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Ltrzir,tt-rc Zacché Avellar

Jogando na
Anâlise de CrtanÇas
Intervir-inte rpr etar nLL
Aborclagem \üTinnicottiana

Casa do Psicólogot
cepÍturo z
A INrnnpnnreçÂo

Hrsróruco Do coNcErro

A interpretação está presente no cotidiano do trabalho ana-


lítico. Laplanche e Ponralis (1970) dizem que a comunicação da
interpretação é por excelência o modo de ação do analista, e por
isso o termo "interpretação", usado de forma absoluta, tem igual-
mente o sentido técnico de "interpretação comunicada ao paci-
ente" (p.319). Prosseguem dizendo que, nesse sentido técnico, a
interpretação está presente desde as origens da psicanálise.
Quando Freud escreve Estudos sobre a histeria (1895), o
objetivo principal erafazer ressurgir as recordações patogênicas
inconscientes e a interpretação não era ainda definida como o
modo principal da ação terapêutica.
Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud lançou as
bases para que pudéssemos compreender a teoria da interpreta-
ção que predominou na psicaniflise durante muitos anos.
O modelo apresentado em 1900 supõe que existe uma dada
realidade, uma realidade de pensamentos oníricos que sofrem uma
série de transformações, dando origem ao conteúdo manifesto
do sonho. O trabalho da interpretação visaria alcançar o nível
latente do sonho. A interpretação tem a função de tornar o in-
consciente - consciente, assim como dar um sentido ao material.
],r tzr,r:lr Z,q.«:i lr:r Avnr.r..,t.rr
JoceNtxr N,t A,rÁr.tsr t.lti Cnt.,t.N(;,q.s

A capacidade de compreender a estrutura do sonho aumen- "arte da interpretação" para superar a resistência provocada pela
tou a habilidade de Freud para interpretar. Posteriormente, pas- repressão.
sou a se apoiar na produção espontânea do paciente e, utilizan- Outra alteração do nrétodo ocorreLr a partir do conceito de
do-se das interpretações, chegou até as lembranças reprimidas. transferência. Em uma nota do texto de 1914, aponta-se que o
Em l9l l, no texto O manejo da interpretação dos sonhos tópico da transferência fbi posto em debate no pós-escrito do
na psicanrílise, Freud integrou a interpretação na dinâmica do Caso Dora (1905). A paciente teria abandonado o tratamento
tratamento, dizendo como o analista devia utilizar a arte da inter- porque Freud não teria sido capaz de analisar os múltiplos ele-
pretação dos sonhos no tratamento psicanalítico dos pacientes: mentos transferenciais que surgiram em seu tratamento.
"tt interpretuç'ão de sonhos não deve ser perseguida no trctta- A transferência é apresentada por Freud como "compulsão
nlento ctnolític<t como o ctrte peLct erte, mas que seu maneio det,e à repetição", no texto Recordar, repetir e elaborar de 1914: "o
submeter-se ricluelas regros técnictrs qLte orienÍctm a direção do que nos inÍeressa, acima de tttdo, é, naturalmente, a relação des-
tratanxento cotlto wn todd' (p. 124). sa compulsão à repetição com a transferência e com a resistên-
Freud acrescentou que, para interpretar Llm sonho ou elucidar cia" (p.197).
um sintoma, devia-se apreender os seus diferentes signiÍicados e Mais adiante, Freud diz que o "instrumento principal para
contentar-se caso a tentativa de interpretação trouxesse à luz um reprimir a compulsão do pociente à repetição e transformá-la
único impulso patogênico de desejo. num motivo para recorular reside no man,e.jo da transferência"
Estes fbram os "primeiros momentos" da interpretação na (p.201).
psicanálise. A técnica psicanalítica sofreu mudanças. No texto A transferência passa a ser uma das fbntes de material mais
Recortltr4 repeÍir e eLuborar (1914), Freud sintetizou :rs altera- valiosa para o trabalho analítico, a ênfase passa a ser tornar o
ções sofiidas pela técnica psicanalítica desde o seu início. A pri- inconsciente, consciente, na transÍ'erência.
meira fase, a da caiarse de Breurer, consistia em focalizar o mo- Etchegoyen (1987) cita o trabalho "Elementos de una teoria
mento da Íbrmzrção do sintoma e em esforçar-se para reproduzir de la interpretación", no qual D. Anzieu (1979) acompanha as
os processos mentais envolvidos nessa situação para dirigir-lhes
concepções freudianas sobre o aparelho psíquico e as conseqüen-
a descarga ao longo do caminho da atividade consciente. O que
tes mudanças no tratamento. Na primeira concepção, que com-
se visava era recordar e ab-reagir com auxílio.
preende os Estudos sobre a histeria (1895), o sintoma é o equi-
Com o abandono da hipnose, a tarefa passou a ser desco- valente a uma lembrança desprazerosa e é resolvido quando o
brir, a partir das associações livres do paciente, o que ele deixava trâtamento (catártico) recupera a lembrança. A interpretação é
rlc recordar. A resistência deveria ser contornâda pelo trabalho um ato intelectual que comunica à consciência.
ila interpretação. A técnica passor.l a ser a interyretação da resis- Na segunda concepção, o sintoma serve aos interesses do
ti'rrcilr. tonurndo-a corrsciente ao pacierrte. sujeito e sua resolução exige um deslocamento das catexiets que
Ncste ponto, acontece uma alteração na Í'orma de se conce- hão de mudar seu objetivo e seus modos de satisfação. Agora, a
lrt'r' o pr«rcesso analíticcl, a ab-reação dos aÍ'etos dá lugar para a
interpretação traz uma representação de palavras, e a rcprcscnta-
srrpt'r'lrr,:i-io rla rmnésia. A resistência passa a ser um elemento
ção patológica é reprimida e inconsciente. Ac;tri a intcrprctação
t t'rrlr;rl tlcnlrrr cla teoria psicanalítica e o analista deveria usar a
leva em consideração os processos transl-crcnciais. Alérn da in-
+()
4l
Lr rzmxr Zlr:cuÉ: Avsl-r-au
Joc,rN»o N,t ANÁlrsr »t Cnunçes
terpretação, operam a atitude do analista na situação analítica,
A essas interrogações, Freud responde: "somenÍe após uma
seu silêncio, suas intervenções, honorários, horários, como igual-
transferência efical" (p. I82). Posteriormente, "condena toda linha
mente importantes e inclusive com freqüência decisiva.
de conduta que nos levasse a dar ao paciente uma tradução de seus
A terceira concepção leva em consideração o automatismo
sintomas assim que nós próprios a adivinhássemos, ou mesmo a
de repetição e os sistemas de identificação que intervêm na estru-
considerartiunfo especial lançar-lhe essas "soluções" ao rosto na
tura do aparato psíquico. A interpretação opera se a compulsão à
pimeira entrevista" (p. 183). Tal postura seria considerada inade-
repetição é entendida como uma tendência restitutiva. portanto, a
quada e sem nenhum valor para o trabalho analítico levando ao des-
interprettrção tem que dar conta desses dois aspectos: do
crédito e ao desencorajamento do paciente. Essa postura também
automatismo da repetição e da possibilidade da restituição. Se a
seria condenada nos estágios posteriores da análise.
repetição pulsional é entendida como uma tentativa de voltar a um
estado anterior, de recuperar o objeto perdido, então a interpreta-
ção tem que se dirigir ao plano arcaico das primeiras relações.
A evoruçÀo Do coNCErTo
Do ponto de vista da utilização da interpretação no trabalho
analítico, ressaltamos o texto de Freud, psicancílise silvestre
Como vimos, historicamente, a interpretação constitui o tri-
(1910) em que ele aborda o ponto das informações que devemos
pé que sustenta o processo analítico junto com as associações
fornecer ao paciente:
livres (no caso de pacientes adultos) e os processos transfercnciais.
Ao longo do tempo, vamos acompanhar uma evolução do
o informar ao paciente aquilo que ele não sabe porque
conceito e da técnica interpretativa. As diferentes teorias psica-
ele reprimiu é apenas um dos preliminares necesstirios
nalíticas, junto ao estilo pessoal do analista, determinam a fre-
ao tratamento. Se o conhecimento acerca do inconsci_
qüência, o timing, a maneira de se formular, veicular e transmitir
ente fosse tão importante para o paciente, como as pes-
a interpretação ao paciente.
soas sem experiência de psicantilise imaginam, ouvir
Racker (apud Etchegoyen ,1987), afirma que as escolas di-
conferências ou ler livros seria suficiente para curá-lo.
vergem no que diz respeito a quanto, quando e como interpretar.
This medidas porém tem tanta influência sobre os sin-
Com relação a quanto interpretar, Racker afirma que o que
tomqs da doença nervosa, como a distribuição de car-
ocoffe é uma contraposição entre a técnica clássica e as técnicas
dápios numa época de escassez de víveres tem sobre a
atuais. É cornu* atribuir-se a Freud o adjetivo de analista silen-
fome. (p.2ll) cioso. O autor aponta dois trabalhos de Freud para sustentar uma
afirmação contrária a esta, em O homent dos ratos (1909), Freud
Também em Novas recomendações sobre a técnica da psi-
dialoga, informa e explica. Assim como em El análise prcfano
canálise (1913), Freud faz algumas advertências:,,euarudo de-
(1926), Freud diz que "o analista não faz mais do que trovor u,n
vemos comeÇar afaTer nossas comunicações ao paciente?
eual diálogo com o paciente". Racker afirma que, em seus historiais,
é o momento para revelar-lhe o signfficado oculto clas icléias que
Freud realmente dialoga com o seu paciente. Mesrno assim, du-
lha ocorrem, e para iniciá-lo nos postulados e procedimentos
rante muito tempo, os analistas que se diziiun íier"rdianos íhla-
tt;t'rticos tla análise?" (p. 182).
vam muito pouco.
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Lttzr,rxe Zecctrl Avrllen -Jrt<teNno ire ANÁr-rsn »l: CruaNçes

Os analistas que seguem Anna Freud, afirma Racker, A mrnnpruTAÇÀo E ouTnos rNSlliuMENTos
têm, como regra geral, fazer pouco uso da interpretação, so-
bretudo no início do tratamento. Observações e comentários Mesmo sendo o fundamento da técnica analítica, o analista
podem ser feitos, não interpretações. O analista deve ser mais não se restringe à atividade interpretativa. Ele utiliza outros ins-
silencioso. trumentos: a informação, o esclarecimento e a confrontação fa-
Ainda segundo Racker, o grupo que segue Melanie Klein zem parte do instrumental de que o analista dispõe para auxiliar
faz muito uso da interpretação, utiliza a ansiedade do pacien- o seu trabalho. Alguns autores como Loewenstein (1951) e
te para assinalar o ponto de urgência, determinando o timing Greenson (1967) consideram esses instrumentos como prepara-
da interpretação. A interpretação também é utilizada quando tórios para a interpretação e esta é o procedimento técnico mais
o fluxo associativo é interrompido pela resistência. importante.
O mesmo zrutor afirma que os analistas inspirados por Lacan Etchegoyen (1987) postula que a interpretação "se refere
deixam o paciente falar para que ele desenvolva o seu discurso e sempre a algo que pertence ao paciente, mas do que ele não tem
possa íàlar significativamente. Nesta perspectiva, o analista pon- conhecimento" (p. 178). Para ele, a finalidade da interpretação é
tua o discurso para marcar a importância do que foi dito. O ana- informar. É uma maneira especial tle informar, repartir conheci-
lista é silencioso e passivo. mento, por isso deve ser desinteressada, veraz, pertinente e dada
Não podemos falar de uma "escola winnicottiana", isto em um contexto no qual possa ser operativa, mesmo que final-
porque Winnicott criticava a aderência rígida do analista a um mente não o seja.
único autor. Mas, é cada vez maior o número de analistas que Etchegoyen (1987) cita o trabalho de Loewenstein (1951)
utilizam sua obra pafa "criat" ou "repens ar" o fàzer clínico, e no qual este afirma que a interpretação "é Ltma informação (co-
é nesse sentido que queremos assinalar o modo próprio que nhecimento) que se dá ao paciente, que se reJere ao paciente e
tinha de fazer as interpretações nas análises que conduziu. que provoca as mudanças que conduzem ao insight" (p.225).
Partia de sua teoria do amadurecimento humano para ter uma Mesmo concordando com a definição de Loewenstein,
compreensão das "imaturidades" do indivíduo. A partir de um Etchegoyen diverge quanto ao aspecto de que a interpretação deva
diagnóstico preciso, o analista detecta as necessidades do pa- conduzir ao insight, pois esta relação é complexa, uma vez que
ciente para que este possa dar continuidade ao seu processo nem todas as interpretações produzem insights. Também, ao as-
de desenvolvimento. Mais do que interpretações precisas, o sumir o desejo de que a interpretação produzisse insight, o ana-
analista deve possibilitar que um campo de experiência seja lista estaria ferindo a regra da imparcialidade. Prefere dizer que a
aberto no setting analítico que funciona como meio ambiente interpretação está destinada a produzir insight, mas não tem de
para que os aspectos psíquicos que não puderam ser constitu- produzi-lo, pois até a interpretação mais perfeita pode ser
ídos ao longo do desenvolvimento possam sê-lo na análise. inoperante. De todo modo, o que o analista pode fazer por meio
Outros autores concordam qte o setting deva ser modificado de sua interpretação é encorajar o paciente afazer mais trabalho
prra qlre se possa tratar de questões provocadas por um meio analítico - elaborar.
irrnbiente inadequado. É o caso de Balint (1937),Milner (1952) Na tentativa de definir a interpretação em uma oLltra pers-
r: Kharr ( 1969). pectiva, Liberman (apud Etchegoyen,l9ST) aflrma q\e"o ana-
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Jot;,trrrr>o N,t ANÁt,rsl nr Ctlrlr:es
Luzr,tNr,: ZeccuÉ Avrt.lln

