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Ocupação Psicanálise:

Interrogações sobre a diferenciação entre os autismos e psicoses.


Instituto Gerar – 18 de abril de 2017

Angela Vorcaro
Leda Fischer Bernardino
Natalie Mas

Leda Boa noite a todos, estou muito agradecida de estar aqui nesse espaço, no Instituto Gerar.
E queria agradecer o convite da Natalie, o convite da Angela, pois foi ela que me meteu nessa
fria aqui (risos), não só de ter que debater esse tema, que é um tema difícil, como de ter que
debater com ela!

Eu queria começar a minha fala com quatro questões preliminares. A primeira delas, acho
que a Angela já ilustrou bem, mas eu queria ressaltar esse ponto. Acho que a gente deve
pensar a questão do autismo a partir da clínica. O que nos surpreende na clínica com essas
crianças, leva-nos a interrogar o nosso conhecimento e a nossa prática? Só faz sentido uma
reflexão e uma discussão a partir daí. Em outras palavras, a gente tem que fazer a teoria
psicanalítica trabalhar para a clínica, para nos ajudar na clínica; não temos que fazer a criança
autista trabalhar para ilustrar a questão da teoria. Acho muito diferente a gente se debruçar
na clínica, como a Angela fez por exemplo, e trazer esse debate para nós, do que ficarmos
em um gueto discutindo fórmulas e ficções que não necessariamente se referem ao que é a
realidade cotidiana. E é isso que nos permite, também, falar com a comunidade, ter o que
dizer, ter um diálogo aberto e poder colocar o nosso saber para pensar neste grande enigma
que ainda é o autismo.

O segundo ponto que eu acho também importante, e que me pareceu faltar no texto do
Maleval (2015), já que de alguma forma é a partir dele que a gente está conversando aqui, é
que nós temos que fazer uma diferença muito grande entre uma clínica de bebês, onde temos
os sinais de risco, e que podem ser sinais de risco autístico ou não, e uma clínica onde já há
um funcionamento autístico de alguma maneira utilizado pela criança como sua defesa
preferencial. Isso é muito diferente, e vou dizer porque, já entrando no terceiro ponto.

A terceira observação é que na clínica de bebês em risco psíquico, que de alguma forma nos
têm chegado muito hoje, crianças bem pequenas já diagnosticadas como autistas, não
necessariamente esses sinais de risco apontam para um funcionamento autístico. Esses dois
sinais principais do autismo, que têm a ver com a falta de interação com o outro e com a
ausência de troca de olhares, apontam para a não disponibilidade para a relação, ou seja, há
um fechamento em si mesmo muito diferente da abertura e da apetência do bebê comum para
interagir. Mas isso pode acontecer em muitas situações, e não só nos casos de autismo, que
são inclusive os mais raros. Nós sabemos pela estatística anterior ao evento DSM. Então o
que podemos encontrar aí? Quando a gente tem crianças com esse fechamento, nós podemos,
por exemplo, estar na clínica da depressão da primeira infância, que é muito reativa à
depressão materna, a uma depressão na gravidez, em que o bebê também apresenta sinais de
fechamento porque ele não encontra no olhar do outro um ponto de identificação aonde ele
possa, de alguma forma, encontrar resposta ao seu desamparo, então ele vai evitar esse olhar,
para evitar essa fragmentação, os sintomas são muito parecidos com os da clínica do autismo,
mas não é da mesma dificuldade que se trata. Outra situação são os problemas cognitivos não
explícitos: crianças que têm que um problema de surdez parcial, ou um problema de visão
parcial, o que dificulta, pela própria questão sensorial, a interação da criança com o outro. Se
isso não é diagnosticado a tempo, a aparência da criança também é de um fechamento, porque
ela não encontra respostas ao seu investimento no meio, e a tendência é se fechar, porque o
retraimento relacional (Guedenay, 2002, 2004) é uma defesa que é básica nos humanos. Nós
nos voltamos para nós mesmos para nos proteger do meio que aparece como ameaçador.
Outra situação em que isso também aparece, é no campo médico, quando as crianças têm
alguma doença não diagnosticada que produz um sofrimento físico muito grande, e isso não
é percebido pelo seu meio, o bebê não tem como dizer "Estou sentindo dor. Alô, cuidem de
mim!", então uma das formas de ele reagir também é se fechando em si mesmo. Vejam
quantas situações que temos que não correspondem a uma evolução para um quadro mais
grave de fechamento, que seria o quadro autístico. Ainda temos uma clínica que vêm
crescendo cada vez mais, que é a clínica dos estados de carência, com crianças abrigadas,
crianças abandonadas, ou crianças negligenciadas pelo simples fato da vida moderna, que às
vezes atinge algumas famílias de uma maneira muito maciça, então também temos o bebê
que, do ponto de vista da responsividade do agente do Outro à presença dele, não encontra
um investimento correspondente à necessidade dele na relação com o outro, então ele
também vai se fechar. Às vezes são situações onde o manejo social é muito importante e isso
recoloca em jogo, retoma todo o desenvolvimento da criança, e é muito diferente uma criança
assim receber um diagnóstico de autismo, e a partir de aí se especializar em ser esse objeto,
que a ciência de alguma forma “fez o favor” de carimbar sobre a identidade dela. Mais um
ponto para a gente prestar atenção.

