Você está na página 1de 5

Extraído de:

D. W. WINNICOTT Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

Capítulo 32 - A Interpretação na Psicanálise

Datado de 19 de fevereiro de 1968

De tempos em tempos é importante examinar os princípios básicos da técnica


psicanalítica e tentar reavaliar a importância dos diversos elementos que a técnica
clássica abrange. Conceder-se-á, de modo geral, que uma parte importante dessa
técnica é a interpretação, e é meu intuito aqui estudar uma vez mais essa parte
específica do que fazemos.

A palavra "interpretação" implica que estamos utilizando palavras, e há a im-


plicação ulterior de que o material fornecido pelo paciente é verbalizado. Em sua
forma mais simples, existe a regra básica, que ainda tem força, embora muitos
analistas nunca instruam seus pacientes mesmo sobre este detalhe. Nesta época,
após mais de meio século de psicanálise, os pacientes sabem que se espera que
digam o que lhes vem às mentes e não retenham nada. É também geralmente
reconhecido hoje que uma grande parte da comunicação que se dá do paciente
para o analista não é verbalizada.

Isto foi notado pela primeira vez em termos dos matizes da fala e das
diversas maneiras pela qual a fala certamente envolvia muito mais que o
significado das palavras utilizadas. Gradualmente os analistas descobriram-se
interpretando silêncios e movimentos e um grande número de detalhes
comportamentais que se achavam fora do domínio da verbalização. Apesar disso,
sempre houve analistas que preferiam muito mais ater-se ao material verbalizado
oferecido pelo paciente. Quando isto funciona, tem vantagens óbvias, pelo fato de
o paciente não se sentir perseguido pelos olhos do observador.

Com um paciente calado, homem de 25 anos, uma vez interpretei o


movimento de seus dedos, enquanto as mãos lhe repousavam entrelaça das
sobre o peito. Ele me disse: "Se você começar a interpretar esse tipo de coisas,
vou ter de transferir esse tipo de atividade para outra coisa que não apareça". Em
outras palavras, estava me apontando que, a menos que ele houvesse
verbalizado sua comunicação, não cabia a mim fazer comentários.

Há também o vasto tema que pode ser explorado das comunicações do


analista que não são transmitidas em verbalização direta ou, sequer, em erros de
verbalização. Não há necessidade de desenvolver este tema, por ser óbvio, mas
ele começa com o tom de voz do analista e a maneira pela qual, por exemplo,
uma atitude moralista pode ou não apresentar-se em uma declaração que, em si
própria, poderia se dizer ser nada mais que uma interpretação. Comentários
interpretativos já foram explorados e certamente discutidos em grande extensão

1
em inumeráveis horas de supervisão, de maneira que talvez haja necessidade de
efetuar um estudo ulterior ao longo destas linhas no presente momento.

O propósito da interpretação deve incluir um sentimento que o analista tem de


que foi feita uma comunicação que precisa ser reconhecida. Esta é talvez a parte
importante da interpretação, mas este intuito muito simples acha-se amiúde
escondido entre um monte de outras questões, tal como a instrução com
referência ao emprego de símbolos. Como exemplo disto, se poderia tomar uma
interpretação do tipo "Os dois objetos brancos no sonho são os seios", etc. Tão
pronto o analista tenha embarcado neste tipo de interpretação, ele abandonou a
terra firme e acha-se agora em uma área perigosa onde está utilizando as suas
próprias idéias, e estas podem estar erradas do ponto de vista do paciente, no
momento.

Na forma mais simples, o analista devolve ao paciente o que este comunicou.


Pode facilmente acontecer que o analista ache que isto é uma ocupação fútil,
porque, se o paciente comunicou algo, qual é o sentido de dizê-Io de volta, exceto,
naturalmente, pelo intuito de informar ao paciente de que o que ele disse foi
ouvido e que o analista está tentando alcançar corretamente o sentido.

Fornecer uma interpretação de volta dá ao paciente oportunidade de corrigir


os mal-entendidos. Há analistas que aceitam tais correções, mas há também
aqueles que, em seu papel interpretador, assumem uma posição que é quase
inexpugnável, de maneira que, se o paciente tenta fazer uma correção, o analista
tende antes a pensar em termos da resistência daquele do que em termos da
possibilidade de que a comunicação tenha sido errada ou insatisfatoriamente
recebida.