A TNTgzu,RETAÇÀo NA ANÁI,ISE DE CITIANÇAS


lista dá um segundo sentido ao materíal do paciente". Segun-
do o autor, a interpretaçáo traz uma nova conexão de significado.
A interpretação na análise de crianças insere algumas
O analista toma diversos elementos das associações livres do pa-
especificidades no processo analítico. A criança tem uma forma
ciente e produz uma síntese que dá um significado diferente à
peculiar de se comunicar. Utiliza-se de jogos, desenhos, movi-
experiência. Essa conexão é real, simbólica e certamente não é
mentos, ações, e isto impõe ao analista a reestruturação na sua
delirante. É sempre uma hipótese que deve ser comunicada e, em
maneira de se comunicar com o paciente.
conseqüência, torna-se retificável. Ela dá ao paciente uma opor-
Na sessão, as ações com a criança estão repletas de signifi-
tunidade de organizar uma nova forma de pensamento.
cados. Isso exige do analista uma atenção redobrada às ações e
Greenson (1961) discute alguns elementos que consideramos
às falas da criança. A atenção do analista é capturada por viírios
importante introduzir neste trabalho: "para chegar à interpreta-
elementos presentes na sessão, o que impõe um modo peculiar
ção, o antrlisÍct uso suo própria menle consciente, sua empatia, já que as crianças não fazem associa-
de fazer as interpretações,
sua intuição e.ftrntusict, além clo inteler:to e conhecimento teórico"
ção livre como os adultos.
(p. 105). A empatia é o meio que possibilita o analista avaliar o
No centro das controvérsias entre Anna Freud e Melanie
momento e a forma de oferecer a interpretação ao paciente.
Klein, encontramos a questão da transferência e, conseqüente-
Rosenfeld ( 1988) também aponta a interpretação como prin-
mente, a possibilidade (ou não) de interpretá-la. Para Anna Freud,
cipal instrumento de trabalho do analista. Preocupa-se principal-
a criança não tem capacidade de desenvolver uffra neurose de
mente em captar a experiência emocional do paciente para de-
transfêrência porque "ainda não esgotou a velha edição". Os pais
pois interpretá-la. Para ele, é fundamental entender os detalhes
ainda existem na realidade e não só na fantasia, o que leva à
da comunicação do paciente, e, para isso, o analista deve ter a
impossibilidade de se ter uma transferência passível de interpre-
capacidade de usar os seus próprios sentimentos para"saber es-
tação; o trabalho analítico é feito sob transferência positiva, e a
colher o momento oportuno de fornecer a interpretação e assim
transferência negativa deve ser dissolvida por meios não analíti-
permitir que suas palavras tenham um sentido emocional para o
cos. Este é um ponto central dentro das diferenças entre as duas
paciente" (p. 50)
técnicas. Melanie Klein considera que a neurose de transferência
Concordamos com Greenson (1967) e Rosenfeld (1988)
se produz na criança de maneira semelhante à que ela observa
quanto ao papel que a empatia e a intuição desempenham para
nos adultos e que a úansferência positiva e negativa devem ser
compreendermos a comunicação feita pelo paciente. A empatia
manejadas analiticamente pela interpretação, investigando até a
possibilita uma relação de confiança e auxilia na avaliação da
sua fonte, o complexo de Edipo.
melhor maneira de transmitir ao paciente sua interpretação: o tom
A dificuldade de a criança fazer associação livre também é
de voz, as palavras que serão utilizadas e o momento oportuno
um ponto controverso para as duas autoras. Anna Freud utiliza-se
para fazer uma comunicação. A intuição significa a possibilida-
da interpretação de sonhos das crianças e faz críticas à Melanic
tlc de o analista usar os seus próprios sentimentos para compre-
Klein quanto ao uso do simbolismo atribuído ao brinquedo da crian-
r:nclcr o seu paciente, portanto, no trabalho analítico, estão ope-
nrutlo os processos da transferência e contratransferência, abrin- ça. Melanie Klein rebate as críticas dizendo que chega u clcscorrl'i,
ar que Anna Freud não compreendeu sua técnica, pois rriio ltrriir
rlo rrrrr calxpo para a análise se constituir.
4/
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Lr rzt,rNl Z,t<:cr rr Avlr-r.,r.H
Joc,soo l,t AN,,tr.rslt ns CtrraN(,es

interpretações tão cruas dos jogos infantis.2 Segundo Klein, a cri- mesma manifestação por parte clo analista, com a intenção de
ança expressa material psíquico por vários meios, e, se o analista acentuar uma similaridade de expressão que supostamente deva
observa qlle as atividades da criança são acompanhadas de senti- se estabelecer entre o terapeuta e a criança para que possam se
mentos de culpa ou ansiedade, isto deve ser interpretado ligando o comunicar. Acrescenta que as situações ,nalíticas com as quais o
fenômeno ao inconsciente ou à situação analítica. Então, as duas analista de criança se depr.rra sempre irnplicarn uma ,.ação,, de
técnicas também divergem quanto à questão da utilização do bnn- sua parte. Nos casos de grande inibição da criança para jogar, o
car e sua interpretação na análise de crianças. analista toma a iniciativa, mobilizando jogos que possarn ter re-
Como conclusão, podemos dizer que Anna Freud desenvol- lação com o conflito da criança, ou, quando há necessidacle de
ve sua teoria da interpretação não só pela dificuldade de as crian- conter a criança fisicamente, quando esta se coloca em risco.
ças fazerem associação livre, mas também por manter-se fiel às A questão é: quando podemos considerar estas ações por
concepções de Freud sobre o complexo ae Édipo. Neste caso, a parte do analista como fatores terapêuticos? De outra maneira:
interpretação flcaria limitada porque a criança supostamente não qual o efeito terapêutico dessas ações? A. J. Campo diz que, se
seria capaz de desenvolver a neurose de transfêrência porque seu aceitamos que a criança pequena se expresse predominantemen_
objeto original de amor, os pais, ainda existe como objeto concre- te pela ação e o analista de crianças também a utiliza para colo_
to. Melanie Klein, por sua vez, considera o aparecimento da situa- car-se no mesmo nível, deveríamos aceitar que a capacidade de
ção edípica precocemente. Desde bem pequena, a criança teria identificação que este último tem com seu paciente é a de utilizar
capacidade de desenvolver uma neurose de transferência resultan- estâ mesma linguagem arcaica que é a ação = que nem sempre
do na necessidade de interpretá-la na situação analítica. está sob o domínio consciente como no adulto.
A técnica kleiniana de interpretação consiste em interpretar Estamos de acordo com o autor de que não se trata de dimi_
tão logo quanto for possível: a demora na interpretação pode levar nuir a importância da interpretação na análise de crianças, mas
a situações de angústia e resistência, e, no caso de surgirem, tam- de inserir a "ação" do analista como um fator terapêutico, consi-
bém devem ser interpretadas com o objetivo de aliviar a angústia e derando interpretação e ação como fatores que contribuem para
reduzir a resistência, facilitando o acesso ao inconsciente. A técni- promover o processo analítico. O analista, de sua parte, deve es-
ca de Klein é baseada ainda nos fatos de a criança ter capacidade tar atento para avaliar quando isso é possível.
eueremos chamar
para compreender o valor semântico da intelpretação; de que a atenção também para o fato de que A. J. Campo propõe agregor
interpretação deve remeter os símbolos à sua origem; e da necessi- à interpretação um outro detalhe técnico: a ação, para que se
dade de se dizer à criança a versão sem ocultamentos: os símbolos mobilizem jogos que se supõe estarem em relação estreita com o
devem ser interpretados sem euf-emismos. conflito da criança. Portanto, neste contexto, a ação não é uma
Em um artigo pioneiro, Alberto J. Campo (1957) discute a intervenção. Só o será se vier acoplada à interpretação verbal, ou
"ação" na análise de crianças. Afirma que tanto Freud como M. seja, para este autor, a ação complementa a interpretação. O que
Klein utilizam o termo ação pzLra designar as expressões não ver- estamos propondo neste trabalho é uma perspectiva dif'erente.
bais rla criança. A. J. Campo utiliza o termo ação para designar a E. Rodrigué ( 1963) examina as distintas qualiciades c possi_
bilidades dos diferentes meios expressivos da criança c como
Irr: Sirrrptisio sohre a análise infantil ( 1927). p.204. estes permitem que o analista construa a interprctaçãr. o aut,r
48 i9
Lr-rzraNl: Z.cccHÉ AvHlian
Jor;nN»o xa AnÁr.rsn »e Cnre.Nces
entende que o jogo é um meio de a criança expressar suas fanta-
Essas idóias passaram a ser incorporadas ao cotidiano do
sias inconscientes: "a cada modalidade expressiva do paciente
analista de crianças. Em nosso trabalho clínico utilizamos: a in-
corresponde uma modalidade da cttenção do terapeuta". A aten-
terpretação verbal, a interpretação lúdica e a ação interpretativa
ção flutuante ou lúdica são partes que constituem a interpreta-
como parte de um processo que etrl seu conjunto constitui a prdxis
ção. São o primeiro passo da ação interpretativa e o produto fi-
do analista de crianças.
nal, as palavras ditas ao paciente estarão de certa forma determi-
A nossa concepção de interpretação difere dos autores que
nadas pela nossa atitude ao colecionar o material. Assim, a atitu-
viemos apresentando até aqui e está pautada principalmente nas
de lúdica na captação do que é dito pelo paciente tem uma conse-
idéias de D. W. Winnicott. Em que ela se diferencia? Os traba-
qüente atitude lúdica na interpretação dada à criança.
lhos de A. J. Campo (1957) e Rodriguó (1963) têm como pano de
Para o autor, a interpretação lúdica começa com uma toma-
fundo a interpretação. Ambos consideram que os aspectos por
da de contato, direta e sensorial com o material empregado pela
eles levantados antecedem um trabalho interpretativo - as ações
criança. E, nesse sentido, está orientada desde o meio de expres-
do analista, a interpretação lúdica e as ações interpretativas não
são não verbal, plástico, até a comunicação verbal. Esquema-
têm o valor de uma interpretação, elas funcionam como um meio
ticamente, constam dois tempos: no primeiro, o terapeuta imita o
de facilitar que a interpretação atinja o paciente. O objetivo, como
jogo da criança, e, no segundo, transmite sua impressão verbal-
disse Rodrigué, é tornar a interpretação mais veraz, mais dramá-
mente, valendo-se dos meios plásticos de expressão que foram
tica e mais convincente para a criança. Nos dois trabalhos, há um
empregados. Essa atitude implica dramatizar ainterpretação. Mais
predomínio da interpretação verbal.
adiante, Rodrigué diz que o objetivo é tornar a interpretação mais
Em nosso trabalho, acreditamos que na sessão o analista
veÍaz, mais dramática e mais convincente para a criança.
espera a criança fazer um movimento e solicitar interlocução. As
Tanto A. J. Campo quanto E. Rodrigué concordam que a
intervenções e as interpretações do analista são oferecidas para
disposição lúdica do analista permite que a contratransferência
que se abra um campo de experiência no espaço analítico, pre-
funcione de maneira mais fluida. No entanto, pode também ter
servando a capacidade criativa da criança e tendo cautela para
um "efeito colateral", pois é na ação que podem escapar, com
não interromper seu jogo com interpretações inoportunas. Mui-
maior facilidade, os conteúdos reprimidos do analista, provocan-
tas vezes a interpretação verbal não é a mais adequada, pois o
do confusão no processo analítico da criança.
foco do nosso trabalho não é interpretar o conteúdo da brincadei-
A interpretação verbal, a interpretação lúdica e a ação
ra. O objetivo é o brincar em si. A intervenção é brincar, abrindo
interpretativa são instrumentos diferentes com os quais o analis-
um campo de experiência na sessão para que o paciente possa
ta de crianças pode contar. Para Andréa Pereira e Silvia
vivenciar situações emocionais significativas dentro de um espa-
Rajmanovich (1997) "assim como há processo analítico, há um
processo interpretativo, considerando processo, como progres- ço de confiabilidade.
Na perspectiva winnicottiana, o brincar é constitutivo, é um
so, transcurso de tempo, conjunto de fases sucessivas de um fe-
aspecto fundante da condição humana. Para Winnicott (1971),
nômeno, ação de ir adiante" (p. 141). Então, para estas autoras,
"é no brincar que o indivíduo pode ser criativo e utiliz,ur sutr
Í'azem parte do processo interpretativo: a interpretação verbal, a
personalidade integral: e é somente sendo criativo que o intliví-
lúrlica e a ação interpretativa.
duo descobre o seu eu self " (p. 80). Brincar é a possibiliclacle de
50
51

t
Lr,zt,rxt, Z:\(t(tt IIi Avtit.t.,\R

se construir significados na relação com o outro e transfbrmar a CAPTITII,O 3


realidade que está em jogo, pois o brincar localiza-se entre a rea-
lidade psíquica e a realidade percebida objetivamente. A TsonrA DE §Trxxrcorr soBRE o
Nos seus aspectos clínicos, não se trata de abordar o brincar
PRocrsso Dr.l Annr>rmr,rcrMFrNTo
da criança como um meio expressivo que ganha sentidos fbrne-
cidos por uma determinada teoria' o brincar é entendido como
um tema em si. Cabe ao analista sustentar a função do brincar
para qLle se constitua a subjetividade da criança como fbrma de
criar significados próprios no mundo.
Esta conccpçIto inaugura uma outra dimensão no trabalho
do analista cle criitnças, ptlis consiclera as intetpretações e as in-
tervençCtes analíticas corllrl scnckr gcraclits tro contexto da experi-
ência da intersubjetivicla«le cla sitr-raçlxl analítica - o espaço da
A teoria do processo de amadurecimento humano propostur
sessão é unr espaço de jogo utilizado criativamente pelo par ana-
por D. W. Winnicott constitui-se em ulra importanÍe contribui-
lítico. Portanto, a afirmação de Rodrigué ( 1963), de que a atitude
lúdica do analista de criança implica :uma"dramatizctÇão da in' ção para compreendermos as intervenções clínicas no processo
analítico-
terpretação", se distancia do nosso trabalho, na medida que não
A importância da teoria do processo cle amadurecimento é
consideramos que o analista apenas dramatize a interpretação ou
enfatizada pelo autor em um texto de 1962a: "precisamos chegar a
se utilize do jogo para compreender as fantasias inconscientes do
uma teoria do d.e,senvolvinrcnto normal para podermos ser cepcLzes
paciente e depois revelar os determinantes e o sentido do jogo.
de c'ompreender as doenças e as várias imaturidodes" (p. 65).
Da forma conlo entendemos, o analista de criança jogu, entta
A teoria do processo maturacional está pautada na idéia de
com sua capacidade criativa e se põe ajogar. A subjetividade do
que há uma tendência em direção ao desenvolvimento que é ina-
analista é utilizada para constituir o espaço potencial no qual se
ta e herdada. O indivíduo herda a tendência ao crescimento e ao
gera a verdadeira comunicação. E na superposição da realidade
amadurecimento.
psíquica do par analítico que se constrói o significado do jogo'

O desenvolvimento de um ser humano comeÇo cedo a


este desenvolvimento se dá ruma longa linha en1 qlta
não existem lacunas. Qualquer lacuna signifit'a rfurcn-
Ça, e a saúde realmente signirtca que as coisos pr()s.t(-
guiram no seu próprio ritmo e se compleÍunutt t' chc-
garam tão longe quanto poderíaruos esl)(rur qrtt cltc-
gassem no momento adequetdo. (Winnicott, l94t{, ;t. ,1-5;

I
_ @ 2004,2011 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
Ê proibida a reprodução total ou paÍcial desta publicação, para qualquer finalidade, sem
autorização por escrito dos editores.

1'Edição
2004

1" Reimpressão
2004

2. Edição
2009

1" Reimpressão
2011

Editores
Ingo Bernd Güntert e Myriam Chinalli

Produção Gráfica
Renata Vieira Nunes

Editoração Eletrônica
Renata Víeira Nunes

CaPa
Renata Vieira Nunes
Sobre ilustração de Wassily Kandinslcy

Revisão GráÍica
Luís Carlos Peres

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SB Brasil)

Avellar, Luziane Zacché


Jogando na análise de crianças : interviÍ-interpÍetar na
abordagem Winnicottiana / Luziane Zacché Avellar. -- São Paulo :

Casa do Psicólogo@, 2011.

1u reimpr. da 2. ed. de 2009.


Bibliografia.
ISBN 978-85-7396-309-0

l. Crianças - Desenvolvimento 2. Psicanálise - InterpÍetação


3. Psicanáüse infantil 4. Winnicott, Donald W., 1896-1971
I- Título.

I l-1 1789 cDD-1s0.195083

Índices para catálogo sistemático:


l. Psicanálise da criança : Teoria Winnicottiana : Psicologia 150.195083

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Para Carlos, Luísa e Martana.
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Luzram: Z,tccuÉ Avnrr-ar

se construir significados na relação com o outro e transformar a


realidade que está em jogo, pois o brincar localiza-se entre a rea-
CAPÍTULO 3
lidade psíquica e a realidade percebida objetivamente. A Tnonre on VrNNrcorr soBRE o
Nos seus aspectos clínicos, não se trata de abordar o brincar
da criança como um meio expressivo que ganha sentidos forne- Pnocrsso DE AMADURECTMENTo
cidos por uma determinada teoria, o brincar é entendido como
um tema em si. Cabe ao analista sustentar a função do brincar
para que se constitua a subjetividade da criança como forma de
criar significados próprios no mundo.
Esta concepção inaugura uma outra dimensão no trabalho
do analista de crianças, pois considera as interpretações e as in-
tervenções analíticas como sendo geradas no contexto da experi-
ência da intersubjetividade da situação analítica - o espaço da
sessão é um espaço de jogo utilizado criativamente pelo pÍr ana- A teoria do processo de amadurecimento humano proposta
lítico. Portanto, a afirmação de Rodrigué (1963), de que a atitude por D. W. Winnicott constitui-se em uma importante contribui_
lúdica do analista de criança implica úma"dramatiTação da in- ção para compreendermos as intervenções clínicas no processo
terpretaÇão", se distancia do nosso trabalho, na medida que não analítico.
consideramos que o analista apenas dramatize a interpretação ou A importância da teoria do processo de amadurecimento é
se utilize do jogo para compreender as fantasias inconscientes do enÍattzadapelo autor em um texto de 1962a: *precisamos chcgar a
paciente e depois revelar os determinantes e o sentido do jogo. uma teorfut do desenvolvimento normnl para podermos ser capazes
Da forma como entendemos, o analista de criança joga, enfta de compreender as doenças e as várias imaturidndes', (p. 65).
com sua capacidade criativa e se põe ajogar. A subjetividade do A teoria do processo maturacional está pautada na idéia de
analista éuÍllizada para constituir o espaço potencial no qual se que há uma tendência em direção ao desenvolvimento que é ina_
geru a verdadeira comunicação. É na superposição da realidade ta e herdada. o indivíduo herda a tendência ao crescimento e ao
psíquica do par analítico que se constrói o significado do jogo. amadurecimento.

