No capítulo anterior, rastreamos o identificando-se com os objetos do paciente, e
conceito de contratransferência, desde quando o fenômeno que ele mesmo descreve, no qual foi introduzido por Freud, em 1910, até a o analista vê-se forçado a desempenhar um segunda metade do século XX, quando papel que lhe sobrevêm: é a violência da começa a ser estudado com outro enfoque, identificação projetiva do analisando o que em outro paradigma: como uma presença diretamente o leva, além de seus conflitos ineludível, como instrumento, não menos que inconscientes, a assumir esse papel. Grinberg obstáculo. chega a ser tão categórico que diz que aqui Vimos que Racker estudou a não está em jogo, em absoluto, a contra- contratransferência da perspectiva dos transferência do analista e até assinala fenômenos de identificação e descreveu dois pacientes que, com diversos analistas (que ele tipos, concordante e complementar. Dissemos teve oportunidade de supervisionar), que essa classificação apresenta alguns configuraram a mesma situação. problemas e também os assinalamos. A A contribuição de Grinberg destaca, classificação de Racker apóia-se em uma teo- pois, uma forma especial de resposta do ria da identificação, que agora estudaremos analista, em que o efeito da identificação mais detidamente, seguindo sobretudo projetiva é máximo, de qualidade distinta. Grinberg e Money-Kyrle. Embora se possa dispô-lo em uma escala crescente de perturbações, situa-se além do A CONTRA-IDENTIFICAÇÃO ponto em que uma mudança quantitativa PROJETIVA torna-se qualitativa. Com seu conceito de contra- As idéias de Grinberg assentam-se em identificação projetiva, León Grinberg fez fatos clínicos facilmente observáveis, bem uma contribuição de valor à teoria geral da registrados pelo autor. O conceito de contra- contratransferência ou, como ele pensa, além identificação projetiva é útil e operativo. dessa teoria, já que se ocupa "dos efeitos reais Todavia, aceitá-lo não obriga a compartilhar a produzidos no objeto pelo uso peculiar da opinião de que, nesses casos, opera somente o identificação projetiva proveniente de analisando (e não o analista), o que, em meu personalidades regressivas" (1974, p. 179). entender, é discutível e difícil de demonstrar. O pensamento de Grinberg sustenta e A discriminação entre a contratransferência continua o de Racker, e um de seus méritos complementar e a contra-identificação principais é que, à diferença deste, Grinberg projetiva não é difícil, do ponto de vista leva muito em conta a identificação projetiva. clínico, se forem separadas quantitativamente. Estabelece uma gradação que vai da Se quisermos separá-las como dois processos contratransferência concordante à de índole distinta, a diferenciação torna-se complementar para chegar à contra- mais árdua, e nao sei se temos indicadores identificação projetiva. O que Grinberg para decidir isso, apesar da cuidadosa postula especificamente é que há uma investigação de Grinberg. Se o método não diferença substancial entre a nos fornece instrumentos para discriminar contratransferência complementar, na qual, clinicamente, pode- se também argumentar frente a determinada configuração que, a partir da teoria, por mais forte que seja transferencial, o analista responde a projeção do paciente, o analista não tem de sucumbir necessariamente a ela; se sucumbe é 2 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN porque há algo nele que não lhe permite ilustrativo, Grinberg volta a algo em que receber o processo e devolvê-lo. insistiu desde o começo, o processo parte do analisando e origina no analista uma reação O específica, pela qual se vê levado inconsciente DESENVOLVIME e passivamente a cumprir os papéis que o NTO DA paciente atribuiu-lhe. Trata-se, pois, de um caso muito especial da contratransferência. INVESTIGAÇÃO Enquanto que o comum da resposta DE GRINBERG contratransferencial é que o analista tome O conceito de contra-identificação consciência do tipo de sua resposta e utilize-a projetiva tem não apenas importância técnica, contra-identificaçãotécnico, como instrumento projetiva no fenômeno da o analista reage mas também teórica, e propõe um problema como se tivesse assimilado real e aberto e apaixonante, o da comunicação pré concretamente os aspectos que nele se ou não-verbal. Vale a pena, então, que o projetam. Então, é como se o analista estudemos mais detidamente, seguindo passo "deixasse de ser ele para se transformar, sem a passo o pensamento do autor. O primeiro trabalho de Grinberg sobre o poder evitá-lo, naquilo