Aqui, está-se já examinando variedades de psicanalistas, das quais existem


muitas, e, indubitavelmente, uma das tarefas de ser um analisando é vir a saber
como éo analista, o que ele espera e qual a linguagem que fala, e que tipo de
sonhos pode utilizar, etc. Isto não é inteiramente inatural, por se assemelhar
bastante ao que acontece com uma criança que tem de vir a conhecer que tipo de
pais existem para serem usados como pais. Apesar disso, em um debate entre
analistas, tenderia a ser tomado como certo que muitos pacientes são incapazes
de fazer uso de analistas que exigem que o paciente faça mais que uma certa
porção de adaptação, ou, para dizê-Io ao contrário, fazer uso de analistas que não
são capazes ou não estão dispostos a fazer mais que uma certa adaptação às
necessidades do paciente.

O princípio que estou enunciando neste momento é que o analista reflete de


volta o que o paciente comunicou. Este enunciado muito simples a respeito da
interpretação pode ser importante pelo próprio fato de ser simples e evitar as
tremendas complicações que surgem quando se pensa em todas as
possibilidades que podem ser classificadas na premência interpretativa. Se este
princípio muito simples é enunciado, ele imediatamente precisa de elaboração, e
sugiro que necessita de elaboração do seguinte tipo: área limitada da

2
transferência de hoje, o paciente tem um conhecimento exato de um detalhe ou de
um conjunto de detalhes. É como se houvesse uma dissociação pertencente ao
lugar a que a análise chegou hoje. É útil lembrar que, desta maneira limitada ou
desta posição limitada, o paciente pode estar dando ao analista uma amostra da
verdade, isto é, de algo que é absolutamente verdadeiro para o paciente, e que,
quando o analista o devolve, a interpretação é recebida pelo paciente que já
emergiu, até certo ponto, desta área limitada ou condição dissociada. Em outras
palavras, a interpretação pode mesmo ser dada à pessoa total, enquanto que o
material para a interpretação derivou apenas de uma parte da pessoa total. Como
pessoa total, o paciente não teria sido capaz de ter fornecido o material para a
interpretação.

Desta maneira, as interpretações fazem parte de uma construção de insight.


Detalhe importante é que a interpretação foi dada dentro de um certo número de
minutos ou mesmo segundos do material muito rico em insight que foi
apresentado. Ela certamente é dada na mesma sessão analítica. A interpretação
correta, dada no dia seguinte, após uma supervisão, não tem utilidade, por causa
desta operação muito poderosa de um fator temporal. Em outras palavras, desde
uma área limitada, o paciente tem insight e fornece material para uma
interpretação. O analista recebe esta informação e a fornece de volta para o
paciente; o paciente, a quem ele a devolve, não se acha agora mais na área de
insight com referência a este elemento ou constelação psicanalítica particular.

Com este princípio em mente, é possível sentir que a reflexão de volta para o
paciente do que este já disse ou transmitiu, não é uma perda de tempo, mas em
verdade, pode ser a melhor coisa que o analista pode fazer na análise desse
paciente, nesse dia específico.

Há uma certa oposição a esta maneira de olhar as coisas, porque os analistas


gostam de exercer as habilidades que adquiriram e têm muito que podem dizer a
respeito de qualquer coisa que apareça. Exemplificando, em resposta a uma
pergunta, um paciente bastante calado conta ao analista muita coisa a respeito de
um de seus interesses principais, que tem a ver com o tiro aos pombos e a
organização deste tipo de esporte. E extremamente tentador para o analista, neste
ponto, utilizar este material, que é mais do que o que ele com freqüência obtém
em duas ou três semanas, e, indubitavelmente, ele poderia falar a respeito da
morte de todos os bebês não nascidos, sendo o paciente um filho único, e poderia
falar também sobre as fantasias destrutivas inconscientes na mãe, por esta ter
sido um caso depressivo e haver cometido suicídio. O que o analista sabia,
contudo, era que todo o material provinha de uma pergunta e que não teria
aparecido se o analista não o houvesse convidado, talvez simplesmente pela
impressão de que estava perdendo o contato com o paciente. O material, portanto,
não era material para interpretação, e o analista teve de reter tudo o que pôde
imaginar com referência ao significado simbólico da atividade que o paciente
estava descrevendo. Após certo tempo, a análise voltou a ser silenciosa e é o
silêncio do paciente que contém a comunicação essencial. As pistas para este
silêncio estão apenas lentamente surgindo e, diretamente, não existe nada que

3
este analista possa fazer para que o paciente fale.

