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E T EJobim
O RLopes
IA
Resumo
A origem da primeira tópica a partir dos textos freudianos da década de 1890 até os textos
de Os artigos sobre metapsicologia. A ligação indissociável entre o inconsciente da primeira
tópica e o processo primário. Descrições por Freud do pré-consciente recalcado, do incons-
ciente originário e o do inconsciente recalcado enquanto desdobramentos da primeira tópica.
A localização da linguagem na primeira tópica. A importância da negação e da temporalidade
para a constituição da linguagem. Freud e a formulação da segunda tópica, e o Id como her-
deiro radical do inconsciente da primeira tópica. Descrições por Freud de um Id originário e
um Id recalcado. Localização e problematização da linguagem na segunda tópica. A proposta
de Lacan da essência do Id como o que não é Eu e é todo o resto da estrutura gramatical.
Problematização da noção de estrutura. A crítica de Green ao inconsciente estruturado como
linguagem. Propostas sobre a localização da linguagem na segunda tópica. O Id localizado no
Real do nó borromeano.
Mais quatro anos se passam para que os Mesmo sem ter lido todo o artigo, é fá-
termos “inconsciente” e ‘consciente/pré- cil deduzir que as características do processo
consciente” configurassem dois sistemas e secundário são o oposto das do processo pri-
seu funcionamento fosse descrito por Freud mário. A descrição dos sistemas e seus res-
na seção E do capítulo VII de A interpretação pectivos processos ficou clara e objetiva.
dos sonhos (1900). Então, em paralelo com os Só que as descrições teóricas de Freud têm
sistemas inconsciente e consciente/pré-cons- por base a clínica. Ao início de O inconscien-
ciente, foram descritas as características do te reiterara sua oposição aos que se baseavam
funcionamento de cada um, sob a rubrica de apenas na teoria – os filósofos. E as observa-
processos primário e secundário. ções clínicas não se encaixavam tão bem na
Quinze anos depois, no texto O incons- descrição didática dos dois sistemas e seus
ciente (1915), dos Artigos sobre a metapsi- respectivos processos. Há certa ambiguida-
cologia (1915), Freud sintetizará de modo de de Freud em O inconsciente, onde muitas
muito mais claro e didático o funcionamen- vezes se refere ao pré-consciente e o descre-
to do inconsciente pelo processo primário e ve sozinho como “sistema pré-consciente”.
do consciente/pré-consciente pelo processo Mas é no capítulo VI – A comunicação entre
secundário. No capítulo V de O inconscien- os dois sistemas – que o apreço de Freud à
te – As características especiais do sistema Ics verdade o obriga ao relato de que os dois sis-
– de modo direto e sintético – é descrito o temas e os dois processos não se superpõem
funcionamento do sistema inconsciente pelo de modo exato.
processo primário.
Entre os derivados do inconsciente, impulsos
O núcleo do Ics consiste de representantes instintuais,2,3 do tipo que descrevemos, exis-
pulsionais que querem descarregar seu in- tem alguns que unem em si características do
vestimento, de impulsos de desejo, portanto. tipo oposto. Por um lado, são altamente orga-
Esses impulsos pulsionais são coordenados nizados, livres da autocontradição, tendo fei-
entre si, coexistem sem influência mútua, to uso de cada aquisição do sistema conscien-
não se contradizem uns aos outros. [...] Nesse te e dificilmente se distinguiriam, em nosso
sistema não há negação, não há dúvida nem julgamento, das formações deste sistema. Por
graus de certeza. Tudo isso é trazido apenas outro lado, são inconscientes e incapazes de
pelo trabalho da censura entre Ics e Pcs. A ne- se tornarem conscientes. Ou seja, qualitati-
gação é um substituto do recalque em nível vamente eles pertencem ao sistema pré-cons-
mais alto. No Ics existem apenas conteúdos
mais ou menos fortemente investidos. [...] Os
processos do sistema Ics são atemporais, isto
é, não são ordenados temporalmente, não são
alterados pela passagem do tempo, não têm 2. Vb (Vortbewusstsein) ist die dritte Umschrieft, an Wort-
relação nenhuma com o tempo. A referência vorstellungen gebunden, unseren offiziellen Ich entsprechend.
(Freud, s.d.).
ao tempo também se acha ligada ao trabalho 3. No original “Triebregungen”. A tradução literal seria “im-
do sistema Cs. Vamos resumir: ausência de pulsos pulsionais”.
O que Freud aqui descreveu, logo após Quando investigarmos mais detidamente,
ter tão bem separado os dois sistemas e os em outro lugar, as condições para o tornar-se
dois processos, é a existência no pré-cons- consciente, poderemos solucionar uma parte
ciente de formações do processo secundário das dificuldades que aqui surgem.