O desenvolvimento de um ser humnno começa cedo e


este desenvolvimento se dá numa longa linhn em que
não existem lacunas. Qunlquer lacuna significa doen_
ça, e a saúde realmente significa que as coisas prosse_
guiram no seu próprio ritmo e se completaram e che-
garam tão longe quonto poderíamos esperar que che-
gassem no momenta adequado. (Winnicott, 1948,p.45)

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.lo<lnllro N,l ANÁusr »r.: CuelÇas
Ltrzr,l,Nn Z^ccl IÍt Avl)-LAlt

uma "doença normal" que a capacita a cuidar do bebê e oferecer


Em que direção se dá o amadurecimento? A direção é a da
tudo que sua singularidade exige. Não é a técnica do cuidado, é a
integração, nos mais variados sentidos que o termo contém' A
adaptação à necessidade do bebê que é importante.
integração se dá no tempo e no espaço e está relacionada com a
De seu lado, o bebê está na mais absoluta dependência des-
possibilidade do indivíduo vir a se sentir um todo, de existir ao
ses cuidados, está no estado da, dependência absoluta. O proces-
longo do tempo.
so maturacional segue na direção da independência. Passando
Fundamentais para que isso aconteça são as condições
pelo estado da dependência relaÍiva.
fornecidas por um ambiente adequado que se adapte às necessi-
No estado de dependência absoluta, a integração surge do
dades do bebê. Para enfalizar a importância estruturante do meio
estado de não-integração em um ambiente favorável. A provisão
ambiente, na fase da dependência absoluta ou quase absoluta,
ambiental fornece as condições para que o curso do processo
Winnicott (1969a) diz que "não podemos descrever o bebê sem
maturacional prossiga. No início, o bebê está mergulhado em
descrever o meio amhiente" - Em outro momento, diz qte "um
sensações, sem nenhuma condição de interpretá-las ou nomeá-
bebê é uru
fenômeno complexo que inclui o seu potencial e mais
las. Em um primeiro momento, ele vive essas sensações no abso-
o meio ambiente" (P. 196).
luto estado de não-integração.
O estágio de dependência absoluta remete ao estado do bebê
Em presença de alguém que o segure e lhe ofereça cuidados
que ainda não separou um Não-Eu do que é Eu:
adequados, o bebê conquista gradativamente sua integração:
"Uma boa forma de cuidar da criança produq um estado de coi-
(...) do bebê que ainda não se ncha aparelhado para
sas no qual a integração começa e se tornar um fato, e uma
desempenhar esta tarefa. Em outras palavras, o obieto
pessoa comeÇo a surgir" (Winnicott, 1952, p.207).
é um objeto subjetivo, não obietivamente percebido'
O processo de integração ó estruturado na dimensão tempo-
Mesmo que seia repudiado, posto long'e, o objeto ainda
ral. Os primeiros momentos da vida da criança são pautados em
é um asPecto do bebê. (1969a, P' 197)
seus ritmos: o ritmo respiratório, o ritmo cardíaco, o acordar e
dormir. A mãe entra em sintonia com o ritmo do bebê. Para que
A adaptação adequada do meio ambiente só é possível de-
possa cuidar dele, o ritmo da mãe conjuga-se ao do bebê, consti-
vido ao que Winnicott (1956) denominou preocupação materna
tuindo uma experiência de mutualidade.
primária. Este é um estado muito especial em que a mãe se en-
Winnicott (1969a) diz que podemos falar de uma comuni-
contra no final da gravidez e logo após o nascimento do bebê'
cação entre duas pessoas, cuja natureza é silenciosa e que só se
que lhe confere a possibilidade de compreender e adaptar-se sen-
torna ruidosa quando fracassa. É uma comunicação de
sível e adequadamente às necessidades do seu filho. Quando a
confiabilidade, que protege o bebê quanto às intrusões da reali-
adaptação da mãe é suficientemente boa, não há nenhuma per-
dade externa. Isto é uma conquista desenvolvimental que depen-
turbação da própria linha de vida do bebê, ele pode continuar a
de de aspectos herdados e da capacidade da mãe de tornar real
ser, não havendo necessidade, portanto, de reagir às invasões
aquilo que o bebê está pronto para alcançar e criar.
arnbicntais.
Para chegar ao "ponto da mutualidade", a mãe já experien-
C) estado de "preocupação materna primária" permite que a
ciou o que é ser um bebê cuidado, brincou de cuidar de bebê,
rru-rc sc coloclue no lugar do bebê, sem se confundir com ele' E
55
54
LuzreNn ZaccuÉ Avr-:lur JocaNoo wl ANÁrrsn nn Cruexçes

cuidou de bebê, leu sobre cuidados fornecidos a um bebê. Por A elaboração imaginativa dos elementos sensoriais e do fun-
seu lado, o bebê está experienciando pela primeirayez o que é cionamento do próprio corpo possibilita a personalizaçáo. A mãe
ser um bebê. Para ele, o que prevalece no momento são suas e os cuidados que ela presta ao bebê são fundamentais para a
caracteísticas herdadas e as tendências inatas para o desen- constituição da personalizaçáo por meio das repetidas experiên-
volvimento. cias de cuidados corporais. A mãe banha, maneja, ,Junta", .,reú-
O nascimento da subjetividade se dá em presença de alguém. ne", envolve o bebê em seu colo, favorecendo assim o fenômeno
O bebê sente a presença continuada da mãe através dos cuidados da personalização no bebê.
que ela lhe atribui (o bebê ainda não sabe da existência da mãe). A corporeidade da criança é permeada pelo interjogo do
São estes cuidados que humanizam o bebê, pois não se trata da encontro mãe-bebê, um encontro que significa. Se há, ffumeza
técnica do cuidado, mas de um cuidado que é humanizador. A nos cuidados e se houver confiança, o bebê pode se entregar aos
primeira organizaçáo temporal da criança é a de continuar a ser cuidados da mãe. Quando cuida, a máe precisa saber que, no
na presença da mãe. corpo do bebê que ela cuida reside uma pessoa.
As experiências da criança com a mãe continuam. Passam a Residir no corpo implica ocupaÍ espaços. pouco a pouco
ser experiências de presenças e ausências. As ausências devem surge um corpo que significa e expressa o ser, que interfere no
acontecer na medida do suportável para o bebê, e somente a mãe ambiente, que altera a relação do indivíduo com o mundo, que
é capaz de identificar quanto tempo é possível ausentar-se sem regula proximidades e distâncias. A criança vai encontrando um
causar prejuízos ou descontinuidades do ser no bebê. enraizamento em um corpo da vontade e do querer. Um corpo
Para suportar os períodos de ausência, o bebê tem um reper- que significa e expressa o ser.
tório sensorial constituído partir de seu encontro com o corpo da
a Temos, então, gradualmente, a presença do bebê alterando
mãe. Os sons, os odores, as nuances úteis instrumentalizam o bebê o meio ambiente. O corpo do bebê passa a ser utilizado como um

a suportar a ausência da mãe sem risco de dispersão. Nesse mo- instrumento do querer, de ir e vir, e de modular as relações e
mento, o cuidar constitui-se basicamente de segurar. Respeitando pode dar significado para as separações, pela possibilidade de se
o ritmo da criança, permitindo que as experiências sejam repetidas dirigir com esse corpo a um objeto, "um corpo que pode ir em
tantas vezes quantas forem necessárias, a mãe possibilita que o direção a um outro corpo". Aos poucos, o bebê adquire a capaci-
bebê tenha experiências totais, com começo, meio e fim. dade de se relacionar com a realidade externa. É preciso lembrar
O sentimento de integração é fundamental e é uma conquis- que, no início, o bebê não tem nenhum sentido de realidade ex-
ta do desenvolvimento. Igualmente fundamental, é o sentimento terna porque ainda não desenvolveu capacidade de percepção para

de que o psiquismo habita o corpo. Fenômeno que Winnicott que possa se relacionar com objetos (objetivamente) percebidos.

denominou personalizaçâo e assim o descreveu: "quando tudo Progressivamente, o bebê conquista o acesso ao sentido de reali-
vai bem, é que a pessoa do bebê começa a ser relacionada com o dade, que no princípio é a realidade do mundo subjetivo. euan-

corpo e suas funções com a pele como membrana limitante" do a dependência absoluta começa a se transformar em depen-
(Winnicott, 1962b, p.58).Apele como elemento de contato mãe- dência relativa, bem no início, ainda não existe um ..eu', separa-
bebê, como elemento de revestimento das marcas de fronteiras do do "não-eu". O objeto, nas relações primitivas, ainda é para o
de diferenciação Eu, Não-Eu, a pele como continente. bebê indistinguível do seu próprio "eu". 'Winnicott chamou este

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Luzr,A.Nl Zlccr rt Avpr.u.n Jctc.lNt>ct Na ANÁ_rsr-t »n CntirxÇirs

objeto de objeto subjetivo em oposição a um objeto objetiva- Para que a experiência da ilusão se produza na mente do
mente percebido. bebê, é necessário que um ser humano "traga", o tempo todo, o
O objeto subjetivo é o objeto criado pelo bebê, encontra-se mundo até o bebê de forma adequada às suas necessidades. Se a
na área de sua onipotência. O bebê vai ao encontro do objeto por mãe atende à onipotência de seu bebê e é capaz de fazer sentido
meio de um gesto seu. Um ambiente suficientemente bom forne- dela, ela fortalece a estrutura mental em desenvolvimento no bebê,

ce as condições para que o objeto seja encontrado pelo movi- que se torna capaz de "criar" inúmeras outras coisas, inclusive
"criar alucinatoriamente a mãe". O bebê se desenvolve pela oni-
mento do bebê.
Para entendermos melhor, vale a pena citar integralmente potência.
Winnicott ( 1965a): Winnicott denominou ttpresentação de objeto a função da
mãe de trazeÍ o mundo em pequenas doses ao bebê, de cuidar
para que o ambiente seja previsível, protegendo o bebê de acon-
imaginemos um bebê clue nunca tivesse sido alimenta-
do. A.fome surge, e o hebê est(r pronto para imaginar tecimentos que ainda não são passíveis de serem por ele compre-
algo; a partir da necessidade, o bebê está pronto para endidos. Aos poucos, a mãe apresenta o mundo ao seu bebê, na
criar uma fonte de satisfaÇão, mas não existe uma ex- medida do que ele pode compreender, facilitando-lhe as primei-
periência prévia para mostrar ao bebê o que ele tem de ras relações de objeto.

esperor Se, nesse momento, a mãe coloca o seio onde o


bebê está pronto para esperar algo e se,for concedido O início das relações objetais é complexo. Não pode
tempo bastante para que o bebê se sacie à vontade, com ocorrer se o meio não propiciar a apresentação de um
a boca e as mãos, e, talvez com um sentido de olfato, o objeto, feito de um modo que seja o bebê quem cria o
bebê "cria" justamente o que existe para encontrar. O objeto. O padrão é o seguinte: o bebê desenvolve a ex-
bebê, finalmente, forma a ilusõto de que esse seio real é
pectativa vaga quese origina em uma necessidade não-

ex,atamente a coisa que J'oi criad.a pela necessidade, pela formulada. A mãe, em se adaptando, apresenta um ob-
jeto ou uma manipulação que satisfaz as necessidades
voracid.ade e pelos primeiros impulsos de amor primi-
tivo. A visão, o olfato e o paladar registram-se algures do bebê, de modo que o bebê comeÇa a necessitar exa-
e, passado algum tetnpo, o bebê poderri estar criando
tamente daquilo que a mãe apresenta. Desse modo o
algo semelhante ao próprio seio que a mãe tem para bebê começa a se sentir confiante em ser capaz de criar

oJbrecer. Um milhar de vez.es houve a sensação de que objetos e criar o mundo real. A mtÍe proporciona ao
bebê um breve período etn que a onipotênc'ia é um fato
o que ero querido era criado e constatodo que existicr.
Daí se desenvolve uma convicção de que o mundo pode da experiência. (Winnicott, 1962b, p. 60)
conter o que é querido e preciso, resultando na espe-
rança do bebê em que exisÍe uma relação viva entre a Só após a experiência da ilusão, o bebê começa a aceitar a
existência do mundo externo. Com o tempo, toma conhecimento
recrlidade interior e a realidade exterior entre a capa-
da realidade externa e de que ela sempre esteve ali. Mas perrna-
cidade criadora, inata e primária, e o mundo ern geral,
nece nele o sentimento de que o mundo é criado por ele. Winnicott
quc é compartilhado por Íodos. (p. 101)
5ii >9
LL'zt,lNn Z.t«:uÍ: Avr.lr.,rtr or;..rNrxr r,r AxÁlrsr nl. CnrrNc.,ts
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l,
afirma que há um paradoxo para o bebê: "eu criei o mundo, mas Ele é potencial porque nele podem ser incluídas as experi-
ele já estctvct ali para ser criado", embora esta não seja uma ques- ências do indivíduo, a atividade lúdica, a psicoterapia, a religião
tão que deva ser colocada para o bebê. O parâdoxo não é para ser e a experiência cultural. É uma área intermediária que é produto
resolvido, é para ser tolerado. das experiências da pessoa individual em qualquer momento da
O bebê caminha em direção à independência relativa.Ini- vida, pois são experiências clue ocupam um tempo e Llm espaço,
cia-se umar Íase de desadaptação materna. Pequenas falhas da que vinculam o ser no passado, presente e futuro.
mãe surgem e estas se diro na medida do suportável para o bebê O espaço potencial é fundamentado na experiêncict de c'on-
contribuindo para os processos de desfusionamento (da unidade ficmça, eqterintenteukt por run período suJiciententenÍe longo, no
mãe-bebê) e de separação, que culmina com uma integração do estágio da separação entre o não-eu e o eu para o estabelecimen-
Eu separado do Não-Eu. O desilusionamento constittti o aspecto to de um eu autônomo.
mais amplo do rlesmame.
O processo de desilusão só ocorre se a experiência da ilu- Oncle hti c'onfinnça fidedignidade htí tunbém utn es-
e
são tiver sido bem- estabelecida. Com o tempo, o bebê compre- paÇo potencioL, espaço que pode tornor-se umu tírea
ende que o mundo por ele criado sempre esteve lá e continuará infinitcr tle separcLção e o bebê, a criança, o adolesc'ente
após sua morte. Permanece a capacidade de ilusão, a capacidade e o cttluLto ltodem preenchê-la critrtivamente com o brin-
de "criar mundos". car, qLte com o tempo transforuta-se no .f'ruição du he-
Da dependência absoluta para a dependência relativa, exis- rança c'ulturcrl. (l9ll, p. 150)
Íem os fenômenos transicionais e o objeto transicional, que inau-
gura o primeiro lugar de separação entre a mãe e o bebê, até A experiêncizr constitui a possibilidade de se criar significa-
então fusionados. A este primeiro espaço, Winnicott chamou es- dos pessoais, do si próprio criar símbolos, é a singularização que
paço potencial. irá se somar à experiência cultural. Para o indivídLro, o espaço
E;mvez da dicotomia interno ou externo, Winnicott (1971) pro- potencial pode ser visto como sagrado, porque nele experimenta
põe a existência de uma terceira fuea: "O espaço potencial é a área o viver criativo.
hipotética que existe (mas não pode existir) entre o obieto (mãe ou No prefácio à edição francesa de O brinc'ar e u realidade,
parte destct) clurunte tlo repúdio do ob.jeto como nen-eu: isto
u JLrse Pontalis (apud Lins e Luz, 1998), afirma:
é, aofinal daJuse de estarfundido ao objeto" ( p. la9).
A uma certa altura do desenvolvimento, o bebê estabelece o espaÇo potenc'iol não é untct c'erut tlruntúticu.freudiuna,
um eu (se1fl inteiro. De um estado de sentir-se fusionado à mãe, na qual se confrunttmt as figuros porantui.\ e se repeÍe
o bebê passa a separá-la do eu (selfl. Como produto desse pro- inc e s sa nt e nte nl e o o ri g iná rio .fcr n Í ct s rnri t i t' o. N ão s e t ra -
cesso de separação, passa a existir o interior e o exterior. O ta tampouco do receptáculo kleiniqno de lnns e maus
primeiro espaço que se abre na separação da unidade mãe-bebê ob.jetos clestinados à infinita combinuÍririu de projeções
pirra ser mãe-e-bebê é o espaço potencial: "A separação que e introjeçõe.s. O e,spctço ltotenciul é utn tarreno de jogo,
rrão ó uma separação, mas uma .f'orm,a de união" (Winnicott, de fronÍeircts incletermirutdas, clue .fu?. u nossct realicla-
1 97 1, p. 36).
1 de. (p. 151)
60 61
LuzreNe ZeccnÉ Awlmn
JocaNoo N,t ANÁusu or CrueNÇa.s

