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Série: A P a la v ra n a V ida

H erm enêutica
Hermenêutica
F em inista e G ênero
Várias Autoras Feminista e Gênero
N° 155/156 - 2000

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2000
A
Apresentação
índice
Apresentação...............................................................................................5
£ stas são as reflexões das mulheres que participaram do IV En­
Corpo... Corpo... Corpo... Hermenêutica - Tea Frigério....................... 7 contro Nacional de Assessoras do CEBI, que aconteceu em Campinas
Hermenêutica de Gênero - Martha Isabel F. Bispo...............................19 nos dias 07 a 14 de julho de 1999. Uma primeira publicação intitulada
“De contos, textos e ritos... Jubileu com corpo de mulher”, desta mes­
O que considero ser uma Hermenêutica de Gênero ma série, número 151/152, reuniu os textos sobre o Jubileu. Aqui com­
-M argarida Paes.................................................................................24 pilamos os textos produzidos a partir da temática: Hermenêutica fem i­
nista e gênero.
Meus óculos já são bifocais! - Mercedes de Budallés Diez..................26
O critério para a hermenêutica feminista é a experiência, a vida,
Hermenêutica: pontos básicos para uma Leitura Bíblica de Gênero o cotidiano das mulheres. Essa experiência é marcada por conflitos, por
no CEBI - Lúcia Weiler....................................................................... 36 relações desiguais entre gêneros, classes e raças. E uma experiência plu­
O que consideramos que seja uma Hermenêutica de Gênero? ral, onde não se dão só a opressão e a exclusão das mulheres, mas que
articula um grande poder de resistência das mulheres.
- Teresa Mee......................................................................................... 39
A experiência das mulheres é marcada pelas diferenças biológi­
Uma Hermenêutica de Gênero -M aria Helena da S. Mutzenberg .... 43 cas e genéricas. A teoria de gênero vai nos auxiliar a entender que essas
Gênero e Hermenêutica Feminista: dialogando com definições diferenças genéricas não são “naturais”, mas que, num processo históri­
e buscando as implicações - Elaine Gleci Neuenfeldt......................45 co, cultural, aprendemos o que determinada cultura prescreve como a
norma da nossa identidade. Portanto, se são características construídas e
Reflexões de uma “irmã de Lídia”: considerações,
aprendidas nos processos de socialização, são passíveis de mudanças,
questionamentos e sonhos a respeito do Método
são cambiáveis.
“Sócio-Histórico Feminista” e da leitura do CEBI
- Mônica Ottermann............................................................................ 57 São muitas as possibilidades de ir desenhando e nomeando essas
reflexões sobre o instrumental de gênero e a hermenêutica feminista.
Dívida de mulher - Agostinha Vieira de Mello..................................... 67
Recorto alguns fragmentos dessa produção coletiva de saber: A
Para acolher as moças do poema... -Agostinha Vieira de M ello 69 hermenêutica de gênero é afeto - sentimento - coração. Entramos no
texto com sensibilidade, com carinho, mas também com indignação di­
ante da primazia do masculino..., do hierárquico..., do patriarcado...,
do antropocenirismo...; a hermenêutica de gênero abre caminhos de
suspeitas que nos ajudam a resgatar a verdadeira concepção da VIDA,
de DEUS, da sua PALAVRA na realidade de hoje, na Bíblia e nas rela­
ções em geral. Se Deus está em todas as pessoas por igual, temos que
resolver as desigualdades sociais, de sexo, de classe... como questões
mais profundas. Tomar consciência já nos compromete. O grande desa­

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fio é construir uma sociedade onde o dever e o poder sejam partilha­
dos. A hermenêutica de gênero tem a função positiva de reconstruir os
paradigmas...; hermenêutica de gênero é partir das questões e preocu­
pações atuais e fazer uma releitura que é também (re)escrever o texto. Corpo... Corpo... Corpo... Hermenêutica
É poderoso esse movimento de cavar entre significados construídos
há muito tempo. Mexer e remexer entre conceitos atrelados a pré-con- Tea F rigério
ceitos, construídos sobre bases sólidas patriarcais e androcêntricas. Po­
deroso é esse ato de poder nomear. Dizer o mundo, recolocar e
ressignificar palavras. Poder dizer novas palavras, antes nem pensadas,
não pronunciadas. E com poesia que queremos convidar vocês a entrar fazem os experiência de Deus a partir do nosso corpo.
neste texto, nesta casa (re)construída por nós... Falamos de Deus a partir das nossas experiências humanas.
Refletimos sobre Deus a partir da cosmovisão que adquirimos.
A casa das palavras Corpo, experiência, cosmovisão geram o imaginário religioso, e
Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poe­ é a partir dos parâmetros desse imaginário que descrevemos Deus.
tas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pe­ Os traços do rosto de Deus passam a ser as respostas e as proje­
los poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas roga­ ções dos nossos anseios e esperanças, dos nossos medos e inseguranças,
vam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provas­ das nossas lutas e vitórias, das nossas frustrações e fracassos, das nossas
sem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e utopias, de tudo o que nos transcende, enfim, de tudo o que brota em
então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em nós a partir da pessoa humana como ser em relação.
busca de palavras que conheciam e tinham perdido. A fixação da imagem de Deus na experiência cristã se deu a par­
tir do imaginário do divino e do transcendente da época, influenciado
Na casa das palavras havia uma mesa de cores. Em grandes tra­
seja pela tradição judaica seja pela tradição greco-romana. O cristianis­
vessas as cores eram oferecidas, e cada poeta se servia da cor que estava
mo apossou-se de Deus na pessoa de Jesus Cristo e na elaboração da
precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça,
Trindade; o imaginário fixou-se, passando a ser anunciado como algo
vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
definitivo, doutrina fechada, imposição, poder. Anunciou um Deus imu­
(Eduardo Galeano, Mulheres, L&PM Pocket, 1997, p. 175) tável, não mais em processo de revelação.
Deus Pai passou a refletir a imagem dopaterfamílias, legitiman­
Elaine G. Neuenfeldt do a supremacia de uma classe sobre outra, de uma etnia sobre outra, de
uma cultura sobre outra, de um sexo sobre outro, de uma geração sobre
outra... A verdade se tomou absoluta e eterna, única e uniforme, hoje
sintetizada na fórmula Jesus Cristo ontem - hoje - sempre.
Jesus foi questionado pelos judeus do seu tempo justamente pela
relação que estabelece com Deus: fiel à tradição dos antepassados e por
isso novidade absoluta. Ao chamar o Santo de Pai rompeu com o esque­
ma e a estrutura que o judaísmo havia fixado.
O imaginário cristão fundamenta-se na memória das discípulas e
discípulos que conviveram com Jesus, absorvendo a novidade e por isso
chamando-a de Boa Nova. Isso desestabilizou, pois era dinamismo, pro­
cesso, desvelamento contínuo. Mas aos poucos o novo foi fixado, exi­

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giu um cânon, uma doutrina, paradigmas... pois havia necessidade de “Quando minha mãe me ninava,
legitimar, de controlar, de manter o poder... O novo mais uma vez era ela me cantava de amor.
apropriado por um grupo. Ela me cantava sobre o amor e chorava.
Paralelamente à fala oficial sobre Deus desenvolveu-se o falar As palavras de amor se gravaram em mim.
popular de Deus. Enquanto uma é estática, a outra é dinâmica. Enquan­ Desde que carrego o amor em meu coração
to uma fixa seus paradigmas, a outra se colora no arco-íris da experiên­ não tenho mais sossego
cia humana, do cotidiano. Enquanto uma é lógica e coerente, a outra se nem durante o dia, nem à noite.
veste de lendas e sagas, expressão dos sonhos e utopias. Enquanto uma Como são difíceis
pede obediência e submissão, a outra alimenta a esperança da terra sem os amores sem resposta que já vivi.
males. A pessoa que morre sem ter amado
Apercebo-me de que divaguei, que deixei o pensamento correr, não conhece o valor do amor.
então devaneios são perdoados, pois claro que Deus é muito mais do Mas eu conheço seu valor.
que isso! Ele nos transcende! Mas nós conseguimos falar Dele aos E esse amor eu carrego dentro de mim.
pouquinhos, aos pedacinhos: ora dizendo, ora negando, ora ampliando, Desde quando a minha mãe me cantava
ora afirmando, ora buscando, ora criando, ora repetindo, ora intuindo, sobre o amor. ”
ora... sempre às apalpadelas, sempre percebendo o novo... se estiver­
mos atentas e abertas às solicitações. Estamos como que pintando um ... uma dança... pés ensaiando passos de leveza, braços ensaiando
grande mosaico, aos poucos e pelas mãos de muitos e muitas artistas. gestos de ninar, rostos fazendo memória de experiências vividas, rostos
Uma vez, contaram-me uma estória: "... Havia uma mulher, da buscando experiências, rostos de mulheres... roda de mulher... entendi
terra e do mar, da planície e da montanha, do deserto e do rio, do que a mulher andarilha era cada mulher presente na roda, é mulher in­
cheiro do sol, da lua, das estrelas, por isso era andarilha. Nenhum gressando na roda, é cada mulher desejosa de estar ou de querer entrar
muro ou parede podia contê-la. Desafiou as regras do seu tempo, não na roda.
casou, não teve filhos, embora tivesse muitos amores. Rompeu laços de Roda de mulher que ensaia a dança, que ensaia ninar, que ensaia
família, de clã, de povo. Desafiou, rompeu para saciar sua sede de o amor, que ensaia falar a palavra que está aí e que até hoje foi silencia­
andar, sua fom e de conhecer. Sede nunca saciada, pois quanto mais da, que ensaia palavras nunca pronunciadas, que ensaia...
andava mais queria andar, estar em lugares novos. Fome nunca satis­
feita, pois quanto mais conhecia mais queria conhecer. Quando lhe
perguntavam: - Por que esta sede, por que esta fome? - A mulher de A minha vinha a minha eu não pude guardar
terra e mar, de planície e montanhas, de desertos e rio, do cheiro do “Sou morena, mas formosa,
sol, da lua e das estrelas respondia: - Nas noites claras olho a lua, ora ófühas de Jerusalém,
crescente, ora calante, ora cheia, ora nova... olho a lua, ela me mostra como as tendas de Cedar
só uma face, sei que tem outra face... sei que está lá... Olho e ela me e os pavilhões de Salma.
encanta, sempre igual e sempre nova, desvelando e guardando seu mis­ Não olheis eu ser morena:
tério... Olho e ela fascina-me... Encanto, fascinação. A í sinto borbulhar fo i o sol que me queimou;
em mim um anseio: se a face que ela desvela, encarna e fascina de tal os fdhos da minha mãe
maneira, como será a face que guarda no mistério? Eu sei, a outra face se voltaram contra mim,
está aí... está aí, mas não a vejo... Então meus pés formigam, tenho que fazendo-me guardar as vinhas,
andar, andar... Ando com esta sede e fome, quem sabe um dia... ”. e minha vinha, a minha...
Nasceu uma curiosidade, conhecer essa mulher, dar um rosto a eu não pude guardar. ”
essa mulher, e recordei: uma roda, um canto... (Ct 1,5-6).

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A realidade, o chão da vida é o ponto de partida comum para ra, opressões, vítimas mas também vitimadoras; presentes nas
ensaiar uma hermenêutica feminista. leituras dos textos sagrados, reclamando o direito de encontrar aí não
“Acabo de chegar do Bairro São José, onde existe uma CEB. mais pedras e sim pão. ”
Uma vez por semana nós mulheres, nos encontramos para partilhar a
vida, conversar sobre os textos bíblicos... celebrar! ” E o início da con­ Volta-te, queremos te contemplar
versa de Marta.
A “história de amor” de Mercedes, como ela diz, “começou há “Volta-te, volta-te.
uns 18 anos, no chamado - corredor da fom e". História de amor que se Sulamita, volta-te, volta-te...
toma memória que indica os caminhos a trilhar. Queremos te contemplar!
“Repensar o que é ser homem. Repensar o que é ser mulher", Que olhais na Sulamita,
afirma Margarida. E Mônica nos confidencia: “Penso bem concreta- quando baila entre dois coros?
mente nas nossas Escolas Bíblicas no Regional Tocantins-Araguaia... ” Os teus pés...
Partir da realidade da mulher hoje: da história que marca o coti­ As curvas dos teus quadris...
diano das mulheres. Histórias e cotidiano devem ser articulados. Histó­ Teu umbigo...
ria nos leva a traçar um caminho que fala de his-story. História de ho­ Teu ventre...
mens, história de dependência, submissão, exclusão, abusos, silêncio. Teus seios...
História fala de poder. História fala de resistência. História fala de exer­ Teu pescoço...
cício de poder. Cotidiano é a concretude, é o amiúde da história, é o Teus olhos...
vivido. Teu nariz...
Ver, ouvir, conhecer, descer... no mundo da mulher... sentir... nes­ Tua cabeça...
te encontro senti raiva e esta sintonizou com minha raiva... Vamos dei­ Como és bela, quão formosa,
xar subir, incendiar nossa raiva que ela vire indignação... o silêncio Que amor delicioso! ”
que incendiou nossa raiva..." Sentir com as mulheres de ontem e de (Ct 7,1-7).
hoje. Sentir com raiva, pois o chão das mulheres foi chão de sofrimento,
opressão, exclusão, silêncio... Sentir com prazer, pois o chão das mu­ A chave da realidade nos coloca em contato com as mulheres,
lheres foi também chão de resistência, de poder exercido, de saídas en­ com os corpos das mulheres.
contradas... Margarida, ao se perguntar “O que é ser mulher o que é ser ho­
Com a vida lemos o texto bíblico a partir de nossas experiências mem ”, convida a: “...retomar nossa história desde a concepção no úte­
de fé, nossa história pessoal, nosso sentir frente à sociedade, às igrejas, ro de nossa mãe e a nossa relação com nosso pai, irmãos e irmãs,
à Bíblia. Isso nos remonta às nossas raízes, à nossa maneira de olhar e enfim, a experiência com nossa primeira casa..." Essa busca de nossas
perceber a nós mesmas, o mundo, o universo, Deus. Dimensões esque­ raízes nos coloca no bojo do simbólico.
cidas pela hermenêutica tradicional afloram: o pranto, a ternura, os sen­ Simbólico que em seu trabalho Elaine nos apresenta desta forma:
timentos, o cotidiano, enfim, tudo o que é humano. “O corpo é biológico, tem funções que são recebidas desde o nasci­
Faço minhas as palavras de Ute Seibert, pastora luterana: “Invo­ mento. Corpo que pare, que amamenta, que tem vagina, seios; ou cor­
co a presença de nossos corpos, na leitura da Bíblia, os olhos, os sen­ po que tem pênis, que ejacula, que produz sêmen; sem embargo, tam­
tidos para encontrar os sabores, os cheiros, a textura dos sons deste bém o corpo é produto histórico, construído e definido socialmente. A
mundo estranho e tão parecido com o nosso. Quero que estejamos pre­ função e a compreensão do corpo definidos, culturalmente: que este
sentes de corpo inteiro, com nossas dores, lutas, silêncios, nossas fe s­ corpo tem seios, útero e vagina, que amamente e paira deve ser mãe,
tas, nossa rotina e criatividade, nossa carga... Presença de mulheres deve cumprir com sua função. Isto é definição, construção cultural e
desde sempre, caminhar de mulheres diferentes em classes, raça, cultu- biológico do corpo humano. ”

