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A Interpretação em Psicanálise

No capítulo anterior, idéias latentes ao conteúdo


fizemos fundamentalmente duas manifesto; a interpretação vai
coisas: situamos a interpretação no sentido contrário.
no lugar que lhe cabe, entre os Para Freud, a interpretação
vários instrumentos da é, antes de mais nada, o ato de
psicoterapia, e depois tentamos dar sentido ao material, como
chegar a ela pelos caminhos aparece no próprio título de sua
díspares da comunicação, da obra culminante, que o situa não
semiologia e do operacionalismo, entre os que estudaram os
pensando que, no ponto de sua sonhos "cientificamente", mas
convergência, devem entre os que lhe atribuem um
forçosamente se encontrar as sentido. Interpretar um sonho é
notas definidoras. descobrir seu sentido. A
Falamos, então, situados definição de Freud é semântica,
intencionalmente no campo como se aprecia no começo do
amplo da psicoterapia e agora nos Capítulo 11 da obra: "...
cabe uma tarefa diferente - interpretar um sonho significa
complementar, porém distinta - indicar seu sentido". A
que é o estudo da interpretação interpretação insere-se como um
em psicanálise. elo a mais no encadeamento de
* A psicanálise é, por certo, nossas ações anímicas, que
um método entre outros assim adquirem sentido.
da psicoterapia maior, mas possui O sentido que a
pautas que a singularizam, como interpretação resgata varia
o lugar privilegiado que concede paralelamente aos distintos
à interpretação. Com razão, momentos que vão perfilando-se
Laplanche e Pontalis dizem, no na investigação freudiana.
Vocabulário (1968, p. 207), que a Como veremos em breve, Didier
psicanálise pode ser caracterizada Anzieu (1969) distingue três
pela interpretação. grandes concepções do processo
do tratamento e, por
conseguinte, três tipos de in-
A INTERPRETAÇÃO NOS terpretação; porém, para os fins
ESCRITOS FREUDIANOS de nosso interesse neste
Na obra de Freud, a momento, diremos que a
interpretação é definida basica- interpretação está sempre relacio-
mente como o caminho que nada com o conflito e o desejo. As
recorre à compreensão do analista recordações são recuperadas, mas
para ir do conteúdo manifesto às não interpretadas. Porque há
idéias latentes. A interpretação é instintos que se cristalizam em
o instrumento que torna desejos, contra os quais se erigem
consciente o inconsciente. Na defesas, torna-se necessária a
Interpretação dos sonhos, a interpretação. Como instrumento
interpretação é igual e contrária à específico para desentranhar o
elaboração: a elaboração vai das conflito, a interpretação fica
2 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN encadeada, já o veremos, ao tripé Como todos sabem, Freud
topográfico-dinâmico- econômico da atribui a elaboração secundária à
metapsicologia. tentativa de que o sonho seja
O que Freud pensa da compreensível (com vistas à
interpretação pode ser deduzido, compreensibilidade) e a explica por
com suficiente aproximação, uma atividade do sonhador, que
relendo-se um de seus escritos apreende o material que se apre-
técnicos, "O uso da interpretação dos senta para ele a partir de certas
sonhos na psicanálise" (1911e). O representações de espera
sonho, assim como o sintoma, é (Erwartungsvorstellungen), que o
explicado quando se apreendem ordenam sob a premissa de que é
sucessivamente os diferentes compreensível, com o que só2
fragmentos de seu significado, e consegue, muitas vezes, falseá-lo.
"deve-se dar por satisfeito se, no Nesses casos, pois, a palavra
princípio, colige-se graças à tentativa interpretação aparece carregada de
interpretativa, ainda que seja apenas suas notas menos confiáveis.
uma noção de desejo patogênica"
(AE, v.12, p. 89).1 Segundo o que se
vislumbra nessa citação, para o COMPREENDE
Freud dos escritos técnicos, interpre- R, EXPLICAR E
tar é explicar o significado de um INTERPRETAR
desejo inconsciente, trazer à luz uma SEGUNDO
determinada pulsão.
Laplanche e Pontalis assinalam JASPERS
que a palavra interpretação não é Na segunda parte de sua
superponível a Deutung, cujo sentido Psicopatologia geral (1913), que
apro- xima-se mais da explicação e trata da psicologia compreensiva,
do esclarecimento. A palavra latina Jaspers distingue duas ordens de
"interpretação", porém, sugere por relações compreensíveis:
momentos o subjetivo e o arbitrário. compreender e explicar. A
O próprio Freud, entretanto, compreensão é sempre genética,
utiliza a palavra com essas duas permite-nos ver como surge o
conotações, quando compara a psíquico do psíquico, como o
interpretação psicanalítica com a do atacado irrita-se e o enganado
paranóico na Psicopatologia da vida desconfia. A explicação, por sua
cotidiana (1901b), tal como já vez, enlaça objetivamente os fatos
vimos, ao definir a interpretação típicos em regularidades e é sempre
como uma nova conexão de causal. Entre compreensão e
significado. explicação há, para Jaspers, um
Os autores do Vocabulário abismo insuperável.
citam, por sua vez, o emprego que Nas ciências da natureza, as
Freud faz no Capítulo VII de Sobre o relações são causais, somente
sonho (1901a), em que a palavra causais, e expressam-se em regras e
adquire essa conotação arbitrária. Ao leis. Na psicopatologia, podemos
introduzir o conceito de elaboração explicar assim alguns fenômenos,
secundária, Freud diz ali que é um como a herança recessiva da
processo que tende a ordenar os oligofrenia fenilpirúvica ou da
elementos do sonho, provendo-os de idiotia amaurótica de Tay-Sachs,
uma fachada que vem a recobrir, em estabelecer uma relação legal certa
alguns pontos, o conteúdo onírico, à entre a paralisia geral e a
maneira de uma interpretação leptomeningite sifilítica ou remeter
provisória. Quando empreendemos a o mongolismo à trissomia do
análise de um sonho, a primeira cromossomo 21.
coisa que temos de fazer é nos Em psicologia, podemos
livrarmos dessa tentativa de conhecer não apenas relações
interpretação, diz Freud.
1"... one must be content if the attempt 2a single pathogenic wishful impulse
at interpretation brings to light" (AE, v.12, p. 93).
FU

