Freud
partilhava a sexualidade entre o que tem e o que não tem o falo, Lacan (1958b) faz um giro:
colocando o não ter o falo na dimensão de ser o falo do lado da mulher:

Por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o
significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade,
nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser
desejada e, ao mesmo tempo, amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no
corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada (p. 701).

O termo “mascarada” refere-se ao texto da psicanalista Joan Rivière (2005), “A


feminilidade como máscara”. Nesse texto, a autora relata o caso de uma paciente que era muito
bem-sucedida num trabalho que lhe exigia falar como palestrante, função que ela fazia com
desenvoltura. Porém, após cada uma de suas palestras, ela era tomada por uma grande ansiedade
e preocupava-se com o fato de ter cometido algum erro. Rivière (2005) relaciona essa ansiedade
e preocupação com uma necessidade de reconhecimento, na realidade, de dois tipos de
reconhecimentos: o primeiro, profissional, e o segundo, ligado à atração sexual, pois após cada
apresentação, “ela tentava obter investidas sexuais daquele tipo especial de homem por meio
de flerte e coquetismo, de forma mais ou menos velada” (p. 15).
58

Para Rivière (2005), a paciente julgava seu bom desempenho profissional como algo
masculino, e além de buscar seu reconhecimento nesses jogos de sedução, ela buscava também
mostrar-se como mulher castrada mascarando-se com a feminilidade:

A feminilidade, portanto, podia ser assumida e usada como máscara, tanto para ocultar a posse
da masculinidade, como para evitar as represálias esperadas, se fosse apanhada possuindo-a; tal
como um ladrão que revira os bolsos e pede para ser revistado a fim de provar que não furtou
os bens roubados (Rivière, 2005, p.16-17).

A ideia da máscara da feminilidade é uma tentativa de evitar a ansiedade e também a


vingança dos homens ao mostrar-se fálica. A autora elabora essa noção a partir de atendimentos
a mais mulheres, que assim como a citada, são bem-sucedidas na vida profissional, mas também
são excelentes mães e esposas.
Lacan (1957-58) comenta o texto de Rivière destacando que a paciente em questão tinha
uma necessidade de evitar uma represália vinda dos homens “motivada pela subtração sub-
reptícia que ela efetuava da fonte e do próprio símbolo da potência deles” (p. 265). Seu jogo de
sedução servia para ludibriar os homens que pudessem se ofender com a mostra de sua potência
fálica. E sempre após demonstrá-la publicamente,

ela se precipitava numa série de providências, [. . .] fazer tudo para os outros –, nisso adotando,
aparentemente, as formas mais elevadas de dedicação feminina, como se ela dissesse: –, Vejam
bem, eu não tenho esse falo, sou mulher, e puramente mulher (Lacan, 1957-58, p. 265,
destaque do autor).

É interessante que Rivière (2005) indica que não há uma diferenciação entre a
feminilidade genuína e a feminilidade mascarada. No caso citado, ela destaca que a capacidade
de feminilidade sempre esteve presente em sua paciente, mas era mais um artifício que uma
forma primária de prazer. Dessa maneira, seria a máscara algo intrínseco à feminilidade?
Brousse (2012) indica que uma das formas de se abordar o feminino é a partir da
mascarada e que Rivière defende que a ascensão à sexualidade deve passar por um parecer,
tanto do lado masculino como do lado feminino, sendo que para cada lado esse parecer se
declina de uma maneira. O parecer do lado feminino se dá pela mascarada e não se trata de um
termo pejorativo, mas de especificar que a mascarada está ligada às insígnias femininas ou
maternas. A autora indica que geralmente “as meninas tentam seguir suas mães enquanto
mulheres. Pensem no interesse que elas têm pelos pequenos objetos maternos, as joias, os saltos
altos, os objetos… Objetos que tocam o corpo feminino” (Brousse, 2012, p. 10).
59

Brousse (2012) destaca que quando uma menininha diz à sua mãe que quando ela morrer
ficará com algo seu (um sapato, uma bolsa, etc.), isso não se trata de uma agressividade edípica,
mas de uma transmissão pelos objetos de alguma coisa do feminino. Esses objetos estão
elevados à altura de emblemas. Lacan (1972) diz que a menina espera mais substância da mãe
que do pai. É curioso como em Dora há essa falta de transmissão de um ponto do feminino pela
mãe, o que a faz esperar o mesmo da Sra. K.

A mascarada é feita deste tipo de elemento emblemático, e podemos pensar na questão, então,
acerca dos objetos femininos, que são transmitidos de uma mulher à outra, a uma menina, a uma
futura mulher. Trata-se, como eu dizia de insígnia, ou seja, de significantes [. . .] são objetos
que fazem precisamente existir a máscara mesma, como véu diante da dificuldade de dizer
precisamente o feminino (Brousse, 2010, p. 10).

É isso que Lacan (1957-58) quer dizer ao apontar que a paciente de Rivière adota as
formas elevadas de dedicação feminina. São formas de se tentar dizer o que é uma mulher a
partir de uma insígnia. Ou seja, a mascarada faz parte da própria feminilidade, já que o feminino
é difícil de ser precisado. Brousse (2012) indica que Lacan mantém a abordagem sobre o
feminino pela via da mascarada, das insígnias, das identificações até a década de 1970, quando
passará a referir-se ao feminino a partir da questão do gozo.
Retornando a Lacan (1958b), ele indica que a mulher abre mão de uma parcela de sua
feminilidade para ser o falo. Isso, pois, se de um lado ela se mascara, permitindo mostrar-se
como mulher, de outro, ela precisa ocupar uma função fálica - sendo o falo que desperta o
desejo do parceiro. Assim, ela usa um recurso masculino. Essa é uma passagem enigmática,
mas o que parece estar em jogo é que somente por não ter o falo que ela pode sê-lo. Há uma
falicização do corpo da mulher, o que sustenta a fantasia masculina.
Lacan (1958b) traz como uma consequência de a mulher ser o falo na relação com o
homem o fato de nela convergir para o mesmo objeto o amor e o desejo. Isso porque, no amor,
ela é privada do que ela dá e, em relação ao desejo, ela encontra no mesmo objeto seu
significante. No lado do homem, no entanto, Lacan reafirma a proposta de Freud de uma
degradação do objeto amoroso, com uma separação entre a mulher do amor – aquela que na
relação dá o que não tem, e a mulher do desejo. Isso ocorre porque “seu próprio desejo de falo
faz surgir seu significante, em sua divergência remanescente, dirigido a ‘uma mulher’, que pode
significar esse falo de diversas maneiras, quer como virgem, quer como prostituta” (Lacan,
1958b, p. 702).
O que acontece é que essas duas maneiras de se posicionar diante do falo têm também
como consequência uma distinção entre as formas de amar masculina e feminina; enquanto a
60

primeira porta o caráter fetichista, a segunda tem a forma erotomaníaca (Lacan, 1960/1998)34.
A forma fetichista de amor está ligada à masculinidade e transcende a simples escolha do
homem por uma mulher. Ao dizer “você é minha mulher”, que é a forma como o homem
constitui sua parceira, ele recebe de volta, na forma de mensagem invertida, “eu sou teu
homem”. Há uma proliferação, no inconsciente do homem, das mulheres-falo, fruto de seu
próprio desejo de falo, “no que se confirma que ressurge no inconsciente é o desejo do Outro,
ou seja, o falo desejado pela mãe” (Lacan, 1960, p. 742). Essa forma é fetichista, pois o homem
faz um revestimento fálico da mulher, que vela o horror da castração. Com isso, podemos
compreender porque Lacan (1958b) afirma que a impotência é menos tolerada no homem.

Se, de fato, sucede ao homem satisfazer sua demanda de amor na relação com a mulher, na
medida em que o significante do falo realmente a constitui como dando no amor aquilo que ela
não tem, inversamente seu próprio desejo do falo faz surgir seu significante, em sua divergência
remanescente, dirigido a “uma outra mulher”, que pode significar esse falo de diversas maneiras,
quer como virgem, quer como prostituta (p.701).

Já do lado feminino, Lacan (1960) nomeia a forma de amar como erotomaníaca, que
aqui será seguida pela dúvida - “será que ele me ama?” - e não pela certeza, como se dá na
erotomania da estrutura psicótica. Dessa forma, o amor para as mulheres será marcado pela
dúvida. Miller (2016) pontua que na forma de amar erotomaníaca o objeto de amor é menos
objetal, e aí Lacan distingue uma aproximação da mulher com o Ⱥ, distinta da relação do
homem com o objeto a. O objeto da mulher é o suporte do amor. Assim, o desejo, na mulher,
passa pelo amor.
Ainda nesse período, Lacan (1960) traz outros apontamentos sobre o feminino,
demarcando que “a posição-chave do falo no desenvolvimento libidinal interessa, por sua
insistência, em se repetir nos fatos” (p. 736), ou seja, o que ainda está em jogo é a centralidade
do falo na partilha entre os sexos, mas já com outro deslocamento.
Lacan (1960) destaca que a castração não deve sua centralidade à uma naturalização de
seu processo, mas ela é um ato simbólico, “uma vez que pressupõe a subjetividade do Outro
como lugar de sua lei. A alteridade do sexo descaracteriza-se por essa alienação. O homem
serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para
ele” (Lacan, 1960, p. 741). O que parece que Lacan demonstra aqui é a alteridade radical do
feminino, como Outro sexo, não somente para o homem, mas para a própria mulher, é disso

34
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
61

que Freud fala quando aponta que a mulher se pergunta sobre o feminino do mesmo modo que
o homem. Lacan (1960) prossegue nessa elaboração afirmando que “tudo pode ser imputado à
mulher, já que na dialética falocêntrica, ela representa o Outro absoluto” (p. 741). Ela representa
uma alteridade, sendo Outro para si mesma.
Bassols (2017) orienta que a mulher se apresenta numa alteridade, fora de qualquer
simetria ou reciprocidade em relação ao homem. Ele elabora que “a feminilidade está
confrontada ao feminino, ao a-sexuado do ser” (p. 6). Ele diferencia feminino de feminilidade,
tomando esta como algo representável em diversas figuras fálicas, enquanto o feminino não é
representável. Portanto, ele considera a feminilidade como uma tentativa de responder pela via
das insígnias, enquanto ao irrepresentável do feminino, ele diz: “a mulher, o feminino, se situa
aqui em um espaço muito singular” (Bassols, 2017, p. 1). A mulher como Outro deve
confrontar-se com sua solidão, já que por mais que o homem lhe sirva de conector, não existe
Outro do Outro.
Lacan (1960) retoma também a discussão do masoquismo feminino apontando que essa
qualificação de feminino dado ao masoquismo não pode ser somente a partir da relação entre
feminino e a passividade, e traz uma pergunta importante: “Será que podemos nos fiar no que
a perversão masoquista deve à invenção masculina, para concluir que o masoquismo da mulher
é uma fantasia do desejo do homem?” (p. 740). Essa pergunta tem relação direta com a noção
de que na relação amorosa, a mulher transveste-se de falo, na posição de despertar o desejo do
homem.
Se por um lado, o feminino vai tomando outro contorno na obra de Lacan, o masculino
não, ele mantém uma linearidade, inclusive no que diz respeito a seu modo de amar: sempre
tomando a parceira como objeto de sua fantasia. É interessante como em Dora, o que vemos é
exatamente a impossibilidade de se colocar como objeto de desejo de um homem – Sr. K.
Apesar de elevar o falo como central na discussão a respeito de uma posição feminina,
Lacan (1960) o coloca em xeque ao dizer que “convém indagar se a mediação fálica drena tudo
o que pode se manifestar pulsionalmente na mulher, notadamente toda sua corrente do instinto
materno” (p. 739). O que ele indica é que há dúvidas se podemos situar todo o gozo feminino
do lado do falo, dando um primeiro indício em relação à sua proposição uma década depois.
Esse mesmo indício sobre um para além do falo na campo feminino aparece quando
Lacan (1957-58) formaliza o processo edípico em três tempos lógicos, mostrando a diferença
entre o Édipo masculino e o feminino. Ele diz que:
62

há, no Édipo, a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às coisas,
aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo
feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher. A virilidade
e a feminização são os dois termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo
(Lacan, 1957-58, p.171).

O pai, no complexo de Édipo, é uma metáfora (metáfora paterna) que substitui o


significante materno, primeiro significante introduzido que organiza a constituição psíquica da
criança. Na primeira relação da mãe com o bebê, ainda num período pré-edipiano, já há uma
primeira simbolização, uma subjetivação em nível primário, no qual a mãe ainda é primordial,
mas pode estar presente ou ausente na sua relação com a criança.
No primeiro tempo do complexo de Édipo, a criança busca satisfazer o desejo materno,
estando identificada ao falo imaginário, enquanto a instância paterna se introduz de forma
velada ou nem mesmo aparece nessa relação. Essa relação mãe e criança, no entanto, já é uma
relação simbólica porque o que a criança quer é o desejo da mãe: “É um desejo de desejo”
(Lacan, 1957-58, p. 205). Desse modo, nesse tempo edípico, a criança fica isolada, “desprovida
de qualquer outra coisa que não o desejo desse Outro que ela já constituiu como sendo o Outro
que possa estar presente ou ausente” (Lacan, 1957-58, p. 206).
No segundo tempo do Édipo, o pai intervém como privador materno. Trata-se do pai
proibidor que intervém anunciando duas proibições: ao filho - não te deitarás com tua mãe - e
à mãe - não reintegrarás seu produto. Dessa forma, a criança sai do assujeitamento em que se
encontrava, sendo retirada do lugar de falo imaginário. O pai aparece menos velado que no
primeiro tempo, mas também não é todo revelado, pois seu discurso aparece a partir do discurso
materno, já que é a mãe quem confere valor à palavra do pai. Deixando de se identificar com o
falo, a criança pode então escolher entre tê-lo ou não, o que permitirá, na saída do Édipo,
localizar-se nas funções de homem ou de mulher.
No terceiro tempo edípico, o pai intervém como aquele que detém o falo, invertendo
sua posição, daquele que priva a mãe do falo para aquele que pode lhe dar o falo: “o pai pode
dar à mãe o que ela deseja e pode dar porque o possui. Aqui, intervém, portanto, a existência
da potência no sentido genital da palavra – digamos que o pai é um pai potente” (Lacan, 1957-
58, p. 210). O pai aparece, nesse momento, como permissivo e doador no nível materno,
surgindo, pela primeira vez, em seu próprio discurso. E assim, “por intermédio do dom ou da
permissão concedidos à mãe, ele [o menino], afinal, consegue isto: que lhe seja permitido ter
um pênis para mais tarde. Aí está o que é efetivamente realizado pela fase do declínio do Édipo
– ele realmente carrega [. . .] o título de posse no bolso (Lacan, 1957-58, p. 212).
63

O processo edípico interdita uma parte do gozo ao mesmo tempo em que permite outra
por meio da significação fálica. É permitido o gozo fálico cifrado pela castração, e é na
puberdade que o sujeito poderá servir-se desse gozo. Portanto, o que Lacan (1957-58) nomeia
como título de posse é uma autorização que dá ao adolescente o direito de servir-se da
significação fálica quando for convocado para isso. No menino, temos a saída do Édipo aí, com
sua identificação ao pai como ideal do eu. Já no caso das meninas, o desfecho é outro.

Ela não tem que fazer essa identificação nem guardar esse título de direito à posse da virilidade.
Ela, a mulher, sabe onde ele [o falo] está. Sabe onde deve ir buscá-lo, que é do lado do pai, e
vai em direção àquele que o tem. Isso também indica por que uma feminilidade, uma
feminilidade verdadeira, tem sempre um toque de uma dimensão de álibi. Nas verdadeiras
mulheres, tem sempre algo de extraviado (Lacan, 1957-58, p. 202, destaque nosso).

As meninas não precisam ter o título de virilidade, pois elas podem acessar o falo
dirigindo-se a quem o tem. O trabalho psíquico que se exige das meninas é de estabelecer essa
posição de álibi. Na definição do dicionário Aurélio (2010), álibi é um termo jurídico que
consiste num “meio de defesa em que o réu prova sua presença, no momento do delito, em
lugar diverso daquele onde este foi cometido” (p. 34). Essa posição de álibi coloca a mulher
numa posição de réu, de acusada de um delito. Ora, seria o mesmo delito da paciente de Rivière
(2005)? De roubar a potência fálica, mas mascarar-se como puramente mulher, estando no
momento do rapto em outro lugar? Parece que Lacan (1957-58) indica é que a mulher pode
jogar mais livremente com sua sexuação, já que ela pode oscilar mais em torno do falo, diferente
do homem que, tendo imaginariamente o falo, se torna um homem estorvado, pesado, como diz
Miller (2012). Nessa passagem, Lacan parece confirmar a ideia da mulher sendo Outra para ela
mesma, pois ali onde ela se mostra, ela está alhures, extraviada.
Ainda em relação ao extraviado, Lacan adianta aquilo que está em jogo em suas
elaborações da década de 1970, nas quais o feminino aparece num para além da função fálica,
que veremos adiante.

2.2.3 Dos semblantes

Em 1971, Lacan ministra “O Seminário, livro 18, de um discurso que não fosse
semblante”, no qual aborda a questão da partilha entre os sexos a partir dos semblantes e traz,
pela primeira vez, a formulação de que A mulher não existe, inserindo a noção de não-todo. O
último ensino de Lacan busca dar conta de que a ordem simbólica é da ordem da ficção e que,
com isso, o significante é semblante, sendo que o semblante comporta uma inclusão do
imaginário no simbólico, orienta Miller (2011).
64

Morel (1995) aponta que é nesse momento que Lacan começa a elaborar as fórmulas da
sexuação, reportando a diferença entre os sexos pela via lógica e não anatômica. Ela afirma que
a partir desse momento do ensino de Lacan, “existem mulheres anatômicas que são homens e
homens anatômicos que são mulheres, no sentido da estrutura”35 (Morel, 1995, p. 51. Tradução
nossa). Desse modo, os caracteres secundários não são suficientes para determinar-se na
partilha sexual. Importante esclarecer que em Lacan, mesmo quando se referia à anatomia, o
órgão era elevado à categoria significante.
Campista e Caldas (2013) indicam que o termo semblante em francês possui diferentes
sentidos, “como fingimento, parecer, dar mostras, simular, enganar” (p. 262). Em português,
semblante significa face, rosto, mas no sentido figurado, diz respeito à aparência. Já na
psicanálise lacaniana, o termo semblante está mais perto da noção de verdade, sendo que ela
comporta sempre duas faces: uma de verdade e outra de mentira. Lacan (1971) transpõe essa
ideia para o alcance do inconsciente e a esclarece: “que o inconsciente sempre diga a verdade
e minta é, partindo dele, perfeitamente sustentável [. . .]. Que é que isso lhes ensina? Que da
verdade, vocês só sabem alguma coisa quando ela desencadeia” (p. 68). Portanto, a verdade diz
respeito àquilo que está oculto e que somente pode ser dito a partir da vinculação com o
significante.
Lacan (1971) indica que o semblante é um sinal mesmo que não se saiba de que, ele diz
que um meteoro, um arco íris e mesmo um trovão são semblantes, um sinal que sinaliza algo
para alguém, e, ao incluir o trovão na série, desvincula o semblante de uma relação direta com
o imaginário, que o termo poderia dar a entender.
Brousse (2012) afirma que o semblante, localizado no nível da aparência, é fundamental
para tratar da clínica da sexualidade humana: “Vivemos em um mundo de semblantes porque
vivemos em um mundo de linguagem, e, por conseguinte, a sexualidade humana é assunto de
semblante, e a questão do desejo passa pela do semblante” (p. 9). O semblante enquanto uma
categoria da psicanálise permite tratar de uma maneira menos hierarquizada o real e o
simbólico, e ele só pôde entrar na teoria psicanalítica a partir da abordagem que Lacan fez da
sexualidade feminina. A psicanalista diz que o “semblante está na mesma relação com o real
de que a máscara está em relação do feminino” (Brousse, 2012, p. 21). O que Brousse esclarece
é que o semblante recobre aquilo que é vazio. Miller (2011) adverte, no entanto, que o real é
um resíduo das operações do semblante, não sendo totalmente recoberto.

35
No original: «Il y a des femmes anatomiques qui sont des hommes e des hommes anatomiques qui sont des
femmes, au sens de la structure».
65

Neste seminário, Lacan (1971) traz um apontamento importante ao esclarecer que o


inconsciente revelado por Freud nada tem de biológico e que, portanto, seria melhor usar o
termo relação sexual em detrimento de sexualidade. Isso porque sexualidade refere-se à
biologia, à combinação entre os cromossomos X e Y, e nada tem a ver com a relação entre
homens e mulheres. Homens e mulheres distribuem-se em relação à aparência, a um parecer
que se liga ao ser:

A identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos
‘homem’ e ‘mulher’. É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de
que, na idade adulta, é próprio do destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e
mulheres. Para compreender a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos
conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Nada nos permite
abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas
instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento (Lacan, 1971, pp. 30-31).

Vieira (2003) esclarece que, nessa passagem, Lacan não está tratando de uma simples
lógica etológica, pois ele já havia esclarecido que as imagens não constituem o sentido último
dos acontecimentos humanos, mas que elas só podem ser situadas se compreendidas no âmbito
simbólico. Isso ajuda a esclarecer que o semblante não corresponde nem ao imaginário como
um simulacro, nem como um operador subordinado ao simbólico, mas é algo entre o simbólico
e o imaginário, “em suma, seu maior valor reside em nos permitir deslocar a ênfase da
articulação entre simbólico e imaginário para o modo como nessa articulação irrompe o real”
(Vieira, 2003, p. 93).
Sobre essa irrupção do real nos semblantes, é preciso explicar que Lacan (1971) afirma
que no comportamento sexual humano, há uma certa manutenção do semblante animal, já que
no mundo animal, o macho se exibe para a fêmea, sendo o agente da exibição. Isso, no entanto,
não exclui a fêmea da exibição, já que ela é o sujeito atingido. O comportamento sexual humano
mantém certo semblante animal, com a diferença de que no homem, o semblante é veiculado
num discurso. Mas nesse mesmo nível de discurso, pode-se chegar a um discurso que não seja
semblante:

Isso significa que, em vez de ter a refinada cortesia animal, sucede aos homens violar uma
mulher ou vice-versa. Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com
que se mantenha o mesmo semblante, de vez em quando existe o real. É a isso que chamamos
de passagem ao ato e não vejo melhor lugar para designar o que isso quer dizer. Observem que,
na maioria dos casos, a passagem ao ato é cuidadosamente evitada. Só acontece por acaso
(Lacan, 1971, p. 31).
66

Vieira (2003) diz que Lacan aponta com essa passagem que o real se manifesta nessa
irrupção, ora violenta, ora obscena, mas sempre como algo da ordem do impossível. Lacan
(1971) segue ali diferenciando a passagem ao ato do acting out, uma vez que esse último
consiste em elevar o semblante à cena, mostra-lo. No caso Dora, temos a presença dos dois
elementos, o acting out, quando escreve a carta com intenções suicidas e a deixa aberta para
seu pai ver, e a passagem ao ato, no tapa dado no Sr. K. quando ele lhe diz que a Sra. K. não
lhe representava nada. Na carta com intenções suicidas, o que Dora queria demonstrar era sua
oposição ao relacionamento do pai com a Sra. K. Já o tapa coloca Dora frente a uma irrupção
violenta e sem sentido, já que identificada à Sra. K, fica sem os semblantes sobre o que é ser
uma mulher.
Voltando à sexuação, para o menino, portanto, trata-se de parecer homem na vida adulta
e dar à menina sinal de que o é, ou seja, tomar posse do título viril deixado pelo pai no Édipo.
Se posicionar como homem ou como mulher exige que se pareça um homem ou uma mulher,
assim, essa tomada de posição só se pode dar a partir de uma referência ao Outro em forma de
semblante. O que o Lacan (1971) nos diz é que a sexuação se dá no campo dos discursos, e isso
não desconsidera sua relação com o falo, já que ele também é elevado à categoria de um
semblante. Vieira (2003) indica que o campo dos semblantes é estendido até o falo, pois

a natureza oferece na detumescência do pênis, a aparência de um órgão que, às vezes está ali;
às vezes, não está. O falo tem um aspecto imaginário (de presença ereta, onipotente e totêmica,
mas inerte) e simbólico (veiculado pela sua apresentação tudo-ou-nada, paradoxal, essência
fugidia feita de presença-ausência) (p. 94).

Lacan (1971) indica que “o falo é, muito propriamente, o gozo sexual como coordenado
com um semblante, como solidário a um semblante” (p. 33). Vale lembrar que até antes desse
seminário, o falo era o que coordenava a sexuação, ou seja, era a partir da presença ou ausência
imaginária do falo materno que a castração e o Édipo se ordenavam regulando o gozo, um gozo
permitido e um gozo proibido (o gozo incestuoso).
O falo como semblante tem uma função que define a posição do sujeito em relação ao
seu desejo, marcada pelo modo como ele se relaciona com a castração. No lado homem, todos
estão submetidos à castração, já no lado mulher, não há essa universalidade. Assim, esses dois
modos diferentes de lidar com a castração importam diferentes modos de gozo: o gozo fálico e
o gozo feminino. Talvez seja preciso dizer que ser biologicamente homem ou mulher não
significa nenhuma relação predeterminada ao gozo sexual.
67

Na relação entre homem e mulher, Lacan (1971) indica que na relação entre os sexos, a
mulher é a hora da verdade para um homem, pois somente ela percebe que o gozo é semblante.
Entendemos daí que é somente a partir da relação com a mulher que o homem saberá se o falo
está apto a lhe significar como homem. “Se falei em hora da verdade, é por ser a ela que toda
formação do homem é feita para responder, mantendo contra tudo e contra todos o status do
seu semblante” (Lacan, 1971, p. 33).
Miller (2012) indica que a mulher é a hora da verdade para um homem porque ela
desmascara os semblantes e traz como exemplo a personagem de Zazie, da novela “Zazie no
Metrô”. A garotinha chega a Paris para encontrar seu tio e ela sempre responde às indagações
e convites com o termo “o caralho”. Ela “é uma máquina de perfurar, de esburacar, de penetrar
semblantes, de demonstrar o estatuto de semblantes de tudo que ocupa as pessoas que a rodeiam
– especialmente as masculinas” (Miller, 2012, p. 53). O que Zazie faz é elevar todos os produtos
da cultura a um estatuto de interjeição com “o caralho”, opondo-se aos semblantes da cultura.
Freud (1930/2010)36 já havia demonstrado como a mulher é inimiga da civilização
quando indica que ela está mais preocupada com a família que com os ideais, de modo que ela
se opõe ao processo civilizatório. Ela está mais ligada aos interesses do amor. Isso nos ajuda a
compreender a proposta de Lacan (1971) de que “a mulher tem uma enorme liberdade com o
semblante” (p. 34). Ora, Miller (2012) transporta a proposta freudiana indicando que, na
realidade, a mulher é inimiga dos semblantes da cultura, e “por isso ela faz da posição feminina
uma posição que presta facilmente à substituição do real pelo semblante” (p. 59). Elas pensam
com menos vontade de capturar o real com o semblante, o que as faz amigas do real. Disso
Miller (2012) tira uma consequência importante, pois ao não encontrarem um verdadeiro lugar
na cultura, já que elas perfuram os semblantes civilizatórios, “subsiste, nelas, a dúvida, de não
estarem em seus lugares, ao lado da ideia comovedora de que o verdadeiro lugar seria
encontrado no amor, isto é, serem amadas por um homem” (p.59). Assim, ao mesmo tempo que
denunciam os semblantes masculinos, as mulheres também se interessam em fazer crer neles.
O sintagma ‘A mulher não existe’ nos auxilia na compreensão dessa afinidade.
Lacan (1971) afirma que é impensável dizer A mulher porque não podemos dizer todas
as mulheres. ‘A mulher não existe’ não significa que o lugar da mulher não exista, mas que esse
lugar permanece, essencialmente, vazio. E o fato de ele ficar vazio não impede que algo possa
ser encontrado ali. Nesse lugar, encontram-se somente máscaras; máscaras do nada, suficientes

36
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
68

para justificar a conexão entre mulheres e semblantes (Miller, 2012). O semblante é o que tem
por função velar o nada, não é à toa que sempre se visou cobrir as mulheres com o véu. O véu
é o primeiro semblante e “é possível dizer que as mulheres são cobertas porque A mulher não
pode ser descoberta” (Miller, 2012, p. 65), sendo preciso inventá-las. Daí Miller conclui que
chamamos pelo significante mulher os sujeitos que têm uma relação essencial com o nada.
Para finalizar, Morel (1995) indica que, na década de 1970, Lacan tira do corpo o lugar
da sexuação e explica que o esquema “corpo (anatomia) → inconsciente (efeitos sobre o
inconsciente)37” (p. 58, tradução nossa) é falsa, pois partimos do inverso: “é o inconsciente,
estruturado como uma linguagem, que corta o corpo”38 (p. 58, tradução nossa). Um exemplo é
que o sintoma histérico não advém da anatomia, mas do inconsciente, da relação com a fantasia,
ele se fabrica no inconsciente e se escreve no corpo. É por isso que o gozo também é um
semblante, já que só podemos abordá-lo pelos efeitos que ele traz no corpo, pela linguagem.
Então, Lacan precisará da matemática para trabalhar a sexuação de 1971 em diante, localizando
a lógica feminina a partir da noção de não-todo.

2.2.4 O não-todo.

Soler (2005) indica que a divergência central em relação ao estatuto da diferença entre
os sexos em Freud e em Lacan parece residir na oposição entre dois termos: identificação e
sexuação. Em Freud, o que estaria em jogo seria a identificação realizada pela criança na fase
edipiana, na qual há uma correção da “dispersão polimorfa das pulsões por meio de
identificações unificadoras” (Soler, 2005, p. 137), sendo que podemos ler aí que a identificação
seria o processo pelo qual o simbólico recobre o real. O que faz Freud, portanto, é dar uma
consistência do Outro do discurso, que oferta ao sujeito a assimilação de modelos sociais.
O que a autora aponta é que, na tese de Freud, essa solução padronizada dada pela
identificação, mais do que orientar, ata o sujeito a uma certa imposição normativa
heterossexual. Ela admite, no entanto, que o próprio Freud, mesmo colocando a prevalência
identificatória na assunção da diferença sexual, serve-se também do conceito de pulsão e da
noção escolha de objeto, que coloca nuances nessa normatização. Soler (2005) aposta que
Lacan, ao propor o termo sexuação em “O aturdito” e inserir as fórmulas quânticas da sexuação,
faz uma nova aposta.

37
No original: «Corps (anatomie) → inconscient (affets sur l’inconscient)».
38
No original: «L’inconscient, structuré comme langage, découpe le corps ».
69

Essas fórmulas, ditas da sexuação, atestam e explicam o que constatamos todos os dias, ou seja,
que a regência das normas do Outro detém-se, por assim dizer, ao pé da cama. Em se tratando
de corpos sexuados, a ordem instaurada pelo discurso revela-se incapaz de corrigir a
desnaturação do falasser, não tendo outra coisa a oferecer senão o semblante fálico. Essas
fórmulas escrevem a distribuição dos sujeitos entre duas maneiras de se inscrever na função
fálica, que nada mais é que a função do gozo na medida em que, por obra da linguagem, ela fica
no âmbito de uma castração (Soler, 2005, p. 138).

Lacan inicia as fórmulas quânticas da sexuação em 1971, mas é em “O seminário, Livro


20, mais, ainda” que podemos tirar todas as consequências delas. Morel (1995) indica que as
fórmulas que Lacan utiliza para pensar a sexuação pela via lógica parecem fórmulas
matemáticas, mas não o são. Ela as diferencia, pois diferente da matemática, essas fórmulas
não podem ser inscritas em outro lugar e não desencadeiam fórmulas derivadas. Além disso,
enquanto, na matemática, as fórmulas transmitem um saber sem explicá-las, Lacan as
acompanha de uma enunciação.
Morel (1995) demonstra que essas fórmulas trazem uma nova maneira de pensar o
feminino, mas, no entanto, a virilidade se mantém localizada da mesma maneira, tendo como
base a frase de Lacan de 1960: “não há virilidade que a castração não consagre” (Lacan, 1960,
p. 742), ou seja, o masculino continua ligado ao falo. O ponto de virada diz respeito, portanto,
ao feminino, ao Lacan indicar que há um gozo para além do gozo fálico, um gozo suplementar.
Essa nova via de se pensar a sexuação desloca a mulher do campo de uma falta, em
relação ao falo, para a ideia de um suplemento. Lacan (1972-73) fórmula a Tábua da sexuação
e a divide em dois lados: lado homem (à esquerda) e lado mulher (à direita).

Figura 2: tábua da sexuação

Fonte: Lacan, 1972-73, p. 84

A tábua é dividida em quatro partes, contendo símbolos da matemática e da psicanálise,


além de seta e letras. Na parte superior da tábua, temos a formalização matemática da lógica
proposicional aristotélica através dos quantificadores existencial (∃) e universal (∀). Já na parte
de baixo, temos o que Lacan (1972-73) nomeou de identificações sexuais, e ele nos diz que
“quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro” (p. 85).
70

Os quantificadores estão ligados à função Φx. Essa função, Lacan (1971-72/2012)39 diz
que ela representa “o que da relação do significante com o gozo produz” (p. 31), sendo que x
designa apenas um significante, que pode ser qualquer sujeito que se relaciona com o falo
simbólico. Ele esclarece:

Não se trata de marcar o significante-homem como distinto do significante-mulher, e de chamar


um de x e um de y, porque a questão é justamente essa – é como nos distinguimos. É por essa
razão que coloco o x no lugar do furo que faço no significante, coloco o x aí como variável
aparente. O que quer dizer que, toda vez que eu lidar com esse significante sexual, isto é, com
esse algo que se relaciona com gozo, estarei lidando com o Φx (Lacan, 1971-72, p. 31).

Ainda, o Φx indica que é da função fálica que se trata no ato sexual, sendo na medida
em que isso se dá que devemos nos perguntar como os dois parceiros se diferem. Isso revela
que essa função domina os dois ou seja, ambos estão submetidos ao falo, mas é o modo como
cada um ali se inscreve que irá marcar uma diferença. Lacan (1972-73) indica que a mulher
será marcada por uma inconsistência em relação à função Φx.
As fórmulas proposicionais são retiradas de Aristóteles. Uma proposição significa uma
sentença que nega ou afirma alguma coisa, e elas são quatro: a universal afirmativa, a particular
negativa, a universal negativa e a particular afirmativa. O símbolo ∀ significa “para todos” e o
símbolo ∃, “existe”, já o traço em cima dos quantificadores indica uma negação. Vejamos como
essas proposições se aplicam no esquema lacaniano:
1) Universal afirmativa - ∀x. Φx: para todo x é verdadeiro que a função fálica se
inscreva.
2) Particular negativa - ∃x. Φx: existe um x para o qual a função fálica não se inscreve.
3) Universal negativa: ∃x. Φx não existe um x para o qual a função fálica não se
inscreve.
4) Particular afirmativa: ∀x.Φx: para não-todo x, a função fálica se inscreve.

Lacan (1972-73) explica que a universal afirmativa indica que “é pela função fálica que
o homem como todo toma inscrição, exceto que essa função encontra seu limite na existência
de pelo menos um x pelo qual a função Φx é negada” (p. 85). Aqui, Lacan refere-se ao pai da
horda primitiva do mito freudiano, que dotado do acesso a todas as mulheres, ou seja, não
castrado, negava a seus filhos o acesso às mesmas, fundando um grupo, “o todo repousa,

39
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
71

portanto aqui, na exceção colocada, como termo, sobre aquilo que, esse Φx, o nega
integralmente” (Lacan, 1972-73, p. 85). É somente a partir da exceção que se funda a regra.
Esse é o lado homem, no qual existe “pelo menos um para quem isso não funciona, essa história
de castração” (Lacan, 1971-72, p. 35, destaque do autor). A sexualidade masculina, assim,
situa-se organizada pelo funcionamento fálico, localizada na universalidade, por isso pode-se
dizer todo homem. Sobre esse lado que se alinha ao homem, Lacan (1972-73) faz uma ressalva,
pois apesar de usar o termo ‘homem’, ele diz que, nesse lado, cada um se alinha por escolha e
“as mulheres estão livres para se colocarem ali se isto lhes agrada. Todo mundo sabe que há
mulheres fálicas, e que a função fálica não impede os homens de serem homossexuais. Mas é
ela também que lhe serve para se situarem como homens e abordar as mulheres” (p. 78).
Soler (2005) explica que essa ideia de escolher livremente a posição sexuada não
implica num livre arbítrio. Essa escolha aponta duas coisas: 1) as duas possibilidades não são
isomórficas e 2) elas demonstram que há uma discordância entre o sexo do registro civil e o
sexo erógeno. A escolha apontada por Lacan é “uma escolha forçada, escolha entre o todo e o
não-todo fálico” (Soler, 2005, p. 139). Essa coação se dá pela falha do inconsciente em dizer
do sexo. Ela usa o termo maldição do inconsciente. Esse termo apresenta uma homofonia entre
malediction (maldição) e male diction (mal dicção), ou seja, não se fala claramente da sexuação
no inconsciente.
Lacan (1972-73) demonstra também o lado homem no segundo nível da tábua: ele se
dirige à parceira tomando-a como objeto a, como objeto causa de seu desejo, e é somente assim
que o homem pode atingir seu parceiro sexual – o Outro,40 do outro lado da barra. “Ficar em
ereção [. . .], ter uma ereção por uma mulher, há que chamá-lo por um nome, afinal significa
dar-lhe a função de x, significa tomá-la como falo” (Lacan, 1971-72, p. 68).
Essa não é a primeira vez que Lacan demonstra que, na relação amorosa, o que está em
jogo não é o sujeito, mas o objeto. Vimos isso no comentário sobre Dora e também nos textos
“A significação do falo”, de 1958, e “Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade
Feminina”, de 1960. Ainda na última lição do seu décimo primeiro seminário, nomeada “Em ti
mais do que tu”, Lacan (1964/2008)41 destaca que o objeto a é o objeto que tem um estatuto
especial na teoria psicanalítica e, apesar de trabalhar ali vinculado à transferência, essa
passagem traz para nós um apontamento importante. Na relação com o analista, tomado como

40
Aqui é importante esclarecer que Lacan (1972-73) indica que o Outro “só pode ser, portanto, o Outro sexo” (p.
45).
41
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
72

parceiro, o sujeito diz “Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo mais que tu
– o objeto a minúsculo, eu te mutilo” (Lacan, 1964, p. 260). O sujeito só pode dirigir-se a um
objeto de amor (nessa passagem a transferência tem esse estatuto, já que o lugar de sujeito
suposto saber que o analista ocupa é um lugar de amor) se ele toma a forma do seu objeto causa
de desejo vinculado à sua fantasia, esse S barrado – o sujeito, dirigido ao a, não é nada senão a
fórmula da fantasia. Esse objeto, então, transita entre o eu te amo e o eu te mutilo.
Desse lado homem, encontramos como modo de gozo, portanto, o gozo fálico. Essa
modalidade de gozo, no entanto, “é o obstáculo pelo qual o homem não chega, eu diria, a gozar
do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão” (Lacan, 1972-
73, p. 14) e do objeto de sua fantasia. Esse gozo é assexuado, já que através dele não é possível
estabelecer a relação sexual, pois ele não se relaciona com o Outro enquanto tal. Lacan (1972-
73) nomeia esse gozo de “gozo do idiota” (p. 87).
Naveau (2017) esclarece que o idiota é aquele que goza sozinho, já que aquilo de que
goza é do órgão, como fora do corpo. Ele esclarece que Lacan faz do falo um atravancamento
e mesmo uma aflição, já que o falo faz objeção à relação sexual. Nas palavras de Lacan, (1972-
73) por causa do gozo fálico é que há “a impossibilidade da relação sexual como tal” (p. 16). É
a partir daí que se pode compreender o sintagma “a relação sexual não existe”, ela não existe
no sentido de uma complementariedade entre os sexos.
Sigamos agora para o lado mulher: “Que tudo gira ao redor do gozo fálico, é
precisamente o que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que a mulher se
define por uma posição que apontei como o não-todo no que se refere ao gozo fálico” (Lacan,
1972-73, p.14). Brousse (2012) explica que Lacan considera que todos os seres falantes
funcionam a partir da lógica da castração, “mas alguns deles respondem, além disso, a outra
lógica” (p. 16, destaque nosso). A autora evidencia que “temos todos os seres falantes, sejam
homens ou mulheres, na linguagem comum, do lado masculino, e temos uma parte desses
sujeitos que funciona, em acréscimo, de outra maneira” (Brousse, 2012, p. 16).
Voltando para a tábua, vemos que não há a universal afirmativa do lado mulher, já que
não existe uma mulher que faça exceção à norma fálica, o que poderia fundar um grupo. Disso
se deduz que não há um grupo de mulheres. Na segunda fórmula, a particular negativa, Lacan
(1972-73) explica:

Quando eu escrevo ∀x. Φx esta função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador a ser
lido não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das
mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É
isto que define a … a o quê? – a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever
73

barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher,
pois [. . . ] por sua essência ela não é toda (pp. 78-79, destaque do autor).

O que Lacan (1972-73) designa não é que a mulher esteja ausente na função fálica: “Não
é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela está lá a toda.
Mas há algo mais” (p. 80). Existe, nas mulheres, uma lógica suplementar à norma fálica, pois
se fosse uma lógica complementar, ainda estaríamos no campo do todo. Miller (2016) observou
que o não-todo lacaniano só tem valor se o considerarmos escrito na ordem do infinito, pois “o
não-todo não é um todo amputado de uma das partes que lhe pertence. O não-todo quer dizer
que não se pode formar o todo. É um não-todo de inconsistência e não de incompletude” (p.
19).
Bassols (2017) conta que uma mulher se apresenta à análise com a seguinte frase: “me
sinto transbordada” (p. 2). Ele esclarece que é algo nela mesma que a ultrapassa, que excede
seus limites, apagando a diferença entre interior e exterior. “Sentir-se transbordada por si
mesma nos indica um espaço feminino distinto do espaço fechado, onde o interior e o exterior
estão claramente definidos” (Bassols, 2017, p. 2). Esse é um sentido do não-todo.
Se não há A mulher, o que há então nesse lugar? Brousse (2012) esclarece que dizer que
não existe A mulher é dizer que não há a universal sobre a mulher, mas “há gozo feminino que
não responde à lógica universal” (p. 20). Esse gozo é um gozo para além do falo, também
nomeado como gozo Outro ou suplementar. Para Lacan (1971-72), “se a mulher é não-toda, é
porque seu gozo é duplo” (p. 101). Morel (1995) aponta que nesse momento de seu ensino, ao
mesmo tempo que Lacan enuncia que não há um universal sobre A mulher, há uma essência: o
gozo feminino. O que veremos é que esse gozo, por sua própria característica, não permite uma
identificação feminina.
Sobre esse gozo Outro, Lacan (1972-73) o denomina como um “gozo do corpo [. . .]
para além do Falo” (p. 80, destaque do autor), um gozo da mulher. Esse gozo a mulher nada
sabe dele, somente que o experimenta – essa é a única coisa que ela sabe. Lacan (1972-73)
sinaliza a impossibilidade da mulher de dizer desse gozo, e que por mais que os homens lhes
supliquem de joelhos, não há nenhuma palavra possível. Esse gozo toma como paradigma o
gozo místico.
Lacan (1972-73) elege dois místicos como o centro de sua discussão: Santa Tereza
D’ávila e São João da Cruz, “porque não se é forçado, quando se é macho, de se colocar do
lado ∀xΦx. Pode-se também colocar-se do lado do não-todo” (p. 81). Quem quer que esteja
74

desse lado experimenta um gozo que está mais além e é a isso que se chama místico. Ele diz
sobre Santa Tereza:

basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está
gozando, não há dúvida. E do que ela goza? É claro que o testemunho especial dos místicos é
justamente dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele.
Essas ejaculações místicas, não é nem lorota, nem só falação, é em suma o que se pode ler de
melhor
Eu creio no gozo da mulher, no que ele é a mais, com essa condição de que esse a mais vocês
coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem (Lacan, 1972-73, p. 82).

Lacan (1972-73) indica que a mulher tem uma fundamental relação com o Outro
barrado, já que ela tem uma relação com o significante do Outro, mas na medida em que não
há Outro do Outro, podendo ser representado assim: S(Ⱥ). Ou seja, ela tem relação com um
significante que faltaria ao Outro que pudesse lhe dizer o que é uma mulher. Esse gozo
feminino, “radicalmente Outro” (Lacan, 1972-73, p. 89), faz com que a mulher tenha mais
relação com Deus, já que os místicos atribuem a Deus a experiência desse gozo. Bessa (2012)
esclarece que esse apelo a Deus não é um apelo à religião, “mas ao Deus como um Outro
impossível de ser significado pela fala, pois não se trata do Outro da fala. O Outro que se trata
aqui é o Outro sexo, inexistente no plano significante” (p. 90).
A estátua de Santa Teresa, que estampa a capa do vigésimo seminário de Lacan, foi
esculpida entre 1645 e 1642 e representa a imagem do encontro dela com o anjo, presente no
seguinte depoimento da mística:

Um dia me apareceu um anjo com uma beleza nunca vista antes. Eu vi em sua mão uma longa
lança de ouro cuja ponta parecia ser uma ponta de fogo. Ela parecia penetrar várias vezes no
meu coração e perfurar minhas entranhas. A dor era tão grande, que me fez gemer, muitas vezes,
em alta voz, e ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não
pude querer livrar-me dela. Nenhuma felicidade terrestre pode dar um prazer assim tão grande.
Quando o anjo tirou a sua lança, senti um enorme amor por Deus.

Figura 3: O êxtase de Santa Teresa D’ávila.


Estátua de Bernini.

Fonte: http://www.romapravoce.com/extase-santa-teresa-davila-bernini/
75

Miller (2012) diz que a igreja reconheceu o gozo Outro antes da psicanálise e, nas
místicas, uma ameaça, tendo como solução casá-las com Deus. Para o autor, os votos de pobreza
e castidade dessas mulheres “enquadram o gozo mais além do falo” (p. 75). Esse gozo que
poderia ser uma essência da mulher, no entanto, não lhe permite criar uma identificação
feminina a partir dele, não permite formar um grupo das mulheres que poderiam se especificar
por esse gozo, pois “o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira da solidão”
(Lacan, 1972, p. 467).
O gozo feminino localiza-se no corpo, indica Miller (1998), mas esse corpo não faz
todo, “não tem unidade, o que manifesta que é o próprio corpo feminino que, no gozo, é
outrificado” (p. 108). E é por isso que Lacan pode dizer que a mulher é Outra para ela mesma.
O autor continua indicando que não faltam testemunhos femininos sobre a estranheza do gozo
que habita seu corpo, estranheza com efeito de ilimitado.
O segundo nível da tábua aponta para uma duplicidade da parceria amorosa da mulher:
“A mulher tem relação com o S(Ⱥ), e já nisso que ela se duplica, que ela não é toda, pois, por
outro lado, ela pode ter relação com o Φ” (Lacan, 1972-73, p. 87). Há uma dupla face no registro
da sexualidade da mulher: uma ligada ao falo e outra ao S(Ⱥ), ao gozo suplementar, que
ultrapassa o artifício da máscara.
Uma consequência importante da ligação da mulher com o S(Ⱥ) e com a ausência de
um significante feminino é que o amor aparece como uma insistência. A mulher encontra, no
amor, uma forma de especificar-se como uma, nem que seja como uma mulher de um homem,
“é também por isso que é como única que ela quer ser reconhecida pela outra parte: isso é mais
que sabido” (Lacan, 1972, p. 467).
O amor toma, então, um lugar privilegiado para as mulheres, tendo como princípio o Ⱥ,
o não-todo, o sem limites, e a devastação é seu outro nome. Enquanto no lado masculino temos
como rubrica do modo de gozar o sintoma, do lado feminino, temos a devastação (Miller ,
2016). O sintoma, por sua estrutura própria, é um sofrimento localizável, limitado, por isso
podemos fazer uma clínica do sintoma. Já na devastação, trata-se de outra coisa: “Não podemos
classificar as devastações. Ser devastado!... Não vou me devastar por causa disso. O que é a
devastação? É ser devastado” (Miller, 2016, p. 20). Tomando como metáfora o devastar uma
região, a devastação é uma depredação sem limites. Falaremos melhor sobre ela mais adiante.
Já para o homem, o amor é suplementar. O gozo fálico é silencioso, não passa
necessariamente pelo amor, o que está em jogo é o objeto fetiche, mas isso, no entanto, não
nega a possibilidade do amor do lado masculino. Para a mulher, o valor do amor é outro, ele é
essencial e, nesse sentido, diríamos que a posição erotomaníaca da mulher na parceria amorosa
76

é elevada ao máximo. O gozo feminino não-todo exige que seu objeto fale, ele é tecido no amor.
“O ser sexuado dessas mulheres não-todas passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma
exigência lógica da fala” (Lacan, 1972-73, p. 16-17). Assim, o que está do lado da mulher é a
exigência da fala de amor. Como postulado por Miller (1998), por mais que o gozo passe pelo
corpo, esse corpo não faz uma unidade, de forma que a palavra de amor se torna uma exigência,
e ele afirma que “segundo o axioma: para gozar é preciso amar; isso é verdadeiramente uma
exigência do lado feminino, e eu poderia escrever a sequência: falar, amar, gozar” (p. 113)
Vale lembrar que Lacan não nega a posição feminina da mascarada no final de seu
ensino. Na seguinte passagem de “Televisão”, em 1975, ele afirma:

Ela se presta, antes, à perversão que considero ser d´O homem. O que leva à mascarada que
conhecemos, e que não é a mentira que lhe imputam os ingratos, por aderir a O homem. É mais
o haja-o-que-houver do preparar-se para que a fantasia d´O homem que há nela encontre sua
hora da verdade. Isso não é exagero, visto que a verdade já é mulher, por ser não toda – não toda
a se dizer, em todo caso. (Lacan, 1975, p. 538)

Entendemos que, na tentativa de se mascarar para se prestar à perversão d´O homem,


para que assim possa obter sua palavra de amor, a mulher pode se devastar pelo fato da palavra
que o homem lhe dá não ser suficiente. Assim, para tentar satisfazer a perversão do macho, não
há limites para as concessões que uma mulher pode fazer a um homem.

Assim, o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz.
É por isso mesmo que não são todas, isso é não-loucas-de-todo, mas antes conciliadoras, a ponto
de não haver limites para as concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua
alma, de seus bens (Lacan, 1975, p. 538).