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O corpo é o lugar privilegiado da experiência humana. O corpo é cepção única da realidade, espaço e tempo: espaço habitável, tempo de
realidade simbólica. O símbolo expressa experiências humanas que as vida.
palavras não alcançam explicar. Cada mulher é espaço habitável encerrando em si o mistério da
Corpo, símbolo falam profundamente, são linguagem que expres­ acolhida.
sa o que a palavra falada e escrita muitas vezes não consegue comuni­ Cada mulher é espaço habitável de relação, reciprocidade: espa­
car. ço oferecido e doado.
Corpo é linguagem. Corpo é relação. Corpo metáfora. Cada mulher é ritmo de tempo encerrando em si o mistério da
Corpo de mulher símbolo, sinal, metáfora, linguagem. espera.
Corpo que fala dos ritmos da vida no ciclo menstrual. Sangue Cada mulher é ritmo de tempo, evolutivo, progressivo: tempo
que marca a hora da menina ser mulher. Sangue que marca o corpo da vivo e vivido.
mulher em seu ritmo de vida: guardando o que poderá se tomar alimen­ Corpo espaço mistério de acolhida.
to; expelindo, não guardando, não acumulando quando não tem com Corpo tempo mistério de espera.
quem partilhar. Corpo espaço e tempo que o romper das águas anuncia que a
Corpo grávido que ensina a viver e a esperar a hora certa. Corpo espera terminou: a força da vida realizando mais uma vez o milagre:
que produz as águas fonte de vida. Corpo que se rompe, abre as águas nasceu um ser humano.
para libertar a vida que acolheu, alimentou, defendeu e acarinhou du­ Vida que desperta, que provoca o corpo que o acolheu a produzir
rante nove meses. novo líquido, o leite que alimenta, defende, infunde força para enfrentar
Corpo que produz alimento, assegurando a vida nos primeiros o mundo, a realidade desconhecida.
tempos num mundo desconhecido. Corpo que acolhe.
Corpo que apreende o preço a pagar para transmitir, gerar, defen­ Corpo que se purifica periodicamente.
der, garantir a vida. Corpo que nutre outro ser.
Corpo espaço habitável: útero materno, espaço interior de vida. Corpo que ama, acolhe, se abre ao prazer.
Experiência de valores e limites. Experiência de infinitude e finitude. Corpo que recupera seu poder simbólico e a partir dele redescobre
Corpo tempo vivido. Ritmo escrito no corpo que marca o com­ novas dimensões dos símbolos bíblicos e sua significância teológica.
passo, adverte que está apta para acolher, desenvolver a vida. Adverte Corpo que, ao recuperar seu poder simbólico, negado e despre­
que poderá ser fecundada. Não fará isso sozinha, mas, ao se abrir, ao zado, o toma chave de interpretação da história de nossas e nossos ante­
optar, ao assumir a vida, será ela que viverá esta experiência. Experiên­ passados, o toma chave de interpretação do transcendente, do divino.
cia de receptividade, acolhida, abertura, mutualidade, alteridade, reci­
procidade, gratuidade.
Encontraram-me os guardas...
Corpo espaço habitável, corpo tempo vivido na hora do parto
marcada pelo romper das águas. Hora marcada de dor. Hora marcada “Abro ao meu amado,
para dar à luz. Hora marcada pelo risco de perder a vida para dar vida. mas o meu amado se foi...
Hora do êxodo. Hora da páscoa. Hora de passar... Procuro-o e não o encontro.
Corpo de mulher, útero materno, hora do parto... Hora de experi­ Chamo-o e não me responde...
mentar a relação, a liberdade, o ágape. Encontraram-me os guardas
Mulher é fluidez, corpo que produz líquidos: sangue, água, leite. que rondavam a cidade.
Sangue que para mulher é ritmo, música, dança. Líquido que ad­ Bateram-me, feriram-me,
verte estar pronto para acolher e dar vida; que fala de espaço fecundo, tomaram o meu manto
espaço habitável. as sentinelas das muralhas! ”
No ritmo do sangue enxerta a percepção que é só da mulher, per­ (Ct 5,6-7).

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L úcia W eiler escreve: “...rom per com a antropologia Eu te levaria, te introduziria
androcêntrica e partir de uma nova antropologia humanocêntrica... na casa de minha mãe
desmistificar arquétipos e estereótipos culturais masculinos e fem ini­ e tu me iniciarias;
nos, no empenho de tomar consciência de nossas pré-compreensões dar-te-ia a beber vinho perfumado
introjetadas de geração em geração... Coragem e audácia do pensa­ e licor de minhas romeiras
mento intuitivo... Desconstruir não apenas para reconstruir, mas para
gestar algo de novo, diferente, com novos pontos de partida, novos Quem é essa que sobe do deserto
princípios hermenêuticos... ” apoiada em seu amado?
“Quando se define a experiência das mulheres como ponto de
partida para a hermenêutica feminista, não está se propondo uma in­ A mensageira da paz.
terpretação paralela à oficial, nem se quer simplesmente agregar a (Ct 8,1-2.5.10).
esta a interpretação feita por mulheres. O que realmente se propõe é
uma desconstrução de toda interpretação androcêntrica e patriarcal, A mulher dos Cantares que quer introduzir na casa da minha
que quer ser universal e neutra... ”, nos diz a voz de Elaine. mãe, que hermenêutica está fazendo? Feminina? Na ótica da mulher?
A voz de Lúcia, Elaine e de muitas outras mulheres se une à voz De gênero? Feminista? Esta pergunta a formulamos também no Encon­
da Sulamita quando nos transmite sua experiência na busca do amado. tro das Assessoras do CEBI, em julho de 1999. Esta pergunta está aí na
Os guardas da cidade são a expressão do androcentrismo que criou ar­ mente e no coração de muitas mulheres. Eis o que na conversa saiu:
quétipos e estereótipos, que declarou o pensamento intuitivo como não “...as implicações vêm do corpo, do nosso corpo que sofre, que
lógico nem científico, que negou, silenciou, roubou... vive mentiras, dualismos, então acabamos de falar das outras mulhe­
A essas vozes deve se unir a voz corajosa de muitas que suspei­ res e não de nós... ”
tam, nomeiam, desconstroem. A voz corajosa que pergunta, que sai às “...o direito de pensar, querer, sentir, agir... desenhar o nome...
ruas, que busca, que se expõe, que enfrenta o preconceito. A voz das então recuso o feminino... então pergunto-me sobre a relação entre gê­
mulheres biblistas que escreveram: “No processo de desconstrução se nero e feminismo. Parece-me que gênero é mais abrangente e assim
mexe no texto, se arrancam elementos que há anos estiveram aí, mas esvazia o sentido político do feminismo... feminismo incomoda pela di­
são estéreis. Buscar a transcendência do texto é um labor de escavar, mensão política que contém... gênero é um instrumental entre os outros
aprofundar, equilibrar... A reconstrução é antes de tudo reformular como o sociológico, o antropológico, a semiótica... ”
paradigmas e interpretações para uma mensagem libertadora. Há tex­ “...às vezes para não espantar feminino, de gênero podem ser a
tos que por anos foram considerados como lei e usados para distorcer porta de entrada... ”
e limitar a liberdade e a fecundidade das mulheres em sua participação “...feminismo, feminista é postura, gênero é categoria... ”
na história da salvação, textos que são circunstanciais à época e à sua “...neste momento não consigo usar gênero... amacia a minha
reedição... ” raiva... ”
No processo de desconstrução e reconstrução, instrumental es­ “...gênero é acadêmico, feminista é de rua, não precisa escolher.
sencial é a categoria de gênero. Gênero é para descrever o fenômeno das relações sociais. Pesquisar
exige ter ferramentas; gênero, então, é categoria como classes, etnias,
culturas. Gênero deve ser estudado por suas implicações... deve cru-
Te in tro d u z iria n a casa de m in h a m ãe
zar-se com outras categorias... pessoas sem raiva podem usar gêne­
“Ah! Se fosses meu irmão, ro... ”
amamentado aos seios de minha mãe! “...temos que nos reapropriar do feminino: o que implica, o que
Encontrando-te fora, eu te beijaria, acolhe e recusa, o que é relação e o que é simbólico... temos que esco­
sem ninguém me desprezar; lher entre gênero e feminista? Se temos que fazer uma escolha, então é

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feminista pois gênero é ferramenta, instrumento para uma hermenêutica bíblicos, a teologia, o rosto de Deus. As migalhas do pão, os potes e as
feminista. Devemos refletir sobre gênero com nosso corpo feminista, panelas, o lavar os pés, a cura com os doentes, filhos e velhos, o canto,
dominado desde a casa até o altar. Somente nós podemos fazer isto: a dança, o drama, a celebração se tomam símbolo da Terra Prometida.
refletir sobre as relações sem escamotear os conflitos... questionar o A Terra Prometida, em nossa linguagem feminina, é a celebração
exercício do poder, pois isso tudo mexe com o imaginário... a figura de da vida, são as ações da comunidade em festa, é a alegria de se encontrar
Maria que gera esquizofrenia no mundo católico: modelo inacessível... num abraço, na dança, nas ações de graças.
culpabilidade... ” A Terra Prometida expressada no cotidiano da mulher que ensaia
“...Deus na vida, na terra, na mulher... o que isso significa?... ” novos passos de dança, novas notas musicais, novas palavras, nova Pa­
É assumir a categoria de gênero como instrumental para reler e lavra. Palavra e silêncio, lugar privilegiado da ação do Espírito. Espírito
reescrever a história, para reler e reescrever a Palavra de Deus. que é Ruah. Espírito que é feminino, Espírito que sentimos mas não
sabemos de onde vem nem para onde vai. Espírito, Ruah, Mulher.
Uma faísca de Iahweh
Filhas de Jerusalém
“Grava-me,
como um selo em teu coração, “Filhas de Jerusalém,
como um selo em teu braço; eu vos conjuro:
pois o amor é forte, é como a morte! não desperteis, não acordeis o amor,
Cruel como o abismo é a paixão; até que ele queira!“
suas chamas são chamas de fogo, (Ct 2,7; 3,5; 8,4).
uma faísca de Iahweh!
As águas da torrente jamais poderão “Devemos romper os exclusivismos, tornar mais solidária e co­
apagar o amor, letiva a produção do saber, evitar que as descobertas se conservem
nem os rios afogá-lo. apenas para teses e livros. ”
Quisesse alguém dar tudo o que tem “Outra forma de contrapor o mundo patriarcal que promove a
para comprar o amor... inimizade e competição entre as mulheres é a vivência da sororidade,
Seria tratado com desprezo. que Lagarde define como aliança, a coalizão entre mulheres... ”
(Ct 8,6-7). Tomar-nos cúmplices, entrar nessa corrente de conversa ao pé do
ouvido, nessa roda de segredar entre mãe e filha, entre mulher e mulher.
Nós mulheres do CEBI já escrevemos Sentimos Deus de outra Cumplicidade, sororidade que aos poucos abraça e anula tudo o que é
form a. Sentimos de outra forma por sermos mulheres, por termos um divisão, desigualdade, competição, rivalidade.
corpo de mulher, pois Deus fala desde nosso corpo: tem entranhas de Nessa cumplicidade quero tomar poesia o sonho de Mônica:
mãe, tem asas que carregam, acarinha, alimenta, defende, é presença
Sonhar juntas
viva no cotidiano, na festa e na dança...
Sonhar ligeiro
Nós mulheres operamos um deslocamento de Deus, trasladamos
Sonhar mutirão.
Deus do macro da história para o micro da história: o cotidiano. Não
Sonhar palavras antigas
quero dizer que a mulher esteja ausente do tecido das relações histórico-
Sonhar palavras inéditas.
sociais, e sim que revelamos a partir do lugar de reclusão, o doméstico,
Palavras realidade
traços inéditos do rosto de Deus. O cotidiano é o lugar onde as mulheres
Palavras símbolo
exerceram poder. O cotidiano é o lugar de onde a resistência foi cultiva­
Palavras suspeitam
da. O cotidiano é o lugar onde podemos recriar criativamente os textos

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Palavras nomeiam
Palavras desconstroem
Palavras reconstroem
Palavras revelam
Identidade Hermenêutica de Gênero
Igualdade
Alteridade M artha Isabel F. Bispo
Reciprocidade
Relação.
Sonhar juntas
Sonhar ligeiro ^ c a b o de chegar do Bairro São José, onde existe uma CEB e
Sonhar mutirão onde uma vez por semana estamos, nós mulheres, nos encontrando para
Continuar a sonhar partilhar a vida, conversar sobre os textos bíblicos... celebrar!
Sonhar... E, hoje, a conversa rolou sobre a questão dos direitos da mulher.
Ficamos conversando a partir de dois direitos mais nomeados: “Direito
de ser tratada bem; Direito de ser reconhecida”. Isto porque, na sua grande
maioria, são mulheres que no dia-a-dia, tecem relações “no tratar bem,
no reconhecer a outra, o outro, na sua dignidade enquanto pessoa”.
E como é doido o fato de não serem “tratadas bem, reconheci­
das”, amadas, de serem tratadas como “qualquer coisa”, como partilhou
uma delas!...
E como isso contribuiu para terem uma auto-estima! Quanta vida
doada, partilhada na gratuidade, no esquecer-se de si mesma!
Mulheres que na casa vivem ainda sob o jugo do machismo, do
patriarcalismo.
Mulheres de desejos!
Mulheres que no dia-a-dia enfrentam barreiras, rompem barrei­
ras..., heróicas do cotidiano, do simples, do natural,... heróicas da lógica
do coração!
Mulheres protagonistas que nas suas vidas vão incluindo a partir
da casa, da vizinhança, da comunidade outras mulheres, outro... de ma­
neira simples, criativa, sem muito alarde... encontram saídas... ultrapas­
sam limites. São protagonistas! ... protagonistas de uma nova história...
história de relações - solidariedade - inclusão! ... ecumênicas!
Na convivência com essas mulheres; na convivência com as ir­
mãs da comunidade religiosa a que pertenço; na convivência com as
amigas e amigos; na aprendizagem com companheiras e companheiros
do CEBI; na leitura - na escuta - diálogo é que tenho, e estou (temos e
estamos) elaborando uma hermenêutica bíblica de gênero.