Os estudos sobre os fenômenos transicionais dão um novo


um mundo subjetivo por um período adequado, ele inicia a expe-
colorido ao significado do brincar para Winnicott, segundo ele riência de viver na transicionalidade, ou seja, "atravessa um ca-
próprio no texto "O brincar: uma exposição teórica". O brincar
minho" que vai da realidade subjetiva para a realidade objetiva-
se localiza no espaço potencial.
mente percebida.
Quando o processo de desilusão se inicia, o bebê prossegue
A brincadeira é que é própria da saúde: o brincarfaci-
para viver no sentido da realidade compartilhada. Para Winnicott,
lita o crescimento, o brincar conduz aos relacionamen-
esta é mais uma conquista dentro do processo do amadurecimento
tos grupais, o brincar pode ser uma forma de comuni-
do indivíduo, que não é inato e que depende das condições ofere-
cação na psicoterapia, a psicanálise é umaformn alta-
cidas por um ambiente propício. Para o autor, é o passo mais difícil
mente especializada do brincar, a serviço da comuni-
a ser dado no processo do desenvolvimento humano porque:
cação consigo mesmo e com os outros. (1971, p. 63)

entre o relacionamento e o uso existe a colocação pelo


Como evolui a capacidade de brincar na criança? Pata
sujeito do objeto parafora da área de seu controle oni-
Winnicott (1971), no início, a experiência da onipotência possi- potente, isto é, a percepção pelo sujeito do objeto como
bilita o objeto ser concebido e não percebido como uma realida-
fenômeno externo, não como entidade projetiva; na ver-
de exterior. Aqui ainda não existe o brincar. O objeto é destruído
dade, o reconhecimento do objeto como entidade por
na fantasia onipotente. Hâ o repúdio do obieto' Se o objeto so-
seu próprio direito. (1977, p. 125)
brevive, então ele é objetivamente percebido. Aqui começa o
brincar da criança.
Tal mudança implica a destruição do objeto pelo sujeito. E
No estágio seguinte, a criança brinca na presença da mãe,
este sobrevive ou não. Quando sobrevive, o sujeito passa a se
que deve estar disponível para ser lembrada e depois esquecida.
relacionar com objetos. Para isso, o objeto precisa ser real, no
Se a criança brinca na presença da mãe é porque esta é digna de
sentido da realidade compartilhada.
confiança e lhe dá segurança. O brincar implica confiança.
Nesta perspectiva, a destrutividade desempenha papel im-
No próximo estágio, a criança está pronta para fruir na ex-
portante na criação da realidade, ela é criada a partir da
periência do brincar, para aceitar a sobreposição das duas áreas
destrutividade do indivíduo, quando este coloca o objeto fora do
de jogo, a da mãe e a sua.
eu. Para isso, as condições ambientais devem ser favoráveis: "Ns
Uma qualidade essencial do brincar "é a de ser uma experi-
teoria ortodoxa, continua a suposição de que a agressividade é
ência criativa, uruttt experiência na continuidade tempo e espa-
reativa ao encontro com o princípio de realidade ao passo que,
ço, umaforma básica do viver" (lg71,p-75). É no brincar
que o
aqui, é o impulso destrutivo que cria a qualidade da
indivíduo pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral-
externalidade" (Winnicott, 197 I, p. 130).
É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência
Quando a criança coloca o objeto para fora de seu controle
humana.
onipotente, ela começa a se perceber como uma unidade separa-
Considerando que a mãe tenha sido capaz de apresentar o
da da realidade externa. Agora, é como se ela pudesse falar'. Eu-
mundo em pequenas doses para o bebê e o bebê tenha vivido em
Sou-Por volta de um ano há uma mudança notável na criança em
62
63
I

Luzr,qsn Z,qccHÉ Awt-L{R Joc,rNoo N,q ANÁuss on CnraNçes

Se o indivíduo não tem o holding como cuidado fundamen- t


relação à independência. Pode-se dizet que a criançajá tem uma
integração da personalidade.
tal a ele atribuído, ele é jogado no estado das angústias i

impensáveis, num cair para sempre, num despedaçar-se. O hotding


Com o estabelecimento da realidade externa, o mundo pas-
está relacionado com o ser segurado de maneira confiável.
sa a ser reconhecido pelo bebê como Não-Eu. Agora existe um
Eu com interior e um exterior, com uma membrana que o limita'
Além da função de holding, o bebê necessita encontrar a
função de manipulação ol do lidar com o bebê. "Essa função
Todas estas conquistas desenvolvimentais são graduais' Ini-
Íem relação com a possibilidnde da pessoa que cuida do bebê e
cialmente, a integração ainda é ptecfuia. Ao mesmo tempo em
de seu corpoformarem uma unidade psicossomática" (Winnicott,
que a criança caminha em direção à independência, ela pode fa-
1969b, p. a31). Em decorrência da manipulação tem-se
zer alguns "retornos", algumas "visitas" ao mundo subjetivo, que a
personalização que Winnicott definiu como o fato de o psiquismo
está lá, como fonte da singularidade do indivíduo. O indivíduo
habitar o próprio corpo. O corpo passa a ser um elemento de
mantém ao longo de sua vida o trânsito pelos vários sentidos de
comunicação com o outro.
realidade.
O holding, a manipulação e a apresentação de obieto sáo Quem cuida do bebê deve ter a capacidade de saber o que o
bebê está sentindo, o que está precisando, de 'Juntar as partes,,:
os cuidados específicos e fundantes concernentes aos estágios
"O bebê não tem que saber que é feito de uma coleção de partes,
iniciais de desenvolvimento. cabe ao ambiente propiciar condi-
e aqueles que cuidam do bebê não podem ignorar o fato de que
ções para que o indivÍduo se desenvolva. A
empatia da mãe é
há um ser humano começando a alojar-se no corpo" (Winnicott,
fundamental e é dada pelo estado de identificação com o seu bebê,
que lhe permite a adaptação às necessidades dele.
1969b, p. a3\.
No estágio da integração é fundamental a função de holding A apresentação de objetos está relacionada com o inÍcio
das relações objetais. O bebê, movido pelo fluxo do processo
que se traduz pelo segurar, que inicialmente é o segurar físico,
maturacional, é empurrado para se relacionar com objetos. Isso
uma forma de amar, talvez a única forma que uma mãe tem para
só acontece, se a mãe apÍesenta o mundo ao bebê de maneira
demonstrar o seu amor ao bebê.
satisfatória.
O holding, então, protege da agressãofisiológica, leva
em conta a sensibilidade cutânea do bebê, tato, tempe' A mãe que consegue funcionar como um agente
ratura, s e n s ib ilidade audit iv a, s e n s ib ili dade v i s wal, s e n' adaptativo, apresenta o mundo de forma que o bebê
sibilidade à queda (ação da gravidade) e afalta de co- comece com um suprimento da experiência da onipo-
nhecimento do lactente da existência de qualquer coisa tência, que constitui o alicerce apropriado para que ele,
que não seja ele mesmo. Também inclui a roÍina com' depois, entre em acordo com o princípio de realidnde.
pleta do cuidado dia e noite e acompanha as mudanças Há um paradoxo aqui, na medida em que, nessafase
instantâneas do dia-a-dia inerentes ao crescimento e inicial, o bebê cria o objeto, mas o objeto já est(i lá, e o
desenvolvimento do bebê, tanto físico como psicológi- bebê não pode, portanto, tê-lo criado. Deve-se aceitar

co. (Winnicott, 1960, P.48) o paradoxo. Não resolvê-lo. (Winnicott,1967a, p. 13)

64 h5
LuztaNl: Z.tccHÉ AvEt-lrrt Jot;eN»o rva AsÁr-rsc oe Cnr,rNçns

Winnicott (1969c) afirma que "só recentemente me tornei


Após várias experiências desse tipo o bebê desenvolve a
capaz de esperar; espera\ ainda pela evolução natural da trans-
crença de que o mundo pode conter aquilo de que se necessita,
ferência que surge da confiança crescente do paciente na técni-
aquilo que é desejado. Temos aqui uma breve descrição das raízes
ca, e eviÍar romper esse processo natural, pela produção de in-
do viver criativo.
terpretaÇões" (p. 121). O autor enfatiza qu'e aprodução dainter-
A criatividade primária se apresenta pelo potencial à aluci-
pretação retardaria mudanças no paciente, pois seriam baseadas
naçãoepelogesto.oencontroComamãesedápelapossibilida-
na necessidade do analista e não na do paciente. Continua: "se
de de a criança alucinar o objeto necessitado, a mãe justamente
pudermos esperar o paciente chegará à compreensão criativa-
pode se colocar no lugar da alucinação, embora seja uma aluci-
mente, e com imensa alegria".
nação acompanhada pelo gesto espontâneo da criança' Este é um
Para compreendermos melhor este aspecto, apresentaremos
primeiro momento.
uma situação clínica relatarla por Safra (1999) em A face estética
Um outro momento importante na função da apresentação
do Self. É o caso de um paciente de 15 anos de idade que já
do objeto é quando o objeto sai do controle onipotente do indivÊ
havia feito psicoterapia durante nove anos. O paciente veio com
duo e passa a fazet parte do real. O sujeito. por meio da sua
um diagnóstico de autismo. As diferentes tentativas de interpre-
agressividade, destrói o objeto, e este precisa sobreviver' o que
tação diante do que ocorria nas sessões eram inf'rutíferas. Os anos
significa não retaliar; para que o sujeito possa ir ao encontro do
se passaram e, algumas vezes, diante da ecolalia e da repetição
objeto real que sobreviveu aos seus ataques'
das atividades, o analista sentia-se desanimado. Tentou mais uma
Comoesteszrspectosdoprocessomaturacionalrelacionam-
intervenção e algo lhe chamou a atenção: "não se tratava de uma
se com as intervenções ou interpretações clínicas? observamos
mera repetição, a melodia da.frase que ele dizia era diferente da
que cada momento do desenvolvimento exige um cuidatlo espe-
melodia de minha fala. Era uma melodia que eu reconhecia ter
cífico. Na clínica, cada etapa do processo requer uma qualidade ouvido ele usar inúmeras vezes. Fiquei perplexo com o que eu
cle intervenção. Podernos relacionar as intervenções com: o
obje-
estava observando! Pensei: Aí está ele - na melodia!" Em segui-
to subjetivo, os fenômenos transicionais e a interlocução na rea- da, o analista cantou a melodia para o paciente, sem a utilização
Iidade compartilhada. das palavras da frase. Pela primeira yez o paciente olhou para o
O objeto subjetivo é o objeto criado pelo bebê e encon- analista, sorriu, bateu palmas e emitiu outra vez a melodia para
tra-se na área de onipotência. A intervenção como objeto sub- que o analista a repetisse. O analista devolveu a melodia ao paci-
jetivo está subordinada à criatividade primária do pacientel ente. E este em resposta pulou pela sala, criou outra melodia, e o
a criatividade é a possibilidade de se criar mundos. A inter- jogo se repetiu. Safra diz: "Estávamos nos comunicando!" Esta-
venção do analista é sustentar a situação no tempo favore- belecia-se o objeto subjetivo.
cendo a emergência do gesto criativo do paciente' Safra Especialmente dois aspectos da intervenção me chamam
(1999a) chama atenção para a função fundamental que tem o
atenção. O primeiro, a espera do analista permitindo que o gesto
csperor clo ancrlista para que o seu paciente realize o gestÜ criador pudesse emergir e, o segundo, o reconhecimento da sin-
cle apropriação do mundo. A palavra-chave é e'tperar para gularidade do paciente na melodia. O reconhecimento da melo-
quc o gesto criador possa elnergir, promovendo o acontecer dia do paciente por pafte do analista permitiu a comunicação na
Irrrtttittttl.
67
(;( l
I-r rzreNr: Zecr:uÉ AvEr-r.rrn
Joc;rrxoo N,t AxÁt.rsr »B Cnr,tNC,As

sessão. Uma melodia que antes era emitida e encontrava o vazio Após o desilusionamento, e com o abalo da onipotência, o
agora encontrava presença humana, que a reconhecia e a devol- bebê prosseglle para viver no sentido da realidade compartilha-
via - reconhecia o ser como presença singular no mundo. da, é um passo difícil no processo do amadurecimento humano
No texto "O papel de espelho da mãe e da família no desenvol- e igualmente na situação de análise, pois se trata da percepção
vimento infantil" (1967), Winnicott diz que a tarefa terapêutica pode do objeto pelo sujeito como um fenômeno externo. ,,Este tra_
ser pensada como "o espelho da face da mãe" - com um analista que balho por parte do cmalista, para surtir efeito, precisa relacio_
procura refletir a pessoa que está ali buscando comunicar-se. O ana- nar-se à capctcidade do paciente de colocar o analista.fora da
lista devolve ao paciente, em longo prazo, aquilo que ele traz. Desta órea dos .fenômenos s,bjetivos,,, fenômeno que Winnicott de_
forma, auxilia o paciente a descobrir seu próprio eu. A presença nominou uso clo objeto (Winnicott, 1969c, p. 122).Isto implica
humana do analista reconhece no gesto do paciente um gesto cria- a colocação do objeto fbra da iárea de seu controle onipotente _
dor. É necessário que o analista se reconheça em slla própria história o sujeito destrói o objeto; a entrada no princípio de realidade
para que possa reconhecer no gesto de seu paciente um gesto huma- implica uma cefta destruição. O sujeito cria o objeto no sentido
no, um gesto criativo que o recoloca em sua própria história e em de descobrir a externalidade. Neste contexto é importante com-
sua história com outros.3 A partir do momento que o indivíduo é preender que a experiência depende da capacidade do objeto
recoúecido pelo outro, no jogo da especularidade, o mundo pode sobreviver, não retaliar. Se isso está acontecendo na análise, o
vir a ser criado e conhecido com satisfação. analista e o cenário analítico devem sobreviver aos ataques
Durante o processo maturacional, a entrada nos fenômenos destrutivos do paciente. Estes movimentos devem .".
transicionais inaugura novas possibilidades na vida do bebê. A "o*p."-
endidos pelo analista como a tentativa do paciente de colocar
o
passagem de uma realidade subjetiva para uma realidade analista para fora da área de seu controle onipotente, isto é,
transicional assinala características diferentes das intervenções para fora, no mundo.
na clínica. A intervenção transicional precisa ser construída pelo o trabalho analítico neste momento é basicamente o analis-
par analítico. Ela fmi de um para outro, ela não está dentro, nem ta poder suportar os ataques destrutivos do paciente e compreen_
tampouco fora, ela está no entre, na área da ilusão. Seria uma der que o que está sendo constituído é a qualidade da
boa interpretação aquela que o paciente sente que a criou, assim externalidade, do paciente abrir-se para o mundo. "A interpreta-
como para o bebê foi ele que criou o objeto que lá estava para ser ção verbal nesse ponto não é o aspecto essencial.... O aspecto
criado. Muitas experiências desse tipo possibilitam ao paciente essencial é n sobrevivência do analista,, (1969c, p. l2g).
desenvolver o sentimento de confiança tão necessário, possibili-
tando ao indivíduo transformar o não familiar em familiar.
A Tronra Do AMADLTRECTMENTo HuuaNo E os ,,Trpos
r Sobre este ponto, vale citar Safra (1999): "Ao tralar tla questão tlo estabelecimento do
DE PSICOTI]RA.I'IA,,
público e do privudo como senÍido de si mesmo, alirma clue a criação da singuhridade
de si no nuntlo com ouÍros e a critrção dos 'nuiÍos'em si no ccunpo da sirtgLtlaridade do
sel[. Unn vez que o self e,steja benx-cot'tstituído, en1 um rcgistro, a pessoa é única e
.tinguln4 enquanÍo, em outro, ela é muitos. Esses 'muitos' são seus ulcestrois, sua história
um trabalho clínico, que considere a teoria winnicottiana,
ttnr kxl.os tlue auúlirtram, conl sud.\ prusenÇ.ts otuois ou simhólicus, na constituiçtio de deve identificar em qual momento do «lesenvolvimento do indi-
.ri rrrr.rrrra " (p.145). víduo houve um obstáculo que impediu o seu desenvolvimento.
6B 69
Luzre.ur ZeccHÉ Avsr-r-Arr
.)ocaN»o NA ANÁLrsE rtr CnrarqÇas