A última observação preliminar se refere à clínica de bebês, especificamente. Digamos que


na clínica de bebês a gente receba esse bebê com um risco de evolução autística. A gente
sabe, do ponto de vista psicanalítico, que nenhum bebê nasce autista, algumas crianças - por
questões que ainda desconhecemos, mas que são muito precoces - já desde o nascimento, têm
uma retração e uma dificuldade muito grande no campo das interações. Mas isso não significa
que necessariamente ela vai ser autista a vida toda, porque nós temos relatos na clínica
psicanalítica que mostram que quando a gente intervém de maneira a poder aproveitar as
pequenas brechas que o bebê deixa, apesar de seu fechamento, nós podemos criar situações
rumo a um outro encaminhamento, que não seja autístico propriamente dito. Principalmente
quando a detecção é feita muito cedo, e a gente pode agir no nosso trabalho de psicanalistas,
com os recursos que temos, antes dos 9 meses, antes desse momento tão crucial em que a
criança já está com seus organizadores, e já tem um primeiro momento de identificação que
se oferece na relação dela para com o meio. Se a gente consegue intervir antes disso, ou muito
próximo disso, ou um pouquinho depois disso, nós podemos ter efeitos muito importantes,
inclusive de reversão do quadro, que seria inicialmente um quadro com possível
encaminhamento autístico (Cullère-Crespin, 2010; Bernardino, 2006; Laznik, 1997). Além
disso, essa criança em tratamento, como a Angela falou, pode sair desse fechamento e entrar
numa relação com o Outro, que seja uma relação do tipo mais simbiótica, por exemplo, o que
vai caracterizar uma psicose. E temos crianças que, mesmo com o tratamento, continuam
mantendo marcas identificatórias do campo autístico - essa esquiva, como a Angela falou -;
mas que a partir do tratamento, conseguem outros tipos de relação com o mundo que não
sejam pela via do fechamento. Então a gente poderia chamar essas crianças de pós-autistas,
porque elas permanecem, de certa forma, com mecanismos defensivos muitos próximos do
autismo, mas não têm mais a sintomatologia básica do autista. São todas situações que a
literatura psicanalítica descreve, são vários casos clínicos, nós podemos ter todos esses tipos
de evolução, desde a evolução para o desenvolvimento dito padrão, a evolução para uma
psicose, ou a evolução para o que a gente poderia chamar de pós-autismo (Kupfer, 2017).
Tem isso que a Angela muito bem ressaltou: quando estamos na clínica de crianças,
principalmente na infância precoce, não podemos pensar em definição de estrutura, ou de
defesas que se coloquem como definitivas. Temos que pensar, articulando de alguma forma
tudo aquilo que a gente conhece sobre estruturação e sobre constituição da subjetividade, as
operações lógicas próprias do funcionamento psíquico, da formação do aparelho psíquico,
com um tempo de desenvolvimento. A criança está numa situação de gerúndio, as coisas
estão acontecendo para ela, como já desenvolvemos em outro trabalho (Bernardino, 2004).

Em suma, essa clínica de bebês, como eu falei para vocês, evolui de diferentes maneiras, não
vou entrar muito nessa questão, porque não é o caso aqui. O caso é a gente poder conversar
sobre as diferenças, trazer interrogações sobre as diferenças entre autismos e psicoses. Então
vou pensar mais na criança um pouco maior, no caso do autismo, que já tem uma instalação
de defesas do tipo autístico, a partir do que nos aparece na clínica. A Angela já entrou com a
teoria, eu vou entrar com a prática, fazemos assim uma boa dobradinha. Vou contar um pouco
para vocês da experiência clínica.

O que acontece? Nós estamos ali [na clínica], acolhemos os pais e a criança, estamos à
disposição na transferência, fazemos o acolhimento do sofrimento que nos trazem, e
oferecemos à criança um espaço e uma série de objetos para brincar. É isso que a gente faz
quando é analista de crianças. O que acontece quando a criança tem um funcionamento
autístico? Ela não brinca como as outras, não vai ter enredo nas suas brincadeiras, ela não vai
fazer encenações, ou seja, não tem o faz de conta como a Angela muito bem teorizou, a
criança não faz projeção nos personagens das suas próprias representações. Aliás, o que a
gente percebe, já muito claramente em um primeiro momento, é que essa criança não tem,
ou tem muito parcamente, a capacidade de representação. Vão articulando isso com o que a
Angela falou sobre signo e significante. Essa criança serializa, classifica, movimenta objetos,
fascina-se pela movimentação desses objetos. Temos um funcionamento no âmbito da
linguagem que pode ser metonímico, ela pode estar no nível do índice, do ícone, do signo,
mas não está no campo do significante. Vejam como clinicamente isso é muito simples,
porque a gente encontra isso quando a gente se dispõe a oferecer esse espaço, essa escuta,
esse acolhimento e esses objetos, nesse trabalho psicanalítico.
A criança psicótica é diferente. Ela faz desenhos, ela pode ter desenhos figurativos, pode ser
que esses desenhos apresentem um desenho dela própria toda fragmentada - cabeça de um
lado, pés de outro, boca de outro - mas ela desenha, ela tem uma capacidade de figurabilidade.
A criança autista também desenha, mas ela desenha enquanto reprodução fiel do objeto, ela
faz uma cópia perfeita de algum personagem, por exemplo. A criança psicótica faz
brincadeiras com personagens, mesmo que ela não fale - porque aí está uma grande questão,
há o pressuposto de que se a criança não fala ela é autista, e quando ela vem para o consultório
o que acontece? Ela não fala com palavras, mas ela faz o bonequinho subir a escada, entrar
na casa e sair correndo, então você vê um enredo ali, tem uma encenação, mesmo que não
tenha palavras, tem representação. Há presença de deslocamento e condensação,
encontramos aí as leis do processo primário, a criança usa a representação. Nós temos
possibilidade de encontrar o significante, embora seja uma simbolização incipiente, que é o
que a Angela indicou. Valeria a pena a gente trabalhar o estatuto do significante na psicose,
porque há significante. Mas o que seria pensar o significante sem a vetorização do Nome do
Pai? É bem essa a questão que a Angela trouxe com o exemplo da errância. Então podemos
ter a criança que fica no consultório conversando com os seus dedinhos, e depois de algumas
sessões você percebe que os dedinhos têm cada um seu lugar, um é o pai, outro é a mãe, outro
é o filho. Não é necessariamente um delírio, a criança está fazendo uma encenação para você.