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Então, Hermenêutica de Gênero... e) Então, incluir e afirmar a participação das mulheres, pobres,
natureza no mundo como sujeitos, protagonistas, cheios de sabedoria
São apenas algumas chaves de leitura bíblica. Isto é: pistas de que vem do cotidiano, da hereditariedade dos antepassados, enquanto
interpretação (compreender o texto - aproximar-se dele - penetrar no indígena, negro, branco...;
texto) que, acredito, serão ajuda, darão possibilidades para uma leitura
crítica, libertadora dos textos bíblicos. f) Isso nos leva a desconstruir uma lógica, uma história, um tex­
Realizando desde nossa fé, desde nossa realidade e desde nossa to, mas reconstruir outra lógica, outra história, incluindo, integrando
consciência de gênero que, para mim, é processo, onde aprendemos a elementos, símbolos...;
ser mulher e homem dentro da realidade em que vivemos, na reciproci­ g) Por isso a valorização do simbólico - o mundo do homem e da
dade, no respeito ao diferente e na valorização do ser pessoa! mulher é cheio de símbolos - muitos, que expressam suas experiências
Por isso, a Hermenêutica Bíblica de Gênero: de vida. O mesmo acontece com o texto bíblico. Perceber, pois, através
a) Deve partir das coisas vividas, do concreto, do cotidiano no dos símbolos, a fala, a experiência de Deus - mundo, ocultas pelo patri-
ser e viver como mulher e homem: arcado... Vida que é imagem, sonho, poesia...;
- O prazer: do bem-estar, da vitalidade, do doar, da alegria, do h) Daí a necessidade de perceber, penetrar, viver a partir do cora­
abraço, do beijo, da carícia, do êxtase; ção, dos sentimentos, do toque, da temura, do afeto..., e não só com a
- No gerar vida (tendo ou não filhos), na vitalidade dinâmica, na razão;
criatividade, no transformar a realidade a partir das coisas pequenas...
simples; i) Ela nos leva, assim, a fazer e recuperar a memória histórica das
- No ser presença, criando vínculos de amizade - amor - de co­ mulheres, pobres, natureza. Reconstruir, assim, as origens, para, na fi­
munhão, no completar-se; delidade dinâmica e criativa, tecer relações inclusivas;
- No amar com toda a garra, no amar o colorido - o diferente, no j) Então, ela é ecumênica, pois acolhe e saboreia o diferente, as
amar as várias manifestações do “tratar bem”, do “querer bem”; várias manifestações abertas ao pluralismo humano e cosmológico, que
- Na luta para superar barreiras de discriminações, preconceitos, reconhece os direitos, deveres, valores, responsabilidades... E, na parti­
exclusão; lha da vida, no serviço - respeito à grande “OIKOS”.
- O nosso sentir, viver, a sociedade, o mundo, a/o outra/o, Deus,
as igrejas, as religiões... 1) Portanto, ela é relação, diálogo com aquilo que somos e com a
Ler o texto com tudo isso... com a vida! experiência do/a outro/a. É diálogo - relação com o mundo, nossa casa
- que nos impele a fazer aliança, superando a visão de domínio, reco­
b) Na certeza de que o masculino e o feminino expressam sua nhecendo a autonomia de cada ser como direito de seguir existindo e
maneira particular de ver-ler-interpretar-contemplar-relacionar- a/o ou­ viver conosco. Diálogo - relação de abertura. Tomar-se ‘‘casa abierta ”.
tra/o, o mundo e Deus;
c) Saindo, assim, do tradicional e universal de que o masculino é
que tem conhecimento, sabedoria, visão, organização, interpretação... Casa abierta
Isto é, sair de uma ideologia puramente patriarcal; De: Duo Guarda Barranco
d) E, então, suspeitar das verdades, certezas, atribuições do patri-
Quiero estar bien con mis hermanos dei norte a sur al fin dei
arcado, que exclui mulheres, pobres e a natureza. Ir em busca da vida - mundo. Sabe oir y dar, mis manos sudar, jugando algo bien sano.
suspeitando do que está atrás das palavras - de mulheres, homens, natu­ Todos aqui somos hermanos que más me da el calor la raza, den­
reza, oprimidos, explorados. E, assim, descobrir sua presença, seus gri­ tro tenemos sentimientos, que necesitan de sustento. Si adentro hay bu-
tos, seus desejos, suas buscas de libertação...;
eno sentimiento no si puede quedar adentro.

20 21
Aqui está mi casa abierta, hay un plato para ti en nuestra mesa.
Então, acredito que estamos ensaiando... começando a realizar
Sombra de arbol para tu cabeza.
uma Hermenêutica de Gênero.
Libro abierto a tu vida en mi puerta. Casa abierta.
Creio, também, que, com este ensaio, estamos gestando o novo
La amistad no cuesíiona tu credo. A la tierra le gusta que ame­
nas relações fraternas, nas relações de sororidade, onde a experiência de
mos sin distinción de culto y bandera. Casa abierta quiciera darte bu-
Deus parte da vida. Pois sagrada é a vida!
ena suerte y ser tu amigo hasta la muerte. Que la distancia no se entu-
ma y la amistad no se consuma.
Todos aqui somos hermanos... Bibliografia
BISPO, Martha. Memória libertadora de uma mulher sem n o m e: relendo M ar­
m) Isto nos leva a uma interdependência com tudo e com todos.
cos 7,24-30. CIB 98, Manágua, Nicarágua.
E não dependência - dominação do humano sobre o não humano, de
um povo sobre outro, do homem sobre a mulher... Superando essa de­ GEBARA, Ivone. Intuiciones ecofeministas : ensaio para repensar el conoci-
pendência, recuperamos nossa potencialidade e identidade nessa inter­ miento y la religión, Montevidéo, U ru g u ai: Doble Clic, 1998.
dependência... É relação de vida - na reciprocidade.
n) Recuperando, assim, nessa interdependência, a dignidade dos
corpos sofridos, esquecidos - dependentes... Pois é através deles que
somos, que nos relacionamos, que nos comunicamos, nos amamos. Sentir
os desejos dos corpos: da Mulher - Terra - Pobre, que em suas indivi­
dualidades contribuem para enriquecer a vida...
o) E, com tudo isso, experimentar Deus. Experimentar Deus de
outra maneira, isto porque, como sabemos, o patriarcado está muito pre­
sente na Bíblia e se dá numa grande preferência para o varão. Aí, intro-
jetamos só imagens de Deus Pai, Senhor. A Hermenêutica de Gênero
quer recuperar um rosto feminino de Deus. Experimentar Deus a partir
do cotidiano... na “anormalidade”, nas saídas encontradas, na resistên­
cia, nas opções em favor da vida. Perceber Deus na vida! Deus que vai
além de uma religião, além das igrejas...
E, ainda, alguns aspectos que são relevantes nesta hermenêutica:
* A sexualidade: percebê-la como um todo, integral da pessoa;
* C ultura: a maneira de entender Deus, mundo, outro/a;
* Ecofeminismo: a partir da exploração da mulher e da natureza
no interior do sistema hierárquico patriarcal, recuperando, assim, a for­
ça, a presença dos mesmos.

A hermenêutica de gênero é afeto, sentimento, coração. Entra­


mos no texto com sensibilidade, carinho, mas também com indignação
diante da primazia do masculino..., do hierárquico..., do patriarcado...,
do antropocentrismo...

22
23
O ser mulher e o ser homem não se definem só pela diferença física ou
biológica, mas principalmente pela construção social da sexualidade.
Conforme definição de Barbieri: “Gênero é o sexo socialmente constru­
ído”. Gênero é um produto de cultura, que nos faz ser homem ou ser
O que considero ser uma mulher. Sendo assim, nos abre possibilidades novas de pensar o relaci­
Hermenêutica de Gênero onamento entre homens e mulheres. Supera a imposição de modelo úni­
co e permanente que não poderia mudar por se basear em características
biológicas, estabelecidas pela natureza.
M argarida P aes Hermenêutica de Gênero é caminho de humanização e auto-esti-
ma qufe nos convida a uma retomada da nossa história desde a concep­
ção nO útero da nossa mãe e nossa relação com o nosso pai, irmãos e
irmãs. Enfim, a experiência com a nossa primeira casa. E, partindo daí,
f scutando, lendo artigos, livros de mulheres teólogas, biblistas nossa feconstrução da criança, adolescente, jovem que estão dentro do
da América Latina, que aprofundam este tema e têm uma história de nosso “ser mulher” e do “ser homem” que somos hoje.
luta, tomo a liberdade de me expressar sobre o que entendo por Herme­ A Hermenêutica de Gênero, principalmente para nós mulheres,
nêutica de Gênero à luz do que venho aprendendo com essas mulheres e nos abre um leque de caminhos e reflexões, nos dá asas para alçar gran­
das que conviveram e convivem comigo, no dia-a-dia, me ajudando a des vôos de liberdade. Abre portas e janelas da mente, do coração e do
clarear e fazer renascer em mim essa nova leitura da vida a partir dos corpo, fechados(as) em nome de Deus e de uma sociedade machista,
meus olhos, dos meus ouvidos, da minha mente e meus sentimentos de sexista e desumana.
mulher e, conseqüentemente, da profunda alegria de experimentar a nova A Hermenêutica de Gênero é um caminho de tomada de consci­
mulher que está renascendo dentro de mim. ência, não só da desigualdade que privilegiou o homem e o encheu de
Em primeiro lugar, a Hermenêutica de Gênero é um caminho e, poderes, colocando as mulheres em situações de inferioridade, mas tam­
ao mesmo tempo, um apelo ao homem e à mulher a repensarem: bém amplia a reflexão a outras realidades de desigualdades tão acentu­
* O QUE É SER MULHER? adas como as de raças, de classes e de geração. E, em outros casos, a
* O QUE É SER HOMEM? subordinação de classe no interior do mesmo gênero. Na busca de igual­
Essa construção de identidades não se dá separadamente cada dade de direitos, reconhecendo a especificidade e a diferença entre ho­
um pelo seu lado, mas buscando juntos a partir da relação: mens e mulheres, valorizando a contribuição de cada pessoa à espécie
* CONSIGO MESMO, humana.
* COM A ECOLOGIA, Enfim, a Hermenêutica de Gênero abre caminhos de suspeitas
* COM O(A) DIVINO(A), que nos ajudam a resgatar a verdadeira concepção da VIDA, de DEUS,
* COM A COMUNIDADE. da sua PALAVRA na realidade de hoje, na Bíblia e nas relações em
Descobrindo novas relações de gênero numa postura crítica de geral.
suspeita. E um convite à mulher em parceria lado a lado com o homem. A nova m ulher e o novo homem estão dentro de cada um a e
Tanto o homem como a mulher são convidados a entrar nessa dinâmica de cada um de nós. É preciso ajudá-los a nascer!
de conversão e integração, buscando formas alternativas de entre-ajuda E esta a grande missão de todos(as) nós!
e para acordar mulheres e homens adormecidos(as) com a falsa menta­
lidade de que o mundo foi criado, legitimado por um Deus criador mas­
culino que deu poderes de dominação, comando, de tomar decisões e
exercer lideranças para os homens e de submissão às mulheres.
Hermenêutica de Gênero é um caminho de reconstrução social.

24 25
Experiências
Morava em Conceição do Norte, no interior do Estado de Goiás,
hoje Tocantins.
Meus óculos já são bifocais! Minha “história de amor” com a hermenêutica feminista come­
çou lá, há uns 18 anos, no chamado “corredor da fome” de Goiás, onde
M ercedes de Budallés D iez o povo pobre e necessitado de tudo vivia a mesma fé que fora semeada
pela pregação de missionários 200 anos atrás. Com muita reza e muito
bendito. Com muita fé simples, essencialmente vivida na partilha e na
dura luta pela sobrevivência.
/eus óculos já são bifocais”, disse eu mesma, quase inconsci­ Entre o povo desse sofrido sertão vivi 10 anos, dos mais felizes
entemente, como defesa diante da acusação de alguém que afirmava
da minha vida. Hoje me atrevo a interpretar e escrever fatos que ainda
que eu era feminista demais nas minhas apreciações, nos exemplos do
estão vivos na minha lembrança.
cotidiano, até na minha leitura bíblica!
Mais tarde, refleti e fiz uma enorme lista de fatos que eu observa­ I amemória
va de perto e outros tantos que enxergava de longe no relacionamento
mulher/homem e conclui que, ao responder daquela maneira, tinha dito Numa catequese de crianças de 10 a 12 anos, expliquei a parábo­
mais do que eu mesma pensava: o uso de óculos para ver melhor de la do Filho Pródigo. As crianças encenaram a história, vibraram... Quando
perto me ajudara a enxergar muito melhor de longe. Os meus novos eu pensava que já havíamos chegado ao fim, um menino perguntou:
óculos estavam “clareando” muitas coisas! Mercedes, onde estava a mãe do rapaz malandro, do rapaz que se man­
Com efeito, por um lado a vida monótona, partilhada no dia-a- dou? A pergunta deixou-me tão surpresa que respondi questionando: O
dia com o povo pobre e sofrido, foi uma luz para ver e sentir o valor e a que vocês acham, crianças, onde estava a mãe desse rapaz? Depois de
qualidade humana de cada uma dessas pessoas: sacrificadas, trabalha­ muita discussão, uns meninos dizendo que não havia mãe e outros que
doras, criativas, cheias de amor e ternura... Por outro lado, minha expe­ havia, sim, porque todos temos mãe..., o Edson levantou a voz com
riência de leitura bíblica com as mulheres empobrecidas, que encontram muita autoridade e disse: “Tem mãe nessa história, sim. E está aí, na
na Palavra de Deus tanta força de vida, ajudou-me a enxergar mais lon­ Bíblia. Sempre que um pai espera de braços abertos pelo seu filho, a
ge e ver muitas coisas pequenas nascer e crescer... “como o fermento mãe está junto. Lá em casa é assim. Sempre é ela quem dá o jeito!”
que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que
tudo fique ferm entado’’ (Mt 13,33). Aprendi a esperar com paciência 2amemória
histórica esse “até que tudo fique fermentado” e a acreditar com grande Na década de 80, Dom Fernando, Arcebispo de Goiânia, escre­
alegria que as muitas pessoas com as quais lutamos pela construção de veu uma Carta Pastoral, denunciando o Governo Federal que pretendia
uma sociedade mais humana fazemos o Reino acontecer já, numa me­ fazer uma esterilização de mulheres. Sem mais informações, as mulhe­
lhor relação com a Natureza, com os outros seres humanos e conosco. res seriam submetidas a tratamento ou cirurgias para não terem mais
Proponho levantar pontos básicos do que pode ser uma leitura filhos.
hermenêutica de gênero a partir dos pobres. Parto do que aprendi na Dando todo o valor à palavra do bispo, numa reunião de comuni­
leitura bíblica com o povo e, principalmente, com mulheres empobreci­ dade, tentei ler alguns trechos da carta, que, muito bem escrita, usava
das, oprimidas e à margem dos modelos dominantes do saber, como termos científicos de difícil compreensão para pessoas não letradas. Eu
sugere Tânia Sampaio: explicava e explicava, mas, no rosto das mulheres e homens presentes,
“Devemos romper os exclusivismos, tornar mais solidária e coletiva a
percebia pouco entendimento. Arrisquei e perguntei: “E daí, gente, dá
produção do saber, evitar que as descobertas se conservem apenas para para entender?”
teses e livros.”1 Dona Jacinta, uma mulher sábia e piedosa, rompeu o silêncio e