Para prosseguiÍmos no propósito desse estudo, cabe escla- terno, "o setting da análise não é importante em comparação
recer o que são os processos de saúde e doença dentro da pers- com o trabalho interpretativo,,( 1955_6, p. ag6).
pectiva desse autor. A saúde é maturidade no tempo certu. É a Ao contriírio dos casos em que o ego do paciente ainda não
realizaçáo da tendência ao desenvolvimento - pode-se dizer que pode ser encarado como uma entidade estabelecida, o
analista
a saúde significa uma maturidade relativa à idade do indivíduo" deve se preocupar em preparar um setting que forneça
cuidados
(1967a, p.4) - tem relação direta com a provisão ambiental. suficientemente bons, ao modo daqueles oferecidos pela mãe
no il
A doença é a intemrpção do processo de amadurecimento início do desenvolvimento do bebê. Nestes casos, o analista faz
individual e se refere ao momento do desenvolvimento em que o t,
uma adaptação à necessidade do paciente de maneira que
ele,
disnírbio teve origem. Baseando-se nessas noções, Winnicott pro- gradualmente, perceba esses cuidados,,oé algo que I'
põe uma classificação básica dos distúrbios psíquicos, que se dis- fa7 nascer a
esperança de que o self verdadeiro possa
finalmente ser capaz
tancia da classificação feita pela psiquiatria tradicional. de assumir os riscos que o início tla experiência de viver impli_
Os distúrbios psicológicos são classificados por Winnicott ca" (op. cit. p. 486). para estes pacientes, Winnicott considera
de acordo com a imaturidade pessoal. Encontramos essa classifi- que o setting é mais importante do que o trabalho interpretativo,
cação em dois textos "Variedades clínicas da transferência" (1955- o que significa, a soma de todos os detalhes do manejo.a
6), e "Tipos de Psicoterapia" (1961a), Neles, são descritos três Esses indivíduos sofreram uma falha nos estágios iniciais
tipos de casos, assim como, o tipo de psicoterapia sugerido para do desenvolvimento infantil, farhas na construção de sua perso-
cada um deles. nalidade: "Os pacien.tes dessa categoria jamais
Nas psiconeuroses, ele inclui aqueles indivíduos que foram
suficien_ foram
temente saudáveis para tornarem-se psiconeuróticos,, (196la,
relativamente bem-cuidados durante os primeiros estágios, de tal p. 96). Não alcançaram uma organização de pessoa total neces_
forma que se encontram numa posição de desenvolvimento em sária para se relacionarem com pessoas totais. Estão em
busca de
que falham e às vezes conseguem ser bem-sucedidos diante das constituir uma totalidade.
dificuldades de uma vida plena, uma vida na qual o indivíduo A psicose está relacionada à farta de cuidados recebidos pelo
comanda os seus instintos e não é comandado por eles. São as bebê durante os estágios iniciais do desenvolvimento. para
variedades mais "normais" da depressão (l96la, p. 96). Winnicott, a psicose tem origem em uma falha da provisão
Nestes casos, pode-se falar de um psiquismo estruturado, ambiental que foi traumática para o bebê. No estágio da depen_
de uma personalidade integrada ou o que Winnicott chama de dência absoluta, o bebê não tem condições de se defender contra
pessoa total. O indivíduo já tem uma personalidade integrada
uma falha na provisão ambiental. Em um texto de 1963, ..0
que lhe permite relacionar-se com o ambiente externo. Segundo medo
do colapso", define a psicose como uma organizaçáo defensiva
a concepção de Winnicott, o indivíduo precisa ter saúde sufici-
contra uma agonia impensável. As agonias impensáveis são as
ente para ter uma neurose. Nesses casos, o tratamento sugerido é
agonias que não se pode nomear, que não têm registro na presen_
fornecer psicanálise em um contexto profissional de confiabi-
lidade ampla, de forma que o inconsciente possa se tornar cons- a Em unr texto de 1964:' A hnportiinci, do setting no Encontro c.m a
Regressão rta
ciente como resultado da transferência, como ensinou Freud. O Psicanálise, winnicott vorta a afirmar: "Em argtuts pacientes cont
unt certo tipo (re
diagnóstíco, tr provisiÍo e o mo,tuÍenÇã.o íro setÍit1g síto,tuis import(tnÍes
analista não precisa se preocupar com detalhes do cuidado ma- qrrc o rr.;boho
inÍ e rp re Íativ o" (p.'l 7 ).
70
71
Luzr,rNe ZaccuÉ Avurur
Jo<;,tNoo Ne AnÁrrsr os CtnuÇas

ça do outro e são vividas no absoluto. É o risco da não existên- tempo (l96la, p.97). Na base da tendência anti-social, estão o
cía. Winnicott fala do "cair para sempre, da perda dos limites do
abandono e a privação. O indivíduo reivindica aquilo que lhe
cotpo, do despedaÇar-se, é o medo da morte". Em termos da
foi dado e depois tirado pelo ambiente: "A privação e o sofri-
técnica, o analista "deve abrir caminho para que a agonia seia
mento que essa falha produz não estão disponíveis na consci-
experienciada na transferência, na reação às falhas e equívocos
ência, em vez de palavras, encontramos na clínica uma tendên-
do analista. Em doses que não sejam excessivas..." (p.73).
cia anti-social e que pode se cristalizar em delinqüências reci-
Nestas situações clínicas, há um momento de grande de-
diyas" (l96la, p.97).
pendência, e o paciente se encontra profundamente regredido. É
Na tendência anti-social, também houve uma falha
um momento de muita dor, pois ao contrário do bebô na situação
ambiental, assim como na psicose. Mas, nesse caso, o indivíduo
original, ele sabe dos riscos que está correndo. Este é um aspecto
se encontra "amadurecido" para perceber que houve a falha. Nesse
importante para se trabalhar a transferência, pois aqui se deve
tipo de paciente, o processo maturacional caminhou o suficiente,
permitir que o passado do paciente seia o presente, afirma
de maneira que o indivíduo teve condições de perceber as priva-
Winnicott. Isto é necessário para que o ego do paciente possa
ções como úaumáticas. O extremo mais grave da tendência anti-
recordar os fracassos originais.
social é a psicopatia.
O analista suficientemente bom prepara o setting para que
É Oiffcl determinar o padrão pessoal dos pacientes com ten-
o paciente possa recordar os fracassos originais e, desta ma-
dência anti-social. Eles podem ser normais, neuróticos ou até
neira, ter uma experiência de raiva; a experiência de ruptura
mesmo psicóticos, afirma Winnicott. Mas sempre que a esperan-
transforma-se na experiôncia de raiva. Para isso, o paciente
ça se acende, produzem um sintoma, forçando o ambiente a "de- ll
utiliza-se das falhas do analista, que acontecem porque não
volver aquilo que lhes foi subtraído". Ao invés de ações puniti-
se pode ter uma adaptação perfeita. Winnicott (1955-6) escla-
vas, deve-se proceder a uma pesquisa detalhada da história dos
rece que "o fracasso do analista está sendo utilizado e deve
sintomas anti-sociais daquele indivíduo para encontrar a chave e
ser tratado como Ltm fracasso passado, que o paciente pode
a solução. Nesses casos, o tipo de psicoterapia realizada asseme-
perceber e abranger, e com relação ao qual ele pode se zan'
lha-se com a amizade. A diferença é que o terapeuta está sendo
gar agora" (p. 481).0 analista se responsabiliza pelos seus
pago, só vê o paciente em horas marcadas e por um tempo deter-
erros, atribuindo-lhes um significado, de acordo com a histó-
minado. Os pacientes, quando muito comprometidos, pressio-
ria do paciente. Este aspecto tem relação com a resistência,
nam muito a integridade do terapeutâ, uma vez que necessitam
pois, sempre que há uma resistência no paciente, o analista
de contato humano e de sentimentos reais.
deve se interrogar sobre seus próprios erros, u-tilizando-os para
O trabalho clínico em uma perspectiva winnicottiana pafie
fazer suas intervenções, o que possibilita ao paciente se de-
sempre de um diagnóstico das necessidades do paciente. O diag-
frontar e reagir ao fracasso dos cuidados que, na situação ori-
nóstico possibilita um maior rigor das intervenções do analista,
ginal, provocaram ruptura.
incluindo a compreensão da história do indivíduo nos primeiros
Nos distúrbios denominados "tendência anti-socia1", in-
estágios de seu desenvolvimento. É com base na história dos es-
cluem-se os indivíduos que começaram bem, mas cujo ambien-
tágios iniciais que o analista identifica as necessidades do paci-
te falhou em algum ponto, durante um período prolongado de
ente e contempla o seu aparecimento no setting analítico.
72
73
I

I
t
LuzreNr ZaccuÉ Avnlul Joo,rNoo Na ArçÁrrss »n CnrarvÇ,q.s i

O tratamento visa remover o obstáculo ao desenvolvimento A seqüência normal do que se passava era a seguinte:
emocional do indivíduo, para que possa ser retomado a partir Estágio 1 - O período de hesitação. O bebê é atraído pela
daquela área em que ele estava estagnado. A psicoterapia visa a espátula, estende a mão para a espátula e, em seguida, percebe
remoção do obstáculo ao desenvolvimento psíquico: "As tendên- que a situação merece ser considerada. Instaura-se um dilema, o
cias de crescimento estão presentes o tempo todo, em toda e qual- momento é de expectativa e imobilidade. Nenhuma intervenção
quer pessoa, a não ser quando a desesperança (causada por fa- deve ocorrer nesse momento.
lha ambiental repetida) tenha conduzido a um isolamento Estdgio 2 - O bebê põe a espátula na boca e mastiga-a com
estruturado" (1961a, p. 100). as gengivas. Ao invés de expectativa e imobilidade, surge
O fato essencial pÍra o autor é basear o seu trabalho no di- autoconfiança acompanhada de livre movimentação corporal,
agnóstico preciso das necessidades do paciente: "Continuo a ela- relacionada à manipulação da espátula. O bebê está de posse da
borar um diagnóstico individual e outro social, e trabalho de espátula e parece sentir que ela está sob o seu domínio, à disposi-
acordo com o mesmo diagnóstico" (1962c, p. 15a). ção dos seus propósitos de auto-expressão.
No conjunto, essas descrições funcionam para orientar o es- Esdigio 3 - O bem deixa cair a espátula como que por engano.
tabelecimento do setting e a preparação do analistapara que pos- Se ela lhe é devolvida, diverte-se, livrando-se dela agressivamente.
sa oferecer os cuidados de que o paciente necessita, fornecendo a Em seguida, vai para o chão e diverte-se com outros objetos.
possibilidade de terem uma experiência total. No texto "Observa- Para Winnicott, o terapêutico desse trabalho está no fato de
ção de bebês em uma situação estabelecida" (1941), podemos o desenvolvimento completo de uma experiência ter sido permi-
depreender os princípios da técnica de análise de Winnicott. tido, com o mínimo de intemrpção possível e a evolução desse
jogo acontecer segundo o ritmo do paciente.
A analogia que se faz entte o "Jogo da Espátula" e a experi-
O .Joco DA ESPÁTULA,, CoMo PARADIGMA DA CLÍNICA ência em psicoterapia e psicanálise se deve ao fato de ambos
\TINNICOTTIANA: RITMO E TEMPORALIZAÇÃO DA SESSÃO acontecerem em um setting em que o paciente estabelece o seu
ritmo e a experiência que pode ter. Do seu lado, o analista verifi-
O Jogo da Espátula, descrito por Winnicott em um artigo ca até que ponto a análise que está conduzindo pode ser pensada
de 1941, apresenta sua experiência de observação de crianças nos mesmos termos da "situação estabelecida" descrita. A psica-
pequenas entre 5 e 13 meses, em sua clínica no Paddington Green nálise difere da situação descrita pelo fato "de o analista estar
Children's Hospital. Nesse artigo, já encontramos delineados os tateando, buscando seu caminho através da massa de material
princípios de sua clínica. que lhe é oferecida, tentando descobrir qual é o momento, a for-
Winnicott descreveu como as crianças se comportavam em ma e a maneira daquilo que ele tem a oferecer ao paciente e que
uma situação dada, que ele chamou de "situação estabelecida". ele chama de interpretaçdo" (1941, p.159).
A mãe, com o bebê em seus joelhos, sentava-se do lado oposto Na situação analítica, o paciente vai ao encontro de um novo
ao que Winnicott se encontrava. Na beirada da mesa, em ângulo objeto que supra suas necessidades psíquicas, para que ele possa
reto, estava um depressor de língua brilhante. O bebê inevitavel- resgatar aspectos do seuet (selfl que ainda não puderam evoluir.
mente era atraído pela espátula. Na situação com o analista, o paciente busca o desenvolvimento
74 75
Luzr,rNn ZeccHÉ Avsr.r-,,rn J<x;eNno N,q. ANÁr-rsr.: DB CRIÁNÇAS

de uma experiência completa, com um ritmo muito próprio. O Desenvolver uma experiência completa, sentir-se atraído
fenômeno de "criar" a espátula é semelhante ao estabelecimento pela espátula, apossar-se dela, jogar com ela e poder livrar-se t
do fenômeno da ilusão. São fenômenos que acontecem durante a dela sem alterar a estabilidade do meio ambiente, tem um grande
análise e ao longo da vida, quando uma nova dimensão de mun- valor terapêutico porque permite que a criança estabeleça a con-
do, um novo aspecto da realidade precisam ser encontrados e fiança nas pessoas e a crença de boas relações internas, constitu-
integrados ao self. indo uma lição de objeto.
M. Khan (1975), prefaciando o livro Da pediatria à psica- As mães sabem o valor de uma experiência completa, na
nólise, de Winnicott, diz que o período de hesitação favorece a medida em que evitam a intemrpção do sono, da mamada ou da
emergência de um gesto criativo, além de introduzir uma novi- brincadeira do seu bebê. As muitas experiências desse tipo têm
dade na maneira de se conceber a resistência do paciente. Aquilo valor cumulativo para o estabelecimento da saúde psíquica do bebê.
que é deÍinido classicamente como resistência, pode ser definido Para Safra (1995), na clínica,
em termos da busca do paciente por uma intimidade com a situ-
ação analítica, para que possa dar sua contribuição verbal ou o conceito de lição de objeto tem implícito a idéia de
gestual e posteriormente viver com o analista uma experiência que o paciente tem um conhecimento inconsciente de
1i
completa juntos. experiências que necessitam ser encontradas para que
Quando o analista leva em conta a fase da hesitação, abre- ele possa trazer à tona aqueles aspectos de sua perso- I

se a possibilidade do estabelecimento de tm setting confiável, a nalidade que necessitam ser integrados. Assim, o paci-
fase da hesitação é o momento em que se gera a ârea de ilusão ente usa o analista, inclusive seus erros, para represen-
que possibilita o brincar na situação analítica. Esta idéia se rela- tar uma relação conflitante com o objeto e elaborá-la
ciona com o conceito de apresentação de objeto. Se o analista na relação transferencial. (p. 135) ii
I
consegue fazer uma adaptação às necessidades de seu paciente, I

ele saberá a forma e o tempo em que deve fazer as suas interven- O analista deve conduzir a situação de análise de maneira I