que o paciente inconscientemente quis que se convertesse tema, "Aspectos mágicos na transferência e (id, ego ou outro objeto interno)" (1957, p. na contratransferência", foi apresentado na 24).1 Associação Psicanalítica Argentina em 27 de Em um dos exemplos clínicos do março de 1956 e foi publicado em 1958. E um trabalho estudo da magia à luz dos mecanismos de ficado domuito simpósio, o analisando, que havia identificação, em que o fenômeno fica interpretações do surpreso quando as definido com as seguintes palavras: diarréia, começou a falar de música uma analista detiveram em "A'contra-identificação projetiva' produz-se termos técnicos, com o que conseguiu especificamente como resultado de uma provocar admiração e inveja no analista, excessiva identificação projetiva do sentimentos que ele mesmo tinha sentido analisando que não é percebida depois da suspensão de sua diarréia. conscientemente pelo analista, e que, como conseqüência, vê-se 'levado' passivamente a estudaAnospartir desses trabalhos, Grinberg desempenhar o papel que, de forma ativa - identificação projetiva nao efeito anos seguintes da contra- técnica e no embora inconsciente, o analisando 'forçou desenvolvimento do processo analítico para dentro de si'" (1958, p. 359-360). Um quando em 1963 volta ao tema eme, mês depois dessa exposição, no Simpósio "Psicopatologia da identificação e contra- sobre técnica psicanalítica da Associação identificação projetivas e da contratransfe- Psicanalítica Argentina, presidido por rência", interessa-se especialmente pelo valor Heinrich Racker em abril de 1956, Grinberg comunicativo da contra-identificação apresentou seu trabalho "Perturbações na projetiva, processo que considera de interpretação pela contra-identificação importância central. Em certas situações, "a projetiva", publicado em 1957, no qual estuda identificação projetiva participa de um modo especialmente o efeito da contra-identificação mais ativo na comunicação das mensagens projetiva naquilo que é a tarefa essencial do extraverbais, exercendo uma influência maior analista: de interpretar. Anteriormente, Grinberg havia no p. receptor; em nosso caso, o analista" (1963, 114). publicado "Sobre alguns problemas de técnica Procurando precisar a diferença entre a psicanalítica determinados pela identificação contra-iden- tificação projetiva e a e contra-identificação projetivas", que apa- contratransferência receu na Revista de Psicanálise de 1956. A salienta que nesta o complementar objeto do de Racker, paciente com o segunda parte desse trabalho de 1956 qual o analista identifica-se é vivenciado apareceu em 1959, com o título "Aspectos como próprio,ou seja, representa um objeto mágicos nas ansiedades paranóides e depres- interno do analista. A situação é, então, que sivas", e nela Grinberg refere o caso de uma no caso da transferência complementar o paciente que, na primeira sessão, o fez sentir analista reage passivamente à projeção do como se estivesse analisando um cadáver, o que coincidia com o suicídio de uma irmã quando a paciente era criança. Com esse caso 1 "Perturbações na interpretação pela contra- identificação projetiva" (1957). F M S T A P A 3 analisando, mas a partir de suas próprias contratransferência complementar e a contra- ansiedades e conflitos. Na contra- identificação projetiva não é fácil de se identificação projetiva, porém, "a reação do precisar. Sempre se pode pensar que o analista é, em grande parte, independente de analista, em última instância, participou, seus próprios conflitos e corresponde, de apesar de que se tenha sentido forçado ou forma predominante ou exclusiva, à obrigado pela identificação projetiva do intensidade e à qualidade da identificação paciente. Por mais forte que tenha sido a projetiva do analisando" (p. 117). identificação projetiva recebida, o analista O aspecto mais original (mas também, poderia ter sido capaz de introjetá-la talvez, o mais discutível) da teoria da contra- ativamente e responder de forma adequada. identificação projetiva é que, nesses casos, Não se pode descartar, então, que, se ele se não intervêm os conflitos específicos do deixou dominar pelo impacto pro- jetivo, é analista, que é levado passivamente a pela neurose de contratransferência. Em desempenhar o papel que o paciente atribui- outras palavras, a passividade do analista lhe. Melanie Klein descreveu a identificação pode ser uma forma "ativa" de não projetiva (1946) como uma fantasia compreender ou de preferir que o invadam. onipotente, na qual o sujeito põe no objeto