26 27
disse: “Entender, eu não entendi, não, Mercedes..., mas lembrei... me falaram: “Deus é meu melhor amigo. É nosso Pai. É tudo. Deus é Ver­
veio à m em ória aquelas parteiras e o faraó do Egito. Tenho comigo que dade, Vida...”
o nosso Governo está sendo o faraó que quer matar o povo. E nós temos Um lavrador de meia idade, quase gaguejando, disse: “Deus é a
que ser espertas como as parteiras, defender a vida dos nossos filhos. essência da minha existência”. Diante da surpresa e da estranheza de
Desobedecendo, se é preciso, para poupar a vida dos filhos. Depois dos várias pessoas, expressadas nos seus rostos, já que ele deu uma resposta
nossos Círculos Bíblicos só consigo ler a Bíblia e entender a labuta do difícil de entender para a maioria presente, perguntei interpretando: “Você
dia-a-dia assim: o im portante é a vida!” quer dizer que Deus é como o perfume de um vidro de essência? Quan­
do a gente abre o vidro, o cheiro do perfume se espalha por todo o
3amemória lugar...”
Dona Chiquinha era a rezadeira mais conhecida nas redondezas. Uma mulher que estava perto de mim ironizou, sussurrando: “Ho­
Benzedeira igual não existia. Sua reza era forte para resolver problemas mem, lavrador, entende de perfume?”
de arca caída, quebrante... Era uma mulher de grande personalidade. O O lavrador, que afortunadamente não escutou o comentário, acres­
fato de ser criada como única mulher entre 11 irmãos homens não impe­ centou: “Assim é Deus na m inha vida. Deus enche tudo, está em
diu que fosse à Escola para “aprender a ler”. O único de que não gostou tudo e em todos e todas as pessoas. Eu sinto Deus desse jeito” .
é que um dia o professor, que gostava muito de dar ordens, disse: “Tudo
o que está escrito na Bíblia tem que se fazer ao pé da letra”. Dona Chi­ (Re) Leitura
quinha resolveu: “O melhor é não ler”. E assim deixou a Bíblia fechada
Nós, as mulheres de Conceição, desde 1980, nos aprofundamos
por muitos anos.
na leitura feminista da Bíblia. Reuníamo-nos semanalmente, com muita
Convidamos a nossa rezadeira para um Concurso de Benditos.
fidelidade e gosto no estudo de textos bíblicos onde apareciam mulhe­
Tratava-se de escrever o maior número de benditos conhecidos. Ganhou
res. De uma forma especial procurávamos, no dizer da comadre Nilda,
o primeiro prêmio e com ele uma ida à Romaria do Cristo do Bonfim e
“mulheres presentes na Bíblia que não aparecem”... Celebrávamos sem­
a participação num Curso Bíblico. Na volta, deu o seguinte depoimento
pre com muita festa quando descobríamos mulheres que plantavam
na Celebração da Comunidade: “O que mais gostei da Romaria não dá
mostarda nas hortas, como até hoje se encontram na Palestina e nos
nem para explicar: a viagem de ida e volta foi rezando, cantando, todos
quintais de todo o interior do Brasil. E tantas outras mulheres, como a
com entando as passagens bíblicas. Naquela fé, conversando coisas
mãe do filho pródigo, ou a discípula de Emaús...
de Deus. Todos iguais, falando e escutando. Para entender, só vocês
Quando vivi e partilhei a maioria desses fatos e muitos outros
indo! Do Curso, o melhor foram as filas na espera da refeição. Todos
mais, eu não tinha escutado nem lido nada sobre as reflexões a respeito
iguais, homem, mulher, padre, freira... bem organizado. Ainda aprendi
da relação de gênero e muito menos sobre a leitura bíblica de gênero.
que a Bíblia diz uma coisa só. Nosso Deus é um Deus Libertador. Nem
Isso veio depois, e foi na teoria, graças às leituras, que pude reconhecer
leis, nem milagres. O importante é a vida. Por isso Jesus caminhou com
como esses anos de estudo bíblico e de vivência no interior foram tem­
o povo lado a lado. E assim precisamos fazer. Acabou esse “eu rezo o
pos de plantio. De fato, foram muitas as sementes jogadas em terra boa
bendito”. Desde que voltei leio a Bíblia todo dia. Falo com ela, leio
que brotaram e deram seus frutos. Pude verificar isso quando, em 1998,
p ara quem vem me pedir a bênção e escuto o que eles entendem.
voltei a Conceição do Tocantins (que mudou até de nome!). Num en­
Essas conversas me dão a mesma força que a água que bebo na
contro com mulheres e homens, jovens e crianças, lembramos muitas
hora do calor!”
das histórias vividas anos atrás. Rimos muito, contamos as nossas tre­
4amemória tas, as das mulheres, para nos reunirmos e fazermos nossos estudos.
Entre elas, Dona Eugênia lembrou daquelas quartas-feiras indo à casa
No mês da Bíblia, em setembro de 1996, fui convidada por uma
comunidade do interior para refletirmos juntos sobre o Livro de Jó. No da Chiquinha para fazer pão e bolo no seu grande forno. Cada uma
levava o que tinha, púnhamos tudo em comum e líamos a Bíblia en­
primeiro momento de oração, perguntei: “Quem é o Deus das nossas
quanto a massa crescia. Alguns maridos tinham proibido suas mulheres
vidas?” Depois de alguns minutos de silêncio e reflexão, várias pessoas

28 29
de ir à reunião, onde “aprendiam coisas demais”. Com a desculpa de
sobretudo, ao nível das experiências concretas que vão se fazendo; não
fazer pão e de voltar para casa com uma boa merenda, ninguém perce­ é o resultado de uma teoria prefabricada, mas passa pelas práticas no­
bia que a nossa intenção ia bem mais longe... Hoje, as mulheres de Con­ vas que tanto homem como mulher ousem enfrentar.”4
ceição falam abertamente e riem de tudo isso, na frente dos seus mari­
dos e dos filhos. Aprendi e posso afirmar que a sabedoria do povo oprimido, à
- Mudou alguma coisa? - perguntei. Ninguém afirmou nem ne­ margem dos modelos dominantes do saber, descobre outras relações e é
gou. Foram surgindo alguns depoimentos, principalmente dos homens: capaz de vivê-las. É um processo lento e demorado. Mas está aí. Sem
“Ajudou muito a conversa mansa do dia-a-dia. ” saber o porquê, num lugar afastado e desconhecido, no pequeno muni­
“O sofrimento da luta pela terra, a organização do sindicato, cípio de Conceição do Norte, novos vínculos de proximidade e amizade
abriu os meus olhos e vi que existem faraós ’ também dentro de casa. foram surgindo dentro de nós mesmas, na convivência com os homens
Eu mudei muito no jeito de falar com os meus filhos. ” - maridos e filhos - com os alunos e alunas nas escolas, com as pessoas
“Eu me toquei, quando escutava os conselhos que a minha mu­ da comunidade. Como em muitos outros lugares isolados e escondidos,
lher dava para as filhas. Acredito que ela falava na minha frente com vivemos as palavras do Evangelho: “O Reino de Deus é como um ho­
intenção. Sempre falava: Prestem atenção, vocês não vão sofrer dô mes­ mem que espalha a semente na terra. Depois ele dorme e acorda, noite
mo modo que suas mães sofreram... ” e dia, e a semente vai brotando e crescendo, mas o homem não sabe
“Eu nunca tinha trabalhado para os outros. No aperto, tive que como isso acontece” (Mc A,26-27).
trabalhar para a fazenda Agropig. Comentando em casa o que era a
humilhação de ser mandado, o jeito como o gerente gritava e se fazia P istas: p a la v ra viva q u e pode m o v er a h istó ria ”
respeitar, senti, na cara da mulher e dos filhos, que em casa também
havia patrão... ” Faço minhas as palavras de Severino Croatto:
“Um dia, eu me choquei, quando ouvi minha esposa falar de “O ponto de partida deste ensaio é a convicção de a Bíblia não ser um
sexo com a nossa filha que ia casar. O que devia e não devia permitir. depósito fechado que já ‘disse’ tudo. É um texto que ‘diz’, no presente,
Demorei muito em procurar minha mulher de novo, porque entendi seu mas que fala como ‘texto’, não como uma palavra difusa e existencial
sofrimento. ” que somente tem sentido genérico de provocar uma decisão minha. A
As “mulheres e homens da caminhada”, o pessoal das nossas co­ tensão entre um texto fixado em um horizonte cultural que já não é o
munidades, entenderam e já são capazes de viver e verbalizar, ao seu nosso, e ser uma palavra viva que pode mover a história, somente se
modo, que: resolve através de uma releitura frutífera. Isto equivale a enunciar o
problema da hermenêutica bíblica.”5
“O conceito de gênero abre possibilidades novas de pensar o relaciona­
m ento entre homens e mulheres; escapa assim da imposição de um mo­ Vou partir dos testemunhos que sublinhei nas memórias. Formu­
delo único e permanente, que não poderia mudar porque teria como lo quatro pontos básicos para uma leitura bíblica de gênero. Sei que não
fundamento características biológicas estabelecidas pela natureza.”2 são novidades teóricas. Mas afirmo que já são práticas vividas e experi­
“Entretanto, pouco a pouco, as próprias mulheres foram percebendo mentadas. São expressões concretas que, licitamente, são tão valiosas
que não poderiam mudar esta situação de desigualdade transformando quanto a teoria. São palavras gravadas no meu coração que foram refle­
apenas a sua situação: é indispensável mudar também a situação do xão e vida nova para mim e para muitas outras pessoas que ousamos
homem. A utilização do conceito de gênero vem justamente indicar isso. sonhar novos vínculos com a Natureza, com todos os seres humanos.
Não se trata de uma simples mudança de palavras, mas de um desloca­ Verifiquei que à luz e com a força da fé na Bíblia, já conseguimos
mento no próprio conteúdo do conceito.”3
uma nova relação conosco, dando-nos valor, como pessoas, especial­
Para isto, há que inventar, que propor, que criar um novo conceito de mente como mulheres. A partir da experiência do dia-a-dia formulo es­
masculino e feminino num contexto de liberdade, igualdade e participa­
sas pistas, com o intuito de rastejar e continuar na procura, até chegar à
ção. E esta criação de uma nova relação entre homens e mulheres se dá,
fonte, ao princípio da vida. Sei que temos um longo caminho pela fren­
te. Mas o importante é caminhar!
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I o) “Lá em casa é assim. ” Devemos refazer o presente à luz do passado, na procura de uma
A própria experiência, refletida a partir do eu, do nós, do hoje. vida mais digna. A memória é perigosa, revolucionária. Cria novas rela­
O menino, ao saber que na sua casa quem dá o jeito é a mãe, que ções com a vida. Quem faz memória se compromete no novo momento
ela está junto do pai quando há espera, perdão, ternura e afeto, sabe que histórico, no presente.
Deus é Pai e Mãe e nos afirma que Deus pode ser entendido de outra
maneira. Aponta-nos, interpretando a Bíblia, a criar novas relações a 3°) Todos iguais, falando e escutando.
partir da essência do próprio Deus. O acontecimento fazendo-se palavra. Exigência de diálogo.
“Com preender um texto, não é, projetar-se de forma absoluta no texto,
Dona Chiquinha fecha e abre a Bíblia por influência de alguém
mas expor-se ao texto para que possamos nos compreender de novo, próximo. De alguém que se fez superior e/ou igual respectivamente. E
com preendendo-o. O texto é m ediação para a revelação de nós isso muda sua compreensão da Bíblia e da vida.
mesmas(os).”6 “Nossa hermenêutica, é, pois, dialógica, instaura uma conversa com os
“Sabemos assumir na prática eclesial uma prática que assuma a imagem textos, conversa carregada de vida e em busca de caminhos para a vida,
de Deus na sua totalidade? Deus-homem e mulher! A articulação de onde homens e mulheres, igualmente, são chamados a proclamar a Boa-
uma nova teologia deverá assumir, no cotidiano da luta dos pobres, a Nova do Reino de Deus.
garra e o vigor das mulheres, e especialmente seus anseios de libertação Nesse sentido, nossa hermenêutica não quer apenas com preender os
e de uma nova relação humana! É preciso uma nova reeducação - uma textos do passado e sua história como uma ilustração, mas quer com ­
verdadeira educação cultural - que supere preconceitos machistas, do­ preender a reativar o passado em vista das lutas de libertação do pre­
minação e catequeses bancárias... As mulheres experienciam a ação do sente. O Espírito de Deus está em nós e Sua Criatividade, Liberdade,
Pai materno, pela misericórdia infinita de Deus e pela fé solidária e his­ Justiça e Amor são para sempre.”9
tórica nos pobres.”7
Para ler a Bíblia, para viver a vida, precisamos dialogar. Escutar
A partir da experiência, reafirmo que na experiência do povo a e falar. A palavra feita diálogo transforma as nossas vidas. Na riqueza
presença de Deus é mais profunda, mais ampla. No nosso dizer latino- da palavra ouvida e falada nos encarnamos num mundo novo. João já
americano, da Assembléia do Povo de Deus, de Quito, nosso Deus é disse: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
macroecumênico. Nossas relações devem ser também maiores.
2o) "... Me veio à memória... O importante é a vida!” 4o) “Deus enche tudo. Está em tudo, em todos e todas as pessoas. ”
A memória, as experiências passadas, convidam-nos a uma única Trabalhar outras desigualdades mais profundas.
opção: luta pela vida. O nosso lavrador, com uma definição filosófica, fala de Deus a
E o “querigma” de Dona Jacinta é a vida. No interior do Brasil, partir da sua realidade. Ele testemunha que Deus impregna a vida de
onde a dependência e obediência das mulheres são aprendidas e vividas todos nós por igual. Já a mulher tem outra experiência e confirma que
desde crianças, uma mulher pobre se atreve a contestar sua própria cul­ há desigualdades profundas entre nós. Explicita que essa desigualdade
tura. Dona Jacinta afirma que a desobediência, em favor da vida, é líci­ entre os gêneros não é a única. Existem outros preconceitos e diferenci­
ta. Que a submissão não constrói vida. A leitura bíblica, segundo esta ais sociais que criam contradições e que nos desafiam a lutar pela igual­
mulher sertaneja, exige de nós uma atitude radical: a criação de novas dade na diversidade.
relações em favor da vida. “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem
“(...) a Bíblia é um texto, não é, por adição, a soma de muitas unidades nem mulher.” (G1 3,28).
literárias, mas a unificação de um querigma central, lingüisticamente “Gênero como relação de poder. O conceito de gênero estabelece que
codificado. Desde então, é possível reconhecer neste grande relato os as relações de gênero são relações de poder, e que, ao longo da Histó­
‘eixos’ semânticos que orientam a produção de sentido que é a nossa ria, estas relações têm favorecido os homens; dessa forma, permite to­
leitura da Bíblia... A tarefa não consiste em registrar temas relevantes, mar consciência desta desigualdade para poder superá-la. Descobrir e
mas registrar sua estrutura na obra total que é a Bíblia.”8 explicitar esta desigualdade fundamental entre os gêneros nãojjugr çh-

32 33
zer que ela seja única. É preciso reconhecer também a existência de Quero concluir com as palavras de um outro escrito meu, sobre
outras desigualdades sociais - como as de etnia/raça, de classe e de as mesmas pessoas que recordei aqui:
gênero - para não cair em uma posição reducionista.” 10
“Fica esta colcha de retalhos. Fica a minha gratidão aos homens e mu­
Se Deus está em todos e todas as pessoas por igual, temos que lheres lavradoras que me ajudaram, com sua fé e sua luta, viver mais
resolver as desigualdades sociais, de sexo, de classe... como questões plenamente a vida... Aprendi de suas mãos calejadas que labutam a ter­
mais profundas. Tomar consciência já nos compromete. O grande desa­ ra e tecem palha para fazer peneiras, que fiam e tecem algodão, a arte
fio é construir uma sociedade onde o dever e o poder sejam partilhados. de juntar e costurar os retalhos da vida e fazer gerar em mim, uma
mulher nova.12