Concluímos, com Lacan, que a sexuação passa pelo gozo e isso tem incidência no modo
como cada lado escolhe seu parceiro: a parceira-sintoma do homem e o parceiro-devastação da
mulher.
Miller (2000) orienta que não há, no nível dos instintos, um saber que nos leve rumo ao
parceiro na relação de amor, não há uma relação direta com o Outro e “eis porque Lacan pôde
definir o amor como o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que nele e em
cada um, marca o rastro de seu exílio da relação sexual” (p. 155). Ainda, ele aponta que, muitas
vezes, busca-se o analista para se perguntar o que se faz com o seu parceiro,

ou ainda, para suportá-lo, para decifrá-lo, quando, por exemplo, não conseguimos entender o
que ele diz, os sinais que emite, mas mensagens ambíguas, equivocadas, até mesmo maldosas,
como se ele falasse por enigmas, e também porque nos ferimos com o que ele nos diz. Em suma,
tratamos a questão do desejo do parceiro junto ao parceiro-analista (Miller, 2000, p. 160).
77

O que Miller (2000) indica é que não há a complementariedade, o encaixe perfeito entre
os parceiros, de forma que isso sempre faz um enigma para cada sujeito – é o que Lacan quer
dizer com o aforisma “A relação sexual não existe”. Esse parceiro é aquele com quem o sujeito
joga sua partida, mas que, por outro lado, é quem ele não consegue suportar e, “de modo geral,
isso se torna evidente, o que significa que o parceiro tem status de sintoma. Sem dúvida, o
parceiro sintoma é a fórmula mais geral para recobrir o parceiro multifacetado” (Miller, 2000,
p. 161).
A palavra parceiro – partner (palavra inglesa importada do francês), vem de parçonier
do francês antigo, que significava associado, é com ele, com o parceiro, tanto como sócio como
aquele com quem se vive, que se joga a partida. Miller (2000) esclarece que partida está ligada
ao jogo e que designa a convenção dos jogadores, mas também a duração do jogo no final do
qual são designados os ganhadores e perdedores, e afirma que o sujeito está essencialmente
engajado numa partida, tendo de maneira necessária a constituição de um parceiro. Ele explica
que é necessário esboçar uma teoria do parceiro, “porque o sujeito lacaniano [. . .] está
essencialmente engajado em uma partida. Ele tem de maneira essencial, não contingente, mas
sim necessária, de estrutura, um parceiro. O sujeito lacaniano é impensável sem um parceiro
(Miller, 2000, p. 164).
O parceiro é essencial porque o sujeito é sempre incompleto. Miller (1998) faz uma
ressalva em “O osso de uma análise” ao indicar que no último ensino de Lacan, devemos
colocar em questão o próprio termo sujeito, pois ele é sempre um objeto mortificado pelo
significante. O significante, no entanto, mortifica o sujeito, mas também é a causa do gozo e
como só há gozo em referência ao corpo, é melhor usar o termo falasser, que se trata do sujeito
mais a substância gozante:

Figura 4: esquema do parceiro-sintoma.

$ <> Outro
____________________

Falasser <> parceiro- Ʃ

Fonte: Miller, 1998.

Nesse esquema, Miller (1998) indica que o Outro de que se trata no parceiro-sintoma
não é um corpo mortificado, mas um corpo vivo, sexuado, na qual o falasser faz uma parceria
no nível do gozo, sendo o parceiro-sintoma uma mudança de perspectiva na relação do sujeito
78

com o Outro. “É aqui que se toma sentido a fórmula – não há relação sexual. Ela quer dizer que
o falasser, como ser sexuado, faz parceria não no nível do significante puro, mas no nível do
gozo, e essa ligação é sempre sintomática” (Miller, 1998, p. 106).
Não se trata de apagar a relação do sujeito com o Outro, mas essa relação se refere ao
nível da fala, o que está em jogo no nível da parceria sexual é o gozo. Essa relação no nível
sexual “passa pelo gozo do corpo e pelo gozo d’alíngua, passa pelo sintoma” (Miller, 1998, p.
104). Neste sentido, o parceiro-sintoma torna-se meio de gozo do falasser.
Essa forma de parceria declina de forma diferente do lado homem e do lado mulher. Do
lado homem, conforme vimos, o parceiro-sintoma tem a forma de fetiche, já que o homem
aborda a parceira como objeto a, “enquanto o parceiro-sintoma do falasser feminino tem a
forma erotomaníaca” (Miller, 1998, p. 109). Miller destaca como isso pode ser visto nos passes,
pois enquanto os homens estão, de início, às voltas com a questão da fantasia, o falasser
feminino tem, inicialmente, que resolver as questões do amor.
Se, por um lado, a parceira do homem deve responder a um modelo, do lado da mulher,
em função do ilimitado do gozo feminino, há a incidência da demanda de amor sobre o ser
parceiro, “e é isso que desnuda sua forma erotomaníaca – que o Outro me ame” (Miller, 1998,
p. 111). Daí desdobra a passagem em que Lacan (1975) diz que as mulheres são todas loucas,
mas não loucas de todo. Miller (1998) indica que elas são loucas porque o parceiro é o Ⱥ, “mas
todos os homens são uns brutos, todos os homens são embrutecidos pelo detalhe de sua fantasia,
todos os homens são embrutecidos, exceto os homens analisados” (p. 112). Se embrutecidos
são, não conseguem falar de amor, e é esse o verdadeiro problema do lado feminino: forçar o
homem embrutecido a falar.
O que ocorre, para chegarmos no que seria o parceiro-devastação da mulher, é que essa
demanda insistente de amor, que exige que o homem fale, retorna sobre a mulher:

Figura 5: esquema da devastação

Fonte: Miller, 1998, p. 114.

Nesse esquema42, Miller (1998) demonstra o falasser feminino dirigindo ao parceiro sua
demanda de amor que retorna sobre ela como devastação. Ele localiza a devastação como a

42
Miller, por alguma razão que ele não explica, escreve o não todo com o A não-invertido, como é usado na
matemática e apropriado por Lacan nas fórmulas da sexuação.
79

outra face do amor, uma vez que se trata do retorno da demanda de amor sobre ela. Isso
aproxima a devastação do sintoma, mas mantendo a distinção de que ela é infinita. “Falamos
de devastação quando há uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece
limites e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro-devastação para a
mulher, para o melhor é para o pior” (Miller, 1998, p. 115).
Devastação, ravage em francês, contém ravie – deslumbrar. Ambas têm a raiz na
palavra ravissement, deslumbramento, por isso um homem pode ser uma devastação para uma
mulher, mas também um deslumbramento, orienta Miller (1998). O deslumbramento (ou
arrebatamento, como foi usado na tradução do texto que Jacques Lacan escreve sobre Lol V
Stein, personagem de Marguerite Duras) indica “conduzir a um estado de felicidade extrema”
(Miller, 1998, p. 115). O que está em jogo é o modo como a demanda de amor do falasser
feminino é ou não acolhida pelo parceiro.
No próximo capítulo, trataremos de duas mulheres que se destacam por seus atos que
serão nosso fio condutor para compreender a relação do feminino com o ato. Trata-se de
Madeleine, esposa do escritor André Gide, e Medeia, personagem da peça de Eurípedes. Elas
foram escolhidas a partir de uma curiosa passagem na qual Lacan localiza que no momento em
que elas comentem seus atos, elas fazem como ‘verdadeiras mulheres’, o que vimos não ser
possível de existir, já que A mulher não existe. A devastação também será para nós um conceito
precioso, pois como veremos, tanto Medeia como Madeleine parecem sair da devastação
quando cometem seus atos. Desse modo, nos próximos capítulos retornaremos a essa noção.
80

3. MADELEINE E MEDEIA: O ATO DE UMA VERDADEIRA MULHER

Neste capítulo, apresentaremos Madeleine Gide e Medeia, de forma a compreender o


que essas mulheres – uma da realidade e outra da literatura – podem nos apontar em relação a
uma possível afinidade entre ato e feminino. Escolhemos as duas como eixo central a partir da
enunciação que Lacan faz sobre os atos delas como atos de uma verdadeira mulher.
Perguntamos se, a partir daí, não teríamos alguma pista que possa nos indicar algum ponto de
particularidade em relação ao ato no lado mulher da sexuação.
Primeiro, apresentamos a história de Madeleine Gide a partir de sua relação com o primo
e marido André Gide e, em seguida, apresentaremos a peça “Medeia” e algumas elaborações
psicanalíticas sobre o tema. Na terceira parte, traremos uma articulação teórica sobre o feminino
a partir daquilo que se destacou de Madeleine e Medeia e, por último, abordaremos o ato em
sua dimensão teórica.

3.1 Duas mulheres, dois atos.

3.1.1 Madeleine Gide.

André Paul Guillaume Gide (1869-1951) foi um escritor francês, ganhador do prêmio
Nobel de literatura em 1947, que escreveu mais de cinquenta obras, além de uma série de notas
e papéis íntimos que eram destinadas a Jean Delay, seu psicobiógrafo. Jean Delay, psiquiatra,
neurologista e escritor, produziu dois volumes de uma obra dedicada à juventude de Gide, e é
a partir delas que Lacan terá acesso à vida do escritor francês. Miller (2015a) esclarece que o
livro de Delay chega às mãos de Lacan por intermédio da Critique43 para uma resenha e que,
antes mesmo, o biógrafo o havia acolhido em Saint-Anne para seus Seminários.
A obra de Delay contém notas pessoais de Gide, trechos inéditos, cadernos de leitura e
as correspondências entre Gide e sua mãe, porém, ficou de fora um elemento essencial: “Nessa
massa, deve-se levar em conta o vazio deixado pela correspondência com sua prima,
transformada em sua esposa, Madeleine Rondeaux. Vazio que diremos adiante o lugar e a
importância, juntamente com a causa” (Lacan, 1958a, p. 753).
Sobre as notinhas que acompanham a biografia de Gide, Lacan (1958a) destaca que elas
são importantes não em seu conteúdo, mas em seu endereçamento ao biógrafo. Além dos dois

43
Critique é uma revista francesa fundada em 1946 por George Bataille.
81

volumes do livro de Jean Delay, Lacan usa como suporte a biografia escrita por Jean
Schlumberger, amigo do casal Gide e Madeleine. Esta obra reúne ainda cartas de Madeleine
que nunca chegaram a ser enviadas.
O texto lacaniano centra-se na análise da relação de Gide com as lettres e com o desejo.
Em francês, lettres pode ser traduzido como letras, mas também como cartas, duplicidade que
faz sentido na análise da obra e da biografia de Gide. O escritor era homossexual, mas Lacan
(1958a), ao abordar sua vida amorosa, centra-se na escolha heterossexual pela prima Madeleine.
Sobre a vida de André, interessa-nos destacar aquilo que se refere direta ou indiretamente à sua
relação com Madeleine.
A família de Gide vem de gerações de aliança protestante, marcada por “cuidados
maternos moralizantes” (Lacan, 1958a, p. 756), ao qual Juliette Rondeaux, mãe do escritor, não
escapa. O pai de Gide, Paul Gide, traz outra característica, a dos magistrados e acadêmicos, e
se tornou uma forte influência para o filho. Martinho (2007) indica que Paul passava grande
parte de seu tempo no escritório e, por vezes, convidava André a entrar lá. Por discordar da
forma como Juliette cuidava do filho, deixava para ela todo o encargo da educação do menino,
de forma a evitar confrontos conjugais. Apesar disso, havia momentos de extrema felicidade de
André ao lado de seu pai, como nos passeios que faziam a Luxemburgo, retratados na obra e
nas cartas do escritor. O pai, ainda que distante, teve uma presença marcante na vida do filho
até sua morte, quando André tinha onze anos de idade.
Lacan (1958a) destaca que existem poucas referências a Paul na obra de Gide, mas
quando elas aparecem, o escritor declara sua veneração filial. Em “Os moedeiros falsos”, o
personagem Boris vive uma tragédia em sua infância quando perde o pai e fica aos cuidados do
avô, enquanto Gide, por sua vez, após perder o pai, fica submetido a sua mãe. Martinho (2007)
indica que “estar entregue à mãe é estar fadado à morte, é estar condenado a permanecer
prisioneiro deste amor materno” (p. 28-29).
Juliette Rondeaux era uma “mulher austera, masculinizada e virtuosa, cultuava a moral,
se sacrificava em nome do dever” (Martinho, 2007, p. 28). O próprio casamento com Paul Gide
foi tomado como um dever por insistência de sua família. Martinho indaga que, provavelmente,
foi encarando como um dever que ela se ofereceu para conceber o único filho com o marido.
Lacan (1958a) lança uma pergunta: “Que foi para esse menino sua mãe, e aquela voz pela qual
o amor se identificava com os mandamentos do dever?” (p. 760). A relação de André com a
mãe é importante para que possamos entender sua relação com Madeleine. A mãe é apontada
por Gide como a responsável pela separação entre a dignidade do amor e seus desejos carnais,
o que Lacan apontará com a separação entre o amor e o desejo. Miller (2015a) afirma que
82

Juliette não pôde enlaçar o amor e o desejo e que o diagnóstico dessa separação é a chave da
construção de Lacan sobre o caso, e considera, por isso, que a leitura que Lacan faz da vida de
André Gide é clínica.
Hellebois (2011) vai nomear a relação de Juliette com o filho como uma maternagem
moral e apontará, pautado na leitura de Lacan, a marca da morte nessa relação, relacionada com
a incidência negativa do desejo da mãe na criança, sendo sua salvação a sedução pela tia
Mathilde Rondeaux, mãe de Madeleine. Gide (2004) esclarece que sua vida, após a morte de
seu pai, era composta por quatro mulheres, sua mãe, a senhorita Shackleton e suas tias Claire e
Lucille, todas elas “modelos de decência, de honestidade, de descrição” (p. 22, tradução
nossa)44. Sua tia Mathilde havia sido excluída da família por sua má conduta, já que possuía
um amante, com quem casou, um ano após a morte do marido.
Martinho (2007) aponta que a tia Mathilde interviu de forma decisiva na vida de André,
sendo, ao mesmo tempo, “salvadora e pervertedora” (p. 29). Em “A porta estreita”, Gide (1984)
misturando realidade e ficção, narra a cena de sedução na qual Lucille seduz o sobrinho Jérôme,
de 13 anos, passando-lhe a mão sobre o peito com a desculpa de arrumar-lhe a roupa. Numa
tarde de verão, Lucille o encontra na sala e quando ele está saindo ela lhe indaga:

– Por que tanta pressa Jérôme? Você tem medo de mim?


O coração batendo descompassadamente, aproximo-me; faço um esforço para sorrir-lhe,
estender-lhe a mão. Ela a conserva presa, e com a mão livre afaga-me o rosto.
Pobrezinho… como sua mãe o veste mal!…
Eu estava com uma jaqueta de gola alta, que minha tia se põe a ajeitar com os dedos.
– A gola marinheira deve ser usada mais aberta! – diz ela, abrindo-me um botão da camisa – ai
está! Veja se não fica melhor assim!
E, tirando o espelhinho, cola o rosto ao meu, cobrindo-me o pescoço com o braço nu, insinua a
mão na abertura da minha camisa, indaga sorrindo se sinto cócegas, ousa um pouco mais …
Recuei tão bruscamente que minha jaqueta se rasgou; as faces afogueadas, ouço-a a exclamar:
– Mas que idiota!
Fujo, correndo, até a extremidade do jardim; mergulho o lenço numa pequena cisterna da horta,
levo-o à testa, lavo, esfrego as faces, o pescoço, todas as partes onde ela tocara (Gide, 1984, pp.
17-18)

É nessa cena com a tia que André tem seu desejo despertado, mas também tornar-se o
filho desejado no plano imaginário. Nesse despertar do desejo, Gide não se reconhece como o
objeto de desejo feminino, mas identifica-se com a sedutora. Lacan (1958a) indica que é na
mulher, encarnada pela tia, que ele se descobre transmudado em desejante.

Mas essa transformação vem apenas como resíduo de uma subtração simbólica que se fez no
lugar em que o menino, confrontado com a mãe, só pôde reproduzir a abnegação de seu gozo e

44
No original: “modelos de decência, de honestidade, de discreción”.
83

o invólucro do amor. O desejo deixou ali somente sua incidência negativa, para dar forma ao
ideal do anjo que não poderia suportar o contato impuro (p. 756).

Essa figura do anjo é encarnada por Madeleine. Lacan (1958a) afirma que Madeleine
completa o trio de feiticeiras que representavam o destino na vida de André. Esse trio de
feiticeiras é tomado como referência da peça “Macbeth”, de Shakespeare. Como apontamos no
capítulo um, a vida do general Macbeth muda após o encontro com três bruxas que lhe
anunciam o destino de se tornar o rei da Escócia. Para cumprir a resolução do destino, Macbeth
terá que cometer assassinatos, coordenado por sua esposa Lady Macbeth. O que Lacan aponta
é que são essas três mulheres – a mãe, a tia e Madeleine, que marcam o destino de Gide, como
as bruxas marcaram o de Macbeth, principalmente no que concerne a sua relação com o desejo,
sempre tomado como clandestino.
Madeleine era filha mais velha do irmão de Juliette com Mathilde, a tia sedutora.
Mathilde era uma mulher infiel que, com seus atos considerados imorais, expunha a família
socialmente. Em 1880 o pai de Madeleine faleceu e a jovem assumiu as responsabilidades
familiares, já que o comportamento de sua mãe envergonhava a família e as filhas a recusavam
(Fayad, 2015). É na casa dos tios que Gide tem seu encontro arrebatador com Madeleine.

No terceiro andar da casa [dos tios] ficavam os quartos dos filhos, lá Gide, aos 13 anos, descobre
Madeleine, sua prima, dois anos mais velha, de joelhos, aos prantos e nisso encontra ‘um auge
de embriaguez, entusiasmo, desamparo e emoção’. A partir desse momento, Gide se dedica a
proteger Madeleine. A elege como seu único objeto de amor (Martinho, 2007, p. 32).

Essa promessa de devoção é o que marca o amor de André por Madeleine, um amor sem
conexão carnal, um amor puro. Gide (1984) descreve essa cena através da narração do encontro
de Jérôme com Alissa, também personagens da obra “A porta estreita”. Após passar pela porta
do quarto de sua tia e vê-la deitada numa espreguiçadeira com um jovem atrás dela, e seus
outros filhos a seus pés, ele chega até o quarto de Alissa.

Chego ao quarto de Alissa. Fico esperando durante alguns segundos. As risadas e o estrépito
das vozes que partem do segundo andar talvez tenham abafado o ruído de minhas batidas à
porta, pois ninguém responde. Dou um leve empurrão e a porta abre silenciosamente. O quarto
está tão escuro que, ao primeiro relance, não vejo Alissa. Ajoelhada à cabeceira da cama, lá está
ela, de costas para a janela, onde a noite começa a cair. Volta-se à minha aproximação, sem
contudo se levantar. Ouço-a murmurar:
–Oh! Por que você voltou, Jérôme?
Curvo-me para beijá-la, lagrimas escorrem-lhe pelo rosto.
Esse momento foi decisivo em minha vida; ainda hoje não posso recordá-lo sem angústia [. . .].
Não sei explicar aquele êxtase novo que me arrebatava o coração, mas apertava a cabeça de
Alissa, postos em sua fronte onde minha alma se esvaia. Inebriado de amor, de compaixão [. . ]
invocava Deus com todas as forças e me ofertava, na certeza de que o único propósito de minha
84

vida era proteger aquela criança contra o medo, contra o mal, contra a vida (Gide, 1984, pp. 22-
23)

Martinho (2007) aponta que diante de Madeleine, “Gide reproduz o envolvimento de


seu amor: identificado à mãe do amor e do dever, ao modelo de rigor moral, ele, doravante,
gosta em Madeleine de um outro ele mesmo, do filho que ele foi para sua mãe, frágil, objeto de
amor que necessita de proteção contra o mal e contra a vida” (p. 32). Antes de se casarem, os
primos iniciam uma intensa troca de cartas, marcada por um tom fraternal. Madeleine, muitas
vezes, assinava a carta com soeur ainée, irmã mais velha, e o chamava de Cher frère, querido
irmão ou petit frère, irmãozinho. No entanto, com medo de um escândalo, devido ao
comportamento excêntrico do primo, Madeleine rompe com ele e destrói algumas lembranças
que tinha dele, como livros, flores secas e um abridor de cartas que ele havia lhe dado (Fayad,
2015). Interessante é que Madeleine, nesse período de término, escrevia cartas a André, mas
não as enviava, destacando que “também a relação de Madeleine com as lettres era
fundamental” (Fayad, 2015, p. 99). No entanto, Madeleine, dividida entre a moral e o amor
pelo primo, aceita seu pedido de casamento em 1881, acreditando poder exercer sobre ele uma
influência moral.
Hellebois (2011) destaca que Juliette era contra o casamento dos primos, mas pouco
antes de sua morte, havia mudado de ideia, por uma razão que tem relação com sua postura
moralizante. Em 1893, Gide faz uma viagem à África onde manteve relações sexuais com
prostitutas e também com jovens garotos; as primeiras, relatadas à mãe através de cartas, e as
segundas, deduzidas por ela. Ela as deduziu já que o filho lhe contou os planos de levar a Paris
um jovem argelino que havia conhecido. Com medo de que o filho fosse por um caminho
escandaloso, preferiu apoiar o casamento dele com Madeleine. Para o autor, o casamento é
selado numa atmosfera fúnebre, já que Juliette morreu em 31 de maio, pouco antes do noivado,
em 17 de junho e não tantos meses antes do casamento, que ocorreu em 08 de outubro. Após o
casamento, Madeleine e Gide partiram para a viagem de núpcias, na qual o casamento não foi
consumado no plano sexual, fato que se manteve durante os vinte anos de matrimônio.
Gide amava Madeleine e desejava jovens garotos, mostrando seu gosto pederasta. O
amor do casal foi marcado pela leitura e pela música, um amor de alma somente. Gide declara
que iria abster-se do carinho para não perturbar a pureza de Madeleine: “Melhor eu não te
desejar. Seu corpo me incomoda e as possessões carnais me apavoram”45 (Hellebois, 2011 p.

45
No original: «Aussi bien je ne te désire pas. Ton corps me gêne et les possessions charnelles m’épouvantent».
85

51, tradução nossa). O desejo de Gide, direcionado para meninos jovens de peles morenas e
“não pensantes”, fica relegado ao marginal, ao clandestino, nas palavras de Lacan (1958a).
Sobre a posição de Madeleine, Lacan (1958a) destaca que ela “quis o casamento casto,
[. . .] mas ela o quis com base em fundamentos inconscientes, que se revelaram os mais
convenientes para deixar o impasse de André no estado em que se achava” (p.767). Esses
fundamentos inconscientes dizem respeito ao amor da jovem fixado no pai. Lacan (1958a) retira
essa conclusão de uma carta dela à sua tia: “Talvez eu só reconheça dois estados de espírito
quanto às coisas da vida: a inquietação pelo futuro, a tristeza pela saudade do papai” (Delay
citado por Lacan, 1958a, p. 767). Madeleine, fixada em seu pai morto, também exclui o desejo.
Lacan pergunta “o que teria acontecido se ela houvesse oferecido a André, de Mathilde, sua
mãe, com quem se parecia, uma figura que a cor do sexo houvesse reanimado?” (p. 767). Será
que haveria entre eles o estabelecimento dessa parceria amorosa? Entendemos que nela,
Madeleine ocupava o lugar de objeto amado, que lhe cabia muito bem, não precisando lidar
com as questões de seu desejo. Ela consentia com o gosto de Gide pelos jovens garotos desde
que isso lhe garantisse sua posição de ser o objeto de amor. Miller (2015a) discorda de Lacan
quando ele diz que a jovem quis o casamento casto, indicando um ponto enigmático do desejo
de Madeleine. “Ora, o livro de Delay diz exatamente o contrário: discretamente, com os meios
de uma feminilidade inibida, ela tentava de qualquer maneira despertar o senhor. Em que nível
está então esse querer quando Lacan diz ‘ela quis’? Pois está claro que ela tinha disposições de
anjo” (Miller, 2015, p. 25).
Após certo tempo de casamento, Madeleine mudou-se para Cuverville, uma pequena
cidade francesa localizada na Baixa Normandia, e Gide ficou em Paris, pois, no interior, sua
libido não encontraria nenhuma escapatória. Distantes, Gide tinha o pretexto de escrever a
Madeleine, o que fazia dela sua leitora. As cartas tinham um valor imenso para o escritor, já
que através delas, ele poderia alcançar a imortalidade. “Resumindo, Madeleine era aquela que
lhe permitia viver sua vida como ela era escrita; ela representava este Outro por vir, figura do
sujeito suposto saber, que ele situava na posterioridade”46 (Hellebois, 2011, p. 60, tradução
nossa).
Lacan (1958a) aponta que Madeleine era uma mulher culta, reservada e que “soube não
ver aquilo que queria ignorar” (p. 771). Essa afirmação de Lacan aproxima-se do que Gide
(2004) fala de Madeleine em “Et nunc manet in te”, livro que ele escreve após a morte da

46
No original: «Bref, Madeleine était celle qui lui permettait de vivre sa vie comme elle sera écrite; elle
représentait dans sa vie cet Autre à venir, figure du sujet supposé savoir, qu’il situait dans la postérité».
86

esposa. O escritor questiona como ela se enganou tanto tempo em relação a ele e seus desejos
sexuais. Ele cita sua viagem de lua de mel para Itália, quando se animava ao ver os jovens
rapazes e também quando em Florença subia com jovens modelos para o apartamento que
haviam alugado com a desculpa de fotografá-los. Ele mesmo questiona o desconhecimento da
esposa em relação à suas aventuras.
Hellebois (2011) indica que essa relação assim se sustentou até 1918, quando Madeleine
queimou as cartas que Gide lhe enviou por toda a vida. Gide apaixonou-se por Marc Alégrett47
e planejava com ele uma viagem à Cambridge. Na véspera da viagem, após o jantar, Madeleine
interrogou o marido: “Você não parte só, não é?” 48 (Gide citado por Hellebois, p. 64, tradução
nossa). André balbuciou que não, e quando ela lhe perguntou se ele iria com Marc, ele
respondeu que sim. Gide tentou argumentar, mas Madeleine o respondeu: “Não me digas nada.
Nunca mais me digas nada. Eu prefiro teu silêncio à tua dissimulação”49 (Gide citado por
Hellebois, 2011, p. 64, tradução nossa). Neste momento, as palavras de amor não tinham mais
valor para ela.
Lacan (1958a) afirma que Madeleine viu, no rosto de Gide, o primeiro amor que ele
teve longe dela e lhe interroga. Apesar de perturbado com a pergunta de Madeleine, André faz
a viagem com Marc. Nessa circunstância, após a partida de André, Madeleine queima todas as
cartas que ele lhe havia enviado durante o tempo que ficaram separados. É a partir desse ato
que se destaca a passagem que nos é fundamental:

Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser permanece impenetrável, mas
o único ato em que ela nos mostra claramente distinguir-se disto é o de uma mulher, de
uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher. Esse ato foi o de queimar as cartas –
que eram o que Madeleine possuía ‘de mais precioso’. Que ela não tenha dado outra razão para
isso senão ter tido que fazer alguma coisa’ acrescenta ao ato o signo da fúria provocada pela
única traição intolerável (Lacan, 1958a, p. 772, destaque nosso).

A traição intolerável foi a de Gide ter encontrado um amor longe dela, já que com Marc
aparece o ponto do amor para além do desejo carnal. Por mais que Gide tenha diversas vezes
afirmado que Madeleine foi seu único amor, o que importa é isso que destaca Lacan (1958a),
que ela viu no rosto dele um novo amor longe dela. Interessante que a resposta de Madeleine,

47
Marc Allégret era filho de Elie Allégret, pastor e amigo de infância de Gide. Elie era missionário na África e,
como era muito ausente, Gide ajudava a sua esposa a cuidar de seus filhos, dentre eles Marc, que na época do
início do romance com Gide tinha 16 anos de idade (Hellebois, 2011).
48
No original: «Tu ne pars seul, n’est-ce pas?»
49
No original: «Ne me dis rien. Ne me dis plus jamais rien. Je préfère ton silence à ta dissimulation».
87

quando indagada sobre seu ato, foi ‘ter que fazer alguma coisa’, acrescentando ao ato o signo
da fúria. Eis sua explicação:

Após tua partida, assim que me encontrei sozinha, na grande casa que tu me abandonavas, sem
ninguém sobre quem me apoiar, sem mais saber o que fazer, e o que tornar-me... eu acreditei
inicialmente que me restava apenas morrer. Sim, verdadeiramente, eu acreditei que meu coração
parava de bater. Eu sofri tanto. Eu queimei suas cartas para fazer alguma coisa. Antes de destruí-
las, eu as reli, uma a uma. [...] era o que eu tinha de mais precioso no mundo50 (Gide citado por
Hellebois, 2011, pp. 68-69, tradução nossa).

Parece que algo da devastação incide em Madeleine. Sem Gide, ela não sabe o que fazer,
nem o que ser. Madeleine somente conta para Gide que queimou as cartas quando ele as pede
para sua biografia. O depoimento de Gide sobre o ocorrido é contundente e demonstra como o
ato de Madeleine o atinge no nível do ser:

Acreditei que morreria. Mas era necessário que você soubesse o que eram essas cartas. [. . .]
essas cartas eram o tesouro de minha vida, o melhor de mim: sem dúvida, o melhor de minha
obra. [. . . ] o mais puro de minha existência, o mais puro do meu coração estava lá [...] e muitas
vezes eu me disse: ‘podes morrer’ [. . .] ah, imagino o que pode sentir o pai que chega em casa,
e que sua mulher venha dizer: ‘Nosso filho se foi, eu o matei’51 (Gide citado por Hellebois,
2011, pp. 65-66, tradução nossa).

Gide eleva a perda das cartas à perda de um filho. Esse ato abre um vazio no seu ser. As
cartas tinham para ele a função de lhe continuar a vida mesmo após a morte. Madeleine atinge
Gide na filiação, ela rompe com uma lógica de descendência do marido52.

Desde então, o gemido de André Gide, o de uma fêmea de primata ferida no ventre com o qual
ele pranteia a extirpação do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas – razão pela qual
as chamava de seus filhos, - só faz parecer que preenche com exatidão o vazio que o ato da
mulher quis abrir em seu ser, longamente escavado por uma após a outra das cartas atiradas
ao fogo de sua alma flamejante (Lacan, 1958a, p. 772, destaque nosso).

Interessante, pois nesse ato, sob a necessidade de fazer alguma coisa, Madeleine
também abre mão daquilo que tinha de mais precioso. Não podemos afirmar que as cartas

50
No original: «Après ton départ, lorsque je me suis retrouvée toute seule dans la grande mansion que tu
abandonnais, sans personne sur qui m’appuyer, sans plus savoir quoi faire, que devenir... j’ai cru d’abord qu’il ne
me restait qu’à mourir. Oui, vraiment, j’ai cru que mon cœur cessait de battre, que je mourais. J’ai tant souffert.
J’ai brûlé tes lettres pour faire quelque chose. Avant de les détruire, je les ai toutes relues, une à une [...] C’était ce
que j’avais de plus précieux au monde».
51
No original: «J’ai cru mourir. Mais il faut que vous sachiez ce qu’étaient ces lettres [...] Ces lettres étaient le
trésor de ma vie, le meilleur de moi: à coup sûr, le meilleur de mon œuvre [...] Le plus pur de mon existence, le
pur de mon cœur était là. [...] et souvent je me disais: ‘Tu peux mourir: [...] Ah, j’imagine ce que peut éprouver le
père qui rentre chez lui, et à qui sa femme vient dire: ‘Notre enfant n’est plus, je l’ai tué’».
52
Hellebois (2011) relata que Gide teve uma filha, mas que a assumiu apenas após a morte de Madeleine. De todo
modo, era nas cartas que Gide depositava a função de se perpetuar na posterioridade.
88

tinham para ela o valor de filhos, porém elas eram seu bem mais precioso, possuíam, portanto,
um valor fálico. Nesse momento, Madeleine abre mão do ter para atingir Gide no âmbito do
ser. Seu ato comporta essa dimensão.
Hellebois (2011) aponta que Gide descrevia-se como alguém que chorava todo dia
diante da esposa após a queima das cartas. Ela, por sua vez, permanecia indiferente e insensível
ao choro do parceiro. Para Gide, era incompreensível a posição de Madeleine. Na citação em
que aborda o ato de Madeleine como o de uma verdadeira mulher, Lacan (1958a) acrescenta
uma nota de rodapé após a passagem, ‘naquilo que Gide a fez ser’. A nota trata de uma resposta
de Gide à Jean Delay: “Alissa […] ela não era, mas transformou-se nela” (p. 772). Alissa era a
personagem de “A porta estreita” que fazia par com o narrador Jérôme, descrito por Gide como
um homem fraco. Alissa tinha um grande fervor religioso e gosto pela literatura como
Madeleine, e recusou o amor do narrador, já que sua irmã caçula o amava.
O encontro entre Alissa e Jérôme é sempre malsucedido e ela torna-se cada vez mais
disposta a se sacrificar, tornando-se isolada, amargurada e doente, vindo a morrer precocemente
Madeleine demorou a aceitar o pedido de casamento de Gide, mas, diferente de Alissa, cedeu.
Gide descreve que após queimar suas cartas, Madeleine envelheceu rapidamente, adoeceu e
morreu, assim como Alissa, em “La porte étroite” No entanto, Schlumberger indica que após
queimar as cartas do esposo, Madeleine passou a dedicar-se mais a seus gostos, às suas leituras
e não ser somente a destinatária da obra de Gide (Fayad, 2015).
Como dissemos no início deste trabalho, é de relance, a partir do ato de Madeleine, que
Lacan (1958a) se refere a Medeia:

André Gide, revolvendo no coração a intenção redentora que atribui ao olhar que nos retrata -
sem dar importância à sua respiração ofegante – àquela passante que atravessa seu trespasse
sem cruzar com ele, engana-se. Pobre Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão
de dourado da felicidade não reconhece Medeia (p. 773, destaque nosso).

Gide não reconhece Medeia em sua angelical esposa. Em “Et nunc manet in te” ele
esclarece que somente no declínio da vida de Medeleine, ele pôde conhece-la melhor. Ele
acredita que, até ela queimar suas cartas, ele havia cometido um erro de julgamento, pois não
acreditava que ela poderia cometer um ato como esse. Gide (2004) explica que esse erro
aconteceu “porque todo o esforço do meu amor não estava dedicado a aproxima-la para perto
de mim, como de aproxima-la dessa figura ideal que eu havia inventado. Ao menos isso acho
89

agora”53 (p. 15, tradução nossa). É o próprio Gide quem indica como é somente no ato de
queimar suas cartas que Madeleine sai dessa figura idealizada que ele havia criado. Só fora
dessa imagem, ele pode ser uma Medeia.
Lacan (1958a), portanto, não aborda diretamente o ato de Medeia como o ato de uma
verdadeira mulher, fazendo isso por meio de uma derivação, quando retrata a inocência de Gide
em não reconhecê-la em sua esposa. Temos aí a equivalência André Gide e Jasão e,
consequentemente, Madeleine e Medeia. Miller (2012) diz que Gide não reconheceu na sua
angelical esposa a Medeia, a mulher capaz de matar seus próprios filhos para atingir o homem.
O que se destaca na peça de Eurípedes é “uma emergência do absoluto” (Miller, 2012, p. 72),
e ambas possuem em comum o ato como uma resposta à traição do parceiro. Passemos à Medeia
antes de seguirmos com nossa formalização teórica.

3.1.2 Medeia.

A peça “Medeia” foi escrita em 431 a.C. por Eurípedes e ficou em último lugar no
concurso teatral das Grandes Dionísias. A peça alude à expedição mitológica dos Argonautas.
Em Iolco, o trono é usurpado de Esão por seu irmão Pélias. Quando Jasão, filho de Esão, atinge
a maioridade, ele exige o trono como seu direito de herança, mas Pélias exige como condição
para a devolução do trono que o sobrinho conquiste o tosão de ouro, localizado em um bosque
da Cólquida e consagrado ao deus Ares. Jasão parte para a missão acompanhado por cinquenta
guerreiros na nau Argos. Quando chega em Cólquida, o rei Eetes coloca para Jasão quatro
missões como condição de lhe entregar o tosão dourado. As missões eram: derrotar dois touros
com pés e chifres de bronze, arar a terra com eles e semear nela dentes de dragão, matar os
gigantes nascidos desses dentes e eliminar o dragão que guardava o tosão de ouro (Dutra, 1991).
Dutra (1991) escreve que, “disposto a voltar a Iolco, diante da impossibilidade de vencer
sozinho as provas, Jasão foi socorrido pelos poderes do amor” (p. 2). Medeia, bruxa bárbara,
filha de Eetes, ajuda Jasão a vencer as provas com magia. Após a captura do tosão de ouro, ela
foge com Jasão e leva seu irmão caçula Apsirto como refém. No caminho, ela mata-o e
esquarteja-o, lançando os pedaços de seu corpo ao mar para atrasar a perseguição do rei Eetes
à sua embarcação.
Quando chegam a Iolco, descobrem que o usurpador do trono Pélias matou Esão, pai de
Jasão. Medeia, por meio da magia, enganosamente convence as filhas de Pélias a esquartejarem

53
No original: “Porque todo el esfuerzo de mi amor no estaba dedicado tanto acercarla a mi, como a acercarla a
esa figura ideal que yo había inventado. Al menos eso me parece ahora”.
90

e cozinharem o pai, dizendo que assim ele rejuvenesceria. Descoberto o crime por Acasto, filho
de Pélias, Jasão e Medeia fogem para Corinto e são recebidos pelo rei Creonte. Dutra (1991)
descreve que eles vivem em paz até que o rei decide casar Jasão com sua filha Creusa.
A peça “Medeia” tem início no ponto em que Jasão aceita casar-se com Creusa. Logo
no começo da peça, a nutriz descreve o estado de Medeia:

Seu corpo carpe, inane ela se prostra, delonga o pranto grave assim que sabe o quanto fora
injustiçada. O olhar sucumbe à terra, nada a faz erguê-lo feito escarcéu marinho, feito pedra,
discerne o vozeiro amigo, exceto quando regira o colo ensimesmado, alvíssimo, em lamúrias
pelo pai, pelo país natal, que atraiçoou por quem sem honra a tem agora (Eurípedes, 2010, p.
25).

A nutriz também anuncia que algo se passa na relação de Medeia com os filhos: “Ao
ver os filhos, tolda o cenho com desdém. Tremo só de imaginar que trame novidades. Sua
psique circunspecta suporta mal a dor” (Eurípedes, 2010, p. 25). Parece que a nutriz prevê o ato
que se anuncia e ainda acrescenta que Medeia é “terribilíssima” (Eurípedes, 2010, p. 26). Da
forma como ela relata a cena, a nutriz deixa entrever que a devastação incide sobre o corpo de
Medeia após anunciada a união de Jasão e Creusa. E mais adiante na peça, ela diz: “Medeia
consome a vida no aposento, vazia de palavras que lhe afaguem no íntimo” (Eurípedes, 2010,
p. 37).
Na primeira aparição de Medeia na peça, ela anuncia todo seu sofrimento: “Sofrimento
imenso! Nada sofreia o sofrimento que me abate! Ó prole odiosa de uma mater mórbida,
meritória de maus votos, pereça com o pai!” (Eurípedes, 2010, p. 34). Mais que isso, os filhos
já aparecem como sem valor para ela. Não que ela não os amasse, mas eles perdem valor se não
trazem consigo o pai.
No diálogo do pedagogo com a nutriz, ele indica a intenção de Creonte em expulsar
Medeia de Corinto com o consentimento de Jasão. A nutriz assusta-se e tenta proteger as
crianças, pedindo que elas entrem para casa e que evitem contato com a mãe. Medeia, antes
mesmo de receber a sentença de Creonte, anuncia seu desejo de vingança: “Se eu achar um
meio de cobrar o esposo por ser tão inescrupuloso e o rei que lhe entregou a filha, silencia!
Mulher é amedrontável, ruim de pugna, não suporta a visão da lança lúgubre, mas se maculam
a honra em sua cama, não há quem lhe supere a bravura (Eurípedes, 2010, p. 47).
Creonte ordena a Medeia que ela vá embora levando os filhos, ele justifica que a manda
embora pois teme que ela faça algo com Creusa. O diálogo entre Medeia e Creonte é longo e
ela o convence a dar-lhe mais um dia em Corinto para que possa organizar sua partida com os
filhos. Após o consentimento de Creonte, ela planeja sua vingança.
91

Hei de fazer pai, marido e filha uma trinca sinistra, pois domino um imenso rol de vias
morticidas, embora ignore por onde começo: meto fogo no ninho conjugal, enfio-lhes a lâmina
no fígado, em passos silenciosos pela câmara? [. . .] Após a chacina que urbe me recebe? Que
forasteiro me abrirá seu paço, zeloso de que o corpo nada sofra? Não há. Darei um tempo para
ver se um torreão se me apresenta incólume e perpetro a matança quietamente. Presa do
imponderável, mão na espada, num rasgo de coragem, matarei a corja à bruta, mesmo se morrer
(Eurípedes, 2010, p. 59).

A decisão do ato de matar Jasão, Creusa e Creonte é certeira, não há nenhuma vacilação
em relação a ele, somente aos meios, e ela escolhe o envenenamento. Jasão surge na peça e se
dirige a Medeia indicando que ela é a culpada do próprio exílio graças a sua “fala verborrágica”
(Eurípedes, 2010, p. 63), já que ele tentou acalmar o rei para que ela pudesse ficar, mas ela o
afrontou. No diálogo, Jasão mostra sua preocupação com os filhos: “Não é da minha índole
negar os meus, por isso vim preocupadíssimo, a fim de que não vás com os meninos com uma
mão na frente e outra atrás” (Eurípedes, 2010, p. 64).
Medeia, furiosa, nega a ajuda e responde a Jasão destacando todos os feitos: salvar sua
vida dos touros arfantes, assassinar a serpente que enroscava o tosão de ouro, trair a morada do
pai, matar Pélias pelas mãos das próprias filhas. Medeia recusa a ajuda de Jasão, segundo Miller
(2012), pois ela “já está na zona onde o ter não tem nenhum valor se lhe falta o homem” (p.
70). Importante que Jasão minimiza tudo aquilo que Medeia alega ter-lhe dado, diz que a nau
não naufragou por desejo de Cípris e que Eros a forçou a ajudá-lo. Ele ainda lhe diz: “não
desmereço teu pequeno auxílio, mas não comparo ao que me deste o que eu, salvando-me, te
propiciei. Me explico: teu logradouro é grego e não bárbaro, prescinde do uso cru da força
bruta, não ignoras justiças e normas” (Eurípedes, 2010, p. 71). Jasão mostra com isso que foi
ele quem retirou Medeia do mundo bárbaro e a inseriu no campo das normas, no campo fálico.
Já que antes, bruxa bárbara, desconhecia os limites.
Jasão continua seu diálogo com Medeia e a interroga por que precisa tanto dos filhos e
que ele poderia reunir os filhos e congregar a família em só uma, mas prevendo a resposta dela,
diz-lhe: “A mim convém que os filhos do futuro auxiliem os que hoje vivem. Erro? Tua
discordância se resume à cama. A que pontos chegais, mulheres: credes ter tudo se o casório
vai de vento em popa, e o belo e conveniente nada valem caso o deleite falte ao leito!”
(Eurípedes, 2010, p. 73).
Do mesmo modo que as palavras de Gide não possuem mais valor para Madeleine
quando ela o vê apaixonando por Marc, as palavras de Jasão não demovem Medeia e não têm
para ela nenhuma importância. Após o diálogo com Jasão, Medeia encontra Egeu, filho de
Pandion, oitavo rei da África, que passava por Corinto. Ele havia ido consultar-se com o
92

Oráculo, buscando nele uma resposta sobre sua infertilidade. Egeu interroga a Medeia o motivo
de seu sofrimento e consente com ela que a traição de Jasão foi terrível. Ela, então, promete a
Egeu a fertilidade: “É um achado o que achas, pois meus fármacos darão à luz os filhos de um
sem-filho” (Eurípedes, 2010, p. 91). Após a promessa de Medeia, Egeu garante acolhê-la em
seu país, primeiro, pelos deuses e depois, pelos filhos. Ela pede que ele jure jamais renegá-la e
sempre a proteger em seu país.
Nos planos iniciais de Medeia, não aparecia a enunciação de matar os filhos. Ela chama
Jasão dizendo querer retratar-se com ele e pede oportunidade de também retratar-se com o rei
e com a princesa. Jasão acredita nela e Medeia envia para Creusa um véu e uma grinalda tecidos
em ouro, como símbolo de seu arrependimento e um pedido de desculpas. Jasão, sensibilizado
com a atitude de Medeia e crendo nela, propõe ajudá-la a pedir asilo a Creonte. É por essa
confiança que Jasão tem na palavra de Medeia que Lacan (1958a) compara Gide a ele: “Pobre
Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade não reconhece Medeia”
(p. 773). Miller (2012) acrescenta que pobres são os homens que não reconhecem Medeia em
suas parcerias.
Quando Creusa veste o véu e a grinalda, ela morre envenenada. Anuncia o mensageiro:
“Nem a forma dos olhos era clara, nem os traços do rosto; seus cabelos vertiam fogo rubro gota
a gota. Oculto, o fármaco remorde carne e osso, feito pinho lacrimoso. Cena soez” (Eurípedes,
2010, p. 131). Creonte, o único com coragem de tocar Creusa, toma o corpo da filha em seus
braços e também morre envenenado.
Após o pedagogo contar-lhe sobre a morte no palácio, Medeia anuncia que matará os
filhos, mas antes o coro lhe indaga: “Matas quem germinou do teu regaço?” (Eurípedes, 2010,
p. 101), ao que ela responde: “É mordida que fere mais o esposo” (p. 101). Antes de matá-los,
há seu monólogo:

O que farei? Sucumbe o coração ao brilho do semblante dos garotos. Mulheres, titubeio! Os
planos periclitam. Vou-me, mas com meus dois filhos. Prejudicar crianças em prejuízo do pai
não dobra o mal? Fará sentido? Comigo não: adeus, projetos árduos! O que se passa em mim?
Aceitarei escárnio de inimigos impunidos? Que infâmia ouvir de mim reclamos típicos de gente
frouxa! Ao rasgo de ousadia! Para dentro, meninos! Se a lei veta a presença de alguém no
sacrifício, não é problema meu, o pulso agita-se! [. . .] Dobrou-me o mal, mirar os dois, não é
possível: ide, entrai! Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção derrota
raciocínios e é causa dos mais graves malefícios. (Eurípedes, 2010, pp. 119-120)

Nesta passagem, fica evidente que o que está em jogo não é a ausência de amor de
Medeia pelos filhos, pois ela afirma que olhar o semblante deles lhe sucumbe o coração. Isso,
no entanto, não a faz vacilar em sua decisão, o ato se mostra a ela como imperioso, destina-se
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a atingir Jasão mesmo que às custas do prejuízo dos filhos, pois “o que há nela de mulher supera
o que há de mãe” (Miller, 2012, p. 72). Aí aparece, então, a possibilidade de pensar os atos de
Medeia e Madeleine como atos de uma verdadeira mulher: atos nos quais o que está em jogo é
o ser e não o ter, atos nos quais a posição de mãe não suprime aquilo que há de mulher.

Figura 6: A fúria de Medeia de Eugene Delacroix.

Fonte: http://www.eugene-delacroix.com/medea.jsp

Quando Jasão interroga Medeia sobre o assassinato dos filhos, ela é certeira: “fiz o que
deveria ao te atingir no íntimo” (Eurípedes, 2010, p. 147). Quando ele afirma que matar por
uma traição ao leito conjugal é uma ousadia, tem como resposta: “Para a mulher, não é uma
quimera” (Eurípedes, 2010, p. 147). Jasão destaca em Medeia a ausência de limites: “Para as
sensatas é [uma ousadia], não tens limite” (Eurípedes, 2010, p. 147). Aqui, Jasão traz um
indicativo do que Lacan aponta em sua formulação sobre o não-todo. Se, para as mulheres
sensatas, é uma ousadia o ato cometido, para Medeia não, já que ela se localiza como sem
limite, como colocada além da lógica fálica, do lado feminino. Ela, no ato que tem a estrutura
do que seria o 'ato de uma verdadeira mulher', rompe com a lógica do ter. Ter os filhos perde
valor se eles não a enlaçam com o marido. Ser mulher tem mais valor que ser mãe, já que ser
mãe não diz do desejo feminino.
Medeia afirma a Jasão que irá enterrar os filhos em outro lugar para que nenhum inimigo
possa violar o túmulo das crianças e, mais uma vez, afirma que seu ato não diz de sua falta de
amor pelas crianças, pois o fez “para que sofras” (Eurípedes, 2010, p. 153). Após o diálogo
final com Jasão, Medeia parte para encontrar Egeu na carruagem que seu avô, o deus Sol, lhe
enviou.
Laia (2015) destaca que Jasão torna-se o principal alvo de Medeia, não apenas por sua
infelicidade conjugal, mas também por ele ter quebrado uma promessa. Para os gregos antigos,
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quebrar uma promessa tem o mesmo valor que um assassinato de consanguíneo, já que os
juramentos e a honra eram laços divinamente protegidos. Medeia não foi entregue a Jasão por
seu pai como era o costume, mas moveu-se solenemente para se juntar ao marido, tendo se
unido a ele “pelo poder mágico dos juramentos/honras que repetiram [. . .] palavras terríveis
administradas por Medeia e faladas por Jasão ao tocar-lhe a mão direita [. . .] palavras que os
uniram graças à Terra e o Sol, e a todos os outros deuses” (Laia, 2015, p. 27).
Isso, no entanto, parece se somar à fúria causada pela traição conjugal, não podendo
tirar o valor deste evento. É a própria Medeia que destaca a fúria ao afirmar que após maculado
o leito conjugal, não há quem supere a fúria de uma mulher. Esse é o móvel de sua ação.
A peça “Medeia” é amplamente comentada nos meios psicanalíticos, uma vez que ela
destaca a separação da mulher e da mãe. Medeia comete todos os seus atos (vale lembrar que
antes desse ato central, ela trai seu pai, mata e esquarteja o irmão e convence as filhas de Pélias
a matarem o pai) em nome de um homem – Jasão. Por ele, ela fica sem pai e sem pátria e, por
ele, ela mata seus filhos.
Como destacado, Medeia não mede as concessões que faz a Jasão, tomando aqui a
referência de Lacan (1975) quando ele afirma que não há limites para as concessões que uma
mulher pode fazer a seu homem. Por Jasão, ela desfaz-se “dos semblantes que lhe conferiam a
pátria, dizimando o lugar que era o seu” (Laia, 2015, p. 29). Nesse primeiro momento, não
encontramos em Medeia nada que indique a presença da devastação, já que todas as concessões
eram circunscritas pelo amor de seu parceiro. A devastação surge após o amor de Jasão ser-lhe
retirado.

Assim, conforme diz às mulheres em Corinto, experimentando “ser na cama injuriada”, sem
contar com o pilar do qual Jasão passou a ser um semblante, Medeia também experimenta que
'não existe outra mente mais sanguinária e já não há mais como conter a devastação que Jasão,
como um homem, faz propagar em seu corpo (Laia, 2015, p. 29-30).

Assim, Medeia devasta-se somente quando Jasão anuncia que se casará com Creusa. No
final da peça, Medeia segue para encontrar-se com Egeu, a quem prometeu a fertilidade, e nesse
momento, não mais se apresenta tomada pela devastação. Assim como Madeleine, ela mostra
um antes e um depois do ato. Este, por sua vez, tem a função de marcar uma diferença subjetiva.
Miller (2012) indica que a verdadeira mulher só pode aparece num tyché, como um acaso. É
nesse instante do ato e somente nele que poderíamos encontrar uma verdadeira mulher, ainda
assumindo que ela não existe. Como veremos no capítulo seguinte, é no ato que o
irrepresentável do feminino pode aparecer, já que o ato surge quando os semblantes que
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tamponam o vazio de significação não mais se sustentam. A partir da descrição da peça e da


história de Madeleine, vamos ao que podemos encontrar em comum entre Medeia e Madeleine.

3.2 Madeleine e Medeia: verdadeiras mulheres?

A passagem de Lacan sobre a verdadeira mulher em sua relação com o ato nos trouxe
alguns questionamentos importantes e tornou-se um eixo essencial para este trabalho. Antes, é
preciso levantar quais pontos de equivalência existem entre Medeia e Madeleine. Fayad (2015)
elenca cinco pontos em comum entre elas: 1) ambas destroem aquilo que tinham de mais
precioso; 2) a marca da fúria, que surge após a traição dos maridos; 3) a necessidade de fazer
alguma coisa em relação à traição sofrida; 4) a equivalência entre Gide e Jasão, que não
reconhecem nas esposas a capacidade de cometimento de atos tão atrozes e 5) o rompimento,
por parte dos maridos, das promessas estabelecidas.
Acrescentamos às contribuições de Fayad (2015) outros pontos. Primeiro, que antes do
ato, podemos reconhecer em ambas a experimentação da devastação em seus corpos e podemos
tomar o ato como um possível tratamento para a devastação. Junto a isso, temos a contribuição
de Miller (2012) de que os atos dessas mulheres atingem o parceiro no nível do ser e não apenas
do ter, ultrapassando os limites fálicos e atuando com o menos.