PS

causais (que são as únicas portanto, mais ou menos um


cognoscíveis nas ciências naturais), interpretar, que apenas em casos
mas também um tipo diferente de raros de relativamente alto grau de
relações, quando vemos como surge perfeição pode chegar zz material
o psíquico do psíquico de uma ma- objetivo convincente" (p. 353-354).
neira compreensível para nós. Podemos considerar
Compreendemos a conca- tenação compreensível (vivencialmente^
dos fatos psíquicos geneticamente. uma relação psíquica livre de toda
A evidência da compreensão realidade concreta, mas, no caso
genética é, para Jaspers, algo último, particular, só podemos afirmar a
algo que não podemos prosseguir realidade desss relação
além e, nessa vivência de evidência compreensível se existirem os
última, repousa toda a psicologia dados objetivos- Quanto menores
compreensiva. "O reconhecimento sejam os dados objetivos e mais
dessa evidência é a condição prévia frouxamente suscitarem a
da psicologia compreensiva, assim compreensão, mais interpretaremos
como o reconhecimento da realidade e menos compreenderemos.
da percepção e da causalidade é a Desse modo, e na realidade
condição prévia das ciências com definições, Jaspers inclina-se a
naturais" (Jaspers, 1913, p. 353 da desqualificar como arbitrária a
ed. esp. de 1955). interpretação em geral. A
Parece-me que Jaspers atenua dificuldade maior da psicologia
suas afirmações quando esclarece, compreensiva jasperiana é como
em seguida, que uma relação unir essa evidência da compreensão
compreensível não prova, por si só, genética com o que chama de
que seja real em determinado caso material objetivo. Essa dificuldade
particular ou que se produza em epistemológica não se coloca, por
geral. Quando Nietzsche afirma que sorte, para a psicanálise.
da consciência de debilidade do ser
humano surgem a exigência moral e
o sentimento religioso, porque a A CLASSIFICAÇÃO DE
alma quer satisfazer dessa maneira BERNFELD
sua vontade de Siegfried Bernfeld, um dos
grandes pensadores da psicanálise,
escreveu em 1932 um extenso
2
O conceito de representações de ensaio sobre a interpretação.3 E
espera é interessante, porque às vezes uma das poucas tentativas de
inspira a técnica de Freud, quando dá precisar o conceito de interpretação
ao analisando certos informes sobre a com um critério metodológico
teoria psicanalítica para que operem
dessa forma. Também se pode observar dentro da bibliografia psicanalítica.
esse modus operandi na história clínica Bernfeld parte das definições
do "Homem dos Ratos". de Freud recém-mencio- nadas,
poder, experimentamos de imediato segundo as quais interpretar é
essa vivência de evidência, da qual desvelar o sentido de algo,
não podemos ir além; contudo, incorporando-o ao contexto global
quando Nietzsche aplica essa da pessoa que o produziu, e propõe
compreensão ao processo singular da três classes de interpretação:
origem do cristianismo, ele pode finalista, funcional e genética
estar equivocado, se c material (reconstrução).
objetivo com o qual é compreendida A interpretação finalista
a relação não foi bem tomado. Desse descobre o propósito ou a intenção
modo, toda a psicologia com- de uma determinada ação,
preensiva de Jaspers repousa na tomando-a como elo da cadeia de
vivência, mas é diferente, quando se acontecimentos que constituem o
aplica ao fato particular. contexto intencional de uma
Jaspers afirma agora, sobre
essas bases, que "todc compreender 3 "Der Begriff der 'Deutung' in der
de processos reais particulares é, Psychoanalyse". Cito a tradu
4 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN pessoa. Esse contexto intencional é, em estudo é justamente cumprir
obviamente, inconsciente e aponta um objetivo; porém, outras vezes, a
para ele a interpretação final. "A diferença salta aos olhos. Quando
interpretação final remete ao transformo o som do despertador
contexto intencional ao qual pertence no trinado de um pássaro para
um elemento em questão, que pri- continuar dormindo, pode-se in-
mariamente aparece como isolado ou terpretar que o sonho cumpre a
incorporado a outro contexto" (1932, função de preservar meu repouso e
p. 307). sua finalidade é satisfazer meu
O inconveniente das desejo de continuar dormindo.
interpretações finais, diz Bernfeld, é Bernfeld adverte que a
que são mais fáceis de aceitar do que interpretação funcional4 tem dois
de provar, de modo que muitas vezes significados diferentes. Em geral,
se pressupõe que tem de haver a é empregada para estabelecer uma
intenção e finalmente ela é relação entre dois fatos, como
encontrada. E o que ocorre, continua quando dizemos que temos olhos
Bernfeld, com a psicologia para ver, com uma clara conotação
individual de Adler. Com um tom teleológica. Outras vezes,a
polêmico, sem dúvida, mais interpretação funcional é utilizada
justificado então do que agora, para denotar uma relação entre o
Bernfeld sustenta que não se trata de todo e as partes, como quando
que a psicologia estabeleça um dizemos que x é uma função de y.
determinado nexo, mas de que Nesse último caso, a interpretação
descubra o existente e o oculto (p. funcional permite caracterizar um
309). fato no contexto ao qual pertence.
No sistema adleriano, a Bernfeld considera com
interpretação não pode fazer outra razão que, pelo fato de a relação
coisa senão descobrir as intenções funcional requerer que se
que surgem teleologicamente da demarque o universo ao qual se
meta final fictícia (Adler, aplica, torna-se imprecisa e
1912,1918). Em Freud, o suporte aleatória em psicanálise, em que
teórico é completamente diferente, justamente há sempre muitos
porque as intenções inconscientes contextos, em que sempre opera o
que a interpretação final capta têm princípio da função múltipla de
seu ponto de partida na pulsão, com Wálder (1936). "Para as
seu corolário de desejo inconsciente formulações funcionais da
ou fantasia. Bernfeld, que por certo psicanálise, a 'pessoa', como
conhece bem essa diferença, poderia essência de todos os momentos
destacar com rigor o contraste entre pessoais, é excessivamente
a psicanálise e a psicologia ambígua para constituir a
individual, sem questionar à 'totalidade' à qual se referem tais
primeira o direito de interpretar os formulações" (1932, p. 320).
fins. A interpretação genética
A interpretação funcional (reconstrução) é, para Bernfeld, o
aponta para descobrir que papel método fundamental da
cumpre uma determinada ação e psicanálise. A psicanálise sempre
para que serve ao sujeito. Quando se propõe à reconstrução dos
dizemos que uma mulher não sai à processos psíquicos que se
rua para não se deixar levar por seus sucederam concretamente. Essa
desejos inconscientes de reconstru-
prostituição, podemos dizer que a
claustrofobia cumpre, nesse caso, a
função de evitar essa tentação e seus 4 Voltaremos ao tema das explicações
perigos. funcionais em psicanálise sobretudo
Como assinala Bernfeld, nem ao falar do acting out. (Ver também o
sempre é fácil distinguir entre
interpretação finalista e funcional, já 4ção que aparece em El psicoanálisis
que, muitas vezes, a função do ato y la educación antiautoritaria.
FU