Quais outras diferenças aparecem? O lugar do Outro é diferente. Esse lugar que vários
agentes podem ocupar, que é o lugar simbólico, o lugar da linguagem, o lugar das
significações, há uma diferença muito grande nos dois casos. No autismo esse lugar está
vazio, ausente. Nós vemos que para o autista não faz muito sentido essa função de alguém
representar o campo da linguagem, é possível ir direto a este campo, por exemplo, aprender
a ler e a escrever sem nunca alguém ter ensinado, porque essa encarnação não é necessária,
esse lugar não precisa ser ocupado. Esse lugar pode ser, como dizem os Lefort (2017) “limpo
de gozo”, ou seja, um lugar onde não tem uma pessoa com afetos, com investimentos, com
desejo e que vai tomar a criança como objeto.
Já na psicose, ao contrário, esse lugar aparece muito preenchido, é um Outro como aquele do
filme do Woody Allen, Contos de Nova York (apesar de que ali era um neurótico, mas um
neurótico caricatural, exagerado): há uma mãe que ocupa a tela toda do cinema. É um Outro
invasivo, intrusivo, que tem todas as significações, do qual nada escapa, que tudo vê e tudo
pode, esse é o Outro da psicose.
Na transferência isso vai ficando claro, porque a criança autista recusa o contato, o olhar, ela
é indiferente à nossa presença, ou no máximo, e já é um ponto positivo para a gente, ela olha
obliquamente, para manter a distância necessária e garantidora da solidão. A gente tem uma
sensação, em estando junto com a criança, de vazio, a gente não é nada ali. Quem sou para
essa criança? Ninguém! Ela não me vê, ela não me escuta, eu não conto. Só que nós
psicanalistas não nos deixamos enganar, nem desistir diante desse não lugar, a gente insiste.
Já na psicose a criança já vai se oferecer para ser tomada como objeto, ou ela vai ter muito
receio de se aproximar porque ela vai temer que você a tome como objeto. Então a sua
presença [enquanto analista] é muito percebida, e você tem essa sensação, que qualquer coisa
que você diga ou faça pode ser tomado por essa criança de uma maneira muito particular.
Você pode dizer "Não pode jogar o bichinho para o outro lado da sala", e a criança a partir
de aí desenvolver todo um roteiro paranoico na sua frente, porque ela tomou você como esse
agente perseguidor, que colocou uma regra ali que para ela é destrutiva, castradora no sentido
real.

Percebem como a clínica vai nos mostrando que é impossível pensar que se tratam das
mesmas categorias clínicas?

No que se refere à imagem corporal. No autismo sabemos que faz parte das consequências
da retração da criança à relação com o agente do Outro, a não construção da imagem corporal.
Essa relação com o espelho, essa identificação da imagem do espelho como sendo sua, essa
possibilidade de ter uma representação mental de si mesma, não se constitui. Isso é muito
bem ilustrado no livro da Temple Grandin (2017), quando ela diz que constrói aquela
máquina, que ela chama de máquina de abraço, para ter uma noção de unidade, de
continuidade, de totalidade enquanto ela própria, ou seja, para fazer justamente a função que
o estádio do espelho faz. E isso ela precisa buscar no objeto que ela construiu, porque ela não
tem isso nela, apesar da grande inteligência que ela tem. Não há uma constituição da imagem
própria.
Na psicose a criança está em pleno estádio do espelho, então ela vive a sua imagem, ela sabe
que tem essa imagem, mas essa imagem é hipotecada no Outro, ela não se vê sem o Outro,
ela não consegue se perceber como alguém separado deste Outro. Isso na infância é muito
comum, enquanto defesa psicótica dessas crianças que entraram no espelho, mas não saíram,
nesse sentido de poder fazer a separação eu/não eu. O espelho da criança psicótica a coloca
em uma posição de objeto em relação ao Outro. Ela tem essa posição inclusive na
transferência, de se colar a você, de se oferecer a você, porque é essa a posição que ela tem
até do ponto de vista da sua imagem própria. Há uma fragmentação difícil de viver nessa
imagem, justamente por ser tomada pelo olhar do Outro, mas do ponto de vista de uma
captura objetal e não de uma unificação do ponto de vista narcísico que produz a queda do
objeto não especularizável (ver, por exemplo, Aulagnier, 1991). Justamente porque falha a
referência ao Nome do Pai, é um eu ideal sem referência ao Ideal do eu, então na verdade é
um ideal que não se constitui inteiramente, ele fica fragmentado e, portanto, é mortífero. Para
a criança também é muito difícil lidar com a sua própria imagem. Mas é diferente não querer
se olhar de jeito nenhum na imagem do espelho, e olhar a imagem do espelho sem que isso
faça nenhuma diferença, não produza nenhum efeito.