Nesse ponto, a teoria de Grinberg é difícil de partes suas com as quais fica, por ser comprovada com nossos métodos clínicos. conseguinte, identificado. A partir de então, o Quando se estudam os casos concretos progresso da investigação foi mostrando o em que se observa, sem sombra de dúvida, a valor da identificação projetiva no processo força do impacto de que fala Grinberg (no de comunicação e, assim, foi abrindo caminho material de supervisão, por exemplo), o a idéia de que a identificação projetiva opera calcanhar-de-Aquiles do analista às vezes é no objeto. Grinberg adere decididamente a descoberto e, outras vezes, não. essa idéia e assim o diz em 1973: "E parte Um dos casos de Grinberg (1959) - dos importante da teoria da identificação projetiva primeiros em que adverte o fenômeno e um patológica que esta produza efeitos reais ponto de partida de toda a sua reflexão - é o sobre o receptor e que, portanto, seja mais que da paciente que coloca nele sua parte morta, a uma fantasia onipotente (que é como M. irmã que se suicidou. O que Grinberg percebe Klein define a identificação projetiva)" inicialmente, à maneira de uma associação (1976b, Cap. 15, p. 277). contra- transferencial de corte humorístico, é Quando Bion (1962b) introduz o que "esta quer encaixar o morto em mim". conceito da tela beta, destaca que, graças a Que há por parte da paciente uma ela, o paciente psicótico provoca emoções no projeção decidida e total do morto no analista analista, (Cap.10) e essa afirmação coincide e que este recebe tal impacto passivamente é claramente com a teoria de Grinberg, que a um fato bastante ostensivo. Entretanto, não se menciona em um de seus últimos trabalhos a pode descartar o conflito contratransferencial menciona para caracterizar a modalidade do analista, ainda mais porque todo analista peculiar da identificação projetiva descrita por tem sempre a sensação de assumir uma ele (1974). Pode-se supor, então, que essas grande responsabilidade na primeira sessão emoções são, até certo ponto, independentes de um tratamento. Essa responsabilidade pe- da contratransferência do analista. sada, esse fardo, chama-se em nosso argot Portanto, a idéia fundamental de "carregar o morto". Com sua perspicácia Grinberg, é que no fenômeno da contra- habitual, Grinberg notou de início a atitude identificação projetiva o analista não participa cadavérica da paciente e, após sua primeira com seus conflitos, mas fica dominado pelo interpretação, percebeu que havia sido exato, processo projetivo do paciente. porém mais superficial do que o drama do Do ponto de vista prático, a teoria de momento exigia. Foi ali que se surpreendeu Grinberg ajuda-nos nos casos - freqüentes - com a fantasia de estar analisando um em que o analista sente-se mais invadido do cadáver e, de imediato, prosseguiu sua que comprometido na situação analítica. associação humorística. Não creio que, com Quanto à teoria do processo analítico, esse belo material, possa-se descartar a Grinberg oferece-nos uma hipótese estimável participação contratransferencial (em sentido para compreender os meios sutis de estrito) do analista. comunicação que se estabelecem entre o analisando e seu analista. Como dissemos anteriormente, a delimitação teórica entre a 4 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN A CONTRATRANSFERÊNCIA NORMAL melhor maneira possível, o analista precisa, diz Money-Kyrle, de uma dupla identificação, Money-Kyrle escreveu apenas um que, a meu ver, inclui as duas de Racker, trabalho sobre contratransferência, em 1956, concordante e complementar. Se a no qual introduz o conceito de identificação concordante ocorre com o ego contratransferência normal, isto é, algo que se infantil sofredor do analisando, sem apresenta regularmente e que intervém, por absolutamente levar em conta o objeto direito próprio, no processo psicanalítico. parental, o mais provável é que o analista Chama de contratransferência normal a do tenha utilizado a identificação projetiva não analista que assume um papel parental, com- para compreender o ego infantil de seu plementar ao do,paciente: como a analisando (empatia), mas para se transferência consiste em reativar conflitos desembaraçar de um aspecto infantil que não infantis, a condição que mais convém à pode tolerar dentro de si. contratransferência é a parental. Entende-se Money-Kyrle afirma decididamente em que normal quer dizer aqui a norma, e não seu trabalho que o conflito que o processo seja totalmente sublimado e contratransferencial do analista provém não livre de