Conclusão Com Popol Vuh, livro sagrado dos maias, gritamos:


“Que todos se levantem, que todos sejam convidados, que ninguém
A Teologia com a Bíblia na mão ajudou justificar as escolhas de
permaneça atrás. Que desponte já a alvorada!” 13
Deus, as desigualdades sociais, a submissão das mulheres em todas as
épocas. E, ao mesmo tempo, a Teologia e a Bíblia são essas buscas de
sentido articulado, fontes de inspiração às quais retomamos e a partir Notas
delas fazemos uma nova história. Assumo e faço minhas as palavras de 1 SAMPAIO, Tânia M aria Vieira, “Elementos significativos da hermenêutica
Ivone Gebara: bíblica feminista”, in: Sentimos Deus de outra form a : leitura bíblica feita por
“A teologia é essa espécie de busca articulada de sentido que se expres­ mulheres, Série: A Palavra na Vida, n°, 75/76, São Leopoldo : CEBI, 1994,
sa numa diversidade de discursos indicati vos da necessidade humana de p. 52.
viver numa RELAÇÃO maior, sempre maior dos limites do cotidiano. 2 RIBEIRO, Lúcia, “Comunidade de irmãs e irmãos : a questão de gênero nas
A teologia seria o fio, poético talvez, que vai entrelaçando todas as C EB ’s”, in: C EB ’s Povo de Deus: 200 anos de caminhada, Paulo Afonso :
coisas da vida, das menores às maiores, do cotidiano ao social mais Fonte Viva, 1999, p. 158.
amplo, da amizade ao partido político, da paixão amorosa à solidarie­ 3 Ibid., p. 160.
dade internacional. É justam ente esse fio tênue que segura as coisas, se
4 Ibid.
modifica, se rompe, se reconstrói, se endurece, se afina, se liga a outros
5 CROATTO, J. Severino. Hermenêutica Bíblica, São Leopoldo: Sinodal, 1985,
através de nozinhos quase imperceptíveis que chamo de teologia. Faz
p. 62.
pensar na diversidade de fios que uma costureira usa para indicar por
quais caminhos deve passar a máquina de costura ou a agulha para que 6 GEBARA, Ivone, “Elementos significativos da hermenêutica bíblica feminis­
a roupa tome a form a desejada... M inha contribuição é, pois, limitada, ta” , in: Sentimos Deus de outra form a : leitura bíblica feita por mulheres,
assim como a contribuição de cada uma de nós, mas suficientemente Série: A Palavra na Vida, n°, 75/76, São Leopoldo: CEBI, 1994, p. 62.
aberta para ser costurada pelos fios do sentido buscado em conjunto. 7 ALTERMEIR, Fernando J., “O feminino revela o divino”, in: M ulher e dig­
Buscamos a comunhão e a entre-ajuda nessa extraordinária obra de arte nidade : dos mitos à libertação, São Paulo : Paulinas, p. 95.
que nossa geração está tentando construir.11 8 CROATTO, J. Severino, op. cit., p. 51.
9 GEBARA, Ivone, BINGEMER, M. Clara, Mãe de Deus e M ãe dos pobres,
Vivi muito perto dos homens e mulheres nesse interior do Brasil.
Petrópolis : Vozes, p. 43.
De suas crianças e dos seus bichos... Aprendi a projetar o cotidiano bem
10 RIBEIRO, Lúcia, op. cit., p.158-159.
mais longe. A luta do dia-a-dia pela vida fez crescer em mim o apelo
11 GEBARA, Ivone, “Elementos significativos da hermenêutica bíblica fem i­
para uma luta social mais ampla. O carinho concreto pelas pessoas pró­
nista” , in: Sentimos Deus de outra form a : leitura bíblica feita por mulheres,
ximas e o desejo de encontrar soluções para tantos problemas me abri­
Série: A Palavra na Vida, n°, 75/76, São Leopoldo: CEBI, 1994, p. 60.
ram a uma solidariedade maior.
12 DIEZ, M ercedes Budallés, “As mulheres sertanejas lutam rezando” , in: A
Meus óculos bifocais foram lupa e binóculos. Desde o pequeno Teologia se fe z terra, São Leopoldo : Sinodal, 1991, p. 64.
município de Conceição do Norte eu e o meu povo envergamos o Bra­
13 M anifesto do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus, Quito-Equador,
sil, a América-Pátria Grande. Aprendemos a viver outra relação. 1992, in: Latino-Americana 97, São Paulo : Musa, p. 184.

34 35
novo, diferente, com novos pontos de partida, novos princípios
hermenêuticos. Ter coragem de romper com o cientificismo escrito,
dogmatizado, argumentado, pronto, para partir da vida, da prática da
realidade cheia de bagunças, de contradições e imperfeições, mas porta­
Hermenêutica: pontos básicos para dora da verdade original.
uma leitura bíblica de gênero no CEBI
Atenção e interpretação das imagens e símbolos do masculino e do
Lúcia Weiler feminino
A hermenêutica bíblica de gênero ajuda a compreender como são
usadas as imagens e os símbolos do feminino e do masculino no cotidi­
O que consideramos que seja uma ano (tanto no tempo da escrita quanto no tempo da leitura do texto bíbli­
Hermenêutica de Gênero? co), olhando para além do texto escrito.

Questões éticas humanas - relacionais


l^epois de fazer algumas leituras de hermenêutica para ver se A hermenêutica de gênero deve abordar e não ignorar ou tabüizar
encontraria algum gancho para ancorar o que pode ser considerado her­ questões como a biogenética, homossexualismo, lesbianismo...
menêutica de gênero, confesso que não encontrei nenhum que me con­
tentasse. Olhei então para as experiências e tentativas hermenêuticas feitas Uso da linguagem narrativa
na prática, com estudantes de teologia, com comunidades de base e ou­ Uma linguagem capaz de envolver a leitora e o leitor como que
tros grupos populares, na equipe do projeto “Tua Palavra é Vida”, e dando continuidade ao acontecimento que queremos destacar a partir
resolvi partir daí. Não se trata, portanto, de uma descrição, mas apenas do texto bíblico. A própria Bíblia apresenta assim os relatos (por exem­
de uma junção de alguns elementos que podem ajudar para um início de plo as releituras no Livro do Deuteronômio: “como acontece até hoje”)1.
conversa. A seqüência não representa sua ordem de importância.
Superação do mito da criação do Gênesis
Uma nova antropologia humanocêntrica
Os relatos da criação do Gênesis exerceram efeitos por demais
Rom per com a antropologia androcêntrica e p a rtir de um a discriminatórios sobre a mulher como também o homem e, pior ainda,
nova antropologia apoiada numa visão hum anocêntrica, que consi­ sobre toda a criação.
dera mulher e homem imagem e semelhança de Deus. Homem e mulher
como sujeito e agente com igualdade de direitos e responsabilidades, Valorização da corporeidade
pela organização do cosmos nas diversas dimensões: social, econômica,
Tomar o corpo como ponto de partida de uma hermenêutica teo-
política, ecológica, religiosa, ideológica, etc.
lógica-bíblica. Certamente esse será um dos maiores contributos da
hermenêutica de gênero2.
Atentas às pré-compreensões introjetadas
Desmistificar arquétipos e estereótipos culturais masculinos e fe­ Dimensão ecológica e holística
mininos, no empenho de tomar consciência de nossas pré-compreen­
Ligada à superação do mito da criação está a expressão “dominai
sões introjetadas de geração em geração.
a terra”. Teilhard de Chardin diz: “Amem-se ou perecerão!” Mais do
que nunca esse é um imperativo para o nosso tempo de ameaça ecológi­
Coragem e audácia do pensamento intuitivo
ca.
Desconstruir não apenas para reconstruir, mas para gestar algo

36 37
Dimensão ecumênica e macroecumênica
Uma hermenêutica de gênero precisa contemplar, para além do
diálogo inter-religioso ecumênico, também a dimensão mais ampla
macroecumênica na perspectiva do Reino. O que consideramos que seja uma
Uma visão de Deus relacional, trinitária Hermenêutica de Gênero?
A hermenêutica de gênero implica primeiramente uma mudança
de ótica, mas também e, sobretudo, uma mudança de relações. Aí vejo a
Teresa Mee
importância de quebrar com as imagens de Deus fixistas que se cristali­
zam ao longo da história. As novas relações de gênero e poder devem
g u a n d o empreendemos uma leitura de gênero da Bíblia, esta­
estar enraizadas nas relações trinitárias. Um Deus relacional feminino e
mos dentro de um movimento mais amplo que busca um entendimento
masculino que vive o uno nas diferenças trinitárias3.
alternativo da vida, proveniente das experiências e discernimentos de
mulheres. Esse movimento é um movimento global. Questiona atitudes
Uma hermenêutica situada e inculturada
patriarcais, por exemplo, que o macho da espécie humana seja a norma
Uma vez que a questão de gênero é uma construção cultural e para a humanidade, que a fêmea seja secundária criada para o serviço do
social, qualquer tentativa de hermenêutica de gênero deve considerar o macho. Na visão patriarcal, relacionamentos são hierárquicos, autorida­
ambiente cultural onde se situam as pessoas destinatárias. Isso evita ge­ de é imposta, conflitos são resolvidos por conquista. O movimento de
neralizações e novos preconceitos. gênero rejeita esta estrutura da sociedade e promove libertação de mu­
lheres e de homens das estruturas opressoras. Longe de ser contra ho­
Primazia do princípio da alteridade e do distinto mens, este movimento é, sim, PRO-HUMANO. A opressão, assim como
a libertação da mulher no decorrer dos séculos, tem sido muito influen­
Valorizar as diferenças como valor e enriquecimento de qualquer
ciada e muito defendida pelas diversas representações e interpretações
processo relacional humano.
de textos bíblicos. A abertura, nas últimas décadas, da porta de estudos
Silêncios do texto escrito e apócrifos bíblicos às mulheres, fechada por tantos séculos, tem introduzido uma
fonte nova, enriquecendo todo o campo de interpretação bíblica.
Explorar mais os silêncios do texto e os apócrifos, como o Evan­ O esforço de resgatar a visão feminina do mundo e do rosto de
gelho de Maria Madalena, o Evangelho de Tomé e outros. Deus, de descobrir também a identidade, a verdadeira dignidade, o valor
e o papel das mulheres na história da salvação é uma tarefa que apresen­
Notas ta novos desafios.
H erm enêutica: do grego hermeneia, abrange um âmbito largo
1 Um ensaio muito interessante nesse estilo narrativo é o E l Cuadrante de José de interpretação.
Luis Sicre, Estella, Espanha : Verbo D ivino,1997.
2 Já temos alguns ensaios e intuições nessa linha. Conheço alguns textos de
Ivone Gebara. Deve haver outros.
Interpretação
3 Inspirador é o texto de Ivone Gebara. Trindade, Palavra sobre coisas velhas
e novas : um a perspectiva ecofeminista, São Paulo : Paulinas, 1994.
a) Interpretação por meio de FALA/DISCURSO;
b) Interpretação por meio de TRADUÇÃO de uma linguagem
para outra;
c) Interpretação por COMENTÁRIO e EXPLANAÇÃO.

38 39
a) Interpretação por meio de FALA/DISCURSO da palavra de Deus que seja mais completo, mais equilibrado e por isso
A linguagem expressa e interpreta o que está na mente da gente mais humano e libertador. Esta hermenêutica tem como ponto de parti­
(consciente ou inconscientemente). Até expressa e interpreta o SER, a da a consciência da raça humana como um todo, composta de seres do
PESSOA, a IDENTIDADE da gente no processo de comunicar. Na dis­ sexo masculino e feminino.
cussão bíblica existe a complexidade da capacidade da língua humana
de expressar a “mente”, a “vontade”, a “pessoa” de Deus. Por exemplo, Os instrumentos e as funções da Hermenêutica de Gênero
os textos bíblicos falam de Deus como “guerreiro”, de quem sai com os
exércitos de Israel, rocha, oleiro que modela o ser humano a partir do A Hermenêutica de Gênero usa os instrumentos mais recentes da
solo, etc. crítica bíblica. Usa o crítico retórico (que analisa as estratégias usadas
no texto para comunicar uma mensagem). Usa os métodos da reconstru­
b) Interpretação por meio de TRADUÇÃO ção histórica, sociológica e antropológica da comunidade que está atrás
do texto bíblico. O que é novo na Hermenêutica de Gênero é o uso da
Este é um processo que vai além da equivalência mecânica de
imaginação criativa para promover essa reconstrução. Usa-se “role play ”,
verbos e envolve uma transferência de um ponto de vista cultural mun­
narração de histórias, bibliodrama, artes pictóricas, dança e ritual, que
dial para outro. Por exemplo, a apóstola Maria Madalena, que, confor­
têm a capacidade de criar uma imaginação “diferente”. Elizabeth Schüs-
me as tradições, foi a testemunha primária da ressurreição, sobrevive na
sler Fiorenza faz uma representação da história de Herodias em Mc 6,14-
memória cristã como prostituta arrependida. Isto se deve à interpretação
29, em que ela combina métodos de hermenêutica crítico-histórica com
errada dos “sete demônios” dos quais Jesus a libertou. Na cultura de
a imaginação criativa para recuperar o ponto de vista feminino. Ela usa
então, as doenças eram vistas como possessão por espíritos impuros.
um bibliodrama em que Herodias se defende, invocando a autoridade
do historiador Josefo e as normas da cultura da época para mostrar a
c) Interpretação por meio de COMENTÁRIO e EXPLANAÇÃO
falta de base histórica neste texto em que, mais uma vez, a culpa pelo
Em relação à interpretação bíblica é importante lembrar que nem crime recai sobre os ombros da mulher.
Israel, nem a comunidade cristã eram “uma religião do Livro”. Um gru­ A Hermenêutica de Gênero tem a função negativa de desmasca­
po de experiências - resgate do Egito, eleição de um povo, formação de rar o caráter androcêntríco ou o objetivo opressor do texto bíblico e de
uma aliança, promessa de uma terra - deu identidade a Israel antes dos discutir as suas próprias traduções. Ocupa-se dos silêncios, das contra­
relatos escritos. Igualmente, uma comunidade chegou a crer na presença dições, dos argumentos, das prescrições do texto, assim como dos dis­
e ação escatológica de Deus em Jesus antes de ter evangelhos. A etapa cursos da Bíblia sobre gênero, raça, classe ou cultura. O termo usado
da escrita não prescinde da etapa da tradição oral, a autoridade da apre­ para designar esta função é SUSPEITA IDEOLÓGICA (de preconceito
sentação escrita nunca substituiu totalmente a autoridade de Jesus, mes­ patriarcal).
mo que seja conhecido na maior parte só pelos escritos. Em relação ao texto bíblico, é importante lembrar que o estudo
crítico da Bíblia iniciou com a crítica textual, documentando que não
A interpretação bíblica, no decorrer da história, até as últimas podemos mais conhecer o original imaculado do texto verbalmente ins­
três décadas, era dominada pelo clero. O método “científico” de inter­ pirado, mas só as formas subseqüentes, divergentes nos manuscritos.
pretação, o “método aceitável” era o crítico-histórico. O ponto de vista Usando as diversas leituras dos manuscritos, os eruditos selecionam uma
era do macho (masculino) de uma sociedade patriarcal em que prevale­ versão para estabelecer “o texto original”. As tendências androcêntricas
cia um sistema de dominação, de subordinação e de discriminação. Este que marginalizam mulheres se revelam:
ponto de vista explica a eliminação de mulheres das histórias, a falta dos
nomes de muitas mulheres que aparecem nos relatos e os textos que 1) Na seleção e na redação de materiais tradicionais feitas pelo
demonizam a mulher. escritor bíblico;
A H erm enêutica de Gênero procura chegar a um entendimento 2) Nas traduções e comentários subseqüentes de materiais tradi­
cionais.