No que se refere ao objeto. No autismo o objeto é real, foi isso que a Angela ensinou aqui
quando disse "Não há uma separação entre o referente e aquilo que o representa", então o
objeto é aquilo ali. Por exemplo, uma caneta não pode ser um aviãozinho de faz-de-conta.
Como disse a Claudia Mascarenhas, que trouxe o depoimento de um adolescente autista em
um congresso, ele defendia a sua especificidade e a importância de ele ser reconhecido na
sua diferença, e ele contava da terapia que ele fez, e que ele não via e continuava não vendo
nenhum sentido em ter um monte de panelinhas ali e alguém mexendo e dizendo que tinha
comidinha ali dentro, isso não fazia o menor sentido para ele. O objeto é o que é e ponto.
Não se descola da coisa em si, não representa nada além dele próprio, mas pode ser tomado
como uma borda, uma defesa para manter o controle do ambiente, segundo teoriza o Maleval
(2015), e que vai na continuidade da escola inglesa quando teoriza sobre o objeto autístico
(Tustin, 1975), embora Maleval faça um desenvolvimento bem interessante e mais rico desta
questão em sua obra. A gente sabe que para o autista, no uso do objeto, embora não seja o
objeto representado nem o metafórico, é um objeto que tem uma função muito importante no
sistema defensivo dele. É um objeto que tem que ser respeitado, é a partir desse objeto que
ele vai encontrar formas de se relacionar com o mundo e consigo mesmo. A gente não pode
proibir a criança de levar seu objeto, por exemplo à escola, ou não pode fazer um treinamento
para que a criança deixe de ficar fixada nos carrinhos. Isso tem um lugar na economia
psíquica dela. E o mais importante, o objeto está fora do circuito pulsional, ou seja, é uma
criança que não fez a articulação entre corpo e linguagem, então mesmo que ela entre na
linguagem o corpo fica de fora. Ela não sabe muito bem o que fazer com o corpo e é nisso
que o objeto a ajuda, a fazer uma borda entre ela e os outros, entre ela e o mundo.
Na psicose o objeto é imaginário. Existe uma dificuldade de simbolizá-lo, no sentido próprio
do termo, ou seja, de dialetizá-lo. Porque esse objeto foi capturado no circuito pulsional, há
um enlace dessa criança com o Outro, seu corpo e o significante, mas o gozo de que se trata
na relação com o objeto não é o dela própria, é o do Outro. Então o objeto é usado nesse
sentido. Ele vai ser perseguidor, devorador, ameaçador, porque ele vai ser, de certa maneira,
um representante desse Outro. Ela vai usar esse objeto para, de alguma maneira, encenar o
drama dessa relação que ela tem com esse Outro do qual ela não consegue se separar.

São algumas questões clínicas que mostram para vocês como nós, psicanalistas, na
transferência, no setting analítico, podemos fazer essa diferenciação em termos clínicos. Nós
vamos usar as entrevistas, a conversa com os pais, as observações da forma como a criança
se relaciona com a gente e com os objetos, para poder, de alguma forma, usando o raciocínio
clínico, chegar a uma posição diagnóstica que é sempre no sentido que o Christian Dunker
(2013) apresenta: é uma “diagnóstica”, um processo. É uma primeira hipótese para que a
gente inicie o trabalho e tenha algumas diretivas de tratamento, no rumo que a gente vai dar
a esse trabalho. Hipótese sujeita, a cada momento, a ser reavaliada, repensada, porque
estamos em plena infância, em pleno entrecruzamento entre estrutura e desenvolvimento, e
a criança, pelo menos a experiência clínica nos mostra, tem muita abertura para o nosso
trabalho.

Como pensar isso em termos metapsicológicos? Porque o texto todo do Maleval (2015) vai
nesse sentido: podemos pensar em uma estrutura autística? Na escola inglesa há muito tempo,
os pesquisadores do autismo fazem uma diferenciação, que é uma diferenciação bastante
interessante, porque ela também é feita na transferência. Eles descrevem dois tipos diferentes
de identificação, um tipo de identificação mais arcaico, mais primitivo, e que tem a ver com
a fragilidade da criança na ocupação de um espaço, e que eles chamam de “identificação
adesiva” (Bick, 1988), ou seja, a criança se apresenta clinicamente sob essa forma da
adesividade. Por exemplo, o Pierre Delion dizia: "na minha clínica sei quem é que trabalha
com os autistas, porque são aqueles profissionais que sempre têm uma marca corporal",
porque a criança não dá a mínima para você, você não faz parte do espaço, mas de repente
ela vem correndo e tropeça em você e você cai, machuca o cotovelo, etc. Algo acontece ali,
porque é justamente essa adesividade, ou seja, em algum momento tem que trombar no outro
para saber qual é o seu lugar no espaço. Já na psicose, nós temos uma identificação um pouco
mais elaborada, muito próxima do que o próprio Freud postulou para a clínica da psicose,
que é a “identificação projetiva” (Klein, 1991). Então, por exemplo, a criança vai ver no outro
esse objeto perseguidor, esse risco de devoração, vai ver no coleguinha da escola, que às
vezes faz uma pequena brincadeira, todo um roteiro onde ele está tramando acabar com ela.
Isso seria a identificação projetiva.

Entrando na escola francesa, a Angela já trouxe um pouco sobre isso, o que vai me permitir
passar voando, que é a diferença entre as operações psíquicas de causação do sujeito (Soler,
2007). Essa diferença que coloca no autismo uma questão importante no que se refere à
operação psíquica da alienação. Nós vemos que há realmente falhas importantes na alienação,
tanto no que se refere a alienação simbólica, a alienação imaginária, e a alienação real
(Laznik, 2004). A criança não se identifica com os sons que se referem ao nome dela, então
os fonemas do nome próprio, que qualquer bebê aos seis meses já reconhece, para a criança
não fazem sentido algum. Esses sons, essas marcas no campo da linguagem que se referem
a ela, não têm nenhum efeito. Isso para dar uma pequena ilustração paradigmática do que
seria a dificuldade na alienação simbólica. Nós temos uma entrada no campo da linguagem,
muitas crianças falam, como a Angela falou, algumas falam muito, falam em tom
monocórdio, uma vez na vida levantam e dizem uma frase ou ficam mudas, mas demonstram
que entendem tudo o que se passa ao redor. Há uma entrada na linguagem, mas não há uma
apropriação do seu corpo por esse campo da linguagem. Não há a articulação entre corpo e
linguagem. Podem apresentar-se no campo do ser, em que há os reflexos primários e todas
as defesas iniciais que um ser humano apresenta (automatismo mental) e que se mantêm por
muito tempo, porque não são substituídas pelo funcionamento simbólico, estes são os tipos
mais deficitários de autismo. Ou então, são os tipos mais sofisticados, chamados de alto nível,
que podem ser como computadores, eles mesmo se descrevem assim, como pura máquina de
pensar. Mas nos dois casos não há articulação entre os dois campos, entre o corpo e a
linguagem, porque falha justamente a alienação real, ou seja, o circuito pulsional no qual a
criança seria tomada como objeto para o gozo do Outro no sentido de se identificar ao desejo
do Outro, e aí entrar no campo do desejo, neste drama do humano, que é entrar no campo do
desejo sempre alienado no desejo do Outro, isso não acontece com esta criança. O corpo dela
não é marcado por esse investimento, não é marcado por essa erogenização. E falha também
a identificação imaginária, no sentido da alienação imaginária à imagem no espelho, que ao
ser capturada substitui o corpo próprio e real, e faz uma representação do corpo do ponto de
vista psíquico. Então temos falhas nos três âmbitos da alienação.
Já no caso da psicose, nós temos uma criança que de alguma forma entra na linguagem, se
deixa capturar como objeto, mas o drama é justamente não conseguir sair dessa posição de
objeto, não responder com um sim àquela pergunta "Será que o Outro pode me perder?". A
pergunta fica sempre respondida como não, como tendo que ficar nesse lugar de tamponar a
falta do Outro. Pelo menos de uma maneira provisória isso pode acontecer, a gente sabe que
o tratamento produz mudanças e dialéticas aí, em muitos casos.