PS

Capítulo 8, no qual se discute a função que trazem elementos valiosos


da transferência). para delimitar a interpretação
ção é possível, afirma Bernfeld, psicanalítica.
porque o processo psíquico a Didier Anzieu (1969)
reconstruir deixa marcas e porque considera que é difícil estudar a
existe uma relação regular entre os interpretação, porque mostra o
fatos psíquicos e suas marcas. analista em sua totalidade, racional
A psicanálise é, para Bernfeld, e também irracional. Anzieu não
a ciência das marcas e, portanto, "o acredita, com certeza, que a
método fundamental da interpretação surja claramente da
investigação psicanalítica pode área livre de conflitos do analista e
caracterizar-se como a dirija-se à área livre de conflitos
reconstrução de acontecimentos do analisando, como às vezes
pessoais passados a partir das parecem sugerir os três artigos do
marcas que deixam para trás" (p. Psycho-Analytic Quarterly, de
326, grifado no original). E, 1951, de Hartmann, Lõwenstein e
adiantan- do-se um lustro a Freud, Kris, e tampouco subscreve a
conclui que é preferível chamar de conhecida frase de Lagache
reconstrução que de interpretação o quando diz que, com a associação
método fundamental da psicanálise, livre, pedimos ao paciente que
"sublinhando que a reconstrução delire, mas com a interpretação
utiliza com muita freqüência a nós o convidamos a raciocinar
interpretação final e funcional" (p. juntos. Anzieu crê, ao contrário,
326). A reconstrução psicanalítica que a interpretação expressa o
pode ser chamada também, de processo secundário do analista,
qualquer modo, de interpretação infiltrado de processo primário,
reconstrutiva ou genética.5 visto que "a interpretação não
Bernfeld destaca ainda, com poderia alcançar o inconsciente se
acerto, que o reconstruído não é lhe fosse radicalmente estranha"
propriamente o processo tal como (Revista de Psicanálise, 1972, p.
foi, mas unicamente um modelo do 255).
processo (p. 327). De acordo com o Freud dos
O ensaio de 1932 termina com sonhos, dos atos falhos e do chiste,
uma síntese muito clara: a Lacan vê o psicanalista como o
interpretação finalista aponta para as tradutor de um texto, de modo que
intenções do sujeito, a interpretação a interpretação psicanalítica é, no
funcional refere-se ao valor de um fim das contas, uma hermenêutica.
fenômeno no nexo de uma Em desacordo com essa concepção,
totalidade, enquanto a reconstrução Anzieu pensa que o psicanalista é
estabelece o nexo genético de um um intérprete vivo e humano que
fenômeno que ficou separado (p. traduz o "idioma" do inconsciente
329). para outro ser humano; e, como o
intérprete que verte um idioma para
outro, o analista não opera nunca
CONTRIBUIÇÕES DOS ANZIEU como máquina ou robô, justamente
Didier e Annie Anzieu porque toda tradução é apenas uma
ocuparam-se da interpretação em6 equivalência, uma aproximação.
uma série de importantes trabalhos, Além da hermenêutica e da
lingüística, a interpretação tem para
5Veremos mais adiante que, a partir de Anzieu um significado que
sua teoria das marcas, Bernfeld coincide com a interpretação do
fornecerá uma visão original da artista. O analista interpreta no
metodologia da psicanálise, que mesmo sentido que o músico
Weinshel e outros autores utilizam para
caracterizar o processo analítico. Annie Anzieu, "A interpretação: sua
6Didier Anzieu, "Dificuldades de um escuta e sua compreensão pelo
estudo psicanalítico sobre a paciente" (1969). Didier e Annie
interpretação" (1969); "Elementos de Anzieu, "A interpretação em primeira
uma teoria da interpretação" (1970). pessoa" (1977).