40 41
Em Col 4,15 temos um exemplo de como, na seleção de um tex­
to, a eliminação da liderança de mulheres foi preservada. O autor saúda
a comunidade de Laodicéia (4,13) e depois saúda uma pessoa chamada
Ninfa(s) e a igreja na casa dela/dele/deles. (A forma acusativa do nome Uma Hermenêutica de Gênero
pode referir-se a um homem, Ninfas, ou a uma mulher, Ninfa). Existem
três versões do texto: M aria H elena da Silva M utzenberg
a) “E a igreja na casa dela” - do Codex Vaticanus e da tradução
siríaca. Então a saudação refere-se a uma mulher, Ninfa, líder de uma
igreja local;
O presente a gente só vive, no momento
b) “E a igreja na casa deles” - do texto egípcio em que o autor
em que você fala dele, já é passado
está saudando a Ninfa(s) e a família dela(e) ou Ninfa(s) e os amigos
dela(e); e já não é mais a mesma coisa
c) “E a igreja na casa dele” - do texto Bizantino e do Ocidental.
Conforme as regras metodológicas, a “lectio difficilior”, ou a leitura
mais difícil, provavelmente representa o texto original. Mas na época de A hermenêutica, como método de interpretação, remonta aos
escolher a versão mais apropriada dentre as três, as mulheres não eram estudos de textos antigos, particularmente dos textos gregos clássicos, e
admitidas como líderes de igrejas locais. da exegese bíblica. Tratava-se de ir além do estudo da forma gramatical,
Hoje a maioria das edições bíblicas ainda escolhem “a casa dele”. do estilo e das idéias textuais e considerar as partes dentro de um todo
Na Edição Pastoral, por exemplo, temos “Ninfas e a igreja que se reúne na busca de compreender o sentido que o autor ou autores propunham
na casa dele”. através do texto. No campo da exegese bíblica, a argumentação de Mar­
A Hermenêutica de Gênero tem a função positiva de reconstruir tin Luther de que os cristãos podem redescobrir sua fé através da Bíblia,
os paradigmas em termos de uma retórica crítica que entende as tradi­ sem intermediação do clero, colocou em questão a interpretação dog­
ções e os textos bíblicos como uma herança viva. Tal herança não legi­ mática dos textos, mas também colocou o problema da compreensão e
tima a opressão patriarcal, mas tem a capacidade de promover práticas interpretação dos textos bíblicos, estes, muitas vezes, contraditórios e/
libertadoras de comunidades de fé. Por exemplo, Gn 2-3 nos mostra a ou obscuros. Nesta perspectiva, a exegese bíblica, no protestantismo,
vontade de Deus para com a nossa sociedade - uma sociedade de igual­ tendeu a olhar os textos não como princípios teológicos, mas como res­
dade, de mutualidade dos seres humanos. Estes textos nos defrontam postas a situações históricas e sociais. Daí a busca da clarificação dos
com uma crítica daquilo que chegamos a ser - uma sociedade que opri­ escritos, comparando-os às práticas dos cristãos contemporâneos aos
me e exclui mulheres, tomando-as quase invisíveis na tradição bíblica. textos. É neste sentido que se desenvolve uma exegese bíblica não res­
Gn 2-3 faz a observação de como o que Deus pretendeu fazer foi frus­ trita ao texto, mas também do contexto. Acentua-se, nesta busca, um
trado pelo pecado humano, mas a preservação no texto da vontade divi­ “entendimento empático”, em que o leitor se projeta ou se coloca no
na de igualdade possibilita uma crítica de gênero. espaço do autor.
Falar de uma Hermenêutica de Gênero recoloca alguns proble­
Bibliografia mas, sendo um;' primeira questão a de quem escreveu esses textos bíbli­
cos. Do ponto de vista de gênero, de modo gerai, os textos bíblicos são
Phyllis Trible, God and the Rhetoric o f Sexuality
escritos ou atribuídos a homens, os quais falam ou botam as palavras na
The New Jerusalem Biblical Commentary. boca das mulheres. As falas mesmas das mulheres parecem ficar subs­
Elisabeth Schiissler Fiorenza, But SH E Said, Sharing H er Word, In M emory o f critas, estão presentes, porém explicitamente ausentes. Neste sentido, os
Her. textos expressam uma cultura, uma visão de mundo próprias da sua época,

42 43
reproduzindo também as suas relações de gênero e seus conflitos.
Uma segunda questão é a de como colocar-se no lugar do autor,
quando nos encontramos em um “outro mundo”, processo que é impos­
sível, pois para colocar-se no lugar do outro é impossível se desfazer do
nosso mundo, das nossas interrogações e valores. Daí que a interpreta­
Gênero e Hermenêutica Feminista:
ção é sempre uma releitura dos textos a partir de um outro lugar, de dialogando com definições e
situações e valores de quem interpreta e que não são apagáveis. Não buscando as implicações
existe uma única interpretação de uma verdade do texto, mas é sempre
uma reconstrução e uma reescritura do texto, em que se estabelece um
“diálogo”entre o hoje e o ontem. A questão de gênero está presente on­ Elaine G leci Neuenfeldt
tem e hoje, porém, ao falar-se de uma Hermenêutica de Gênero, pressu­
põe-se uma releitura, uma reescrita do texto a partir desta perspectiva
com o entendimento que hoje fazemos desta questão. São nossas as per­
guntas que fazemos aos textos e as respostas também serão nossas a 1.1 - Gênero
partir de um pressuposto comum, a presença de Deus na vida.
Se a interpretação é própria de cada situação, a partir das experi­ ^^dem os conceituar gênero como todas aquelas características
ências vividas, implica a diversidade e não uma única verdade do texto, que são atribuídas às mulheres e aos homens as quais não são biológi­
mas também o diálogo entre essas diferentes reconstruções. cas. São realidades históricas construídas, que definem no âmbito cultu­
As nossas preocupações são outras, não é só querer encontrar nos ral e social o que significa ser mulher e ser homem. As realidades bioló­
textos respostas para nossas perguntas, a partir de uma visão de gênero gicas das mulheres, ou seja, o que é natural e nasce com elas, são exclu­
do nosso tempo. E neste sentido que vejo as várias versões de um mes­ sivamente a capacidade de ser mãe, de dar à luz, de amamentar, a dife­
mo fato, de uma mesma tradição, na própria Bíblia, onde os fatos são rença hormonal e a conformação específica dos órgãos genitais. Con­
(re)contados de formas diferentes em vista das novas situações. cordamos com Joan Scott quando afirma que “gênero é um elemento
Entendemos, assim, que falar de Hermenêutica de Gênero é par­ constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas
tir das questões e preocupações atuais e fazer uma releitura que é tam­ entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às
bém (re)escrever o texto. Uma Hermenêutica de Gênero passa, também, relações de poder.”
por uma discussão do respeito e pela promoção da dignidade do outro. Gênero é uma categoria relacional. Para entender o gênero femi­
Promover entendido no sentido de respeitar as diferenças e que necessa­ nino é necessário conhecer o masculino e o que se entende por feminili­
riamente tem também uma dimensão política. Neste sentido, isto impli­ dade e masculinidade em cada cultura ou sociedade. Essas definições
ca estudar, revelar e superar os elementos culturais que interferem nega­ são aprendidas no processo de socialização, onde os papéis são
tivamente nesse processo. construídos a partir do que a sociedade considera característica de mu­
lher ou de homem.
Muitas vezes, a categoria “gênero” é usada para substituir a pala­
vra “mulher”. Em instituições, trabalhos científicos, acadêmicos com o
afã de usar categorias que estão na “moda”, simplesmente a palavra
“mulher” é transcrita por “gênero”. Este é um erro que traz sérias conse­
qüências no processo de visibilização e libertação de mulheres e ho­
mens. Usando o termo “gênero” como sinônimo de “mulher”, até se
alcança certa visibilização das mulheres, no entanto, isto se dá no senti­
do de agregar as mulheres às estruturas e conceitos tradicionais, mascu-

44 45
onde se dão as decisões consideradas importantes para a sociedade. Este
linos, patriarcais. Esse uso unilateral do conceito “gênero”, fruto do âmbito é “fechado” para a participação das mulheres, ou, se se dá, terão
pragmatismo, traz como conse-qüência uma tendência reducionista do que adaptar-se às regras e normas patriarcais. Ao mesmo tempo, o âm­
conceito, permanecendo no âmbito patriarcal, sem provocar verdadei­
bito privado, doméstico é o “lugar” das mulheres. Este espaço carece de
ras transformações no pensamento e nas ações. Essa situação é vista poder político, pois as decisões que aí se tomam não são consideradas
como uma concessão às mulheres, feita pelos homens, tomando-as em importantes e relevantes para a sociedade. E mais fácil que as mulheres
conta, nomeando-as, ganhando e gastando recursos em nome delas. Com ocupem o espaço público, ainda que “adaptando-se” às regras masculi­
essa equivocação se omitem o conteúdo relacional e a perspectiva histó­
nas, do que o espaço privado ser concebido como político ou ocupado
rica do conceito “gênero”, querendo integrar um caráter de cientificidade, pelos homens. O desafio é politizar a vida privada, entendendo-a como
desagregando, porém, o componente político do feminismo. lugar de decisões importantes para a vida das pessoas. E na privacidade
De forma semelhante, outro uso inadequado do conceito “gêne­ do lar, da família, na cotidianidade que se experimenta a desigualdade
ro” é a simples substituição pela palavra “sexo”. Esse uso faz com que
entre os gêneros.
as características biológicas sejam determinantes na construção da iden­
A perspectiva de gênero
tidade feminina ou masculina. E, assim, as desigualdades sociais entre
homens e mulheres são entendidas como fruto de situações pessoais e critica a concepção androcêntrica de humanidade que deixou fora a
não estruturais. Com esses usos, a categoria “gênero” até introduz um metade do gênero humano: as mulheres... tem como um de seus fins
novo tema, mas não consegue questionar e mudar os paradigmas histó­ contribuir para a construção subjetiva e social de uma nova configura­
ção a partir da ressignificação da história, da sociedade, da cultura e da
ricos de construção de conhecimento. Restringe-se ao caráter descritivo
política desde as mulheres e com as mulheres... reconhece a diversidade
e é usada para tratar dos assuntos relacionados com as mulheres.
dos gêneros e a existência das mulheres e dos homens, como um princí­
Com a categoria gênero pio essencial na construção de uma humanidade diversa e democrática.
diferenciam -se as características das pessoas da estrutura da sociedade
na qual as mesmas interagem, o que permite captar como a estrutura da
1.3 - Estereótipos de gênero
sociedade propicia a construção da identidade das pessoas. Esse con­
ceito perm ite isolar o peso que tem uma estrutura social sexista na de­ O que se define como estereótipo de gênero são as expectativas
terminação da situação social das pessoas e na construção de sua iden­ construídas pela sociedade, portanto culturais e históricas, sobre as ações
tidade.
correspondentes a cada gênero. São as características femininas, atribu­
ídas às mulheres e as masculinas, atribuídas aos homens. “São constru­
1.2 - Perspectiva de gênero ções irreflexivas que pré-julgam as qualidades que têm as mulheres e os
homens.” Esses estereótipos mudam de acordo com cada cultura na qual
A perspectiva de gênero serve para a análise da realidade social são construídos e são transmitidos e aceitos pelo grupo social mediante
de homens e mulheres, suas relações, tomando-as como realidades polí­ a repetição, no processo de socialização. À menina vai-se ensinando
ticas, social e historicamente construídas, não como frutos do azar ou desde pequena o que é permitido e o que é proibido para sua condição
“naturalmente” dadas. A perspectiva de gênero é um elemento básico e de gênero. Da mesma forma ao menino são transmitidas as informações
ordenador da realidade social, com a qual mulheres podem expressar sobre a sua masculinidade. Esses conceitos sobre o ser feminino e mas­
suas visões, visibilizar suas ações, tomando-se protagonistas de sua his­ culino incluem as roupas, os brinquedos, até atitudes e comportamentos
tória. que devem ter de acordo com o seu sexo. Os estereótipos de gênero
Através dessa categoria de análise, o âmbito privado, relegado às justificam as desigualdades entre homens e mulheres.
mulheres, pode ser analisado desde a perspectiva política, desde as rela­
ções de poder. Essa divisão entre esferas privadas e públicas se dá na
sociedade organizada de forma sexista (com o agravante de ser capita­
lista). A esfera pública está destinada aos homens e é dotada de poder,