Essas diferenças implicariam em mecanismos estruturais diferentes? Porque parece que é a


grande questão que a gente está debatendo aqui.
Tem uma trajetória interessante do casal Lefort, a Rosine e o Robert Lefort que trabalharam
muito a clínica do autismo nos anos 80: no início de seus trabalhos eles falavam de uma não
estruturação no autismo (Lefort, 1984). Então, justamente falharia todo o processo de
estruturação. Já em 2004 eles escrevem um livro que se chama "A distinção do autismo"
(traduzido este ano para o português com o mesmo título), onde eles defendem que o autismo
seria uma estrutura diferente da psicose, e nessa estrutura nós teríamos então esse ponto
diferencial, que seria a ausência do Outro propriamente dito, seria um Outro, como eles
chamam, “limpo de gozo”. Um Outro que entra só como campo da linguagem, só como
exterioridade, só como campo simbólico, como um determinado campo do saber, mas não
entra com seu corpo, com seu gozo, não toma a criança como objeto, sem mensagem.
Achei superinteressante, Angela, você retomar o livro do Contardo Calligaris (2009), que foi
reeditado: "Introdução a uma clínica diferencial das psicoses", é um livro muito bacana,
muito acessível, clinicamente é muito rico, ajuda-nos nessas interrogações.
Outro autor que trabalhou esse tema do autismo muito en passant, mas porque fazia parte do
que ele estava pesquisando no momento, foi Jean Jacques Rassial (2000), em seu livro
chamado "O Sujeito em estado limite", que é um livro publicado no Brasil há alguns anos.
Ele está interessado em trabalhar as estruturas que não se definem, ou seja, esse sujeito em
suspensão quanto ao seu encaminhamento estrutural. Rassial vai falar do autismo como a-
estrutura, no sentido também muito próximo aos Lefort em 1984: "não há estrutura ainda".
Para ele, seria uma posição de suspensão da operação primária, deixando o sujeito hesitar
entre psicose e neurose. Essa posição do Rassial é interessante porque ela nos ajuda a pensar
o que a clínica nos mostra, ou seja, que uma criança com muitos traços autísticos pode ter
uma evolução para a neurose, ou para a psicose. O que o Rassial explica aí, e que chama
atenção para algo que é importante para meu raciocínio a seguir, é que na foraclusão, que é
própria da psicose, como a Angela já explicou, temos uma operação paradoxal de anulação,
ou seja, há a abolição de uma operação de representação-percepção insustentável. Ou seja,
há uma representação de percepção que se inscreve, mas é abolida, ela aparece, é
reconhecida, mas é abolida. E claro, no caso da foraclusão do Nome do Pai essa
representação-percepção insustentável é a castração, no que se refere à clínica a partir do
Édipo. O Rassial diz que no autismo nós teríamos uma ausência de representação-percepção,
então não haveria nem inscrição e nem abolição, porque se não tem inscrição não teria o que
abolir.
É muito interessante, porque Rassial faz um raciocínio muito simples, ele retoma o que Lacan
diz ao mostrar que a foraclusão é um mecanismo constitutivo do aparelho psíquico. A gente
constitui o aparelho psíquico a partir do que a gente deixa entrar e se inscrever e daquilo que
a gente de alguma forma percebe, mas não aceita e deixa de fora. Um exemplo bem simples
disso é como a gente aprende a nossa língua: no começo o bebê diz um monte de fonemas,
ele emite, ele escuta, tem representação desses sons, mas o seu entorno não repete, não
reconhece, não dá a mínima importância para esses sons, porque não são os sons da língua
própria. O que acontece, então? O bebê abole, anula esses sons, e só vai manter os sons que
são reconhecidos na sua própria língua. Rassial vai mostrar justamente essa diferença, existe
algo que acontece no plano das inscrições das representações, e algo que não aparece, que
não vai do campo da percepção para a representação.
Isso é importante para pensar o que eu queria retomar hoje, porque a questão que me ficou
do texto do Maleval (2015) foi a seguinte: ele falou tudo isso, até escreveu: "temos para a
perversão o fetiche, para a neurose o sintoma, para a psicose o delírio, o que a gente teria
para o autismo?", mas ele não se propõe a formular um mecanismo estrutural para o autismo.
Temos o recalque para a neurose, o desmentido para a perversão e a foraclusão para a psicose,
e o que teríamos para o autismo se o autismo é uma estrutura? Essa questão que me ficou,
lembrei-me de já ter sido formulada por outra pesquisadora do autismo, que é a Marie-
Cristine Laznik. Em seu livro "Rumo à palavra" (1997), no capítulo 3, ela se pergunta sobre
isso. Mais tarde ela não deu mais seguimento a essas pesquisas, foi para um caminho mais
clínico, para a clínica com os bebês, mas está lá no livro dela e é muito interessante de pensar.