que se tornaram tão recalcadas quanto as do
sistema inconsciente e do processo primário. As edições consultadas colocam um aste-
Desse modo, a descrição metapsicológica risco na expressão “em outro lugar” remeten-
freudiana – topográfica, dinâmica e econô- do a uma nota de rodapé. Nela informam que
mica – torna-se mais complicada. Há uma provavelmente é uma referência de Freud a
força permanente que mantém inconscien- algum dos Artigos sobre a metapsicologia que
te uma parte do pré-consciente. Um pouco nunca foi escrito. Ou até poderia ter sido, em
mais adiante no mesmo texto, com mais de- parte ou no todo, mas teria sido destruído
talhes, há o reforço quanto à ideia de recal- por Freud, como foi provado pela descober-
que ou censura de parte do pré-consciente. ta do rascunho, e uma parte razoavelmente
completa de Neuroses de transferência: uma
Uma parte enorme desse pré-consciente se síntese.4
origina do inconsciente, tem o caráter dos Se há um pré-consciente recalcado (pode-
derivados deste e submete-se a uma censura se utilizar outro termo, como “suprimido”),
antes de poder se tornar consciente. Uma ou- dois parágrafos adiante da citação acima,
tra parte do Pcs é capaz de consciência, sem ocorre o reforço teórico clínico de que há
censura. Aqui temos uma contradição com um tanto de processo secundário que sofreu
uma hipótese anterior. Na abordagem da re- um recalque posterior, mas agora retornou
pressão, vimo-nos obrigados a situar entre os a um estado tão incognoscível quanto o in-
sistemas Ics e Pcs a censura decisiva no tor- consciente. Embaralhando ainda mais a se-
nar-se consciente. Agora nos parece plausível paração do sistema inconsciente e do siste-
uma censura entre Pcs e Cs. Mas convém não ma consciente/pré-consciente, ainda na con-
enxergar nessa complicação uma dificuldade, tinuação na continuação do mesmo artigo,
e supor, isto sim, que a cada passagem de um Freud estabelece até mesmo a dúvida de que,
sistema para o seguinte e mais elevado, ou se além da constituição de um pré-conscien-
seja, a cada progresso para um estágio mais
elevado de organização psíquica, correspon-
de uma nova censura. No entanto, com isso é 4. FREUD, S. Neuroses de transferência: uma síntese (ma-
eliminada a hipótese de uma contínua reno- nuscrito recém-descoberto). Rio de Janeiro, RJ: Imago,
vação dos registros. (Freud, [1915] 1978, p. 1987. Texto não publicado por Freud, integrante da série
de artigos metapsicológicos que ele não chegou a publicar
191-192; [1915] 2010, p. 133, tradução nossa, integralmente, conforme seu plano inicial. O manuscrito foi
cotejada com o texto original). localizado junto à correspondência a Ferenczi.
te recalcado, haveria até mesmo uma parte não coincide com o tornar-se consciente,
do inconsciente, que poderíamos denominar e apenas fornece a possibilidade para isso,
de originário e outra que se configurou como ou seja, que não caracteriza nenhum outro
pré-consciente e processo secundário, tendo sistema senão o Pcs. (Freud, [1915] 1978,
pelo recalque retornado ao inconsciente, que p. 201-202; [1915] 2010. p. 146-148, negrito
poderia ser denominada de inconsciente re- nosso).
calcado.
Embora mais tarde outras trilhas tenham
O Ics é rechaçado pela censura na fronteira sido acrescentadas, Freud seguiu todas aque-
do Pcs, mas derivados do Ics podem contor- las abertas ao final dos anos 1880 e na década
nar essa censura, alcançar um alto grau de de 1890. A representação de palavra e sua re-
organização e atingir uma certa intensidade lação com o pré-consciente seguem direto da
de investimento no Pcs. Quando, entretanto, Carta 52 para o artigo O inconsciente. Só que
essa intensidade é excedida e eles tentam for- nesse artigo são também estudadas as altera-
çar-se à consciência, são reconhecidos como ções da linguagem em pacientes esquizofrê-
derivados do Ics e são reprimidos de novo nicos, ocorrência além de qualquer controle
na nova fronteira da censura, entre o Pcs e o dos pacientes. Mais do que isso, é usual que
Cs. Assim, a primeira censura funciona para estes pacientes sequer percebam a existência
o Ics mesmo; a última, para os derivados Ics dessas alterações e que seu discurso pode es-
dele. Podemos supor que a censura se adian- tar até mesmo sendo incompreensível para
tou um tanto no curso do desenvolvimen- outras pessoas.
to individual. (Freud, [1915] 1978, p. 193; E as pessoas comuns automaticamente
[1915] 2010, p. 135, tradução nossa cotejada se expressam em seu idioma. Sem terem de
com o texto original, negrito nosso). conscientemente pensar quais palavras serão
utilizadas e qual sua disposição através das
Para o capítulo VII de O inconsciente – A regras gramaticais ou sintáticas. A não ser
avaliação do inconsciente (em outra tradu- quando inconsciente e espontaneamente al-
ção – A identificação do inconsciente), Freud teradas pela psicopatologia da vida cotidia-
descreve as características do discurso de na.
pacientes esquizofrênicos. A partir da qual Desde a carta de 1896 ao artigo de 1915,
estabelece a diferença entre representação de há a conexão entre o pré-consciente e a re-
palavra [Wortvorstellung] e representação de presentação de palavra. Mas como seria que
coisa [Sachvorstellung]. a sucessão dessas representações constituiria
uma linguagem? Estaria de acordo com o
Acreditamos saber agora como uma represen- que rege o inconsciente na primeira tópica:
tação consciente se distingue de uma incons- o processo primário?
ciente. [...] a representação consciente abran-
ge a representação da coisa mais a da palavra Linguagem: tempo e negação
correspondente, e a inconsciente é apenas a A negação, tema de um denso e breve artigo
representação da coisa. O sistema Ics contém de Freud ([1925] 1978), associa-se à questão
os investimentos de coisas dos objetos, os pri- do tempo. Ou melhor, da vivência humana
meiros investimentos objetais propriamente do tempo: a temporalidade. A temporalida-
ditos; o sistema Pcs surge quando essa repre- de torna possível a linguagem. Tanto a ver-
sentação da coisa é sobreinvestida mediante bal como todas as outras linguagens: músi-
a ligação com as representações verbais que ca, dança, mímica, artes plásticas. Contudo,
lhe correspondem. [...] Compreendemos que conforme seu título, o artigo vai além da
a ligação com representações verbais ainda temporalidade. Por esse motivo, o texto de
Freud sobre a negação foi extensamente uti- percorrer, atravessar. Bem, leva-se algum
lizado por Lacan. Apresentaremos uma ou- tempo para percorrer ou atravessar o que
tra interpretação, utilizando algumas pontes quer que seja.
comuns. Tomemos, por exemplo, as duas formas
A linguagem humana pode ter tido sua de linguagem que parecem ser as principais
origem na música. Tese defendida por Niet- e mais antigas, desde que quanto se saiba da
zsche. Ou o verbal pode ser a origem de todas moradia humana na Terra. Realizadas por
as linguagens, tese de Hegel. Independente- dois prodígios da morfologia dos seres hu-
mente de essa discussão sobre o originário manos: a laringe e a mão. Desta última colo-
ser o ovo ou a galinha, tempo e negação são camos em primeiro plano a música, por se-
essenciais a qualquer linguagem. rem as flautas pré-históricas, conhecidas até
Discurso, música, dança e outras lingua- o presente, muito numerosas e mais antigas
gens se constituem por sequências ao longo que as pinturas ou esculturas das cavernas.