47
46
1.4 - Hermenêutica feminista ram, mas no poder e capacidade de reconhecer as suas ações, quer se­
jam boas ou más.
O processo hermenêutico se dá entre duas realidades: a do texto e Essa igualdade não é experimentada no cotidiano. Este é vivido
a da pessoa intérprete. A hermenêutica acontece no diálogo entre estas em contradições e ambigüidades e como tal serve de ponto de partida
duas partes: entre intérprete e texto. A pessoa intérprete já tem suas for­ para a hermenêutica feminista. Apropriar-se desse cotidiano exige tam­
mulações prévias determinadas pelo contexto histórico no qual vive. O bém um método que realmente possibilite a aproximação à vida, aos
texto também é construído dentro de uma realidade histórica, para desejos, à experiência das mulheres. Esse método deve ser participativo,
confirmá-la, contestá-la ou questioná-la. Estas duas realidades entram buscando gerar novas formas de conhecimento da realidade não só indi­
em diálogo no processo de interpretação. É nesse sentido que a experi­ vidual, mas coletiva. É um método que tem um compromisso ético de
ência das mulheres entra como ponto de partida para a hermenêutica unir o afetivo e o racional, que trabalha com transparência os processos
feminista. de convivência, onde a experiência é dinâmica e histórica.
A experiência das mulheres é marcada pelas diferenças biológi­
1.5 - Experiência das mulheres cas e pelas construções genéricas. A teoria de gênero auxilia para enten­
der que essas construções genéricas que geram desigualdades não são
O ponto de partida para a hermenêutica feminista é a experiência “naturais”, que não se nasce feminina/o ou masculina/o, mas que, num
das mulheres. Isso quer dizer que o cotidiano das mulheres é o lugar processo histórico, cultural, se aprende a formar a identidade. Com o
privilegiado para a interpretação de textos, de mundos, de escritos e da instrumental de gênero se possibilita desmistificar e se dá o poder de
vida. Interpretar é posicionar-se, o que também está condicionado ou questionar essas diferenças que se transformam em desigualdades. Ela
moldado pela realidade na qual se vive. clarifica a contradição existente entre a identidade imposta, construída e
Com a chave hermenêutica da experiência estão aliados dois prin­ a que realmente se vive no cotidiano. Portanto, se são características
cípios que são fundamentais na convicção feminista: o princípio da igual­ construídas e aprendidas nos processos de socialização, são passíveis de
dade e o princípio da reciprocidade. A igualdade afirma que homens e mudanças. Esta é a contribuição específica do instrumental das relações
mulheres são plenamente humanos e devem ser tratados como tais; en­ de gênero à hermenêutica feminista.
quanto que a reciprocidade indica que são interdependentes e autôno­ Na re-leitura ou interpretação bíblica promovida na América La­
mos ao mesmo tempo. tina, impulsionada e ao mesmo tempo impulsionadora da Teologia da
Esse princípio da igualdade não busca as referências nas teorias Libertação, o critério da experiência já é conhecido e aplicado. O que é
liberais de igualdade de oportunidades, que até podem eliminar barrei­ inédito na hermenêutica feminista, como método da Teologia Feminista
ras mas não garantem o acesso igual aos benefícios. As necessidades e é que a experiência das mulheres é a fonte do fazer teológico, sem a
os desejos também são construídos social e culturalmente. Permanecem pretensão de ser universal. A hermenêutica feminista assume sua
na lógica liberal de que, uma vez garantido o acesso, o poder de usufruir especificidade e sua parcialidade com a certeza de que é desde este lu­
e desfrutar está garantido. Um exemplo é o da educação: com a liberda­ gar específico que é construída a sua interpretação e que é para dentro
de de ingressar nas universidades de forma igual, tanto para homens e deste espaço que devem ser lidas suas afirmações.
mulheres, ainda não está garantido que mulheres realmente sintam o Nesse sentido, tampouco é possível generalizar as experiências
desejo e estejam conscientes da necessidade do estudo, pois são das mulheres como princípio fundante da hermenêutica feminista. Estas
construídas histórica e culturalmente para estar relegadas ao lar, onde o devem ser entendidas nas suas múltiplas variações e coloridos. Cada
estudo não é visto como imprescindível. É necessário redefinir a liber­ grupo de mulheres, cada cultura, cada organização produz a sua experi­
dade não como a simples ausência de empecilhos, mas onde a pessoa/ ência específica. Enfim, cada pessoa, cada mulher, cada corpo é um
sujeito se reconhece em suas ações e atitudes e ao mesmo tempo as lugar único e inédito. Estas nuanças e pluralidade são o que conformam
reconhece como suas. Para as mulheres isso significa que a liberdade e o que se chama de ponto de partida para a reflexão hermenêutica femi­
a igualdade são efetivas não pela quantidade de obstáculos que elimina­ nista. É a partir de cada corpo de mulher que tem a sua experiência com

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o sagrado, que vive a experiência do divino na sua corporalidade, que se 1.6 - Hermenêutica feminista e autoridade
faz a hermenêutica e teologia feminista. das Escrituras
Pamela D. Young aponta para cinco vias ou caminhos para falar
da experiência das mulheres, as quais podem ajudar a clarificar o que O feminismo questiona e quer desconstruir a normativa imposta
significa usar esse paradigma para a hermenêutica feminista: uma pri­ pelo sistema patriarcal, androcêntrico e sexista de que o modelo para
meira via é a experiência corporal das mulheres - que será mais detalha­ interpretar e produzir conhecimento é o homem. Neste sentido, na teo­
da neste trabalho no ponto sobre “corpo, sexualidade e poder”. O se­ logia feminista, a hermenêutica feminista
gundo caminho para falar da experiência das mulheres é a socialização. avalia criticamente o corpo literário considerado normativo e aceito pelas
Esta é o processo de aprendizado sobre o que diz a cultura sobre o que é instituições religiosas e educativas, como por exemplo a Bíblia e os
ser mulher. A identidade feminina é definida por homens, pois na soci­ escritos dos pais da Igreja. (...) questiona o próprio processo de seleção
edade patriarcal é a eles que é dado o poder de nomear. Nesse âmbito as que reflete uma seleção dos textos que privilegia a atuação dos homens
mulheres são definidas como cuidadoras, protetoras, sensíveis, não agres­ e que, acima de tudo, limitam a possibilidade de uma atuação mais
sivas e próprias para atuar no mundo privado, não público. Aqui é onde participativa por parte da mulher também na atualidade.
se aprendem os valores cristãos tradicionais. A experiência feminista
Questionar a Escritura Sagrada pode parecer uma atitude extre­
das mulheres é um terceiro momento. Este é o momento onde as mulhe­
mamente presunçosa da hermenêutica feminista. Afinal, como ousar
res tomam para si o poder de nomear. É quando a busca por ser plena­
colocar em tela de juízo um escrito de valor universal, inspirado divina­
mente humanas é experimentada. Neste momento se apresentam a críti­
mente e que resiste por anos a críticas, a questionamentos e interpreta­
ca, o questionamento e a desconstrução dos valores cristãos tradicionais
ções? No entanto, a ousadia é necessária nessa empreitada. O atrevi­
aprendidos na socialização. Num quarto caminho para entender a expe­
mento e a coragem de discordar, o que implica tomar para si o poder de
riência das mulheres está o resgate da memória histórica. Significa fazer
nomear, são um dos princípios da interpretação que tem como base a
memória do passado como história das mulheres, o que lhes é renegado
experiência das mulheres. O testemunho bíblico é colocado ao lado da
ou, quando é feito, está enquadrado nos parâmetros masculinos. Na te­
experiência de vida das mulheres, e, ao ser questionado desde essa ex­
ologia, este momento resgata a produção teológica das mulheres. Como
periência e ao mesmo tempo iluminá-la, é que se vai estabelecer o crité­
quinto momento está a experiência individual ou pessoal das mulheres,
rio de “validade” ou “aplicabilidade”, que ao fim quer dizer veracidade.
que significa o conjunto de vivências cotidianas, de pequenas ações,
atos que vão conformando a integralidade da vida. O que se pode acreditar é aquilo que fomenta o que é estabelecido como
critério de verdade para um determinado grupo humano. Enfim, o que é
Quando se define a experiência das mulheres como ponto de par­
verdade para um grupo depende sempre de seu contexto, de seu meio.
tida para a hermenêutica feminista, não se está propondo uma interpre­
Essa formulação deve ser tomada com o devido cuidado, pois existe o
tação paralela à oficial, nem se quer simplesmente agregar a esta a inter­
perigo de querer justificar e usar o testemunho bíblico para fundamentar
pretação feita por mulheres. O que realmente se propõe é uma
verdades próprias, fechadas e inquestionáveis. Não! Não é esse o pro­
desconstrução de toda interpretação androcêntrica e patriarcal, que quer
pósito. Mas o que se quer clarificar é que existem pressupostos e con­
ser universal e neutra. Neste sentido, a organização patriarcal da socie­
vicções que são básicas, que tudo o que as contradiz irá violentar a inte­
dade é o denominador comum que vai definir a experiência das mulhe­
gridade humana. O princípio divino da igualdade entre as pessoas hu­
res. Uma hermenêutica feminista deve tomar em conta e respeitar as
manas é um exemplo. Esse princípio, levado a sério em suas conseqü­
distinções individuais e culturais das mulheres, mas deve denunciar o
ências, só pode ser interpretado no sentido de que tudo o que fere ou
patriarcado como a ordem sexista e androcêntrica que limita, oprime e
danifica a plena humanidade das mulheres não é divino. As tradições
explora as mulheres. A hermenêutica feminista tem o papel fundamen­
religiosas, e aqui entra a história da tradição bíblica, só têm veracidade
tal de denunciar essa construção nos textos sagrados e na longa história
na medida em que respondem às exigências da razão e aos gritos do
da tradição, onde a interpretação é tão ou às vezes mais patriarcal que na
própria Escritura. coração, quando conseguem dar respostas ao sentido da vida humana.

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1.7 - Corpo, sexualidade e poder
Para a hermenêutica feminista a corporalidade é um aspecto fun­
O corpo é a realidade primeira com a qual as pessoas se relacio­ damental que define a experiência das mulheres. Para tomar o corpo como
nam com o mundo. É no corpo onde se manifestam as relações desi­ lugar de revelação e manifestação do divino e, portanto, como ponto de
guais entre os gêneros. É o corpo que sofre a violência, física, psicológi­ partida da interpretação feminista, é necessário diferenciar entre as expe­
ca ou sexual, e é ali onde as marcas da violência da identidade imposta riências biológicas e as reações construídas cultural e socialmente a essas
ficam marcadas. A organização da sociedade em desigualdade genérica expressões corporais. Mulheres menstruam, têm menopausa, algumas
tem os corpos como lugar habitado. O corpo é biológico, tem funções engravidam, ou seja, têm diferentes relações com os seus corpos. Esta
que são recebidas desde o nascimento. Corpo que pare, que amamenta, experiência corporal, quando usada como recurso no fazer e interpretar
que tem vagina, seios; ou corpo que tem pênis, que ejacula, que produz teológico, fornece a relação e interconexão do ser humano com o todo,
sêmen; sem embargo, também o corpo é produto histórico, construído e com o mundo natural. Pode ser fonte de novos paradigmas na linguagem
definido socialmente. A função e a compreensão do corpo são definidas dando acesso às expressões, aos gestos, aos sentimentos.
culturalmente: que este corpo que tem seios, útero e vagina, que ama­ Segundo Marcela Lagarde, uma das categorias da teoria de gêne­
menta e pare deva ser mãe para cumprir com sua função. Isto é defini­ ro é a condição de gênero. A condição de gênero feminina se refere ao
ção e construção cultural do biológico do corpo humano. conjunto de características de vida atribuídas ao corpo sexuado da mu­
lher. O eixo central da condição de gênero feminino é a sexualidade,
No centro da organização genérica do mundo, como sistema de poder
determinando a finalidade de sua existência. A especialização da sexu­
baseado no sexo, se encontra o corpo subjetivado. (...) Cada ordem de
gêneros desenvolve sua particular política corporal destinada a criar os
alidade das mulheres se dá em duas linhas: uma é a procriação, reprodu­
corpos que requer: são corpos históricos, construídos... ção de outros seres; outra é a satisfação das necessidades eróticas dos
homens. A sexualidade não é definida e vivida a partir da satisfação de
O corpo é gênero, ou seja, construído culturalmente pois tanto a ser mulher, mas, como estando em função de outros/as. Isto produz uma
voz, como a postura, os gestos, até as atitudes, os sentimentos, as con­ identidade cindida, fragmentada, que reduz os corpos das mulheres para
dutas, a capacidade de desenvolvimento, o desejo, o prazer ou não, tudo atender finalidades específicas, assumindo assim a dimensão de objetos
é definido de acordo com os modelos e estereótipos construídos para e não sujeitos de sua vontade.
cada gênero. O ato de falar ou não, falar suave ou forte, não vem deter­ Por sexualidade entendemos todos os sentimentos, pensamentos,
minado biologicamente, mas é aprendido de acordo com a cultura e comportamentos, fantasias, desejos das mulheres e homens. E uma con­
com a socialização. cepção integral da sexualidade, não só a partir do biológico e genital,
O corpo da mulher é associado com a natureza. É definido como mas que abraça todos os âmbitos da vida humana, dos sentimentos e
um corpo-para-outros. É corpo colonizado, propriedade de outros, vivi­ experiências. Essa sexualidade tampouco se restringe só à heterossexu-
do em função de outros. O controle do corpo das mulheres, o poder alidade, pois a riqueza de viver os sentimentos humanos não pode ser
exercido pelos homens sobre as mulheres, se dá com o controle de sua reduzida a uma forma de relação. A busca do prazer e a realização dos
sexualidade. Enquanto que o corpo do homem, o corpo masculino é o desejos estão enclausuradas numa construção patriarcal, ocidental, branca
paradigma da humanidade e como tal é fonte de poder, o corpo e a de exercer a sexualidade. A capacidade desejante da pessoa e a conse­
sexualidade das mulheres são construídos a partir desta concepção e qüente realização do desejo fazem desta um sujeito histórico, protago­
paradigma patriarcal. A sexualidade das mulheres é considerada natu­ nista de sua vida. O desejo e a realização ou prática deste são fonte de
ral, determinada biologicamente, fora da história, e a do homem é con­ poder.
siderada incontrolável, como fonte de poder. A forma como os homens
O sujeito é o indivíduo humano capaz de fazer, transformar, pensar,
exercem e praticam sua sexualidade é justificativa para a violência, o
desejar. Passar da posição de objeto à posição de sujeito requer refletir
estupro contra as mulheres, mas também contra outros homens (homos­
sobre os desejos e necessidades. A transformação das condições social
sexuais ou não).
e pessoal vai necessariamente acompanhada ou precedida por uma trans­
formação nos desejos.