conflito. O analista assume essa apenas de seu próprio inconsciente, mas atitude contratransferencial a partir de uma também do que lhe causa o paciente (ou do vivência inconsciente, na qual se sente o pai que lhe projeta), à maneira das séries ou a mãe do paciente. Acrescentemos que é complementares. Nesse ponto, Money-Kyrle novamente o setting que nos favorece e que concorda com Racker, apesar de ser evidente nos põe ao resguardo de desenvolver que não o leu, já que não o cita. A interação uma/oZie à deux. A situação assimétrica que sutil entre analisando e analista é estudada no o enquadre impõe e define permite dar uma artigo de Money-Kyrle com todas as resposta adequada ao que o paciente filigranas do contraponto musical. Seguindo transferiu; porém, nossa resposta inicial é Margaret Little (1951), nosso autor salienta sentir inconscientemente o impacto da que o analisando não é apenas responsável transferência, que nos situa em um papel (em parte) pela contratransferência do parental. analista, senão que também sofre seus efeitos. Salta à vista que esse critério é oposto A única solução que o analista tem é analisar ao de Racker, já que aqui se atribui a maior primeiro seu conflito, ver depois de que empatia a uma contratransferência de tipo maneira o paciente contribuiu para criá-lo e, complementar. por último, observar os efeitos de seu A partir desse modelo claro e simples, conflito, no paciente. Apenas quando esse Money-Kyrle avança um passo a mais e processo de auto-análise tenha sido cumprido afirma que a contratransferência pode ser é que o analista estará em condições de adequadamente instrumentada a partir de uma interpretar; então, já não terá necessidade de dupla identificação, com o sujeito e seu falar de sua contratransferência, mas2 objeto, porque o analista, na realidade, para basicamente do que ocorre com o analisando. cumprir bem sua tarefa, tem de se colocar nos dois lugares. Esse duplo mecanismo é realizado pela identificação projetiva do ego UM CASO CLÍNICO infantil do analista no paciente e pela identificação introjetiva da figura parental. Vimos ao longo dessa exposição, que, Na contratransferência normal, o analista para resolver o problema que a transferência assume o papel do pai projetado pela criança do paciente propõe, devemos compreender o e, por outro lado, pode compreender o papel que acontece com ele (identificação de criança, não apenas graças a essa posição concordante) e também o que ocorre com seu de pai, mas também graças a uma objeto (identificação complementar). identificação projetiva de seu ego infantil no Questionamos a hipótese de Racker de que a paciente, mobilizada por sua tendência a compreensão ou a empatia do analista deriva reparar. das identificações concordantes. Digamos Agora fica mais claro que o calcanhar- agora que, em geral, é o principiante quem de-Aquiles da classificação de Racker reside tende às identificações concordantes, porque em que fala de um processo de identificação, sem discriminar seu mecanismo, que pode ser introjetivo e projetivo. Para funcionar da 2 Voltaremos a esse tema no final do próximo capítulo. F M S T A P A 5 pensa, como o empregado de comércio, que o que já tinha aparecido em suas associações cliente sempre tem razão. O verdadeiro anteriores (o que foi, para mim, um indício trabalho analítico é bastante diferente desse válido do clima da transferência); contudo, tipo de acordo e, às vezes, exige que nos logo se refez e disse, com arrogância, que situemos em outra perspectiva que não a do essas eram apenas interpretações analisando, eqüidistantes dele e de seus psicanalíticas, elucubrações minhas. Voltei a objetos. interpretar esse juízo seu no duplo nível da Uma mulher um pouco além da meia- relação adolescente com a mãe, na idade, e com um grande conflito com a mãe, perspectiva da rivalidade edípica direta e da que começou a ser resolvido quase no final da relação oral com o seio que se retira. análise, propõe em uma sessão o problema Mostrei-lhe sobretudo o tom mordaz de seu que lhe cria sua filha adolescente, "que a comentário, capaz de rachar o bico de seio deixa louca", enquanto seu filho varão está de analítico. cama, com aftas. Então, surgiu um recordação Como antecedente, direi que, a partir do encobridora muito importante. Perguntou-me, desenvolvimento do último ano de sua desafiadora, o que sabia eu de sua mãe, como análise, havíamos chegado ao acordo de que, eu lhe resolveria esse problema insolúvel, o em princípio, seu tratamento poderia terminar que eu pensava, se