Para Lacan, discretamente, o ato de uma verdadeira mulher – não vou dizer que seja o ato de
Medeia, mas sim que tem sua estrutura: o sacrifício do que tem de mais precioso para abrir no
homem o buraco que não poderá ser preenchido [. . .] Uma verdadeira mulher explora uma
zona desconhecida, ultrapassa os limites, e, se Medeia nos dá um exemplo do que há de
extraviado numa verdadeira mulher, é porque ela atua com o menos e não com o mais. No
próprio cerne de uma situação em que aparece sem defesa, encontra uma espada mortal.
Consegue fazer do menos sua própria arma, que tem mais força do que todas as armas dos
guerreiros. Acrescentemos que ela o faz por um homem, em estrita relação com ele (Miller,
2012, p. 71, destaque nosso).

Portanto, o que Miller (2012) acentua é que o ato de Medeia, e também de Madeleine,
evidenciam a relação com o menos, ou seja, uma distância do ter que poderia ser preenchido,
para uma, pelos filhos, e para outra, pelas cartas. Ambas, após a perda do marido, atuam
justamente com o que lhes falta. Ao contrário de tentar suturar a falta do amor com outra coisa,
elas esburacam o ser parceiro.
Sobre o menos, Miller (2012) indica que ele abre um campo para falarmos de uma
clínica feminina. Ele relembra que para Freud, a significação fundamental que a mulher dá para
não ter o falo é o penisneid, ou seja, é pela inveja do pênis que a mulher subjetivaria a falta
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fálica. Na saída freudiana, o desejo pelo falo é substituído metonimicamente pelo bebê, fazendo
uma equivalência entre mãe e mulher, isto é, a solução para o não ter é deslocar a falta para um
substituto fálico. É o contrário do que comportam os atos de Madeleine e Medeia.
Miller (2012) esclarece que o operar com o menos estaria mais do lado da proposta
lacaniana de 1958, quando a mulher não buscará ter o falo, mas sê-lo. Essa solução de ser o
falo “consiste em não tapar o buraco, mas metabolizá-lo, dialetizá-lo, sendo o próprio buraco,
ou seja, fabricar um ser com o nada” (Miller, 2012, p. 68). Ao ser o falo, a mulher escapa da
falta de identidade feminina e ataca a completude do Outro masculino, já que a mulher sabe
que o falo é semblante. Ser o falo, indica Miller, reduz o Outro a um semblante. Nesse sentido,
já temos uma primeira indicação do que seria o verdadeiro em uma mulher: “para Lacan, o
verdadeiro, numa mulher, se mede pela distância subjetiva da mãe. Porque ser uma mãe, ser a
mãe de seus filhos, é, para uma mulher, querer fazer-se existir como A. Fazer-se existir como
A mãe é fazer-se existir como A mulher que tem” (Miller, 2012, p. 69).
Miller (2015b) propõe como resposta à questão do que é uma verdadeira mulher para
Lacan, o fato de que “uma verdadeira mulher não é a mãe” (p. 9), já que a mãe é a que tem e é
categórico ao afirmar “vamos até o fim: uma verdadeira mulher é sempre Medeia” (p. 9). O que
os atos de Medeia e Madeleine indicam é um rompimento com a posição materna, é o
rompimento com a regulação fálica. “Medeia está aí para nos mostrar o que acontece quando
surge ‘a mulher’ oculta na mãe quando a lógica do significante ‘mulher’ prevalece sobre o
‘mãe’ [. . .]” (Miller, 2015b, p. 10).
No entanto, é importante esclarecer que não é possível constituir um conceito sobre a
verdadeira mulher, já que a proposição lacaniana da década de 70 indica que A mulher não
existe. Se não temos uma essência do feminino, algo que desse uma unidade ao grupo das
mulheres, não podemos, portanto, falar em uma verdadeira mulher. Esse verdadeiro “trata-se
de algo que só se pode dizer como um tyché” (Miller, 2012, p. 69).
Miller (2012) indica que Medeia era uma boa mãe, boa esposa, ainda que um pouco
delinquente, mas nada podiam se queixar de sua posição como esposa e mãe. Isso até o anúncio
do casamento de Jasão com Creusa. Só a partir daí que os filhos perdem seu valor, já que se
encontram dissociados do parceiro, pois sua posição de mulher supera a de mãe. Quando Jasão
lhe diz que se casará com outra, não lhe cabe mais o lugar de ser o falo, e somente aí ela cai no
desmedido da devastação, sendo o ato um apaziguador. O que nos parece é que o ato dá para
Medeia e Madeleine um tratamento para a devastação. Esclarecemos que o ato não necessita
ser um ato violento, mas para elas foi desse modo que ele se constituiu.
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Rosa (2010) coloca a paciente Maria V. na mesma série de Madeleine e Medeia. Maria
V. foi entrevistada por Rosa em uma apresentação de enfermos em um hospital psiquiátrico. A
paciente foi internada na instituição depois de passar por uma desintoxicação, quando ingeriu
grande quantidade de medicamentos após descobrir a traição do marido. Antes disso, porém,
ela vingou-se dele “riscando-lhe o carro, esvaziando-lhe os pneus e colocando água nos seus
vidros de perfume; além disso, jogou fora os remédios dos seus cachorros e destruiu cinquenta
orquídeas e cem violetas, etc” (Rosa, 2010, p. 1).

Esses momentos de enlouquecimento nos quais o feminino se apresenta não sujeitado à falta,
momentos de apresentação do que Lacan denominou ‘A Mulher’, nos levam à teoria freudiana
sobre o amor feminino e sua articulação com a falta, bem como à teorização lacaniana na qual
o amor é lido com as modalidades lógicas: possível, necessário, impossível ou contingente
(Rosa, 2010, p. 2).

Para Rosa (2010), nessas três mulheres, o amor deslocou-se do campo da contingência
para o campo do necessário, “aí ele visará o ser e encontrará sua dimensão trágica e seu ponto
de enlouquecimento” (p. 2). No texto, a autora destaca alguns pontos fundamentais para nossa
tese. O primeiro diz respeito à indicação freudiana presente em “Inibição, Sintoma e Angústia”,
no qual Freud indica que as mulheres se angustiam frente à falta de amor do objeto e, com isso,
o amor tem, para elas, um valor fálico. Também podemos avaliar que sendo o penisneid o
correlato feminino da angústia de castração, a angústia pode se radicalizar para o lado mulher,
uma vez que ela não tem nada a perder. A importância do amor para a mulher também fica
evidente a partir da teoria lacaniana, que demonstra a insistência do amor, da demanda de amor
no campo feminino e seu possível retorno como devastação.
Interessante que Lacan (1962-63) é claro ao dizer que a passagem ao ato é a última
barreira contra a angústia. Podemos pensar que uma particularidade do feminino com o ato está
enlaçada com a afinidade da mulher com o amor? Seguindo a orientação de Freud e Lacan,
sabemos que frente à dificuldade de subjetivação da sexualidade feminina e com a ausência de
um significante que dê substância ao seu ser de mulher, o amor pode entrar nesse lugar, por
conferir à mulher “ao menos ser a mulher de um homem” (Soler, 1998, p. 249), dando-lhe um
lugar e um nome. O amor passa de contingente ao necessário, mesmo que no final ele não
satisfaça a demanda de identificação feminina, pois Lacan (1972) indica em “O aturdito” que “
mesmo que satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a
parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira” (p. 467). Rosa (2010) retoma
essa passagem de Lacan apontando que, portanto, a solidão feminina diz de um ponto em que
o feminino escapa a qualquer parceria amorosa.
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Miller (2012) nomeia que a verdadeira mulher é a que ultrapassa limites, ou seja, a que
se localiza do lado não-todo da sexuação. Interessante que o gozo feminino também comporta
a marca da ultrapassagem, mas, por sua vez, também não é capaz de dar ao ser da mulher uma
identificação ou consistência. Morel (2010) traz uma proposição interessante ao indicar que o
gozo feminino pode ser encontrado não apenas no campo do amor, “mas o gozo Outro se revela
também em certos atos 'insensatos', passionais, que testemunham uma lógica outra que a lógica
fálica da falta a ter e da falta a ser, o que pode surgir com uma força capaz de anular a lógica
fálica” (p. 27, tradução nossa)54. Um dos exemplos que a autora traz é o ato assassino de
Medeia.
Morel (2010) indica que antes de ser abandonada por Jasão, Medeia encontrava-se
obediente à norma fálica. Ela era mulher, esposa e mãe, estando determinada a adquirir os bens
para seu esposo e seus filhos; suas ações, até aí, localizavam-se sob a lógica do ter, portanto, a
fálica. Nesse momento, ela responde aos semblantes civilizatórios, como mulher de um homem.
Porém, após a traição de Jasão, ela encontra-se disposta a sacrificar seus filhos. A autora destaca
que os filhos estavam para ela na posição de objeto a, mas também eram os objetos que tinham
mais valor para Jasão. “Em sua vingança a Jasão, Medeia atua, portanto, como mulher traída e
não como mãe. Nele, a mulher e a mãe se dissociam e a feminilidade não-toda subverte a lógica
fálica maternal, resultando no ato, irresistivelmente” (Morel, 2010, p. 272, tradução nossa)55.
O ato é o que surge como consequência da subversão da lógica fálica maternal pela lógica não-
toda.
Retomando Rosa (2010), “percebemos que eles [os transtornos amorosos] surgem
exatamente aonde o Outro falta, aonde o Outro se desloca, aonde o Outro se vai. Incapacitado
de assimilar simbolicamente essa perda ou falta, o sujeito enlouquece” (p. 4). A partir das
contribuições de Rosa, entendemos que o ato surge, portanto, nesse ponto do enlouquecimento
feminino, ou seja, ligado ao fim do amor tomado como necessário. Parece que aí vamos também
ao encontro com Ana, trazida no pequeno fragmento clínico em nossa introdução.
Assim, no ato de uma verdadeira mulher, abre-se mão do ter. Para Madeleine, a posse
das cartas de amor deixa de ter valor, já que ela perdera o amor de Gide, o que constituía o seu
ser. O ter só tinha valor para ela enquanto constituía seu ser de amada. Quando Lacan (1972-

54
No original: «Mais l'Autre jouissance se révélerait dans certains actes 'insensés' passionnels, que témoignent
d'une logique autre que la logique phallique du manque à avoir et du manque à être, et qui peut surgir avec une
force capable d'annuler la logique phallique».
55
No original: «Dans sa vengeance de Jason, Médée agit donc en femme trahie et non en mère. En elle, la femme
et la mère se disjoignent, et la féminité pas-toute subvertit la logique phallique maternelle, entraînant l'acte,
irrésistiblement».
99

73) indica que A mulher não existe, ele sugere que uma possibilidade para ela realizar o seu ser
é sendo mulher de um homem, o que não se sustenta para Madeleine, quando ela percebe, no
rosto de Gide, o amor por outro. Nesse ponto, no qual encontra-se à deriva, é que surge o ato.
Marcos e Derzi (2013) indicam que é a lei do desejo, fundada no Nome-do-Pai, que permite
que o sujeito não fique tão à deriva e que estar à deriva empurra o sujeito para o ato. O Nome-
do-pai não faz sua função no momento em que elas são abandonadas e nada do campo simbólico
as rege nesse momento. Como consequência, em tal situação, a angústia surge abruptamente
frente à perda de amor e o ato aparece como uma resposta.
Parece que o ‘ter que fazer alguma coisa’, pronunciado por Madeleine, indica que as
coordenadas simbólicas, que já se mostram escassas para o lado mulher da sexuação, a
empurram para o ato, sendo essa também uma possibilidade de pensarmos um ponto de
particular na relação do ato com o feminino. Com Medeia, temos o mesmo, nem as palavras de
Jasão nem o amor aos filhos a afastam do ato. Nada disso conserva valor quando não se é
amada.
Outro ponto de enlace entre Madeleine e Medeia é a devastação e como o ato dá a ela
um tratamento. Lacan (1972) afirma em “O aturdito” que é como única que a mulher quer ser
reconhecida pelo parceiro, demarcando, portanto, um lugar privilegiado do amor para a mulher
e a devastação pode ser seu outro nome, orienta Miller (2016). A devastação pode surgir, pois
ao direcionar-se a um parceiro, a mulher vai em duas direções: ao falo, o que é circunscrito, e
ao S(Ⱥ), infinitizando sua demanda de amor. Quando a demanda de amor não pode ser
correspondida na parceria, a devastação impõe a sua face.
O que temos, portanto, é que a devastação aparece no momento em que há a queda dos
semblantes ofertados por Jasão, no caso de Medeia, e por Gide, no caso de Madeleine. É nesse
momento, portanto, que o ato aparece com sua marca imperativa e elas não conseguem
encontrar outra solução que não o cometimento do ato. É nesse momento que aparece a face de
“uma verdadeira mulher, em sua inteireza de mulher” (Lacan, 1958a, p. 772). É na queda dos
semblantes que o ato comporta a estrutura do ato de uma verdadeira mulher.
Além da passagem na qual Lacan (1958a) se refere a Jasão, comparando-o a Gide, há
outra referência da tragédia em seu texto. Na versão brasileira dos “Escritos”, constam os
seguintes versos como epígrafe: “Vezes sem número a mulher é temerosa, covarde para a luta
e fraca para as armas; se, todavia, vê lesados os direitos do leito conjugal, ela se torna, então,
de todas as criaturas a mais sanguinária!” (Eurípedes, citado por Lacan, 1958a). Neles, vemos
a marca da fúria de Medeia, uma mulher que, traída, torna-se a criatura mais sanguinária. No
entanto, não são estes os versos presentes na edição original francesa, conforme orienta Miller
100

(2012) e Fayad (2015). Os versos presentes são: “Se dás aos ardilosos conhecimentos novos,
resultas um inútil e não um sábio. É se há quem te considere superior em saber aos que se
passam por sabichões, serás visto na cidade como um ser ofensivo” (Eurípedes citado por
Miller, 2012, p. 73).
Essa passagem é uma fala de Medeia para Creonte. Ele a interpela dizendo que ela sabe
como arruinar alguém e, por isso, teme que ela fique na cidade. Creonte refere-se aos atos
cometidos por ela em relação ao assassinato de seu irmão e também em referência a Pélias, a
quem ela faz as filhas matar. Fayad (2015) indica, portanto, que o que Lacan (1958a) acentua
quando usa essa epígrafe é o caráter da fúria de Medeia quando relegada, comparando-a aí a
Madeleine. Além dessa referência da fúria, Miller (2012) aponta que há aí uma referência ao
saber de Medeia, aparecendo ela na posição de sábio. Ela sabe como abrir no homem um buraco
que nunca será preenchido – os atos delas comportam essa dimensão. Mas afinal, qual é a
concepção psicanalítica de ato?

3.3 O ato em psicanálise.

Nesta seção, discorremos sobre o ato em psicanálise, tendo como ponto de partida o
décimo quinto seminário de Jacques Lacan, que teve como tema o ato analítico, pois no resumo
que faz de seu seminário, ele afirma: “O ato psicanalítico parece apropriado a reverberar com
mais luz sobre o ato, por ser o ato a ser reproduzido pelo próprio fazer que ele ordena” (Lacan,
1969/2003, p. 371)56. Também seguimos as proposições de Lacan em “O seminário, livro 10,
a angústia”, que é essencial ao estudo do ato. Em Freud, temos como bases principais as obras
“Psicopatologia da vida cotidiana” e “Para além do Princípio do Prazer”. Cotejamos esta seção
também com outras obras destes autores e de seus comentadores.

3.3.1 As dimensões do ato.

Na abertura de “O seminário, livro 15. O ato analítico”, Lacan (1967-68/inédito)57 diz:


“Escolhi este ano como tema, o ato psicanalítico. É um estranho par de palavras, que, para dizer

56
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
57
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
101

a verdade, não tem sido usado até hoje” (lição de 15/11/1967), destacando a pouca atenção que
os próprios psicanalistas deram à dimensão do ato.
Lacan havia encerrado seu seminário anterior abordando o ato sexual, que indica a
dimensão que ele quer dar ao ato analítico. Na lição de 22 de fevereiro de 1967, ele afirma que

o ato sexual é verdadeiramente um ato [. . .] trata-se, efetivamente, sem dúvida de um ato que
não é a copulação simplesmente, dado que se trata de uma repetição no mais alto ponto
significante, o da cena edipiana, a tal ponto que esse ato instaura algo que é sem retorno para o
sujeito, e que o desmentido que seria Verleugnung porta, não altera em nada (Lacan, 1966-67/
inédito, lição de 22/02/67)58.

Na lição anterior a esta, ele já havia perguntado o que é um ato e se refere a ele como o
efeito da dupla volta do traçado da repetição. “O ato é o equivalente da repetição por ela mesma,
ele é esta repetição em um único traço que designei há pouco por este corte que é possível fazer
o centro da banda de Moebius. Ele é, nele mesmo, dupla volta significante” (Lacan, 1966-67,
lição de 15/02/67). Brodsky (2004) esclarece que, no nível do ato sexual, o ato só se repete em
função do que não há, ou seja, da relação sexual. O que ocorre é que, por não haver um objeto
específico que satisfaça a pulsão sexual, ela força uma repetição.
Desse modo, o ato estaria ligado à repetição, não como repetição do mesmo, mas como
a repetição de um novo, uma tentativa, diríamos, de fazer a relação sexual existir. Em “O
seminário, livro 14”, o ato, mais especificamente o acting out, é tomado como uma repetição
daquilo que não foi recebido como mensagem pelo Outro, como algo que não foi inscrito, e
dentro do setting analítico, como aquilo que não foi escutado pelo analista. Dessa maneira, já
podemos fazer uma primeira aproximação do ato com a repetição, mas em sua dimensão de
tyché.
Retomando o seminário sobre o ato analítico, seguimos com o um esclarecimento de
Brodsky (2004) que eleva o conceito de ato analítico a um fundamento da psicanálise,
afirmando que podemos acrescentá-lo aos conceitos fundamentais já elencados por Lacan em
seu décimo primeiro seminário. Um fundamento é o alicerce de um edifício, não é contingente
e não se pode quebrá-lo sem comprometer todo a estrutura. A autora nos dá três direções
presentes no citado seminário lacaniano.
Na primeira direção, Lacan pensa o ato a partir do lugar destacado por Freud,
principalmente em “Psicopatologia da vida cotidiana”, no qual os atos revelam um saber – o

58
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data da publicação
original.
102

saber inconsciente que surge via repetição e lapsos. A segunda direção presente no seminário
refere-se não mais a Freud, mas à própria teoria lacaniana e à noção de relação analítica. Ou
seja, nessa segunda direção, Lacan (1967-68) refere-se à relação do ato com a transferência:
“fora do que chamei de manejo da transferência, não há ato analítico” (lição de 29/11/67). A
terceira dimensão levantada por Brodsky (2004) diz respeito ao próprio momento em que o
seminário ocorre, que é três anos depois da fundação da Escola de Lacan e um mês após a
“Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola”, na qual Lacan interroga o seu
próprio ato de fundação da sua Escola.
Assim, seguindo essas três direções, Brodsky (2004) organiza as três perspectivas do
ato no décimo quinto seminário lacaniano: 1) a clínica do ato, que se refere ao ato, à passagem
ao ato, ao acting out, à angústia e ao ato verdadeiro; 2) o ato analítico, que diz respeito ao ato
do analista na sessão e 3) ao ato de Lacan, “nesta [direção], o seminário pode ser entendido
como uma interpretação à comunidade analítica” (Brodsky, 2004, p. 23).
Sobre a clínica do ato, não podemos acreditar que ela nasça apenas no seminário em
questão, já que Freud se ocupa dos atos desde o início de seu ensino. Lacan (1967-68) destaca
que o ato sintomático, os lapsos da palavra, os quais ocuparam Freud, devem ser destacados em
sua face de ato. Ele se refere a dois capítulos de “Psicopatologia da Vida Cotidiana”. Esse texto
é importante, pois Lacan diz que a melhor maneira de apresentar o ato não seria por uma via
apodítica, mas pelos acidentes que podem jogar um raio e luz sobre esse problema.
Em “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, Freud (1901) demonstra como o inconsciente
se apresenta em ações diárias que tomamos como lapsos, esquecimentos e tropeços sem, muitas
vezes, vermos neles elementos importantes e indicativos. Para nosso objetivo, interessa os
capítulos VIII, IX e X, nomeados, respectivamente, como “equívocos na ação” (p. 167), “atos
causais e sintomáticos” (p. 193) e “ erros” (p. 217). Nesse trabalho, assim como na Interpretação
dos Sonhos, encontramos uma série de exemplos clínicos, literários e do próprio Freud em
relação aos lapsos cotidianos.
Freud (1901) destaca que não foi o primeiro a compreender que há um sentido por detrás
de algumas pequenas perturbações na vida cotidiana dos sujeitos, sejam eles neuróticos ou
sadios, e concede prioridade aos autores literários quando se trata do reconhecimento dos atos
sintomáticos. Ele traz os lapsos da fala como uma das perturbações cotidianas. A fala é
entendida como uma função motora e Freud usa o termo “equívocos na ação para descrever
todos os casos em que o efeito falho – ou seja, um desvio do que fora intencionado – parece ser
um elemento essencial” (Freud, 1901, p. 167). Aqui, Freud distingue os equívocos da ação dos
atos sintomáticos e acidentais, já que nestes últimos, é toda a ação que é inoportuna e não apenas
103

um de seus elementos, mas também afirma que, muitas vezes, é difícil traçar uma separação
muito nítida entre eles.
Esses equívocos da ação são um modo de ato falho que é a representação simbólica de
algum pensamento que não poderia ser admitido na consciência. Os atos motores também são
considerados nessa dimensão e um exemplo trazido é do próprio Freud (1901). Ele esclarece
que não era comum que quebrasse coisas e que a falta de espaço em seu gabinete, somada a sua
coleção de antiguidades, fazia com que as pessoas mostrassem a preocupação de que ele
quebrasse alguma peça, o que nunca havia ocorrido. Um dia, no entanto, ele derrubou e quebrou
a tampa de seu tinteiro, descrito por ele como um objeto modesto. Ao derrubá-lo, porém,
poupou todos os objetos mais valorosos que estavam ao redor de modo extremamente hábil.
Na análise desse ato, ele explica que horas antes do ocorrido, sua irmã havia entrado em
seu gabinete para conhecer novas peças que ele havia comprado e lhe disse “agora sua
escrivaninha está realmente linda, só o tinteiro é que não combina. Você precisa ter um mais
bonito” (Freud, 1901, p. 171). Algumas horas depois, ele relata que quebrou a tampa do tinteiro,
localizando na quebra uma maneira de forçar sua irmã a dar-lhe um novo, demonstrando que
há uma intenção por trás do ato desastrado. A partir desse exemplo, Freud (1901) traz uma
afirmação interessante:

Creio realmente que devemos aceitar esse juízo para toda uma série de movimentos desajeitados
aparentemente acidentais. É certo que eles exibem algo de violento e impetuoso, como os
movimentos espático-atáxicos, mas mostram-se regidos por uma intenção e alcançam seu
objetivo com uma segurança que não podem vangloriar-se nossos movimentos voluntários
conscientes. Além disso, partilham essas duas características – a violência e a infalibilidade –
com as manifestações motoras da neurose histérica (p. 172).

O que Freud (1901) parece indicar aqui é que os atos acidentais atingem os objetivos
deles e são seguros na sua execução. Ele acresce que devemos estar atentos a um escorregão,
um tropeço, pois essas falhas não são sempre acidentais e podem “indicar o tipo de fantasias
guardadas que se podem representar através desses abandonos do equilíbrio corporal” (Freud,
1901, p. 178). Um exemplo é o duplo sentido na linguagem que o provérbio “Donzela, quando
cai, cai de costas” (Freud, 1901, p. 178) traz em relação às quedas das histéricas. Além disso, a
autopunição também encontra sua realização em atos que trazem certo efeito lesivo ao sujeito,
podendo levar a riscos de sua integridade física e de sua saúde.
Os atos descritos nos parágrafos anteriores se diferem dos atos causais e sintomáticos,
pois desprezam a busca de apoio na intenção consciente e não têm necessidade de um pretexto
para surgirem. Eles “aparecem por conta própria e são permitidos por não se suspeitar de que
104

haja neles algum objetivo ou intenção” (Freud, 1901, p. 193), como se fossem puramente
casuais e, para isso, eles precisam ser discretos e ter efeitos insignificantes.
No estudo desses atos, Freud (1901) acredita que deve chamá-los de atos sintomáticos,
já que expressam alguma coisa que o próprio sujeito não suspeita e não pretende comunicar,
além de desempenhar papel nos sintomas. Esses atos são encontrados na grande parte das
pessoas e, para o psicanalista, eles podem servir de indícios quando não se conhece bem a
situação/paciente, e já para “um observador da natureza humana, frequentemente revelam tudo
– e às vezes, mais do que ele desejaria saber” (Freud, 1901, p. 200). Esses atos, poderíamos
afirmar, demonstram a verdade inconsciente do sujeito.
No capítulo “Erros”, Freud (1901) faz uma distinção entre os erros de memória e os
esquecimentos que são acompanhados por ilusões de memória, já que o erro não é reconhecido
como tal. Além disso, ele adverte que “onde surge um erro oculta-se um recalcamento – melhor
dizendo, uma insinceridade, uma distorção que se baseia fundamentalmente no material
recalcado” (Freud, 1901, p. 218).
Sobre os erros, eles possuem um mecanismo menos rígido entre os atos falhos, uma vez
que a forma assumida pelo erro não é determinada pela ideia recalcada, sendo ele uma indicação
geral de que a atividade psíquica deve lutar com um material recalcado:

Toda vez que cometemos um lapso ao falar ou escrever, podemos inferir que houve uma
perturbação devida a processos anímicos situados fora de nossa intenção: mas é preciso admitir
que os lapsos da fala e da escrita frequentemente obedecem às leis da semelhança, do
comodismo ou da tendência à pressa, sem que o elemento perturbador consiga impor qualquer
parcela do seu próprio caráter ao engano dele resultante na fala ou na escrita. Somente a
complacência do material linguístico possibilita determinação dos erros e, ao mesmo tempo,
marca seus limites (Freud, 1901, p. 221).

O que Freud destaca sobre os erros é o caráter de verdade que eles ocultam, mais ainda,
ele demonstra como o inconsciente pega um atalho na linguagem para se manifestar, assim
como o faz nos sonhos. Desses pontos elencados por Freud, podemos retirar alguns elementos
que nos servirão de base para compreender a proposta lacaniana que demonstra o caráter de ato
desses elementos. Primeiro, podemos encontrar a indicação de que nos equívocos da ação, há
uma intenção atrás dos lapsos, não sendo eles ações aleatórias e desprovidas de sentido. Além
disso, podemos verificar que há um certo caráter de novidade nesses atos, já que, pegando o
caso citado por Freud, não há mais tinteiro após sua quebra. Ou seja, portador de uma intenção,
os equívocos da ação marcam um antes e um depois, um ineditismo é lançado. Há também a
105

perturbação de uma ordem, já que eles surgem abruptamente rompendo com algo já
estabelecido.
Podemos verificar o estabelecido acima no seguinte exemplo. Freud (1901) traz o relato
que ouviu de um jovem técnico que trabalhava voluntariamente no laboratório de uma escola
técnica, e que se queixava que esse trabalho estava lhe tomando tempo demais. Um dia, indo
ao trabalho conversando com um colega, F. o ouviu queixar-se de perder tanto tempo no
laboratório enquanto poderia estar fazendo outra coisa. O jovem respondeu-lhe que concordava
com ele e acrescentou em tom de brincadeira: “Esperemos que a máquina torne a dar defeito,
pois assim poderemos suspender o trabalho e ir para casa mais cedo” (Freud, 1901, p. 177).
Cabia a F. regular uma válvula da máquina do laboratório e ele deveria abri-la com cautela até
atingir um nível correto de pressão. No momento da experiência, porém, após ouvir do condutor
a palavra “Pare!”, ele girou a válvula para a esquerda e não para a direita como era o correto,
pois todas as válvulas do laboratório fechavam para a direita. Devido à alta pressão, um dos
tubos da máquina explodiu, encerrando forçosamente o trabalho naquele dia.
O que esse equívoco demonstra é um rompimento da ordem do dia, na rotina, marcando
também um ineditismo, mas o essencial é que demonstra como o inconsciente pode irromper
em ações cotidianas. Os atos sintomáticos demonstram também o caráter de insistência do
inconsciente, já que neles há uma certa regularidade, e os erros ensinam como o inconsciente
se articula na linguagem.
Sobre esses dois capítulos de “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, Lacan (1967-68)
destaca o seguinte:

é bem claro que, em tudo o que está neste capítulo e no que segue, o das ações acidentais ou
ainda sintomáticas, não se tratará jamais senão desta dimensão que nós colocamos como
constitutiva de todo ato, a saber: sua dimensão significante, nada é introduzido em relação ao
ato, nesses capítulos, senão isto: que ele é colocado como significante (Lição de 22/11/1967).

A dimensão significante do ato é um dos elementos que precisamos encontrar para que
ele tenha um estatuto de ato, já que ele não se resume à ação. O que os lapsos trazidos por Freud
(1901) apontam é que eles fazem uma inscrição, há uma mudança no sujeito quando esses
lapsos acontecem. Lacan (1969) aponta: “Digamos, primeiro: o ato (puro e simples) tem lugar
por um dizer e pelo qual se modifica o sujeito. Andar só é ato desde que não diga apenas ‘anda-
se’, ou mesmo ‘andemos’, mas faça com que ‘cheguei’ se verifique nele” (p. 371). Assim, o
que se destaca da psicopatologia cotidiana, na percepção de Lacan, é que esses atos
inconscientes portam uma marca de significante sobre o sujeito. Ele indica, ainda, que o ato só
toma seu valor significativo com relação ao que Freud introduz como inconsciente.
106

Ele está lá, como atividade, mais que apagado e, como diz o interessado, atividade para obturar
um buraco que só está lá se não se pensa nele, na medida em que não se importe com ele, que
só está onde se exprime, por toda uma parte de suas atividades, para ocupar as mãos
supostamente distraídas de toda relação mental. Ou bem, ainda, este ato vai colocar seu sentido
precisamente no que se trata de atacar, de abalar seu sentido ao abrigo da inabilidade da fala
(Lacan, 1967-68, lição de 22/11/1967).

Portanto, o ato só toma seu valor quando o que tamponava o recalcado vacila e ele pode
surgir irrompendo na fala. Desse modo, o ato toma valor como um ato interpretável, já que se
liga ao inconsciente, de forma que só podemos encontrar seu valor a posteriori. Essa é uma
dimensão do ato em Freud, veremos, mais adiante, outra, na qual o ato é o que funciona
contrário à lógica inconsciente ao ser relacionado com a repetição.
Guimarães (2009) indica que podemos retirar cinco teses fundamentais sobre o ato na
psicanálise lacaniana. Essas teses nos ajudam a organizar didaticamente nosso esclarecimento
sobre o ato: 1) Todo ato implica um correlato significante; 2) O Outro está no horizonte do ato;
3) No instante do ato, não há nem sujeito, nem Outro; 4) O sujeito encontra, após o ato, sua
presença renovada e 5) Todo ato, exceto o suicídio, é falho. Tomaremos essas cinco dimensões
tendo como referência o ato do general romano Caio Júlio César, para depois pensarmos os atos
de Madeleine e Medeia.
Lacan (1967-68) toma a travessia que Caio Júlio César faz do rio Rubicão como
paradigma para pensarmos o ato. Caio Júlio César nasceu em Roma em 100 a.C e tornou-se
político, um grande militar, tendo papel decisivo na transformação da República Romana em
Império. Como general, coordenou a campanha militar pela Gália, na qual obteve muito êxito.
Suas conquistas militares lhe deram força e respeito, mas fizeram com que seu ex-aliado
político, Pompeu Magno, que por vias conspiratórias havia se tornado governante dos romanos,
se sentisse ameaçado, ordenando seu retorno a Roma e a desmobilização de suas legiões. É a
partir dessa ordem que o ato de Júlio César se torna importante para Lacan. Ele não obedece a
ordem dada por Pompeu e retorna a Roma atravessando o rio Rubicão, o que era proibido por
lei. Essa restrição visava evitar que os generais ingressassem com suas forças bélicas no centro
do governo romano, evitando o risco de golpes ao poder central. O Rubicão era um pequeno
rio que marcava um limite seguro para circunscrever a área resguardada. Durante a travessia,
ele teria dito “Alea Jacta est” – a sorte está lançada. Esse retorno inicia uma guerra civil,
transformando Júlio César em rebelde59.

59
Segundo a Encyclopaedia Britannica [on line], há ainda hoje o dito popular “atravessar o Rubicão” que tem o
significado de dar um passo em direção a algo do qual não se pode mais voltar atrás.
107

Brodsky (2004) comenta que a lei romana era clara: qualquer um que atravessasse o
Rubicão seria julgado criminoso, declarado inimigo da República romana e expulso dela. O rio
Rubicão é um pequeno curso de água e, por isso, o ato de travessia tem valor não enquanto a
ação física de saltá-lo, mas a significação que o ato tem:

Trata-se simplesmente do fato que o Rubicão marcava o limite que não podia ser atravessado pelo exército
da República, isto é, não se podia entrar no que se chamava Itália propriamente dita. Quem ultrapassava
esse limite passava automaticamente para a categoria de inimigo. César, então, desafia as leis da
República, indo além das coordenadas simbólicas que regiam as leis da época. De fato, antes de atravessar
o Rubicão, César era um soldado da República; depois, tornou-se um rebelde. Não é mais o mesmo. E
certamente isso tem muitas consequências em sua vida: passa de general da República para rebelde
(Brodsky, 2004, p. 17).

A partir do ato de César, vamos às cinco dimensões que um ato comporta: A primeira
direção trata-se de que todo ato implica um correlato significante e marca um início. Lacan
(1967-68) começa seu seminário diferenciando ato e ação, e afirma que “estamos então
seguramente em uma postura de não podermos situar o ato nesta referência, nem à motricidade,
nem à descarga” (lição de 15/11/67). Ou seja, o ato está para além das referências motoras,
ainda que precise da ação para ser realizado. Ele diz:

Pois na dimensão do ato vem logo à baila esse algo que implica um termo como este que acabo
de mencionar, a saber: a inscrição, em algum lugar, o correlato de significante que, na verdade,
não falta jamais no que constitui um ato. Se posso caminhar aqui de um lado para o outro falando
para vocês, isso não se constitui um ato, mas se um dia ultrapassar um certo limiar onde me
coloque fora da lei, esse dia minha motricidade terá valor de ato (Lacan, 1967-68, lição de
15/11/1967).

O que Lacan indica é que o ato não se define por uma resposta do organismo, ele não se
caracteriza pela ação realizada, mas pela sua coordenada simbólica. Lacan (1954-55/1985)60 já
havia anunciado o ato de César de travessia do Rubicão em seu segundo seminário, quando se
esforçava em efetuar uma diferença entre fala e linguagem. Ele esclarece que o ato de César de
ultrapassar o Rubicão só não se constitui um ato ridículo, já que a dimensão do rio é simplória,
pois César carregava atrás de si todo seu passado. “Este ato simbólico desencadeia uma série
de consequências simbólicas [e] quando falamos de ordem simbólica, há começos absolutos,
criação” (Lacan, 1954-55, p. 365). Essa ideia que ele trata de relance é solidária à proposta de
treze anos mais tarde.

60
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data da publicação
original.
108

Um pouco antes dessa referência a César, Lacan (1954-55) indica que a marcação
simbólica do ato também traz em si um ponto da verdade. Ele usa um apólogo criado por ele
para demonstrar isso. Conta que existiam três prisioneiros e que o diretor da prisão iria libertar
apenas um deles, mesmo sendo todos igualmente merecedores. Para se decidir sobre quem seria
liberado da prisão, faz-se uma prova anunciando a eles:

Eis aí três discos brancos e dois pretos. Nas costas de cada um de vocês, vai-se pendurar um
disco qualquer destes, e vocês vão dar um jeito para nos dizer qual foi o que lhes meteram. Não
há espelho, naturalmente, e não há interesse em vocês se comunicarem, já que basta revelar a
um de vocês o que ele tem nas costas para que seja ele quem tire proveito (Lacan, 1954-55, p.
359).

Na prova, cada um recebe um disco branco. Lacan (1954-55) explica o modo de


proceder nesse desafio através de três dimensões temporais, que ele relacionará depois com o
tempo lógico da sessão de análise. Caso um sujeito visse dois discos pretos, ele saberia
imediatamente que o seu era branco e se precipitaria para a saída. Se fosse o caso, os outros
dois, vendo o primeiro a sair, constatariam que seus discos eram pretos, mas como não há discos
pretos, há um tempo intermediário. Desse modo, cada sujeito pensa que o outro está vendo ou
dois discos brancos, ou um branco e um preto, e deve acreditar que os outros dois estão
pensando de maneira recíproca. O vencedor do desafio teria que fazer um sagaz caminho para
inferir a cor de seu disco. Apesar de ter visto que havia dois discos brancos, ele não poderia
saber qual era sua própria cor. Poderia haver ao menos um disco preto em suas costas. Ao ver
que seus companheiros portavam discos brancos, poderia supor que, se o disco em suas costas
fosse preto, um dos outros dois deveria reconhecer imediatamente que portava um branco,
correndo para a porta, pois já se sabia que não havia outro preto, pelo fato de ninguém ter saído
no primeiro momento. O fato de que seus dois companheiros não faziam nada, denúncia que
ele era branco como eles. Qualquer um deles poderia fazer esse raciocínio, mas apenas o que
chegasse primeiro até a saída livrar-se-ia de sua pena. Ou seja, é devido à imobilidade dos
outros dois que o sujeito conclui a cor de seu disco.
É só num terceiro tempo, após ver os discos e depois compreender, que ele pode
concluir. “No entanto, reparem que, assim que ele chegar a esta compreensão, ele tem que
precipitar seu movimento” (Lacan, 1954-55, p. 360). Essa precipitação é importante, pois cada
um dos outros pode ter chegado ao mesmo resultado, e se não tomar essa dianteira, ele pode
cair na incerteza do tempo anterior caso alguém se movimente antes dele, pois isso pode fazê-
lo crer que seu disco é preto. “É de sua própria pressa que depende que ele não seja enganado”
(Lacan, 1954-55, p. 360).
109

Lacan (1954-55) esclarece que isso é um sofisma61 e que há uma inversão no terceiro
tempo, já que depende de algo que não é claro apreender. “O sujeito tem nas mãos a própria
articulação através da qual a verdade que ele depreende não é separável da própria. Se essa ação
tardar um instante apenas, ele sabe da mesma feita que vai-se achar mergulhado no erro”
(Lacan, 1954-55, p. 361). Ele segue seu raciocínio apontando que aquilo que o sujeito faz e o
que ele discursa são coisas diferentes. Se ele discursasse, os outros poderiam tomar a frente, já
que ele se encontra na presença de outros dois que também têm a propriedade de sujeito e que
podem raciocinar como ele.

E para ele mesmo, a verdade, a partir do ponto em que chegou a sua dedução, depende da pressa
com a qual dará o passo em direção à porta, depois do que, terá que dizer por que pensou assim.
A aceleração, a precipitação no ato, revela-se aí como coerente com a manifestação da verdade”
(Lacan, 1954-55, p. 361).

Logo, se ele não se apressa, pode cair na dúvida ou no erro. Segue-se na discussão desse
apólogo, esclarecendo Lacan (1954-55), que se supuséssemos que cada um possuísse um tempo
diferente de compreensão, não haveria um problema interessante; nesse caso, supõe-se que os
três sujeitos possuem igual compreensão. Caso se introduza um ponto de hesitação
infinitesimal, na qual cada um pensa que se os outros não estão saindo é porque eles acabam de
se dar conta de que ele é preto, ocorrerá uma parada, mas depois dessa parada, a situação não
será a mesma. Aqui, ele difere fala e linguagem, ponto de início da discussão dessa lição. A
linguagem está ligada aos dados fundamentais: três discos brancos, dois discos pretos e etc.

A fala se introduz a partir do momento em que o sujeito efetua esta ação pela qual ele afirma
mera e simplesmente – sou branco. Claro que ele não afirma isto de uma maneira que seja,
como se diz, logicamente fundamentada. Mas o percurso de seu raciocínio é, no entanto, válido
se ele procedeu da maneira como acabei de lhes dizer – Se eu não disse imediatamente que
sou branco, assim que o compreender, nunca mais poderei afirmá-lo de maneira válida
(Lacan, 1954-55, p. 363, destaque do autor).

Nesse ponto, Lacan (1954-55) esclarece que não está demonstrando um modelo de
raciocínio lógico, mas usando de um sofisma para mostrar a distinção entre a linguagem
aplicada ao imaginário, a partir da dedução que o sujeito faz do pensamento dos outros dois, do
momento simbólico da linguagem, que é o momento de afirmação. Importa-nos compreender
que o momento de inscrição significante “sou branco” só é possível na precipitação do ato de

61
Na lógica, o sofisma é um raciocínio ou um argumento que é concebido com o objetivo de produzir uma ilusão
da verdade, de modo que apesar de simular um aparente acordo com as regras da lógica, tem uma estrutura interna
enganosa.
110

sair em direção à porta. Nesse sentido, Lacan, já na década de 50, indica o ato como fala que
tem um valor significante e, mais que isso, já adianta a importância da dimensão temporal do
ato, uma vez que ele acrescenta que a fala se refere à pressa, terceira dimensão do tempo (depois
do adiantamento e do atraso). O ato, portanto, fala alguma coisa e está, nesse momento, na
dimensão do interpretável.
No sentido do ato como fala, podemos entender que por ser o Rubicão um pequeno rio,
a grandiosidade de César não está condicionada ao esforço físico de saltá-lo, mas à marca
significante que isso comporta. Do mesmo modo, as cartas que Madeleine queima somente
ganham importância pelo valor das cartas e não pela queima delas em si. Numa primeira briga
com Gide, ela já havia destruído outros presentes que ele havia lhe dado, mas estes não
portavam o mesmo valor que as cartas. É pelo valor e, mais que isso, pelo buraco que a
destruição das cartas faz em Gide que esse ato comporta seu valor, fazendo sua marca.
Lacan (1967-68) inicia a lição de 10 de janeiro de 1968 desejando a todos votos de ano
novo. Ele esclarece que o ano, assim como a lua, quando termina, recomeça e que essa marcação
de um começo deve ser estabelecida. Ele afirma que “é necessário que ele tenha um [começo],
a partir do momento em que foi denominado ‘ano’, em razão da demarcação significante do
que, para uma parte desse real, definimos como ciclo” (Lacan, 1967-68, lição de 10/01/68).
O ato, então, está “ligado à determinação de um começo, ali onde há a necessidade de
fazer um, precisamente porque não existe” (Lacan, 1967-68, lição de 10/01/68), portando,
assim, um caráter fundador. Nesse seminário, Lacan (1967-68) cria um esquema topológico
que tem como objetivo situar os tempos de entrada e final de análise, no qual o ato analítico
toma sua dimensão fundamental de inaugurar a cena do inconsciente, do campo do desejo.
“Começar uma psicanálise é um ato, sim ou não? Certamente que sim” (Lacan, 1967-68, lição
de 10/01/68), afirma Lacan. Ou seja, Lacan ressalta que o ato – analítico – é significante e
inaugura outra cena, no caso, a do inconsciente (Rodrigues, 2017).
Lacan vai destacando que se há ato, ele é criador. Brodsky (2004) esclarece o caráter
fundador do ato, quando o diferencia do sintoma. Enquanto este último tem como característica
a repetição,

ato é da ordem do que se faz só uma vez. Quando alguém repete seus atos, desconfiamos que
eles não são verdadeiros. O simples fato do ato entrar na repetição o torna semelhante ao
sintoma. Uma coisa é fundar, outra coisa é permanecer fundado. Uma coisa é casar, outra
continuar casando-se. Algo parece indicar que o ato deixa de ser ato quando se repete (Brodsky,
2004, p. 35).
111

É por isso que Lacan (1967-68) afirma que o ato falho é mais bem-sucedido que os atos
sintomáticos, pois comporta uma dimensão de novidade e não há como voltar atrás. Após matar
os filhos, não se pode trazê-los de volta; após queimar as cartas, não mais se pode tê-las; e após
atravessar o rio, não se é mais general. O ato não se repete, caso isso ocorra, ele está mais
próximo do sintoma. Essas três figuras fazem com seus atos algo radicalmente distinto do que
faziam antes, marcando, em cada uma delas, um começo em sua história subjetiva. Se
retomamos o apólogo dos três prisioneiros, também é a marcação de um início que está em jogo
quando se diz “sou branco”, pois depois desse dito, não se é mais prisioneiro, passa-se da prisão
para a liberdade.
O interessante é que mesmo o ato trazendo o correlato significante, este não dá conta do
todo do ato. Lacan (1967-68), após desejar a todos um feliz ano novo, destaca que o ciclo do
ano não é completamente exato, e “a partir do momento em que o apreendemos como ciclo, há
um significante que não se cola inteiramente no real” (lição de 10/01/68). Ele refere-se aí a um
período, em francês grande année, que ocorre a cada 28 mil anos, no qual há uma revolução
dos equinócios, ou seja, “uma coisinha que varia de ano em ano, até fazer vinte e oito mil anos”
(Lacan, 1967-68, lição de 10/01/68). O que ele quer indicar é que ainda que seja por um detalhe,
o ato não é todo permeável pelo significante.
Assim, dizer que o ato comporta uma dimensão significante é dizer que o ato faz uma
inscrição, o que não significa que ele seja todo recoberto pelo campo simbólico. O que Lacan
(1971) diz em “O seminário, livro 18, de um discurso que não fosse semblante” é justamente
que, por vezes, o real irrompe os semblantes de forma abrupta. A essa irrupção, ele chama de
passagem ao ato.
Podemos incluir na dimensão significante do ato a afirmação lacaniana de que o ato
analítico comporta uma consequência de ato na medida em que essa consequência encarna um
dizer. “O ato diz algo” (Lacan, 1967-68, lição de 17/01/68). É exatamente assim que o ato faz
sua inserção na psicanálise, pela indagação de Freud (1901) sobre o que querem dizer os mais
variados atos acidentais.
Lacan (1968-69) define que é a ponta significante o que caracteriza o ato e não uma
eficácia do fazer. Além disso, ocorre que atrás de um ato, outros atos podem perfilar, indicando
como essa ponta significante marca um começo. Ele pergunta, então, qual é o sentido do ato e
entra em sua segunda dimensão: o Outro está no horizonte do ato. Essa dimensão pode ser
considerada como um desdobramento da primeira, pois não há intervenção significante que não
se dê no campo do Outro.
112

Recorrendo ao ato de Júlio César, Lacan (1967-68) diz: “Ultrapassar o Rubicão não
tinha, para César, uma significação militar decisiva. Mas, em compensação, ultrapassá-lo era
entrar em terra-mãe. A terra da República, aquela que abordar era violar” (lição de 10/01/68).
O que César faz é violar a lei, é somente com o Outro no horizonte que o ato pode tomar
dimensão de ato, é preciso que ele seja testemunhado e recebido pelo Outro. Ele traz o poema
“Por uma razão” de Rimbaud, afirmando que ele encarna a fórmula do ato:

Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.
Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha.
Tua cabeça se vira: o novo amor!
Tua cabeça se volta, – o novo amor!
“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas
crianças, diante de ti.
“Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te.
Chegada de sempre, que irás por toda parte (Lacan, 1957-58, lição de 10/01/68).

No poema, fica evidente como um ato – um toque, um passo – desencadeia novos


acontecimentos que levam o sujeito a um novo lugar, o ato toma a dimensão de mudar o rumo
do destino dos sujeitos. Este poema de Rimbaud também traz o Outro como testemunha do ato.
Lacan (1967-68) é enfático ao afirmar que: “a dimensão do Outro, na medida em que o ato vem
testemunhar algo, não é mais eliminável” (lição de 17/01/68, destaque nosso). O que está em
jogo nessa marca da presença do Outro no ato é o caráter de transgressão, e sobre isso diz Miller
(2014):

Se quisermos, todo ato verdadeiro é delinquente, observamos isso na história, pois não há ato
verdadeiro que não comporte uma ultrapassagem, ultrapassagem de que? De um código, de uma
lei, de um conjunto simbólico que ele infringe, e é a infração que permite que esse ato tenha a
oportunidade de remanejar essa codificação (p. 5)

Miller (2014) indica que o ato sempre obtém da linguagem suas coordenadas e, por isso,
só há ato se há um franqueamento significante. Ele prossegue tendo como referência a travessia
que Júlio César faz do Rubicão: “foi preciso que houvesse aquela lei romana para que César
cometesse o ato, para que fosse um ato o que ele fazia, e não apenas pular um mísero
corregozinho” (Miller, 2014, p. 9). Para além da presença do Outro, Miller elenca que, no cerne
de todo ato, o que há é um não dirigido ao Outro.
Guimarães (2009) esclarece que o ato de César tem um grande alcance histórico, mas
que para se constituir como ato, não é necessário que haja esse caráter público, já que o Outro
é sempre representado de modo singular para cada sujeito, “o importante é que como efeito do
113

ato, a alteridade que o Outro representa está sujeita a se transformar, assim como o próprio
sujeito” (p. 295). Tem que haver, portanto, a transgressão da lei, testemunhada pelo Outro.
Desde o início desse seminário, Lacan (1967-68) precisa que só é legítimo dizer que o
ato analítico é um ato porque ele implica a consequência de um ato que tem por dimensão um
dizer. A dimensão de um dizer sempre foi percebida na experiência e, para evocá-la, basta
lembrarmos da seguinte fórmula “agir segundo sua consciência, para apreender de que se trata”
(Lacan, 1967-68, lição de 17/01/68). Ele interpela, no entanto, por que deve-se agir segundo
sua consciência e diante de quem. E é dessa interpelação que indica que quando falamos do ato,
a dimensão do Outro como testemunha não pode ser eliminada.
Essa não eliminação do Outro na dimensão do ato é solidária ao ato como um dizer.
Antes desse seminário, Lacan já havia postulado a ideia de que o emissor recebe do Outro sua
própria mensagem de forma invertida. Então, além da função de testemunho do Outro, está em
jogo a dimensão da fala. Dizer sou branco só tem valor para o prisioneiro quando o campo da
lei assente com sua fala e lhe permite a liberdade. Brodsky (2004) resume assim essa dimensão:
“Deve-se traçar o limite, para se ver depois como retraçá-lo. É preciso a lei simbólica para que
se possa ver como transgredi-la. Não há ato de outra forma” (p. 18).
Ainda que possa contradizer essa dimensão anterior do ato – a de que o Outro está nele
implicado – a terceira tese sobre o ato é que, no instante do ato, não há nem sujeito nem Outro.
Essa tese parte do princípio de que o ato é a última barreira contra a angústia e, aqui, será
necessário recorrer às elaborações do décimo seminário de Lacan.
Nas lições ministradas entre 1962 e 1963, Lacan faz uma revisão do estatuto de objeto
em psicanálise em sua relação direta com a angústia, tirando a materialidade da noção de objeto,
além de reformular o objeto a como objeto causa de desejo (Viola e Vorcaro, 2009). Além
disso, Lacan (1962-63) aproxima radicalmente a presença do objeto a com a angústia ao
identificar que “a manifestação mais flagrante desse objeto a, o sinal de sua intervenção é a
angústia” (p. 99). A angústia é a única tradução subjetiva do objeto a. O que ele quer demonstrar
é que somente através desse afeto podemos compreender a relação do sujeito com a. Diferente
de Freud, que postulava que a angústia era um sinal de perigo sem um objeto, Lacan (1962-53)
retifica que “ela [a angústia] não é sem objeto” (p. 101). Não se sabe precisar o objeto da
angústia, já que o objeto a, seu correlato, é carente de materialidade.
114

Freud (1917/2006)62 localiza que a angústia “da qual todos os neuróticos se queixam e
descrevem como sendo seu pior sofrimento [. . .] de fato, neles atinge enorme intensidade, e
pode resultar nas atitudes mais loucas” (p. 393, destaque nosso). Ora, ele já nos indica como
a angústia pode empurrar o sujeito para o ato. Além disso, ele adverte que ela “constitui moeda
corrente universal pela qual é ou pode ser trocado qualquer impulso se o conteúdo ideativo
vinculado a ele estiver sujeito à repressão” (Freud, 1917, p. 404, destaque nosso). Desse modo,
qualquer afeto que teve seu conteúdo ideativo recalcado pode se transformar em afeto de
angústia.
Na primeira parte de seu décimo seminário, Lacan (1962-63) se propõe a esclarecer a
estrutura da angústia e nos apresenta o seguinte quadro:

Figura 7: Quadro da angústia


Inibição Impedimento Embaraço
Emoção Sintoma Passagem ao ato
Efusão Acting out Angústia
Fonte: Lacan, 1962-63, p. 89.