ções. Em respeito àhesitação, o analista preocupa-se em não ser que se aproxime do "Jogo da Espátulao'. Assim, em cada ses-
são, abre-se a possibilidade de se jogar o "Jogo da Espátula".
I

invasivo com suas intervenções. Se for diferente disto, "estará


enfiando a espátula na boca da criança utilizando a força físi- Ao final da sessão, o paciente livra-se da espátula. Volta na
ca". Se o analista não é invasivo com suas intervenções, ele per- outra sessão e joga-se novamente "o mesmo" jogo. As sessões
mite a emergência do gesto criativo para na seqüência permitir a seguem no ritmo destes acontecimentos para cada paciente,
emergência da ilusão. portanto, o tempo de duração da sessão está subordinado a este
No segundo estágio, a criança brinca com a espátula e ori- ritmo variável para cada paciente. A análise é um acúmulo de
enta o comportamento do adulto no jogo, estabelecendo a ex- várias destas experiências completas. Uma experiência com-
periência da mutualidade. Criança e adulto são parceiros em pleta comporta três momentos: o começo, o meio e o fim. O
um mesmo jogo. Na situação analítica, o analista não tem uma término da sessão está subordinado ao movimento criativo do
posição fixa no setting,porque ele entra no jogo com sua subje- paciente e também à possibilidade que tem de "livrar-se" do
tividade. analista a cada sessão, por não precisar mais dele. Por este
76 77
j
LuaaNn ZeccnÉ AveIrÀR I
I
I
processo, o paciente constitui também o devir do fim de sua CAPÍTULO 4
análise, aspectos aos quais voltaremos ao discuür o manejo do
TgoRIA DA TÉCNICA DE
tempo na condução da análise (Capítulo 4).
D. W. §TrNNrcorr

O objetivo deste capítulo é compreender a teoria


subjacente às intervenções clínicas propostas por D. W.
Winnicott. Não há em sua obra uma sistematização da técni-
ca. Em sua escrita, utiliza uma linguagem muito simples, dan-
do a falsa impressão de que é de fácil compreensão. Para pro-
ceder a elaboração desta parte do nosso trabalho, efetuamos
uma pesquisa em seus relatos clínicos, em alguns textos que
tratam da técnica e em outros que mencionam bu ressaltam as
suas intervenções. Também realizamos a leitura de autores
que trabalham dentro desta perspectiva: Bollas (1987), Khan
(1963, 7969, l97l) e Safra (1995 e 1999).
Uma idéia central que irá nortear toda a teoria da técnica em
Winnicott é a de que o sef sempre está em processo de constitr,ri-
ção e isto só se dá em presença do oufro. Uma criança inicia o
seu desenvolvimento emocional muito cedo. Ela necessita de
cuidados fornecidos por uma mãe que se adapte às suas necessi-
dades, que seja capaz de"yiver no mundo do bebê, e se adapte às
suns necessidades de um modo fértil dando a base para que pos-
sa estabelecer relações ricas com o mu,ndo".s

s Winnicott (1965a, p.l19).

78
LrrzraNn Z rrccu Í: Avt':Lurn Joc;,lN»o Ne ANÁr-rss oe Cur,qltÇ,ls

que o nas- TneNsrsRÊNcre


Para que a saúde mental se estabeleça, é preciso
que reconheça o
cimento do ser ocoÍra na presença de um outro'
humano no recém- nascido e o introduza no mundo' Para
que a A noção de transferência na perspectiva freudiana é uma
outro' noção estabelecida entre sujeito-objeto. Em Freud, o conceito de
subjetividade seja constituída, é necessária a presença do
da transferência organiza-se como um modo de deslocamento do
Em cada ser humano há a presença de muitos com a história
afeto de uma representação a outra, ou uma realidade que se re-
cultura e da humanidade.6
há a não existência e produz na mente como representação. Na origem, a transferência
Quando não há a presença do outro,
seria um modo particular de deslocamento de afeto.
a impossibilidade de se constituir como singularidade' as fun-
do self não aconteceram' Na concepção kleiniana, também se mantém a relação su-
ções necessárias para a constituiçáo jeito-objeto, mas a partir do conceito de identificação projetiva,
No trabalho clínico, o paciente busca funções que não pude-
que viva na qual se pressupõe a idéia de elementos psíquicos colocados
ram ser constituídas no tempo certo' Então, pode ser
que no outro. Esta é uma concepção espacial, que supõe a existência
na situação clínica, pela primeita Yez, uma experiência
exis- de uma interioridade.
não pôde acontecer em nenhum outro momento de sua
que precisa reco- Segundo Winnicott, para compreendermos a transferência
tência. Nesta situação, o analista é o outro
para como repetição de protótipos infantis, temos que considerar as
nhecer que o paciente está buscando uma interlocução
mas que faz primeiras relações da criança com o seu meio ambiente, as expe-
uma experiência que ele não consegue nomear'
riências fundantes do self. A criança cria o objeto de sua necessi-
parte
' da sua história-
dade e a mãe se coloca nesse lugar, dando a ilusão paÍa a criança
É fundamental nesta perspectiva que o analista tenha
pata de que a mãe foi por ela criada. Este é o paradigma para se pensar
conhecimento da Teoria do Amadurecimento Humano'
todo a transferência na perspectiva winnicottiana. Significa "comuni-
que possa preparar um diagnóstico que irá nortear o
mas' car-se com o paciente da posição em que a neurose (ou psicose)
trabalho clínico. Não se trata de um diagnóstico clássico'
identificando de transferência me coloca" (Winnicott, 1962c, p. l5Z).
sim, de avaliar as necessidades do paciente'
No prefácio de Consultas terapêuticas em psiquiatria in-
em qual estágio o processo maturacional foi interrompido'
para que possa fazer uma adaptação, fornecendo no setting' fantil (1971), Winnicott relata sua surpresa ao ouvir das crianças
que elas sonhavam com ele na noite anterior à consulta. Esse
as l'unções que o paciente necessita para retomar o
seu de-
momento do sonho com o médico que veriam no dia seguinte, segundo ele,
senvolvimento. Trata-se de identificar em cada
percurso analítico as novas organizações do sef e as fun-
refletia o preparo mental imaginativo delas mesmas em relação
se constituir' Para às pessoas que se supõe sejam auxiliadoras: "Contudo, lci estava
lõ", n"""ssárias paÍa que possam eu quando, para minha surpresa, descobri ajustando-me a uma
Winnicott (lg4g), "uma das dificuldades da técnica analíti-
na noção pré- concebida." Para aquelas crianças, Winnicott ocupa-
ca é saber qual a idade do paciente a qualquer momento
va a posição de objeto subjetivo.
relação de transferência" (p'323)'
Nesta perspectiva, o indivíduo sempre está em movimento,
Ver também: Safra'
pois o self náo termina sua constituição. O indivíduo está em
t'A,.u,çõ";ã"*-lr" d" Gilberto Safra ministrada na PUC-SP' l998
(1999)' busca de reparar as falhas ambientais que possam ter ocorrido no
G. "O self no mundo", \n: Aface estética tlo SelÍ
BI
80
LuznNr ZeccsÉ Avrr-r-,ln
Joc.rN»o Ne ANÁusr or Cnreuçes

seu processo de desenvolvimento, sempre está em busca do ob- analítica a possibilidade de pôr em marcha o seu processo de
jeto subjetivo. Trata-se de uma concepção de transferência que desenvolvimento- Desde o primeiro encontro, o analista precisa
se baseia não só no acontecido que pode ser repetido, mas tam- diagnosticar qual é a necessidade psíquica do paciente para não
bém no não acontecido que busca realização. No artigo de 1963, repetir a falha ambiental no setting da análise.
"O medo do colapso", Winnicott afirma que: Winnicott (1955-6) afirma que, quando o desenvolvimento
primitivo falha, o que o analista pode fazer éoferecer ao paciente
O paciente precisa "lembrar" isto, mas não é possível a oportunidade de reparar esta falha. No caso dos pacientes neu-
lembrar algo que ainda não aconteceu, e esta coisa do róticos, pode-se manter a técnica clássica. Mas, para aqueles paci_
passado não aconteceu ainda, porque o paciente não entes que não tiveram "cuidados maternos suficientemente bons',
estava lá para que ela lhe acontecesse. A única manei- em sua história inicial, deve, o analista, adaptar-se às necessida_
ra de "lembrar", neste caso, é o paciente experienciar des específicas do paciente, fornecendo aquilo que faltou. De
esta coisa passada pela primeira vez no presente, ou maneira que o paciente reconstrói sua história psíquica usando o
seja, na transferência. (p.74) setting preparado pelo analista. É um processo que possibilita o
indivíduo recuperar sua criatividade constituindo aspecto s do self.
A transferência só deve ser trabalhada no espaço potencial. Os elementos que estão presentes na mãe devotada que aguarda
Antes de se fazer qualquer intervenção, deve-se auxiliar o paci- um gesto criativo em seu bebê devem estar presentes na sessão.
ente na criação do espaço potencial, pois é nele que ocoÍre a Esta característica retira qualquer possibilidade de haver algo
comunicação transformadora. A intervenção que ocolre fora desta semelhante a um planejamento técnico, pois todo o processo é
área é doutrinação e produz a submissão do paciente. Para Green pautado na espera do analista, sustentando a situação no tempo
(1988), "a comLtnicação entre o analisando e o analista é um para que o paciente possa fazer um gesto necessário em direção
objeto constituído de duas partes" (p. 291). E este se localiza ao objeto de sua necessidade: "É preciso esperar para que o ges_
numa área de superposição demarcada pelo contexto analítico. to criador possa emergir promovendo o acontecer do self, (Sa_
A primeira intervenção é capacitar o paciente a brincar. O fra, 1999a).
paciente fazum movimento para buscar o analista. Do seu lado,
Quando a mãe teve uma adaptação falha, o bebê é forçado a
o analista faz um movimento de deixar-se encontrar a partir da desenvolver umfalso self, que oculta as falhas de adaptação da
sua subjetividade. Em termos da transferência, significa que o mãe. Na situação analítica, o paciente regride aos estágios inici-
analista e o paciente estão sendo "criados" e "descobertos" mú- ais de seu desenvolvimento. o analista reconhece as necessida-
tua e reciprocamente. Trata-se de mutualidade e reciprocidade des apresentadas e acompanha o paciente, colocando-se no lugar
no espaço analítico. Muitas vezes isso implica uma comunicação das funções que não foram constituídas. Esse trabalho é fundado
sem palavras. O passo seguinte da análise é a destruição do ana- na crença de que o indivíduo está em busca de completar o seu
lista como objeto subjetivo. Neste contexto, o analista precisa desenvolvimento, desde que condições adequadas sejam
sobreviver: o que significa não retaliar. fornecidas.
A análise se funda no objeto de necessidade do paciente, Assim como a mãe suficientemente boa falha, o analista tam_
"necessidade de vir a ser", necessidade de encontrar na situação bém o faz, e nisto reside a possibilidade de o paciente reagir ao
82
B3
Llzt..t.n tt Za<;cl tti Avt':t,t.,q.l Joc;,,rNoo Na AruÁusE »ti CrulNç,rs

eÍro ou à falha de adaptação. Há um paradoxo: o paciente está publicação dos trabalhos de Paula Heimann ( 1950) e H. Racker
reagindo a uma falha de adaptação do ambiente nos estágios
ini- (1968). Esses autores passam a compreender a contratransferência

ciais, e está reagindo a uma falha real do analista' A intervenção como um instrumento sensível para auxiliar no progresso do tra-
adequada se dá quando o analista reconhece que falhou
e com- balho analítico e para ajudar no estabelecimento do enquadre.
preende a reação do paciente, sem intetpretá-la como um ataque' A contratransferência permite que a relação analítica se
estruture de maneira particular, com papéis definidos: o de ana-
Nesse trabalho, é mais certo dizer que o presente volta lista e o de paciente. Cabe ao analista manter um equilíbrio mai-
parct o passatlo' e é o passado' Desse modo' o analista or, permanecendo dentro dos parâmetros profissionais. Neste sen-

é conJrontado com o processo primário do paciente no tido, vale destacar a necessidade de ter um conhecimento acerca
setting dentro do qual este último foi originalmente va- de seus próprios sentimentos (dado por sua análise pessoal) para
lidado. (Winnicott, 1955-6, P' a86) que possa compreender aspectos psíquicos importantes de seu
paciente, intervindo na forma e no tempo adequados.
Este não é um trabalho fácil, o analista precisa ter muita Os processos que ocorrem no interjogo da transferência e
sensibilidade para compreender as necessidades do paciente contratransferência pennitem uma visão ampliada do que se pas-
e
que sa no setting, dando condições ao analista de captar, de maneira
oferecer um setting adequado. Ao mesmo tempo, sempre
surgir a resistência, deve interrogar-se sobre seus eÍros' que sem- mais sensível, as necessidades psíquicas do paciente. Esta visão
pre existirão. mais ampliada da relação analítica permite ao analista utilizar
seus conhecimentos e sua intuição na compreensão do conteúdo,
da forma e do momento de fazer suas intervenções.

CoNrnarnaNSFER-ENCIA Quero me deter um pouco mais no termo intuiçá'o, porque


ele nem sempre é bem-vindo no meio clínico. Para isso, retomo a
definição de Winnicott de "mãe suficientemente boa" - é aquela
A relação analítica pode ser definida como uma relação re-
que é capaz de fazer nma adaptação fértil às necessidades do
cíprocaemqueatuamatransferênciaeacontratransferência.O
bebê, vivendo temporariamente no mundo dele, que reconhece o
termo contratransferêncin foi introduzido por Freud' em
1910'
ser humano que existe nele, que o segura (holds), maneja e lhe
noartigo..Asperspectivasfuturasdaterapiapsicanalítica,,.ESta
apresenta o mundo em pequenas doses. Faz isso porque está no
é descrita como a resposta emocional do analista aos estímulos
estado de "preocupação materna primária".
que provêm do paciente, como resultado da influência do anali-
Acreditamos que a intuição do analista é dada pela possibili-
sadosobreossentimentosinconscientesdomédico.Nestetexto,
dade de adaptar-se às necessidades de seu paciente. As caracterís-
Freud compreende a contratransferência como um obstáculo
ao
removido; para isso' ticas da "mãe suficientemente boa", se transportadas para a situa-
progresso analítico, e, como tal, deve ser
sugere a auto-análise, no texto de 1910, e, posteriormente'
suge- ção analítica, permitem que o analista as exerça com seu paciente.
Outros elementos podem auxiliar o seu trabalho: sua análise pes-
re a análise didática-
soal, confiança no método que utiliza e o vínculo com seu paciente
Só mais tarde a contratransferência é tratada como um ins-
ser marcado pela solidariedade com o sofrimento deste.
trumentoútilparaotrabalhodoanalista,especialmenteapósa
B4 85
Lr rzr,cNr-: Zl<r-rrÍ: Avl:r.r.a.rr
J<tr;,tNnct N,r ANÁlrsr ot CrreNr;e.s