6 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN interpreta sua partitura, ou o ator seu processo em que essa tendência
papel, isto é, compreendendo e repetitiva e automática,
expressando as intenções do autor. O subordinada ao princípio do prazer,
intérprete, nesses casos, respeita e possa modificar-se. O processo
conserva o texto, mas o reproduz à secundário cumpre essa função,
sua maneira. Como o músico e o pois tende à identidade de
ator, o analista interpreta com sua pensamento, contrastando a ima-
personalidade. Diz Anzieu "A gem prazerosa com a realidade,
interpretação psicanalítica confrontando a percepção com a
testemunha o eco encontrado no recordação.
analista, não tanto pelas palavras Um ponto de singular
como pelas fantasias do paciente" (p. importância no pensamento de
272). A interpretação surge, pois, Anzieu está relacionado com uma
daquilo que o analista sente, do que divisão dentro do processo
nele ressoa do paciente. secundário, que caracteriza o
No denso ensaio, intitulado sistema percepção- consciência:
"Elementos de uma teoria da "Freud introduz no interior do
interpretação" (1970), Didier Anzieu processo secundário uma
vai recobrindo a interpretação de subdivisão que complementa a
significado à medida que se distinção breueriana entre sistema
desenvolvem as teorias de Freud, livre e sistema ligado. Essa sub-
com freqüentes referências ao divisão deriva de uma
trabalho de Widlõcher, Freud e o diferenciação relativamente tardia
problema da mudança (1970), que do processo secundário; trata-se da
distingue três concepções sucessivas atenção. Caracteriza o que Freud
do aparelho psíquico e, por denomina, a partir de 1915, de
conseguinte, da mudança no sistema percep- ção-consciência"
tratamento. (p. 111). A consciência é, então, o
A primeira concepção órgão que permite perceber as
compreende as idéias de Breuer e qualidades psíquicas, o agente de
Freud nos Estudos sobre a histeria mudança: "E para a consciência do
(1895d) e alcança o período paciente que se dirige a
seguinte, no qual Freud assenta as interpretação do psicanalista,
bases da psicanálise. A equação fazendo com que aquele "atenda"
fundamental, diz Widlõcher, é que o ao funcionamento de sua própria
sintoma equivale à recordação realidade psíquica" (p. 113).
desprazerosa e esquecida, sendo A primeira concepção de
resolvido quando o tratamento Freud, que acabo de resenhar
(catártico) recupera a recordação. sumariamente (a descrição de
Aqui a interpretação torna-se Anzieu é, por certo, mais rica e
necessária em dois sentidos. Do mais complexa), é basicamente
ponto de vista tópico, para resolver a intelectualista. diz Anzieu, e
dupla inscrição entre os (dois) reconhece que Freud a reafirma, ao
sistemas de funcionamento propos- final de sua vida no Esquema da
tos por Breuer, de energia livre e psicanálise (1940a), em que reitera
ligada. Do ponto de vista dinâmico, que a atividade interpretativa do
introduzido por Freud, para analista é um trabalho intelectual.
denunciar o conflito e levantar o Na segunda concepção
recalcamento. freudiana do tratamento e do
Sempre no âmbito dessa aparelho psíquico, "a interpretação
concepção, a interpretação dirige-se é concebida como produtora do
ao processo primário, que tende à deslocamento do investimento
identidade de percepção, deslocando libidinal" (p. 128). O sintoma já
a energia do pólo motor para o ima- não é unicamente o símbolo de
ginário, com o que falha a descarga e uma recordação perdida, mas serve
repete-se a situação (1970, p. 109). aos interesses do sujeito e sua
Nessas circunstâncias, a resolução exige um deslocamento
interpretação deve promover um dos investimentos que hão de
FU