Ele começa a montá-lo na primeira lição do seminário e termina somente na sexta lição,
quando adiciona o acting out e a passagem ao ato. Lacan (1962-63) separa este quadro em duas
fileiras, a horizontal e a vertical. A fileira horizontal refere-se à dificuldade e a vertical, ao
movimento. Nesse sentido, a inibição apresentaria menos movimento e menos dificuldade,
enquanto a angústia apresentaria o máximo de movimento e de dificuldade. Vamos à
apresentação de cada elemento, a começar pelos eixos.
Feu (2014) esclarece que Lacan retira a ideia de movimento das elaborações de Freud
sobre o aparelho psíquico presentes tanto no “Projeto” como na “Carta 52”, de 1895 e 1896
respectivamente. Neles, o aparelho psíquico é construído tendo-se em mente as relações de
continuidade e descontinuidade entre pensamento e ação.

Se tomarmos o caminho ‘progressivo’ da excitação do aparelho, a ação é o que decorre de um


processo de inibição que caracteriza o trabalho de inscrição, retranscrição e tradução no aparelho
psíquico, como um ponto de conclusão de uma cadeia de representações que dominou a
excitação e chegou à consciência ao ligar-se à representação verbal (Feu, 2014, p. 5).

62
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data da publicação
original.
115

Esse eixo precisa ser conjugado com o eixo regressivo, que, ao contrário, faz com que
o pensamento retorne à excitação, desfazendo as conexões, de modo que a passagem ao ato
surge na desconexão com a cadeia de pensamento. Feu (2014) relembra que o ato aparece no
limite da rememoração. Já a direção horizontal, da dificuldade, relaciona-se com a função da
barra na relação do sujeito com seu gozo. Desse modo, na angústia temos um máximo de
movimento com o máximo de dificuldade, ou seja, o sujeito apagado ao máximo pela barra.
Lacan (1962-63) esclarece que se refere ao texto freudiano de 1926 – “Inibição, Sintoma
e Angústia”, e que, nele, Freud deixou de lado exatamente a angústia: “No discurso de
‘Inibição, Sintoma e Angústia’, fala-se de tudo, graças a Deus, exceto da angústia” (p. 18). Ele
retoma que a inibição está na dimensão do movimento, tratando-se exatamente da paralisação
dele. Miller (2005) indica que devemos tomar a inibição como o núcleo da disfunção e que
nessa primeira lição, devemos ler que ao tirar do dicionário as noções de emoção, impedimento
e embaraço, Lacan faz crer que os significantes poderiam enquadrar a angústia. “É uma rede –
e a palavra aparece – que parece ser feita para pegar o peixe da angústia, se posso dizer” (Miller,
2005, p. 15). Ele se refere ao termo rede, nome dado à lição: “A angústia na rede de
significantes”. Porém, como veremos, esse enquadramento é feito para que se tome distância,
já que a angústia não se deixar pegar no campo significante.
Seguindo no quadro, na fileira horizontal, Lacan (1962-63) fala do impedimento e usa
da etimologia, que bem lhe serve nessa lição. Impedir vem de impedicare, que significa ser
apanhado em uma armadilha. Essa armadilha é a da captura narcísica, que coloca um limite
quanto ao investimento objetal na medida em que nela o falo continua autoeroticamente
investido. No impedimento, ao mesmo tempo em que o sujeito avança em direção ao gozo, ele
é capturado por sua própria imagem especular, de modo que ele cai na armadilha.
O impedimento está no mesmo nível de dificuldade que o sintoma, por isso Lacan
(1962-63) diz que “nossos sujeitos ficam inibidos quando nos falam de sua inibição, e nós
mesmos ficamos inibidos quando falamos em congressos científicos, mas no dia-a-dia, eles
ficam é impedidos. Estar impedido é um sintoma” (p. 19). Feu (2014) esclarece que o sujeito
que se encontra impedido no campo sintomático é porque se deteve diante da castração,
rendendo-se à captura narcísica.
O eixo da dificuldade encerra-se com o embaraço, já fora do nível do sintoma. “O
embaraço é, em termos muito exatos, o sujeito S, revestido da barra, $, porque imbricare faz a
mais direta alusão à barra, bara, como tal. É justamente a imagem da vivência mais direta do
embaraço” (Lacan, 1962-63, p. 19). A barra é algo em que se escorar quando o sujeito já não
sabe mais o que fazer de si. Lacan (1962-63) retoma o termo espanhol embarazada, que
116

significa gravidez, “o que é uma outra forma bastante significativa de barra em seu lugar” (p.
20).
Terminado o eixo horizontal da primeira linha, que trata-se do mínimo de movimento,
Lacan (1962-63) passa à segunda linha, que se inicia com a emoção, que etimologicamente
também trata de movimento, mas ele diz que dará um retoque, pois a emoção “é o movimento
que desagrega, a reação que chamamos de catastrófica” (p. 20). Ainda que esse tipo de reação
seja legada à angústia, Lacan (1962-63) explica que ainda não estamos nela. Segundo Feu
(2014), o termo catastrófico relaciona-se aqui com o termo catarse, que na teoria freudiana,
relaciona-se à uma revivescência da cena traumática com a descarga de afeto adequada. “Trata-
se, portanto, de uma exteriorização simbólica, na medida em que o sujeito, sob transferência,
for capaz de se desembaraçar de seu sintoma por meio da palavra” (Feu, 2014, p. 70). É por
isso que, no segundo patamar do movimento, emoção é o que antecede o sintoma em relação à
dificuldade.
Lacan (1962-63) chega à linha final do movimento com o termo efusão, que ocupa em
relação a ele o mesmo patamar que a angústia. Na nota do tradutor, a palavra émoi em francês
tem também as acepções de perturbação, comoção, desassossego, efervescência, tumulto,
desnorteamento. Lacan (1962-63) faz questão de destacar que a efusão nada tem a ver com a
emoção, e que o termo (esmayer) tem o sentido de perturbar, transtornar, assustar, perturbar-
se, além de que nos leva ao termo exmagare: perder o poder, a força. Também se refere ao
português ‘esmagar’, no sentido figurativo. “A efusão é perturbação, queda da potência”
(Lacan, 1962-63, p. 21). Conforme Feu (2014), ela é o excesso de movimento que pode colocar
o sujeito fora de si e também fazê-lo perder a potência. “A efusão é a perturbação, o perturbar-
se como tal, o perturbar-se mais profundo na direção do movimento. O embaraço é o máximo
da dificuldade atingida” (Lacan, 1962-63, p. 22). É nesses dois eixos que se pode situar a
angústia. Somente cinco lições depois Lacan acrescentará a passagem ao ato e o acting out ao
quadro. Antes, ele vai trabalhar a estrutura da angústia.
A angústia é um afeto e o afeto é aquilo que não foi recalcado, uma vez que são os
significantes que são passíveis de recalcamento. Essa distinção entre afeto e significante é
importante para que possamos compreender o que está em jogo na relação entre o ato e a
angústia. E ele traz como um exemplo de afeto a cólera: “A cólera […] é o que acontece quando
os pininhos não entram nos buraquinhos […]. É quando, no nível do Outro, do significante –
ou seja, sempre, mais ou menos no nível da boa fé – não se joga o jogo. Pois bem, é isso que
provoca a cólera” (Lacan, 1962-63, p. 23).
117

Para compreendermos o conceito de angústia, precisamos compreender como ela


aparece aqui numa íntima relação com o objeto a. Diz Miller (2005) que “a angústia escolhida
por Lacan, a angústia lacaniana, é uma via de acesso ao objeto pequeno a. Ela é concebida
como a via de acesso ao que não é significante” (p. 11). Ele destaca também a heterogeneidade
do pequeno a ao significante. É nesse seminário que o objeto a ganha o estatuto de objeto causa
de desejo: “para fixar nossa meta, direi que o objeto a não deve ser situado em coisa alguma
que seja análoga à intencionalidade de uma noese. Na intencionalidade do desejo, que deve ser
distinguida dele, esse objeto deve ser concebido como a causa do desejo” (Lacan, 1962-
63/2005, p. 114-115). Além disso, a angústia é trabalhada em sua relação essencial com o
desejo do Outro, no momento em que o sujeito se vê alienado nesse desejo.
Lacan (1962-63) retoma que já afirmou que “o desejo do homem é o desejo do Outro”
(p. 31). Ele esclarece que, em Hegel, esse Outro está relacionado com a dialética do
reconhecimento e que ele é articulado no sentido de que o desejo do sujeito está na dependência
do Outro como aquele que me vê. Nessa perspectiva, o sujeito precisa do Outro na medida em
que ele o reconheça. O Outro é tomado como consciência. Já na psicanálise, o Outro é o lugar
do significante e

existe como inconsciência constituída como tal. O Outro concerne ao meu desejo na medida do
que lhe falta e de que ele não sabe. É no nível do que lhe falta e do qual ele não sabe que sou
implicado de maneira mais pregnante, porque para mim, não há outro desvio para descobrir o
que me falta como objeto do meu desejo. É por isso que para mim, não há acesso ao meu desejo,
como sequer há uma sustentação possível do meu desejo que tenha referência a um objeto
qualquer, a não ser acoplando-o a isto, o $, que expressa a dependência necessária do sujeito em
relação ao Outro como tal (Lacan, 1962-63, p. 32-33).

O que se indica aí é que o desejo do sujeito está alienado ao desejo do Outro, ou seja, é
somente no momento em que uma falha surge no campo do Outro que o sujeito pode se
perguntar o que o Outro quer dele, passando, a partir daí, ao condicionamento de seu desejo ao
desejo do Outro. Para isso, é necessário que exista uma falha no campo do Outro (Ⱥ), pois
retomando o que Lacan propõe nos três tempos do Édipo, se o Outro materno se satisfaz com a
criança, não há pergunta possível dessa criança em relação ao desejo do Outro. Ainda, é no
Outro tomado como tesouro de significantes que o sujeito é marcado pelo traço unário, e é a
partir da relação com o Outro que o sujeito se constitui, tendo como resto o objeto a.
118

Figura 8: Primeiro esquema da divisão

A S
$ Ⱥ
a
Fonte: Lacan, 1962-63, p. 36

No primeiro esquema da divisão, Lacan (1962-63) busca demonstrar como o sujeito –


(S), ainda num tempo mítico, de puro gozo, constitui-se como sujeito desejante a partir de uma
alienação ao significante do Outro (A). Ele é marcado pelo traço unário e há, nessa relação, um
resíduo. “Esse resto, esse Outro derradeiro, esse irracional, essa prova e garantia única afinal
da autoridade do Outro é o a” (Lacan, 1962-63, p. 36). O objeto a é aquilo que resta na operação
de constituição do sujeito no campo do Outro, ele se funda como resto após o sujeito ter sido
marcado pelo significante do Outro. Se é tomado como resto, ele somente pode ser
compreendido no campo do real, que escapa à simbolização. Ele é um sinal do real, assim como
a angústia.
Lacan (1962-62) esclarecerá que a angústia aparece quando surge algo onde deveria
haver uma falta. Para esclarecer isso, ele parte do seguinte esquema:

Figura 9: Esquema óptico simplificado.

Fonte: Lacan, 1962-63, p. 49.

Este esquema trata-se da simplificação do esquema óptico elaborado no texto


“Observações sobre o relatório de Daniel Lagache” de 1960, e que é reapresentado no seminário
sobre a angústia. O esquema simplificado tem para nós um especial interesse, pois nele, Lacan
(1962-63) insere o -φ. No esquema, tem-se um espelho côncavo de onde o sujeito (S) olha e
um espelho plano que se trata do campo do Outro (A). Este esquema visa apresentar o
investimento da imagem especular, i(a), e a relação inaugural que esta imagem tem com o
Outro. O i(a) só pode ser dado na experiência especular, mas deve ser autenticado pelo Outro.
Lacan (1936) já havia esclarecido que o corpo da criança se apresenta como fragmentado, tanto
por uma imaturidade orgânica quanto pela organização pulsional ainda anárquica. Esse i(a) é o
119

que organiza o corpo do bebê, dando a ele uma imagem unificada dele. No entanto, é necessário
que o Outro autentique a imagem e é nessa autenticação que o Outro aparece em toda sua
potência. A entrada efetiva no campo simbólico, no entanto, somente se dá quando a criança
passar a se dirigir ao Outro de uma forma interrogativa, sendo marcada pelo traço unário a partir
do qual outros significantes irão de desdobrar, orienta Viola e Vorcaro (2009). Miller (2005)
esclarece que o -φ trata-se do objeto da castração como imaginário, ou seja, localiza-se como o
objeto da falta.
O que ocorre é que o investimento na imagem especular tem um limite, já que “nem
todo investimento libidinal passa pela imagem especular. Há um resto” (Lacan,1962-63, p. 49).

Em toda medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de imagem real, imagem do corpo
funcionando na materialidade do sujeito como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o
falo aparece a menos, como uma lacuna. Apesar de o falo ser, sem dúvida, uma reserva
operatória, não só ele não é representado no nível do imaginário, como também é cercado e,
para dizer a palavra exata, cortado da imagem especular (Lacan,1962-63, p. 49).

Se de um lado surge o -φ, do outro surge o a, o resto da operação, um objeto que também
escapa da imagem especular. É nesse movimento que o desejo surge, incluindo, por um lado, a
entrada da criança no mundo simbólico, e por outro, deixando de fora o a. Lacan (1962-63)
aponta que o i(a) e o a são o suporte da função do desejo. Se é o desejo que sustenta o homem
em sua existência, é na medida em que a relação $ <> a só pode ser “acessível por algum desvio
em que certos artifícios não dão acesso à relação imaginária constituída pela fantasia” (Lacan,
1962-63, p. 51). Mas esse acesso não é possível, pois o homem só tem diante de si a imagem
virtual: i’(a). O a não é visível na constituição da imagem do desejo, por isso podemos entender
sua construção como objeto causa de desejo e não um objeto de desejo que poderia se
materializar.
Lacan (1962-63) esclarece que quanto mais o homem se aproxima do que acredita ser
seu objeto de desejo, mais afasta-se dele, pois se aproxima é da imagem especular. Ele se
pergunte, então, sobre quando surge a angústia.

A angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar do que chamarei,
para me fazer entender, de natural, o lugar (-φ), que corresponde do lado direito, ao lugar
ocupado, do lado esquerdo, pelo a do objeto do desejo. Eu disse alguma coisa – entendam uma
coisa qualquer (Lacan, 1962-63, p. 51, destaque do autor).

Ele aponta que isso que surge é o Unheimlichkeit– o estranho do texto freudiano. É o
estranho que surge onde deveria estar o -φ, a castração. A angústia aparece quando a falta vem
a faltar.
120

A angústia surge, portanto, quando emerge na cena o objeto a. Como um afeto que não
engana, ela testemunha o encontro do sujeito com o real. “A angústia não é a dúvida, ela é a
causa da dúvida” (Lacan, 1962-63, p. 88). É nela que o objeto a, que antes aparecia enquadrado
pela fantasia, aparece como um resto radical. Nesse sentido, como um afeto que não engana, “o
agir é arrancar da angústia a própria certeza” (Lacan, 1962-63, p. 88), e é aí que Lacan completa
seu quadro com os termos: acting out e passagem ao ato. É por isso que no momento do ato
não há sujeito nem Outro, pois o que está na cena é a presença do objeto a.
No entanto, temos aí mais um ponto importante nessa dimensão: “Passado seu instante,
ou seja, depois que o ato, impulsionado pelo objeto a, efetua uma transformação da angústia, o
sujeito pode reaparecer na cena de outro modo, renovado” (Guimarães, 2009, p. 296). Isso
abre, então, a quarta dimensão levantada por Guimarães (2009): o sujeito reencontra, após o
ato, sua presença renovada, pois o ato tem como efeito resgatar o sujeito de desejo que fora
eclipsado no instante do ato. Há aí um recomeço, pois após o ato, o sujeito ressurge despertado
por um novo desejo.
Já podemos encontrar um germe desta tese em uma lição de “O seminário, livro 1, os
escritos técnicos de Freud”, no qual Lacan (1953-54/1986)63, preocupado em pensar a técnica
analítica, traz a noção de palavra plena. Trata-se aí de compreender o trabalho analítico como
capaz de conduzir o analisando até o advento da palavra plena. “A palavra plena é a que visa,
que forma a verdade tal como ela se estabelece no reconhecimento de um pelo outro. A palavra
plena é a palavra que faz ato” (Lacan, 1953-54, p. 129). Essa palavra tem a função de um dizer
do lado do analisando, de modo que ele não é mais o mesmo após o encontro com essa palavra.
Ela faz um ato no sentido que faz um corte, marcando dois momentos distintos do sujeito: um
antes e um depois.
Lacan (1967-68) esclarece que a eficiência do ato não tem relação com nenhuma
eficácia de um fazer e segue indicando que o sentido do ato está na ultrapassagem e, tomando
César como referência, diz que

vale bem a pena colocar a questão aqui em um certo ponto de partida, pois na maneira pela qual
vou avançar sobre o terreno do ato há também uma certa ultrapassagem, em evocar essa
dimensão ao ato revolucionário e caracterizá-lo com isso de diferente de toda a eficácia de
guerra que se chama suscitar um novo desejo (lição de 10/01/68).

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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O desejo havia ganhado, no décimo seminário, o estatuto de ilusório. Isso “porque


sempre se dirige a um outro lugar, um resto constituído pela relação do sujeito com o Outro que
vem substituí-lo” (Lacan, 1962-63, p. 262). Isso deixa em aberto a questão da certeza. Miller
(2005) esclarece que essa dimensão do desejo como engano acompanhará Lacan por todo o
restante de seu ensino, tendo como consequência o próprio passe como que implicando uma
deflação do desejo. O desejo recebe esse estatuto, pois o objeto é o que engana. Daí, podemos
passar a compreender a relação do desejo com a metonímia dos objetos.
Isso ocorre porque o objeto a, causa de desejo, é um objeto desde sempre perdido e,
portanto, inapreensível. “Na medida em que ele sobra, por assim dizer, da operação subjetiva,
reconhecemos estruturalmente nesse resto, por analogia, o objeto perdido. É com isso que
lidamos, por um lado, no desejo, por outro, na angústia” (Lacan, 1962-63, p. 179).
Guimarães (2009) completa que se seguem quatro tempos desde o surgimento do objeto
na cena até o reaparecimento do sujeito com a irrupção de um novo desejo:

1o) a angústia surge, desprovida de causa, mas não de objeto; 2o) a certeza engendrada pelo
objeto da angústia – o objeto a – impulsiona o ato; 3o) o ato aplaca a angústia e,
simultaneamente, reativa o desejo; 4o) a função da causa volta a se exercer, suscitando um novo
desejo. (Guimarães, 2009, p. 297)

A isso Miller (2014) propõe que, para Lacan, todo ato é um suicídio do sujeito, ou seja,
há uma morte. Entretanto, uma morte que não fica só nisso, engendrando um começo posterior.
“Podemos colocar entre aspas para indicar que ele pode renascer disso, mas renasce diferente.
É isto que constitui propriamente um ato: o sujeito não é mais o mesmo antes e depois” (Miller,
2014, p. 5).
E por último, temos a tese de que todo ato, exceto o suicídio, é falho. Como dito, há
em todo ato um correlato significante, no entanto, não há nenhuma garantia de que o ato
comporte a mesma intenção que o moveu, o ato malogra, pois nada assegura a verdade de sua
intenção. Se não há Outro do Outro, não há um significante que garanta a verdade. Ainda, em
sequência da assertiva anterior – o sujeito sempre reaparece renovado após o ato – devemos
afirmar que “todo ato encontra, inevitavelmente, uma inscrição no Outro, o que faz com que a
própria ideia de corte absoluto fracasse” (Guimarães, 2009, p. 299).
Lacan coloca como exceção ao ato sempre falho o suicídio, pois nele não há a dimensão
nem do Outro, nem do sujeito, é uma ruptura definitiva, havendo um apagamento irreparável
do sujeito e, consequentemente, do campo do Outro. Brodsky (2004) acrescenta que no suicídio
há um rechaço total do inconsciente. Miller (2014), por sua vez, diz que o autoextermínio é o
122

único ato no qual o sujeito separa-se efetivamente dos equívocos da fala, opondo-se, assim, à
psicanálise.
Ainda sobre o conceito de ato, é necessário proceder uma separação entre a passagem
ao ato e o acting out. Lacan (1962-1963) destina uma lição a essa diferenciação a partir da
leitura de dois casos freudianos – Dora e a Jovem Homossexual. Lacan também apresenta essa
diferenciação em “O seminário, livro Um” (1953-54), assim como no caso do homem dos
miolos frescos, no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” de 1958.
Tratamos de Dora em nosso primeiro capítulo, passamos, então, a uma breve apresentação
sobre a jovem homossexual.
Freud publica o caso em 1920 sob o título “Sobre a psicogênese de um caso de
homossexualidade feminina”. Trata-se do atendimento de uma jovem de 18 anos, descrita por
Freud (1920a/2016)64 como bonita, inteligente e integrante de uma família de elevada posição
social, que é levada a ele pelo pai. A jovem se torna objeto de desgosto dos pais, principalmente
do pai, por se apaixonar por uma dama dez anos mais velha. Essa dama vivia com uma mulher
casada, mas também se envolvia em relações amorosas com homens. Ela é descrita pelo pai da
jovem como uma “cocota”.
A dama não dispensava à jovem toda a atenção que ela pedia e isso fazia com que a
jovem a perseguisse. Ela esperava a dama por horas na porta de sua casa, nas paradas do bonde,
lhe enviava flores e etc. Os pais dela nunca haviam notado nela qualquer interesse por homens
e seu pai ficava bastante aborrecido com a situação, principalmente com a pouca discrição da
filha, que gostava de se “exibir publicamente com a amada de fama duvidosa nas ruas mais
frequentadas, desconsiderando, portanto, sua própria honra” (Freud, 1920a, p. 158). O pai da
jovem ficou enfurecido e tentou reprimir a filha quando soube de suas primeiras inclinações
homossexuais. Ele ficava muito afetado com a situação e a levou a Freud para que ele pudesse
“reconduzir a filha à normalidade” (Freud, 1920a, p. 159). A mãe da jovem, por sua vez, não
se indignava com a situação do mesmo modo que seu marido.
O encaminhamento da jovem para Freud se deu após o seguinte evento:

Certo dia acabou ocorrendo o que, de fato, nessas circunstâncias [de exibição pública da jovem com a
dama] teria de acontecer, o pai encontrou pela rua sua filha em companhia daquela dama de quem já havia
tomado conhecimento. Ele passou por elas com um olhar furioso que não anunciava nada de bom.
Imediatamente, a jovem correu e jogou-se por cima do muro em direção à linha de trem urbano que
passava ali perto. Ela pagou com essa tentativa de suicídio indubitavelmente séria com uma longa
convalescença, mas por sorte, sem lesões permanentes (Freud, 1920a, p. 158-59).

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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Freud (1920a) destaca a intencionalidade dessa tentativa de suicídio e como ela não
somente fez com que os pais ficassem menos rígidos com a moça, como também fez com que
a dama lhe passasse a dar mais atenção. Mais adiante, Freud esclarece os bastidores desse ato.
No dia em que a jovem foi flagrada por seu pai, ela explicou à dama que aquele senhor era seu
pai e que ele não aprovava sua relação com ela. “A dama, então, ficou colérica e ordenou que
a deixasse imediatamente, que não mais a esperasse ou lhe dirigisse a palavra; essa história
tinha de terminar naquele momento” (Freud, 1920a, p. 176). É nesse momento que ela se
entrega a morte, afirma Freud.
O autor tem duas interpretações para o ato. A primeira era uma resposta a esse rechaço
da dama e a segunda, uma realização de desejo. Essa interpretação diz respeito “à consecução
daquele desejo cuja decepção a havia movido à homossexualidade, a saber, ter um filho do pai,
pois agora ela caía [niederkommen] por culpa do pai” (Freud, 1920a, pp. 176-77). A ligação
entre uma interpretação e outra é que, na cena, a dama fala com a jovem do mesmo modo que
o pai faz, ameaçando-a com a mesma punição. Em nota de rodapé, Freud esclarece que a
psicanálise já descobriu, há muito tempo, a relação entre alguns modos de suicídio e a
sexualidade, sendo que o jogar-se do alto correlaciona-se com o cair/parir.
A passagem ao ato é referida por Lacan (1962-63) a partir deste termo trazido por Freud,
“niederkommen lassen” – largar de mão.

Esse largar de mão é o correlato essencial da passagem ao ato. Resta ainda precisar de que lado
ele é visto. Ele é visto justamente do lado do sujeito. Se vocês quiserem referir-se à fórmula da
fantasia, a passagem ao ato está do lado do sujeito na medida em que este aparece apagado ao
máximo pela barra. O momento de passagem ao ato é o de embaraço maior do sujeito, com o
acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento (Lacan, 1962-63, p. 129).

Nessa modalidade de ato, há uma precipitação do sujeito que despenca fora da cena. Há
um apagamento do sujeito. Lacan (1962-63) localiza aí a tentativa de suicídio da jovem
homossexual e a bofetada de Dora no Sr. K quando lhe é dito a “frase-armadilha” (p. 130) do
Sr. K: “a minha mulher não é nada para mim”. Segundo Lacan (1962-63), essa bofetada é um
momento crucial, com valor de mudança de rumo do destino. O mesmo vemos em Madeleine,
quando ela anuncia que, sem saber o que fazer ou o que ser, só lhe resta queimar as cartas. Já
com Medeia, o corpo inane só sai da prostração após o ato. Nelas, também localizamos uma
passagem ao ato, quando devastadas, lhes restam o ato.
Marcos e Derzi (2013) indicam que a bofetada de Dora e a tentativa de suicídio da
Jovem Homossexual “permitem, numa relação quase direta com o a, evitar a transitoriedade da
angústia” (p. 79). O que isso indica? Que no auge do embaraço, o sujeito encontra a passagem
124

ao ato como última barreira contra a angústia. Não há mais representação possível, a fantasia
falhou. Nela, o sujeito se evade da cena, não é à toa que o subtítulo da lição em que Lacan faz
essa diferenciação é “deixar-se cair e subir no palco” (Marcos & Derzi, p. 128). Se na passagem
ao ato o que está em jogo é o cair, esse subir no palco só pode se tratar do acting out.
“Tudo que é acting out é o oposto da passagem ao ato” (Lacan, 1962-63, p. 136). Lacan
esclarece, de saída, que ele indica uma relação essencial do Outro com o pequeno a e anuncia
que se entendemos a tentativa de suicídio da jovem homossexual como uma passagem ao ato,
devemos ler suas aventuras públicas com a dama como um acting out, do mesmo modo pelo
qual devemos considerar o comportamento de Dora com o casal K. Ele define que o acting out
revela-se na conduta do sujeito portando uma ênfase demonstrativa orientada para o Outro.
Lacan (1953-54) já havia destacado o acting out dentro do processo analítico
relacionando-o com a repetição. Ele diz que falar ao falar do automatismo de repetição deve-se
liga-lo a linguagem e que toda ação, que ele nomeia como acting out, deve ser incluída num
contexto de palavra.

Qualificamos de acting out o que quer se seja que passe no tratamento. E não sem razão. Se
tantos sujeitos se precipitam durante sua análise para realizar uma massa de ações erótica, como
se casar, por exemplo, é evidentemente por acting out. Se agem é com endereço do seu analista.
É exatamente por isso que é preciso fazer uma análise de acting out e fazer uma análise de
transferência, isto é, encontrar num ato o sentido de palavra. Na medida em que se trata do
sujeito de fazer reconhecer, um ato é uma palavra (Lacan, 1953-54, p. 279).

Ora, desde sua primeira aparição na teoria lacaniana, o acting out surge como
interpretável e com valor de palavra, e esse valor só é possível se ele é endereçado a um Outro.
Voltando ao décimo seminário, o acting out encontra-se ligado à encenação da fantasia.
Lacan (1962-63) lembra que a jovem homossexual queria um filho do pai, mas que convém
situar aí que isso não se trata de uma necessidade materna, já que a relação do filho com a mãe
deve ser situada de forma lateral em relação à elucidação do desejo inconsciente. A jovem
queria esse filho como um falo “como um substituto, sucedâneo de algo que, nesse ponto,
combina plenamente com nossa dialética de corte da falta, do (a) como queda, como faltante”
(Lacan, 1962-63, p. 138). Assim, ao não conseguir realizar o desejo, a jovem busca realizá-lo
de outro modo, tornando-se amante, ou seja, coloca-se naquilo que não tem para mostrar que o
tem. Trata-se, aqui, da proposta de ser o falo (Lacan, 1958b). Freud (1920a) já sinalizara que
ela se comportava como um cavalheiro, assim como um homem, sacrificando, à dama, o falo.

Assim, combinemos esses dois termos, mostrar ou demonstrar e desejo para isolar um desejo
cuja essência é mostrar-se como outro, mas mostrando-se como outro, assim se designar. No
125

acting out, portanto, diremos que o desejo, para se afirmar como verdade, envereda por um
caminho em que, sem dúvida, só consegue fazê-lo de uma maneira que chamaríamos de
singular, se já não soubéssemos, por nosso trabalho aqui, que a verdade não é da natureza do
desejo (Lacan, 1962-63, p. 138, destaque do autor).

Assim, o acting out é, em sua essência, uma mostração ao Outro daquilo que é do campo
do desejo. Essa mostração é velada para o sujeito. O acting out fala e o que é nele mostrado é
o objeto como resto, como queda. Entre o sujeito e o Outro, o que surge é o a. Lacan (1962-63)
retoma o caso dos Miolos Frescos. Este caso, apresentado por Ernst Kris, trata de um sujeito
que apresentava uma inibição intelectual, mostrando-se incapaz de publicar suas pesquisas,
“isso em razão de um impulso de plagiar do qual ele não parece capaz de assenhorear-se. Esse
é o drama subjetivo” (Lacan, 1958c/1998, p. 605)65.
Ernst Kris retoma o caso e pretende dar ao sujeito o insight de um novo começo. Depois
que o paciente conclui um livro, Kris examina-o e descobre que não há, nele, nenhum elemento
que caracteriza plágio. “Em suma, havendo se certificado de que seu paciente não é plagiário,
embora acredite sê-lo, Kris tenciona demonstrar-lhe que ele quer sê-lo para se impedir de sê-lo
realmente” (Lacan, 1958c, p. 605). Essa intervenção é uma tentativa errônea de supor que
pulsão e defesa sejam concêntricas; o analista tinha como intenção analisar a defesa antes da
inscrição da pulsão. Após essa intervenção, Kris pergunta ao paciente o que ele acha e ele lhe
retruca que há algum tempo, após a sessão, vagueou pela rua para cobiçar nos cardápios dos
restaurantes o anúncio de seu prato preferido: miolos frescos. Lacan diz que essa declaração
tem valor de acting out.
Esse ato é tomado com valor de corretivo da interpretação do analista, que buscava lhe
mostrar a verdade. Lacan (1962-63) diz que com o prato de miolos frescos, o paciente mostra
para Kris que o que ele diz é verdade, mas não toca a questão. Lacan esclarece que o acting out
tem a dimensão de um apelo à interpretação. Isso é o que o torna diferente do sintoma, uma vez
que ambos possuem em comum a mostração de um desejo. Lacan adverte que o sintoma não
faz esse apelo, ele não é um apelo ao Outro, mas por sua natureza, é gozo. O acting out é o
começo da transferência, é a transferência selvagem. Sua marca é direcionar-se ao Outro.
Miller (2005) faz o seguinte esquema para diferenciar o acting out da passagem ao ato:

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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Figura 10: acting out versus passagem ao ato


+a -a
Acting out Passagem ao
ato
Fonte: Miller, 2005, p. 75

Ele esclarece que enquanto o acting out é o surgimento do a na cena, a “passagem ao


ato não engana, é uma saída de cena que não deixa mais lugar à interpretação, não deixa mais
lugar ao jogo do significante” (Miller, 2005, p. 75). Há, nela, um não querer saber mais nada,
há uma rejeição de qualquer apelo ao Outro. Miller reforça o caráter enganoso do acting out, já
que nele o sujeito mostra-se apenas lateralmente, pois o objeto a que sobe à cena não é
especularizável.
Assim, o que radicaliza a diferença entre o acting out e a passagem ao ato é que enquanto
no primeiro há um apelo do sujeito ao Outro, no segundo há um apagamento do sujeito, uma
separação do Outro.

3.3.2 Ato, repetição e pulsão

Filho (2010) indica que o conceito de repetição está colocado desde a origem da
psicanálise, quando Freud postulou a ideia de facilitação no Projeto de 1895. Essa noção trata-
se da proposta freudiana de que a energia circula no aparelho psíquico preferencialmente por
vias mais investidas, havendo a tendência de se percorrer sempre o mesmo caminho. É a
experiência primária de satisfação que marca as trilhas de toda repetição. O autor esclarece que
é ao princípio do prazer que a repetição aparece vinculada num primeiro momento. Silva
(2015), por sua vez, nos lembra em “Estudos sobre a Histeria” que Freud e Breuer afirmaram
que as histéricas sofriam de reminiscências, trazendo já uma marca da incidência da repetição
no aparelho psíquico. Além disso, em 1905, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
Freud fala de fixação das impressões da vida sexual na vida dos neuróticos e do retorno a essa
fixação. Entretanto, a formalização sobre a repetição acontece em 1914, de onde partiremos.
Em 1914, Freud (1914b/2017)66 escreve “Lembrar, repetir e perlaborar”, trabalho no
qual aborda a técnica analítica apontando que seu objetivo seria o de preencher as lacunas da

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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memória do paciente e superar as resistências impostas pelo recalque. Ele esclarece que, na
realidade, o esquecimento do paciente trata-se mais de um bloqueio do que de um apagamento
real da lembrança e, muitas vezes, no esquecimento está presente uma lembrança encobridora.
Freud (1914b) diz ainda que, diferente do tratamento hipnótico, no qual a resistência é
colocada de lado, o novo método de tratamento – associação livre, impõe obstáculos novos,
pois neles “podemos dizer que o analisando não se lembra de mais nada do que foi esquecido
e recalcado, mas ele atua [Agieren] com aquilo. Ele não o reproduz como lembrança, mas como
ato, ele repete sem, obviamente, saber que o repete” (p. 154). Como exemplo, Freud diz de um
paciente que não se lembrava de ter sido rebelde frente à autoridade dos pais, mas o era frente
à autoridade do analista. Ele também diz que um paciente não se lembra de sua pesquisa sobre
a sexualidade infantil, mas tem sonhos e ocorrências confusas em relação à sexualidade. Isso
ocorre porque a pulsão sempre busca retornar a um estado de satisfação anterior.
Freud (1914b) demonstra que a atuação substitui o esquecido, de modo que o paciente
não dá conta de lembrar o evento recalcado, atuando-o. Desse modo, parece-nos que o ato se
relaciona com o campo do real, pois ele surge quando não é possível uma elaboração simbólica.
O tratamento analítico começa com a repetição e a resistência é uma parcela da repetição, “a
repetição é a transferência do passado esquecido não apenas para o médico, mas também para
todos os outros aspectos da situação presente” (Freud, 1914b, p. 155), e quanto maior forem as
resistências, mais o recordar será substituído pelo atuar.
Mas o que se repete? Trata-se daquilo que é imposto pelo recalcado, como as inibições,
as posições inviáveis que o sujeito mantém, seus traços patológicos de caráter, assim como os
sintomas que são repetidos durante o tratamento. Freud (1914b) chama esse fenômeno de uma
“compulsão para a repetição” (p. 156) – Wiederholung. Os editores dessa obra esclarecem que
não se trata ainda da compulsão à repetição – Wiederholungszwang. O que Freud (1914b)
demonstra é que, muitas vezes, o fazer repetir no tratamento pode trazer uma piora no sujeito,
mas é um processo necessário, pois é somente fazendo as pazes com o recalcado que o sujeito
pode se restabelecer de sua moléstia. A compulsão para a repetição seria um impulso à ação
que substitui o recordar.
Filho (2010) orienta que essa compulsão é o produto da história erótica do paciente,
estando comprometida com a busca de prazer. A repetição, que opera como resistência (à
rememoração), está a serviço do recalcado e por mais que negocie, não renuncia à sua busca de
satisfação, “mas essa repetição tem uma presença marcante, uma intensidade que faz com que
ganhe o adjetivo de compulsão” (Filho, 2010, p. 119). O autor joga com o termo compulsão,
indicando-o como com mais pulsão, e define que este é um conceito que remete à força da
128

pulsão, seria um conceito energético, definindo-a como uma pulsão com mais intensidade.
“Essa ‘com + pulsão’, quando investida em uma inscrição psíquica, determina uma trilha a ser
seguida, os destinos que levam à repetição” (Filho, 2010, p. 118). Nesse sentido, o ato também
ganha uma vinculação com o campo pulsional.
Ainda que faça parte do tratamento analítico, a repetição deve ser contida e
reconfigurada como lembrança, e isso só é possível através do manejo da transferência, pela
substituição da neurose comum pela neurose de transferência, na qual o analisando poderá ser
tratado terapeuticamente. Nomear a resistência é indispensável para que o elemento recalcado
chegue à consciência e possa ter seu desfecho, mas isso não é suficiente. Freud (1914b)
esclarece que após essa nomeação ocorrer, “precisamos dar tempo ao paciente para que ele se
aprofunde na resistência que até então lhe era desconhecida, para perlaborá-la, superá-la, na
medida em que ele, a ela resistindo, continue o trabalho de acordo com a regra fundamental”
(p. 161). Para o autor, a perlaboração das resistências é a parte do trabalho mais transformadora
no sujeito.
Os editores da nova tradução desse texto freudiano (da editora Autêntica) indicam que
a palavra que mais apresentou a eles dificuldades na tradução foi durcharbeiten, traduzida por
perlaborar. Eles indicam que o léxico relativo a arbeiten é rico e indica trabalhar, laborar. Este
verbo, quando acrescido de diferentes prefixos, descreve diferentes atividades psíquicas e
traduzi-lo por elaborar implicaria uma grande perda em seu sentido. Eles seguem indicando
que, por mais que evitem neologismo na tradução, é difícil encontrar uma palavra adequada
para o durcharbeiten. Desse modo, explicam que o verbo arbeiten, quando é precedido pelo
prefixo be-, se aproxima de elaborar. Todavia, Freud usa o prefixo durch-, mais próximo de
through na língua inglesa, que significa “através”. “Quer dizer, há aqui uma noção de um
atravessamento que perfaz uma ação. Além disso, durcharbeiten designa uma ação que vai do
início até o fim” (Freud, 1914b, p. 163). Assim, optaram por inserir o prefixo per-, compondo
o verbo perlaborar. Esse verbo trataria, assim, de um percurso ligado à elaboração do recalcado.
Parece, portanto, que é somente através do caminho da perlaboração que a repetição
pode suspender-se. A perlaboração faria barreira ao ato. Freud (1914b) demonstra, nesse texto,
que o ato não pode ser permeado pelo campo simbólico, já que a repetição é sempre daquilo
que não pôde ser ainda inscrito pelo significante. Além disso, o que Freud demonstra é que a
repetição é uma força imediata que atualiza componentes psíquicos que não foram recordados.
129

Em 1920, Freud publicou “Além do Princípio do Prazer”, e nele há vinculação das ações
de repetição com a pulsão de morte sob a égide da compulsão à repetição. Freud (1920b/2006)67
faz aí uma torção em seu ensino ao inserir o conceito de pulsão de morte e elaborar a segunda
dualidade pulsional: a divisão entre pulsão de vida e pulsão de morte. Se em 1914 a repetição
aparecia atrelada ao tratamento analítico e às pulsões sexuais, em 1920 ela surge como
ultrapassando os limites do tratamento. Na realidade, um ano antes da publicação de “Além do
Princípio do Prazer”, Freud já indicava no texto “O estranho” que havia uma compulsão que
prevalecia sobre o princípio do prazer.
Freud (1919b/2006)68 inicia fazendo um levantamento linguístico do termo unheimlich
(estranho), e por se tratar de um termo complexo, ele faz um longo percurso para defini-lo. Ele
aponta que “somos tentados a concluir que aquilo que é estranho é assustador precisamente
porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar
é assustador” (Freud, 1919b, p. 239), ou seja, não se pode tomar o estranho simplesmente como
o contrário de doméstico: heimlich.
Se heimlich aparece a princípio como doméstico, familiar, ele aparece também de outra
forma: “Escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos
outros. Fazer alguma coisa heimlich, isto é, por trás das costas de alguém; roubar heimlich,
reuniões e encontros heimlich” (Freud, 1919b, p. 242). Dentre os matizes de significados de
heimlich, tem uma que é idêntica ao seu oposto unheimlich, uma vez que este é definido por
Scheling, citado por Freud, como tudo aquilo que deveria ter permanecido escondido, secreto,
mas foi trazido à luz. Dessa forma, o autor sintetiza que o conhecido, doméstico, heimlich, pode
vir a ser estranho:

Da ideia de familiar, pertencente à casa, desenvolve-se outra ideia de algo afastado dos olhos
de estranhos, algo escondido, secreto [. . .] Dessa forma, heimlich é uma palavra cujo significado
se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com seu oposto
unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich. (Freud, 1919b,
pp. 243-244)

Após essa definição da relação entre o estranho e o familiar, Freud (1919b) aponta
elementos na literatura que indicam sentimentos de estranheza e, para isso, recorre ao texto de
Hoffman ‘O homem de areia’. Nesse ponto, discorda da teoria de Jentsch, autor que tentou

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
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explicar ‘o estranho’ relacionando o sentimento de estranheza com aquelas coisas que causam
incerteza intelectual. Freud acredita que o sentimento de estranheza não teria relação com o
intelecto, com o pensamento, e o articula com aquilo que foi recalcado e retornou.
Freud (1919b) faz uma relação do medo do protagonista em perder os olhos na história
de ‘O homem de areia’ com a angústia de castração. Dessa forma, se pergunta se poderia
estender a ideia de que um sentimento infantil seria capaz de causar a sensação de estranho. Ele
verifica que sim, mas sem que o sentimento de estranho esteja articulado, necessariamente, a
um medo infantil, podendo estar também articulado a desejos. Traz como exemplo a estranheza
que causaria se bonecas tomassem vida, mesmo isso sendo desejado pelas crianças. O
sentimento de estranheza relacionado à infância tem uma relação com o fenômeno do duplo
que aparece em todas as fases do desenvolvimento psíquico. Portanto, ao mesmo tempo em que
o fenômeno parece alheio, ele sempre acompanhou os estágios do desenvolvimento psíquico
de cada sujeito.
Freud (1919b) aponta três formas de aparição do duplo. A primeira, quando dois
personagens parecem idênticos, de modo que eles possuem os mesmos sentimentos,
conhecimentos e experiência, e ainda quando os processos mentais parecem saltar de um para
o outro através da telepatia. A segunda forma é marcada quando um sujeito se identifica com
outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre qual é seu ‘eu’ ou substitui seu ‘eu’ pelo
de um estranho. E a terceira forma seria o retorno constante da mesma coisa, “a repetição dos
mesmos aspectos, das mesmas características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes ou até dos
mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem.” (Freud, 1919b, p. 252).
Nessa repetição involuntária, Freud reconhece o surgimento do estranho e traz como
desdobramento uma compulsão à repetição:

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à


repetição’, procedente dos impulsos [pulsionais] e provavelmente inerente à própria natureza
[das pulsões] – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer,
emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito
claramente expressas nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável,
também, por uma parte do rumo tomado pela análise dos pacientes neuróticos. Todas essas
considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima
‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho (Freud, 1919b, p. 256).
131

Aqui, há uma transformação na teoria freudiana. Em 1911, em “Formulações sobre os


dois princípios mentais”, Freud (1911/2006)69 propõe que o aparelho psíquico é regido por dois
princípios: “o princípio de prazer-desprazer, ou mais sucintamente princípio de prazer” (p. 238)
e o princípio de realidade. O que ele indica, em 1919, é uma alteração desses princípios,
afirmando que há um modo de funcionamento calcado num além do princípio do prazer. Esse
“além” se apresenta por meio de uma compulsão à repetição e para o sujeito, apresenta-se como
estranho, já que ele não se reconhece nas ações de repetição. Em 1920, a compulsão à repetição
ganha suas consequências.
Freud (1920b) começa o texto questionando a prevalência do princípio do prazer,
esclarecendo que ele não se pauta apenas no aumento ou redução da tensão, mas também no
princípio de constância, de forma que “o aparelho mental se esforça por manter a quantidade
de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante”
(p. 18). O que há é uma tendência no sentido do prazer e não se pode falar da dominância do
princípio de prazer, pois se isso fosse verdadeiro, nossos processos mentais deveriam ser
sempre acompanhados pelo prazer ou conduzir a ele, o que contradiz a experiência. Ele traz
como exemplo duas circunstâncias advindas da práxis analítica que impedem que o princípio
de prazer seja realizado. Trata-se da submissão deste princípio em relação ao princípio de
realidade e do surgimento dos conteúdos recalcados. Em relação ao primeiro, esclarece que
como o princípio do prazer é de início ineficaz e perigoso à autopreservação do organismo, ele
deve buscar o adiamento das satisfações e tolerar temporariamente o desprazer, e “sob a
influência [das pulsões] de autopreservação do eu, o princípio do prazer é substituído pelo
princípio de realidade” (Freud, 1920b, p. 20, destaque do autor). O que ocorre aí não é um
abandono da intenção do prazer, mas um adiamento da obtenção de prazer com uma tolerância
temporária do desprazer.
Essa substituição só pode ser responsabilizada por um número pequeno de sensações
desagradáveis e aí entra em jogo a segunda circunstância na qual o princípio de prazer é inibido.
Trata-se do surgimento dos conteúdos recalcados, pois após pulsões incompatíveis com as
exigências do eu serem expelidas da consciência pelo recalque, elas podem alcançar satisfação
por caminhos indiretos ou substitutivos. Esse acontecimento, ao invés de causar prazer, gera
desprazer no eu. Trata-se, para Freud, do desprazer neurótico, “ou seja, um prazer que não pode
ser sentido como tal” (Freud, 1920b, p. 21).

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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Esses dois eventos não indicam, no entanto, nada que aponte para um além do princípio
do prazer, mas apenas a uma limitação dele. Então, Freud (1920b) dedica-se a dois exemplos
que poderiam demonstrar uma tendência a um além. Os exemplos freudianos são as neuroses
traumáticas e as brincadeiras infantis. O quadro de neurose traumática aproximava-se da
histeria em relação aos sintomas motores, mas a ultrapassava devido à grande indisposição
subjetiva, mais semelhante à hipocondria e à melancolia, bem como às perturbações mais gerais
das capacidades mentais. Nesse quadro, há duas características essenciais: a causação do quadro
parece repousar na surpresa e caso haja um ferimento, ele opera contra o desenvolvimento dessa
neurose. O que se destaca é que “os sonhos que ocorrem na neurose traumática possuem a
característica de repetirem o acidente traumático, de forma que o paciente acorda em outro
susto” (Freud, 1920b, p. 24). Daí, questiona-se se no paciente a função do sonho estaria alterada
ou se existiriam tendências masoquistas do eu. Freud passa para outro exemplo antes de
formular a sua resposta.
Observando seu neto de um ano e meio, Freud (1920b) presenciou uma brincadeira que
consistia em agarrar e atirar objetos, no caso, um carretel de linha. Enquanto atirava o objeto
longe, ele dizia “o-o-o”, expressando satisfação, e quando o carretel reaparecia, ele emitia um
alegre “ da”. Freud (1920b) entende que a interjeição “o-o-o” é um representante da palavra
fort, que significa partir, ir embora, enquanto o da significa ‘ali’, “essa, então, era a brincadeira
completa: desaparecimento e retorno” (p. 26). Era curioso como o primeiro ato era
incansavelmente repetido, muitas vezes, como o jogo em si mesmo, apesar de que era o segundo
ato que trazia mais prazer. Esse jogo relacionava-se à renúncia pulsional que a criança deveria
fazer em relação à mãe através da encenação da partida e do retorno dela. Aí se coloca uma
questão: “Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo, harmonizava-se
com o princípio de prazer?”. Uma resposta possível é que a criança, no jogo, tenha transformado
a situação passiva (ser abandonado pela mãe) em ativa. Como vimos no capítulo um, Freud
(1931a) sinaliza que há, na criança, uma revolta contra a passividade. Nesse sentido, ao repetir
a cena desprazerosa, a criança a transformaria em ativa por meio de uma pulsão de dominação.
Há ainda outra interpretação para essa cena, na qual haveria, na brincadeira, uma
vingança contra a mãe por ela ter se afastado. Freud (1920b) não fica satisfeito com suas
elaborações e afirma que “a criança, afinal de contas, só foi capaz de repetir sua experiência
desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro
tipo, uma produção mais direta” (p. 27). Desse modo, Freud (1920b) vincula o ganho de prazer
com a repetição, mas isso “não fornece provas do funcionamento de uma tendência além do
133

princípio de prazer, ou seja, de tendências mais primitivas do que ele e dele independentes” (p.
28). Ele segue, então, buscando demonstrar tal tendência.
Retomando as elaborações de 1914, Freud (1920b) esclarece que o não recordado pode
ser o mais importante na história do paciente, acabando por obrigá-lo a repetir o material. Esse
material repetido tem como conteúdo algumas partes da vida sexual e do complexo de Édipo
“e são invariavelmente atuadas (acted out) na esfera da transferência, da relação do paciente
com o médico” (Freud, 1920b, p. 29). Essa repetição é idêntica aos sonhos na neurose
traumática e à repetição no fort-da, evento que Freud (1920b) nomeia de “compulsão à
repetição” (p. 30), que se trata de um impulso para o retorno a um modo de satisfação pulsional.
Para esclarecer sua proposta, ele retoma alguns pontos sobre o aparelho psíquico e indica que
a oposição consciente e inconsciente não é tão eficaz quanto ele havia postulado, esclarecendo
que não é o inconsciente que oferece resistência à rememoração, mas o eu. O eu é a instância
psíquica que é composta por partes conscientes e partes inconscientes, sendo que a parte
consciente constituiria a superfície do aparelho psíquico. Ele define que o eu é, acima de tudo,
um eu corporal.
Nesse sentido, ele separa que na compulsão à repetição o que está em jogo é o recalcado
inconsciente, enquanto o que está em jogo na resistência é o eu sob influência do princípio do
prazer, pois o eu busca evitar a liberação do recalcado que poderia produzir o desprazer. Sobre
a compulsão à repetição e sua relação com o princípio de prazer, ele afirma:

É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar
desprazer ao [eu], pois traz à luz as atividades dos impulsos [pulsionais recalcados]. Isso, no
entanto, constitui desprazer de uma espécie […] e que não contradiz o princípio de prazer:
desprazer para um sistema e, simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos agora
a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do
passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo
há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para [pulsões] que desde então foram [recalcadas]
(Freud, 1920b, p. 31, destaque nosso).