do tempo. Sequências que podem ser repre- Na linguagem verbal, há a separação, pela
sentadas por um número finito de compo- temporalidade, entre palavras e seus conjun-
nentes, que se recombinam infinitamente. tos maiores ou menores. Palavras também
Ao contrário dos sons e gestos dos demais elas mesmas construídas a partir de conjun-
seres vivos, quando os têm, as formas de co- tos de sons em variação infinita. Palavras e
municação entre os da sua espécie ou com sílabas hoje representadas na linguagem al-
o meio ambiente são inatas. Elas podem ser fabética, a mais simples e universal, por vír-
aperfeiçoadas, mas novas combinações são gula, ponto, parágrafo, espaços maiores entre
raras ou impossíveis. Nesses seres vivos te- parágrafos e outras convenções gráficas para
mos o domínio do instinto ao invés da pul- marcar o tempo na escrita e na leitura.
são. Na música instrumental, uma sequência
Nas linguagens humanas a combinatória é de sons de intensidade e administração di-
infinita. Possuem como ponto-chave o tem- versas, podendo ir até intervalos variáveis
po, ou melhor, a temporalidade, a vivência de silêncio. Sons também representados por
humana do tempo. Palavras, sons, gestos que pautas musicais, convenções gráficas para re-
se seguem em contínua e infinita variedade, presentar a sequência dos sons ao longo do
separados e recombinados por marcas de tempo. Não houvesse a combinatória e a se-
temporalidade. Compõe-se de uma sucessão quência dada pela temporalidade, teríamos
de percepções corporais, criando imagens e apenas um uníssono berro ou um grande
associações, conscientes e inconscientes. estrondo.
Pode ser questionado que há linguagens Porém, percorrer ou atravessar algo acaba
formais: matemática, lógica, jogos de xadrez por alcançar seu término. Origem existencial
e outras. Aí não existe o tempo. De fato, não do sentimento do tempo, a percepção da fi-
como um fator inerente a essas linguagens, nitude e do limite, a presença do Ser-para-
mas sua representação e compreensão para a morte (forma máxima de castração, esquele-
mente humana se dá por representações dis- to vestido de negro com uma foice).
postas em sucessões de símbolos. Psicologi- Contudo, na música tudo pode ser visto
camente necessitam da temporalidade. como afirmação (Bejahung), palavra utiliza-
Se falarmos de sucessão, falamos de tem- da duas vezes por Freud ([1925] 1978) no ar-
po, sem o qual nenhuma linguagem humana tigo A negação. O limite da música é o térmi-
pode existir. Se privilegiarmos a fala, com ou no da peça musical. Mas a linguagem verbal
sem suas representações gráficas ou pelo res- pode por si mesma negar seu próprio con-
to do corpo, há a construção de um discurso, teúdo, no todo ou em parte. O que na comu-
termo que se originou do latim discurrere: nicação humana torna possível uma referên-
cia direta da existência ou não daquele con- ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905),
teúdo, tanto na realidade subjetiva quanto na assinalando que encontrar um objeto é reen-
realidade externa. Assim como pode partir contrá-lo e que o adiamento é apenas uma es-
de ambas as realidades para se referir a seres tratégia para obter por meios mais eficazes o
e pensamentos que se desloquem delas, e no mesmo objetivo. Essa frase foi atualizada no
espaço entre ambas criar entidades jamais artigo de 1925, quando o objetivo primeiro e
percebidas pelos sentidos: crenças em seres imediato do teste de realidade é não apenas
além da percepção, pensamento abstrato, encontrar na percepção real um objeto que
poesia e poesis no amplo sentido de “criação”. corresponda ao representado, mas também
Já a dança, por mímica e gestos, assim reencontrar tal objeto, “[...] convencer-se de
como o canto, associa-se à palavra, mas com que ele está lá” (Freud, [1925] 1979, p. 237).
obstáculos e um limite bem maior no que Freud chega a esta consideração final:
tange a negar-se a si mesma ou atingir o além
do sensível. Principalmente na criação do O estudo do juízo nos permite, quiçá pela pri-
mundo intermediário das crenças e abstra- meira vez, vislumbrar a gênese de uma função
ções. Por sua variedade de tipos e a aparente intelectual a partir do jogo das duas pulsões
história mais tardia, deixaremos de lado as primárias. Julgar é uma continuação coerente
artes visuais. da inclusão no Eu ou expulsão do Eu, que ori-
Quanto à origem última do que possibi- ginalmente se dava conforme o princípio do
litou as linguagens verbal e musical, em A prazer. Sua polaridade parece corresponder à
negação, Freud ([1925] 1978) também pos- oposição dos dois grupos de pulsões que su-
tula que a função da negativa surgiu na fase pomos existir. A afirmação (Die Bejahung) –
oral. O desejo do bebê em colocar dentro de como substituto da união – pertence ao Eros,
si o bom e agradável e expelir o ruim. O eu a negação – sucessora da expulsão – pulsão
-prazer, que cedo teve de levar em conta o de destruição (Destruktionstrieb). (Freud,
meio ambiente e, em parte, modificou-se em [1925] 1979, p. 238-239, tradução nossa cote-
eu-realidade. Na primeira tópica, o proces- jada com o texto original5).
so primário e o inconsciente permaneceram
sem precisar levar em conta a realidade ex- Além dos achados da clínica, a Primeira
terna. Já o processo secundário e o sistema Guerra Mundial trouxe a Freud o fim da era
consciente/pré-consciente necessitaram ter da Belle Époque, mais de quatro décadas de
em conta o meio ambiente e o teste de rea- paz e ápice da burguesia e da cultura euro-
lidade. peias. E o medo concreto de que seus filhos
Quanto mais maduro o ser humano, mais morressem na guerra. Em 1915 escreveu dois
necessário colocar a ação sobre a realidade textos muito pessoais: Reflexões para o tempo
externa, ao menos em um primeiro momen- de guerra e morte e Sobre a transitoriedade.