Ela retoma a carta 52 (publicada inicialmente como “Manuscrito M”) onde Freud (1897),
resume as ideias do "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895). Laznik retoma
este texto porque o considera muito importante, porque esses diferentes registros de inscrição
e re-transcrição de um registro ao outro, que aparecem na carta 52, propostos por Freud, nos
ajudam a pensar os diferentes tempos da constituição do psiquismo. Vocês sabem, entre
percepção e consciência Freud propõe vários níveis. Um primeiro registro é o registro dos
sinais perceptivos, que são organizados por simultaneidade. Eu sempre uso o mesmo
exemplo, me perdoem a falta de criatividade: o bebê escuta os sons da chave, escuta passos,
sente um cheirinho e daqui a pouco vem a mamadeira. Em um primeiro momento todos esses
sinais perceptivos são organizados por simultaneidade. No segundo registro é justamente o
momento em que ele chega a essa conclusão: "Se eu tenho isso e aquilo, então vem leite, a
mamãe chegou, oba, vou ficar satisfeito", que é o registro das relações causais. Freud vai
situar o inconsciente, ou seja, o plano das inscrições psíquicas propriamente ditas, nesse
segundo registro. No primeiro registro, dos sinais perceptivos, temos o que Lacan situa como
o campo puro do significante. Mas não há a possibilidade de recuperar isso, no sentido de
que isso se transcreveu no inconsciente enquanto inscrições de representações. Só no terceiro
registro é que temos as representações de palavras, aquilo que se inscreveu de alguma forma
pode se juntar às palavras. Entre o primeiro registro, o campo dos sinais perceptivos que se
referem mais à percepção e o segundo que é o das relações causais, onde já se fala das
inscrições, entre esses dois registros Freud situa o recalque originário. Ou seja, esse momento
inaugural que convoca o sujeito a perceber o seguinte: você não é da ordem da natureza, você
não é um animal regido pelas forças da natureza e pelo instinto, você é do campo da
linguagem. O que se encontra antes? O que está aquém do recalque originário? A gente
poderia pensar se a criança autista não está no campo do significante enquanto tal, se ela não
entrou nesse campo dos registros e da representação, então não ocorreu o recalque originário,
ela não tem esse campo de registro que é o inconsciente. Então o que vem antes e estaria
aquém do recalque originário? Nós não temos representação, mas temos os sinais
perceptivos. Uma primeira organização significante, por sincronia, mas significantes que não
são capazes de se representar em imagens ou se traduzir em palavras. Por exemplo: mesmo
que a criança não fale, se ela tiver possibilidade de representação poderá mostrar, brincar e
encenar alguma coisa que diz algo para você. No caso do autismo a gente não encontra isso.
Neste livro Laznik se pergunta: qual poderia ser o mecanismo de defesa próprio do registro
dos sinais perceptivos? E ela encontra a resposta no próprio Lacan, no Seminário 7, onde
Lacan (1986) está justamente retomando o Projeto de Freud, e ele diz essa frase na página 78
da publicação em francês: "No sistema fi (...)" - vocês sabem que no Projeto tem o sistema fi
que é sensorial e o sistema psi que é da representação, "No sistema fi, antes da entrada no
sistema psi, e a passagem na extensão do trilhamento da organização das representações, a
reação típica do organismo enquanto regrado pelo aparelho neuronal é a elisão. As coisas são
Vermeidet, elididas". Vejam que interessante, Lacan coloca uma defesa que estaria não no
processo já de inscrição da linguagem, ou seja, não no campo já do simbólico se inscrevendo
no sistema nervoso central, mas no próprio aparelho neuronal. Não se instala o campo das
representações, da linguagem, em que o simbólico substitui o aparelho biológico, continua
vigorando o aparelho neuronal. Uma fala da Laznik neste sentido: "No autista a percepção
de um objeto qualquer pode subitamente cessar, não apenas como se nunca tivesse havido
inscrição, mas como se esse objeto não tivesse existido" (Laznik, 1997, p. 60). Muitos autores
descrevem como no autismo não há permanência de objeto. Então, por exemplo, assisti uma
vez a uma cena de uma bebezinha que estava vendo a mãe (que havia viajado) pelo Skype na
TV, e quando a mãe se despediu e a televisão foi desligada ela entrou em um desespero
absoluto, porque ela imaginou que a mãe tinha desaparecido. Essa ideia de não haver a
permanência do objeto que a gente pode também conectar com a necessidade, exigência de
imutabilidade, já que justamente, se não existe a permanência do objeto psiquicamente
garantida, pode-se buscar garantir a permanência do objeto no concreto, e qualquer mudança
poderia bascular isso. Bem, trago estas ideias para a discussão, a ideia é a gente poder
discutir.