Portanto, Freud (1920b) encontra, na compulsão à repetição, um modo de


funcionamento que está para além do princípio do prazer. Essas experiências não prazerosas
são repetidas na transferência e esses mesmos fenômenos se passam com pessoas não
neuróticas. Ele diz que, nessas pessoas, há a impressão “de serem perseguidas por um destino
maligno ou possuídas por um poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião
de que seu destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias, e determinado pelas influências
infantis primitivas” (Freud, 1920b, p. 32). Ele traz como exemplo de compulsão à repetição
alguns fragmentos: a do benfeitor que é sempre abandonado por seus protegidos, um homem
134

que sempre é traído pelos amigos e o amante cujas relações amorosas sempre possuem o mesmo
caminho e o mesmo desfecho.
“Essa perpétua recorrência da mesma coisa” (Freud, 1920b, p. 33) não é de difícil
compreensão quando se trata de um comportamento ativo, podendo identificar na pessoa um
traço de caráter que é forçado a se expressar por meio da repetição. Contudo, é surpreendente
quando há um caráter passivo da pessoa nas experiências repetidas. Ele diz de uma mulher que
se casou consecutivamente com três maridos que caíram doentes e dos quais ela teve que cuidar
em seus leitos de morte. O autor esclarece que não há diferença entre a repetição que acontece
na transferência e a que ocorre na vida comum e afirma:

Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na


transferência e nas histórias de vida de homens e mulheres, não só encontramos coragem para
supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de
prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos
que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar (Freud, 1920b,
p. 33).

No entanto, são apenas em casos raros que podemos encontrar “motivos puros da
compulsão à repetição, desapoiado de outros motivos” (Freud, 1920b, p. 33). No caso das
brincadeiras de criança, parece haver uma convergência entre a compulsão à repetição e a
satisfação pulsional agradável, por exemplo, quando na brincadeira do fort-da, seu neto se vinga
da mãe que o abandonou. Freud assume que a explicação anterior que levava em conta apenas
o princípio de prazer deixa um campo não abrangido e a partir daí, pode justificar a “hipótese
de uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar, e mais
[pulsional] do que o princípio do prazer que ela domina” (Freud, 1920b, p. 34).
Enquanto em 1914 a compulsão para repetição era vinculada com o princípio do prazer,
ela agora localiza-se nesse além. Aqui, ela vincula-se com o conceito de pulsão de morte, que
aparece pela primeira vez em “Além do Princípio do Prazer”. Filho (2010) indica que, a partir
de então, a compulsão à repetição não se trata mais da fixação em um ponto prazeroso, mas ela
passa a ser centrada no traumático, “trata-se de algo inédito, uma repetição de vivência de dor,
e o que era motivo de repulsa vira polo de atração” (p. 120).
Freud (1920b) retoma os sonhos das neuroses traumáticas para esclarecer que eles
respondem à compulsão à repetição e não tratam de realização de desejo, como até então os
sonhos eram admitidos. Quando esses sonhos surgem durante a análise, a compulsão à repetição
é apoiada pelo desejo de relembrar o que foi esquecido no processo de recalque. Silva (2015)
esclarece que, nesse ponto, Freud indica que esses sonhos “cumprem uma função que antecede
135

o domínio do princípio de prazer e busca resgatar a capacidade do aparelho operar de acordo


com este princípio” (pp. 42-43). É aí que Freud indica que na compulsão à repetição, trata-se
de um modo de funcionamento para além do princípio de prazer, e poucas páginas depois, ele
a articula com o campo pulsional: “as manifestações de uma compulsão à repetição […]
apresentam em alto grau um caráter [pulsional] e, quando atuam em oposição ao princípio de
prazer, dão a aparência de uma força demoníaca em ação” (Freud, 1920b, p. 46).
Até 1920, a dualidade pulsional consistia na distinção entre as pulsões do eu (ou de
autoconservação) e as pulsões sexuais, no entanto, ao colocar a compulsão à repetição, que
despreza o princípio do prazer, no campo pulsional, essa dualidade precisou ser revista. Para
isso, Freud (1920b) restabelece algumas orientações sobre o aparelho psíquico, nomeando as
excitações advindas do interior do aparelho como pulsão.

Parece então que [uma pulsão] é um impulso inerente à vida orgânica a restaurar um estado
anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças
perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou para dizê-lo de outro
modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica (Freud, 1920b, p. 47).

Esse estado anterior é o estado inorgânico. Isso pode soar estranho, pois vemos nas
pulsões um fator que impele as mudanças, o que pode parecer contraditório com seu caráter
conservador. O resultado de compreender a pulsão como conservadora é que no
desenvolvimento orgânico, as mudanças devem ser atribuídas às influências externas que são
aceitas pelas pulsões. “Essas [pulsões], portanto, estão fadados a dar uma aparência enganadora
de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que estão apenas buscando
alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos” (Freud, 1920b, p. 49). O
objetivo é retornar a um estado de coisas antigo, inicial. Freud (1920b) afirma que “o objetivo
de toda a vida é a morte, e, voltando o olhar para trás, que as coisas inanimadas existiram antes
das vivas” (p. 49).
Silva (2015) esclarece, a esse respeito, que Freud propõe a hipótese de que a matéria
inanimada recebeu certa quantidade de estimulação por forças desconhecidas e que a tensão
gerada buscava descarregar-se, nascendo, assim, a primeira pulsão. É por essa especulação que
Freud pôde propor que o objeto da pulsão era retornar ao inanimado. Na realidade, numa visada
mais biologicista, Freud estende essa proposição a todos os seres vivos e traz como modelos os
seres unicelulares.
Desse ponto, surge uma questão: como, então, pensar na existência das pulsões de
autoconservação? Freud (1920b) esclarece que sua função é garantir que o organismo vivo
136

possa seguir seu próprio caminho para a morte, ou seja, afastar todos os modos de retornar ao
inanimado que não seja inerente ao organismo. Dessa forma, a pulsão guardiã da vida também
está a serviço da morte.
Em relação às pulsões sexuais, elas também são conservadoras, pois preservam a vida
por um período mais longo, bem como são resistentes às influências externas e operam contra
as outras pulsões que conduzem à morte. Freud (1920b) esclarece que é como se a vida se
movimentasse em um ritmo vacilante, enquanto um grupo de pulsões se precipita para atingir
o objetivo final da vida, o outro tão rapidamente se precipita a fim de prolongar sua jornada.
Está aí instalada a nova dualidade pulsional freudiana.
No capítulo VI, Freud (1920b) traz, pela primeira vez, o termo pulsão de morte. Ele
esclarece que a distinção entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais é insatisfatória e que apenas
o primeiro grupo possui um caráter retrógrado que corresponde à compulsão a repetição, pois
as pulsões do eu originaram-se da animação da matéria inanimada e buscam restabelecer esse
estado anterior. Já em relação à pulsão sexual, o que ela visa não é esse retorno, mas a união
das células germinais e essa é a condição para consideramos que as pulsões sexuais visam um
prolongamento da vida.
Em “Mais além do princípio de prazer”, Freud (1920b) recorre várias vezes à biologia
numa tentativa de fazer um paralelismo entre os processos biológicos e o aparelho psíquico.
Retomando sua suposição de que toda substância viva está fadada a morrer por causas internas,
ele afirma que não há um consenso entre os biólogos sobre isso e recorre a Weismann. Este
autor propõe que em toda substância viva há uma parte mortal – o corpo, e uma parte
potencialmente imortal – as células germinativas que podem se reproduzir. E ao transportar isso
para o campo das pulsões, ele afirma que devemos distinguir no campo pulsional duas classes
de pulsão: as que procuram conduzir a substância viva à morte e as pulsões sexuais que tentam
perpetuar a vida.
Freud (1920b) coloca, de um lado, a pulsão de vida – Eros – e do outro, a pulsão de
morte. Ele retoma o primeiro dualismo pulsional e esclarece que ele deve ser repensado uma
vez que reconhecemos que o eu também é objeto de investimento libidinal. Essa libido que
investe no Eu é uma libido narcísica70 e como consequência, uma manifestação da força da
pulsão sexual. Em suas palavras: “viu-se que uma parte [das pulsões] do [eu] era libidinal e que
[as pulsões] sexuais atuavam no [eu]” (Freud, 1920b, p. 62). Freud questiona se existiria, então,
alguma classe de pulsão que não seria libidinal e esclarece que não há nenhuma visível, sendo

70
Aqui, ele refere-se a seu texto de 1914, “Introdução ao estudo do narcisismo”.
137

assim obrigado a concordar com os críticos que acusam a psicanálise de explicar tudo pela
sexualidade. Contudo, explica que essa dificuldade não significa que não exista nenhum outro
componente.
Daí, Freud (1920b) parte para a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. Num
primeiro momento, havia equiparado as pulsões do eu às pulsões de morte, e as pulsões sexuais
às de vida, mas depois, suspende essa concepção. Ele parte do componente sádico da pulsão
sexual para poder clarificar do que se trata na nova repartição pulsional. Tanto nos “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, de 1905, como em “As pulsões e suas vicissitudes”, de 1915,
Freud já havia advertido que a pulsão sexual é dotada de componente sádico e que o
masoquismo nada mais é do que a pulsão sádica que retorna ao próprio eu. No entanto, seria
um contrassenso que a pulsão sádica, que busca prejudicar o objeto, derivasse de Eros, e propõe
que é plausível admitir que ela advém da pulsão de morte. Ela seria a pulsão de morte colocada
a serviço da reprodução, tratar-se-ia de uma pulsão de morte deslocada.
Em relação ao masoquismo, que faz par de opostos como o sadismo, Freud (1920b)
admite, pela primeira vez, que é possível assumir a existência de um masoquismo primário71 e
que ele seria uma manifestação direta da pulsão de morte. Para esclarecer melhor o conceito de
pulsão de morte, ele se utiliza do conceito de Princípio de Nirvana de Barbara Low e assim a
define:

A tendência dominante da vida mental e, talvez da vida nervosa em geral, é o esforço para
reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna devido aos estímulos (o
‘princípio do nirvana’, para tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low), tendência
que encontra expressão no princípio do prazer, e o reconhecimento desse fato constitui uma de
nossas mais fortes razões para acreditar na existência de [pulsões] de morte (Freud, 1920b, p.
66).

Freud (1920b) esclarece que temos de supor que as pulsões de morte estão associadas
desde o início com as pulsões de vida. Em “O eu e o isso”, ele explica que ambas as pulsões
estão ativas em cada substância viva em proporções desiguais e que há um processo de fusão e
desfusão pulsional, de modo que “para fins de descarga, [a pulsão] de destruição é
habitualmente colocado a serviço de Eros” (Freud, 1923b/200672, p. 54). Essa é uma maneira
pela qual ela pode ser tratada no sujeito: fundindo-se com a pulsão de vida; tendo ainda duas
possibilidades: ser desviada para o mundo externo ou estorvar o ego, como podemos ver na

71
Conforme visto no capítulo um, Freud formaliza, em 1924, a existência do masoquismo primário.
72
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor, que
somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da publicação
original.
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neurose obsessiva. Essa fusão pulsional (entre as pulsões de vida e de morte) é essencial para
se compreender seu funcionamento. Pode ocorrer também uma desfusão pulsional e isso
acontece quando há uma regressão da libido em relação às fases de desenvolvimento libidinal.
Somente podemos encontrar a pulsão de morte em estado puro na melancolia; nas palavras de
Freud (1923b), podemos encontrar nela “uma pura cultura de pulsão de morte” (p. 66). Mesmo
em 1923, Freud não deixa de indicar sua dificuldade com o conceito, mas destaca que enquanto
a pulsão de vida está a serviço do enlaçamento libidinal do sujeito, promovendo a coesão, a
pulsão de morte é silenciosa e disruptiva, de forma que Eros tem a função de domesticá-la.
Filho (2010) assim a define:

A pulsão de morte deve ser compreendida como força pulsional não enlaçada, não ligada, que
está nas origens do sujeito psíquico e não tem qualidade, não está subordinada à função
ordenadora do aparelho psíquico. Vejo-a como pura potencialidade de um devir que vai ser
determinado pela capacidade de ligação da pulsão sexual (p. 121).

Portanto, nessa vinculação entre essa classe de pulsão e a compulsão à repetição,


podemos destacar que a força implícita nessa compulsão a repetir não se trata mais apenas de
repetir situações não perlaboradas, mas de algo mais arcaico que suplanta o princípio do prazer
e orienta o sujeito em direção ao ponto traumático, como uma força demoníaca.
A repetição, nesse sentido, torna-se o trabalho fundamental da pulsão de morte, que
relança o sujeito em algo que é a ele inassimilável, o lança no real. É a partir dessa concepção
de repetição que Lacan abordará a repetição como um dos conceitos fundamentais em
Psicanálise ao lado do inconsciente, da pulsão e da transferência.
Ao elevar a repetição ao estatuto de conceito fundamental, Lacan (1964) indica que ela
se presentifica em ato e que a rememoração, que conforme propõe Freud (1914b), faria com
que a repetição cedesse, só caminha até um ponto que é o do real, existe um limite à
rememoração. Ele define que “o real é aquilo que retorna sempre no mesmo lugar” (Lacan,
1964, p. 55). Ele segue indicando que repetir não é o mesmo que reproduzir, já que reproduzir
era o que se fazia no tempo da catarse, quando as cenas eram revividas. Lacan (1964) segue e
afirma: “A repetição aparece primeiro numa forma que não é clara, que não é espontânea, como
uma reprodução, ou uma presentificação, em ato” (p. 55, destaque do autor).
O ato, esclarece Lacan (1964), deve ficar no horizonte enquanto tratarmos da relação da
repetição com o real, e é importante destacar que não há ato senão de homem e que no ato não
se trata do comportamento. Ele traz como referência o sepuku – ritual suicida dos samurais
japoneses, surgido no século XII. Esse ritual, proibido a partir de 1868, tratava-se da realização
139

de um corte na altura do abdômen que deixa as vísceras expostas, causando uma morte lenta e
dolorosa, e, por fim, um espadachim decapitava o samurai, finalizando o ritual. Ele era realizado
na frente de espectadores e tinha como objetivo demonstrar coragem e autocontrole, além de
ser uma forma de morrer gloriosamente e não nas mãos de inimigos.

Por que eles fazem isso? Porque creem que isso chateia os outros, porque na estrutura, é um ato
que se faz em honra de alguma coisa. Esperemos. Não nos apressemos, antes de saber, e notemos
isto, que um ato, um verdadeiro ato, tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um
real que não é evidente (Lacan, 1964, p. 56).

Esse ato comporta um endereçamento a Outro e também uma parte de real, elementos
que, em seu décimo quinto seminário, Lacan irá formalizar como sendo características
necessárias ao ato. Retomando a repetição, Lacan esclarece que Freud parte da neurose
traumática para pensá-la, posto que ela não parece justificável do ponto de vista do princípio
do prazer, já que nela a repetição dos sonhos não visa uma tentativa de dominação do recalcado
pela consciência. Assim, devemos conceber esses sonhos em um nível mais primitivo.
Lacan (1964) inclui dois conceitos importantes para a discussão da repetição: a tiquê e
o autômaton, ambos retirados de Aristóteles. A tiquê é traduzida como encontro do real e se
localiza para além do autômaton. Este, por sua vez, trata-se do retorno dos signos e é
comandado pelo princípio de prazer, referindo-se à repetição sintomática, uma insistência dos
signos. Já a tiquê encontra-se num para além do princípio do prazer:

Assim, não há como confundir a repetição com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou
a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida. A repetição é algo que, em
sua verdadeira natureza, está sempre velada na análise por causa da identificação da repetição
com a transferência na conceitualização dos analistas (Lacan, 1964, p. 59).

Isso acontece porque é a tiquê que está por trás do autômaton, e aquilo que se repete
faz-se repetir como se fosse por acaso. A tiquê se apresenta na psicanálise, diz-nos Lacan
(1964), a partir do traumatismo, por aquilo que encontramos de mais inassimilável. O trauma
busca sempre ser tamponado a partir do princípio do prazer, mas por trás dele resta algo que se
impõe a ser lembrado ao sujeito: “o trauma reaparece ali, como efeito, e muitas vezes com o
rosto desvelado. Como pode o sonho, portador do desejo do sujeito, produzir o que faz surgir
em repetição o trauma – senão seu rosto mesmo, pelo menos a tela que o indique ainda por
trás?” (Lacan, 1964, p. 60).
Lacan (1964) nos lembra de um importante sonho que Freud apresentou em 1900, no
qual um pai que velava o corpo do filho morto foi descansar no quarto ao lado, deixando um
140

velho vigiando o corpo e, ao pegar no sono, sonhou que o filho aparecia e lhe dizia: “Pai, não
vês que estou queimando?”. Ao chegar no cômodo ao lado, percebeu que o velho havia dormido
e que o corpo de seu filho queimava com a vela.
Lacan (1964) destaca que Freud elenca que esse sonho confirma sua teoria de que os
sonhos têm a função de realização de desejo com vistas ao prolongamento do sono. Se por um
lado, nesse sonho, o filho ainda vive, por outro, “o filho morto pegando seu pai pelo braço,
visão atroz, designa um mais além que se faz ouvir no sonho” (Lacan, 1964, p. 63). Da mesma
forma que os sonhos presentes na neurose traumática, esse sonho indica que há algo que está
para além do princípio do prazer e que insiste em aparecer. Aí reside a função da tiquê.
O pai produz o sonho a partir do cheiro da vela tombada, é esse acaso que faz com que
a angústia apareça no sonho, interrompendo a função de realização de desejo dele. A tiquê
interrompe a série significante produzida pelo autômaton. Enquanto podemos compreender o
autômaton no campo do retorno do recalcado, a tiquê se relaciona ao encontro com o real, ela
é um obstáculo ao princípio do prazer, já que se refere àquilo que não possui inscrição. Ora, se
é a Tiquê que está por trás do autômaton, não podemos considerar a repetição como reprodução,
já que não é possível reproduzir o que nunca foi inscrito – o real.
Compreendemos então que a colocação em ato da repetição, seja de um modo físico
(motor), seja pela via discursa, é algo imposto pelo inconsciente frente ao encontro com o real.
Essa diferença é destacada por Lacan (1967-68) quando ele diferencia o ato do sintoma. Se no
sintoma não há nada de novo, o ato, por seu turno, marca um ponto novo, isso se dá por sua
relação com a tiquê, sendo ela que o faz surgir quando não há simbolização possível.
É curioso o que Madeleine diz a Gide sobre a razão para queimar as valiosas cartas:
“Após tua partida, assim que me encontrei sozinha, na grande casa que tu me abandonavas, sem
ninguém sobre quem me apoiar, sem mais saber o que fazer, e o que tornar-me”. Parece que
um sentimento de estranheza a toma e a encaminha para o ato. Essa ligação da compulsão à
repetição com o estranho parece nos indicar que o ato é o que resta para lidar com essa sensação.
Em seu décimo quinto seminário, Lacan relaciona o estranho à angústia, que nos parece ser
uma chave para a leitura do ato de Madeleine.
A relação da repetição com a pulsão de morte nos é importante, pois destacamos que no
ato não se tratará apenas de uma resposta ao recalcado, pois nessa dimensão, podemos localizar
o sintoma, mas como uma resposta àquilo que não se liga necessariamente ao princípio do
prazer. Finalizaremos, a seguir, com a articulação dos atos de Medeia e Madeleine com a teoria
psicanalítica do ato vista aqui.
141

3.3.3. Os atos de Medeia e Madeleine.

Tendo em vista as dimensões do ato apresentadas, poderíamos considerar que os atos


de Madeleine e Medeia são atos do ponto de vista da psicanálise? Miller (2014) resume bem as
dimensões do ato na seguinte passagem:

para que haja ato, é preciso que o sujeito nele seja modificado por esse franqueamento
significante. Digamos que é preciso uma escansão significante, uma sanção significante e, ao
mesmo tempo – por isso o suicídio é seu paradigma-, o ato é, como tal, indiferente ao seu futuro,
ele é fora de sentido, indiferente ao que virá depois. No fundo, um ato é sem depois, ele é em
si. O que vem depois, já é outro que o cumpre: César aquém e além do Rubicon, não se trata do
mesmo César. Acerca disso, há, portanto, um desaparecimento do depois, pois em seguida, ele
renasce outro. Digamos que o ato, quando há um, o que infelizmente é raro, o ato é recuperado
pela significação a posteriori (Miller, 2014, pp. 9-10).

Miller (2014) destaca a inscrição significante, o franqueamento do Outro, a


temporalidade momentânea do ato, a marcação de um antes e depois com o renascimento do
sujeito, e ainda, a raridade de um ato. É Lacan (1967-68) mesmo quem difere radicalmente o
ato do agir, já que o segundo resume-se tão somente à motricidade.
Retomemos o que Lacan (1958a) diz de Madeleine: “até que ponto ela veio a se
transformar naquilo que Gide a fez ser permanece impenetrável, mas o único ato em que ela
nos mostra claramente distinguir disto é o de uma mulher, de uma verdadeira mulher em sua
inteireza de mulher (p. 772, destaque nosso). O que o psicanalista francês indica aqui é que é
no ato que Madeleine consegue se distinguir daquilo que Gide a transformou na parceria com
ele. Sobre Madeleine, temos duas versões sobre ela após seu ato. A primeira, relatada por Gide,
dá a ela um final trágico, marcado pela tristeza e pela morte. Já Jean Schlumberger demarca
outra versão, dizendo que após o ato, Madeleine passou a se dedicar mais a seus gostos, saindo,
talvez, do lugar de receptora da obra do marido. Independentemente da versão que se assuma,
ela não é a mesma após o ato. A versão de Schlumberger mostra ainda que algo de seu desejo
se reconecta quando ela passa a se dedicar mais àquilo que é de seu gosto.
Na passagem já citada, quando Gide interroga a esposa sobre o ato, sua resposta é
marcada por um não saber: ela diz que estando sem ele, sem saber o que fazer, e mais ainda,
sem saber o que ser, ela não teve outra saída senão queimar as cartas – aquilo que ela tinha de
mais precioso. Antes de queimá-las, Madeleine as lê, uma a uma. O que parece é que quando
Gide viaja com Marc e ela percebe em seu rosto um amor que não ela (Lacan, 1958a), há
aparecimento da angústia, tipicamente feminina, uma vez que está ligada à falta do amor. É na
142

presença da angústia que seu ato se encerra, quando ela não mais sabia o que fazer. Porém,
depois do feito, ela retorna de outro modo.
É inegável, no ato de Madeleine, a dimensão presente do Outro e sua inscrição
significante. O ato de Madeleine dirigido a Gide marca uma inscrição, já que ao destruir as
cartas de amor, ela atinge Gide em seu ser, pois as cartas eram, para ele, um “desdobramento
de si mesmo” (Lacan, 1958a, p. 772). Se a resposta de Madeleine, quando interrogada sobre a
razão do ato, é 'ter que fazer alguma coisa', isso não indica que o ato se deu fora de uma cadeia,
mas indica que, mesmo tento Gide no horizonte, nem todo o ato é recoberto pelo significante.
Na parceria do casal, havia um pacto. Gide a mantinha como único objeto de amor,
ainda que desse outras escapatórias ao seu desejo, e ela mantinha-se como sua primeira leitora,
como a receptora de suas cartas. Se Gide rompe com o pactuado ao se envolver com Marc,
Madeleine também transgride o pacto, queimando as cartas, saindo do lugar combinado entre
eles. Queimar as cartas comporta a dimensão de uma transgressão na parceria Gide-Madeleine.
Se ato e agir são diferentes e, como aponta Miller (2014), o ato é raro, entendemos que
na perspectiva psicanalítica lacaniana, o ato de Madeleine configura-se, de fato, como um ato
e não como um simples fazer. Será que poderíamos dizer o mesmo de Medeia?
Na peça “Medeia”, o ato da personagem principal ganha seu estatuto exatamente por
seu caráter transgressor. Interessante destacar que a peça se inicia quando Medeia já havia sido
traída por Jasão, mas ela é antecedida por todos os eventos que os levaram até Corinto. Nesses
eventos, uma série de atos se sucede, já desvelando o caráter cruel de Medeia: ela usa de feitiços
para que Jasão ganhe as provas, trai seu pai, mata e esquarteja seu irmão, engana as filhas do
rei fazendo-as cozinhá-lo e esquartejá-lo. Todos esses atos cruéis são circunscritos pelo amor
de Jasão, sendo por ele que ela os faz. Se pensássemos que o ato de assassinar os filhos fosse
uma sequência destes, já poderíamos colocar numa série de repetição, o que destitui o ato de
seu valor de ato, que é da ordem da surpresa, pois o que deve despertá-lo é a tiquê.
Os atos cometidos por ela, que antecedem a peça propriamente dita, parecem estar
submetidos mais à lógica da repetição que à ordem do acaso, pois eles parecem ser um ponto
de enlace na parceria amorosa entre Jasão e Medeia. Por causa disso, não se constituiriam como
atos na perspectiva lacaniana, já que o ato não se repete: “A lógica temporal do ato está
acompanhada por esse fator de acontecimento, de evento, de surpresa, todos esses significantes
que não usamos para falar de sintoma” (Brodsky, 2004, p. 36). Se os primeiros atos são
sintomáticos, o ato de matar os filhos é de outra ordem, já que ele faz uma marcação diferente.
Miller (2012) destaca que no início da peça, Medeia parecia estar naquilo que hoje
chamamos de depressão e após o ato, ela supera a depressão. Há uma Medeia antes do ato e
143

outra depois. Antes do ato, a nutriz a descreve como um corpo prostrado, um olhar caído, um
corpo devastado (Eurípedes, 2010), mas após o ato, ela parte para encontrar Egeu na carruagem
que seu avô enviou e diz para Jasão: “Com Egeu, passo a viver na terra de Erecteu. E tu que és
ruim, terás um fim ruidoso, ferido à testa por timão de Argo, vendo as núpcias comigo em mesto
epílogo” (Eurípedes, 2010, p. 150). Medeia ressurge após o ato, havendo uma diferença
legítima entre o antes e o depois do cometido.
O ato de matar os filhos é antecedido por um monólogo carregado de sofrimento,
lamúrias e embaraço. Se todos os atos anteriores Medeia os faz com desenvoltura, este não, os
lamentos o antecedem, aparecendo nele talvez um ponto de angústia, o ato torna-se para ela
inevitável, já que nada, nem mesmo a morte de Creusa e Creonte, aplacariam a dor da perda de
Jasão. É interessante como o ato torna-se imperioso: “dobrou-se o mal, mirar os dois [filhos]
não é possível: ide, entrai! Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção
derrota raciocínios e é causa dos mais graves malefícios” (Eurípedes, 2010, p. 121, destaque
nosso). O ato, ao mesmo tempo, a tira da devastação e aplaca sua angústia.
Não há dúvidas de que o ato de Medeia tem no horizonte Jasão, o infanticídio é
inteiramente dirigido a ele, sendo muito clara quando ele lhe pergunta a razão do ato: afirma
que foi para atingi-lo. Quando comete o ato, atinge Jasão no íntimo; ele pede que possa enterrar
os filhos, tocar neles uma última vez, implora aos deuses, mas ela nega atendê-lo. O ato de
Medeia funda um ponto: ele arruína Jasão.

É claro, Zeus, como ela me rechaça, como essa fêmea horrível me arruína, leoa algoz de prole,
abominável? O que posso fazer, senão chorá-los, senão carpir a agrura tenebrosa? Que os deuses
testemunhem que os mataste, que me impedes agora de tocá-los, impossibilitado de enterrá-los!
Pudera nunca tê-los semeado para não vê-los mortos por seus golpes! (Eurípedes, 2010, pp. 153-
154).

A última fala de Jasão mostra todo seu lamento e sofrimento, nem ele nem Medeia são
os mesmos após o ato dela. Os atos centrais de Medeia e Madeleine constituem-se como tal, a
partir da concepção lacaniana, por portarem as características necessárias para se ter o estatuto
de ato.
Neste capítulo, encontramos alguns pontos que nos chamaram a atenção e indicam uma
possível leitura para a relação entre os termos que colocamos em questão: ato e feminino. A
relação entre o ato e angústia, destacada da obra de Lacan, parece-nos essencial, pois quando
trazemos isso para nosso campo de estudo, acresceremos aí mais um elemento: o amor. Isso
porque Freud (1926) orienta que a angústia da mulher se dá frente ao medo da perda de amor.
Iniciaremos nosso próximo capítulo com as especificidades da angústia na mulher com vistas
144

a articular nossa formalização. Daí, passaremos relação do ato com o semblante a partir de uma
proposição inédita da psicanalista francesa Clotilde Leguil, tendo como pano de fundo mais
uma personagem que se afigura atrás de Medeia e Madeleine: Jasmine do filme “Blue Jasmine”
do diretor americano Woody Allen. Também trabalharemos a relação do ato com o gozo
feminino e a devastação e a especificidade do supereu feminino.
145

4. AS PARTICULARIDADES DO ATO NO LADO MULHER DA SEXUAÇÃO.

Neste último capítulo, buscamos articular nossos eixos de investigação: feminino e ato.
Visamos verificar qual é a particularidade do ato do lado mulher da sexuação a partir do que
recolhemos dos atos de Madeleine Gide e Medeia. Reiteramos, que os atos delas se apresentam
como atos violentos, mas não buscamos aqui afirmar que esse seja o modo por excelência da
aparição do ato, já que Freud (1901) mesmo já nos indicou que os atos se apresentam na
banalidade da vida cotidiana. Assim, tendo em vista o levantamento sobre o feminino no
capítulo um, e sobre o ato no capítulo dois, acreditamos haver encontrado quatro diferentes
operadores teóricos que nos servem à investigação. São eles:
1) As especificidades da angústia na mulher, que está relacionada intimamente com a
importância do amor para o campo feminino;
2) A proposição de Clotilde Leguil, que localiza que o feminino só seria revelado no
instante do ato;
3) A relação entre gozo feminino, devastação e ato;
4) As particularidades do supereu da mulher.
Reforçamos que não buscamos universalizar uma relação unívoca entre o ato e o
feminino, mas esclarecer como podemos encontrar, por meio desses operadores – retirados a
partir do que nos ensinam os atos de Madeleine e Medeia –, uma possibilidade de leitura sobre
o que há de particular na relação do ato com o feminino. Começaremos pela particularidade da
angústia na mulher.

4.1. As especificidades da angústia na mulher.

4.1.1 As teorias da angústia em Freud.

Freud elabora sua teoria da angústia em dois momentos distintos: em 1916, quando
considera a angústia como um afeto que incide após o recalque, ou seja, como um produto; e
depois em 1926, quando passa a considerá-la como um afeto que incide antes do recalque e o
causa. Pisetta (2008) esclarece que Freud coloca a angústia num lugar privilegiado em sua
teorização metapsicológica, já que deriva dela até o sintoma, assim como demonstra uma
relação bem marcada com o recalque. Faremos, nesta seção, o percurso pela teoria da angústia
de Freud, tendo como principais textos a “Conferência XXV, a angústia” (1917) e “Inibição,
sintoma e angústia” (1926).
146

Freud (1917) abre sua conferência dizendo que seu público deve ter ficado surpreso na
apresentação anterior, sobre os estados neuróticos, por ele não ter dito nada a respeito da
angústia sentida por todos os neuróticos com grande intensidade e que “pode resultar nas
atitudes mais loucas” (p. 393, destaque nosso). O autor indica, com essa passagem, como a
angústia pode desencadear um ato. Ele segue apontando que a angústia dispensa apresentação,
já que “cada um de nós experimentou essa sensação, ou para expressar com maior correção,
esse estado afetivo, numa ou noutra época, por nossa própria conta” (Freud, 1917, p. 394).
O autor separa a angústia em dois tipos: a realística e a neurótica. A angústia realística
é uma reação frente à percepção de um perigo externo, estando relacionada ao reflexo de fuga,
podendo ser uma manifestação da pulsão de autopreservação. Apesar de parecer que ela é
racional e vantajosa para os homens, ela porta um caráter de inadequação, pois frente a uma
situação de perigo, o único comportamento adequado seria a avaliação da força da pessoa em
relação à ameaça, devendo, a partir daí, decidir o que fazer: fugir, defender-se ou atacar. (Freud,
1917). Na situação da angústia, temos o que Freud (1917) nomeia de “estudo de preparação
para o perigo” (p. 396, destaque do autor), que desencadeia a ação motora de fuga ou defesa, e
também o que sentimos como um estado de angústia, ela representa um sinal de perigo.
Freud (1917) adverte que não se aprofundará no uso idiomático dos seguintes termos:
Angst, traduzido por ansiedade/angústia, Furcht, por medo, e Schreck, por susto. Contudo, ele
explica que julga Angst como um estado no qual não se considera o objeto, o Furcht como um
que dá destaque ao objeto, e sobre o Schreck, esclarece que ele dá ênfase ao efeito que o perigo
produz numa pessoa que não se encontra em estado de preparação. E esclarece: “Por
‘[angústia]’ geralmente entendemos o estado subjetivo de que somos tomados ao perceber o
‘surgimento da [angústia]’ e a isto chamamos afeto” (Freud, 1917, p. 396). O afeto,
dinamicamente, inclui inervações, descargas motoras e sentimentos, sendo que estes são as
percepções das ações motoras e também as sensações diretas de prazer e de desprazer.
No cerne dos afetos, está em jogo a repetição de alguma situação significativa e, para
Freud (1917), poderíamos concluir que um estado afetivo seria formado do mesmo modo que
um ataque histérico, ou seja, como precipitado de uma reminiscência. Segundo o autor, o afeto
de angústia referir-se-ia à repetição do ato do nascimento.

Acreditamos ser no ato do nascimento que ocorre a combinação de sensações desprazíveis,


impulsos de descarga e sensações corporais, a qual se tornou o protótipo dos efeitos de um
perigo mortal, e que desde então tem sido repetida por nós como rigor mortal, e que desde então
tem sido repetida por nós como estado de [angústia] (Freud, 1917, p. 397, destaque do autor).
147

Essa primeira angústia é explicada pela interrupção da renovação de sangue,


caracterizando-a como uma angústia tóxica. Além disso, é significativo que esse estado tenha
surgido a partir da separação da mãe e, tratando-se dessa experiência universal, ninguém pode
fugir desse afeto.
Freud (1917) parte, então, para a angústia neurótica e a separa em três formas que são
independentes uma da outra. A primeira é a angústia expectante, que é um estado de apreensão
generalizada que está pronta para se ligar a alguma ideia que seja apropriada. Na segunda forma,
a angústia é psiquicamente ligada a algum objeto ou situação, tratando-se da angústia presente
nas fobias. Esse objeto pode ter uma característica de ser perigoso para as demais pessoas,
tornando a fobia inteligível, embora conte com uma intensidade exagerada. Ou então, esse
objeto pode ter relação com uma situação de perigo que existe, mas que é minimizado, como,
por exemplo, uma viagem de trem, pois nela existe a possibilidade de colisão, embora
geralmente não se pensa nela. Nesses dois grupos de fobia, não é seu conteúdo que é estranho,
mas a quantidade de angústia que é avassaladora. Há ainda um terceiro grupo de fobias que nos
escapa à compreensão, pois nelas o seu objeto não é perigoso em si. Por exemplo, um homem
agorafóbico pode ser impedido de caminhar por uma praça ou uma rua por ele conhecida. Todas
essas fobias são classificadas como histeria de angústia, na qual “a conexão entre a angústia e
um perigo ameaçador foge completamente à nossa percepção” (Freud, 1917, p. 401).
Retomando a angústia expectante, ela se vincula à sexualidade, tratando-se do modo de
emprego da libido. Em pessoas em que há uma excitação não consumada, pode haver uma
substituição da excitação libidinal pela angústia, seja como angústia expectante ou ataques
equivalentes à angústia. Freud (1917) indica que é comum que a neurose de angústia desapareça
quando a regularidade sexual é retomada, e adverte que quando a abstinência é uma
recomendação médica, ela só gerará um estado de angústia quando for impedida a descarga
pela sublimação. Nesse sentido, ele centra essa relação no caráter quantitativo e também nos
processos somáticos. Freud (1917) aponta que embora não tenha conseguido elaborar como a
angústia surge a partir da libido, ele pôde reconhecer que quando a angústia aparece, a libido
está ausente.
Freud (1917) descreve a angústia na histeria, nos atos obsessivos e nas crianças. Em
relação à histeria, ele adverte que a angústia surge geralmente junto com os sintomas histéricos,
mas também pode aparecer como angústia desvinculada, manifestando-se em ataques ou de
forma crônica. Nesses casos, os pacientes não conseguem localizar seus medos a partir de uma
elaboração e vinculam o afeto de angústia com o que vem à sua mente, como medo de morrer
148

ou de enlouquecer, por exemplo. Na análise dessas angústias, pode-se descobrir qual foi o
evento que foi substituído por ela.

Esse processo ter-se-ia acompanhado de um afeto específico e agora constatamos, para nossa
surpresa, que esse afeto acompanha o curso normal dos acontecimentos, seja qual for sua
qualidade própria, invariavelmente é substituído por [angústia], após a incidência [do recalque]
[. . . ]. Portanto, a [angústia] constitui moeda corrente universal pela qual é ou pode ser trocado
qualquer impulso, se o conteúdo ideativo vinculado a ele estiver sujeito [ao recalque] (Freud,
1917, p. 404, destaque nosso).

Nessa passagem, Freud (1917) destaca duas características essenciais sobre a angústia,
ainda na primeira tópica: ela surge após o recalque e é uma moeda corrente. Isso significa que
qualquer afeto que tem seu conteúdo ideativo recalcado pode ser trocado pelo afeto de angústia.
Pisseta (2008) esclarece que a angústia seria, portanto, um indicativo de que houve o recalque,
de modo que, ao mesmo tempo que ela vela, ela exibe a realidade da castração. Ela é “um
anúncio de que o eu negou acesso a alguma representação inconsciente” (Freud, 1917, p. 406).
Em relação aos atos obsessivos, a angústia surge quando há uma tentativa, externa ou
do próprio sujeito, de não executar alguma de suas compulsões, demonstrando como ela estava
encoberta pelo ato obsessivo. Freud (1917) orienta que o ato obsessivo só é executado como
um modo de evitar a angústia. Aqui, o sintoma substitui a angústia, algo semelhante ao que
ocorre na histeria, já que nela temos como resultado do recalque ou a geração da angústia pura
ou a angústia acompanhada da formação do sintoma, ou ainda a formação do sintoma sem
angústia. “Assim, pareceria não ser errado, em sentido abstrato, afirmar que, em geral, os
sintomas são formados para fugir a uma geração de angústia, de outro modo inevitável” (Freud,
1917, p. 405). Desse modo, Freud eleva a angústia ao centro do estudo das neuroses e conclui
que a causa da angústia é o desvio da libido de seu emprego normal.
Nessa relação entre o desvio da libido e a angústia, Freud (1917) faz um paralelo entre
as angústias realística e neurótica. Enquanto na primeira a angústia é uma reação do eu frente a
um perigo externo, indicando um sinal para a fuga, na segunda, o que ocorre é que o eu foge da
libido como se ela fosse um perigo. “Portanto, isto corresponde à nossa expectativa de que,
onde se manifesta a angústia, aí existe algo que se teme” (Freud, 1917, p. 405). Ampliando essa
ideia, Freud acrescenta que a geração da angústia neurótica pode dar lugar à formação
sintomática, fazendo com que a libido se torne vinculada. Dessa forma, ao mesmo tempo que a
angústia representa uma fuga que o eu faz da libido, ela surge da própria libido.
A angústia toma outro sentido quando nos reportamos ao texto “Inibição, Sintoma e
Angústia” (1926), quando Freud elabora sua segunda teoria da angústia, colocando-a como
149

anterior ao recalque, e assim, como produtora dele. Além disso, há a articulação da angústia
com sua segunda tópica do aparelho psíquico, de modo que ela aparece ligada ao eu, ao supereu
e ao isso.
Nesse texto, Freud (1926) começa tratando da inibição como uma restrição das funções
normais do eu, e ao falar da inibição sexual, ele introduz a angústia. A relação entre elas –
inibição sexual e angústia – acontece, pois algumas inibições podem efetuar-se porque a prática
do ato que foi inibido geraria angústia. Ele indica que muitas mulheres temem a função sexual
e nomeia essa angústia como histeria. Ele aponta que existem seis maneiras de inibição da
função sexual, sendo que uma delas relaciona-se com a angústia, a saber: a inibição pelo
afastamento da libido, pela execução imperfeita, pelo desvio da finalidade, por impedimento
por medidas de segurança, por haver um protesto contra e “se não puder ser inibida desde o
início, pode ser imediatamente interrompida pelo aparelho de [angústia]” (Freud, 1926, p. 92).
Freud (1926) relacionará a angústia a partir na noção de perigo e parte da relação do
afeto com o recalque para chegar a essa elaboração. Ele esclarece que quando uma pulsão busca
se satisfazer, mas é transformada em desprazer devido ao recalque, temos aí a constatação de
que o eu inibiu um processo excitatório do isso. Esse fato implica que o recalque é capaz de
transformar o afeto e também que o eu tem uma influência sobre o isso maior do que se
costumava creditar a ele. “Estamos muito inclinados a pensar no [eu] como impotente contra o
[isso]; mas, quando se opõe a um processo [pulsional] no [isso], ele tem apenas de dar ‘um
sinal de desprazer’ a fim de alcançar seu objetivo com a ajuda daquela instituição quase
onipotente, o princípio do prazer” (Freud, p. 96, destaque do autor).
A questão que surge é de onde viria a energia empregada para transmitir esse sinal de
desprazer. Esclarece Freud (1926) que a defesa contra um processo interno será modelada sobre
a defesa que se adota contra perigos externos. Nesse caso, o organismo foge retirando a catexia
da percepção do objeto, afastando-se do perigo, e o recalque é o equivalente a essa tentativa de
fuga. Desse modo, a catexia retirada do representante pulsional que deve ser recalcado é
transformando em angústia automaticamente. Não se trata de uma criação da angústia no
recalque, mas ela

é reproduzida como um estado afetivo de conformidade com a imagem mnêmica já existente


[. . .] Os estados afetivos têm-se incorporado na mente como precipitados das experiências
traumáticas primevas e quando ocorre uma situação semelhante, são vividos como símbolos
mnêmicos (Freud, 1926, p. 97).
150

O ato do nascimento seria a primeira experiência de angústia que imprimiu a esse afeto
certas características, mas nem toda manifestação de angústia é uma reprodução desse ato, já
que não podemos subestimar o papel dos recalques posteriores. Freud (1926) faz então uma
derivação dessas experiências que causam angústia, mas antes, define as características dela.
A primeira característica destacada por Freud (1926) é a de que a angústia é algo que se
sente, ou seja, é um estado afetivo com um caráter acentuado de desprazer. Contudo, não
podemos entender que qualquer desprazer seja angústia, pois pode ser tensão, luto ou dor,
portanto, é preciso encontrar outro traço distintivo para a definição da angústia. Esse traço
estaria ligado a sensações corporais específicas, ligadas ao coração e ao sistema respiratório, o
que proporciona provas de que as inervações motoras desempenham um forte papel na angústia
por meio dos processos de descargas. Desse modo, o estado de angústia revela: 1) “um caráter
específico de prazer”; 2) a existência de “atos de descarga” e; 3) a “percepção destes atos”
(Freud, 1926, p. 131). No luto e na dor não se tem, obrigatoriamente, o ato de descarga.
Sobre a origem da angústia, ela adveio como uma reação a um estado que indicava
perigo e se reproduziu quando um estado desse tipo se repetiu. No entanto, ela é uma reação
inadequada a uma situação de perigo e caso o comportamento frente ao perigo seja uma resposta
mais adequada, o sujeito pode livrar-se da angústia. Assim, se ela surge quando não há uma
resposta adequada para uma situação de perigo, ela surge quando o que seria uma resposta
simbólica falha, tendo como consequência os sinais fisiológicos no real do corpo. Seu
surgimento pode ocorrer de duas maneiras, uma inadequada, quando há uma situação nova de
perigo, e uma adequada, quando transmite um sinal e impede que a situação perigosa ocorra.
Mas o que é o perigo? Freud (1926) retoma o ato do nascimento. No nascimento, não
há nenhum conteúdo psíquico, podendo o feto estar no máximo consciente de uma perturbação
na sua economia libidinal narcísica. Mesmo assim, Freud afirma ser impelido a concluir que as
primeiras fobias infantis podem ser rastreadas até o ato de nascimento. A angústia nas crianças
aparece, principalmente, em três situações: quando estão sozinhas, ou no escuro, ou, ainda,
quando encontram uma pessoa desconhecida. Essas situações podem ser reduzidas à condição
de que a criança sente falta de alguém amado. Esse sentimento de falta não se reduz pela catexia
da imagem mnêmica da pessoa amada, de modo que essa catexia não reduz a angústia da
criança.

Essa angústia tem toda a aparência de ser uma expressão de um sentimento da criança de sua
desorientação, como se em seu estado ainda muito pouco desenvolvido ela não soubesse como
melhor lidar com sua catexia de anseio. Aqui a [angústia] aparece como uma reação à perda
sentida de um objeto e lembramo-nos de imediato do fato de que também a angústia de castração
constitui o medo de sermos separados de um objeto altamente valioso, e de que a mais antiga
151

angústia – a ‘[angústia] primeva’ do nascimento – ocorre de uma separação da mãe (Freud,


1926, pp. 135-36).

Desse modo, a situação de perigo refere-se à não satisfação libidinal, já que a mãe
satisfaz todas as necessidades da criança e a inexistência dessa satisfação cria uma tensão contra
a qual a criança é inerme. Esta situação remete ao ato de nascimento, já que em ambas há um
acúmulo de estímulos que precisam ser eliminados. Desse ponto, há um desdobramento para a
outra causa da angústia. Essa segunda causa centra-se no medo da perda, quando a angústia
passa de um acontecimento automático para a indicação de sinal de perigo. Essas causas têm
em comum o fato de que a angústia é produzida pelo desamparo e “não podemos achar que a
angústia tenha qualquer função, afora a de ser um sinal para a evitação do perigo” (Freud, 1926,
p. 137). É daí que Lacan (1962-63) retira que a angústia é um sinal, mas em sua leitura, é um
sinal que indica a presença do objeto a na cena. Para Freud (1926), ela é um sinal de perigo
advindo da ausência do objeto que poderia amparar a criança.
Do medo da perda do objeto, Freud (1926) pode derivar a angústia de outros elementos.
Primeiro, a angústia pode ser derivada da angústia de castração, que na fase fálica se liga ao
medo da perda do falo. Esse medo é seguido pelo medo do poder do supereu, de modo que a
“[angústia] de castração se desenvolve em angústia moral” (Freud, 1926, p. 138). Contudo, a
angústia de castração não seria operativa para a mulher e o supereu da mulher é mais frouxo
que o dos homens. Com isso, Freud (1926) indica que é preciso fazer uma pequena modificação
quando falamos das mulheres.
Para Freud (1926), no caso das mulheres, a situação de perigo é imposta pela
possibilidade de perda do objeto de amor, isso pode ser compreendido pelo fato de que no curso
de seu desenvolvimento, a menina faz uma terna catexia objetal no seu complexo de castração.
Lembremos que, se no complexo de castração o menino é obrigado a abrir mão da mãe como
objeto sexual, encerrando, ao mesmo tempo, os complexos de Édipo e de castração, na menina
é diferente. Desapontada com a mãe, ela se dirige ao pai para, mais tarde, obter dele um filho
como substituto, erigindo o pai como objeto de amor. “Tudo o que precisamos fazer é proceder
uma ligeira modificação em nossa descrição do seu determinante de angústia, no sentido de que
não se trata mais de sentir a necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de perder o amor
do objeto” (Freud, 1926, p. 140). Não se trata, na menina, do perigo da castração, ela não é
operante do lado mulher, o que se opera nesse lugar é a ausência do amor.
Freud já havia indicado que, para a mulher, ser amada é mais importante que amar, pois
esse amor compensaria sua insuficiência fálica. Além disso, ele faz mais uma aproximação
entre a importância de ser amada e a angústia. Em “Sobre tipos libidinais”, Freud
152

(1931b/2018)73 esclarece que podemos encontrar, dentro das diversas constelações


psicológicas, diferentes modos de relação da libido, e destaca três maneiras de emprego dela
que podem aparecer de modo puro ou amalgamado. Ele começa pelo que nos interessa aqui.
Trata-se do tipo erótico.

Os eróticos são pessoas cujo principal interesse – o relativamente maior montante de sua libido
– é voltado para a vida amorosa, mas especialmente ser amado, é para elas o mais importante.
São dominadas pelo medo [Angst] da perda do amor e, por isso, particularmente dependente
daqueles que lhes podem negar o amor. Esse tipo também é muito comum em sua forma pura.
[...] Social e culturalmente, esse tipo representa as exigências pulsionais elementares do Isso, ao
qual as outras instâncias psíquicas passaram a obedecer (Freud, 1931b, p. 278).

A esse tipo, somam-se o tipo obsessivo e o narcísico. O primeiro é dominado pelo medo
imposto pela consciência moral, com clara predominância do supereu. No tipo narcísico, por
sua vez, não há tensão em relação ao eu e ao supereu, e o seu principal interesse é dirigido à
autoconservação.
O tipo erótico nos interessa aqui, já que nele Freud (1931b) aproxima a importância de
ser objeto de amor com a angústia diante da perda do amor, ambos localizados do lado mulher
por excelência. Assim, entendemos que enquanto do lado homem a angústia passa pelo campo
do ter, pois se vincula à angústia de castração, do lado da mulher, entendemos que a angústia
toca o ponto do ser feminino. Nessa perspectiva é que Freud (1931a; 1933[32]) aponta a
maternidade como saída feminina por excelência. Ele indica que o amor tem um lugar
privilegiado para a mulher, já que é somente numa relação amorosa que a mulher poderia
ascender à “feminilidade normal”.
Assim, a angústia diante da possibilidade da perda do amor para a mulher é análoga à
angústia de castração para o homem. Essa diferença comporta uma divisão: enquanto a angústia
feminina refere-se à lógica do ser, a angústia masculina refere-se à lógica do ter, pois comporta
o merda da perda fálica.
Freud (1917) já havia feito a indicação que a angústia poderia levar às atitudes mais
loucas e, portanto, no caso da mulher, a perda de amor poderia proporcionar um empuxo ao
ato, podendo chegar até a atos extremos, como faz Medeia ao assassinar os filhos. Desse modo,
angustiar-se frente à perda do objeto do amor, denuncia para a mulher que ela é não-toda e o
ato aparece aí como uma resposta para a dificuldade da subjetivação feminina.

73
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor,
que somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da
publicação original.
153

Partindo da teorização freudiana sobre a angústia, destacamos um eixo que sobressai da


relação entre o ato e o feminino: do lado da mulher, o cometimento de um ato estaria ligado
diretamente à angústia que é gerada quando uma mulher se encontra diante da possibilidade ou
da perda efetiva de amor. O ato feminino tem uma afinidade com a angústia despertada diante
da perda do objeto de amor. Seguimos agora com as elaborações de Lacan.

4.1.2. As especificidades da angústia na mulher em Lacan.

“O Seminário, livro 10, A angústia” (1962-63) de Jacques Lacan, marca, segundo Miller
(2005), uma antecipação de algumas viradas teóricas que somente poderão ser compreendidas
em todas suas consequências dez anos depois, no “O seminário, livro 20, mais, ainda” (1972-
73) e no “Aturdito” (1972). Essas viradas referem-se a uma possibilidade de encontrar gozo
além do significante e também uma virada em torno da mulher, uma vez que Lacan afirma que
à mulher nada falta, localizando a falta do lado homem: - φ. Essa mudança na teoria só é
possível a partir da discussão sobre a angústia.
Miller (2005) indica que nesse seminário lacaniano, podemos encontrar a
desedipianização da castração e a elaboração de um status inédito do corpo. Até então, a
inserção que o corpo tinha na psicanálise era a do corpo imaginário do estádio do espelho e o
que ocorre aqui é a captura do corpo como real. Na leitura milleriana, a entrada do novo estatuto
do objeto a começa a demonstrar que não é tudo que se encontra na experiência que pode ser
pensado como significante, e nos apresenta o seguinte esquema:

Figura 11: esquema de J-A Miller:

Fonte: Miller, 2005, p. 24.