to, sob o controle do sistema consciente/pré- Este último é uma reflexão pessoal a partir
consciente. de uma caminhada durante a Grande Guer-
ra, com dois amigos, um deles “um poeta já
Julgar é a ação intelectual que decide a esco- famoso”. (Freud, [1915] 1978, p. 303-307).
lha da ação motora, que põe fim ao adiamen- Tratava-se de Lou Andreas-Salomé e Rai-
to devido ao pensamento e conduz do pensar ner Maria Rilke, por muitos considerado o
ao agir. (Freud, [1925] 1978, p. 238, tradução
nossa).
maior poeta da língua alemã no século XX, que sobreviveu do início da filosofia:
cujas obras-primas foram as Elegias de Dui-
no e os Sonetos a Orfeu. A oitava elegia, tida Um fragmento de Anaximandro diz que a
como a mais famosa e profunda de todas, unidade do mundo foi destruída por um cri-
tem por tema a finitude, sua relação com me primordial, e que tudo o que dali veio tem
consciência humana e sua ausência nos ou- de suportar o castigo por isso. (Freud, [1912-
tros animais, que vivem um eterno presente. 1913] 2012, p. 150).
É mais que provável Freud a tenha lido ou
escutado. Ao início do poema, que surgiu Freud não copiou o fragmento para o
dois anos após Além do princípio do prazer texto de Totem e tabu. Tomou-o como do
(1920), mas um ano antes de O eu e o isso conhecimento geral. Resultado de suas li-
(1923), e três antes de A negação (1925), Ril- ções de grego no ginásio e seu posterior es-
ke descreve: tudo com Theodor Gomperz (cuja obra em
três volumes Os pensadores gregos foi listada
Com todos seus olhos a Criatura vê o Aberto. como uma de seus “dez amigos”). Diz o pri-
Apenas nossos olhos são revirados para trás meiro fragmento do pré-socrático:
[...] Nunca o Aberto, tão profundo na face dos
animais. Livres da Morte. Somente nós a ve- Todas as coisas se dissipam onde tiveram
mos. O animal livre possui a saída atrás de si, sua gênese, conforme a necessidade; pois pa-
para sempre, e Deus a sua frente, e quando se gam umas às outras castigo e expiação pela
move, move-se já na eternidade, tal uma fon- injustiça, conforme a determinação no tem-
te. [...] Nós, nunca, por um único dia, temos po (Anaximandro [séc. VI a.C.] citado por
diante de nós o puro espaço no qual as flores Bornheim, 1999, p. 25).
infinitamente abrem. Sempre está o Mundo
e nunca o lugar algum sem o Não [...]. (Ri- Essa frase pode levar a uma extensa me-
lke, [1922] 1989, p. 192, tradução nossa do ditação sobre a morte e a identificação. De-
alemão). corridas pelo assassinato do pai primevo,
com o nascimento da culpa, a criação do
Rilke será o início de toda uma corrente primeiro totem e do tabu do incesto e, final-
de pensamento europeu deslocada do ápice mente, o aparecimento da temporalidade e
da cultura europeia para meditações sobre da negação.
seu declínio no entre e após as guerras: o Ao descrever os processos primário e se-
Não ser, de Heidegger, leitor e escritor so- cundário na Interpretação dos sonhos (1900),
bre Rilke, o Nada sartriano, que muito deve em O inconsciente (1915) expor de modo
ao filósofo existencial alemão e a pulsão de bem claro que no primário não há dúvida
morte freudiana. Para todos a finitude e sua nem graus de certeza ou negativa, e em A
percepção como origem da consciência e de negação (1925) atrelar sua origem à pulsão
tudo que constrói o humano. de morte, torna-se claro que negativa e tem-
Contudo, se retornarmos ao próprio poralidade nascem da percepção da finitude
Freud antes de todos os pensadores e poe- humana.
ta acima, veremos que a finitude e o nasci- Ao contrário dos filósofos, toda a força e
mento da temporalidade já aparecem em sua a origem da criatividade derivam do incons-
obra. Quase ao final de Totem e tabu (1913), ciente dinâmico e
dissertando sobre as versões da Antiguidade,
pagã e cristã, sobre o assassinato do pai pri- [...] finalmente, como já ouvimos, o Eu tor-
mevo e o remorso dos filhos que o perpetra- na mais fácil para o Isso lidar com o domínio
ram, surge menção ao primeiro fragmento sobre as pulsões, sublimando partes da libi-
do para si mesmo e seus propósitos. (Freud, pulsional, outros problemas ainda estavam
[1915] 1978, p. 47, tradução nossa cotejada sem uma explicação satisfatória. O que fica
com o texto original6). nítido é haver mais no inconsciente original
das descobertas anteriores do que apenas um
Porém, a afinidade da temporalidade e sistema e um processo de funcionamento. A
da negação com o processo secundário na criação da segunda teoria das pulsões traz o
primeira e segunda tópicas torna-se rica, chamado para uma segunda tópica. E novas
mas problemática. Se inexistem no processo criações metapsicológicas para abordar um
primário a percepção da finitude humana, e eu que se revela mais complicado.
se dela são decorrentes a temporalidade e a Invoca Freud ([1920] 1978, p. 19) em
negação, no inconsciente da primeira tópi- Além do princípio do prazer:
ca e no Isso da segunda não há linguagem.
No máximo podemos postular blocos de re- Evitaremos a falta de clareza se colocarmos
presentações articuladas entre si, tal como em oposição não o consciente e o inconscien-
cristais com estrutura própria, mas blocos te, mas sim o Eu coerente e aquilo que é re-
sem articulação uns com os outros. Coerente primido. Não há dúvida de que muito do Eu
com a postulação freudiana de que o proces- é em si mesmo inconsciente, principalmente
so primário é atemporal. o que se pode chamar de seu núcleo; apenas
Portanto, pelo referencial metapsicológi- uma pequena parte dele é coberta pelo termo
co de Freud, a asserção de que o inconsciente “pré-consciente” [...]. (tradução nossa).