ela agora recordava e nesse ano ou no próximo. Embora ela tenha nunca me havia dito antes que, quando estava ficado muito alegre quando assim em sua latência (ela, obviamente, não combinamos e embora eu tenha sido claro ao empregou esse termo) e atirava-se no chão, a dizer-lhe que o término já se anunciava, mas mãe perdia totalmente as estribeiras e dava- que eu não acreditava que pudesse ser muito lhe pontapés. (A paciente empregou aqui logo, abriu-se uma fenda profunda entre nós, expressões mais vulgares, que denotavam a e isso implicava uma catástrofe. carga sádico-anal do conflito.) Eu não Sem nenhum contato com meu (creio responderia nada, com certeza, porque não lhe que prudente) comentário de que a análise daria razão. Seu tom desafiador seguiu-se a poderia terminar em não mais que dois anos e duas ou três interpretações que fiz em relação sem retificar sua persistente idéia de que eu à menina adolescente que ela era na sessão. teria em análise por toda a vida, veio, na Eram interpretações, ao menos assim acredito, sessão que comento, com o problema de seus convincentes e bem formuladas, mas seu tom dois filhos. Com base em algumas não mudou. Senti aqui um momento de associações significativas, disse-lhe que a fen- irritação e desalento, e cheguei imediatamente da aberta entre nós era, outra vez, o à interpretação que creio correta. Disse-lhe, nascimento de sua irmã, quando ela estava em então, que nesse momento ela se havia atirado plena lactância; talvez a mãe possa ter tido, no chão com a boca cheia de aftas, de dor e de nessas circunstâncias, fendas no bico do seio. ressentimento e que não havia maneira de Essa interpretação parece que lhe atingiu um falar com ela, de ajudá- la. Esperneava no pouco, porque reconheceu, a contragosto, que chão com a esperança de que eu, como mãe, a alegrava a perspectiva de ter alta, mas não compreendesse sua dor e ao mesmo tempo podia deixar de se sentir mal quando pensava tentando perturbar minha equanimidade para em que alguém viria a ocupar seu lugar em que eu realmente lhe desse pontapés. A meu divã. interpretação chegou a ela, e, certamente, De imediato, tratou de se afastar de seus minha contratransferência resolveu-se, fiquei ciúmes infantis e voltou às aftas de seu filho e tranqüilo. à adolescência da menina, que interpretei O exemplo mostra que, às vezes, uma como aspectos de sua relação comigo: o boa compreensão provém fundamentalmente conflito com sua filha adolescente expressa de uma contratransferência complementar. sua rebeldia e as aftas do filho são, talvez, o Não se deve esquecer que minhas interpre- correlato das supostas fendas do bico do seio tações anteriores, concordantes com sua dor de sua mãe. Sugeri-lhe que, no momento do (as aftas), e com sua rebeldia ao ter de„je desmame, ela poderia ter tido aftas, e quem separar da mãe, terminar a análise e ser ela sabe como teria sido tudo aquilo, se o seio mesma, haviam encontrado sua repulsa mais havia-se fendido ou se era como se sua boca recalcitrante, i^nmdo a tensão baixou e foi estivesse com chagas. Comoveu-se ostensivo que a interpretação tinha causado novamente e voltou a mencionar uma (pe- efeito, recordo que lhe disse, porque ela é quena) rachadura na parede do consultório, uma mulher com humor: "Que razão dou a 6 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN dona Fulana (a mãe) quando lhe dava com sua própria filha. Nesse plano, que pontapés no chão!". Respondeu, então, com apareceu depois de interpretada com bom insight que ela mesma tinha dito à Fulaninha êxito a transferência materna negativa, estava (a filha), pouco ãntes da sessão, que "hoje intacta uma boa imago da mãe, a tinha vontade de lhe dar um chute na bunda". transferência positiva e, eu me atreveria a O material é interessante, a meu ver, acrescentar, também a aliança terapêutica. porque o conflito ocorre em todos os níveis: na transferência, na atualidade e na infância; porém, estou convencido, de que a A NEUROSE DE compreensão principal estava vinculada a CONTRATRANSFERÊNCIA reconhecer e interpretar a ação da paciente O caso clínico recém-apiesentado para sobre o objeto para lhe retirar sua ilustrar as contribuições de Grinberg e de equanimidade e sua capacidade de ajuda e, Money-Kyrle serve também para voltar a com isso, também a esperança, remota mas Racker e a um c, ^ to seu, audaz e ao mesmo viva, de que a pudessem compreender. tempo rigoroso, a neurose de Não sei se Grinberg tomaria esse caso contratransferência. Desse modo, Racker como um exemplo de contra-identificação