Ele visa demonstrar aí que existe um x (∃x) que não é significante (Sx), e que se trata
do a. O estatuto do objeto a não é o do significante, mas do real, já que ele entra como um resto
da operação de constituição do sujeito.
Lacan (1962-63) segue a proposta freudiana da angústia como sinal, mas trazendo esta
alteração radical: ela possui um objeto. Neste ponto, temos uma discordância de Lacan (1962-
63) em relação a Freud, pois ele localiza na angústia o objeto a, que é carente de materialidade,
já que é avesso ao significante (essa aversão do a ao significante se sustenta até “O seminário,
livro 18, De um discurso que não fosse semblante).
154

Em “O seminário, livro 11, os conceitos fundamentais da psicanálise”, Lacan (1964)


formaliza as operações de alienação e de separação, que nos ajudam a compreender de que se
trata esse resto. Ele esclarece que em relação à entrada do inconsciente, existem dois campos:
o do sujeito e o do Outro.

O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder
presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse –
é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão
(Lacan, 1964, p. 200).

Nesse sentido, o significante encontra-se do lado do Outro e a pulsão, do lado do sujeito.


Sobre a pulsão, Lacan (1964) esclarece que a sexualidade é, conforme Freud já
evidenciou em 1905, polimorfa, aberrante e que isso significa “que a sexualidade só se realiza
pela operação das pulsões parciais, parciais em relação à finalidade biológica da sexualidade”
(p. 174). Isso significa que não haveria uma pulsão que representaria a totalidade da
sexualidade. Com isso, a própria divisão entre homem e mulher não estaria representada no
psiquismo e, portanto, fazer-se homem ou mulher “tem sempre que aprender, peça por peça, do
Outro” (Lacan, 1964, p. 200).
Para exemplificar isso, Lacan (1964) remete-se ao romance do século II, Dafnis e Cloé,
que aborda dois jovens abandonados por seus pais e adotados por dois casais pastores que
viviam no bosque dedicado às ninfas e ao deus Pan. No enredo, conta-se que Eros tinha a
intenção de torná-los o mais belo casal de amantes.
Um dia, na adolescência, Cloé ajuda Dafnis a se banhar, após ele ter se sujado ao cair
numa armadilha de lobos, e é arrebatada por um desejo por ele, pela beleza de seu corpo e fica
fascinada ao tocá-lo. Capturada por um desejo ardente, ela não conseguia mais dormir, fazia
mal suas tarefas e não entendia bem do que se tratava esse desejo.
Um dia, Drocon, um boiadeiro, apaixonou-se por Cloé e lançou a Dafnis um desafio –
quem vencesse receberia um beijo de Cloé. O jovem vence o desafio e, após beijá-la, também
fica arrebatado e dominado pelo mesmo desejo que Cloé, ficando ambos embaraçados.
Os jovens, sem entender o que se passava com eles, são orientados pelo ancião Philetas,
o homem mais velho da redondeza, a pedido de Eros. O ancião diz a Dafnis que ele estava com
a doença do amor e que o remédio para a doença seria eles se abraçarem, se beijarem e deitarem
juntos. Eles se abraçam e se beijam, mas não entendem bem do que se trata o terceiro passo.
Percebendo como os animais se acalmavam após deitarem um ao lado do outro, tentam fazer
do mesmo modo que eles, mas não dá certo. Eles não entendiam que deveriam tirar a roupa,
155

pois os animais não desvestem suas peles e, então, tentaram o encontro sexual de roupas e de
pé. Frente ao fracasso do encontro, ficam tristes e decepcionados, principalmente Dafnis.
Mais adiante na história, aparece Lyceníon, uma mulher mais velha que o casal que
passava pela cidade e que assistiu à experiência dos jovens. Compadecida, ela vai ao encontro
de Dafnis para consolá-lo e ensiná-lo, na prática, como se faz amor. Contudo, ela o engana
dizendo-lhe que foram a ninfas que a enviaram nessa tarefa. Após terminar o ato sexual, lhe diz
que deve ir até Cloé, mas que deve lembrar-se que foi ela quem o fez um homem.
A peça é marcada por uma série de tumultos, como raptos, ameaças, invasão de povos
vizinhos, e antes de reencontrar Cloé, após ter aprendido a fazer amor com Lyceníon, um novo
tumulto ocorre no bosque, culminando na descoberta da adoção dos jovens pelos dois casais de
pastores. Esse evento termina em uma festa na qual os pais adotivos e biológicos celebram
juntos. É somente após esses acontecimentos que Dafnis pode viver com Cloé o que aprendeu
sobre o amor (Azevedo, 1996).
Lacan (1964) diz sobre a peça: “evoquei então a velha do conto de Dafnis e Cloé, cuja
fábula nos representa que há um último campo, o campo da realização sexual, cujos caminhos,
no final das contas, o inocente não sabe” (p. 200). Ele diz que essa não é uma fabula vã, já que
ela demonstra como a relação sexual fica entregue ao campo do Outro, ou seja, é preciso que
alguém explique a Dafniscomo se faz amor. Isso precisa ser aprendido. Desse modo, a posição
sexuada também concerne ao campo do Outro.
O Outro é o campo que fornece significante ao sujeito, e é o significante que produz no
seu campo que irá fazer surgir o sujeito da significação. “Mas ele só funciona como significante
reduzindo o sujeito a uma instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o, pelo
mesmo movimento que o chama a funcionar, a falar, como sujeito” (Lacan, 1964, p. 203).
O que ocorre é que para entrar no campo da linguagem, o sujeito deve se petrificar em
um significante que o nomeie, ao preço, no entanto, de perder uma parte de seu ser. Essa é a
operação que Lacan (1964) nomeou como alienação. Ele usa aqui da lógica dos conjuntos para
indicar esse esquema:

Figura 12: A alienação.

Fonte: Lacan, 1964, p. 207.


156

Lacan (1964) demostra neste vel74, que consiste no vel da alienação, que o sujeito só
surge como condenado pelo apagamento produzido pelo significante, ele aparece como afânise
– desaparecimento. Se por um lado ele surge como sentido, por outro ele desaparece. Lacan
(1962-63) havia esclarecido que o sujeito somente pode aparecer através da introdução primária
de um significante que ele nomeia de traço unário, que é anterior ao sujeito. O que ocorre é que,
ao petrificar-se no significante, uma parte do sujeito fica de fora, pois nem tudo pode ser
representado no significante, e isso que é inapreensível é do campo do gozo. Podemos tomar
aqui Madeleine. Dizer que ela se localizava como a esposa casta de Gide diz de sua inscrição
significante, mas nada nos diz de seu gozo, pois algo dela fica de fora.
O que acontece é que essa petrificação é necessária para o sujeito constituir-se no campo
da linguagem e Lacan nomeia essa petrificação de escolha forçada, que podemos identificar no
exemplo: “A bolsa ou a vida”. Nesse exemplo, se escolhe-se a bolsa, perde-se a vida e a bolsa,
se opta-se pela vida, a mantenho, mas ela se torna uma vida decepada, sem a bolsa. Laurent
(1997) nomeia que ao identificar-se com o significante dado pelo Outro, é como se o sujeito
estivesse morto “ou como se faltasse a parte viva do seu ser que contém seu gozo” (p. 38). O
que acontece é que o campo do Outro não dá conta de significar tudo que se trata no sujeito, o
ser libidinal do sujeito fica de fora:

As pulsões não podem ser representadas como o Outro por inteiro. As pulsões são apenas
parciais, como diz Freud, e Lacan reinterpreta isso ao dizer que a lógica do todo não pode
aparecer no Outro (∀). Não há meio de inscrever o quantificador ‘para todo’ ou ‘a totalidade de’
no Outro. Nenhum quantificador desses pode funcionar nesse lugar. ∀ equivale a não-todo. Não-
todo sujeito pode estar presente no Outro. Sempre há um resto (Laurent, 1997, p. 38).

Assim, por mais que a alienação seja fundamental para a inscrição do sujeito (S) no
campo da linguagem, ela deixa um resto, já que não há Outro do Outro. E é pela separação, diz
Lacan (1964), que o sujeito acha o ponto fraco da articulação significante, e esse ponto fraco
surge no intervalo entre os dois significantes, ligado ao desejo do Outro, no caso, a mãe.
Voltando a “O seminário, livro 5, as formações do inconsciente”, podemos entender melhor a
relação primordial do sujeito com o Outro, pois nele Lacan (1957-58) apresenta os três tempos
do Édipo e podemos identificar como essa separação se inclui no segundo tempo. Neste, a
entrada do Nome-do-Pai sinaliza que há um desejo da mãe que não se localiza sobre a criança.
É somente quando a mãe se afasta da criança que esta pode se perguntar sobre si e sobre o que

74
Lacan (1964) retira essa ideia do vel da lógica formal da teoria dos conjuntos, ele trata-se do “ou”, mas do “ou”
não exclusivo. Lacan recorre ao uso do vel para pensar a conjunção e disjunção do sujeito com o Outro, porque
ainda que eles não se recubram, não é possível pensar um sem o outro.
157

o Outro quer dela. É o desejo da mãe que localiza o Outro não mais como absoluto (A), mas
como barrado (Ⱥ), permitindo que a separação se inscreva. Sobre isso, Lacan (1964) articula
que “é no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela [mãe] diz, no que ela intimida,
do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta
que se constitui o desejo do sujeito” (pp. 213-214).
O desejo do Outro, portanto, é a condição para a separação e ele deve aparecer na fala,
já que é impossível dizer o que se quer. Dessa operação, o a surge como resto, como objeto
causa de seu desejo. Ainda que essas operações sejam formuladas somente em 1964, sua
estrutura já está presente no décimo seminário, quando Lacan visa mostrar o a como resto da
operação de subjetivação e como não significante, diferente dos objetos que vinha até então
apresentando.
É no encontro com o objeto a que a angústia irrompe no sujeito, pois aparece um objeto
onde a falta instituída pelo desejo (-φ) deveria estar. Miller (2005) esclarece que os objetos
anteriores eram objetos modelados sobre a imagem e que é exatamente no campo do especular
que o sujeito está mais seguro contra a angústia.
O -φ surge, nesse seminário, não mais como significante, mas na potência do órgão real
ligado ao campo do gozo, de modo que Miller (2005) aponta que há um reencontro de Lacan
com o órgão. Nesse sentido, o falo não é o falo significantizado, mas o falo-órgão, e a castração
relaciona-se com a detumescência do órgão no momento do gozo. Segundo Miller, temos aqui
um primeiro passo do avesso da sexualidade feminina, pois a falta não se localiza do lado da
mulher.

A mulher revela-se superior no campo do gozo, uma vez que seu vínculo com o nó do desejo é
bem mais frouxo. A falta, o sinal menos com que é marcada a função fálica no homem, e que
faz com que sua ligação com o objeto tenha que passar pela negativação do falo e pelo complexo
de castração, o status (-φ) no centro do desejo do homem, é isso que não constitui, para a mulher,
um nó necessário (Lacan, 1962-63, p. 202, destaque do autor).

Não podemos entender que a mulher deixe de ter relação com o desejo do Outro, ela
enfrenta o desejo do Outro, mas o que a interessa é o seu lugar na fantasia dele. O que ocorre é
que não é possível saber o que o desejo encobre e, nesse momento, a angústia surge, já que seu
lugar não fica claro. É por isso que, se no homem encontramos a impostura, na mulher, o
correspondente a isso é a farsa, ligada aqui à mascarada. Com isso, Lacan (1962-63) aponta que
as fantasias do homem e da mulher se diferenciam, pois enquanto a do homem gira em torno
da mulher masoquista, a da mulher gira em torno do Don Juan. A mulher masoquista seria um
objeto do homem que poderia gozar sem o limitado do -φ, já o Don Juan é aquele que se infiltra
158

na cama das mulheres e “cabe dizer que esse não é um personagem angustiante para a mulher.
Quando sucede à mulher sentir-se realmente como o objeto que está no centro de um desejo,
pois bem, acreditem, é aí que ela foge de verdade” (Lacan, 1962-63, p. 213). Miller (2005)
explica que apesar de Lacan fazer do Don Juan um sonho feminino, uma vez que a ele nada
falta,
colocá-lo no patamar de fantasia feminina quer dizer que também é um falso homem, um
impostor, um homem marcado por uma impostura radical, aquele que nega a incidência de -φ e
se apresenta como instrumento eterno do gozo do Outro, como objeto absoluto [...]. Por isso,
ele duvida que um homem desse tipo possa, propriamente falando, inspirar o desejo,
precisamente porque ele não é angustiante, porque no fundo isto não importa para ele. Segue-
se, digamos logicamente – [...] – diz Lacan que ‘um verdadeiro desejo de homem angustia o
sujeito feminino’. E eu acrescento, na medida em que esse desejo tem relação com a falta e
convoca o sujeito feminino a ser o que faz suplência, portanto a força à interpretação. O que é
simples para ela, em troca, segundo Lacan, é sua relação ao seu próprio desejo, e é só em sua
relação ao desejo do homem que ela tem que lidar com a complicação de -φ (p. 32).

Desse modo, esse parceiro a quem nada falta é angustiante para a mulher, pois ele faz
surgir alguma coisa onde deveria haver o vazio. É ao homem que a falta angustia e por isso
Lacan (1962-63) diz que à mulher “não lhe falta nada” (p. 219). Portanto, no caminho do gozo,
a falta aparece ao lado do homem. Assim, se nada falta no campo do gozo do lado da mulher,
é importante que o amor apareça, já que “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”
(Lacan, 1963-63, p. 197).
É somente pela via do amor que se pode fazer passar do gozo autoerótico para a relação
com o Outro como objeto a. “Propor-me como desejante, eron, é propor-me como falta de a, e
é por essa via que abro a porta para o gozo de meu ser” (Lacan 1962-63, p. 198). O que Lacan
propõe aí é que para se tornar desejante, a falta do objeto precisa estar do lado do sujeito, pois
só há gozo com a castração. Só podemos desejar se o Outro tornar-se meu objeto, o que causa
angústia “justamente por eu não poder fazer dele mais que a, por meu desejo o “aizar”, se
assim posso dizê-lo” (Lacan, 1962-63, p. 199).
Lendo essa proposição de Lacan com o que é formulado por ele dez anos depois a
respeito do gozo feminino, podemos pensar como que o amor é o que permite que o gozo
feminino, ilimitado, possa ser circunscrito. O que ocorre é que na perda do amor para Medeia
e Madeleine, não se faz possível a limitação do gozo, e ele aparece através do ato, como propõe
Morel (2010).
Desse modo, podemos entender que a proposta de lacaniana, nesse período, é que
algumas mulheres desejam poder usufruir do parceiro, o que as angustiam, pois só pode haver
desejo com a castração. Ao objetivar o ser do homem, pois a mulher quer o seu gozo, a mulher
só pode atingi-lo castrando-o. Lacan (1962-63) indica que, assim, a mulher apresenta uma
159

diferença no campo do gozo, já que no ato da cópula, é o homem que joga com o órgão, que
detumesce no orgasmo, enquanto a mulher não tem que se haver com isso, por isso, há essa
diferença em relação ao gozo do homem e da mulher.
Lacan (1962-63) indica que não podemos considerar o Penisneid como o termo final
em relação às mulheres. Para a mulher, o objeto, diferente do homem, não está ligado à falta e,
portanto, não há, para ela, nada a desejar no caminho do gozo. Isso não lhe simplifica a questão
do desejo, “mas, enfim, interessarem-se pelo objeto como objeto de nosso desejo causa menos
complicações para elas” (Lacan, 1962-63, p. 200). Ao fazer semblante de objeto causa de desejo
do parceiro, a questão do próprio desejo feminino fica intocada.
Lacan (1962-63) conclui que o gozo da mulher é maior que o do homem. Por isso, elas
estão mais próximas do real, “é que ao real não falta nada” (p. 205). Desse modo, há uma
superação da relação da mulher com a falta. Se a angústia da mulher surge para Freud no
momento em que lhe falta o objeto de amor, parece que o que Lacan (1962-63) propõe aqui é
que no momento em que o objeto está presente, a mulher se angustia, pois se ao homem nada
falta, haveria para ela um lugar em seu desejo? Aqui poderia parecer que haveria uma diferença
em relação à proposta freudiana, mas acreditamos que, na verdade, não haja grande diferença.
Freud (1926) aposta que é na possibilidade da perda do objeto de amor que a mulher se
angustia. Contudo, o que vimos demonstra que para ela ter lugar no desejo do parceiro, é preciso
que algo falte a ele para que ela possa fazer semblante de objeto a. Assim, tanto em Freud como
em Lacan é preciso que no parceiro algo falte para que a mulher se inscreva em seu desejo.
Gide só abandona Madeleine no campo do amor quando Marc a substitui como objeto; o mesmo
ocorre em relação a Medeia, Jasão e Creusa. A angústia feminina de nossas personagens surge
quando elas não são mais colocadas como objeto causa de desejo dos parceiros, sendo que,
desse modo, elas são empurradas para o ato como uma forma de fazer barreira à angústia.
É curioso que ao pensar na relação entre amor, desejo e gozo nesse seminário, parece-
nos que é exatamente na queda do amor que o gozo feminino irrompe, pois é o amor que faz
uma borda ao gozo. Porém, caso a demanda de amor do ser feminino se infinitize, ela retorna
como devastação.
Com isso, entendemos que é na junção da angústia da mulher frente ao seu lugar no
desejo do parceiro que o ato aparece como modo de aplacar a angústia. Ainda que no seminário
sobre a angústia Lacan ainda não houvesse formalizado o gozo feminino como suplementar,
ele já indica um gozo maior da mulher e a importância do amor, pois se para a mulher nada
falta no campo do gozo, o amor precisa surgir para fazer barreira a ele. O que é proposto em
160

1962 e 63 em Lacan sofre uma alteração com a introdução do conceito de semblante em 1969,
e essa relação entre mulher, gozo e amor se altera, vinculado-se aos semblantes. Vamos a eles.

4.2. Ato e semblante.

Clotilde Leguil, psicanalista francesa, faz um esforço para dialogar a psicanálise com as
teorias de gênero, que têm como principal autora contemporânea a também francesa Judith
Butler75. Ela não tem como objetivo tornar as teorias afins, mas indicar em quais pontos elas se
cruzam e em quais se opõem. Trabalharemos aqui com duas referências da autora, o texto “Sur
le genre des femmes selon Lacan", de 2015, no qual a autora tem como argumento central o seu
subtítulo: “A sexualidade feminina para além das normas” (p. 47, tradução nossa)76, e o livro
“O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan”, de 2016.
As teorias de gênero se opõem às teorias naturalistas que associam o gênero a uma
programação genética e, por sua vez, pensam o gênero como uma alienação às normas. A
psicanálise se incluiria, então, como uma terceira via para pensar a questão do gênero, nem pela
visada naturalista, nem pela visada discursiva, mas buscando compreender a diferença entre ser
homem e ser mulher pela via do gozo: fálico e não-todo fálico.
Leguil (2016) interpreta que, na perspectiva de Butler, o gênero é algo que enrijece o
ser ao colocá-lo dentro de uma norma na qual o indivíduo, ao nomear-se como homem ou como
mulher, precisaria se adequar. Ela esclarece, contudo, que haveria uma aproximação com a
psicanálise nesse ponto, uma vez que, para Butler, há um desconforto do sujeito com seu sexo
biológico. Isso é condizente com a psicanálise, já que para ela, o encontro do sujeito com seu
sexo não é algo sem embaraço, não há uma pulsão unificadora que daria conta de harmonizar a
sexualidade. Para a psicanálise, o encontro de cada um com seu sexo e com o Outro sexo é
sempre desconfortável. A diferença reside no fato de que Butler crê que o embaraço com o
campo da sexualidade advém apenas do discurso social, enquanto para a psicanálise, esse
embaraço o ultrapassa, pois inclui o campo da erótica.
“Trata-se [na teoria de Butler] de mostrar que as categorias do homem e da mulher se
tornam realidades nas quais se crê por meio do efeito de um certo poder exercido sobre os
corpos” (Leguil, 2016, p. 57). Isso significa que dizer homem ou mulher levaria a uma sujeição,

75
Não é de nosso interesse aqui trabalhar essa comparação entre os estudos de gênero e a psicanálise, apenas
localizamos rapidamente a discussão de Leguil (2015) para que possamos compreender seu argumento sobre o
feminino e o ato. Além disso, a teoria de Judith Butler é densa e não poderia ser reduzida apenas ao ponto que
tratamos aqui.
76
No original: «La sexualité féminine par-delà les normes».
161

criando um obstáculo à assunção do verdadeiro ser do sujeito e, portanto, uma solução é


subverter as normas de gênero e abolir a diferença entre os gêneros. O que está em jogo na
teoria de Butler é que o gênero enquanto norma aliena os sujeitos numa designação pré-
estabelecida, sendo necessário suspender as nomeações.
Essa proposta de Butler coloca em xeque o próprio uso do significante mulher. “Em
relação a este significante ‘mulher’, ela [Butler] também dá testemunho de seu embaraço,
interrogando-se sobre o fato de que esse significante possa designar outra coisa que não a classe
de mulheres oprimidas pelos homens” (Leguil, 2016, p. 58). A partir daí, Leguil (2015) se
pergunta como poderíamos pensar o significante mulher na teoria lacaniana, já que nela, não se
trata de fazer esse significante desaparecer, abolindo a diferença.

Enquanto Judith Butler discute a feminilidade e a questão do gênero a partir das normas e da
luta por uma contestação destas normas, Lacan aborda a feminilidade desde o início a partir da
loucura e, consequentemente, a partir disso que evidenciaria precisamente o surgimento da
anormalidade no mundo. Buttler parte da “injunção para ser de um determinado gênero” que
pode assumir, segundo ela, diferentes caminhos: “ser uma boa mãe, ser um objeto
heterossexualmente desejável, ser um trabalhador ou uma trabalhadora capaz”. Lacan parte
disso injunção do supereu feminino seja de uma outra natureza que a injunção moral clássica.
Ele leva muito a sério a afirmação de Freud sobre o enfraquecido supereu feminino para fazer
dele um outro supereu que, por fim, será o último supereu lacaniano, como ele é hoje: uma
injunção de gozo. Em uma palavra, Butler parte da norma, Lacan parte do fora da norma. [. . .]
Lacan visa o ponto de real no qual a feminilidade é sempre inquieta à norma (Leguil, 2015, pp.
54-55, tradução nossa).77

No primeiro capítulo desta tese, nós apresentamos como a questão sobre a mulher é
colocada desde o início do desenvolvimento da teoria freudiana. Se por um lado Freud se
manteve preso à lente fálica para ler o processo de desenvolvimento da sexualidade feminina,
por outro, ele já demonstrava que tem algo do campo sexual que não se organiza em torno de
uma normatização. Ao fundar sua teoria pulsional, ele indica que o objeto é o que há de mais
variável na pulsão e não há, portanto, uma norma predeterminada no encontro entre os sexos.
Por manter o falo como central em sua teorização, Freud (1933[32]) eleva a maternidade como
a saída feminina por excelência, já que por meio da substituição metafórica pênis – bebê a

77
No original: «Alors que Judith Butler aborde la féminité et la question des sexes à partir des normes el lutte
pour une contestation de ces normes, Lacan aborde la féminité d’emblée à partir de la folie, et donc à partir de ce
qui relèverait précisément d’un surgissement d’anormalité dans le monde. Butler part de «l’injonction à être d’un
certain genre» qui peut prendre, selon elle, différents chemins – «être une bonne mère, être un objet
hétérosexuellement désirable, être un travailleur ou une travailleuse capable» - Lacan part de ce qui fait que
l’injonction du surmoi féminin est d’une autre nature que l’injonction morale classique. Il prendre au sérieux
l’affirmation de Freud sur le moindre surmoi féminin, pour en faire un autre surmoi, qui finalement sera le dernier
surmoi lacanien en tant qu’il est toujours injonction de jouissance. En un mot, Butler part de la norme, Lacan part
du hors-norme […] Lacan vise le point du réel où la féminité est toujours rétive à la normative. (Leguil, 2015, p.
54-55).
162

mulher supriria sua falta fálica. No entanto, o próprio Freud fica insatisfeito com sua solução e
imputa à poesia uma das saídas possíveis para a compreensão sobre as mulheres.
Vimos que Lacan apresenta outras soluções para a mesma questão. Ele começa a
questionar a maternidade como saída feminina já na década de 60 e também a própria
preponderância do falo ao afirmar que “convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que
pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente, toda a corrente do instinto materno”
(Lacan, 1960, p. 739). Depois, Lacan avança até formular a teoria dos semblantes e elevar
homem e mulher à categoria de semblantes. Mais que isso, Lacan divide o que seria o homem
e a mulher em dois lados na tábua da sexuação. O lado homem: todo fálico; e o lado mulher:
não-todo fálico. Neles, localiza dois modos de gozo: o gozo fálico, concernente ao lado homem,
e o gozo suplementar, que se refere ao lado mulher. Além disso, introduz o aforismo “A mulher
não existe”, indicando que não se pode dizer de um universal sobre as mulheres. Em uma
passagem muito precisa, Lacan (1975) se refere às mulheres como loucas, mas “não loucas-de-
todo” (p. 538).
É seguindo esse percurso que Leguil (2015) pôde afirmar que Lacan abordou a mulher
pela via da loucura. A autora esclarece que falar da mulher a partir da loucura não é um clichê
ou uma misoginia, mas significa dizer que “há alguma coisa na relação feminina ao Outro e ao
mundo que resiste ao inteligível” (Leguil, 2015, p. 55, tradução nossa)78. Elas restam fora do
campo da compreensão, não sendo aprisionadas no universal. Não se trata aí de colocar as
mulheres no campo do irracional, do inferior, da falta, mas de abordá-las por meio de alguma
coisa que excede um campo que poderia ser domesticado pelo logos, e acrescenta: “Elas estão
fora do campo da compreensão quando alguma coisa da feminilidade se revela nelas” (p. 55,
tradução nossa)79.
O que Leguil (2015) indica é que o feminino é alguma coisa da ordem de uma revelação,
de modo que ele não está presente como uma natureza. Aqui, parece que a autora aponta uma
diferenciação, indicando que o feminino seria o que resta desse ponto de inapreensível, de
inassimilável. A autora enfatiza o caráter do feminino como aquilo que resiste a qualquer
normatização.
Leguil (2015) esclarece que dizer que as mulheres são loucas não implica como
consequência uma tentativa de levá-las de volta à razão, mas de saber o que cada uma pode
fazer com sua loucura, com sua hybris. Esse é um termo grego que significa aquilo que passa

78
No original: «Il y a quelque chose dans le rapport féminin à l’Autre et au monde que résiste à l’intelligibilité».
79
No original: «Elles sont hors du champ de la compréhension, quand quelque chose de la féminité se réveille
en elles».
163

da medida, um excesso. A loucura feminina liga-se ao que está além do falo, e não se trata de
uma psicose, já que Lacan (1975) apresenta que a mulheres, por mais que sejam todas loucas,
não são loucas de todo.
A revelação do feminino se dá através de um ato, propõe Leguil (2015). Para esclarecer
isso, ela recorre ao filme “Blue Jasmine” (2013) do cineasta americano Woody Allen. Para nós,
Jasmine representa uma versão contemporânea de Medeia e também de Madeleine. Segundo
Leguil (2015), o filme representa um

magnífico retrato da mulher fora da norma. Conforme Lacan, uma verdadeira mulher tem
sempre alguma coisa de extraviado, porque ela mesma não entende seu ato. É um ato
irremediável que a constitui como mulher, colocando em risco seu bem-estar (p. 63,
tradução nossa, destaque nosso)80.

A história se passa entre Nova Iorque e São Francisco e conta a história da ex socialite
de meia-idade Jasmine, representada pela atriz Cate Blanchett. O filme se divide entre flashes
do presente e do passado. No presente, a personagem principal reside com sua irmã Ginger em
São Francisco, após ter perdido todo seu dinheiro e status com da prisão de seu marido Hal
(interpretado por Alec Baldwin), acusado de fraudes. Já o passado retrata a vida de casada de
Jasmine. Uma luxuosa vida em Nova Iorque. Hal era um empresário milionário e desonesto,
nove anos mais velho que ela, que a mimava dando-lhe presentes caros.
O filme se inicia com Jasmine saindo do avião e conversando com uma senhora,
passando a impressão de que eram amigas. Contudo, após pegar sua bagagem e encontrar seu
marido, essa senhora explica a ele que Jasmine estava ao seu lado no voo falando sozinha, e
que, ao indagá-la, ela começou a contar-lhe sua história e não parou mais de falar. Esse hábito
de falar sozinha é uma marca da personagem que teve um “colapso nervoso” (Allen, 2013, s/p)
após perder todo seu dinheiro. A causa dessa perda só é revelada no final do filme e tem relação
direta com seu ato. Sempre que fala sozinha, Jasmine se transporta para o passado, como se o
revivesse. Logo no início do filme, enquanto aguarda sua bagagem na esteira do aeroporto, ela
diz: “é minha Louis Vitton” (Allen, 2013, s/p), mostrando o lugar dos objetos de luxo em sua
vida. Não se trata apenas de uma mala, mas uma Louis Vitton. O relógio não é apenas um
relógio, mas um Rolex, e os sapatos e bolsas também são chamados pelos nomes das marcas.
As cenas que mostram a vida conjugal de Jasmine e Hal estão repletas de viagens, joias,
jantares, festas e roupas de marcas de luxo. Em um almoço entre amigas, Jasmine diz nada

80
No original: «magnifique portrait de femme hors-norme. Selon Lacan, une vraie femme a toujours quelque
chose d’égare, parce qu’elle ne comprend pas elle-même son acte. C’est un acte irrémédiable qui l’a constituée
comme femme, au péril de son bien-être».
164

saber dos negócios de Hal, e em outras cenas, ela aparece assinando documentos sem
preocupar-se com o seu conteúdo. Entretanto, em um momento que almoça com os sobrinhos,
ela diz que sabia de tudo, que não tinha como não saber que seu marido era fraudulento.
Ginger e o primeiro marido Augie vão até Nova Iorque e causam desconforto em
Jasmine, que teve que levar a irmã às compras e também convidá-la para seu aniversário. As
irmãs, ambas adotadas, mantinham-se afastadas e a socialite demonstrava vergonha de Ginger,
que era empacotadora em um supermercado e se relacionava com homens perdedores, em sua
visão. Ginger e Augie haviam ganhado duzentos mil dólares na loteria e queriam dicas de
investimento. O sonho de Augie era abrir seu próprio negócio na área de construção civil, mas
é convencido por Jasmine e Hal a investir o dinheiro em um negócio de hotéis e perdem tudo o
que ganharam nessa transação.
Em uma cena após essa, no dia que antecede o aniversário de Jasmine, Hal lhe dá uma
pulseira e diz “tome, por cumprir seu dever. Feliz aniversário. Estou dando para você usar na
festa de aniversário amanhã” (Allen, 2013, s/p). Não sabemos do que se trata esse dever, mas
ela se encaixava bem no lugar de esposa de um milionário fraudulento. Ela também havia
mudado seu nome de Jeanette para Jasmine, tornando-o mais elegante.
Ainda em Nova Iorque, Ginger vê Hal com outra mulher, Raylene. Na festa de
aniversário da irmã, a indaga sobre essa mulher, mas Jasmine responde que são grandes amigas
e que não deveria se preocupar. Ao contar para Augie o ocorrido, ela diz: “quando Jasmine não
quer saber alguma coisa, ela olha para outro lado” (Allen, 2013, s/p). Isso nos lembra o que
Lacan (1958a) diz sobre Madeleine: ela soube não ver o que não queria enxergar.
Jasmine e Hal moravam em uma cobertura no Central Park e ele levou o seu filho Danny
para residir junto ao casal. Apesar de aparecer pouco no filme, percebemos que Jasmine
mantinha pelo enteado um amor maternal. Hal, apesar de desonesto, era filantropo e admirado
pelo filho, que após a prisão do pai, larga a universidade, pois sente-se constrangido pelas
fraudes cometidas por ele. Na cena em que toma essa decisão e sai de casa, temos Jasmine
emocionada pedindo que ele não faça isso, pois não precisava ser punido pelos crimes que o
pai havia cometido.
Ao chegar à casa de sua irmã após perder todo seu dinheiro, Jasmine admite que não
sabe o que fazer, apenas que gostaria de recomeçar. Por sugestão da irmã, ela vislumbra tornar-
se decoradora de interiores e lembra-se de uma amiga que fez um curso online. Porém, devido
à sua inabilidade em informática, precisa antes aprender computação e matricula-se em um
curso. Ela também aceita um emprego como assistente de um dentista oferecido por um amigo
de seu atual cunhado Chilli. Um trabalho que considerava subalterno. Jasmine é assediada pelo
165

chefe e após ele lhe forçar um beijo, ela pede demissão. Depois dessa cena, ela pergunta a uma
colega do curso se ela conhece algum homem para lhe apresentar, “alguém bem de vida” (Allen,
2013, s/p). A colega, então, a convida para uma festa.
Nessa festa, Jasmine conhece Dwight. Ao se apresentar, ela diz que Jasmine é o nome
da flor preferida de sua mãe. Ela nega sua posição financeira e social, mantendo-se como
socialite. Dwight elogia seu estilo e denuncia-se como conhecedor das marcas que ela usa –
“Cinto Chanel, bolsa Hermès e sapatos Vivier” (Allen, 2013, s/p). Após ser indagado por ela
se trabalhava com moda, ele conta que sua ex esposa, já falecida, trabalhava em uma revista de
moda. Ali, Jasmine encontra novamente seu lugar. Ele trabalhava no corpo diplomático e
possuía interesses políticos.
Nesse encontro com um novo homem, Jasmine não conta toda sua história e mantém o
semblante da socialite. Ela diz apenas que Hal era cirurgião, mas que havia falecido e que ela
era decoradora de interiores. Nega também ter filho. Dwight a convida para decorar sua nova
casa e eles passam a namorar. Jasmine encontra nele uma forma de retomar o glamour que
havia perdido. Ele lhe diz que ela seria a parceira ideal para um senador e ela aceita casar-se
com ele.
Quando Jasmine e Dwight estão escolhendo uma aliança de noivado, Augie aparece e a
confronta, dizendo que está sendo transferido para o Alasca e que não precisaria disso se ela e
Hal não o tivessem enganado. Também diz que Danny estava trabalhando em uma loja de
instrumentos musicais usados. Antes desse encontro, Jasmine havia conhecido os pais de
Dwight, desempenhando com maestria seu papel de futura esposa. Após essa denúncia feita por
Augie, Dwight a chama de mentirosa e rompe com ela. Depois do rompimento, ela vai até a
loja em que Danny trabalha. No encontro entre a personagem principal e o enteado, ele pede
que ela não o importune e vá embora, pois sabe de toda a história que cerca a prisão de seu pai
e por essa razão se afastou dela. Enfim, revela-se o ato principal de Jasmine.
Um dia, assim que Hal chega em casa, Jasmine o indaga: “Você está tendo um caso com
Lisette Boudreau?” (Allen, 2013, s/p). Lisette era uma jovem au pair de uma família de amigos.
Mais cedo, nesse mesmo dia, ela havia procurado uma amiga para lhe contar que desconfiava
que o marido estava tendo um relacionamento extraconjugal. Jasmine havia recebido a ligação
de um hotel em Paris dizendo que Hal havia esquecido seu relógio lá, mas ele havia lhe dito
que estaria em Chicago a trabalho. A amiga lhe indaga se não se tratava de Lisette, mostrando
com isso a publicização do romance do marido. Diz também que somente a personagem não
sabia sobre o relacionamento e acrescenta que sempre soube dos casos extraconjugais de Hal e
166

que Jasmine demorou tempo demais para descobri-los. Jasmine pede, então, que ela lhe conte
sobre todos os outros.
Não era a primeira vez que a esposa questionava Hal sobre seus casos amorosos, mas
ele sempre negava qualquer envolvimento com outra mulher e a mimava em seguida. Dessa
vez é diferente. Hal tenta acalmá-la e anuncia que há tempos precisava conversar com ela, que,
contudo, estava sempre instável, ao que Jasmine responde: “como espera que eu reaja? Há anos
você transa com outras mulheres. Raylene, sua secretária, nossa personal trainer, Amy” (Allen,
2013, s/p). À resposta da esposa, Hal diz: “desta vez é sério, Lisette e eu estamos apaixonados”
(Allen, 2013, s/p), e acrescenta que estão fazendo planos para o futuro, diferente dos flertes do
passado que não tinham significado nada para ele. Jasmine diz: “já é bem ruim para mim todo
mundo saber que me trai, mas me trocar assim por essa garotinha francesa idiota…” (Allen,
2013, s/p). Antes que ela termine a frase, ele diz que cuidará bem dela. A resposta de nossa
personagem é um acesso de raiva, dizendo ao marido que ele não irá embora. Assim como Jasão
faz com Medeia, tentando aplacar sua fúria, Hal afirma a Jasmine que fará com ela um bom
acordo financeiro e ela não ficará desamparada. Ela não consegue responde-lo, pois tem uma
crise de choro e dificuldade de respirar. O marido sai de cena e ela se pergunta o que irá fazer,
e num ato decisivo, Jasmine pega seu celular e pede o telefone do FBI. A cena seguinte é a da
prisão de Hal, que depois se suicida na prisão.
O filme retorna para a cena do encontro dela com Danny. O enteado diz a ela que não
se pode desfazer o que fez e Jasmine, emocionada, responde: “assim que fiz o que fiz, eu me
arrependi” (Allen, 2013, s/p), contudo, ele não a perdoa. Após sair da loja de Danny, ela vai
para casa e encontra Ginger e Chilli.
Ginger havia acompanhado Jasmine na mesma festa em que a irmã conheceu Dwight e
lá também conheceu um homem – Al – com quem manteve um caso amoroso, rompendo com
Chilli. O ex namorado a atacou duas vezes com crise de ciúmes, dizendo que a amava, mas isso
não a demovia de seu romance. Contudo, Al lhe diz que precisava terminar o romance com ela,
pois sua esposa havia descoberto, ela, então, reata com Chili. É no momento em que
comemoram o namoro que Jasmine chega.
Nessa cena, percebemos Jasmine transtornada, maquiagem borrada, cabelo atrapalhado,
e após o anuncio da irmã sobre o namoro, ela diz que irá embora, pois Dwight a convidou para
morar com ele. A personagem termina o filme falando sozinha em uma praça.
Leguil (2016) propõe que Jasmine parece viver, até então, somente no universo dos
semblantes. Hal a traia e, assim como Madeleine, ela fingia não ver o que não queria enxergar,
consentido com as traições. Isso perdura até que Hal localiza Lisette no campo do amor,
167

anunciando que iria abandoná-la, e num ato que muda seu destino, Jasmine denuncia todas as
falcatruas do marido. Como consequência de seu ato, ela também perde todos os seus bens –
casa, carros, joias, roupas e acessórios de grife, assim como o contato com Danny. Desse ato
de Jasmine, Leguil (2015) recupera que para Lacan, o ato de guerra de uma mulher é endereçado
a um homem para fazer surgir a mulher que quase desapareceu. Ela esclarece que

Jasmine era uma mulher feliz, tolamente feliz na mascarada feminina e na abundância da
riqueza. Ela adorava suas malas Louis Vuitton, seus cintos Prada, suas bolsas Hermès, mas ela
amava, sobretudo, aquele que a mimava assim, seu marido, o homem de negócios que fazia
milhões em algumas fraudes bem orquestradas (p. 63, tradução nossa).81

Leguil (2015) acresce que o feminino surge a partir do ato que irrompe quando a
mascarada que tentava suprimir a inexistência d’A mulher não mais se sustenta. Como vimos,
a máscara é um semblante que visa exatamente recobrir o real da inexistência do significante
que poderia definir A mulher. Se a autora parte de Jasmine para nos indicar isso, nós partimos
de Medeia e Madeleine. O feminino, portanto, estaria localizado nesse ponto em que a máscara,
que porta uma dimensão fálica, não se sustenta e a mulher abre mão então de seus bens: dos
filhos para Medeia, das cartas para Madeleine e dos bens materiais para Jasmine.
É nesse sentido que podemos tomar o feminino como algo da ordem de um
inassimilável, que está além da paródia, do jogo e da mascarada, trata-se de uma alteridade
radical (Leguil, 2015). Assim, por sua própria estrutura, o feminino só pode se encontrar no
registro de um ato, pois rompe com os semblantes fálicos da mascarada.

Se inicialmente Lacan fez do gênero uma questão, e em particular o gênero feminino, em


seguida ele faz da relação que um sujeito tem com sua feminilidade algo da ordem de um ato.
Enquanto a feminilidade se articula a um ato que lhe confere um modo de existência, a
mulher representa uma “prova” para o homem [...]. Longe de ser uma norma para as mulheres,
esse significante [mulher] designa a hora da verdade para os homens82 (Leguil, 2015, pp. 61-62,
tradução nossa, destaque nosso).

Temos, nessa densa passagem, dois pontos essenciais: a mulher como hora da verdade
para o homem e a articulação do ato como modo de existência. Começaremos pelo primeiro

81
No original: «Jasmine était une femme heureuse, bêtement heureuse, dans la mascarade féminine et l’abondance
des richesses. Ella aimait ses valises Louis Vuitton, ses ceintures Prada, son sac Hermès, mais elle aimait surtout
celui que la gâtait ainsi, son mari, l’homme d’affaires qui gagne des millions en quelque minutes moyennant
quelques escroqueries bien orchestrées».
82
No original: «Si Lacan a d’abord fait du genre une question, et en particulier du genre féminin, il a ensuite fait
du rapport d’un sujet à sa féminité quelque chose de l’ordre d’un acte. En tant que la féminité s’articule à un acte
qui lui confère un mode d’existence, la femme représente une ‘épreuve’ pour l’homme […]. Loin d’être une norme
pour les femmes, ce signifiant désigne une heure de vérité pour les hommes».
168

ponto, que a autora retira de uma passagem de Lacan no “O seminário, livro 18, de um discurso
que não fosse semblante”.

Para o homem, nessa relação, a mulher é precisamente a hora da verdade. No tocante ao gozo
sexual, a mulher está em condição de pontuar a equivalência entre gozo e semblante. É
justamente nisso que jaz a distância a que o homem se encontra dela. Se falei em hora da
verdade, é por ser a ela que toda formação do homem é feita para responder, mantendo, contra
tudo e contra todos, o status de seu semblante. É certamente mais fácil para o homem enfrentar
qualquer inimigo no plano da rivalidade fálica do que enfrentar a mulher como suporte dessa
verdade, suporte do que existe de semblante na relação do homem com a mulher (Lacan, 1971,
p. 33).

O homem só pode encontrar seu lugar na relação sexual pelo significante fálico, ao qual
não podemos reduzir o lugar da mulher. Isso indica que “o homem é uma função na qualidade
de todo homem. Mas como vocês sabem, há enormes dúvidas incidindo sobre o fato de que o
todo homem existe. É isso que está em jogo – ele só pode sê-lo na qualidade de todohomem,
isto é, de significante e nada mais” (Lacan, 1971, p. 133, destaque do autor).
Como indica Miller (2012), o homem é estorvado, pesado, não podendo ser sem
semblantes. “O homem ‘lacaniano’ é fundamentalmente medroso e, quando vai à guerra, é
certamente para fugir das mulheres, do buraco. Assim, o homem não é sem semblantes, mas
estes servem para proteger seu pequeno ter” (Miller, 2012, p. 92).
O falo é um semblante, um modo de organizar o gozo. O que se trata no semblante é
recobrir o vazio de significação e disso bem sabe a mulher, já que ela se sabe castrada e
dissimula sua castração na máscara. É na relação com a mulher que o homem – todohomem –
saberá se o falo é capaz de desempenhar sua função. A mulher é “a única que pode dar lugar ao
semblante como tal” (Lacan, 1971, p. 34). Por isso, ela serve como um teste para o homem. É
também por isso que Lacan (1962-63) pôde dizer que à mulher nada falta, pois a falta está do
lado do homem na detumescência do órgão.
Lacan (1975) também aponta um impasse na relação do homem com a mulher em
“Televisão”. Ele pergunta se “será possível dizer, por exemplo, que quando O homem quer A
mulher, ele só a alcança ao encalhar no campo da perversão? É o que se formula a partir do
discurso psicanalítico” (Lacan, 1975, p. 535). Ele trata aqui do modo como o homem aborda a
mulher: como objeto a. E acrescenta que falar que A mulher não existe não impede que se faça
dela objeto do desejo. Esse modo de abordar a mulher pode ser encontrado “com o que O
homem, enganando-se, encontra uma mulher com quem tudo dará certo: ou seja, comumente,
o fiasco em que consiste o ato sexual. Os atores são capazes dos mais altos feitos nesse campo,
mas como sabemos, pelo teatro” (Lacan, 1975, p. 536, destaque do autor). O que entendemos
169

é que o fiasco do encontro está colocado, mas que temos a via do teatro – seja por meio do
nobre, do trágico ou do bufão – como um modo de colocar as questões sexuais por meio da
fantasia, essa é a forma como o homem relaciona-se com a mulher. Entretanto, quando esse
teatro não se sustenta, a mulher pode revelar a verdade da inexistência da relação sexual.
Ainda em “Televisão”, Lacan (1975) define a verdade da seguinte maneira: “Sempre
digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível
materialmente: faltam palavras. É por esse impossível que a verdade tem a ver com o real” (p.
508). Verdade e mulher têm a mesma estrutura do não-todo, têm um ponto de impossível, não
recoberto pelo significante. Não à toa, Lacan (1971) adianta que a mulher é a hora da verdade
para um homem, pois ela denuncia o impossível de dizer, ela denuncia que nem tudo pode ser
recoberto pelo semblante.
Lacan (1971) destaca que a relação sexual não existe, contudo, ela é inscritível, desde
que se inclua um terceiro termo entre o homem e a mulher: o falo.

Figura 13: A característica do terceiro termo.

Fonte: Lacan, 1971, p. 132.

Neste esquema, Lacan (1971) demonstra que o termo Φ que se liga ao homem não se
comunica com a mulher e, portanto, a mulher só se liga ao falo tendo o homem como um
conector. Isso dá à parceria amorosa um lugar importante para a mulher, mas sem reduzir o
campo feminino ao da parceria. Em “O seminário, livro 19, O pior”, Lacan (1971-72) nos traz
uma passagem importante. Ele localiza a mulher entre o centro e a ausência, tendo como partida
a barra que nega o quantificador universal (∀) que faz a mulher não-toda. Ser não-toda significa
que:

Ela não está contida na função fálica, mas nem por isso é sua negação. Sua forma de presença
está entre o centro e a ausência. Centro – essa é a função fálica de que ela participa
singularmente, posto que o ao menos um, que é seu parceiro no amor, renuncia a tal função por
ela, esse ao menos um que ela só encontra no estado de ser apenas pura existência. Ausência –
é o que lhe permite deixar aquilo por cujo meio ela não participa disso, na ausência que não é
menos gozo por ser ausência de gozo, gozoausência [jouissance] (Lacan, 1971, p. 117-118,
destaque do autor).

Lacan (1971-72) refere-se nessa passagem ao menos um em relação ao argumento do


lado homem: ∃x.Φx, existe ao menos um homem que não está inscrito na função fálica, pois a
170

exceção do pai primevo funda a universal do lado homem: ∀xΦx. No lado mulher, não há a
exceção, de modo que não se funda o grupo de mulheres. Desse modo, podemos compreender
que ao mesmo tempo que a mulher é centro na parceria amorosa, por outro lado e a um só
tempo, ela não se deixa situar inteiramente nesse papel, estando em outro lugar. Aí advém o
que Lacan nomeou como ausência, que se trata do gozo feminino. Esse gozo não depende do
gozo fálico e, portanto, é independente do parceiro.
Se do lado homem há a universal que define o homem (∀xΦx), todohomem, do lado
mulher, trata-se do discordancial, que sustenta que A mulher só pode ocupar um lugar na
relação sexual como uma mulher e isso tem como consequência

que é somente a partir de ser uma mulher que ela pode instituir-se no que é inscritível por não
sê-lo, isto é, por permanecer hiante em relação ao que acontece na relação sexual. Daí chegamos
a isto, muito legível na função preciosíssima das histéricas: que são elas, que no tocante ao que
se dá na relação sexual, dizem a verdade (Lacan, 1971, p. 133, destaque do autor).

Desse modo, mesmo que o falo esteja apto a designar o todohomem, o encontro com a
mulher faz com que o homem se depare com a verdade da inexistência da relação sexual.
Seguindo a decomposição de Leguil (2016), ao encarnar a prova para um homem,
colocando-se como objeto de desejo do parceiro, a mulher só o faz no lado do semblante, uma
vez que é necessário que ela se faça semblante de objeto para inscrever-se na relação. Além
disso, o próprio objeto a é elevado ao estatuto de semblante de gozo no último ensino de Lacan.
Vimos que Madeleine encarna a figura do anjo, Medeia, a figura da mulher de Jasão e mãe de
seus filhos, e Jasmine, a socialite. É exatamente quando esses semblantes não se sustentam que
surge o ato de cada uma. O que entendemos da proposição da psicanalista é que há aí uma
desarticulação que o semblante operava, o que Leguil (2016) chama de decomposição. Por um
lado, temos a mulher encarnada nos semblantes, mas num segundo momento, que é
evanescente, o feminino se articula a um ato, no momento em que há a ruptura com os
semblantes.
Leguil (2016) define que “por meio de seu ato, ela [Jasmine] está pronta a atingir a si
mesma para atingir aquele que a exclui de sua vida” (p. 133). O mesmo que faz Medeia e
Madeleine. Ainda sobre Jasmine, a psicanalista afirma:

Woody Allen, com Blue Jasmine, nos mostra ali onde Jasmine é mulher, não ali onde ela mesmo
acreditava sê-lo: não é tanto quando ela abraça os estereótipos de gênero e de classe que ela é
mulher, mas, sim, quando ela os abandona para se encontrar exilada do mundo, a bordo de um
país que não é mais aquele das normas, mas o do continente negro onde seu ser deve ser
inventado (Leguil, 2016, p. 134).
171

Essa proposição deve ser lida junto com a elaboração de Lacan (1971) sobre o ato e o
semblante. Relembremos: o psicanalista vinha discutindo o conceito de semblante no nível do
parecer e como que a identificação sexuada se dá pela via da diferença entre homens e mulheres.
Também indicava como há, no comportamento sexual humano, uma certa manutenção da
exibição que ocorre no reino animal, mas no caso do homem, ela se encontra vinculada ao
discurso. Então, ele indica que é somente no nível desse discurso que há algum efeito fora do
campo do semblante:

Isso significa que, em vez de ter a refinada cortesia animal, sucede aos homens violar uma
mulher ou vice-versa. Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com
que se mantenha o mesmo semblante, de vez em quando existe o real. É a isso que chamamos
de passagem ao ato e não vejo melhor lugar para designar o que isso quer dizer. Observem que,
na maioria dos casos, a passagem ao ato é cuidadosamente evitada. Só acontece por acaso
(Lacan, 1971, p. 31).

O que Lacan (1971) indica é que o real não pode ser todo recoberto pelo significante,
irrompendo nos discursos, e isso caracteriza-se como uma passagem ao ato, que acontece
somente por acaso. Diferente do acting out, que faz o semblante passar à cena, que o mostra, a
passagem ao ato faz com que haja uma perfuração nos semblantes, ele se liga à queda dos
semblantes.
Assim, entendemos que o feminino colocado por Leguil (2015; 2016), em consonância
com o proposto por Bassols (2017), trata-se do ponto de inapreensível, do ponto daquilo que
não é recoberto pelo falo, que estaria na dimensão do gozo feminino. Isso, porém, só é possível
aparecer de um modo abrupto, quando o semblante não se sustenta, o que lembra a seguinte
proposta de Miller (2012), de que:

'Esta é uma verdadeira mulher' só se pode dizer em um grito de surpresa, seja de maravilha ou
de horror, e talvez só quando se percebe que, visivelmente, a mãe não tapou nela o buraco. Algo
que se articula ao sacrifício dos bens, ao sacrifício do ter, e, talvez, por isso, a mulher tenha
merecido esse grito quando consentiu com a modalidade própria da castração (p. 69).