é estruturado como linguagem torna-se in-
viável. Ou não? Três anos depois, no primeiro capítulo de
O eu e o isso, Freud ([1923] 1978) enfatiza
Fronteiras problemáticas (II): que
eu, supereu e isso (originário e recalcado)
O desbravamento da psiquê humana na [...] a ideia de que em cada indivíduo há uma
obra freudiana continua tão ou mais radical organização coerente dos processos psíqui-
que nas conquistas das décadas anteriores. cos, e a denominamos de eu (ich). (Freud,
Apesar do repúdio em relação aos filósofos, [1923] 1978), p. 17, tradução nossa).
por deixarem o lado prático à parte, Freud
tenta metodicamente organizar suas des- Contudo, o eu agora não se refere mais
cobertas clínicas em grupos susceptíveis à a algo vago e genérico, “designando a per-
compreensão teórica. Mas a realidade não sonalidade como um todo” (Laplanche;
obedece. E nisso há o impulso para novas Pontalis, 1978, p. 241, tradução nossa), si-
descobertas. No caso, para a criação de um nônimo para muitos autores psicanalíticos
novo modelo que explique a psiquê huma- de self, algo espontaneamente intuído e colo-
na. Surge, então, a segunda teoria da pulsão cado ao início de nossas frases como sujeito.
com sua tão polêmica e aterradora pulsão Agora o eu se refere especificamente a uma
de morte. das três instâncias do aparelho psíquico; as
A segunda teoria das pulsões será um dos outras duas são o isso e o supereu. Incons-
motivos que exigirá a criação de uma segun- ciente e pré-consciente passam a ser termos
da tópica. Sem dúvida, mas além da questão para descritivamente nomear partes do eu e
do supereu.
Mas Freud ressalta que o inconscien-
6. Endlich erleichtert, wie wir gehört haben, das Ich dem Es te mesmo é aquele recalcado, “para nós o
die Bewältigungsarbeit, indem es Anteile der Libido für sich
und seine Zwecke sublimiert. Disponível em: http://freud protótipo do inconsciente” [...] (Freud,
-online.de/Texte/PDF/freud_werke_bd13.pdf. [1923] 1978, p. 15, tradução nossa). Do
ponto de vista dinâmico, o “protótipo” da fosse, não poderia ser ativado sem tornar-se
psicanálise, o inconsciente recalcado, todo Cs., e o processo de torná-lo consciente não
ele processo primário, agora é todo herda- encontraria tão grandes dificuldades. Quan-
do pelo isso. do nós mesmos somos confrontados com
Apenas mais um parágrafo do primei- a necessidade de postular um terceiro Ics.,
ro capítulo de O eu e o isso, e Freud passa que não é recalcado, temos de admitir que a
à questão clínica. A descoberta freudiana do característica de ser inconsciente, começa a
inconsciente dinâmico ocorreu simultânea perder o significado para nós. (Freud, [1923]
ao correlato clínico do recalque: a resistên- 1978, p. 18, tradução nossa).
cia. E ela só pode ser inconsciente e exercida E ainda por cima, num gesto dramático
pelo eu. Ou pela grande novidade de O eu da escrita de Freud, não ficou muito claro
e o isso: um grau do eu, uma diferenciação qual seria esse terceiro inconsciente. Tam-
do eu, o supereu. Só que o supereu surgirá bém é curioso que a primeira menção ao isso
no texto freudiano somente dois capítulos se refira a sua parte não recalcada.
adiante. Mais de duas décadas antes, ao início da
No primeiro capítulo, o relato é: descrição da primeira tópica, Freud deixava
claro que nossa consciência forma apenas o
Como, entretanto, não há dúvida de que esta topo do iceberg de nossa psiquê. Que todas as
resistência emana do seu eu e pertence a ele, memórias mais ou menos acessíveis estão no
achamo-nos diante de uma situação impre- pré-consciente. Mas ele ainda se parece com
vista. Encontramos com algo do próprio eu um mero arquivo. Mesmo que com graus va-
que também é inconsciente, que se comporta riáveis de acesso às informações. Nos Artigos
exatamente como o recalcado – isto é, produz sobre a metapsicologia (1915) crescem e se
efeitos poderosos sem ser ele mesmo cons- tornam mais complexas as funções do pré-
ciente e que requer um trabalho especial até consciente. Inclusive, como vimos acima,
que possa ser tornado consciente. [...] a antí- processos que qualitativamente pertencem
tese entre a parte coerente do eu e parte recal- ao sistema pré-consciente, mas na prática tão
cada que é cindida dele. (Freud, [1923] 1978, recalcados quanto o inconsciente. Em O eu e
p. 17, tradução nossa). o isso (1923), o pré-consciente recebe outra
promoção.
Aqui temos uma visão otimista da clíni- Em consonância com o artigo O incons-
ca de que tornar a parte do eu recalcada e ciente, Freud ([1915] 1978) retorna à questão
inconsciente é só uma questão de trabalho das representações de palavra e de coisa. São
psicanalítico. Logo adiante, ao final do tex- abordadas algumas novas questões dessas
to, Freud não só se torna mais pessimis- representações, inclusive em relação à nova
ta, como também sugere a possibilidade instância do supereu. É mantida a ideia de
de parte do eu inconsciente, além de bem que a representação de palavra é essencial
maior do que ele esperava, poderia perma- para que a representação alcance a pré-cons-
necer sempre inconsciente. Como se não ciente e a consciência. Mas é no que tange
fosse bastante, ainda surge um terceiro in- à relação entre pensamento e linguagem que
consciente. Deixando ao leitor a pergunta: algo mais é acrescido às funções do eu e do
afinal quantos são? pré-consciente.