define o processo analítico em função de seus projetiva. Há vários elementos para pensá-lo dois participantes. assim: que o desejo de colocar no objeto ana- Freud (1914g) assinalou que as lista a imagem da mãe impaciente (para não transferências do analisante cristalizam-se, dizer sádica) é muito forte, é muito violento. durante o tratamento, na neurose de Até mesmo vale a pena assinalar que, transferência. Racker (1948) aplica o mesmo fenomenologicamente, a situação assemelha- conceito para o analista, sem perder de vista se à citada em seu trabalho no Simpósio de as diferenças quexão de um caso a outro: 1956. Refiro-me ao caso do doutor Alejo "Assim como no analisando, em sua relação Dellarossa, submetido a uma forte tensão por com o analista, vibra sua personalidade total, um paciente que o provocava (masoquistica- sua parte sã e neurótica, o presente e o mente) de forma constante para que o jogasse passado, a realidade e a fantasia, assim do consultório a pontapés (Grinberg, 1957, p. também vibra o analista, embora com 26-27). diferentes quantidades e qualidades, em sua De qualquer forma, em meu entender, o relação com o analisando" (Estudos sobre processo todo está vinculado à técnica psicanalítica, p. 128). contratransferência: nenhum desses conflitos No Estudo Y que acabamos de citar, e é alheio à minha própria neurose e à minha no seguinte, intitulado "Os significados e possibilidade de me situar no lugar da usos da contratransferência", Racker. adolescente rebelde, no lugar do lactante, no caracteriza a neurose de contratransferência a lugar do seio atacado e com rachaduras, no partir de três parâmetros: contratransferência lugar da menina que provoca a mãe por concordante e complementar, ressentimento e vingança e, por fim, no lugar contratransferência direta e indireta, da mãe, que não sabe o que fazer com sua associações e posições contratransferenciais. filha rebelde, sem deixar de compreender Já analisamos os tipos concordante e que, em última instância, também ela tem complementar de contratransferência com razão quanto a que, seja o que for o que ela certo detalhe; no próximo capítulo, falaremos fizer, não está em questão dar-lhe pontapés. da contratransferência direta e indireta, Há toda uma série de identificações projetivas segundo o analista transfira o objeto de seu e introjetivas, que são feitas a partir da conflito a seu paciente ou a outras figuras de contratransferência - não da fria razão, porque significação especial: o paciente derivado ao minha capacidade de compreender o que se candidato por seu (admirado) analista de passava e de resolver a situação partiu de um controle, por exemplo. momento de dor, irritação e desalento. Nós nos deteremos, por um momento, Vale a pena destacar que, após a no terceiro parâmetro de Racker. Às vezes, interpretação da transferência materna quando o conflito contra- transferencial do negativa, o material mostrou ostensivamente analista é fluido e versátil, costuma aparecer que outro determinante do conflito transfe- como associação contratransferencial. O rencial era ver como eu me comportava com analista encontra-se de repente pensando em minha filha rebelde, ao modo de um role algo que não se justifica racionalmente no playing, para aprender comigo e lidar melhor contexto em que aparece, ou que não soa F M S T A P A 7 como algo que tenha a ver com o analisando. do analista é maior e tem a ver com a grave No entanto, as associações do analisando, um patologia do paciente. Ele o chama de sonho ou um ato falho mostram a relação. fixação contratransferencial crônica e Recorde-se aquela associação con- considera que se configura quando a tratransferencial de Racker quando saiu por patologia do paciente, sempre muito um instante do consultório para buscar troco. regressivo, reativa padrões neuróticos O paciente havia-lhe entregado uma nota de arcaicos no analista, de sorte que analisando mil pesos (quantos anos passa- ram-se, desde e analista complementam-se de tal forma que aquela sessão!) e havia-lhe indicado o troco parecem reciprocamente ensam- blados. que tinha de lhe dar. Racker deixou a nota em Kernberg atribui essa dificuldade, que é sua mesa e saiu pensando que, ao voltar, os persistente e difícil de solucionar, à força da mil pesos não estariam mais ali e que o agressão pré-genital que o mecanismo de analisando diria que ele já os tinha recolhido, identificação projetiva mobiliza em ambos, enquanto o analisando, sozinho diante de analista e paciente, com limites cada vez seus queridos