Enfim, tudo isso tem consequências na direção do tratamento. Porque, como eu falava para
vocês: o que interessa é poder fazer uma leitura de tudo isso para então definir qual o projeto
de trabalho para essa criança. No trabalho com a criança, se a gente verifica que estamos no
campo do autismo, nós vamos dar lugar à imitação; ao respeito à distância que a criança
interpõe em nossa direção; vamos paulatinamente propondo uma diferença nessa imitação,
em que nos colocamos ao lado da criança, nos propomos como seu duplo não ameaçador,
para apoiar o seu investimento nos objetos; vamos aos poucos propondo esticar as situações
que a criança apresenta, no sentido de um engajamento naquilo que propomos, a gente vai
tentando, de alguma forma, provocar a criança a se interessar por algo diferente, para chegar
à possíveis trocas. Às vezes são longos anos de trabalho, mas a clínica mostra que a gente
tem resposta aí. Até que o prazer compartilhado possa se apresentar na transferência e de
certa forma seja possível uma certa entrada na reciprocidade, uma certa entrada nisso que
constitui o prazer de estar vivo das pessoas que são regidas pelo erotismo, pelo prazer e pelo
desejo (ver Cullère-Crespin, 2010; Jerusalinsky, 2010; Kupfer, 2017).
Já na psicose, nós vamos dar lugar ao brincar, à interpretação, à construção. Então se a criança
nos apresenta apenas imagens das suas encenações, nós vamos colocar palavras aí; vamos
propor construção e interpretação; vamos promover o barramento do gozo que vai se
apresentar na transferência, entre alguma coisa que a criança não quer de modo algum deixar,
a gente vai colocar um limite; vamos fazer aos poucos um trabalho de separação em relação
ao agente do Outro da criança, com o qual ela está presa nessa situação simbiótica. Até que
a gente possa chegar no momento da importante pergunta da criança: "O Outro pode me
perder?", e tanto a criança possa responder sim, quanto o agente do Outro também possa
avalizar isto (operação de Separação). Então é uma clínica que implica muito trabalho com
os pais também (ver Bernardino, 2001).

No trabalho com os pais, se a gente parte do princípio que no autismo estamos diante de
questões que têm a ver com o aparelho biológico, responsáveis pela sua falta de receptividade
ao que vem do Outro, então realizamos um trabalho voltado ao estabelecimento, ou ao
reestabelecimento, da relação pais-filho. Trabalhamos com a narcisação dos pais (Kupfer,
2015), que ficaram fragilizados em seus investimentos, sem a reciprocidade sobre o filho,
que perderam seu saber sobre ele. Então, eles fazem investimentos sobre o filho e não têm
retorno, isso vai desgastando a relação. Eles não têm mais nenhum saber sobre o filho, porque
não entendem o tipo de funcionamento da criança, que hipóteses colocar ali, por isso não
conseguem inseri-lo em uma filiação própria, diante das idiossincrasias do filho. Então nós
não vamos fazer, nesse trabalho, uma investigação contínua da história da criança, para tentar
entender quando aconteceu um rompimento, pois nós já sabemos que o rompimento ou o não
estabelecimento do laço se deu muito cedo. O mais importante aí é que a gente possa resgatar
o laço, e apoiar os pais nessa difícil situação que é ter um filho que não corresponde aos seus
investimentos. Vejam a importância de poder fazer o diagnóstico diferencial, porque isso
vale especificamente para a clínica do autismo.
O que nós vamos fazer na psicose? Na psicose temos hipóteses psicogenéticas. A gente
pressupõe que algo aconteceu de mal-entendido nas determinações simbólicas dessa família,
e que essa criança vai inconscientemente receber um não-lugar, no que se refere à posição
subjetiva. Então precisamos acolher os pais, conhecer a sua história, constituir uma
narratividade no trabalho conjunto, buscar de certo modo encontrar essa situação psicogênica
para trabalhar esse mal-entendido. Só para ilustrar como é diferente esse trabalho. Então
como fazer essa diferença se a gente não fez um diagnóstico diferencial?

Diferenças entre autismo e psicose no trabalho em grupo. Eu uso bastante do trabalho do


Christian Dunker (2013), a pesquisa dele em seu livro sobre a psicose na criança. Refiro-me
ao trabalho em instituição e também às situações escolares onde a criança está em grupo. No
autismo a gente tem a presença forte da agressividade, auto ou hetero, que é aparentemente
imotivada, mas que na verdade está a serviço da esquiva própria ao autismo. Não há grupo.
É um paradoxo clínico você convocar a criança para o grupo, porque é uma criança que por
princípio não consegue estar em grupo, mas, justamente, está aí a aposta. E o que a gente
percebe nesse trabalho? Que nesse trabalho em grupo, mesmo ela não estando em grupo e
evitando as situações que se dão em grupo, a criança pode encontrar um duplo no qual ela
pode se apoiar, e a partir daí as relações ficam mais fáceis. Com esse duplo, no qual ela se
apoia, ela consegue estar em grupo. Isso é incrível, tanto na experiência de inclusão que a
gente vê na escola, quanto nas situações institucionais, não é Cris Merletti (psicanalista do
Lugar de Vida que se encontra na plateia e que coordena grupos de crianças e de pais nesta
instituição)? Vocês têm muitos exemplos sobre isso.
Na psicose, nós temos o que Christian Dunker (2013) chamou de brincadeiras turbulentas, e
as reações defasadas entre ações díspares, pois há uma heterogeneidade de significações:
todas as crianças estão brincando em grupo, mas como elas não fazem classe - se sabe que
essa é uma característica da psicose - cada uma está brincando e dando o seu próprio sentido,
fazendo a sua própria errância, fazendo a sua própria amarração. Então, no meio de tudo isso,
o sentido de um bate com o de outro, e de repente tem uma bagunça que não se sabe quem
começou e nem porquê. E neste caso, o semelhante pode ser muito mais um duplo ameaçador,
perseguidor. Muitas vezes temos situações no grupo que requerem uma intervenção imediata,
porque a criança pode tomar o outro como um inimigo, muito rapidamente, por alguma
situação que foi proposta ali.