Também uma parte do ego – e sabem os Céus Por um lado, temos provas de que mesmo
que parte tão importante – pode ser Ics., in- operações intelectuais sutis e difíceis, que
dubitavelmente é Ics. E esse Ics. que perten- ordinariamente exigem reflexão vigorosa,
ce ao ego não é latente como o Pcs., pois, se podem igualmente ser executadas pré-cons-
Freud ([1933] 2010, p. 216) escreveu na cil acesso. Porém, ao longo desse desenvolvi-
Conferência XXXI: mento, o jovem e débil Eu deslocou de volta
ao estado inconsciente conteúdos já incorpo-
Desejos que nunca foram além do Id, mas rados, abandonou-os e comportou-se de tal
impressões que pela repressão afundaram no maneira perante algumas novas impressões,
Id, são virtualmente imortais, comportam-se as quais poderia ter incorporado para si, de
após décadas, como se tivessem acabado de modo que essas, tendo sido dele expulsas, não
surgir. puderam deixar mais que um vestígio no Isso.
Essa última porção do Isso, em consideração
Indo mais adiante, o inconsciente da pri- à sua gênese, chamamos de recalcado. Pouco
meira tópica e seu herdeiro direto, o isso na importa que nem sempre consigamos dife-
segunda tópica de 1923, cuja característica renciar com precisão as duas categorias do
exclusiva é ser todo ele inconsciente, cons- Isso. Elas correspondem aproximadamente à
trói um elo além daquele com O inconsciente distinção entre o que é originalmente trazido
(1915). Nesse artigo foi descrito que deriva- e o que é adquirido durante o desenvolvimen-
dos do inconsciente podem contornar a cen- to do Eu. (Freud, [1940] 2014, p. 59-61, ne-
sura, alcançar um alto grau de organização e grito nosso).
atingir uma certa intensidade de investimen-
to no pré-consciente. Quando, entretanto, Ao final do parágrafo, torna-se nítido que
essa intensidade é excedida e eles tentam for- há nos conteúdos do isso duas origens. A pri-
çar-se à consciência, são reconhecidos como meira e maior é aquela que nasceu junto com
derivados do inconsciente e são reprimidos. o isso, parte do isso a qual pode ser nomeada
Haveria algo além do processo primário no de isso originário ou genuíno. A outra sur-
inconsciente da primeira tópica. O tema giu mais tarde. Em contato com a realidade
também continua em um parágrafo do últi- externa, parte do isso que já se diferenciara
mo e inacabado texto de Freud – Esboço (ou em eu.
compêndio) de psicanálise. Texto escrito em Contudo, num segundo momento, par-
1938, mas publicado em 1940, um ano após te do que se diferenciara em eu foi rejeitada
a morte de Freud. Texto que merece uma ci- e expulsa de volta ao isso. A qual o próprio
tação de parágrafo inteiro. Freud nomeia de isso “recalcado”. Para ser
mais exato, Freud escreve sobre a distinção
O inconsciente é única qualidade dominan- entre um isso genuíno e um isso recalcado.
te no Isso. O Isso e o inconsciente estão tão O Isso genuíno, sem dúvida, além da a mais
intimamente associados quanto o Eu e o pré- antiga, é a parte imensamente maior do Isso,
-consciente e a relação é aqui [no primeiro
caso] ainda mais exclusiva. Um olhar retro- [...] “reduto mesmo “dentro do isso” daquilo
ativo para a história do desenvolvimento de que não é apalavrado – “o inconsciente genuí-
uma pessoa, bem como de seu aparelho psí- no” – o isso inconsciente onde reina o silêncio
quico, nos leva a verificar uma significativa das pulsões”. E que fará extensão do supereu
distinção no Isso. Originalmente, por certo, inconsciente. (Gerez-Ambertín, 2020, p. 21,
tudo era Isso; o Eu se desenvolveu a partir do itálico da autora).
Isso pela influência contínua do mundo ex-
terno. Durante esse lento desenvolvimento, Ao contrário da conferência de 1933, no
certos conteúdos do Isso foram alterados para Esboço [ou compêndio] de psicanálise (1940),
o estado pré-consciente e assim acolhidos no Freud novamente escreve sobre o papel do
Eu. Outros conteúdos continuaram imutáveis processo primário. As características desse
no Isso permanecendo como núcleo de difí- processo, inicialmente descritas em A inter-
pretação dos sonhos e didaticamente elenca- Certo é que Freud deixou-nos incompleto o
das no artigo O inconsciente unem, ao longo funcionamento do eu e do supereu incons-
de três décadas de textos, a revolução freu- cientes.
diana. Mas se, como acima foi mencionado, a
linguagem não é apenas verbal? E a parte re-
Nossa teoria deduz, pela comprovação dessas calcada do pré-consciente da primeira e da
duas tendências à condensação e ao deslo- segunda tópicas, qual sua relação com o isso
camento, que a energia presente no Isso in- recalcado?
consciente encontra-se em um estado de livre
mobilidade e que, acima de tudo, importa ao Linguagem: aparelho linguageiro,
Isso a possibilidade de escoamento para as recalque, arte e sublimação
quantidades de excitações; assim nossa teo- Na primeira tópica, a representação de pala-
ria emprega essas duas peculiaridades para vra pode ou não chegar à consciência, mas
caracterizar o processo primário atribuído ao tem origem no pré-consciente, quando ele é
Isso. (Freud, [1940] 2014, p. 73-75). acrescentado à representação de coisa. Freud
conclui que funções psíquicas complexas, ca-
Como é unânime que não possuímos ja- pazes de em sonho resolver problemas ma-
mais acesso direto ao isso, ou a um puro isso, temáticos, também são realizadas pelo pré-
exceto do que nele se expressa mesclado ao consciente.
processo secundário, surge o paradoxo de Seja a linguagem verbal a origem de todas
que só o temos através da linguagem. Que, as outras, tal como postula determinada in-
junto com a representação de palavra, foi co- terpretação de Hegel, seja a linguagem mu-
locada por Freud no pré-consciente da pri- sical a origem da linguagem verbal, confor-
meira tópica. Pelo menos no que se refere à me uma interpretação nietzschiana (Lopes,
linguagem verbal. 2006), o que ambas as direções sobre a gê-
nese da linguagem propõem como questão à
Processos conscientes na periferia do Eu e psicanálise é o mesmo: complexas e organi-
todo resto inconsciente no Eu. [...] O estado zadas funções realizadas pelo pré-consciente
pré-consciente, caracterizado, por um lado, na primeira tópica.
por acesso à consciência e, por outro, por Basta que se reflita pela nossa própria ex-
outro, por sua conexão com os resíduos da periência de aquisição da linguagem: não a
linguagem, é algo singular, cuja natureza não lembramos. A não ser que muito mais tar-
se esgota nestas duas características. A pro- de tenham nos contatado, não recordamos
va disso é o fato de que grandes porções do como foi esse aprendizado na primeira in-
Eu e, sobretudo, do Supereu, ao qual não se fância. Se adquirimos sons articulados em
pode negar a característica de pré-consciente, sílabas e em palavras, se aprendemos com
permanecem, na maioria das vezes, incons- blocos já organizados em frases simples e
cientes no sentido fenomenológico. (Freud, muito menos como os primeiros sons e síla-
[1940] 2014, p. 57-59). bas foram reunidos em palavras.