Safra ( 1999) auxilia-nos a compreender a utilização da intui- te trabalho me permito ser espontâneo e impulsivo,, (p. 169),
ção pelo analista no contato com o paciente, afirmando que não afirma Winnicott em um de seus relatos do Jogo de Rabiscos.
se trata de algo enigmático, que dependeria de um estado de gra- Acreditamos que estas concepções diferenciam a análise
ça, ou da apreensão de um conhecimento sem intermediação. winnicottiana das de Freud e Krein, que consideram o analista
Trata-se da capacidade de uma pessoa apreender e compreender como objeto de deslocamentos e projeções.
os símbolos de self, símbolos-estéticos que se organizam na os processos da transf'erência e contratransferência, possi-
sensorialidade, por meio de processos identificatórios. É a possi- bilitam a constituição do espaço potenciar. o trabalho analítico
bilidade de se fazer uma leitura a partir da corporeidade da pes- está inserido no espaço compartilhado de jogo. para winnicott
soa e, desta forma, apreende os símbolos do self. O que é chama- (197r), a psicoterapia se realiza na intersecção das duas
áreas do
do de intuição e de apreensão não sensorial é, para o autor, uma brincar, a do analista e a do paciente.
leitura estética da maneira como a pessoa se aloja no corpo. Na A constituição do espaço potencial na análise permite que o
sessão, o analista é afetado pela maneira de o paciente se organi- paciente crie o objeto de sua necessidade. André
Green (lbgg)
zaÍ no tempo, no espaço e pelos seus movimentos corporais no contribui com esta questão afirmando que a comunicação entre
o
setting. Mesmo quando o analista não tem a consciência destes analisando e o analista é um objeto constituído de duas partes

fenômenos, lê esteticamente as situações criadas pelo paciente a fundado na possibilidade de se criar um objeto analítico, que,
partir do próprio corpo. São aspectos que nos auxiliam a com- segundo ele, não é nem interno (para o analisando ou para
o ana_
preender a contratransferência no processo analítico, dentro des- lista), nem externo (para um ou outro), mas está situado entre
os
ta perspectiva. dois. Afirma ainda que o discurso analítico é a relaçãoentre
dois
Em 1947, Winnicott dá sua contribuição a esta questão com discursos que não pertencem nem ao campo do real nem ao
ima_
o texto "O ódio na contratransferência", ao afirmar qu,e "o ana- ginário, o que ele chama de relacionamento potencial.
lista por mais que ame seus pacientes, ele não pode evitar odiá- Quando WinnicottTbga o Jogo de Rabiscos com as crianças,
los e temê-los e, quanto melhor souber disto, menos o ódio e o indica um caminho para se compreender a intervenção na análise,
temor determinarão suas ações sobre os pacientes" (p.342).Com na medida em que o significado é criado pelo par analítico.
Não é
este texto, ele abre a possibilidade de haver um debate mais fran- correto pensar em intelpretação que decifra significados, porque
o
co dentro da psicanálise sobre os sentimentos do analista no con- significado é criado na situação analítica _ nojogo, que, após
inici_
texto terapêutico. Mas sua contribuição não se restringe a este ado deve ser sustentado, sem ter o domínio daquele que
conduz a
aspecto, pois, nas Consultas terapêuticas, apresenta-se como um sessão, a condição de igualdade é fundamental. A intervenção visa
analista que participa com sua própria história pessoal, aspecto facilitar o brincar e criar significados pela dupla.
que favorece a constituição do espaço potencial; neste trabalho,
podemos dizer que analista e paciente jogam juntos, "ambos ten-
do a oportunidade para ser criativo" (p. 198). Dessa forma, a Srtrrwc
condição de neutralidade do analista fica impedida. O analista
entra no processo como pessoa e se vê às voltas com as tarefas de Durante muito tempo, predominou na psicanálise a idéia
de
cuidar, preocupar-se e estar presente atenta e sensivelmente. "Ne,s- um sefiing muito rígido. A sessão analítica era comparável a
um
B6
8f
Luzr,rNl Z,tccuÉ AwLt-,cR Joo,r.Noo Na ANÁlrsB ou CRrINçes

evoluindo para o manejo (handling), ao qual se acrescenta a


"ritual". Os trabalhos de Winnicott, com ênfase nos cuidados
apresentação de obieto (object presenting).
maternos dados à criança, influenciaram alguns psicanalistas a
Nessa perspectiva, o trabalho interpretativo deve ser feito
reverem de maneira sensíveI a concepção do setting analítico.
com cautela para não ser fora do tempo do paciente ou invasivo.
Na perspectiva winnicoÍtiana, o modelo de setting é fundamen-
E isso só é possível pela adaptação fértil do analista às necessi-
tado no modelo da relação mãe-bebê.
dades do paciente, deve ser uma adaptação .fértil para que se
Marion Millner (1952) refere-se ao setting analítico como
abram novas possibilidades de se viver experiências criativas.
uma moldura que estabelece limites e delimita o tipo de realida-
O analista deve oferecer um espaço adequado, um tempo e
de especial de uma sessão psicanalítica. M. Khan (1969) define o
uma presença sensível e constante. Esse conjunto proporciona
setting como a ambiência física que o analista proporciona: a
ao paciente a experiênci a de holding, que é definido por Winnicott
luz, a mobília, o divã e a presença pessoal do analista. O setting
como "o verdadeiro ato de segurar a criança".
proporciona espaço, tempo e a presença do analista pam o pro-
No caso da análise de crianças, o material lúdico oferecido
cesso clínico, e o resultado experiencial deste setting para o paci-
deve atender às necessidades psíquicas da criança. Não é ade-
enteéoholding(p.2a$.
quado preparar uma caixa lúdica padronizada, sem considerar as
O setting é o lugar onde pode acontecer a emergência do
características daquela criança em especial. Um extremo: o ana-
sef. Nele o paciente busca a possibilidade de encontrar a adapta-
lista oferece massinha para evitar que a criança suje a sala com
ção adequada às suas necessidades, o que não foi possível nos argila. Mas é da argila que a criança necessita para colocar o seu
estágios iniciais de seu desenvolvimento.
processo analítico em marcha.
Para Winnicott (1954), o setting:
Ao longo de nossos atendimentos, pudemos perceber que
oferecer uma caixa lúdica pronta impedia que pudéssemos cons-
reproduzas mais antigas técnicas de maternagem. Con'
truir com a criança um espaço (representado pela caixa muitas
vida à regressão pela confianÇa que inspira. A regres-
vezes, mas não só). Em muitas situações, definir com a criança
são de um paciente é um retorno organilado à depen-
qual o melhor material a ser utilizado no trabalho mostrou-se um
dência inicial ou dupla dependência. O paciente e o
excelente instrumento analítico a partir do qual a espontaneidade
setting .fundem-se na situação de sucesso original do
da criança e do analista fluíram mais livremente. Dessa forma, o
narcisismo primtirio. O progresso para além do
analista tem melhores condições de fornecer aquilo de que o pa-
narcisismo primário se inicia de novo, com o self ver-
ciente necessita e não aquilo que ele pressupõe que já exista no
dadeiro capaz de enfrentar situações de fracasso
mundo interno do paciente.
ambiental, sem organizar defesas que envolvam a pro-
O analista precisa disponibilizar-se para ir ao encontro das
teção do self verdadeiro por umfalso self. (p. 470)
necessidades do paciente, para que o processo seja conduzido no
senticlo de recuperar a saÍtde do paciente: saúde entendida como
Um setting adequado pode ser comparado a um "ambiente
maturidade psíquica. A preocupação com a manutenção do seÍting
facilitador", que fornece as funções que o indivíduo necessita
é para garantir a fluidez do processo analítico de cacla paciente.
para integrar paftes do seu eu. Para Winnicott (1963) um meio
Todas as intervenções devem permitir que o processo analítico
ambiente facilitador é aquele que fornece sustentaÇão (holding),
il9
BB
LuzrirNr ZeccHÉ Avt:u-an Joc;enoo Na ArvÁlrsr or CnlaNçes

transcorra no modo e no ritmo do paciente, sem nenhuma altera- sidades do paciente (que são singulares) e de sua história pes-
ção do mesmo, sempre que for possível. soal e social.
O manejo possibilita ao analista fornecer as condições ne-
O princípio básico é o fornecimento de um setting hu- cess:árias paÍa a constituição do seff'verdadeiro do paciente. Com
mano e, embora o terapeuta.fique livre para ser ele pró- alguns pacientes, "aqueles que ainda não ating,iram em seu de-
prio, que ele não distorça o curso dos acontecimentos senvolvimento um sentido de unidade, o trabalho analítico co-
porfazer coisas por causa de sua própria ctnsiedade ou mum deve ficar em suspenso, dando ênfase apenas ao manejo",
culpa, ou sua própria necessidade de fazer sucesso. O afirma Winnicott (1954, p. 460). As principais funções que o
piquenique é do paciente, e até mesmo o tempo que faz analista deve fornecer ao seu paciente pelo manejo sáo o holding,
é do paciente. (Winnicott, 1965b, p.247) a manipulação (handling) e a apresentação de objeto.
No início do processo do desenvolvimento psíquico, o indi-
O piquenique é do paciente e o analista deve poder ajudar víduo está em uma situação de dependência absoluta. Em uma
para que as coisas coÍram bem. O analista não deve se preocupar situação de regressão, esta dependência se manifesta em relação
em dar mostras de sua habilidade técnica, uma vez que não há à figura do analista. Nessas situações, o manejo é fundamental.
técnica preconcebida. Toda técnica da qual o analista precisa lan- A técnica analítica, que era descrita em termos de interpretação,
precisa ser modificada, no sentido de incluir a possibilidade do
çar mão decorre do seu contato humano com o paciente durante
a sessão. O ser humano precisa acontecer na presença do outro. manejo de situações regressivas no setting analítico.
Esse encontro deve abrir a possibilidade de o paciente encontrar Massud Khan, no já citado prefácio do livro de Winnicott
significados próprios para sua existência. O analista precisa re- Da pediatria à psicanálise, deftne o manejo:
conhecer, nos desejos de seus pacientes, necessidades e fornecer
cuidados. O manejo é, na verdade, o provimento daquela adapta-
Em O brincar e a realidade, de 1971, Winnicott enfatizaa ção ambiental, na situnção clínica e fora dela, que fal-
capacidade de brincar do analista, que sustenta o enquadre. O tou ao paciente no seu processo de desenvolvimento e
analista trabalha na área da transicionalidade, mesmo que seu sem o qual tudo o que ele pode fazer é existir pela ex-
paciente ainda não tenha constituído o objeto subjetivo. A análi- ploração reativa de mecanismos de defesa, assim como
se só tem início quando se cria o espaço potencial no enquadre pelo seu potencial do id. Só quando o maneio.foi eficaz
analítico. O analista deve capacitar o paciente para brincar. para o paciente é que o trabalho interpretativo pode
ter valor clínico. O manejo e o trabalho interpretativo
muitas vezes caminham lado a lado, apoiando-se mu-
tuamente, um facilitando a ação do outro na experiên-
Me.xsJo
cia de vida total do paciente. (p. 28)
O manejo é uma forma especializada de cuidar; são inter-
As principais características do manejo são: criar um setting
venções realizadas no setting objetivando promover o progres-
protegido de invasões; propiciar ao paciente aquilo de que neces-
so psíquico do paciente, intervenções feitas a partir das neces-
91
Lt rzr,qNR Za.ccuÉ Avr.:r.r.an
Jocarv»o Na ANÁrrsr on CnuNças

sita: ausência de intrusão pela interpretação, presença corporal sobre o peito. E o paciente disselhe: ,,se você começar a inter_
sensível; permitir que o paciente se movimente livremente pelo pretar esse tipo de coisas, vou ter de transferir esse tipo de ativi-
consultório e faça o que sentir necessidade; e, pelo manejo, propi- dade para outra coisa que não apareça,, (p.163). Winnicott en-
ciar aspectos de cuidado que o ambiente familiar e social não tendeu que só caberia a ele interpretar se o paciente verbalizasse
proporcionariam. sua comunicação. Prossegue: "naforma mais simples, o analis_
Com alguns pacientes, aqueles que sofreram falhas nos es- ta devolve ao paciente o que este comunicou. Muitas vezes, a
tágios iniciais do desenvolvimento, o manejo é mais importante comunicação se dá no silêncio da sessão (...) O propósito da
do que o trabalho interpretativo, o analista fornece adaptação interpretação deve incluir um sentimento que o analista tem de
ambiental sensível e adequada às necessidades do paciente. Como que foi feita uma comunicação, que precisa ser reconhecida
conseqüência, hâ a possibilidade de um trabalho interpretativo (p.164), e que o analista está tentando alcançar corretamente o
bem-sucedido. Manejo e interpretação podem ser complementa- sentido daquilo que foi comunicado.
res no trabalho analítico. O enunciado é simples; se for seguido, evita-se ocorrer o
I
erro de se dar maior importância à urgência do analista de inter-
pretar do que aceitar uma comunicação feita pelo paciente ain_
INrenrnrreçÀo da que seja uma comunicação silenciosa; para entendermos esta
idéia, é importante compreendermos que para Winnic ott(1963a,
Winnicott foi um autor constantemente comprometido p. 169), cada indivíduo se constitui como um isolado, como
com a reavaliação dos princípios básicos da técnica psicanalí- conseqüência, pode não se comunicar, devendo ser respeitado.
tica, assim como dos diversos elementos abordados pela téc- Quando a criança está estabelecendo um eu privado que não se
nica clássica. comunica, e ao mesmo tempo querendo se comunicar e ser en_
No texto de 1968, "A interpretação em psicanálise", contrada. (...) é uma alegria estar escondido mas um desastre
Winnicott afirma que o termo "interpretação" implica a utlliza- não ser achado.
ção de palavras e retoma a regra básica de maneira simplificada: A questão principal é compreender qual é a comunicação es_
os pacientes devem dizer tudo que lhes vem à mente. E reconhe- sencial que o paciente está fazendo naquele momento da sessão e
ce que grande parte da comunicação entÍe paciente e analista não devolvê-la de uma maneira que ele possa ouvir e reconhecer.
rtl
é verbalizada. A comunicação essencial se dá no espaço potencial porque
Em seguida, afirma que os analistas se descobriram inter- é aí que o indivíduo busca aquilo que atende às suas necessida_
il
pretando silêncios e movimentos, um grande número de detalhes des desenvolvimentais. E o analista proporciona o ambiente ne_ lrr

l'
comportamentais que se achavam fora do domínio da cessário paÍa que esta comunicação aconteça. A confiabilidade é
lr
verbalização. Quando isso funciona, diz Winnicott, há vantagens condição para esse tipo de trabalho. i,r

óbvias, pelo fato de o paciente não se sentir perseguido pelos A interpretação pode ser transicional e deve ser construída x

olhos do observador. pelo par analista-analisando. Ela flui de um para outro, ela não
Relata uma situação que interpretou o movimento dos de- está dentro, nem tampouco fora, ela está no entre, na área da
dos de um paciente, enquanto suas mãos repousavam entrelaçadas ilusão. É uma boa interpretação, a que o paciente sente que criou.
92 93
Luzaue ZACCHÉ AvELrÁR
JoceNoo N,r ANÁrrse oe CnrANÇ,A.s

