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"Autismo não é só coisa ruim", diz

psicanalista francesa
Marie-Christine Laznik defende que é possível reverter a doença com
intervenções em bebês ainda no primeiro ano de vida
Por Bruna Porciúncula

18/08/2017 - 16h00min

A psicanalista francesa Marie-Christine Laznik, especialista


em Autismo foi a convidada internacional da jornada
Inquietações Contemporâneas: Autismo, Psicose na Infância e
Sexualidade Feminina, que o Instituto Contemporâneo
promoveu recentemente em Porto Alegre. A pesquisadora,
que morou anos no Brasil, defende que é possível reverter o
autismo com intervenções em bebês ainda no primeiro ano de
vida. Ela se baseia em dados organizados por mais de 15 anos
em pesquisas na Universidade de Paris, onde atua, e em
outras instituições do mundo. As ideias de Marie-Christine
não são consenso entre aqueles que se dedicam a entender as
pessoas que estão dentro do chamado espectro autista,
especialmente entre os que questionam se os psicanalistas
estão habilitados para esse fim. A francesa conversou com
Zero Hora sobre suas pesquisas.

Por que, aparentemente, temos observado mais


casos de autismo?

O critério atual de inclusão no espectro de autismo utilizado


mundialmente é o DSM-5, o Manual de Diagnóstico e
Estatística dos Transtornos Mentais americano. Ele inclui no
espectro não só os autismos, que são diversos e devem ser
postos no plural, mas também as antigas psicoses infantis da
nomenclatura francesa que tomam o nome de "não
específicos". Foram acrescidos os retardos graves de
linguagem e desenvolvimento e, na outra ponta do espectro,
os autistas de alto funcionamento e os aspergers. Temos,
então, um leque de problemas diferentes que vão da criança
deficitária, sem linguagem e que pode não comunicar, até
sujeitos extremamente brilhantes e por vezes monotemáticos.
Segundo o doutor Laurent Mottron, do Centro Rivière des
Près em Montreal, no Canadá, apenas 38% dos autistas não
falam. Ele é um especialista dos autistas de alto
funcionamento e lida com aqueles que vão à universidade. O
que não quer dizer que tudo seja fácil para eles porque,
segundo Mottron, o mundo não aceita a especificidade destas
pessoas. Elas hoje se organizam na América em associações, o
que nos permite saber em que profissões elas são mais
eficientes: matemática, física, engenharia. O Google lançou há
alguns anos um chamado para algumas centenas de
engenheiros com a condição de que estivessem no espectro,
porque os considerava mais eficientes que outros para
determinadas tarefas. Em geral, encontra-se apenas uma
fração desta população nos consultórios, as crianças com
atraso de desenvolvimento e muitas vezes sem linguagem.
Isso dá uma falsa impressão do que é o espectro do autismo.

Os pais, muitas vezes, não aceitam o diagnóstico?

De fato, num primeiro momento é duro ouvir um diagnóstico


destes. Mas pode ser muito relativizado se abrirmos o
prognóstico. Gosto de mostrar aos pais uma foto em que se
encontram autistas de baixo funcionamento misturados com
alguns aspergers (pessoas com transtorno de Asperger, um
tipo de autismo) bem conhecidos: Bill Gates, Einstein, Glenn
Gould (pianista canadense, considerado um dos grandes
músicos do século), Newton e, claro, também o Rain Man.
Digo então que, neste momento, a criança se encontra no
espectro. Vamos trabalhar e muito. Quem ele vai ser mais
tarde, não sabemos, está aberto. Isto muda tudo, não fechar o
prognóstico. Sabe-se, também, que quando a criança é muito
pequena, até três anos, por exemplo, pode sair, em certos
casos, do espectro nos anos que seguem. O importante é dar
um diagnóstico para que os tratamentos comecem e que os
pais parem de correr de um lugar para outro em busca dele.
A senhora está dizendo que os autismos não são tão
terríveis assim?

São terríveis, sim, porque, depois de um ano, o cérebro da


criança se organizou de outra maneira. É isso que os
organicistas dizem: "O cérebro do ser humano, para se
organizar, demanda um certo número de interações psíquicas,
com o chamado meio ambiente". O que podemos modificar
como psicanalistas é a interação com a mãe ou com o
cuidador. Se o bebê recusa esse tipo de interação, ele vai lesar
o cérebro, que vai se desenvolver de outra maneira. Por vezes,
com uma tal especificidade, que temos gênios. Por isso que
digo que autismo não é necessariamente deficiência, mas são
pessoas monotemáticas. Há outro asperger que eu gosto
muito, o Lewis Carroll, autor do livro Alice no País das
Maravilhas. Se ele não fosse autista, não teria escrito essa
história. Você percebe que o autismo não é só coisa ruim? Isso
é a primeira coisa que trabalho com os pais.