PS

mudar seu objeto e seus modos de unificação narcisista do sujeito com


satisfação. seu ego imaginário" (p. 143).
Agora, a interpretação já não é Os três momentos da doutrina
mais o ato intelectual que comunica freudiana propostos por Anzieu, de
à consciência. "A interpretação só acordo com Widlõcher, esclarecem
traz ao paciente uma representação muitos pontos obscuros no estudo
de palavra, sendo a representação da interpretação, mostrando não
patogênica, recalcada e inconsciente apenas que interpretamos a partir
uma representação de coisa" (p. de uma determinada teoria, mas
129). O paciente deve fazer com que também que o próprio conceito de
ambas coincidam, através de um interpretação depende desse marco
duro trabalho de elaboração. A em que ela está situada.
Deutung cede, assim, seu lugar à Em meu entender, falta à
Durcharbeiten, concernindo à rigorosa investigação dos Anzieu
psicanálise não apenas o uma articulação entre insight e
representante-re- presentativo, mas interpretação, com o que talvez
também o quantum de afeto na pudessem integrar Deutung e
transferência. "Aqui operam, além Durcharbeiten, sem necessidade de
da interpretação, a atitude do antepô-las.
psicanalista na situação analítica, seu
silêncio, suas interdições, suas
intervenções a respeito de normas, ALGUMAS IDÉIAS DE
horários, honorários, como RACKER
igualmente importantes e inclusive A interpretação foi um tema
com freqüência decisivas" (p. 130). central na investigação rackeriana,
Aqui, sem dúvida, encontra seu que se ocupou de seu fundo e de
principal apoio teórico a sua forma, das resistências para
interpretação em primeira pessoa interpretar, do uso da interpretação
(Anzieu e Anzieu, 1977). como um meio de eludir a angústia
A terceira concepção freudiana por via do acting out, da relação do
integra duas idéias principais, o analisando com a interpretação e de
automatismo de repetição e os muitos outros aspectos. Neste item,
sistemas de identificação que estudaremos algumas idéias sobre
intervêm na estrutura do aparelho quanto, quando e o que interpretar,
psíquico. Nessa terceira fase das que Racker propôs em seu relato
teorias freudianas, a interpretação oficial ao II Congresso Latino-
vai operar segundo entendamos seus Americano, ocorrido em São Paulo,
postulados principais. Se seguimos Brasil, em 1958, quando estava no
Bibring e pensamos que na auge de sua carreira científica.
compulsão à repetição há uma O tema da exposição, "Sobre
tendência restitutiva, então a técnica clássica e técnicas atuais da
interpretação deve dar conta desses psicanálise" (1958b), leva seu
dois aspectos do automatismo de relator a formular algumas
repetição e realizar a restituição. Se precisões sobre a interpretação, as
entendemos a repetição pulsional quais servem para situá-la no
como uma tentativa de voltar a um contexto geral da teoria e da
estado anterior, de recuperar o objeto técnica da psicanálise. O trabalho
perdido, então nossa interpretação figura no livro como Estudo II, e
deve dirigir-se a esse plano arcaico interessa-nos o capítulo sobre a
das primeiras relações de objeto, seja interpretação, que discute os três
separação entre a criança e a mãe e, advérbios de modo já mencionados.
mais tarde, a separação do sujeito e O ponto em que mais fortemente
sua imagem especular. "Em ambos divergem as escolas é, embora
os casos, a repetição pulsional tende pareça paradoxal, no problema da
a retornar ao estado anterior, a repos- quantidade, porque dirimem a
suir o objeto perdido: fusão do atividade do analista e o valor
lactante com o seio materno, técnico do silêncio.
8 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN Quanto interpretar refere-se a E evidente que os que
um problema que concerne seguem Anna Freud e Hartmann e
especialmente à contraposição sobre que, depois da diáspora do grupo
a técnica clássica e as atuais, porque de Viena, vão desenvol- ver-se
há um lugar comum que ninguém se como Grupo B, na Hampstead
anima a tocar, mas que Racker Clinic de Londres, e como a escola
discute: o analista clássico é muito da psicologia do ego, nos Estados
silencioso e sua interpretação chega Unidos, são analistas muito
sempre para culminar um longo silenciosos. Sobretudo no começo
processo de silêncio. Se fosse assim, do tratamento, a norma geral é não
aponta Racker, dever-se-ia concluir interpretar absolutamente nada;
que Freud não está entre os analistas podem fazer observações ou
clássicos; Freud era muito ativo. comentários, mas não estritamente
Com o "Homem dos ratos", por interpretações.7
exemplo, dialoga, informa, explica, O mesmo fazem os analistas
participando bastante. Isto é do campo freudiano que Lacan
evidente. Em todos os seus inspira. Não interpretam durante
historiais, Freud mostra-se como um meses e, sem intervir, deixam o
analista que dialoga e, certamente, paciente falar, para que desenvolva
deve ter trabalhado sempre assim. seu discurso e denuncie o que eles
Em Podem os leigos exercer a chamam de palavra vazia, até que o
análise? (1926e), por exemplo, diz paciente possa falar
que o analista não faz mais que significativamente. Tampouco
entabular um diálogo com o paciente nesse último caso, que se esperou
e, nos historiais, apresenta de que tanto, o decisivo da técnica
forma concebia esse diálogo. lacaniana será uma interpretação
"Mostram, antes de mais nada, com que corresponda às palavras
quanta liberdade Freud desdobrava significativas do analisando, mas
toda a sua personalidade genial em antes uma pontuação no discurso,
seu trabalho com o analisando e interrompendo a hora para marcar a
quão ativamente participava de cada importância do dito, quando não
acontecimento da sessão, dando ple- um "hum!" aprovador. Assim como
na expressão a seu interesse. Faz na poesia a escansão mede o verso,
perguntas, ilustra suas afirmações também a técnica lacaniana
citando Shakespeare, faz consiste em escandir o discurso do
comparações e até realiza um analisando para detectar o
experimento (com 'Dora')" (Estudos, significante, evitando o perigo do
p. 44). espelhismo da interpretação,
Nada escreveu Freud após seus cuidando de não responder com ela
historiais, para se supor que tenha à demanda impossível do que fala.
modificado posteriormente essa Em "La direction de la cure
atitude. Alguém poderá sustentar que et les príncipes de son pouvoir"
ele mudou depois, na segunda déca- (1955a), assim como também em
da do século XX, ao dar-se conta dos outros trabalhos, Lacan compara o
problemas do setting e da analista com o morto do bridge. O
importância da transferência; todavia paciente é o que remata e joga; o
Racker não encontra uma só palavra analista é seu companheiro que põe
de Freud que apóie tal conjectura. suas cartas na mesa. O paciente tem
O concreto é que os analistas de mobilizar suas cartas e as de seu
que se chamam de freudianos falam analista, silencioso e passivo por
pouco. E pode-se dizer, também, que definição.
uma ruptura de Melanie Klein com a Essa atitude técnica respalda-
psicanálise clássica foi não se se nos postulados básicos de Lacan
sujeitar a essa norma de silêncio. Ao
tomar como ponto de partida a 7 Há razões para pensar que, às vezes,
ansiedade do analisando na sessão a chave dessa técnica não é o silêncio,
(ponto de urgência), Klein vê-se mas o não interpretar, à espera de que
levada naturalmente a falar mais. se estabeleça a neurose regressiva de
transferência.
FU