Já demonstramos, no primeiro capítulo, a impossibilidade de dizer de uma verdadeira


mulher, mas a verdade (sempre não-toda) numa mulher só pode existir no ato, já que o feminino
e o ato comportam a queda dos semblantes. As bolsas de Jasmine, as cartas de Madeleine, os
filhos de Medeia localizam-nas no campo dos semblantes, são modos de as localizarem no
campo fálico. Propomos que denunciar o parceiro ao FBI, queimar as cartas e matar os filhos
comportam uma passagem ao ato e é nesse momento que algo do feminino – irredutível ao
significante – irrompe, no caso delas, num grito de horror. Acreditamos que se podemos
172

localizar o feminino no campo do gozo além do fálico, ele também pode ser localizado no
campo dos atos, mas somente aqueles atos que comportam um aniquilamento do campo do ter,
uma ruptura com os semblantes. Desse modo, propomos que encontramos aqui um segundo
modo particular de aparição do ato. O ato é uma possibilidade na qual uma mulher pode revelar-
se ao destruir aquilo que se encontra ligado ao falo: seus bens, seus filhos, seu lugar como a
mulher de um homem. Passamos agora à discussão do gozo feminino e da devastação.

4.3 Gozo feminino e devastação.

Laurent (2012) diz que é somente ao abordar o semblante a partir da experiência do


gozo que Lacan pôde chegar ao gozo feminino. Se “o falo fala” (Laurent, 2012, p. 205), as
mulheres se calam em relação ao gozo. Esse silêncio se dá porque as mulheres representam a
mancha no sistema de representação. Isso já pode ser visto desde “O Seminário, livro 5, as
formações do inconsciente”, quando Lacan (1957-58) demonstra que no processo edípico,
temos, de um lado, os meninos inteiramente submetidos ao gozo fálico cifrado pela castração,
ou seja, um gozo que é em parte permitido e em parte proibido, e do outro lado, temos as
meninas. Os meninos fazem, na saída edípica, uma identificação com o pai enquanto ideal do
eu, carregando o que ele nomeia como título de posse. Esse título é a autorização dada ao
menino para que ele possa usufruir da significação fálica, quando convocado para isso na
adolescência. Já as meninas não precisam fazer a identificação, nem mesmo guardar esse título.
Relembremos a passagem de Lacan (1957-58), já apresentada em nosso primeiro capítulo:

Ela, a mulher, sabe onde [o falo] está. Sabe onde deve ir buscá-lo, que é do lado do pai, e vai
em direção àquele que o tem. Isso também indica por que uma feminilidade, uma feminilidade
verdadeira, tem sempre um toque de uma dimensão de álibi. Nas verdadeiras mulheres, tem
sempre algo de extraviado (p. 202, destaque nosso).

O que é extraviado é o gozo feminino. Lacan diz (1972-73) que desse gozo nada falam
as mulheres, nem que os homens lhes supliquem de joelhos. O gozo feminino é um gozo
suplementar ao gozo fálico, este propriamente o gozo sexual coordenado como um semblante.
“Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o qual
talvez ela mesma não saiba a não ser que o experimenta – isto ela sabe. Ela sabe disso,
certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas” (Lacan, 1972-73, p. 80,
destaque do autor).
173

Desse gozo, as mulheres nada sabem dizer, apenas que o experimentam. Lacan (1972-
73) também nomeou esse gozo como gozo místico, já que podemos encontrar, no relato dos
místicos, esse gozo que divide o sujeito de um modo que ele é imputado a Deus. Retomando a
tabua da sexuação, verificamos que em relação ao encontro sexuado, a seta que parte d’ Ⱥ
mulher dirige-se, por um lado, ao falo (Φ), e assim ao lado homem, mas também ao S(Ⱥ) e, por
isso, Lacan levanta que “a questão é, com efeito, saber no que consiste o gozo feminino, na
medida em que ele não está todo ocupado com o homem, e, mesmo, eu diria que, enquanto tal,
não ocupa dele de modo algum, a questão é saber o que é do seu saber” (Lacan, 1972-73, p.
94). Esse S(Ⱥ), Lacan o designa como o gozo da mulher, trata-se do gozo do corpo, que não
está no campo dos semblantes, ele se localiza fora de onde a mulher joga sua partida com o
parceiro. Bessa (2012) indica que Lacan coloca Deus no lugar do S(Ⱥ), não num sentido de um
apelo religioso, mas de um Outro que é impossível de ser significado.
Lacan (1972) fala que sua descrição de Schreber demonstra que o empuxo-à-mulher se
especifica pelo primeiro quantificador do lado mulher da tábua da sexuação, ∃x. Φx., mas o
outro quantificador: ∀x. Φx., é promissor pensar nele como um confim. Confim significa um
limite, aquilo que faz fronteira, fronteiriço. Em francês, a palavra confins significa contenção,
refreamento. Esse outro quantificador seria, então, o que permitiria “a potência lógica do
nãotodo ser habitada pelo recesso de gozo que a feminilidade furta, mesmo que venha juntar-
se àquilo que produz thomem” (Lacan, 1972, p. 467, destaque do autor).
Se, de um lado, há o empuxo-à-mulher, representado pelo primeiro quantificador que
aproxima a mulher da loucura, por outro lado, no homem, ela pode encontrar uma contenção,
uma fronteira ao gozo. Lacan (1972) refere-se então a Tirésias, de Ovídio. Tirésias era um
profeta de Tebas, que ao ir orar no Monte, matou uma cobra fêmea que copulava.
Imediatamente, ele transformou-se em mulher e assim viveu durante sete anos, até que,
refazendo o mesmo caminho, matou uma cobra macho durante a cópula e transformou-se em
homem novamente. Um dia, ele foi chamado para resolver uma discussão entre Hera e Zeus
que versava sobre quem tem mais prazer na relação sexual: o homem ou a mulher. O curioso é
que Hera apostava que era o homem e Zeus apostava na mulher, e eis a resposta de Tirésias: se
dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma. Hera ficou
furiosa e cegou Tirésias como punição. Sobre isso, Lacan (1972) afirma: “dizer que uma mulher
não é toda é o que nos indica o mito por ela ser a única a ser ultrapassada por seu gozo, o gozo
que se produz pelo coito” (p. 467). Somente ela pode ser ultrapassada pelo gozo, se o lado
feminino não pode tornar-se todo, pois lhe falta o mito que funda a exceção, por outro lado, a
mulher tem seu próprio mito: o do gozo feminino.
174

Se esse gozo se localizasse no campo dos semblantes, ele poderia, enfim, fornecer um
significante, uma nomeação para Ⱥ mulher, no entanto, isso não acontece, pois ele é um gozo
que divide a mulher e a faz parceira de sua solidão (Lacan, 1972). Importante esclarecer que a
solidão aqui não tem o mesmo sentido daquele ao qual nos referimos quando dizemos da solidão
do gozo fálico. Nele, no gozo do idiota (Lacan, 1972-73), trata-se de um gozo no qual o sujeito
acredita gozar do corpo do Outro, mas goza é do próprio órgão. “O homem continua ligado à
pulsão, preso ao gozo autoerótico sem haver abertura para o Outro sexo. Porém, ele consegue
fazer do Outro um objeto a” (Bessa, 2012, p. 88). No gozo feminino, essa solidão é de outra
ordem, não se trata de um mero autoerotismo pulsional, mas de um gozo que divide a mulher.
Dessa forma, um modo de desembaraçar-se dessa solidão é ao lado do parceiro, que é quem a
conecta com o falo. Holk (2008) define que:

O gozo da mulher não se define pelo buraco negro superficial, mas pelo furo ilimitado e infinito
e só encontra seu limite porque também é regido pelo falo. A mulher transita de um regime a
outro. Se para em Um se inscreve, animada pelo falo, o lado masculino, mas se para em Outro,
identificada ao objeto vazio, cai abismada no feminino (p. 74).

Se entendemos que a mulher só tem acesso ao falo tendo o homem como conector, outra
forma de pensar o modo particular de aparição do ato no campo feminino não seria por esse
caminho? De considerar que ao faltar o amor, a mulher, desamparada do falo, também cairia
na cena. Esse cair abismada é um indicativo da devastação.
Lacan (1975-76/2007)83 traz na lição “Joyce e as falas impostas” do “O Seminário, livro
23, O Sinthoma” uma indicação importante em relação à devastação. Nessa lição, ele define o
sinthoma como aquilo que permite reparar a cadeia borromeana, que permite que o real, o
simbólico e o imaginário fiquem amarrados. Assim, ele aponta que na medida em que há
sinthoma, não há uma equivalência sexual, podendo haver, então, uma relação entre os sexos.
Sobre essa relação, ele diz: “Há relação na medida em que há sinthoma, isto é, em que o outro
sexo é suportado pelo sinthoma” (Lacan, 1975-76, p. 98).
A mulher, então, é localizada como o sinthoma para o homem e como a relação só é
possível pela não equivalência, não se pode tomar que o contrário é verdadeiro. “Pode-se dizer
que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um
sinthoma. Vocês podem inclusive articular isso como lhes for conveniente. Trata-se mesmo de

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor,
que somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da
publicação original.
175

uma devastação” (Lacan, 1975-76, p. 98). O modo como cada parceiro se apresenta ao outro
não é o mesmo, é a não equivalência que marca a possibilidade do encontro.
A devastação localiza-se em relação ao gozo feminino tendo como elo o amor. Se nem
o gozo feminino e nem mesmo o gozo fálico permitem que a relação sexual exista, o que surge
como suplência é o amor, diz Lacan (1972-73). Ele indica que o amor cortês, no qual a dama é
mais servil em relação ao homem, é a maneira mais elegante do homem sair do impasse da
inexistência da relação sexual. Do lado mulher, é diferente. Lacan indica que o amor, para este
lado, é uma demanda intensa, pois está ligada ao ser. Ele brinca com a homofonia em francês
entre aimer (amar) e âme (alma), e vai dizer que a alma está ligada ao ser assexuado. Ele faz
junção entre o amor e alma, que em português fica como almar. “Mas o que acontece é que as
mulheres também são almorosas, quer dizer que elas almam a alma. O que será que pode ser
essa alma que elas almam em seu parceiro, no entanto, homo até o pescoço84, do que elas não
sairão?” (Lacan, 1972-73, p. 91). O que ele parece indicar aqui é que o amor toca o ser da
mulher. Almar a alma traz em cena a carta de amor endereçada ao Outro. Isso, do lado mulher,
tem um efeito de gozo, pois nelas, o amor e o gozo não estão disjuntos.
A junção entre amor e alma produz a carta de amor dirigido ao Outro. Isso que da relação
não se inscreve, surge como demanda de amor do lado mulher. Mas então, do que se trataria a
devastação? Se o amor da mulher dirige-se ao S(Ⱥ), ele toma a dimensão de uma insistência, já
que não existe o Outro do Outro. Miller (2016) define simplesmente que devastação é ser
devastado. Trata-se de uma depredação.
A devastação “toca os confins da marcação simbólica” (Brousse, 2004, p. 62), ou seja,
toca a maneira como a emergência da linguagem se deu para cada sujeito, pois a devastação
surge da relação da menina com sua mãe. Brousse (2004) toma essa relação como um ponto no
qual muitas mulheres tropeçam durante a análise, já que numa mulher, qualquer que tenha sido
sua história, há uma invariante destacável. “O x do desejo materno assumia sempre, num
determinado momento da análise, o valor de morte. O significado para o sujeito era o filho cuja
morte se desejara. Esse dado clínico vem esclarecer o termo ‘devastação’” (Brousse, 2004, p.
63).
O que ocorre, segundo Brousse (2004), é que o desejo da mãe não pode ser saturado
pelo significante falo. Interessante é que Lacan (1972-73) aponta que a maternidade é o que
poderia inscrever a mulher na relação sexual.

84
Lacan (1972-73) aponta que como a alma alma a alma, não está em transação o sexo. Ele não conta neste
caso.
176

Aí estão verdades maciças, mas que nos levarão, mais longe, graças a que? Graças à escrita. Ela
não fará objeção a esta primeira aproximação, pois é assim que ela mostrará ser uma suplência
desse não-todo sobre o qual repousa o gozo da mulher. Para esse gozo que ela é, não-toda, quer
dizer, que a faz alguma coisa ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, ela encontrará,
como rolha, esse a que será seu filho (Lacan, 1972-73, p. 41).

O que Brousse indica, pautada em Lacan, é que essa rolha não satura tudo do que se
refere ao desejo da mulher. Mesmo em Lacan, não se trata de uma saturação. “Com efeito, o
desejo da mãe está longe de ser inteiramente saturado pelo significante. Há na mãe, ao lado do
desejo, um gozo desconhecido, feminino” (Brousse, 2004, p. 64). A autora nos aponta que ao
operar uma disjunção entre a mãe e a mulher, Lacan nos permite progredir na via da devastação,
não somente ao que remeteria ao desejo fálico, mas a um sem limite particular da sexuação
feminina. Teríamos aí duas vertentes da devastação: uma ligada a uma demanda fálica
inacessível, portanto, a uma zona de vacilação dos semblantes, e outra ligada ao gozo feminino.
Se no inconsciente o desejo da mãe supostamente é saturado pela significação fálica, na
substituição dele pelo Nome-do-Pai, existe um resto que, na verdade, escapa ao falo. Brousse
(2004) nos remete à mãe de Hamlet, trabalhada por Lacan no seu sexto seminário. O que se
evoca ali é um gozo sem o limite paterno, que Lacan qualifica de verdadeiro genital, ali se
enuncia um gozo não limitado pelo falo. Vamos localizar brevemente essa passagem de Lacan.
Lacan (1958-59/2016)85 dedica sete lições de “O Seminário, livro 6, o desejo e sua
interpretação” ao comentário da peça “Hamlet”, do dramaturgo inglês Willian Shakespeare. O
comentário de Lacan é extenso e ele faz uma homologia entre a peça e o grafo do desejo.
Interessa-nos aqui a colocação de Gertrudes indicada por Brousse.
Hamlet era o príncipe da Dinamarca e quando retorna para casa após seus estudos na
Inglaterra, lamenta a morte de seu pai. Após tornar-se viúva, sua mãe, a rainha Gertrudes, havia
casado com seu cunhado Cláudio, que se tornou rei. O príncipe sofre com a morte do pai, ao
mesmo tempo que se indigna com o rápido matrimônio contraído pela mãe. Lacan (1958-59)
diz que “Hamlet se apresenta essencialmente com uma espécie de sentimento de traição, e
também de degradação, que lhe inspira a conduta da mãe, seu novo casamento apressado, dois
meses, nos dizem, após a morte do esposo” (p. 281).
Na cena II, Gertrudes diz ao filho: “Despe-te, bom Hamlet, desse luto, e deita olhar
amigo à Dinamarca. Não prossigas assim, de olhas caídos, a procurar teu nobre pai na poeira.
É lei comum, tu o sabes; quantos vivem, passam da natureza para a vida da eternidade”

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A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor,
que somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da
publicação original.
177

(Shakespeare, 2010, p. 18-19). Ela acalma o filho e não demonstra estar em prantos ou mesmo
triste com a recente morte do marido.
O fantasma do pai de Hamlet passa a rondar o castelo e na cena V, o espectro lhe diz:
“não me lastime; ouve com atenção o segredo que passo a revelar-te [. . .] vinga meu assassínio
estranho e torpe” (Shakespeare, 2010, p. 40). Hamlet se assusta com essa indagação, pois a
versão oficial é que o rei havia sido morto por uma picada de cobra. O fantasma, então, explica:
“a cobra que peçonha lançou na vida de teu pai, agora cinge a coroa dele” (Shakespeare, 2010,
p. 41). E segue:

Com feitiço pessoal e com presentes – ó dotes maus, ó brindes, que tal força tendes de sedução!
–; pôde a vontade da rainha conquistar, que parecia tão virtuosa, dobrando-a para o vício. Que
queda, Hamlet! Do meu amor que tinha tal pureza que andava a par com o voto que eu fizera
no nosso casamento – a um miserável que em confronto comigo nada vale! Mas se a virtude é
firme, ainda que o vício sob a forma do céu vá cortejá-la, a luxúria, conquanto a um anjo presa,
num leito celestial cedo se enfara, sonhando com carniça [. . . ] não consintas que o leito real da
Dinamarca fique com o catre de incesto e luxúria. Contudo, se nesse ato te empenhares, não te
manches. Que tua alma não conceba nada contra tua mãe; ao céu a entrega e aos espinhos que
o peito lhe compungem. Deles seja o castigo (Shakespeare, 2010, p. 41).

Depois de localizar o horror que lhe causa o fato de Cláudio ter seduzido a rainha, o
fantasma conta a Hamlet como foi envenenado enquanto adormecia no jardim. Lacan (1958-
59) destaca que a ordem do fantasma não é apenas de vingança pelo assassinato, mas “a ordem
consiste em que da maneira que bem entender, Hamlet faça cessar o escândalo da luxúria da
rainha e que, além de tudo isso, contenha seus pensamentos e movimentos, não se entregue a
sei lá que excessos concernentes a pensamentos a respeito da mãe” (p. 281). Lacan lê, no pedido
do fantasma ao filho, um certo cuidado na proximidade com a mãe.
Como modo de despistar suas intenções de assassinar o rei, Hamlet finge ter
enlouquecido. Gertrudes e Cláudio vão até Polônio, o conselheiro do reino, e ele acredita que a
causa da loucura de Hamlet é o amor que ele possui por sua filha Ofélia. Contudo, ao ser
abordado pela jovem, Hamlet a rejeita, como um modo de continuar seu disfarce como louco.
Para que não reste dúvidas, Hamlet faz um teste para confirmar se seu tio é mesmo o
assassino. Ele contrata um grupo de comediantes que encenam o assassinato de um homem por
envenenamento pelo irmão, que tinha como objetivo casar-se com a cunhada. Antes da
apresentação da peça, Gertrudes pede que o filho se sente ao seu lado, mas ele nega e senta-se
aos pés de Ofélia. Ela lhe indaga que ele está muito alegre e ele responde: “sou apenas vosso
bobo. Que pode uma pessoa fazer de melhor, a não ser ficar alegre? Vede minha mãe, como
178

apresenta semblante prazenteiro; no entanto, meu pai morreu há apenas duas horas”
(Shakespeare, 2010, p. 94). Ofélia o corrige, dizendo que foi há dois meses.
Durante a peça, o rei deixa a sala irado, e essa se torna para Hamlet a prova de que
Cláudio era o assassino de seu pai. Gertrudes acha inaceitável a atitude do filho e o chama para
conversar em seu quarto. Ela acusa o filho de ter ofendido o pai, e ele faz o mesmo, dizendo
que foi ela quem fez grande ofensa. Quando ela indaga se ele esqueceu quem ela é, Hamlet diz:
“não, pela Cruz! Não me esqueci. Sei bem que sois a rainha, casada com o irmão de vosso
esposo e – prouvera o contrário – minha mãe” (Shakespeare, 2010, p. 113). Assustada com as
falas do filho, ela grita por socorro e Polônio, que bisbilhotava a conversa atrás da cortina, vai
socorrê-la e é morto por Hamlet, que o confunde com o rei. Ao longo do diálogo, Hamlet acusa
a mãe de matar seu pai e ela se assusta pelo modo como o filho a trata e não entende as
acusações. Após perguntá-lo de que ação tão monstruosa ele a acusa, ele responde:

Mirai este retrato e mais este outro, que dois irmãos fielmente representam; vede a graça que
encima essa cabeça, cachos de Apolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte, ao mando e à
ameaça afeito, o porte de Mercúrio, o mensageiro, quando pousa nos cumes altanados; uma
forma, em resumo, perfeitíssima, em que os deuses seus selos imprimiram para que o mundo
visse o que era um homem: esse, foi vosso esposo. Agora o resto: eis vosso esposo, espiga
definhada que o irmão sadio empresta. Tendes olhos? Deixastes deste belo monte por um pau?
Ah! Tendes olhos? Não chameis a isso amor, que em vossa idade o sangue se arrefece, fica
humilde e obedece à razão. E que razão passa deste para este? [. . .] Pudor? Por que não coras?
Se nos ossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que a continência fique, para os moços
ardentes, como a cera, que amolece no próprio fogo; nem de manchas fales, quando no ataque
se atirar o instinto, uma vez que é tão quente a própria geada e a razão alcoveta da vontade
(Shakespeare, 2010, pp. 115-116).

Nessa cena, Hamlet questiona a escolha da rainha como mulher e não como mãe. Lacan
(1958-59) afirma que o que está em jogo não é o desejo pela sua mãe, mas o desejo de sua mãe
e que nesse cena, ele lhe faz um pedido do tipo “recomponha-se, domine-se, tome [...] a via dos
bons costumes, comece por parar de ir para a cama com meu tio” (p. 304). A fala do filho deixa
a rainha sem ar. Ela suplica para que ele pare e alega que ele enlouqueceu. O fantasma do pai
surge na cena e, para Lacan (1958-59), ele o faz para proteger a mãe dos excessos do filho. No
final da cena, porém, Hamlet tem uma recaída, e diz à mãe que ela faça o que quiser e mesmo
que o denuncie para Cláudio:

A rainha: – Que é preciso que eu faça?


Hamlet: – Nada do que vos disse neste instante. Que outra vez para o leito do rei balofo, vos
conduza e no rosto vos belisque vos chame de ratinha, e que dois beijos infectos com as mãos
grossas em vossas costas pronto vos induza a revelar-lhe que estou bom do juízo, mas que finjo
loucura (Shakespeare, 2010, p. 120).
179

Lacan (1958-59) retira daí que “o desejo da mãe recupera, então, para ele, o valor de
algo que não poderia de jeito nenhum ser dominado, cerrado, encerrado” (p. 304). E qual é a
mensagem do desejo da mãe? “Sou o que sou, não tem jeito, sou uma verdadeira genital [...]
luto não é comigo. Os assados do velório são servidos no dia seguinte, nas núpcias. Economia!
– A reflexão é de Hamlet. Ela é simplesmente uma boceta arreganhada. Sai um, chega outro. É
disso que se trata” (Lacan, 1958-59, p. 309).
O que Lacan parece indicar com essa passagem é que o filho não satura todo o desejo
materno, o que é da mulher ultrapassa a mãe. Já lendo essa elaboração com o proposto na década
de 70, o gozo feminino não pode ser saturado totalmente pelos filhos. Não é à toa que Lacan
(1972) parte da relação mãe e filha para introduzir a devastação86.
Na realidade, podemos encontrar uma proposta sobre a devastação já em Freud, sob
outra rubrica. Marcos (2011) indica que é o termo catástrofe que está em jogo. Freud
demonstrou que se nos meninos o complexo de castração encerra o Édipo, nas meninas, não.
Ele é seu ponto de partida, é somente ao se reconhecer castrada e também que a mãe o é, que a
menina direciona-se ao pai, localizando-se no triângulo edípico: “A transição para o objeto
paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à
catástrofe” (Freud, 1931a, p. 247).
A catástrofe é uma referência à relação pré-edipiana da menina com sua mãe. Marcos
(2011) aponta que, portanto, “para Freud, a devastação está intimamente ligada ao destino do
falo na menina e ao Penisneid” (p. 271). Desse modo, a leitura de Freud sobre a sexualidade
feminina permanece restrita ao campo simbólico, já que as consequências do penisneid – reação
contra a masturbação, ciúme, cicatriz narcísica e afrouxamento da relação da menina com a
mãe –, bem como as saídas possíveis da sexualidade feminina – inibição da sexualidade,
complexo de masculinidade e feminilidade normal, são todas derivadas da relação da menina
com o falo.

86
Resumidamente, a peça “Hamlet” termina assim: Após Hamlet assassinar Polônio, o rei passa a temê-lo e
providencia um modo de matá-lo, enviando-o à Inglaterra com dois amigos. Ao chegarem lá, eles entregariam
uma carta dizendo que o príncipe deveria ser executado. Contudo, Hamlet descobre o plano e troca a carta,
escrevendo que os portadores da carta é quem deveriam ser executados. Enquanto isso, Ofélia, sabendo da morte
do pai e após ser rejeitada por Hamlet, enlouquece. Quando seu irmão Laertes chega da França e a vê no estado
de loucura, vai ao rei cobrar explicações sobre a morte do pai e o enlouquecimento da irmã. Durante a conversa,
eles são interrompidos pela rainha que anuncia que Ofélia se afogou. Cláudio se aproveita da fúria de Laerte e
propõe que ele desafie Hamlet para um duelo. Laerte molha a ponta da espada no veneno para garantir a morte do
príncipe, e Cláudio, mesmo apostando na vitória de Laerte, leva uma taça de vinho envenenada para garantir a
morte do sobrinho. No combate, Hamlet é atingido pela espada de Laerte, mas também o fere com ela. A rainha,
ao brindar ao filho antes do combate, bebe o vinho envenenado e também morre. Antes de morrer com o veneno
da espada, Hamlet obriga Cláudio a beber o vinho e os quatro morrem. Após essas mortes, o castelo é invadido
por Fortimbras, rei da Noruega, e Horácio, amigo de Hamlet, lhe conta o ocorrido no castelo.
180

No “O aturdito”, Lacan (1972) destaca a relação do pré-Édipo com a devastação ao


indicar que é “pela castração ser nela [na menina] ponto de partida” (p. 465) que podemos
localizar a devastação. Brousse (2004) esclarece que a castração ser ponto de partida “tem como
consequência uma ausência de limite, e a questão do corpo não se deixa reduzir na clínica
totalmente à cicatriz que já é um nome fálico atribuído ao irrepresentável do feminino, ao que
do corpo se deixa dificilmente reabsorver pelo corpo simbólico” (p. 64).
O que Lacan (1972) lê é que a menina esperava da mãe mais substância, e Freud propõe
que as relações amorosas da futura mulher se pautarão sobre essa relação da menina com a mãe.
Não à toa, a devastação, que tem seu ponto de surgimento nessa relação, estende-se para a vida
amorosa das mulheres. Campos (2015) esclarece que

na devastação, a demanda de amor dirigida à mãe, que se expressa mediante o real fora do
simbólico, tem seu caráter potencialmente ilimitado. Portanto, mais tarde, quando a filha
alcançar sua condição de mulher, vai deslocar o objeto de amor e vai se dirigir ao seu parceiro
reimprimindo a mesma exigência infinita de amor que endereçava à mãe quando criança. Por
conseguinte, essa demanda infinita de amor, signo da estrutura do não-todo no feminino, vai
retornar de seu parceiro sobre a mulher em forma de devastação, como antes retornava (pp. 204-
205).

Brousse (2004) propõe a tese de que a devastação está presa no arrebatamento.


Arrebatamento é um termo que Lacan utiliza para comentar o texto de Marguerite Duras “O
arrebatamento de Lol. V. Stein”. Segundo Laurent (2012), arrebatamento é um termo que vem
da mística, introduzido no final do século XIII, que expressava extrair por força – raptar,
transportar. É uma palavra que designa uma forma de êxtase, na qual a alma é tomada por Deus.
Esse termo é retomado por Lacan como um nó lógico, “no qual, em um duplo movimento, o
arrebatamento é a expulsão do sujeito de seu corpo, ao mesmo tempo em que aquele que assiste
a essa expulsão é, ele mesmo, contaminado” (Laurent, 2010, p. 152). Lacan (1965/2003)87 usa
o termo, dizendo que a arrebatadora é a própria Duras, pois ao nos contar do arrebatamento de
Lol., somos nós quem nos sentimos arrebatados. Quem assiste também é contaminado.
Sobre a novela de Duras, Lacan (1965) descreve: “A cena de que o romance inteiro não
passa de uma rememoração é, propriamente, o arrebatamento de dois numa dança que os solda,
sob o olhar de Lol, terceira, como todo o baile, sofrendo aí o rapto de seu noivo por aquela que
só precisou aparecer subitamente” (p. 199). Na cena do baile, Lol vê seu noivo Michel sendo
raptado por outra mulher na pista de dança e não reage. Após ter sido roubada pela estranha,

87
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor,
que somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da
publicação original.
181

ela não “salva do arrebatamento” (Lacan, 1965, p. 203), mesmo casando-se e tendo filhos após
mudar de cidade.
Brousse (2004) toma esse termo apontando que se de um lado ele remete ao roubo ou
ao rapto, de outro lado, ele remete a um ser arrebatado e, nessa linha, está ligado ao gozo
feminino, já que “ser arrebatada é ser descompletada de seu corpo, com o efeito do gozo que
acompanha a deslocalização” (p. 65). É nesse ponto que a autora aproxima o arrebatamento da
devastação, já que nela o sujeito é despossuído de seu lugar. Se pegamos a peça Medeia, é disso
que se trata.
Jasão havia inscrito Medeia no campo da civilização e assim ela o consentiu, passando
de bruxa a mulher grega, mãe e esposa. Em nome do amor, ela abriu mão de seu lar e de sua
família, ao preço de ser inscrita como mulher de Jasão. Marcos (inédito) orienta que mesmo
quando consideramos que Jasão a insere no mundo grego, ela ainda aponta para um desmedido,
um excesso, pois ela é conhecida, por seus poderes mágicos, como uma bruxa bárbara. Além
disso, vale a ressalva de Lacan (1971) de que o semblante não consegue recobrir todo o real.
Lacan (1971) diz que a universal só faz surgir para a mulher a função fálica do modo
como sabemos que dela a mulher participa.

Mas ela só participa dela ao querer arrebatá-la do homem, ou então, meu Deus ao lhe impor o
serviço dela no caso, … ou pior, caberia dizer em que ela lhe devolvesse. Mas isso não
universaliza a mulher, nem que seja por isso, que é a raiz do não toda: por ela encerrar em si
um gozo diferente do gozo fálico, o gozo propriamente feminino, que não depende dele em
absoluto (p. 101, destaque do autor).

Medeia se inscreve na função fálica por meio de sua parceria com Jasão. Essa seria a
função arrebatadora do homem que, em seu caso, a teria retirado do mundo bárbaro. O que
ocorre é que se isso de algum modo contorna o gozo feminino, não o encerra como todo. O
gozo feminino, tecido no amor, demanda de Jasão mais, ainda. Enquanto Jasão lhe dá
substância, ela se localiza na função fálica, mas ao anunciar que se casará com Creusa, a
devastação se incide sobre o corpo de Medeia. Para Marcos (inédito), o casal demonstra a
diferença entre o gozo fálico e o gozo feminino.
Durante o diálogo de Medeia com Jasão, antes do cometimento do ato, ele oferta que as
crianças vivam com ele e possam ser criadas no castelo: “Obstino-me em propiciar aos filhos
irmãos, reunir estirpes, congregar as duas numa. Eis como prosperamos. Por que precisas tanto
de teus filhos?” (Eurípedes, 2010, p. 73). Nessa oferta de Jasão, está localizado o que norteia
seu desejo em relação à escolha de uma mulher: “ele quer desfrutar da casa real, quer ver seus
filhos irmãos dos reis que nascerão desta união. Eis o gozo fálico que transparece e regula o
182

desejo. É aí que a vingança de Medeia será selada” (Marcos, inédito, pp. 2-3). Contudo, nessa
vingança, outra lógica aparece, pois “o feminino não-todo parece aqui anular a lei simbólica e
subverter a lógica fálica” (Marcos, inédito, p. 3). O ato se inscreve no rastro do não-todo, já que
por meio dele, anulam-se homens e filhos.
Medeia encontra em Jasão o amor, mas como adverte Lacan (1972-73) em relação ao
amor: “Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações” (p. 12), pois nele há uma
demanda infinitizada que parte da falha do Outro, do S(Ⱥ). É essa direção que um homem pode
ser uma devastação para uma mulher, quando ele não consegue suprir essa falta do modo de
amar erotomaníaco. Esclarecemos que não é o amor em si que é devastador para a mulher, mas
sim o retorno dessa demanda de amor sobre o falasser feminino (Miller, 1998). Miller (2016)
separa a devastação do sintoma, pois enquanto o sintoma é um sofrimento limitado, a
devastação é uma depredação sem limites.

O que chamamos de devastar uma região? É quando nos entregamos a uma depredação que se
estende a tudo. Não no sentido pequeno; tudo bem completo. É uma depredação sem limites.
Isso que Lacan chama de ‘o todo fora do universo’, o todo que não se completa como um
universo fechado, limitado. É uma depredação, uma dor que não para, que não conhece limites
(Miller, 2016, p. 18).

A estrutura da devastação só pode ser encontrada na estrutura do infinito, por isso ela
está do lado do não-todo. Miller (1998) aponta que também um homem pode ser para uma
mulher um deslumbramento, outra tradução para arrebatamento. Ora, parece que é isso que
acontece com Medeia. Ela é arrebatada por Jasão e não limita as concessões que faz para ele,
desde que – essa é sua condição! – ele a faça sua mulher. No arrebatamento, trata-se de uma
condução a uma felicidade extrema e é nessa condição que podemos entender a ausência de
limites das concessões que uma mulher pode fazer a um homem.

Assim, o universal que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É
por isso mesmo que não são todas, isto é, não loucas-de-todo, mas antes conciliadoras, a ponto
de não haver limites às concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma,
de seus bens.
Sem que possa fazer nada quanto a suas fantasias, pelas quais é menos fácil responder (Lacan,
1975, p. 538, destaque do autor).

Essa ausência de limites que oferta a um homem retorna sobre seu ser de mulher na
devastação, orienta Miller (1998). A devastação, portanto, é uma consequência do não-todo.
Se a localizamos no corpo inane de Medeia, após perder seu objeto de amor, podemos
localizá-lo em Madeleine no não reconhecimento de si mesma, no qual se encontra após a
183

viagem de Gide com Marc. Nesse ponto, localizamos a devastação na sua face ligada ao falo,
na divisão feita por Brousse (2004), pois, o que a devasta é a ausência do significante que a
defina como “anjo”, já que ela nada sabe responder sobre seu ser de mulher. Brousse (2004)
adverte que “a zona da devastação é assim um lugar escolhido de vacilação dos semblantes” (p.
57). Parece-nos que em Jasmine, encontraríamos a devastação no mesmo ponto. Sem o marido
e os semblantes que ele lhe oferta, nada se sustenta.
O que temos em Medeia e Madeleine é que o ato as retira da devastação. Se de um lado
o ato é a última barreira contra a angústia, aqui temos o ato como um tratamento dado à
devastação. Vimos como após seus atos, Medeia e Madeleine renascem de outra maneira. Mas
como poderíamos pensar esse tratamento? Vamos seguir com o testemunho de Holk (2008).
Holk (2008), em seu livro que leva o título “Patu”, traz o testemunho de sua análise, no
qual alguns eixos giram em torno da sua devastação. Ela demonstra como a criação de um novo
significante, forjado a partir de uma interpretação dada por seu analista, dá a ela uma solução
para seu corpo devastado.
O testemunho de Holk inicia com sua mudança de analista, com a necessidade de que
este lhe fosse estranho, estivesse fora. É o significante estranho que marca o estabelecimento
da transferência. A análise começa com Holk (2008) “uma vez mais devastada pelo amor, no
começo era a angústia; não havia verbo, nem sujeito, nem predicado” (p. 107). Ela relata que
em sua casa, composta de muitas mulheres, a mãe havia construído a imagem de um pai herói.
Era comum que a mãe a produzisse, colocando os melhores vestidos para que isso agradasse o
olhar do pai. Produz-se, então, uma lembrança infantil durante a análise:

Aos 10 anos, sentada horas a fio sem uma palavra, deixa-se cair sem rede em um abismo
ilimitado e sem sentido ao lado da cama da mãe, dilacerada pela perda no parto de seu quinto
filho, o que seria o único menino. Identificada com ao bebê morto, a menina cai abismada num
desejo de desaparecer (Holk, 2008, p. 107).

Bessa (2012) diz que parece que a posição de gozo de Holk será orientada ora por ser
objeto caído, ora por ser bela. Esse bela trata-se do modo como a mãe vestia as filhas para fazer
a família feliz em torno do “papai-sabe-tudo” (Holk, 2008, p. 107), no qual se organizava essa
família cheia de mulheres. Seu primeiro amor, um primo, porta um traço paterno: o sobrenome.
Um amor cortês, no qual ela era o objeto idealizado, e em que a devastação se incide num
excesso de sexualização. O segundo amor era da cidade do pai e mesmo não sendo parente,
tinha o mesmo sobrenome. Após escapar da primeira devastação, acaba por transmitir ao novo
parceiro as coordenadas de seu gozo, de modo a novamente produzi-las, mas agora identificada
184

à fantasia perversão do parceiro, sendo seu objeto. “Mas a identificação petrificante ao objeto
da fantasia masculina e o gozo fálico não bastavam para recobrir o gozo feminino, que mais
uma vez se transformava em angústia” (Holk, 2008, p. 108).
Dessa posição, tem-se uma duplicidade: ou se encontrava como vítima do Outro,
adorando submeter-se a seu gosto, dando-lhe consistência, ou se encontrava como exilada do
mundo, parceira de sua solidão, caída num abismo. Madeleine também cai nesse abismo. Num
primeiro tempo, se figurava como a esposa angelical de Gide, dando ao Outro uma consistência
que diz de seu ser, depois, quando esse Outro lhe abandona, cai num abismo no qual ela mesma
não se reconhece. Holk (2008) sinaliza o modo como a mulher se desdobra: ou submetida ao
falo, como objeto a de seu parceiro, ou avassalada na solidão de seu gozo.
Numa primeira volta na análise, o S1 que ressurge é o “bela”, o bela que era diante do
olhar materno que a vestia, um significante advindo de um identificação fálica que dá um
contorno ao seu ser feminino.

Se o significante bela tomou força e importância foi justamente porque vinha recobrir o que
feio lhe parecia. Se por um lado, recobria o real da carne e, sob o significante fazia erigir A
mulher que se alojava toda no furo do Outro, resultando na erotomania histérica e sedução; por
outro lado, ao cair, identificava-se ao puro nada, devastada (Holk, 2008, p. 109, destaque da
autora).

Ela conta um sonho: “um cachorro defecando um patê é olhado por um jovem” (Holk,
2008, p. 110) e este é interpretado assim pelo analista: “esse patê é você” (p. 111). O patê é o
nome do gozo que ela encontrava na posição de objeto: “para se ter”, seja na vertente do ideal,
como bela, ou na vertente do dejeto, e dá a ele um sentido cômico: “bela como uma bela merda”
(Holk, 2008, p. 111). O patê ganha um deslizamento de sentido – patê (para se ter), pavê (para
ver), pacumê (para ser comida) e encontra seu limite no patu. Um significante novo que não
está incluído na língua materna, significante da falta do Outro – S(Ⱥ) – que traz em seu bojo
tanto a posição antiga, ‘para tudo’, como indica um lugar ‘pastout’, nãotoda, posição feminina.
Do não ser por não tê-lo, do patê ao patu, revela-se o real da estrutura feminina (Holk, 2008, p.
111).
Lacan (1968-69) pensa que é o ato analítico que coloca em marcha o inconsciente, e por
meio desse ato, um novo significante pode surgir, de modo que essa pode ser uma saída para a
devastação. A nomeação de seu gozo teve como efeito a promoção da extração do objeto que
velava o furo. Se quando se identifica ou ao objeto ideal ou ao objeto perversão do parceiro a
mulher satisfaz o gozo fálico, o gozo não-todo parece localizar-se na sua angústia, já que, diz
Bessa (2012), nenhum dos dois dá consistência ao seu ser de mulher. Interessante que isso nos
185

lembra a posição de Freud (1917; 1926) sobre a transformação da libido em angústia. Holk
(2008) traz mais um sonho que a desperta com um prazer indescritível, de pura satisfação sem
sentido, ela conta: “atravesso meu corpo de um buraco a outro, me mexendo entre as entranhas,
carne, sangue, bílis, excremento. Sou e estou no corpo. Esse corpo em pedaços é servido cru
em uma bandeja” (p. 114). A psicanalista diz que esse sonho aponta para a ruptura com os
semblantes, num encontro com o real. Bessa (2012) destaca que, nesse sonho, o encontro com
o real de das Ding se dá sem que ela se assole com a angústia.
Segundo Bessa (2012), esse testemunho de passe demonstra como a travessia do
processo analítico permite Holk assentir com a inconsistência do Outro, e o significante patu
emerge não na tentativa de fazer A mulher existir, mas de cifar o S(Ⱥ). Ela indica que esse e
outros testemunhos ajudam a esclarecer que a devastação está ligada ao gozo feminino e que a
sexualidade feminina se estrutura em torno de um vazio – A mulher não existe. Por isso a
devastação se dá, já que cada uma das mulheres está submetida à foraclusão. Ela afirma mais,
que a devastação é um efeito dessa foraclusão, já que ela é um retorno do impossível de dizer
A mulher, e conclui que:

O efeito de devastação da foraclusão d’A mulher acontece quando o sujeito não dispõe de um
semblante que tenha essa função de cifra. A solução, num processo analítico, é a produção de
um semblante que faça a função de suplência do S (Ⱥ), que não se confunda com o objeto a,
tampouco com o falo, embora na condição de se servir dele (Bessa, 2012, p. 150).

Parece que se na análise de Holk (2008), o tratamento da devastação vem do significante


patu, que cifra o gozo feminino e o modula não mais com angústia. No entanto, ele só se elabora
após a interpretação da analista. No caso de Madeleine e Medeia, temos, em um primeiro
momento, o contrário, o significante que modulava o ser feminino dando a elas uma sustentação
no campo da norma fálica cai e lhes resta a devastação.
Se num tratamento analítico a devastação alui diante da construção de um novo
significante, no caso de Madeleine e Medeia, é o ato que permite que a devastação ceda. Se no
instante do ato, o sujeito se apaga, depois, ele surge renovado (Lacan, 1967-68). Se sujeito é
sempre um significante, após o ato Medeia e Madeleine encontram novos semblantes que
tamponam o vazio que o gozo feminino implica. Como vimos no tópico anterior, o ato é uma
possibilidade do surgimento do feminino e ele ocorre quando deixam de operar os semblantes
que o sustentavam. Após o ato, a reconstrução de um novo semblante oferece sustentação ao
sujeito. Por isso ao dizer que a mulher é não-toda, não significa dizer que ela excluída da norma
fálica, pois o aparecimento da foraclusão d'A mulher se dá apenas num instante.
186

Algo deve ser reconstruído no campo dos semblantes. Trata-se de dizer que algo
transborda, por isso esse momento que o feminino aparece é esporádico. Após o ato, cada uma
de nossas personagens muda seu destino. Medeia vai encontrar-se com Egeu e dar-lhe filhos,
quem sabe encontrando neles a rolha (Lacan, 1972-73). Já Madeleine, pela primeira vez, passa
a dedicar-se mais a seus gostos, como aponta Hellebois. Na leitura dele, que é diferente do que
escreve Gide, ela passa e se dedicar mais às leituras que eram de seu gosto, parece que ela
encontra na literatura algo que substitui a função de Gide em sua vida. Nossa hipótese é que os
atos dessas mulheres as tiram da devastação, e mais que isso, mudam o rumo de seus destinos.
Além da devastação e da relação com os semblantes, também entendemos que tem
alguma coisa na relação da mulher com o ato que se relaciona com o supereu. O que nos chama
a atenção é como a resposta que Madeleine dá a Gide é reduzida a um simples “ter que fazer
alguma coisa”, de modo que buscamos investigar como esse imperativo relaciona-se com o
supereu.

4.4 O supereu feminino

O supereu é uma das três instâncias que compõem a segunda tópica freudiana do
aparelho psíquico, constituída pelo eu, isso e supereu. O eu é uma parte modificada do isso,
formada a partir do contato do aparelho psíquico com a realidade externa, o supereu é a última
instância a ser formada e é composto por partes conscientes e inconscientes (Freud, 1923b).
A constituição do supereu se dá pela internalização das leis e regras advindas do Outro,
provocando uma modificação no eu, e tem a função de reprimir o complexo de Édipo na mesma
medida que deve a ele sua existência. Essa instância caracteriza-se como um resíduo das
primitivas escolhas objetais do isso, mas também representa uma formação reativa contra essas
escolhas. Desse modo, se por um lado o supereu expressa: “Você deveria ser assim (como seu
pai)” (Freud, 1923b, p. 47, destaque do autor), por outro, também expressa proibição, indicando
que o sujeito não pode fazer tudo, algumas coisas são prerrogativas do pai. Freud (1923b) define
que

o [supereu] retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso é o complexo de Édipo
e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência do ensino religioso, da educação
escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do [supereu] sobre o [eu],
sob a forma da consciência (consciense) ou talvez do sentimento inconsciente de culpa (p. 47).
187

Para Freud (1923b), portanto, o supereu trata-se da internalização das regras,


funcionando como a consciência moral do sujeito. Ele é o representante do isso: "o que
pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado, mediante a
formação do ideal, no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores"
(Freud, 1923b, p. 49).
Como herdeiro do complexo de Édipo, o supereu declina de um modo diferente para o
homem e para a mulher, já que os complexos de Édipo e de castração funcionam de modo
diferente em cada um dos sexos. Na “Conferência 33”, Freud (1933[32]) diz que a inveja
feminina, ligada ao penisneid, tem como consequência o fato das mulheres terem menos senso
de justiça, serem mais débeis nos interesses sociais e terem menos capacidade de sublimar as
pulsões. Ainda, por não haver um motivo forte para que a mulher encerre o complexo de Édipo,
ele jamais seria destruído como o dos meninos, o que tem como consequência a formação de
um supereu menos tirano.
No “O mal-estar na civilização”, Freud (1930) é mais incisivo em relação à frouxidão
do supereu da mulher. Ele vinha, em seu texto, indicando como a separação da família é um
ritual importante na civilização, apesar dos esforços que fazem as famílias em manterem a
coesão interna, contrariando os interesses civilizatórios.

Depois são as mulheres que contrariam a corrente da civilização e exercem a sua influência
refreadora e retardadora, elas, que no início estabeleceram o fundamento da civilização através
das exigências do amor. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual; o
trabalho da cultura tornou-se cada vez mais assunto dos homens; coloca-lhes as tarefas sempre
mais difíceis, obriga-os a sublimações [pulsionais] de que as mulheres não são muito capazes
[. . . ]. Então a mulher, relegada a segundo plano pelas solicitações da cultura, adota uma atitude
hostil em relação a ela (Freud, 1930, p. 67).

Como apontou Miller (2012), a mulher é inimiga da civilização. O que Freud (1930)
está indicando é que o supereu feminino é mais arredio aos ideais civilizatórios. Ele não é tão
inexorável como o do homem. Porém, outros elementos da cultura fazem pressão sobre a
mulher, de modo a compensarem a falha do supereu.
Miller (2010) esclarece que em “O mal-estar na cultura”, Freud demonstra como o
supereu se alimenta da triebverzicht – renúncia pulsional, e que é somente em nome do amor
que se pode renunciar à satisfação da pulsão. O que ocorre é que Freud (1905b; 1915) demonstra
que a meta da pulsão é sempre a satisfação e ainda que por meio de satisfações substitutivas, a
pulsão encontra um modo de se satisfazer. De modo que o supereu engorda, usando o termo de
Miller (2010), com a renúncia pulsional. Goza-se nesse lugar da renúncia.
188

Como diz Freud, a renúncia às pulsões, ao gozo pulsional primário – tendo geleia na cozinha,
não vamos comê-la toda – se deve ao amor, porque se não, a mãe e o pai ficariam zangados. É
em nome do amor que se pode renunciar às pulsões. Renúncia apenas em certo nível, porque o
problema, como diz Freud, é que depois o sujeito vai gozar de renunciar: não só não vai comer
geleia como não vai comer mais nada (Miller, 2010, pp. 9-10).

O que Miller (2010) esclarece na passagem acima é que a renúncia ao gozo pulsional
desemboca na insatisfação do desejo e que isso só é possível pela via do amor. Ele parece se
referir também à passagem na qual Lacan (1962-63) profere que é somente o amor que permite
ao gozo condescender ao desejo.
Miller (2010) vai seguindo a proposta freudiana sobre a constituição do supereu. No
início, não há o supereu, mas uma dependência do sujeito em relação ao Outro, de modo que o
sujeito aceita renunciar à satisfação pulsional para não perder o amor. Nesse momento, tempos
apenas a moralidade exterior, de maneira que se pode comer a geleia desde que o Outro não
saiba. Alguns sujeitos mantêm-se presos nessa moralidade externa e quando Freud questiona o
supereu feminino

é porque considera que as mulheres, cuja vida erótica está constituída do lado do amor, se detêm
no nível de uma moralidade externa. Diz que as mulheres não têm supereu porque para elas o
mais importante é conservar o amor – a moralidade para elas sempre se estabelece em relação
com um Outro externo, cujo amor se trata de conservar. Elas se detêm nesse primeiro nível da
moralidade ‘não vista, não pega’, sem aceder à polícia interior que parece constituir o supereu.
Isso pode efetivamente dar conta da profunda inocência da mentira feminina: como o que está
em jogo é o valor do amor, a mentira é um instrumento perfeitamente operativo. Esse é o lugar
exato para colocar a frase de Freud sobre a ausência do supereu feminino (Miller, 2010, pp. 9-
10).

O que está em jogo em Freud é o supereu como instância proibidora internalizada, ou


seja, independente da moralidade externa. O que ocorre é que como herdeiro do complexo de
Édipo, o supereu feminino não pode constituir-se do mesmo modo que o do homem, o que torna
a moralidade feminina dependente do Outro. Trata-se do Outro do amor (Miller, 2010). É
interessante como tanto Medeia como Madeleine compreendiam que seus atos eram graves,
mas nem do lado de uma, nem da outra, o elemento da culpa aparece como uma marca. Para
elas, seus atos faziam sentido quando os parceiros as abandonam.
Contudo, Campos (2015) diz que “é um engodo considerar que não há um supereu nA
mulher. O que ocorre é que o supereu feminino se manifesta de maneira distinta do supereu da
consciência moral, em virtude do gozo ilimitado da mulher” (p. 203). Ao contrário da proposta
freudiana, não há nada de frágil no supereu feminino, mas ele opera de modo diferente que no
homem. Essa visão do supereu feminino é solidária à concepção de Lacan a respeito do supereu.
189

Inicialmente, Lacan assinala que o supereu é uma lei desprovida de sentido que só se sustenta
na linguagem. O curioso e instigante é que, desde o primeiro momento, Lacan realiza uma
elaboração radical e coerente sobre o supereu, dispensando parte da elaboração freudiana que
pauta o supereu nas relações de sentido, no que tange ao conceito moral advindo de influências
externas da figura paterna (Campos, 2015, p. 161).

O autor indica que a construção dessa noção na obra de Lacan não é reduzida ao campo
do sentido, isso se dá já que Lacan irá incluir o gozo na definição do supereu. Ainda, Campos
(2015) esclarece que não há uma definição unívoca desse termo, que vai passando por
alterações ao longo do ensino do psicanalista francês, mas que se conclui com o supereu como
imperativo de gozo.
Podemos compreender melhor a acepção de Lacan retornando a Freud (1930) que se
pergunta de que meio a cultura humana se vale para inibir a agressividade e se apoia no conceito
de supereu para responder. Ele explica que a agressividade humana é introjetada e se dirige
para o mesmo lugar de onde partiu: o eu. A agressividade “é acolhida por uma parte do eu que
se contrapõe a resto como supereu, e que, como ‘consciência’, dispõe a exercer contra o eu a
mesma severa agressividade que o eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos” (Freud, 1930,
p. 92). Os editores dessa edição das obras freudianas esclarecem que a palavra consciência,
utilizada na passagem citada, pode ser considerada como a consciência moral. Com ela, Freud
(1930) destaca não somente o caráter de consciência do supereu, mas também sua ferocidade
contra o eu. Além disso, ele aponta que as tensões entre o eu e o supereu geram um sentimento
de culpa com consequente necessidade de punição.
O autor segue buscando esclarecer as origens do sentimento de culpa. Primeiro, ele
advém da autoridade dos pais, e depois, do supereu. Nesse segundo estágio, a relação do sujeito
com o desejo complica-se, pois nada pode ser ocultado do supereu, já que ele é uma instância
internalizada que dá continuidade ao rigor da autoridade externa. O que ocorre é que “aí a
renúncia [pulsional] não ajuda o bastante, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do
supereu” (Freud, 1930, p. 98). Como consequência, a renúncia pulsional vai a cada momento
aumentando a severidade do supereu.
Daqui derivamos algumas consequências que farão Lacan não pensar o supereu
reduzido à função de dominação do gozo. Primeiro, quando Freud (1930) articula o supereu
com a agressividade voltada ao próprio sujeito, ele refere-se à pulsão de morte. Anos antes, em
“O eu e o isso”, Freud (1923b) deu três destinos à pulsão de morte: 1) fusão com componentes
erótico; 2) desvio para o mundo externo; e 3) trabalho interno de estorvo do eu. É neste último
190

que encontramos essa conjunção e, tomando a melancolia como paradigma, podemos entender
melhor como essa junção se dá, pois nela

descobrimos que o [supereu] excessivamente forte que conseguiu um ponto de apoio na


consciência dirige sua ira contra o [eu] com violência impiedosa, como se tivesse se apossado
de todo o sadismo disponível pela pessoa em apreço. [...] diríamos que o componente destrutivo
entrincheirou-se no [supereu] e voltou-se contra o [eu]. O que está influenciando agora o
[supereu], é, assim por dizer, uma cultura pura de [pulsão] de morte, e, de fato, com bastante
frequência obtém êxito em impulsionar o [eu] à morte, se aquele não afasta o seu tirano a tempo,
a tempo através da mudança para a mania (Freud, 1923b, pp. 65-66).