O mesmo se aplica à aquisição da lin-
É difícil que não se pense na conexão des- guagem lida e escrita. Há um pouco de lem-
te trecho com as formulações, quando da brança da primeira escola, de alguns colegas,
descrição da primeira tópica, de uma parte algumas professoras, frequentemente uma
recalcada do pré-consciente, ou do incons- muito especial, mas muito pouco ou nada do
ciente que teria adquirido um alto grau de processo de aprendizado em si. E o mesmo
organização. Pode-se atribuir ao texto ter fi- para outras linguagens, tal a matemática. Em
cado incompleto e/ou sem uma revisão final. tese não haveria necessidade desse esqueci-
mento. Exceto que lembrá-lo seria inútil e que se fortalece investindo pela libido em
impraticável. Paralisaria a comunicação, se objetos cada vez mais unos. E seja o Édipo
fosse necessário cada vez que se precisasse originário já no bebê, como descreve Mela-
expressar a mais simples das frases da vida nie Klein, seja bem mais tardiamente como
cotidiana. O mesmo para todas as outras lin- relata Freud no Pequeno Hans, esse inves-
guagens. Para executar uma soma simples, timento edípico certamente continua nos
não é necessário lembrar as primeiras aulas objetos edípicos substitutivos, tal a primeira
de matemática de nossa vida. Contudo, ne- professora. O que explicaria uma facilitação
nhum desses exemplos se refere ao processo do recalque sobre nosso aparelho linguagei-
primário e sim ao secundário, embora hoje ro, bem como as graves patologias de fala,
ocorram inconscientemente pelo pré-cons- comunicação e afeto da primeira infância.
ciente. Na primeira tópica, devido à representa-
Não sabemos qual a realização de dese- ção de palavra, Freud localiza a linguagem
jo que em sonho foi satisfeita para Manuel verbal no pré-consciente. Sem sair do refe-
Bandeira na forma de um soneto. E da qual rencial de O inconsciente e pela descrição de
sobrou um resto que o fez lembrar quando como não possuímos acesso voluntário à es-
acordou. E um soneto é uma das formas trutura de nosso aparelho linguageiro, só aos
mais rígidas e complicadas de se construir seus resultados, podemos localizá-lo na par-
um poema. te recalcada (censurada) do pré-consciente.
Outro exemplo é o aprendizado de um Na segunda tópica fica mais fácil localizar
novo idioma. Enquanto tem-se de pensar nosso aparelho linguageiro pertencendo ao
em cada palavra e como articulá-las entre eu inconsciente. Em ambos os casos quando
si, há um enorme esforço. Prova que ainda nos referimos à linguagem verbal.
não se conhece realmente o novo idioma. O Em relação às linguagens não verbais,
dito popular – e muito psicanalítico – é que a música, que possui temporalidade, mas é
só se sabe outra língua quando se é capaz de pura afirmação [Bejahung], sem negação,
sonhar nela. E embora a origem do sonho es- podemos hipotetizar a origem e a localização
teja, em grande ou maior parte, em um res- na parte recalcada do isso. Contudo, grande
to diurno que ativou desejo coetâneo vindo parte da música, evoca a nostalgia de obje-
do processo primário, sua expressão final e tos perdidos. Outras evocam agressividade e
a lembrança que temos ao acordar ocorre violência, principalmente associadas à dan-
pelo secundário. Usando a nomenclatura ça. Nas artes plásticas, tomando por base a
da segunda tópica, todos os exemplos dados pintura, onde o mesmo sentimento de perda
aqui ao trabalho dos sonhos, pertencem ao e destruição pode ser participado, pode-se
eu inconsciente muito mais que ao eu pré- sugerir que também possuem algo além da
consciente. afirmação, embora diverso da negação.
Pode-se aventar a hipótese de que o re- A música e a dança, assim como as artes
calque dessa parte inconsciente do eu tenha plásticas, domesticariam a pulsão de morte,
sido facilitada por um enlace com o isso. completamente silenciosa, em comunica-
Aprendemos os sons e as palavras para satis- ção possível ao próprio eu. Eros sublimaria
fazer as pulsões básicas ao início da vida, por Tânatos. Para manter a coerência da leitura
amor e ódio aos objetos e às identificações, freudiana, mesmo não possuindo represen-
parciais ou totais. tação de palavra, a pulsão de morte foi em
Mas seja no “manhês” das pessoas ao re- parte convertida em afirmação, a associação
dor, seja na “lalação” do bebê, a pulsão invo- com a pulsão de vida tornou possível sua re-
cante descrita por Lacan ([1964] 1988) em O presentação. Contudo esse jogo, ou conflito,
seminário 11 é pura pulsão de vida. Pulsão de pulsões ainda estaria mais próximo do
processo primário que o secundário. Per- da língua, sistema da escrita e sistema fono-
tenceriam ao puro jogo das pulsões e demais lógico. (Saussure, 2006, p. 278).
características que Freud descreveu sobre o A diferença entre sistema e estrutura pode
processo primário. Mas em todos os casos, ser caracterizada em suas relações com o
não no isso originário ou puro, possuidor só tempo. Cristais possuem estruturas em prin-
de processo primário, sem nenhuma possi- cípio eternas, salvo algum acidente da natu-
bilidade de organização mais complexa, mas reza. Sistemas funcionam com seus vários
no isso recalcado. componentes produzindo efeitos sucessivos
Sendo o canto mistura com a representa- e cumulativos sobre algo que constroem e/
ção de palavra, pode ser sugerido que forme ou passa por eles.