PS

sobre o simbolismo e a a quem Freud dá alguns conselhos


comunicação, não menos que em sua que ele próprio não necessita
teoria da demanda e do desejo. Um cumprir. Isto é, obviamente,
bom analista deve ficar sempre como discutível; porém, não há dúvida de
o morto, porque nunca se pode que, a partir dos escritos técnicos
satisfazer o desejo; satisfazem-se as de Freud da segunda década, as di-
necessidades, que são biológicas, vergências na práxis são cada vez
mas não o desejo, como ato maiores.9
psicológico. O desejo tem a ver com Uma dessas linhas é a que
o deslocamento da cadeia de encarna Theodor Reik, em "A
significantes e é esse deslizamento significação psicológica do
metonímico que dá significado, silêncio", em que postula não
instaurando a falta de ser na relação apenas que o analista deve ser
de objeto. A cada demanda que lhe silencioso, mas também que a
faça, meu analista responderá dinâmica da situação analítica
sempre "se fazendo de morto" (esse baseia-se fundamentalmente no
uso da gíria parece-me aqui silêncio do analista, mais no que o
particularmente justo) porque, em analista não diz do que no que
última instância, todas as minhas possa dizer. Em seu recém-citado
demandas não são mais que o artigo, assim como em outros de
discurso que devo percorrer passo a seu livro The inner experience of a
passo, até compreender que não psychoanalyst (1949a), entre os
tenho nada que esperar, que meu quais se destaca "In the beginning
desejo não8 será - nem pode ser - is silence" (p. 121), Reik sustenta
satisfeito. que o processo analítico põe-se
Cada teoria, pois, é realmente em prática quando o
conseqüente com sua práxis, em que, paciente dá-se conta, não só de que
querendo ou não, surgem diferenças. o analista não fala, como também
Os adeptos da psicologia do ego de que emudeceu, de que o analista
pensam que o analista deve ser não fala de propósito, de que tem
silencioso e deve interpretar vontade de não falar. E nesse
prudentemente, sem intoxicar o momento que o paciente sente mais
paciente com interpretações, nem necessidade de fazê-lo ele próprio
gastar pólvora em chimangos, como para mudar esse mutismo de seu
adverte o sábio dito crioulo: deve-se analista. Racker discute e critica tal
acertar o alvo e ser preciso. Os fato porque, se nisso se apóia a
lacanianos não podem interpretar instauração da situação analítica, o
muito, porque dariam a impressão de que se conseguiu foi criar uma
que se pode responder à demanda, o situação fortemente persecutória e
que seria um espelhismo. No en- essencialmente coercitiva, que foi
tanto, os ldeinianos, e em geral todos provocada e que opera como
os autores que aceitam a relação artefato, não como algo
precoce de objeto, na medida em que espontâneo.
atendem primordialmente ao Tal como fica explicitamente
desenvolvimento da angústia durante definida nos artigos mencionados, a
a sessão, intervêm mais, dando ao dinâmica da situação analítica
processo analítico um caráter mais consiste pam Reik em que o
de diálogo. analisando vivencie o silêncio de
Para salvar a distância 9A contradição que Racker descobre
inegável que há entre a forma de entre Freud e os analistas "clássicos"
analisar de Freud e a dos que se é, para mim um pouco mais que
acreditam seus discípulos diretos, às anedótica. E encontrada também em
vezes se afirma que os escritos outras áreas e passá-la por alto leva, às
técnicos dirigem-se ao principiante, vezes, a endurecer as controvérsias.
No ponto que agora estamos dis-
8Seria interessante detalhar aqui as cutindo, por exemplo, acredito que
similitudes e as diferenças entre Lacan e Melanie Klein mostre-se convencida
Bion, mas isso nos afastaria de nosso de que ela segue Freud, e não aqueles
tema. que propiciam o silêncio.
10 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN seu analista como uma ameaça que o continue falando de algo que nos
força a novas confissões. Segundo cria ansiedade, que não podemos
ele, "Obtém-se, assim, a impressão agüentar, ou também com a idéia
de que a atitude silenciosa do de acalmá-lo. Nesses casos, em
analista é determinada, em boa parte, realidade, a assim chamada
pela idéia de que a confissão em si é interpretação não é mais que uma
um fator muito importante ou forma neurótica empregada pelo
mesmo decisivo no processo de analista para negar que não pode
tratamento, o que representa uma suportar a ansiedade do paciente ou
idéia muito cristã, mas não a de si mesmo, que não tem
totalmente psicanalítica" (Estudos, p. instrumentos para tolerá-la e para
45). O que cura em psicanálise, diz interpretá-la. Do mesmo modo,
em seguida, é tornar consciente o quando o analista interpreta para
inconsciente e, por isso, necessita-se que o paciente não pense que não o
da interpretação. entende, como assinala Bion (1963,
Com lucidez e coragem, 1970), ainda que revista o que diz
Racker enfrenta depois, em seu com a roupagem da interpretação,
relato, o significado que podem ter o no fundo é um acting out. O que se
interpretar ou o calar do analista, deveria fazer, nesse caso, seria ver
assinalando que tanto um como o ou- primeiro por que penso que o
tro pode ser uma atuação; na analisando está pensando que não o
realidade, as duas coisas podem ser compreendo e depois examinar
boas ou más. Contra a opinião minha contratransferência para ver
clássica - embora tenhamos visto que por que desejo que ele não pense
esse epíteto é discutível -, pensa que dessa forma.
o calar do analista está mais
intrinsecamente ligado à atuação.
Visto que a tarefa do analista é
interpretar, não se poderia dizer que,
quando a cumpre, ele estaria atuando
(no sentido do acting out). Desse
modo, Racker tende a valorizar a
interpretação como a única ação
válida do analista frente a todas as
outras que, em princípio, seriam
atuação. Nesse ponto, o raciocínio de
Racker torna-se discutível, para
mim, e os termos gerais nunca bas-
tam para resolver o caso concreto.
Racker diz que a tarefa essencial do
analista é interpretar e tem razão,
mas escutar também é parte
essencial de nossa tarefa. Então,
nesse sentido, apenas o caso
concreto permite decidir quando
calar ou interpretar são o que
corresponde e quando são uma
atuação.
Se contrastarmos interpretar
com calar, como faz Racker, então
implicitamente nos pronunciamos a
favor de interpretar; contudo, se a
alternativa é entre falar e escutar, já é
diferente, porque sempre que alguém
interpreta fala, mas nem sempre que
fala, interpreta. As vezes
interpretamos para não escutar, com
o objetivo de que o paciente não
FUNDAMENTOS DA TÉCNICA