Muitas experiências desse tipo possibilitam ao paciente desen- É fundamental pensar qual é o tempo de se oferecer a inter-
volver o sentimento de confiança tão necessário' pretâção ao paciente e o estilo que o analista utiliza para formu-
Winnicott (1911) diz que: lar a interpretação. Nem sempre o paciente está pronto para rece-
ber a interpretação no tempo e na forma que o analista oferece. 0
interpretação fora do amadurecimento do material é conceito de apresentação de objeto define que o tempo e a forma
rloutrinação e produz submissão' A resistência surge de se oferecer a intervenção ao paciente estejam subordinados às
da interpretação dada fora da área da superposição do suas necessidades psíquicas.
brincar em comum com o paciente e analista' Interpre- A apresentação de objeto articula-se com o tempo de uma
tar quanclo o paciente não tem capacidade para brin' subjetividade, e a intervenção analítica precisa ser coerente corn
car; simplesmente causa coffisão' (p' 76) esse tempo. A intervenção deve ser dada no momento em que o
paciente pode se apropriar dela e na forma adequada para aquele
A interpretação fornecida dentro do espaço potencial é pas- paciente, por isso muitas vezes a interpretação verbal não é o
sível de simbolização. É muito imporlante nesse processo a ca- aspecto essencial. Safra (1995) afirma que as intervenções de-
pacidade do analista de fornecer o holding ao paciente' Essa ca- vem acontecer no momento em que há a possibilidade do encon-
pacidade reflete na forma como se oferece a interpretação ao pa- tro da necessidade com o objeto procurado.
ciente, no tom de voz, no gesto, no silêncio etc' Em alguns casos' Assim como a mãe que está adaptada adequadamente às
ao oferecer a interpretação, o analista se põe no lugar da mãe necessidades de seu bebê e coloca o objeto no Iugar da necessi-
suficientemente boa que apresenta o seio para ser criado e
não dade do bebê, também o analista precisa tazer esse movimento,
reverenciado. por estar sempre diante de angústias que o paciente não pôde
O analista cuida para que possa surgir a comunicação do elaborar durante o seu desenvolvimento. Essa é arazão que jus-
pa-
paciente. Ele sabe, por meio do diagnóstico, aquilo de que o tifica a necessidade da intervenção analítica ir ao encontro da
ciente precisa, sabe qual foi a falha ambiental que necessita
ser necessidade do paciente.
suprir essas necessi- Um outro aspecto que está em jogo
suprida. E, tão logo quanto possível, busca é a confiabilidade. Quan-

dades. do o analista se adapta às necessidades do paciente, a interven-


A interpretação, para Winnicott, é um ato criativo' Assim ção que ele oferece é resultado do gesto produziclo pela necessi-
como a espátula que está 1á reluzente' pronta para que o bebê dade do paciente. O trabalho analítico pode ser tracluzido por
possa com ela brincar. Se na situação do "Jogo da Espátula"
um esse encontro. Caso isso não venha a acontecer ou aconteça fora
dos parceiros tenta colocar a espátula na boca da criança'
rom- do tempo do paciente, ou ainda, de forma inadequada. pode ha-
pem-se a situação de jogo e o faz-de-conta, e o ambiente se torna ver uma decepção clo paciente com uma conseqüente quebra. da
invasivo. Se, ao contrário, a espátula está 1á, a criança se excita' confiabilidade no processo analítico.
a criança vai até ela, usa-a e depois a deixa' Assim
também pode Inserida nessa questão, está a capacidade de o analista trrin-
ser com a interpretação: ela é formulada para
que o paciente pos- car com o seu paciente: só se faz psicoterapia quandc diias per,-
sacriá-la,usá-lae,posteriormente,destruí-lanosentidodecriar soas brincam juntas. Só se faz psicoterapia quaniir.r. pelo hriri*ar,
a externalidade. capacita-se o indivíduo para viver, criativaments, i1{ivi:iÉi experiên-
94 (l<
Luzr,crl E Zx;cHÉ Avllt-tu JoceN»o Nl ANÁusr or CnmNças

Na clínica, quando nos aproximamos destas áreas, precisa-


cias. Experiências que, até então, eram impossíveis de serem
mos estar atentos à comunicação do paciente, pois ele assinala
pensadas. O analista está ali, presente com sua subjetividade e
aquilo que necessita constituir. O analista deve estar disponível
sua capacidade para brincar.
para quando o paciente fizer o gesto que pode constituir aquilo
que falta e reconhecer o que não se constituiu. É um momento
que vem acompanhado de medo por parte do paciente, pois ele
RrslsrÊNcr.t
teme aproximar-se daquilo que não aconteceu, ele teme encon-
trar o nada e anão existência.
O termo resistência é usado para descrever tudo aquilo que,
O paciente teme também que o analista repita a falha ambien-
no decorrer do tratamento, se apresenta como obstáculo e se opõe
tal. Se o analista entende o medo do paciente como resistência,
ao progresso do processo analítico. São os atos ou palavras do
ocoÍre um impasse na análise: o sujeito não encontra a possibili-
analisando que impedem o restabelecimento de uma memória
dade de constituir a função que lhe falta na situação analitica. É
psíquica de algo que se deu, mas que foi perdido e precisa ser
umacoincidência que não deve ocorrer. Se a angústia impensável
recuperado.
se manifesta no seÍting, é para ser reconhecida, nomeada e com-
A resistência é compreendida de outra forma na perspectiva
partilhada. A intervenção necessária é emoldurar junto com o
winnicottiana. (Nessa abordagem, não se trata da recuperação de
paciente aquilo que é um impedimento parâ que se constitua como
algo que fbi vivido e perdido.) Trata-se da constituição de algo
e não foi pessoa, aquilo que o impede de existir.
que não foi vivido, algo de que o indivíduo necessitava
Winnicott (1963) afirma que o paciente precisa "lembrar"
encontrado.
isto, que o colapso já tenha acontecido:
Ao acompanhar passo a passo os movimentos do paciente
na sessão, o analista pode reconhecer aquilo que falta ser consti-
A única maneira de "lembrar", neste caso é o paciente
tuído. Esse momento é temido por parte do paciente, pois ele
"pe- experienciar esta coisa passada pela primeira vez no
sabe dos riscos que isso acaneta. Pode-se fazer referência ao
presente, ou seja, na transferência. Esta coisa passada
ríodo de hesitação", tal como Winnicott propõe no "Jogo da
e futura torna-se eníão uma questão do aqui e agora, e
Espátula".
é experienciada pelo paciente pela primeira vez. É este
Aqui, a hesitação se refere a duas situações diferentes: uma,
o equivalente do lembrar, e tal desJecho cons'titui o equi-
que é a possibilidade do indivíduo vir a encontrar algo que ne-
valente do levantamento da repressã.o que ocorre no
cessita e anseia, uma experiência nova, prazerosa e constitutiva,
análise do paciente psiconeurótico (análise freudiana
pois acontece diante de um outro. A outra possibilidade é o paci-
cltissica (p.74).
ente estar diante de angústias impensáveis, de se deparar com as
falhas ambientais presentes nos estágios iniciais do desenvolvi,-
O ritmo da sessão, as fàltas, o silêncio, que em outras abor-
mento. É o encontro com o ncio ser, com o cair para sempre'E
dagens representariam a manifestação da resistência, nesta abor-
estar na solidão absoluta. winnicott denominou angústias
dagem, estão longe de serem compreendidos desszr forma. Um
impensáveis, as experiências sem contorno nem possibilidade de
exemplo: em um texto de 1958(a), "A capacidade de estar só",
simbolização, porque houve a ausência do outro'
97
96
I-uzrarur Z,,rccn r Avr:r.len
Jo<;,tNr>o n,q ArÁr.rsr rrn Crrr,r,l.r(;,r.s

Winnicott examina uma fase de silêncio ou uma sessão silencio- Ao cuidar do bebê, a mãe precisa reconhecer que nele há
sa do paciente e afirma que o silêncio muitas vezes está represen- um ritmo próprio, que é marca de uma singularidade. A mãe tam-
tando uma conquista de desenvolvimento do indivíduo, a con- bém possui o seu próprio ritmo - os batimentos cardíacos e a
quista dtt c'apucidade de estar só. freqüência respiratória, são desde muito cedo reconhecidos pelo
Khan (1963) discute a função comunicativa do silêncio em bebê, como ritmos tranqüilizadores.
um relato clínico de um paciente adolescente. No relato, Khan No início, para o bebê, o tempo é marcado pelo interjogo de
demonstra que a Íünção do silêncio era comunicar, por meio da seu ritmo com o da mãe. Quando esta é capaz de se adaptar ao
transf'erência e do processo analítico, um relacionamento que o ritmo do seu filho, hír urna dança, a mutualidade e a constituição
paciente tivera conr a rnãe no início de seu desenvolvimento, tendo de um tempo subjetivo pennitindo ao bebê a experiência de con-
dado origem à difusão de identidade. Na sessão, o paciente apre- tinuidade.
sentava negativismo e apatia, que, ao longo do trabalho, fbram O interjogo da presença e ausência materna é dado pela
diagnosticados como um pedido de socorro; o "idioma principal sensorialidade, pelo encontro do corpo da mãe com o corpo da
do pttciente paro comunicar-se erer o silêncio". A partir desta criança de maneira que esses registros sensoriais funcionem como
compreensão, o silêncio deixou de ser interpretado exclusiva- repertório mnêmico dos períodos de ausência. E é na conjugação
mente como resistôncia, mas como uma forma de comunicação. da ausência e presença da mãe, que vai haver uma organização
Safra ( 1995) entende os atos dos pacientes nas sessões como temporal que é a do tempo no encontro com o outro.
crtcts simboli«tdores, que modificam a forma de o paciente se Safra (1999) afirma que dif'erentes vivências temporais se
ver, de ver o mundo e suas relações objetais. O importante nesse organizam ao longo do processo maturacional. O tempo subjeti-
caso é que o ato seja reconhecido por um outro como um gesto yo se constitui a partir do ritmo singular do bebê , Íaz parte do
constitutivo, um gesto criador. O autor chama atenção para que o seu sef e possibilita a vivência de duração de si mesmo e de sua
analista esteja atento aos movirnentos do paciente na sessão, que existência.
presentificam nec'e ssidcrdes tlo sell am tlevir, qte apresentam uma Uma outra vivência de tempo experienciada pelo bebê é
parte cle sLra história. São atos que buscanr sentido, sentido hu- quando este já desenvolveu o não-eu, - é o tempo comportilhado
mano, que não se constitui quando o analista os entende como - que se constitui no interjogo das presenças e ausências da mãe;
resistência. sendo que, a ausência, não pode ultrapassar o que é possível de
ser tolerado pelo bebê. Estas vivências dão acesso à possibilida-
de de o tempo ser vivido como passagens ou como rupturas no
O unNqo I)o lnNro self. As rupturas colocam o indivíduo diante das angústias
impensáveis. Só mais tarde, em algum momento do processo
Para se pensar o manejo do tempo nessâ perspectiva é pre- maturacional, a criança tem a vivência do tempo convencionado
ciso entender o sef como um processo que se dá no tempo, por- e a organização do seu tempo conforme parâmetros estabeleci-
tanto, sempre existirão aspectos aguardando serem constituídos dos pela cultura.
em presença de um outro. A metáfbra da relação mãe-bebê nos Há ainda um outro sentido de tempo, descrito pelo autor, o
a.iuda a pensar esta questão no trabalho analítico. tempo transicionaL Se as ausências maternas acontecem den-
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tro do que é possível para a criança tolerar e se a criança consti- atrasa, adequando o tempo ao sell ritmo ou pode ser pouco e o
tui de maneira satisfatória o tempo subjetivo, ela passa a preen- paciente fica mais tempo. Ele usa o tempo conforme o seu ritmo,
cher os períodos de ausência usando sua imaginação. Esta é uma e é importante o analistzt pocler compreender dessa forma.
maneira criada pelo bebê para tolerar as alternâncias de presen- O "Jogo da Espírtula" é um paradigma para pensarmos o
ças e ausências maternas. O acesso ao tempo transicional permi- ritmo e a temporalizaçiro da sessão e da organização do processo
te à criança usar os diferentes sentidos de tempo, pois a vivência analítico como um todo, é algo que tem um começo, um desen-
clo tempo é colocada sob o domínio de sua criatividade sem que volvimento e um f im. Safia ( 1999b) afirma que este é o paradigma
ela perca o sentido de continuidade de ser da existência humana! O nascimento, o acontecer e a morte. Na
O "tempo ders potencictlidades é uma concepção impor- sessão. temos os três momentos, como no jogo: a hesitação, o
tante para o trabalho analítico pois assinala o porvir do self, "mes- desenvolvimento e o período Ce finalização. O período de hesi-
mo quando o self aconteceu scttis.fatoriamente, sempre have- tação requer muito poucâs intervenções ou interpretações, per-
rtÍ elementos e características que e,starão à espera de reali- mitindo que o paciente organize e comunique a questão humana
z.ação no encontro com o outro" (Safra, 1999, p. 64). que ele irá trabalhar na sessão. A sessão caminha para um mo
Estas concepções de tempo irão nortear a duração da sessão mento que a questão comunicada pelo paciente fique evidente
analítica e do processo analítico. O analista precisa compreender para o par analítico. Há um período em que o analista faz suas
o ritmo de seu paciente e conjugá-lo com o seu próprio ritmo, intervenções e, enfim, a sessão caminha para a finalização, quan-
para que haja a mutualidade, e para possibilitar a emergência e a do o paciente já não precisa mais do analista naquela hora e a
constituição dessas dif'erentes concepções de tempo na análise. sessão termina. Estes momentos precisam ser observados na aná-
A mutiralidade é fundamental para que possa acontecer Llma "dan- lise como um todo, de maneira que o final da análise se configura
ça" na sessão, que parte do reconhecimento do ritmo do paciente desde a primeira sessão. O final de um processo de análise rela-
pelo analista, e do reconhecimento do momento adequado para ciona-se com o 'Jogar a espátula", com a aceitação da mofte do
se fazer as intervenções necessárias ao processo. analista e da própria morte como parte do processo maturacional.
Algumas situações de impasse no processo de análise são Vale lembrar que estes aspectos precisam ter sido constitu-
geradas pelo fato do analista fornecer uma interpretação em um ídos na análise do analista para que ele possa permitir ser destruído
momento que o paciente não pode se beneficiar dela. A freqüên- pelo paciente e não prolongar o processo de análise que está con-
cia das interpretações e o tempo de duração da sessão devem ser duzindo por mais tempo do que o necessário. O manejo do tem-
pensados a partir do ritmo do paciente. po da sessão tem relação direta com o manejo da transferência.
Quando Winnicott (1941) faz o paralelo entre o "Jogo da Se o analista finaliza a sessão de acordo com o tempo convenci-
Espátula" e a situação analítica, diz que o importante é permitir à onal, ele coloca o paciente em uma situação transferencial, de
criança uma experiência completa. Ora, se pensarmos o mesmo maneira que o paciente irá precisar do analista durante o interva-
paÍa a situação analítica, não temos como prever quanto tempo o lo de tempo até a próxima sessão. O analista torna-se excessiva-
paciente precisa para ter uma experiência completa ali na sessão. mente necessário para o paciente, configurando-se com freqüên-
Portanto, os 45 ou 50 minutos podem não corresponder àquilo de cia uma dificuldade na finalização da análise. Ao contrário, se a
que o paciente necessita. Pode ser tempo demais, e o paciente se finalização da sessão se dá no momento que o paciente finaliza o
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LuzmNe ZeccnÉ Avslmn

jogo, não precisando mais usar o analista, a questão transferencial CAPÍTULO 5


se conclui para aquela sessão, com o analista permitindo ser
destruído pelo paciente. Cesos CrÍucos
Trabalhar com a modulação do tempo nesta perspectiva
permite que o trabalho analítico seja feito segundo a demanda do
paciente. Como no caso relatado por Winnicott - The Piggle -, a
paciente pedia uma sessão quando ela estava pronta para traba-
lhar alguma questão.
A duração do tratamento é um ponto importante.
Freqüentemente, somos questionados pelos pais dos pacientes:
quanto tempo dura o tratamento? E não temos uma resposta pronta
para lhes dar. Muitas vezes, os "bons resultados" de um trabalho
analítico só podem ser usados pelo paciente, tempos mais tarde. O objetivo deste capítulo é apresentar situações clínicas que
Winnicott (1961), diz: venhoT conduzindo em meu trabalho com crianças e discuti-las à
luz da teoria de Winnicott. Selecionei três casos que considerei
grande parte do nosso trabalho produz resultados, mas os mais representativos do tema que estou proponclo discutir:
depois de um intervalo que estd além do nosso contro- como se constroem as intervenções na análise de crianças a par-
le. (...) No nosso trabalho, nós temos de tolerar a ten- tir de uma orientação winnicottiana.
são que os casos nos provocam, quando os resultados No primeiro, apresento uma sessão e ressalto uma inter-
não são imediatos, e quando aprendemos a desconfiar venção Í-eita com a utilização de uma palavra. Discuto como
de resultados imediatos. (p.204) esta intervenção possibilitou a abertura de um campo de traba-
lho na sessão. Este caso também possibilita ilustrar como as
observações propostas por Winnicott, no "Jogo da Espátula"
em 1941, nos permitiram compreender os movimentos do paci-
ente na sessão.
O segundo caso que apresento permite discr"rtir a falta de
capacidade imaginativa de uma menina de nove anos, tendo como
conseqüência uma dificuldade escolar e o estabelecimento de
relacionamentos sociais. Relato como o processo caminhou até a
constituição de um espaço analítico que pôde ser utilizado criati-
vamente pela paciente.
?Ató aqui, utilizamos a primeira pessoa
do plural nÍl t'larrativa do trabalho, a partir desse
momento, ao entrarmos na discussão dos Casos Clínicos, passarernos a utilizar a primeira
pessoa do singular.

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