Quando o tratamento deve começar?

Segundo o neurocientista brasileiro-americano Ami Klin, o


terrível é que o prognóstico depende muito da idade em que
se começam os atendimentos. Para ele, deve-se intervir antes
de dois anos, mas ele próprio imagina a possibilidade de uma
reversão completa do quadro antes de um ano. Esta é minha
experiência porque trato de bebês com risco de autismo e, de
fato, parece haver uma reversão completa nos primeiros
meses. Ami Klin dá uma explicação compreensível. Qualquer
que seja a causa, e há centenas, o fato de um bebê não olhar
nos olhos de seu cuidador, não se interessar por aquilo que
lhe interessa — em geral, é a mãe que desempenha este papel
de cuidador — vai levar o cérebro dele a não se desenvolver da
mesma maneira que o dos outros. A nossa meta é intervir
antes que esse desenvolvimento da patologia se dê.

Qual seria o maior equívoco quando se fala em


tratamento para o autismo?
O maior é pensar que a mãe é responsável pela doença. Desde
o início, o bebê com risco de autismo tende a se fechar de tal
forma que os esforços da mãe para entrar em contato com ele
vão de encontro a uma parede. Incriminar as mães não só não
faz sentido como vem reforçar a culpabilidade inata que cada
uma de nós, mães, tende a sentir quando nossos filhos têm
qualquer problema. Esta acusação é não somente falsa como
contraproducente, porque faz a mãe perder a criatividade que
precisa para ajudar a tratar seu filho.

Que sinais as mães podem observar em seus bebês


que sugerem risco de autismo?

Bebês com risco de autismo não pedem para ser olhados, não
chamam para que brinquemos com eles, não dão os dedinhos
da mão para que provemos se são docinhos. Se a mãe já teve
filho, ela se dá conta que este bebê não é como os irmãos. Ela
fala disto com o pediatra, mas o profissional acaba falando
com o bebê por meio de sua prosódia particular, chamada de
"manhês", e que costuma ser desenvolvida pelos médicos sem
que eles percebam. Diante dessa prosódia, o bebê com risco
de autismo pode responder. Quando essa resposta acontece,
muitos médicos dizem à mãe que ela está aflita sem razão e
que a criança está se desenvolvendo bem. Depois é tarde.
Uma das lições mais importantes que aprendi é ouvir os pais.

Depois do primeiro ano de vida, é possível reverter o


quadro?

Pode melhorar muito, principalmente antes de dois anos. Mas


uma reversão total é mais rara e exige um trabalho
transdisciplinar intenso. Na França, temos conseguido bons
resultados com três sessões de psicanálise por semana
articuladas com uma psicomotricidade de uma abordagem
especial, desenvolvida por André Bullinger. Os resultados são
ainda melhores quando se consegue, além disso, implantar na
casa da criança uma equipe de voluntários que aplicam uma
versão francesa do método Sunrise. Vemos que se trata de um
protocolo intenso. Nos primeiros meses de vida, consegue-se
reverter o quadro com apenas uma sessão por semana com
um analista que aprendeu a reanimar o bebê com a ajuda dos
pais. Esse trabalho precisa ser articulado, em paralelo, com
uma sessão de psicomotricidade. Mas vê-se logo que o
protocolo é muito mais leve e os resultados, mais garantidos.

A senhora já falou que o bebê autista deseduca os


pais. É isso?

Ele destrói a competência de parentalidade dos pais. Há


pesquisas científicas que nada têm a ver com autismo, mas
que mostram a que ponto a nossa reação enquanto mãe
depende do que faz o bebê. Descobriram que, desde o
primeiro dia de vida, o bebê apresenta micromovimentos dos
dedos quando a mãe fala com ele. São movimentos
imperceptíveis, mas que podem ser filmados. Quando um
bebê não apresenta estes micromovimentos, notou-se que a
mãe se endereça menos vezes a ele e com frases mais curtas.
Imaginem um bebê que praticamente nunca a olha e que
nunca a busca. Isso acaba desorganizando a função materna.
Tive a sorte de assistir a uns 50 filmes caseiros de bebês que
se tornaram autistas, emprestados pelos professores Muratori
e Maestro, italianos do serviço de neuropsiquiatria da
Faculdade de Medicina de Pisa. Os pais os haviam filmado
bebês quando não pensavam que teriam problemas. É
patético de se ver como as mães são carinhosas, tentam por
todos os caminhos, e os bebês não respondem. Pouco a pouco
vão desanimando e, no segundo ano de vida, desistem de
conseguir o contato. Mostram-se prostradas e deprimidas.
São essas mães que os profissionais encontram mais tarde e
tomam seu estado, muitas vezes, como causa do problema,
quando ele é a consequência.

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