PSICANALÍTICA 11

Em resumo, a alternativa de interpretar e calar está disposta ocorre se pensarmos que, antes de interpretar, temos de esperar
em quatro áreas distintas: falar, interpretar, calar e escutar. Nem a (e até fomentar com nosso silêncio) a neurose de transferência, a
palavra, nem o silêncio são, por si mesmos, uma atuação, nem são partir de um processo de regressão no setting.
tampouco um ato instrumental. Em geral, podemos dizer que, Por fim, e para terminar esse tema, resta-nos considerar o
quando a palavra ou o silêncio são instrumentais, os dois são conteúdo das interpretações, o que interpretar.
igualmente válidos e, vice-versa, à medida que a palavra ou o O conteúdo das interpretações varia a cada momento e em
silêncio são destinados a perturbar o desenvolvimento da sessão, cada caso. Há muitas variáveis que dependem do material e das
são atuações. Como sempre na técnica psicanalítica, aqui também vicissitudes do diálogo analítico, como também do que
há matizes. Se o paciente tem uma ansiedade que o está invadindo, teoricamente pensamos a respeito do inconsciente. E
pode ser legítimo falar para lhe proporcionar um alívio obviamente, como disse Anna Freud no Congresso de
momentâneo, enquanto se busca a interpretação que poderá Copenhague de 1967, certas interpretações que não se davam
resolvê-la. antes se dão agora, porque conhecemos mais.
Pode-se afirmar, em suma, que o problema de quanto
interpretar é de singular transcendência, porque nos depara com
duas técnicas distintas e às vezes opostas. A quantidade de OS PARÂMETROS TÉCNICOS
interpretações está mais relacionada com as teorias do analista do Dissemos que os instrumentos que o psicoterapeuta utiliza
que com seu estilo pessoal ou com o material do paciente. para realizar sua tarefa são de quatro ordens e até agora
As outras duas interrogações que Racker formula, com estudamos apenas três, os que influenciam o paciente, os que
referência à oportunidade e ao conteúdo do que se interpreta, são
obtêm informação e os que a proporcionam, dentre os quais se
também importantes. destaca a interpretação. Cabe-nos agora nos referirmos ao que
Em relação a quando interpretar, os problemas que se faltava, o parâmetro técnico.
colocam continuam, obviamente, vinculados às teorias e ao estilo Esse conceito foi introduzido por K. R. Eissler em seu
pessoal do analista, mas aqui a influência do analisando é maior,
ensaio "The effect of the structure of the ego on psychoa-
com sua reivindicação latente ou manifesta pesando sobre a nalytic technique", publicado em 1953. Eissler voltou ao tema
contratransferência do analista. no Congresso de Paris, de 1957, no painel intitulado Variações
Além do material e da natureza especial do vínculo analítico
na técnica psicanalítica clássica, no qual Ralh R. Greenson
em um dado momento, as teorias do analista pesam atuou como moderador.
permanentemente em sua decisão de interpretar. Se seguirmos Eissler diz que a técnica analítica depende de três fatores:
Klein, atendendo preferentemente à forma como se apresenta a a personalidade do paciente, a vida real e a personalidade do
ansiedade durante a sessão, pensaremos que é lógico interpretaranalista. Seu trabalho ocupa-se exclusivamente do primeiro
cada vez que a angústia eleva-se criticamente. Nesse sentido, afator.
técnica de Klein está ligada totalmente ao ponto de urgência que Assim como um analisando ideal pode lidar sozinho com
marca o tíming da interpretação e, mais ainda, o ponto de urgência
a interpretação, outros precisam de que o analista faça algo mais
não apenas nos autoriza, mas também nos obriga a interpretar sem
do que interpretar. Tomemos como exemplo o fóbico em que,
demora. Se a angústia sobe excessivamente, e não a resolvemos aalém da interpretação, pode-se tornar necessário o conselho,
tempo, perturbamos a situação analítica. Essas afirmações de Klein
quando não a ordem de que se exponha à situação temida. Esse
provêm de sua prática com a criança, que deixa de brincar cada vez
procedimento, esse "algo mais" que o paciente requer, é o que
que surge a ansiedade e não a interpretamos. No adulto, de modoEissler chama de parâmetro técnico.
semelhante, surge um obstáculo na comunicação que perturba a O parâmetro é definido, pois, como um desvio quan-
associação livre, e o analisando cala-se ou começa a associar de
titativo ou qualitativo do modelo básico da técnica, que repousa
forma trivial. Se sai da sessão nessas condições, fica predisposto ao
exclusivamente na interpretação. Sublinhemos que, para Eissler,
acting out. esse parâmetro sustenta-se em uma estrutura deficiente do ego
Quando fala de timing no Congresso de Paris, Lõwenstein do analisando.
(1958) destaca a importância de que a interpretação seja dita no Eissler não apenas definiu o parâmetro, dando um lugar
momento justo, quando o paciente está maduro para recebê-la. na técnica ao que às vezes se faz e não se reconhece, mas
Contudo, reconhece que é difícil definir em que consiste esse também fixou claramente as condições em que é legítimo
momento e deixa-se levar pelo tato, sem considerar, em absoluto,
introduzi-lo: 1) deve-se utilizá-lo quando o modelo técnico
as precisões de Melanie Klein sobre o ponto de urgência e básico demonstrar-se insuficiente; 2) deve-se transgredir a
esquecendo que o "tato" tem sempre suas raízes na técnica regular o mínimo possível; e 3) só se deve utilizá-lo,
contratransferência. quando for destinado a eliminar a si mesmo.
No entanto, se pensarmos que apenas quando aparece uma A essas três condições Eissler acrescenta uma quarta: o
resistência que interrompe o fluxo associativo chegou o momentoefeito do parâmetro sobre a relação transferencial deve ser de tal
de interpretar, então decidiremos que é melhor que o paciente
índole que possa ser abolido posteriormente com uma
continue falando e que fiquemos calados.10 Nesse sentido, vê-seinterpretação adequada. O parâmetro nunca poderia, por
que a teoria influi sobre o momento da interpretação. O mesmo exemplo, comprometer a reserva analítica, até um ponto que
tornasse depois impossível restabelecê- la para continuar a
10 Aqui, Racker recorda que Freud procedeu assim com Dora, mas análise segundo a arte.
acabou arrependendo-se.
12 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN

Sobre as quatro condições do parâmetro não há muito o que de parâmetro o que o analista introduz na inteligência de que
dizer, pois falam por si próprias. E óbvio que uma medida desse encontrará nele um legítimo auxiliar da técnica. Nunca será
tipo só se justifica quando o analista entende como esgotados seus parâmetro, mas acting out, aquilo que o analista faça à margem
recursos regulares e a introduz com a maior circunspecção e de um objetivo técnico, terapêutico, e tampouco o será o que
parcimônia. Além desses estreitos limites, agitam-se as águas provier do paciente.
procelosas do acting out. E também compreensível que, enquanto Quanto ao acting out do analista, recordo o que me contou
medida de exceção, o parâmetro deve levar dentro de si a um paciente que veio pedir-me que lhe recomendasse um
necessidade de eliminar a si mesmo, quando seu uso já não for analista, após interromper um tratamento. Estava associando
mais necessário. Se decidimos propor a um analisando, que man- com um encanador muito eficiente, que havia resolvido um
tém um recalcitrante silêncio, apesar de nossos esforços e dos dele problema difícil dos encanamentos de sua casa; nesse momento,
próprio, que se sente no divã e experimente falar dessa forma, é o analista, que ao que parece também tinha graves problemas em
lógico que, uma vez que essa resistência ceda à nossa atividade seus encanamentos, interrompeu-o para pedir o nome desse
interpretativa, o analisando volte a se deitar. O parâmetro foi técnico tão confiável. O analisando deu-lhe o nome, de imediato,
introduzido, de fato, explicitamente, para lhe dar uma oportunidade e, em seguida, disse-lhe que não continuaria o tratamento.
de resolver a dificuldade de falar na posição deitada, mas não para O parâmetro é algo que o analista faz para superar uma
mudar de método. deficiência na estrutura egóica do paciente que não pode ser
A terceira condição de Eissler, entretanto, não é aplicável por resolvida com a técnica regular. O parâmetro é um recurso que o
definição a um dos parâmetros mais comuns, o que Freud analista emprega para se livrar de um obstáculo que vem do
empregou justamente com o "Homem dos Lobos": fixar uma data paciente. A teoria do parâmetro pressupõe que, sem ele, o
de término do tratamento. Esse parâmetro não pode ser eliminado processo analítico como arte não poderia continuar, e disso se
antes que o tratamento termine (Freud, 1918b). deduz que o analista sente-se na obrigação de abandonar por um
Apóio pessoalmente a atitude de Eissler ao introduzir o momento sua técnica. Por isso, penso que não é parâmetro o que
conceito de parâmetro, embora não concorde com o próprio o analisando decide por sua conta.
parâmetro. A atitude é plausível, pois se apresenta como uma Quando digo ao paciente silencioso que se sente no divã,
justificativa da técnica. Poderá ser bom ou mau introduzir um para ver se assim pode vencer seu mutismo, é porque penso que
parâmetro, mas o que é mau sem atenuantes é não se dar conta de dessa maneira se modificará a sua até então incoercível
que foi introduzido ou negá-lo. Isto nos acontece mais de uma vez, resistência. E completamente diferente da situação, na qual o
e Eissler defende-nos disso. O uso honesto do parâmetro previne- analisando, por si mesmo, decida sen- tar-se, em um dado
nos de praticar uma análise silvestre, coberta com falsas momento, porque pensa que assim falará melhor, ou por outro
interpretações. motivo qualquer. Parâmetro seria aqui contrariá-lo ou mostrar-
Apesar de reconhecer esse valor à técnica de Eissler, devo me de acordo com o que fez. Respeitar a decisão de meu
expressar o meu desacordo com a introdução de parâmetros por paciente, sem abdicar de modo algum de meu direito a analisá-
vários motivos. Ou talvez por um só e fundamental: não confio na la, é manter-me inteiramente dentro de minha técnica.
objetividade do analista quando decide que o modelo básico da Ao falar do contrato, disse algo que coincide plenamente
técnica já não é suficiente. A experiência mostrou-me com o que acabo de expor. O analista deve introduzir a norma
reiteradamente que, quando se recorre a um parâmetro, no começo no contrato. Se o analisando não pode ou não quer cumpri-la, o
é aplicado a casos excepcionais e depois vai sendo insensivelmente analista não a imporá, mas já tem o direito de analisá-la.
generalizado, o que é bastante lógico. Se encontramos um recurso No Congresso de Paris de 1957, discutiu-se extensamente
que nos permitiu resolver um caso sumamente grave, que mal o tema das variações da técnica psicanalítica.
haveria em aplicá-lo a outros mais simples? Nessa ocasião, Eissler (1958) volta à sua teoria do
Lembro-me de uma conversa de muitos anos atrás com um parâmetro, como um recurso que está à margem do instrumento
colega que estava começando a aplicar o ácido lisérgico. A minhas típico da análise, a interpretação. Contudo, creio notar duas
reservas, respondeu dizendo que era uma técnica excepcional, que restrições da teoria.
ele só empregava nos carac- teropatas mais duros, esses que não se Por um lado, Eissler considera que, muitas vezes, o
mobilizam nem com 20 anos de análise. Respondi a ele que, em parâmetro pode transformar-se em uma interpretação. Assim,
um lapso de tempo não muito longo, um ano ou dois, estaria por exemplo, em vez de pedir a um paciente que fale de como se
usando LSD com todos os seus analisandos. Infelizmente, tive ra- relacionam seus pais, pode-se interpretar
zão e só me excedi no prazo calculado.
E evidente que distingo perfeitamente a distância que há
entre administrar drogas alucinógenas e sugerir sentar-se no divã.
Para esse último caso, as perturbações que podem apresentar-se
sempre serão pequenas, além da forma como reaja um determinado
paciente. Porém, não estou aqui fazendo questão de grau,
assentando o princípio geral de que, como analistas, não temos
melhor forma de ajudar nossos clientes do que permanecendo fiéis
à técnica.
Ao discutir esse tema, convém esclarecer um aspecto que
muitas vezes passa despercebido. Considero que só se deve chamar
que ele nunca fala desse tema, etc. Do mesmo
modo, em vez de estimular o fóbico para que enfrente
a situação que lhe provoca angústia, pode-se
interpretar que ele resiste a fazê-lo, ou algo do
gênero. FUNDAMENTOS DA TÉCNICA PSICANALÍTICA 203
Eissler restringe também sua teoria originária, introduzindo a
idéia depseudoparâmetro. Alguns recursos que, de acordo com as
definições clássicas, não poderiam ser chamados de interpretação
operam, no entanto, como se o fossem. O pseudoparâmetro pode
ser utilizado, por exemplo, em casos em que a interpretação
provoca insuperáveis resistências, de modo que ele pode introduzi-
la clandestinamente (Eissler, 1958, p. 224). Um chiste, no mo-
mento certo, pode ser um recurso desse tipo.
Desse modo, parece-me que a teoria do parâmetro fica
reduzida - e mesmo questionada - por seu próprio criador.
Se o que Eissler chama de pseudoparâmetro não é mais que
um recurso formal de dizer as coisas, com respeito e com tato, em
nada se afasta da técnica clássica. Se o que pretende é introduzir
algo clandestinamente, eu nunca o utilizaria e, nesse caso, prestaria
atenção a que conflito de contratransferência está levando-me a
utilizar esse procedimento tão pouco católico.

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