uma daquelas áreas cromáticas que se fun-
dem umas nas outras, como fazem os pinto- Aplicamos o termo sistema para designar o
res modernos. Tal sugeriu Freud ao demons- conjunto concreto de elementos harmoni-
trar que as instâncias psíquicas possuem camente funcionais. Já uma estrutura é um
áreas em comum e não separações rígidas. conjunto de relações. Não tem o atributo da
Do mesmo modo que, desde o século XX, funcionalidade. Um sistema funciona. Uma
muitos artistas plásticos utilizaram palavras estrutura é. As relações estruturais podem ser
e outros signos verbais, bem como recursos abstratas, se e quando puramente lógicas, ou
da mídia contemporânea. Exemplos de áreas podem ser relações concretas, se e quando
cromáticas entre o isso recalcado e o eu re- incorporadas a um sistema. (Thiery-Cher-
calcado. O segundo dos desenhos de Freud ques, 2006, p. 142).
do aparelho psíquico, inicia-se em parte do
eu afunda por dentro de parte do isso sem Portanto, para aplicarmos o termo “estru-
qualquer separação gráfica. tura” à linguagem, na acepção da linguística
de Saussure, é necessário que o aceitemos
na qualidade de “sistema”. Considerando
Isso: a radicalização freudiana que, desde A interpretação dos sonhos (1900)
e algumas leituras lacanianas até ao Esboço (ou compêndio) de psicanálise
No século XX a palavra “estrutura” foi em- (1940), Freud sustentou que o funcionamen-
pregada por vários autores, entre eles, Clau- to do inconsciente enquanto sistema e, pos-
de Lévi-Strauss, Roland Barthes, Michael teriormente, de seu sucessor mais radical – o
Foucault, Jacques Derrida, Louis Althusser e isso –, é configurado pelo processo primário.
outros. O termo quase sempre foi usado com E uma das características desse processo, se-
várias acepções diferentes, frequentemente gundo Freud, é que
mal definidas. Mas de todos os autores clas-
sificados como estruturalistas, sem dúvida [...] são atemporais, isto é, não são ordenados
Jacques Lacan é o mais importante para a temporalmente, não são alterados pela pas-
psicanálise. Portanto, pelo referencial me- sagem do tempo, não têm relação nenhuma
tapsicológico de Freud, como pode aplicada com o tempo [...]. (Freud, [1915] 1978, p.
a asserção de que o inconsciente é estrutura- 186-187, tradução nossa).
do como linguagem?
No Curso de linguística geral, de Saussure Torna-se contraditório à leitura freudia-
(2006), a palavra “estrutura” aparece apenas na, desde o os escritos do final da década de
três vezes e em sentido bastante genérico. Já a 1890 até ao que foi postumamente publica-
palavra “sistema” é usada pelo linguista mais do, associar a radicalidade do inconsciente e
de uma centena e meia de vezes, referindo-se do isso à linguagem. Pelo menos à linguagem
principalmente a: sistema de signos, sistema verbal que, tanto quanto tenhamos conheci-
mente inconsciente e em sua quase totalida- como linguagem de Lacan poderia ser aceito
de recalcado, o funcionamento pelo processo enquanto localizado no pré-consciente ou,
secundário. até mesmo no inconsciente, mas só na pri-
Assim como ocorreu a recusa de muitos meira tópica. Assim como a crítica de Green
filósofos em abandonar a ideia de psíquico de que o inconsciente estruturado como lin-
= consciência, a concepção do inconsciente guagem é incompatível com o isso da segun-
enquanto morada de pulsões irracionais, sel- da tópica, em que todo o aparelho linguístico
vagens e de furores animais, é recusada por pertenceria ao eu inconsciente.
muitos psicanalistas. Após Copérnico Dar- Quanto ao isso recalcado, em contrapar-
win, a terceira das feridas narcísicas golpeia a tida ao originário, assim como nas obras dos
vaidade humana: a radicalidade do processo pintores modernos, formaria uma área cro-
primário, parte esmagadora do inconsciente mática. Área que conteria toda uma gradação
da primeira tópica e do isso na segunda. de cores entre as diversas formas de lingua-
Podemos exemplificar com uma frase do gem, desde daquelas que se aproximariam e
filósofo e psicanalista esloveno Zizek. Sem até se associariam à linguagem verbal, até as
desmerecer suas instigantes e polêmicas obras. puramente imagéticas, desde as figurativas
Frase tirada das páginas iniciais de um livro até as mais abstratas. Assim como no caso da
publicado no Brasil ao final da década passada. música, que cria a sonoridade de qualquer
idioma, mesmo na exposição de uma aula de
Para Lacan, o inconsciente não é um espaço lógica. Ou a dinâmica de percepção em qua-
pré-lógico [irracional] de instintos, mas um dros completamente abstratos, tal os mais
conhecimento simbolicamente articulado ig- conhecidos de Kandinsky11, cujas formas po-
norado pelo sujeito (Zizek, 2017, p. 15). dem ser colocadas em movimento e traduzi-
das em sons musicais. Seria uma sugestão e
Se o modo de funcionamento do incons- uma dúvida: linguagem paralela ou até mes-
ciente da primeira tópica é o processo pri- mo a origem de toda linguagem, originária
mário, obviamente trata-se de um espaço do isso recalcado?
pré-lógico. O isso, algo do Real de Lacan,
não só é ignorado pelo sujeito, como se trata
de um assustador caldeirão de instintos (me-
lhor tradução: pulsões). Que sempre retorna
ao mesmo lugar, mas sempre insiste sobre o
Simbólico e assim sabemos de sua existência.
Exceto pela divisão do sujeito, que o cinde
de modo a que possamos negá-lo enquanto
morada de pulsões irracionais (e mortais),
selvagens e de furores animais. Tal sintetiza
Gerez Ambertín em Isso, inconsciente e supe-
reu:
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