Mal se precisa mencionar que, com freqüência, o paciente produz material


que o analista pode de forma útil interpretar noutro sentido. E como se o analista
pudesse usar os processos intelectuais, tanto os seus quanto os do paciente, para
avançar um pouco. O principal é a reflexão de volta para o paciente do material
apresentado, que pode ser um sonho. Apesar disso, os dois juntos podem brincar
de usar o sonho para obter um insight mais profundo. Existe aqui um grande
perigo, porque a interação pode ser agradável e até mesmo excitante e fazer tanto
o paciente quanto o analista sentirem-se muito gratificados. Apesar disso, existe
apenas uma certa distância até onde o analista pode, com segurança, levar o
paciente mais além do lugar em que este já se encontra.

Exemplo disso seria o seguinte: uma paciente apresenta um i sonho


recorrente, um sonho que lhe dominou a vida. Está morrendo de fome e só lhe
sobra uma laranja, mas vê que esta foi mordiscada por um rato. Ela tem fobia a
ratos e o fato de o roedor haver tocado a laranja toma impossível que ela a use. A
aflição é extrema. Trata-se de um sonho ao qual esteve sujeita toda a vida.
Diagnosticamente, ela entra na categoria de criança carente. O analista não
precisa fazer nada a respeito deste sonho, porque o trabalho já foi feito no sonhar
e, depois, no lembrar e no relatar. Estes últimos são resultados do trabalho já feito
no tratamento e têm a natureza de um prêmio resultante do aumento da confiança.
A matéria pode ser deixada aí e o analista pode esperar que mais material
apareça. Neste caso particular que estou descrevendo, havia uma razão externa
para o analista não poder permitir-se esperar, porque não ia haver oportunidade
para outras sessões. Ele fez a interpretação, portanto, correndo por isso o risco de
estragar o trabalho que já havia sido feito, mas também abrindo a possibilidade de
que a paciente pudesse ir mais além imediatamente. Esta é uma questão de
julgamento e o analista sentiu aqui que o grau de confiança era tal que ele podia
prosseguir e até mesmo cometer um erro. Disse ele: "A laranja é o seio da mãe,
que foi uma mãe boa desde o ponto de vista de você, mas foi a mãe que você
perdeu. Os ratos representam tanto o seu ataque ao seio quanto o ataque do seio
a você. O sonho tem a ver com o fato de que, sem auxílio, você está empacada,
porque, embora ainda se ache em contato com o seio original que pareceu bom,
você não pode fazer uso dele, a menos que possa ser ajudada através do estágio
seguinte em que você excitadamente ataca o seio para comê-Io como comeria
uma laranja".

Aconteceu que, neste caso, a paciente conseguiu utilizar esta interpretação


imediatamente, e produziu dois exemplos: um deles ilustrava o relacionamento
dela com a mãe, antes de perdê-Ia, e outro era uma lembrança da época da perda
real da mãe. Desta maneira, a paciente obteve liberação emocional e houve uma
acentuada mudança clínica para melhor.

Qualquer analista pode fornecer inumeráveis exemplos de interpretações que


os pacientes foram capazes de usar e que os levaram mais além do ponto que
haviam atingido quando estavam apresentando o material específico à sessão.

4
Apesar disso, este exemplo particular salienta de maneira simples a dinâmica
essencial da interpretação que vai mais além do reflexo de retorno do material
apresentado.

No ensino de estudantes, contudo, não se pode enfatizar demais que é


melhor ater-se ao princípios de refletir de volta o material apresentando, do que ir
ao outro extremo das interpretações argutas, que, ainda que precisas, podem sem
embargo levar o paciente mais além do que a confiança transferencial permite, de
maneira que, quando o paciente deixa o analista, a revelação quase miraculosa
que a interpretação representa repentinamente transforma-se numa ameaça, por
se achar em contato com um estágio de desenvolvimento emocional que o
paciente ainda não atingiu, pelo menos como personalidade total.

Você também pode gostar