mil pesos, pensou em guardá- mais apagados entre sujeito e objeto. A los ou em dar-lhes um beijo de despedida fixação contratransferen- cial crônica (Estudo VI, p. 169-170). aparece, com freqüência, no tratamento de Como nesse caso, as associações psicóticos e borderlines, mas também em contratransferenciais não implicam, em geral, períodos regressivos de pacientes de tipo um conflito muito profundo e, assim como menos grave. afloram de repente na consciência do ana- lista, também aparecem com certa facilidade no material do analisando. O perigoso - diz ALÉM DA CONTRA-IDENTIFICAÇÃO Racker - é desprezá-las quando se PROJETIVA apresentam, em vez de levá-las em considera- Desejo terminar este capítulo com uma ção, à espera do material do paciente que as nova consideração da investigação de confirme. Se assim acontece, pode-se Grinberg. Em seus últimos trabalhos, esse interpretar com um alto grau de segurança. Se autor procurou utilizar o conceito de contra- a associação contratransferencial do analista identificação projetiva para dar uma visão não é confirmada pelo material do mais ampla - mais tridimensional, diz, analisando, não cabe utilizá-la para uma seguindo Enid Balint - da interação dinâmica interpretação: e por dois motivos, porque que, sem dúvida, é a pedra angular da relação poderia não ter relação direta com o paciente analítica. ou porque está muito longe de sua Em sua introdução ao painel Os afetos consciência. na contratransferência, do XIV Congresso Diferentemente da associação, a Latino-Americano de Psicanálise, que se posição contratransferencial indica quase intitula justamente "Além da contra- sempre um maior conflito. Aqui, os identifica- ção projetiva" (Grinberg, 1982), sentimentos e as fantasias são mais profundos expõe, com sua habitual clareza, novos e duradouros, podendo passar despercebidos. pensamentos. É o caso do analista ^ue reage com irritação, Recorda que o termo contra- angústia ou preocupação frente a um identificação projetiva quis desde o começo determinado paciente. As vezes, esse aspecto sublinhar que a fantasia de identificação da neurose de contratransferência é muito projetiva provoca efeitos no receptor, no sintônico e passa completamente analista. Este reage, então, incorporando real despercebido. Lembro que, quando estava co- e concretamente os aspectos que nele se meçando, quando não me parecia um grande projetaram. Na atualidade, diz Grinberg, problema cancelar ou mudar a hora de algum "penso que a 'contra-identificação projetiva' paciente, surpreendeu-me um deles (de não tem por que ser necessariamente o elo caráter passivo-feminino) dizendo-me que, final da cadeia de complexos acontecimentos como ele era submisso, certamente eu trocava que ocorrem no intercâmbio das co- a sua hora quando queria, sem me importar municações inconscientes, com pacientes nenhum pouco. Tinha razão. que, em momentos de regressão, funcionam Otto E Kernberg (1965), concordando com identificações projetivas patológicas" em geral com as idéias de Racker, descreve (Grinberg, 1982, p. 205-206). um caso especial de posições contratransferenciais em que a participação 8 R. HORÁCIO ETCHEGOYEN Desse modo, a contra-identificação projetiva oferece ao analista "a possibilidade de vivenciar um espectro de emoções que, bem compreendidas e sublimadas, podem converter-se em instrumentos técnicos utilíssimos para entrar em contato com os níveis mais profundos do material dos analisandos, de um modo análogo ao descrito por Racker e por Paula Heimann para a contratransferência" (p. 206). Para que se consiga isso, acrescenta Grinberg em seguida, o analista deve estar disposto a receber e conter as projeções do paciente. Com essas reformulações, a contra- identificação projetiva já não se situa fora da contratransferência, nem a posição do analista é puramente passiva frente a ela. Antes disso, a disposição de recebê-la e de compreendê-la como mensagem deve ser reconhecida como uma das mais altas produções de nossa atividade profissional. Creio que, com as mudanças mencionadas, Grinberg depura e precisa seu pensamento anterior, superando algumas falhas, que tentei justamente apontar há pouco. Isto realça o ponto decisivo de sua contribuição, o fator comunicativo da identificação projetiva nos estratos mais arcaicos da mente do homem. Quando falarmos, no Capítulo 44, da relação diádica entre analista e paciente, veremos que Spitz e Gitelson também aceitam uma contratransferência normal, que denominam diatrófica e que aparece, para eles, desde o começo da análise.