Por fim, para concluir, diferenças no que se refere ao trabalho escolar com a criança. Aqui
tem algo que o Maleval (2017) trabalha e eu já trabalhei bastante (Bernardino, 2015), até em
um cartel sobre o Seminário 18: a importância fundamental da escrita no autismo. Mas vejam
que interessante, a função da escrita no autismo é muito diferente da função da escrita na
psicose. Enquanto no autismo a gente encontra, nesse trabalho que a gente pode fazer agora
de leitura dos escritores autistas, eles escrevem para contar para nós como é seu mundo
autista, para que a gente possa ter uma ideia do seu universo. Por mais que eles não tenham
reciprocidade, por mais que muitos digam que não têm empatia, eles querem se fazer
entender no sentido da sua diferença. Fica aí uma questão, que eu acho que fica muito clara
nessa situação: os autistas fazem classe, pelo menos através da escrita eles tentam fazer
classe. Mesmo que eles se comuniquem só em grupos de e-mail, eles fazem grupo, eles fazem
classe, desde que o corpo não esteja em questão.

Eu trouxe um trechinho desse livro, que é do Birger Sellin (1998), um alemão, que tem um
primeiro livro que se chama "A alma prisioneira", e tem esse segundo que é "A solidão do
desertor" (ambos ainda sem tradução para o português). É incrível, porque ele escreve com
comunicação assistida, ele nunca falou, ele é um autista do tipo descrito por Kanner, de
expressão deficitária, e que aos 16 anos começou a escrever com a ajuda da mãe e depois de
vários outros assistentes. Alguém o ajudava a sustentar seus braços para encontrar a tecla no
computador que ele queria digitar. O que ele diz aqui? Esse livro é um tipo de diário dele. É
muito lindo o trabalho, porque você não tem nenhuma dúvida que é ele mesmo que escreve,
porque é outro tipo de escrita, ele foi considerado alguém que escreve de uma maneira
até inovadora no alemão. Ele diz "Os comentários sobre os autistas caem na maior parte das
vezes, no vazio, ficam de lado” (...). “Quero que nós mesmos tomemos a palavra, como nós
podemos, nosso mundo interior deve ser colocado às claras, a fim de que os homens através
(...)" - e aí ele fala de um filme que foi feito sobre ele - "Através do filme nos reconheçam
simplesmente como semelhantes em espírito. Ninguém pode fazer comentários sobre nós,
sem errar." (Sellin, 1998, p. 19, tradução pessoal). Esse é o Birger que escreve e se comunica
com os outros; neste outro trecho ele fala de si mesmo: "Esses gritos doidos, sobre os quais
eu não tenho nenhum domínio, nada me é mais odioso do que esses repugnantes urros de
raiva que inflam e mugem e depois eu não quero mais ser como um bebê idiota, eu gostaria
tanto de ser razoável, mas eu não consigo" (idem, p. 20). Vocês veem aí que existe uma
possibilidade simbólica, existe essa possibilidade de comunicação, e até esse desejo de fazer
conhecer o seu universo, e ao mesmo tempo tem esse corpo que é incontrolável que o
assombra, e com o qual ele não consegue lidar.

Enfim, a função da escrita no autismo parece que nos mostrar, primeiro, que de alguma forma
os autistas fazem classe, pelo menos os que escrevem, e eles têm o objetivo de contar para
os outros o universo em que vivem.
Já na psicose a função da escrita é muito mais conhecida, tem uma função clara, desde o
Presidente Schreber, de estabilização, de relatar suas invenções de significado próprio aos
outros.
Essa é uma diferença marcante, no autismo eles querem contar como os autistas funcionam
enquanto grupo. Na psicose, quando o psicótico escreve, ele vai escrever aquilo que ele
descobriu, a significação própria que ele inventou para um determinado fato, e ele escreve
para contar para os outros, para tentar de alguma forma ter pessoas aderindo a esse sistema
de significação, que não é fato, que é próprio dele e que é único, ele não faz classe.
Vejam que aí no trabalho escolar, no caso do autismo o acesso à escrita é fundamental. Birger
Sellin, por exemplo, quando menino, tinha o hábito de folhear os livros rapidamente, pegava
todos os livros da casa e ficava folheando como se fosse um movimento estereotipado. Aos
16 anos, seus pais descobriram que ele tinha lido todos esses livros, pelo simples folhear,
repetidamente, vejam que incrível. Ele até explica "A gente folheia rápido e depois fica
organizando o que a gente leu".
Na psicose também a gente tem essa função importante da escrita.
No trabalho escolar outra diferença importante entre autismo e psicose comparece no plano
da lei e das regras (Kupfer, Pesaro, Bernardino & Merletti, 2017). No autismo, o problema
com as regras do campo social é muito específico da estrutura - e é uma outra questão, pois
como é uma defesa que não se trata de foraclusão, se trata de desconhecimento quanto a esta
organização simbólica. A partir do momento que o autista conhece as leis e as regras de um
determinado lugar, se alguém lhe explica, ele entra nesta organização, pode aceitá-la e
funcionar até melhor. Então, se a criança tem um funcionamento autístico e você nos
trabalhos que faz com ela na escola, no trabalho de inclusão, você explica o que se espera
dela, qual é a regra em cada aula, qual é o padrão, como as pessoas devem se comportar ali,
muito provavelmente ela vai aderir e isso vai ter uma função de apaziguamento para ela. Não
é o mesmo caso na psicose, porque na psicose tem realmente uma foraclusão do Nome do
Pai, então qualquer coisa que vier como regra ou como lei é uma apresentação desse pai no
real, ou seja, é um risco de castração no real, de que essa lei acabe com ele. Então a forma de
trabalhar a lei tem que ser muito mais leve, ou seja, a autoridade tem que ser colocada de
uma maneira mais afetiva, passando pelo próprio professor, pelo próprio auxiliar terapêutico,
mostrando para a criança como que é possível suportar a castração, quando faz parte desse
sistema, sem que isso acabe com ela própria, por exemplo: dizendo "Se eu fizer isso que você
está fazendo, o diretor vem aqui e briga comigo".

Enfim pessoal, acho que para abrir o debate era isso.

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