Assim, Freud aponta, tanto em “O eu e o isso” como em “O mal estar na civilização”, o


supereu não como uma instância que coloca uma simples renúncia pulsional, mas uma instância
exigente, imperativa. Lacan irá explorar essa exigência do supereu, mas tomando-o como um
imperativo de gozo.
Na última lição de “O Seminário, livro 18, de um discurso que não fosse semblante”,
Lacan (1971) refere-se aos mitos do Édipo e de Totem e Tabu e esclarece que no primeiro, o
pai é um pai castrado, enquanto no segundo, não. O pai primevo é aquele que escancara um
gozo original e deriva dele o supereu. Parece que aqui, ainda que não o faça de forma declarada,
Lacan se apoia também na afirmativa freudiana de que “o [supereu], segundo a nossa hipótese,
originou-se, em realidade, das experiências que levaram ao totemismo” (Freud, 1923b, p. 50).
Freud demonstra uma certa dualidade em relação ao supereu: primeiro, o toma como herdeiro
do complexo de Édipo, mas também o deriva da experiência totêmica.
Em “Totem e Tabu”, Freud (1913[12]/2012) visa compreender como o totemismo e a
exogamia surgiram. Ele toma como base os estudos de Darwin que tinham como hipótese um
estado social primevo, no qual um homem primitivo – o pai totêmico – vivia com todas as
mulheres do clã e expulsava dele os filhos machos jovens. Esse pai negava aos filhos o acesso
às mulheres, somente ele podia gozar. Somado à contribuição darwiniana, Freud (1913[12])
traz a indicação de W. Robert Smith, físico e filósofo, que indicou ser um costume encontrado
na religião dos semitas a refeição totêmica. Nela, o animal que representa o totem do clã é
sacrificado por todos os membros e é comido em uma ocasião solene. Interessante é que, se
matar o totem era proibido, ele poderia ser morto justificadamente se todos que compunham o
clã assumissem a responsabilidade. Ainda, após o sacrifício e ingestão do animal totêmico, ele
era pranteado e o lamento era obrigatório.
Freud (1913[12]) buscou compreender a relação entre a horda primeva e o banquete
totêmico. Ele retoma a história do pai primevo e conta que, certo dia, os irmãos que haviam
191

sido expulsos se unem, retornam ao clã, matam e devoram o pai. Nesse ato de devoração,
identificam-se com o pai morto e se apropriam de sua força. Porém, por serem dominados “em
relação ao pai, pelos mesmos sentimentos contraditórios que podemos discernir no conteúdo
do complexo paterno das nossas crianças e nossos neuróticos” (Freud, 1913[12], p. 219), os
irmãos são acometidos pelo sentimento de culpa.
Os irmãos, agora unidos após vencerem o pai, tornam-se, contudo, rivais em relação às
mulheres, e para viveram juntos, precisam instituir a proibição do incesto. É, portanto, a partir
da “consciência de culpa do filho” (Freud, 1913[12], p. 219) que os dois tabus fundamentais do
totemismo – exogamia e proibição de matar o animal que representa o totem – são erguidos. A
exceção a um desses tabus é a refeição totêmica. “A refeição totêmica, talvez a primeira festa
da humanidade, seria a repetição e a celebração deste ato memorável e criminoso, com o qual
teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais e a religião” (Freud,
1913[12], p. 217). Os irmãos excluem, portanto, uma repetição do parricídio a partir da
proibição de matar o totem. Isso tem um caráter religioso, já a proibição de matar um irmão
torna-se um fundamento social e demorará ainda um longo tempo até que o “Não matarás”
torne-se um fundamento que extrapola os limites do clã. O que ocorre é que o pai morto
fortalece a lei através da instituição do sentimento de culpa.
Parece que quando Freud (1923b) traz as origens do supereu derivadas da experiência
totêmica, o que ele indica é que o supereu aponta para uma crueldade. Mais que isso, também
podemos derivar que o supereu aponta para um ilimitado de gozo do pai primevo, e é daí que
Lacan deriva o supereu em 1971:

Qual é a essência do supereu? [. . .] Qual é a prescrição do supereu? Ela se origina nesse Pai
original mais do que mítico, nesse apelo como tal ao gozo puro, isto é, à não castração. Com
efeito, que diz esse pai no declínio do Édipo? Ele diz o que o supereu diz. Não é à toa que ainda
não o abordei até agora. O que o supereu diz é: Goza!
É essa ordem, a ordem impossível de satisfazer, e que está, como tal, na origem de tudo o que
se elabora sob o termo ‘consciência moral’, por mais paradoxal que isso possa lhes parecer. Para
compreender bem o jogo de sua definição, vocês precisam ler no Eclesiastes as seguintes
palavras: Goza com tudo que és, goza, diz o autor [. . .] deste espantoso texto, Goza, com a
mulher que amas. É o cúmulo do paradoxo, porque é justamente do amá-lo que vem o
obstáculo (Lacan, 1971, p. 166, destaque do autor).

Nessa passagem, Lacan (1971) destaca exatamente que a voz do supereu é uma voz que
força o sujeito a gozar, e indica como o amor é o obstáculo ao gozo. O psicanalista aponta como
esse imperativo não é possível de ser satisfeito, no entanto. Campos (2015) no lembra que nesse
momento do ensino de Lacan, o gozo é uma instância negativa, sem utilidade. É o que Lacan
(1972-73) afirma em “O seminário, livro 20, mais…ainda”: “o que é o gozo? Aqui ele se reduz
192

a ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada” (p. 11). Ele fala,
no parágrafo seguinte, que podemos dizer do direito ao gozo, mas que devemos lembrar que
direito não é dever e que é somente o supereu que força alguém a gozar. “O supereu é o
imperativo do gozo – Goza!” (Lacan, 1972-73, p. 11). Dessa forma, se o gozo se apresenta de
modo diferente para cada um dos lados de sexuação, o supereu feminino também apresentará
uma particularidade.
Laurent (2012) parte de uma passagem de “O aturdito” para nos indicar o que poderia
ser essa singularidade do supereu feminino. Trata-se da seguinte passagem, que seguiremos
com o esclarecimento de Laurent.

Mas, quando o não toda chega a dizer que não se reconhece naquele ali, que diz ele o que
encontra o que lhe ofereci? – a saber:
- o quadripóide da verdade e do semblante, do gozar e daquilo que, por um ‘mais de’, esquiva-
se dele, ao desmentir que se protege dele;
- e o bípode cuja distância mostra o ab-senso da relação;
- e ainda o tripé que se restabelece pela entrada do falo sublime que guia o homem para sua
verdadeira camada, por ele haver perdido o caminho.
“Tu me satisfizeste thomenzinho [petithomme]. Compreendeste, e isso é o que era preciso. Vai,
de aturdito não há tanto que não te volte depois de meio-di(t)a [l’après midit]. Graças à mão
que te responderá, por a chamares de Antígona, a mesma que pode dilacerar-te, por disso eu
esfinja meu nãotoda, saberás ao anoitecer igualar-te a Tirésias e, como ele, por teres bancado o
Outro adivinhar o que eu te disse”.
É essa a super-meutade [surmoitié] que não se supereu-iza [surmoite] tão facilmente quanto a
consciência universal.
Seus ditos só podem completar-se, refutar-se, inconsistir-se, indemonstrar-se e indecidir-se a
partir do que ex-siste das vias de seu dizer (Lacan, 1972, p. 469, destaques do autor).

Laurent (2012) esclarece que quem fala do ‘Tu me satisfizeste’ em diante é a Esfinge
grega, que é representada com atributos femininos, seios evidentes, asas e uma face feminina.
E ela começa colocando seu gozo em primeiro plano, é o que diz ao thomenzinho. Ela continua
dizendo que ele vai de aturdito, mas que volte ao meio-di(t)a. Aqui, há a junção de meio-dito
da verdade, já que ela só pode ser semi-dita e o meio dia do Édipo. Laurent (2012) esclarece
que o aturdito:

É toda a mobilização de cadeias de linguagem, do Outro. São as voltas do dito. As ‘voltas


(tours)’ frequentemente fazem metáfora em Lacan, para significar o toro no qual temos longos
enrolamentos em torno do vazio que encerra a linguagem. Esse vazio é aquele que a linguagem
não consegue dizer e que os buracos da demanda representam. Porque a linguagem cerne o vazio
de desejo (p. 170).

Já em relação ao meio dia, trata-se do enigma posto ao Édipo pelo Oráculo: o que é que
tem quatro pés pela manhã, dois ao meio dia e três à noite? A resposta é o homem, que na
193

infância anda de quatro apoios, quando adulto anda com dois e na velhice anda com uma
bengala, três apoios, portanto. Essa também é a referência ao início da passagem na qual Lacan
fala do quadripóide, do bípede e do tripé. No quadripóide, trata-se do discurso, que é um modo
de tratar o gozo pelo simbólico. Já o bípede, trata-se dos dois lados da relação sexual: lado
homem e lado mulher, que demonstra esse desencontro – o ab-senso trata-se de que não há
sentido que não comporte o equívoco. Já o tripé, trata-se da inclusão do falo como o que torna
o encontro sexual possível (Laurent, 2012).
Voltando à esfinge, Laurent (2012) esclarece que ela se satisfez, mas ao thomenzinho
só restou o fato dele ter compreendido, o gozo dele não estava em jogo. Sobre o esfinja, trata-
se do verbo esfingir que não existe, mas que em francês se diz j’em feins: eu finjo isso. Trataria
de algo do fingir, “aquilo que eu mascaro com a máscara da Esfinge. O quantificador do não-
toda. Em outras palavras, o enigma que o Édipo teve que enfrentar é: haveria um gozo para
além do Édipo, para além do valor fálico?” (Laurent, 2012, p. 120). É por isso que Lacan (1972)
refere-se ali a Tirésias.
De que se trata na referência a Antígona? Pergunta Laurent (2012) se não poderíamos
considerá-la como um resto da operação, e mesmo se não poderíamos considerar que nela se
encarna algo do gozo feminino. Aqui, um breve esclarecimento. Antígona é a personagem
principal da peça que leva seu nome e faz parte da trilogia tebana que contém as peças “Édipo
Rei”, “Édipo em Colono” e “Antígona”. A peça inicia com Antígona, filha de Édipo,
lamentando-se com a irmã por Creonte ter proibido a qualquer cidadão de fazer as honras
fúnebres a seu irmão Polinices. Após a descoberta de Édipo de seus crimes de incesto e
parricídio, ele abandona Tebas e vaga por Colono acompanhado por Antígona, enquanto seus
filhos Polinices e Eteócles brigam pelo trono de Tebas. Os irmãos haviam combinado de revezar
o trono, porém, Eteócles não passa o trono ao seu irmão quando era a vez dele reinar. Polinices
declara guerra a Tebas e os irmãos se matam no combate. Creonte, cunhado de Édipo, assume
o trono de Tebas e proíbe que seja dado a Polinices as honras fúnebres. Antígona não aceita as
ordens do rei e decide enterrar o corpo do irmão, tomando isso como um dever. Ela diz a ele:
“esse irmão é esse algo único, e é unicamente isso que motiva minha oposição a vossos editos”
(Sófocles, 2014)
Antígona mantém sua decisão de enterrar o corpo do irmão mesmo sabendo que a morte
era o castigo pelo crime de desobediência. Após ser pega dando ao irmão as honras fúnebres,
ela não busca negar seu ato e Creonte determina que ela seja enterrada viva em um túmulo
subterrâneo. Creonte recebe a visita de Tirésias, que lhe comunica que ele pagará com a morte
de um dos seus descendentes por ter negado o túmulo a um morto. Creonte conversa com o
194

Corifeu e este lhe diz que deve ele mesmo libertar Antígona e dar a Polinices um túmulo. Porém,
quando estava enterrando o corpo do morto, Creonte ouve o grito de seu filho Hémon vindo da
caverna onde se encontrava Antígona. Assustado com o grito, dirige-se ao local e percebe a
heroína enforcada e Hémon tentando sustentar o corpo da amada. Com ódio do pai, Hémon
enfia a espada em seu peito e morre. Voltando para o palácio, Creonte lamenta sua sorte e é
advertido que dentro do palácio havia mais um corpo. Eurídice, sua amada esposa, também se
matou após saber da trágica morte do filho (Sófocles, 2014b).
Voltando à voz da Esfinge, orienta Laurent (2012) que se trata da “voz do supereu
feminino, os ditos que a representam se originam do gozo dela, de seu Outro gozo que lhe é
próprio” (p. 121). O termo super-meutade é um jogo de palavras sobre a mulher, metade homem
e supereu, enquanto o supereu-iza é um jogo de palavras entre surmonter (superar) e avoir les
mains moites (ter as mãos úmidas). E toma a significação de que o homem deve dar conta de
enfrentar a voz das sereias. Bessa (2012) esclarece que Lacan adverte aqui que não se deve
ceder a essa voz, pois pode-se equiparar a Tirésias. “É esse o convite do supereu feminino ao
homem: converta-se em mulher” (Bessa, 2012, p. 93). Entendemos que esse é um convite ao
gozo sem limites, pois é isso que testemunha Tirésias.
Laurent (2012) explica que Lacan, com a super-meutade, supera uma certa oposição
levantada por Melaine Klein em torno do supereu materno e paterno, no qual ela dizia que o
paterno não era terrível assim, já que se tratava “da boa interdição paterna, especialmente num
mundo que tendia para a permissividade depois da Primeira Guerra Mundial” (Laurent, 2012,
p. 121). Por outro lado, o supereu materno era colocado como o mais terrível. Aqui, o
psicanalista esclarece que Lacan operou uma revolução ética ao indicar que o supereu é
perigoso não pela interdição, mas pelo empuxo ao gozo.
É essa a voz do supereu nessa passagem do “O aturdito”: é uma voz que propõe o
empuxo a um crime particular: igualar a Tirésias. Com isso, Laurent (2012) indica que o
supereu mais terrível é o supereu feminino, pois o gozo feminino não se localiza no campo do
falo. Não parece que é essa voz que guia Antígona e a coloca como irredutível em relação ao
seu ato? É por isso que ela é a mão que guia, mas também dilacera. Se quando guia (após Édipo
ficar cego, é Antígona que o guia pelas cidades) está do lado do falo, no dilaceramento, não,
ela está do outro lado, do lado não-todo. Sobre o supereu, se ele se trata do imperativo de gozo,
isso

significa que a exigência do sujeito feminino é uma exigência de gozo, desse gozo distinto do
fálico. As vias do dizer feminino se originam para além do penisneid. Elas partem do ‘Tu me
satisfizesse’. E [. . .] reencontraremos os dois eixos, as duas direções com as quais o sujeito
195

feminino está em relação no lado feminino da sexuação: de um lado, o ponto de inconsistência


no Outro, e, de outro, o gozo mais ou o mais-de-gozar, que estão ligados por essa pequena frase
(Laurent, 2012, p. 124).

Nessa passagem da voz do supereu, Lacan (1972) também destaca que ela, a voz do
supereu feminino, não está ligada à consciência universal, “ela é particular a cada um, ela se
enuncia em um registro particular a cada um” (p. 175), até porque do lado mundo, não é mesmo
possível se fazer uma universal.
Assim, podemos compreender como o imperativo de gozo que já é ligado ao supereu
lacaniano torna-se mais forte do lado mulher. Parece que podemos localizá-lo em Madeleine
na mais simples das respostas que ela dá a Gide em relação à sua razão de queimar as cartas:
ela tinha que fazer alguma coisa… qualquer coisa. Medeia também encontrar-se irredutível na
sua decisão de matar os filhos. O supereu feminino que não decorre da exceção é feroz e
aproxima-se de uma irrupção pulsional não ligada ao falo. Parece que é nesse campo também
que se localizaria o ato de Antígona, pois não há lei possível que a demova de sua ação.

4.5 Ainda sobre o ato e o feminino: Moritz, a falha do semblante e o ato bem-
sucedido.

Em 1974, Lacan (1974/2003)88 escreve um prefácio para a peça “O despertar da


primavera”, do dramaturgo alemão Frank Wedekind. Nele, são narrados os impasses que os
adolescentes encontram na puberdade em torno daquilo que é do campo sexual. Essa peça tem
como personagens principais: Melchior, Moritz, Wendla, Marta e Ilse, sendo que Lacan coloca
Moritz no campo feminino: “Moritz, em nosso drama, consegue excetuar-se, no entanto, e nisso
Melchior o qualifica de menina. E tem toda razão: a menina é apenas uma e quer continuar
assim, o que é jogado para escanteio no drama” (Lacan, 1974, p. 558). Interessa-nos aqui Moritz
e sua posição feminina. Esclarecemos que não consideramos que Moritz entraria na mesma
séria dos atos de Madeleine Gide e Medeia, contudo, acreditamos que ele nos ajuda a esclarecer
como um homem pode estar do lado mulher da sexuação. Além disso, seu ato comporta também
a dimensão de uma resposta à falha no campo do semblante diante da inexistência da relação
sexual.

88
A primeira data indica o ano de publicação original e a segunda data indica a edição consultada pelo autor,
que somente será pontuada na primeira citação no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data da
publicação original.
196

Na peça, Moritz demonstra um grande embaraço com o campo da sexualidade e também


com as questões escolares, pois ele não é um bom aluno e está correndo o risco de ser expulso
do Liceu, que tem um número reduzido de vagas para o próximo ano letivo. Dessa forma, sua
angústia se divide entre os afazeres escolares e os afazeres da puberdade. Numa conversa com
seu amigo Melchior, ele conta que se um dia vier a ter filhos, irá deixá-los dormir juntos, no
mesmo quarto. “Se possível, na mesma cama. De manhã e de noite, eles vão tirar e por as roupas
juntos. No calor, vão usar uma túnica de linho bem curta, com uma tira de couro para apertar a
cintura. Imagine como essas crianças vão crescer, assim calmas. Diferente de nós” (Wedekind,
1991, p. 5). O amigo lhe indaga sobre o problema das meninas ficarem grávidas e ele, assustado,
pergunta “Como assim?” (Wedekind , 1991, p. 5). A partir dessa indagação, Melchior tenta lhe
explicar que existem instintos nos homens, assim como nos animais. Ele busca, na natureza,
um modelo de explicação para a sexualidade humana.
Ao longo da peça, o embaraço de Moritz vai se acentuando, por um lado, se indagando
sobre a sexualidade, e por outro, sem dar conta das demandas escolares. Seu embaraço aparece
nos sonhos, e ele conta que obrigará os filhos a trabalharem até ficarem cansados, de modo que
possam dormir bastante e não sonhar. Ele pergunta a Melchior se ele já sentiu o instinto, e
depois da resposta afirmativa do amigo, conta que ele também: “Na hora, eu pensei que um raio
tinha me acertado” (Wedekind, 1991, p. 8). No sonho no qual sente o instinto, que ele também
nomeia como “a coisa”, ele sonha com pernas com meias azuis que vão subindo pela mesa do
professor. E diz: “Pensei que eu tinha uma doença sem cura, que ia apodrecer por dentro. Aí eu
comecei a anotar tudo no diário e isso foi me acalmando. Melchior, essas últimas semanas
foram um calvário para mim” (Wedekind, 1991, p. 8). Confrontando com o campo do gozo, ele
busca, via escrita, contorná-lo, fazer uma inscrição disso que o atravessa, mas seu mal-estar não
passa:

Não é uma brincadeira muito estranha essa que pregam na gente, Melchior? Todas essas coisas
acontecendo. E a gente ainda tem que agradecer. Eu nunca senti nada assim antes – esse tipo de
desejo, essa excitação insuportável. Por que não me deixaram passar por tudo isso dormindo e
acordar quando já tivesse acabado? Meus pais poderiam ter tido cem filhos melhores do que eu.
Mas eu estou aqui, o pior de todos. Sabe deus de onde eu vim ou como cheguei aqui. Agora é
assumir a responsabilidade por ter nascido. Já tentou descobrir isso, Melchior? (Wedekind,
1991, pp. 8-9).

Ele segue partilhando seu embaraço com o amigo e conta que não sabe como veio ao
mundo, e que lhe disseram que sua mãe o carregou no coração. Conta que aos cinco anos, ficava
perturbado quando via a carta da rainha de copas e que até aquele momento ainda não conseguia
falar com as meninas “sem ter pensamentos indecentes” (Wedekind, 1991, p. 10). Numa
197

tentativa de articular esse desconhecimento no campo do saber, ele lê toda a enciclopédia, mas
só encontra nela “Palavras, só palavras e mais palavras” (Wedekind , 1991, p. 10). O sexual
não se articula, para ele, por essa via.
Melchior, diferente de Moritz, era bom aluno e estudioso. Ele se propõe a explicar ao
amigo tudo o que sabia, que havia aprendido nos livros, nos desenhos, na natureza, e o convida
para uma conversa sobre o assunto. Moritz nega a possibilidade da conversa, mas pede que ele
lhe escreva um manual, de modo que ele possa lê-lo de surpresa, colocando-o em meio a uma
lição de escola. É quando Melchior o chama de menina: “Você parece uma menina, Moritz.
Mas se é assim que você quer… vai ser um exercício bem interessante” (Wedekind, 1991, p.
10). Melchior escreve para ele um manual chamado “O coito”, composto por vinte páginas em
forma de diálogo que deixa Moritz atordoado.

Desde que eu li o manual que você me escreveu, eu tenho essa sensação. Pênis e vagina. Talvez
o meu mundo gire em volta disso também. Eu abri o meu livro de Francês e dei com aquilo. Fui
e tranquei a porta. As linhas queimavam e as palavras pulavam pra cima e pra baixo. Eu acho
que li quase tudo com os olhos fechados. As suas explicações são estranhas – ao mesmo tempo
são familiares. O que mais me perturbou foi o que você disse sobre as meninas. A sensibilidade
delas tem a frescura de uma flor que brota na pedra. Ela ergue a taça (que nenhuma boca ainda
encostou) e toma o néctar, enquanto ele queima e brilha. O prazer do homem, comparado com
isso, é insosso e miserável (Wedekind, 1991, p. 25).

Moritz é invadido pelas explicações dadas por Melchior. As palavras pululam, os olhos,
é como se estivessem cerrados, a explicação é, ao mesmo tempo, estranha e familiar, parte do
que a ele é apresentado é compreensível, parte não. A leitura lhe toca o corpo e ele, assustado,
acredita que talvez seu mundo também se concentre na dualidade homem/mulher –
pênis/vagina.
Parece que, identificado com o lado homem, ele interroga o gozo feminino, em suas
palavras, “perturbador”. No entanto, a verdade é que Moritz encontra-se do lado mulher da
sexuação. O encontro do adolescente com a sexualidade não parece inscrito no campo dos
semblantes, como o faz Melchior, que tenta articular a sexualidade no campo do saber e mesmo
no campo do amor, quando tem relação sexual com a colega Wendla. Mesmo que mal-sucedida,
pois é assim para todos (Lacan, 1974), há, no encontro sexual com ela, uma tentativa de
articulação sobre o real sexual. É interessante como nesse encontro, Wendla chega mesmo a
representar a hora da verdade para Melchior. O adolescente, que tinha encontrado uma solução
para o não saber em torno da sexualidade através dos livros, se embaraça frente ao gozo
masoquista da amiga. Outro personagem, Hanschen, é mostrado ao longo da peça se
198

masturbando com uma reprodução da Vênus, sozinho goza com o falo, ele seduz a Vênus,
conversa com ela e se masturba, ele goza do falo, o gozo do idiota.
Moritz encontra-se do lado no qual os semblantes não se sustentam, ele não encontra
respostas no saber, já que lá só encontra palavras que não lhe dizem o que importa. Também
não encontra as respostas no campo do amor, pois mal consegue conversar com uma menina.
Parece que do mesmo modo de Holk (2008), o gozo feminino lhe atravessa sob a modalidade
de angústia. Os termos que usa para o atravessamento que a sexualidade impõe a seu corpo
demonstram isso: assustador, insuportável, perturbador. Isso é oposto ao lado fálico, que, como
aponta Laurent (2012), fala algo.
O ápice da peça, que tem como subtítulo “Uma tragédia na juventude”, conta com o
suicídio de Moritz. Moritz descobre que mesmo tendo tirado a nota necessária, não será
aprovado no ano letivo, pois não tem vaga para todos os alunos. Eis o monólogo que anuncia
seu ato:

É assim que tem que ser. Eu não me encaixo. Eles que enlouqueçam, eu não ligo mais. Vou
fechar a porta e pronto - liberdade. Chega de me empurrarem pra lá e pra cá. A pressão. Eu não
culpo os meus pais. Mas mesmo assim, eles deviam estar preparados pro pior. Eles têm idade
suficiente pra saber o que estão fazendo. Por que é que eu tenho que pagar pelo fato de todos os
lugares estarem ocupados? Se os bebês não fossem burros quando nascem, eu podia ter
escolhido ser uma outra pessoa. Engraçado que nascer seja assim, uma obra do acaso. É de dar
um tiro na cabeça! Pelo menos o tempo está cooperando. Ameaçou chuva o dia todo. Tudo
estava tão quieto hoje. Em paz. Cada coisa no seu lugar - o céu e a terra. Eu estou curioso. Deve
ser uma sensação diferente - como cair de uma cachoeira. Eu não vou voltar e dizer que eu não
fiz nada. É uma vergonha ter sido um homem e não ter conhecido aquilo que é mais humano.
“Foi ao Egito e não viu as pirâmides, senhor?” (Wedekind, 1991, p. 26).

Nessa cena, temos dois elementos: 1) O medo que o jovem tem de seus pais, por não ter
sido aprovado para o ano seguinte; e 2) Os impasses com o campo da sexualidade, que nos
interessa aqui. Ele se indaga sobre não ter conhecido aquilo que é mais humano: a sexualidade.
Seu próprio nascimento é colocado em xeque como mero acaso, e não como algo que aponte
para o campo sexual. Ao dizer que não se encaixa, ele demonstra como os semblantes
civilizatórios não sustentam sua posição no mundo. Por isso, Lacan (1974) aponta que no
drama, ele se excetua.
Antes de cometer o suicídio, Moritz é abordado por Ilse, uma jovem que largou a escola
para viver como prostituta. Ela conta a ele suas aventuras, onde dorme, quem são os homens
que a sustentam, os perigos que a vida de prostitua impõem e convida o amigo para ir até a sua
casa, mas ele recusa. Ele recusa o encontro com o Outro sexo. O embaraço com a sexualidade
toma a dimensão de uma angústia e impossível de dizer, e ele passa ao ato, suicidando-se.
199

Após o suicídio de Moritz, Melchior é condenando ao reformatório, pois encontram “O


coito” no armário do amigo e acreditam que o manual é o responsável pela degradação de
caráter que o levou ao cometimento de ato. No reformatório, ele descobre que Wendla morreu
em decorrência de um aborto, pois havia engravidado quando eles tiveram relação sexual. Ele
sente-se culpado e foge para o cemitério, onde se pergunta: “Por que é que ela tem que ser
punida por um crime que eu cometi?” (Wedekind, 1991, p. 57). Moritz surge na cena,
carregando a cabeça debaixo dos braços e convida o amigo para acompanhá-lo para o mundo
dos mortos. Nesse momento, surge o Homem mascarado, que expulsa Moritz e convida
Melchior a afastar-se do amigo morto. Melchior pergunta ao Homem mascarado se ele é seu
pai, e este lhe diz: “Numa hora dessas, seu pai está se consolando nos braços de sua mãe.”
(Wedekind, 1991, p. 60).
Moritz questiona ao Homem mascarado por que ele não apareceu para salvá-lo de seu
suicídio. O Homem mascarado responde que apareceu em seu último momento. Ele apareceu
sob a forma de Ilse, convidando-o para o encontro sexual, mas ele negou. Para Melchior, é o
Homem mascarado que sustenta a possibilidade da vida.
Lacan (1974) diz que o Homem mascarado é “aquele que constitui o fino do drama, e
não só pelo papel que Wedekind lhe reserva – o de salvar Melchior das garras de Moritz –, mas
porque Wedekind o dedica à sua ficção, tida por nome próprio” (p. 559). É ele quem abre a
porta do mundo para Melchior e representa um dos Nomes-do-Pai. O Homem mascarado é um
dos nomes possíveis do Pai: “Mas o Pai tem tantos e tantos que não há Um que lhe convenha,
a não ser o Nome do Nome do Nome. Não há nome que seja seu Nome-Próprio, a não ser o
Nome como ex-sistência” (Lacan, 1974, p. 559). O homem mascarado diz do lugar do Nome-
do-Pai como semblante, e como nada se sabe sobre esse personagem, ele bem poderia ser uma
mulher, já que ele se reduz à sua máscara, a seu semblante, e diz Lacan: “Somente a máscara
ex-sistiria no lugar de vazio em que coloco A mulher. No que não digo que não existam
mulheres” (Lacan, 1974, p. 559). Essa máscara, no entanto, não salvou Moritz, que já havia se
colocado como fora da possibilidade de vida, já que frente à angústia, para ele, somente restou
o ato.
Acreditamos que Moritz nos ajuda a articular alguns pontos que levantamos nesta tese.
Nossa investigação sobre o modo particular de apresentação do ato no lado mulher da sexuação
se conclui a partir de um eixo fundamental: o não-todo da posição feminina, que se articula
com o amor. O não-todo implica um supereu mais feroz que empurra o sujeito para o campo
do gozo sem limite, ou seja, para o campo daquilo que ultrapassa o falo. A decisão de Moritz
não é uma decisão que se dá no campo simbólico, mas que faz sua inscrição no real. No caso
200

dele, trata-se do único ato bem-sucedido, pois é somente desse modo que o sujeito se esvai
completamente da cena. Contudo, essa solução não produz o que vimos ser essencial para
Medeia e Madeleine, não permite o renascimento do sujeito. Não suscita um novo desejo.
O imperativo do supereu feminino pode levar ao ato na medida em que, e nesse ponto
há um acordo entre Freud e Lacan, a mulher é inimiga da civilização, de modo que pode, no
ato, perfurar os semblantes. O supereu feminino se articula com o gozo feminino, podendo levar
o ato à dimensão do ilimitado, colocando em cena a pulsão de morte.
É interessante como Moritz não encontra, no campo dos semblantes, algo que faça uma
borda para seu ser não-todo. Apesar das tentativas, o saber que lhe é fornecido por Melchior
não faz função. Talvez um encontro amoroso pudesse ter dado ao adolescente uma saída não
pela via do suicídio, mas isso foi recusado por ele. Conforme Holk (2008), o gozo feminino
pode ser transformado em angústia, e Freud (1917; 1926) indica que a libido represada também
pode se transformar em angústia, por isso a angústia freudiana é uma moeda de troca corrente,
podendo substituir qualquer outro afeto. Não à toa, encontramos Medeia e Madeleine tão
coléricas no momento de seus atos. Parece que a cólera assume um tempo intermediário entre
a angústia e o ato. É no ponto em que o semblante não recobre uma mulher que podemos
encontrar o essencial do feminino.
O feminino pode ser tomado como esse campo em que a mascarada não se sustenta, e
isso bem nos mostra Jasmine quando é ameaçada de ser abandonada, de não mais ser objeto
causa de desejo de seu marido. Ela, nesse momento, e somente nele, denuncia Hal, perdendo
junto com ele todos os seus bens: suas bolsas, seus óculos, seus cintos. Todos os semblantes
através dos quais tentava fazer existir A mulher. Ao mesmo tempo que no ato algo do feminino
pode ser articulado, também pela via do ato uma mulher pode sair da devastação amorosa.
O não-todo feminino faz com que a demanda de amor da mulher seja infinita, de modo
que quando não atendida, retorna sobre o seu ser de mulher devastando. Se para Holk (2008) a
formulação de um novo significante patu lhe permite lidar com a inexistência d’A mulher e
suspender sua devastação, Medeia e Madeleine não contam com o recurso analítico, é no ato
que elas saem da devastação que havia incidido sobre o ser de cada uma. Após seus atos, elas
mudam seus destinos.
Se Moritz passa ao ato, é por não conseguir se agarrar aos semblantes que lhe dariam
uma consistência, ainda que não-toda, ao seu ser de mulher. Medeia e Madeleine passam ao ato
após os semblantes nos quais haviam se agarrado terem sido perdidos, já que estavam
vinculados ao lugar de objeto a de seus parceiros.
201

Dessa forma, tomamos como eixo de articulação entre o ato e o feminino as


consequências que o não-todo tem na vida de uma mulher. O não-todo coloca como
consequência para algumas mulheres o amor constituído como uma demanda erotomaníaca
necessária, já que se dirige ao S(Ⱥ). A angústia em sua especificidade feminina, o amor, a
devastação, a queda dos semblantes, tudo isso articula-se ao não-todo. Por isso, não é à toa que
hoje, ao mesmo tempo que a psicanálise de orientação lacaniana denuncia a feminização do
mundo, ela também denuncia que a clínica não é a mesma, estando em jogo, na clínica, a
dimensão do ato, seja pela via das tentativas de suicídio, pelos cortes, pelos sintomas sem
endereçamento.
Não se tratou, em nossa proposta, de pensar uma prevalência do ato do lado mulher,
mas de compreender como ele se articula de um modo particular a todos que se alinham desse
lado na sexuação. Miller (2015b) define que “O ato feminino é arrancar o mais precioso, o
agalma. Da mesma forma, ela [Medeia] atinge o homem na sua hiância. Seu ato, de fato, não é
o cuidado; não é nutrir o homem, nem protegê-lo, é golpeá-lo; sua ameaça de sempre poder
fazer isto” (pp. 9-10). Desse modo, diferente do lado homem, no qual a virilidade e o medo da
castração estão presentes e podem fazê-lo se angustiar e passar ao ato, o lado mulher não
comporta o medo da perda dos bens, visando, ao contrário, o aniquilamento dos bens. Podemos
extrair, portanto, que o que particulariza o ato do lado mulher é sua relação com o não-todo
numa dimensão que se localiza num além do falo.
202

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da


feminilidade” (Freud, 1933[32], p. 114). Com essa frase, Freud demonstra como as mulheres
encarnam um enigma que há tempos coloca em xeque o saber que se possa produzir sobre elas.
Muita coisa se diz sobre a mulher e muitas vezes ela é difamada. “A gente dif…ama, a gente a
diz fama. O que de mais famoso, na história, restou das mulheres é, propriamente falando, o
que delas se pode dizer de infamante” (Lacan, 1972-73, p. 91, destaque do autor). No francês,
há uma homofonia entre on la dit femme (nós a dizemos mulher) e on a difamme (nos a
difamamos), e Lacan joga com isso.
No percurso de nossa tese, demonstramos como as perguntas em torno da mulher se dão
justamente porque o feminino trata-se do que não é todo recoberto pelo significante, de modo
que um saber sobre as mulheres será sempre um saber parcial. É um saber sobre uma mulher e
não sobre A mulher que é possível articular.
Em sua tentativa de desvendar o enigma sobre o desejo feminino, colocado a partir do
atendimento às pacientes histéricas, Freud o equivaleu ao desejo de pênis. Isso faz com que o
próprio Freud deixe escapar o que era central no caso de Dora: sua relação com a Sra. K. e a
importância da outra mulher para a constituição de sua feminilidade. Lacan, por sua vez, nos
indicou, já a partir da década de 50, que o falo não drena tudo de pulsional na mulher, de modo
que na saída edípica da uma menina, há sempre algo de extraviado. Desse modo, a equação falo
– bebê trazida por Freud como solução para a questão feminina não se aplica quando
trabalhamos na via aberta por Lacan. Não se trata, na leitura lacaniana, de desprezar a
importância que a maternidade pode ter para algumas mulheres, mas ela é mais uma costura em
relação ao vazio de significação imposto pela inexistência d’A mulher do que um desejo que
poderia ser universalizado para todas as mulheres.
Contudo, de modo algum podemos desprezar a teorização freudiana sobre a sexualidade
feminina, ao contrário, devemos compreendê-la como a forma através da qual Freud leu a
cultura de sua época. Extraímos dela consequências importantes para pensarmos a questão das
mulheres. É formidável como Freud coloca a composição da sexualidade feminina no campo
de um trabalhoso e elaborado processo psíquico, já que a mulher é, em suas palavras, fabricada
laboriosamente. Isso nos ensina que a sexualidade não é um dado da natureza, mas uma
construção psíquica. E que o lado mulher declina-se como mais trabalhoso que o lado homem,
já que o Édipo feminino coloca para a menina tarefas a mais que no caso dos meninos: elas
devem trocar de zona erógena e também estabelecer uma troca de objeto de amor, pois na
203

menina, encontramos o período pré-edípico marcado pela relação de amor da menina com a
mãe. Chamada por Freud de catástrofe, essa relação pode culminar na devastação quando nos
guiamos pelo ensino de Lacan (1972). Além disso também cabe à menina trocar de posição, da
atividade para a passividade.
Vimos ainda como Freud (1924b) não liga o feminino ao masoquismo, mas os coloca
como possuidores de uma mesma estrutura, já que ambos localizam um modo passivo de
satisfação pulsional. No entanto, para inscreverem-se assim, gastam uma cota de atividade.
Aqui, o fundador da psicanálise adianta a formulação de Lacan (1962-63; 1972) de que o
masoquismo feminino se trata de uma fantasia masculina, uma vez que nessa posição, a mulher
não colocaria o –φ em xeque.
Fazer semblante de objeto a, modo pelo qual cada mulher pode se inscrever na parceria
amorosa, segundo a orientação lacaniana, é diferente de uma posição masoquista, já que ‘fazer
semblante de’ é ‘mascarar-se com’, uma saída pela via das insígnias. É exatamente quando
Dora é convocada a ocupar esse lugar que ela sai de cena na relação com o Sr. K. e refugia-se
na sua histeria. Ela não consegue se colocar como objeto de desejo de um homem.
O semblante, noção chave nesta tese, mostra que ser homem ou mulher trata-se de se
fazer parecer homem ou mulher. Ele é um modo de recobrir o real. No caso da mulher, a
máscara é um semblante que visa recobrir o nada, o vazio de significação do feminino. A
mascarada, termo que Lacan (1958b) retira de Rivière, é onde a mulher vai rejeitar todos os
seus atributos femininos. Lendo essa proposição após a elaboração da teoria do semblante,
podemos interpretar que na máscara, há a tentativa de recobrir o vazio de significação do
feminino, de modo que o mais feminino em cada mulher seria encontrado quando os semblantes
não mais se sustentam.
Há, entre as teorias de Freud e Lacan, uma distinção importante, pois em Freud a mulher
é marcada pelo menos, pelo negativo quando pensada em relação ao falo. Em Lacan, vemos
que essa marca do menos não é operativa, já que por não ter o falo, a mulher não tem nada a
perder e, com isso, em relação ao gozo, à mulher nada falta (Lacan, 1962-63). Por isso, o amor
precisa aparecer como modo de vinculá-la ao desejo, pois é somente o amor que abre permissão
para que o gozo ceda ao desejo. Mesmo que afirmemos que Lacan coloca o falo como central
em um primeiro momento de sua teorização sobre a partilha entre os sexos, a mulher sempre
esteve em uma posição lateral em relação a ele. Isso pode ser visto já em “O Seminário, livro
5, as formações do inconsciente”, quando Lacan (1957-58) afirma que em sua saída edípica, a
mulher tem algo de extraviado.
204

É seguindo essas elaborações que Leguil (2016) pôde afirmar que a mulher se insere na
obra de Lacan pela via da loucura. Não se trata de uma psicose, mas de uma localização que
não pode ser toda colocada dentro da lógica fálica. Lacan (1975) explica que se as mulheres
são todas loucas, elas não são loucas de todo – uma parte está localizada no falo e outra está
para além dele. É daí que poderíamos pensar em uma loucura propriamente feminina. É
somente compreendendo o feminino nesse ponto não todo recoberto pelo falo que podemos
abordar nosso tema.
Nosso tema de pesquisa sobre o ato em sua particularidade quando tratamos do feminino
adveio de um pequeno fragmento clínico apresentado em nossa introdução. No entanto, é a
passagem, na qual Lacan (1958a) se refere ao ato de Madeleine Gide, que nos colocou a
trabalho: “Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser permanece
impenetrável, mas o único ato em que ela nos mostra claramente distinguir disto é o de uma
mulher, de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher” (p. 772, destaque nosso).
Entendemos que o próprio Lacan indica que até queimar as cartas, Madeleine estava presa num
modo de existência que se relacionava com Gide. Mascarada em uma figura angelical, nada
dizia de sua singularidade, de seu desejo ou de seu gozo. É somente no ato que o feminino de
Madeleine aparece, pois nele, os semblantes não se sustentam. Não é à toa que Gide não pôde,
antes disso, reconhecer nela a Medeia.
Se descartamos, numa leitura lacaniana, a possibilidade de existência de uma verdadeira
mulher, já que A mulher não existe, podemos, por outro lado, apostar que esse ponto de verdade
pode surgir num grito de surpresa ou de horror, como afirma Miller (2012). A verdade, assim
como a mulher, só pode ser meio-dita.
A partir de então, adentramos na discussão sobre o ato, mas tendo no horizonte dois
atos: o de Madeleine, que queima as cartas de amor que seu esposo André Gide lhe mandou
por anos, e o ato de Medeia de matar os filhos. Medeia se torna tão essencial como Madeleine,
pois Lacan (1958a) compara Gide com Jasão, marido de Medeia: “Pobre Jasão, que tendo
partido para a conquista do tosão de dourado da felicidade não reconhece Medeia” (p. 773).
Quando tomamos essas duas mulheres, compreendemos como as cartas de Madeleine e os
filhos de Medeia tinham uma dimensão fálica, sendo para elas bens preciosos.
Na teoria do ato proposta por Lacan (1967-68; 1969), encontramos algumas dimensões
que são essenciais para que de fato possamos compreender que houve um ato e não apenas uma
ação. São eles: a marcação significante, o Outro no horizonte, o desaparecimento do sujeito e
do Outro no momento de ato, o renascimento do sujeito após o ato e a sua falha, já que para
205

Lacan (1967-68) todo ato é falho. Também se destaca como apesar de possuir uma vertente de
dizer, o ato comporta uma dimensão de real.
O real é aquilo que está velado pelos semblantes, é por isso que quando ele irrompe por
meio do ato, ele desmascara que nem tudo pode ser recoberto pelo significante. A mulher tem
com o real uma aproximação. Segundo Miller (2012), as mulheres são amigas do real. A
aproximação da mulher com o campo do real pode ser expressa a partir do aforismo lacaniano
“A mulher não existe”, pois isso significa que não há um significante que diga o que é uma
mulher. Significa ainda que a mulher é não-toda recoberta pelo falo, essa é a descoberta
lacaniana sobre Ⱥ mulher.
Freud já havia indicado a importância da parceria amorosa para as mulheres, já que sua
saída frente à inveja do pênis era ter um filho. Seria somente direcionando-se a um homem que
a mulher poderia constituir a “saída normal” da feminilidade (Freud, 1933[32]). Lacan (1971-
72) também implica o amor no campo feminino, mas ele não se encontra vinculado à
maternidade. A parceria amorosa seria o que poderia localizar a mulher como centro, já que por
causa de seu gozo não todo circunscrito pelo falo, ela se localiza na ausência.
Contudo, por mais que a parceria amorosa localize a mulher em relação ao falo, ela não
dá conta de dizer tudo sobre o feminino, já que o modo de gozo não-todo mantém a mulher na
solidão (Lacan, 1972). O gozo feminino, diferente do fálico, é um gozo silencioso do qual a
mulher nada pode falar, se o “falo fala” (Laurent, 2012, p. 205), o gozo feminino não. Dele as
mulheres somente sabem que o experimentam. Nesse sentido, ele apresenta um
transbordamento em relação ao falo, de modo que pode ser vinculado ao ato.
Outro ponto importante que trabalhamos nesta tese é a especificidade da angústia para
as mulheres. Freud (1926) postula que a angústia tem três características fundamentais: um
caráter de desprazer, conta com atos de descarga e com a percepção desses atos. Ela é uma
reação a um estado de perigo. Se pelo lado homem a situação de perigo é pautada na angústia
de castração, pelo lado mulher, trata-se de outra coisa, o que está em jogo é o medo da perda
do objeto de amor. A angústia de castração não é operante para elas, a isso, soma-se que elas
não têm nada a perder, a não ser o amor de um homem. Além disso, dez anos antes, Freud
(1917) afirmou que a angústia pode levar às atitudes mais loucas. O que seria mais louco que
abrir mão do que lhe é mais precioso? É isso que Medeia e Madeleine fazem. Incluímos na série
dessas duas mulheres mais uma que foi nos apresentada por Leguil (2015; 2016). Trata-se de
Jasmine, personagem do cineasta Woody Allen, que após ser ameaçada de abandono pelo seu
marido Hal, o denuncia para a FBI e perde, junto com ele, todos os seus preciosos bens. Essas
três mulheres, para afetar os homens que as abandonaram, comentem um ato no qual também
206

perdem tudo. Afinal, o que haveria para perder ainda se elas já perderam o amor? É isto que
nos mostrou Freud, sem o amor, a mulher não tem mais nada perder.
Lacan (1962-63) também aponta isto: à mulher nada falta em relação ao gozo e a
angústia surge quando o objeto a aparece no lugar em que deveria faltar algo. Portanto, o
parceiro deve apontar que algo lhe falte para que a mulher possa fazer-se de objeto causa de
desejo. Quando Jasão, Gide e Hal não se apresentam faltantes, pois colocam Creusa, Marc e a
Lisette como objeto a, nada resta às suas mulheres senão o ato como modo de aplacar a angústia
causada pelo medo da perda do amor. Temos aqui nossa primeira particularidade no encontro
entre o ato e o feminino: do lado mulher, é a angústia surgida quando há a possibilidade da
perda do objeto de amor que pode levar a um ato como modo de aplacar a angústia advinda
dessa situação.
Nossa segunda particularidade relaciona-se com o conceito de semblante. As três
mulheres que colocamos em cena abrem mão dos semblantes que utilizavam para se fazerem
mulheres quando comentem seus atos. Jasmine, a socialite, era mulher usando bolsas, vestidos
e sapatos de grife, porém, ao denunciar Hal ao FBI, após constatar que ele não mais a amava,
ela perde tudo juntamente com ele. O mesmo acontece com Madeleine, que perde seu lugar de
guardiã do tesouro do marido quando percebe que Gide amava Marc. Já Medeia abre mão de
seus amados filhos quando comete seu ato.
Para Leguil (2016), é somente no ato que o feminino se revela, e fizemos dessa
proposição da psicanalista um de nossos operadores teóricos. Essa afirmativa se justifica, pois
Lacan (1971) explicita que por mais que exista o semblante, também existe o real que, às vezes,
irrompe por meio de um ato. Os semblantes, no lado mulher, são formas de recobrir o vazio de
significação do feminino, por isso é somente em sua queda que podemos encontrar o feminino,
sempre de maneira esporádica.
Há mais um conceito que se torna essencial nesta pesquisa: a devastação. É nela que
podemos localizar mais uma particularidade do ato no lado mulher da sexuação. Outro nome
do amor, como diz Miller (1998; 2003), a devastação retorna sobre o falasser feminino, já que
a demanda de amor feminina se direciona ao S(Ⱥ). Por não haver Outro do Outro, a demanda
pode tornar-se infinita. Por isso que Lacan (1972-73) diz que quando se vê o amor, logo depois
veem as devastações. A devastação parte da relação entre mãe e filha e se estende à vida
amorosa. Freud (1931a) já sinalizara que o marido, na verdade, é um substituto da relação da
menina com a mãe, pois o pré-Édipo deixa marcas indeléveis no psiquismo feminino. Nesta
discussão, contamos com o testemunho de passe de Holk (2008), que demonstra como saiu da
depredação causada pela devastação a partir de um novo significante – patu – fundado na
207

análise. Medeia e Madeleine não, elas somente saem da devastação através de um ato, pois foi
dessa ferramenta que elas puderam se servir para inscreverem um novo significante.
Um dos elementos que caracterizam um ato é que, após ele, o sujeito não é mais o
mesmo, ele ressurge renovado. O que percebemos é que Madeleine e Medeia não são mais as
mesmas após seus atos. A primeira, após queimar as cartas, passou a cuidar mais de seus gostos,
na leitura de Schlumberger, já na leitura do marido, ela se tornou mais distante. Independente
da posição que se escolha acreditar, é claro que, após o ato, ela não é mais a mesma, não se
localiza mais na mesma posição em relação a Gide. Já Medeia, que inicia a peça devastada,
após o ato, foge de Corinto e vai encontrar Egeu. Para ambas, o ato foi a solução encontrada.
Esclarecemos que nem todo ato tem essa dimensão de violência, mas, para elas, que nos guiam
nesta tese, foi o modo como ele operou. Nesse sentido, apostamos que o ato pode ser um dos
modos possíveis de uma mulher sair da devastação amorosa.
Consideramos, por último, nesta tese, o supereu. Essa instância psíquica declina de
modo particular para o lado feminino e encontramos também uma relação dela com o ato. Ao
contrário do supereu freudiano que era um regulador moral, o supereu lacaniano é um empuxo
ao gozo, o que se radicaliza do lado mulher, pois seu gozo é não-todo. É por isso que a resposta
de Madeleine pode ser tão simples: ela cometeu o ato porque tinha que fazer alguma coisa, nada
mais ela pôde dizer. Trata-se aí do transbordamento de um gozo não-todo localizado no falo
que perde seu confim quando o amor não faz sua função de suplência. Impressiona também
como nada demove Medeia. Para ela, o ato é imperioso, seu lamento ante a perda dos filhos,
sua tristeza em relação aos garotos não faz função de barrar o ato se Jasão não mais se faz
presente. Do mesmo modo, Moritz deixa claro como o gozo feminino transborda, já que ele
não se ancora em nenhum semblante, o que o lança no ato.
Concluímos apostando que quatro eixos nos indicam modos particulares do ato quando
ele aparece no lado mulher da sexuação: 1) a angústia feminina surgida diante do medo da perda
do amor; 2) o modo de revelação do feminino no momento de um ato que rompe com os
semblantes que fariam suplência à foraclusão d’A mulher; 3) o ato como uma possibilidade de
saída de uma devastação amorosa; e 4) o supereu feminino. Esses elementos apontam para um
ponto comum: a estrutura do não-todo, que tem como consequência um gozo para além do falo
que necessita do amor para fazer borda. Se do lado homem o que está em jogo é a angústia de
castração, que o faz se defender com os semblantes, acreditamos que seus atos, portanto, se
articulariam mais a partir da lógica em torno do ter, como um modo de se defender da perda.
Já do lado mulher, o ato joga com a aniquilação dos bens, não limitado ao falo. Foram estes
pontos que pudemos extrair a partir dos atos de Madeleine Gide e Medeia, mas também de uma
208

personagem mais contemporânea que nos auxiliou em nossa conclusão, a socialite Jasmine, de
Blue Jasmine.
209

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