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cesso de constantes mudanças que se constrói a identidade das mulheres
A vivência da sexualidade pelas mulheres está relacionada com a
e também dos homens. É essa constante transformação, de ir se moldan­
distribuição do poder social. Poder significa a arte de fazer. O poder não
do à realidade, adaptando-se ao contexto, que faz com que as pessoas se
é algo palpável, que se tem ou não, mas é algo que se exerce ou não.
tomem sujeitos protagônicos.
Poder é ação, é verbo. Não se pode enclaustrar o poder ou apropriar-se
dele, mas se pode exercitá-lo, tendo maior ou menor acesso aos meca­
nismos de relação de poder. Neste sentido, o gênero, como um “conjun­
to de referências que estruturam a percepção e a organização concreta e B ibliografia
simbólica de toda a vida social”, estabelecem a distribuição do poder,
1 BRANDÃO, M argarida Luiza Ribeiro. Gênero e experiência das mulheres.
determinando quem tem acesso ou não, quem exerce ou não, ou como é
In: ANJOS, M areio Fabri dos. Teologia aberta ao futuro. São Paulo : Soter,
construído e concebido o poder.
Loyola, p. 155-165.
A não vivência ou o não exercício da sexualidade de uma forma
integral, assim como se define atualmente na sociedade patriarcal, é 2 DEIFELT, W anda. T eoria fem inista y m etodologia teológica. Vida y
nomeada por Lagarde como o cativeiro das mulheres. Pensamiento, v. 14, n. 1, p. 9-14, 1994.
3 FACIO, Alda. Cuando el género suena, câmbios trae : m etodologia para el
Cativeiro é a categoria antropológica que sintetiza o fato sociocultural
análisis de género del fenómeno legal. Caracas : GAIA, M ediateca de las
que define o estado das mulheres no mundo patriarcal: se concreta po­
M ujeres, 1993.
liticamente na específica relação das mulheres com o poder e se carac­
teriza por sua privação da liberdade e seu débil poderio. 4 FARLEY, M argaret A. Conciencia feminista e interpretación de la Escritura.
In: RUSSEL, Lety M. (Org) Interpretación fem inista de la Biblia. Bilbao :
A vivência de uma sexualidade integral, de desejos definidos a Desclee de Brouwer, 1995. p. 49-62.
partir das necessidades das mesmas mulheres, do colocar em prática
5 FIORENZA, Elizabeth Schussler. As origens cristãs a partir da mulher :
estes desejos, significa uma forma de empoderamento das mulheres.
uma nova hermenêutica. São Paulo : Paulinas, 1992. p. 9-132.
“Empoderar” é um neologismo criado para expressar essa idéia de que
o poder é exercitado num processo. As mulheres vão ocupando e to­ 6 _. Quebrando o silêncio: a mulher se torna visível. Concilium, Petrópolis :
mando para si o exercício do poder. Empoderar significa então abrir Vozes, 202, n. 6, p. 8-23, 1985.
novas possibilidades, significa abrir portas antes nunca abertas, que têm 7 La voluntad para elegir o para rechazar : continuando nuestro trabajo crí­
impedidas o acesso para as mulheres. Com o processo de incorporar (in tico. In: RUSSEL, Lety M. (Org.). Interpretación fem inista de la Biblia.
corpo rar) o poder, se conquista a autonomia e, com ela, a capacidade Bilbao : Desclee de Brouwer, 1995. p. 149-163.
de exercer a liberdade. Isso tem implicações de espaço e de tempo: sair 8 GEBARA, Ivone. Hermenêutica bíblica feminista. A Palavra na vida, São
de casa, do mundo doméstico, privado implica entrar num outro mun­ Leopoldo : CEBI, p. 59-67, 1994.
do, desconhecido, o que requer o tempo necessário para reconhecer este 9 IZQ U IE R D O , M aria Jesús. A guantando el tipo: desigualdad social y
novo ambiente como seu. Esse movimento reclama a construção da pró­ discriminación salarial. Las luchas de las trabajadoras de “Jaeger” y “Puig”.
pria identidade, de pensar a si mesma como sujeito, de reconhecer o seu In: M ódulo: Aspectos estructurales de la desigualdad social de los gêneros -
corpo, com auto-estima. M aster en Relaciones de Gênero. Barcelona, 1998. p. 8-100.
A partir dessa visão ressignificada do corpo e da sexualidade é 10 LAGARDE, Marcela. La identidad de género. M anagua: Cenzontle, 1992.
possível reinterpretar a identidade de mulheres cristãs com novos p. 19-26.
paradigmas.
11 _. Gênero y fe m in ism o : desarrollo humano y democracia. M adrid : Horas y
Outra forma de contrapor-se o mundo patriarcal que promove a
Horas, 1996.
inimizade e competição entre as mulheres é a vivência da sororidade,
que Lagarde define como a aliança, a coalizão entre mulheres, que sig­ 12 MARTIN, Francis. The Feminist Question : Feminist Theology in the Light
of Christian Tradition. Michigan : William B. Eerdmans, 1994. p. 199-220.
nifica a transgressão política dessa organização masculina patriarcal. A
experiência de tomar-se sujeito se vive como processo, e é nesse pro­

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13 RUETHER, Rosemary Radford. Interpretation feminista: un método de
correlación. In: RUSSEL, Lety M. (Org.). Interpretación fem inista de la
Biblia. Bilbao : Desclee de Brouwer, 1995. p. 133-148.
14 _. Sexismo e religião. São Leopoldo : Sinodal, 1993. p. 18-45, 178-194.
15 RUSSEL, Lety M. Autoridad y el desafio de la interpretación feminista. In:
Reflexões de uma “irmã de Lídia”
RUSSEL, Lety M. (Org.). Interpretación fem inista de la Biblia Bilbao ■ Considerações, questionamentos
Desclee de Brouwer, 1995. p. 165-176.
e sonhos a respeito do Método
16 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade, v. 10, n. 2, p. 5-22, 1990. “Sócio-Histórico Feminista”
17 YOUNG, Pamela Dickey. Feminist Theology/Christian Theology, in Search e da leitura do CEBI
o f Method. M inneapolis : Fortress, 1990. p. 49-69.
M ônica Ottermann

^ Teologia que estudei nos anos setenta na Alemanha e em


Jerusalém era de cunho bastante acadêmico, mas, como fruto da minha
antiga paixão pela Bíblia, sempre questionada e orientada pela exegese.
Só que esta exegese, por seu lado, também era aquela acadêmica do
método histórico-crítico, com as suas características típicas da pesquisa
protestante e católica da Alemanha. Ela recebeu, porém, os seus primei­
ros elementos mais vivos e voltados para a vida através de longos anos
de vivência e estudos na Palestina, em Israel - na própria Terra da Bí­
blia.
Tudo isso passava-se ainda sem tomar muito conhecimento da
Teologia da Libertação latino-americana. “Descobri” esta teologia ape­
nas em meados dos anos oitenta, juntamente com outros movimentos
libertadores no contexto da Alemanha (feminista, de não violência), e
ela revolucionou a minha vida: comecei a me preparar para vivê-la con-
cretamente, na prática, no Brasil. E, como não podia ser diferente, a
Teologia da Libertação em geral me levou à descoberta de seu jeito
específico de ler a Bíblia. Prontamente me apaixonei pela leitura bíblica
do CEBI, e tive a graça de poder ter feito desta paixão o conteúdo prin­
cipal da minha vida pessoal e sobretudo profissional.
Mas assumir verdadeiramente a ótica da leitura bíblica libertadora-
popular era e está sendo para mim um processo de conversão, um desa­
fio constante de refletir sempre de novo sobre os conceitos acadêmicos
que aprendi, as posturas e costumes que adquiri, e de deixar que essa
ótica me liberte e me faça um pouquinho mais libertadora...
Esse processo de rever, corrigir, descartar e substituir muitas das
antigas aprendizagens e descobertas, de procurar, aprofundar e criar

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novas, exigiu bastante do meu tempo, da minha energia (também da ças). No trecho central que apresenta o método sócio-histórico feminis­
energia emocional!), e somente aos poucos abriu-se um espaço para in­ ta, ela escreve o seguinte:
tegrar uma leitura bíblica mais especificamente feminista, uma leitura “Existe uma ligação entre opressão das mulheres e opressão dos
na perspectiva do gênero. Hoje em dia sinto que esse processo de pobres. São as mesmas pessoas e estruturas que impõem esta opressão.
integração, junto com outros fatores, me levou a uma posição e atitude Eu acho o termo “patriarcado” apropriado para captar essa conexão es­
que pode ser chamada de ecofeminismo. Mas sinto também que, nessa trutural. Nisso entendo patriarcado primeiramente não como domínio
caminhada, tenho ainda muito chão pela frente... de homens nem domínio de pais, embora a maioria das pessoas que
No início da minha procura de uma leitura feminista integrada na causam essa opressão sejam homens e pais.
leitura do CEBI em geral, por volta de 1995, fiquei muito empolgada ... Quem é, então, o patriarcado? São os muitos homens e poucas
com um livro de Luise Schottroff, uma teóloga feminista alemã: “As mulheres da elite que direta ou indiretamente exploram pobres e têm o
Irmãs Impacientes de Lídia : História Social Feminista do Cristianismo casamento patriarcal como coração da sociedade (e do Evangelho) e
Primitivo” (2. ed. Gütersloh, Alemanha 1996, 1. ed., 1994). Assimilei impõem as respectivas leis, etc. São as muitas mulheres e poucos ho­
em grande parte o conceito de sua leitura feminista. É principalmente a mens que sofrem com esse sistema, mas o apóiam e colaboram com
grande proximidade das duas leituras, a do CEBI e a da Luise, que me ele” (pp. 37/38).
facilitou essa assimilação do método praticado por ela: o método da Portanto, o termo de luta “patriarcado”, que, em geral, é entendi­
leitura “sócio-histórica feminista”. do apenas como dominação de homens sobre mulheres, é entendido
Estou com dúvidas se a tradução não seria simplesmente “leitura nesta teoria como designação ampla “de sociedades que, através da con­
sociológica feminista”, mas sinto que a tradução literal mostra melhor o junção de racismo, classismo e sexismo, militarismo, exploração da
enfoque na pesquisa das situações sociológicas que marcaram a vida da natureza e outros aspectos parciais, são estruturadas nessa estrutura de
qual fala a Bíblia ao longo da história. violência” (p. 39).
Quero apresentar aqui o conceito e as idéias básicas do método Esse entendimento mais amplo do “patriarcado” chegou a ser de
sócio-histórico feminista, já que o trabalho da Luise ainda não foi tradu­ fundamental importância para mim, na procura de uma hermenêutica
zido para o português. Sinto que isso ajuda a entender melhor a minha feminista no âmbito da opção pelos pobres, da leitura popular da Bíblia,
atual percepção dos desafios a respeito de uma leitura feminista e uma porque ele permite mostrar o interesse comum de mulheres e homens
leitura na perspectiva de gênero no âmbito do CEBI, a partir da teoria (dominadas/os, naturalmente) dessa vertente da ótica feminista e o be­
(elementos de leitura feminista que fazem parte das minhas ferramen­ nefício amplo de sua aplicação.
tas) e principalmente a partir da minha prática, sobretudo da prática nas Para poder superar o patriarcado assim entendido, é necessário
Escolas Bíblicas das quais eu participo como coordenadora ou assessora. analisá-lo sobretudo a respeito da maneira pela qual ele se impõe: é
necessário analisar os seus Instrumentos de Dominação.
* O mais poderoso entre esses instrumentos talvez seja a auto-
O Método Sócio-Histórico Feminista em geral apresentação do patriarcado e sua autolegitimação como organismo har­
monioso: encontramos esta ideologia tanto na Antigüidade, por exem­
A base hermenêutico-histórica do método sócio-histórico femi­
plo em textos romanos como os de Cícero, quanto nas propagandas e
nista encontra-se na História Social Feminista, i.e., numa pesquisa e aná­
lise da história que enfocam o aspecto da sua situação social, e que nos discursos do patriarcado contemporâneo.
* Um outro instrumento poderoso é o androcentrismo. No âmbi­
fazem isso a partir da ótica feminista. Fundamental para esta análise é o
to do Método Sócio-Histórico Feminista, também este conceito é am­
conceito do Patriarcado e da Opressão Patriarcal. O grande mérito do
pliado, em conseqüência da ampliação do termo “patriarcado”. Luise o
trabalho da Luise é ter ampliado o sentido costumeiro deste conceito.
entende como “kyriocentrismo”: “O movimento feminista mais recente
Para ela, “patriarcado” é a chave para entender e criticar não apenas a
trava uma luta expressa contra a linguagem injusta, porque a linguagem
relação entre os gêneros, mas também entre as classes sociais (e as ra­
injusta foi descoberta como meio de dominação das situações sociais

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injustas do patriarcado. A linguagem, através de sua injustiça, pode tor­ tem que ser resgatada, muitas vezes, contra as fontes. O método históri­
nar pessoas invisíveis, tomá-las grupos marginalizados ou violentá-las co do movimento feminista é o de uma história social feminista. A his­
de outra forma. Possessores da dominação patriarcal erguem muros tória das mulheres tem que ser pesquisada. A historiografia feminista
lingüísticos nas linhas dos seus interesses de dominação. Esses muros fica fragmentária quando não pergunta pela opressão da mulher e pela
lingüísticos do androcentrismo tomam mulheres e crianças invisíveis prática e libertação sob as condições sociais concretas das situações eco­
ou meros apêndices. Esses muros obrigam os/as usuários/as da lingua­ nômicas, políticas e sociais.” (p. 77).
gem androcêntrica a esquecer as pessoas dominadas, a julgá-las secun­ Por isso, uma interpretação sócio-histórica feminista pretende
dárias ou a caçoar delas. O mundo aparece como mundo dos senhores. refletir histórica e teologicamente sobre questões de gênero juntamente
Com meios lingüísticos nega-se também o resultado do trabalho de com questões da justiça social, refletindo os dois contextos sociais - das
mulheres e homens, e esconde-se a escravização de pessoas humanas. pessoas que falam na Bíblia e das pessoas que a interpretam hoje.
Em am pliação do term o fem in ista ‘an d ro cen trism o ’ falo de Neste ponto devemos esclarecer a relação entre o Método Sócio-
‘kyriocentrismo’ (centrismo nos senhores - não cristo-centrismo, Cristo Histórico Feminista e o Método Histórico-Crítico. Esta relação é marcada
como Kyrios, Senhor), de acordo com a minha visão do patriarcado. Ao pela crítica de que o método histórico-crítico não reflete sobre seus inte­
androcentrism o e k y riocentrism o da língua correspondem o resses e não os toma abertos, e que no fundo toma partido em favor da
androcentrismo e kyriocentrismo da historiografia e da antropologia (ou injustiça existente. Luise mostra isso através de alguns exemplos da
teologia)” (p. 57). exegese neotestamentária:
* Como terceiro instrumento fundamental de dominação patriar­ * É certamente um passo metodológico apropriado perguntar pelo
cal, Luise cita o sexismo e os estereótipos do feminino. A opressão se­ gênero literário de um texto e sua “situação vital” (Sitz im Leben), i.e.,
xista de mulheres, desde a Antigüidade até hoje, tem sido o instrumento de fazer a velha pergunta pela “história da forma”. Mas é preciso ques­
decisivo para sua dominação. São aspectos disso a imposição de estere­ tionar tais termos sobre as implicações teológicas e sócio-históricas li­
ótipos de gênero (o que seria feminino e o que masculino) e, em estreita gadas a eles. A “Crítica Histórica” entende, por exemplo, como “situa­
ligação com isso, a dominação patriarcal sobre o corpo das mulheres ção vital” de um texto do NT em geral a comunidade cristã, e não per­
capazes de parir. gunta mais pela situação de vida da comunidade, i.e., pela situação soci­
Essa análise do patriarcado e seus instrumentos e mecanismos de al e política, pela importância de gênero, classe e raça. Mas sem estas
opressão que vale para a história em geral, em todos os seus aspectos, é perguntas que levam mais adiante, a identificação da “situação vital”
usada, de forma adaptada e especificada, na exegese. resulta numa imagem errada da comunidade, tanto mais quanto fique
sem reflexão a questão de onde vêm as imagens que concretizam a idéia
que se tem sobre essa comunidade.
O Método Sócio-Histórico Feminista
* Em narrativas de milagres, a identificação do gênero literário
na interpretação da Bíblia no Método Histórico-Crítico é orientada por um kyriocentrismo patriar­
No âmbito da leitura libertadora-popular da Bíblia, as chaves de cal não refletido. Isto o leva a concentrar toda a atenção apenas em Je­
hermenêutica feminista acima apresentadas devem ser aplicadas na sua sus. O Método Social-Crítico Feminista, contudo, desenvolve um mo­
interpretação sócio-histórica. O trabalho de Luise nos lembra que não é delo de análise que valoriza todas as pessoas presentes e suas relações e
qualquer interpretação sócio-histórica da Bíblia que, automaticamente, ações.
tem um efeito libertador: quando esta interpretação fica, no seu conteú­ * Na Teoria da Parábola, as teorias tradicionais mostram um
do, orientada pelas relações de poder dominantes, i.e., pelos conceitos dualismo de “imagem” e “coisa”, sem contato entre Deus e o mundo da
patriarcais, ela serve apenas para a preservação do status quo social. É vida, enquanto a questão decisiva na teoria da parábola é: “Como se
preciso integrar a ótica feminista: “A história das pessoas oprimidas é avalia teologicamente a ‘imagem’ da parábola numa teoria da parábo­
história oprimida - numa medida tão alta que a história das mulheres la?” Por isso, uma teoria feminista-libertadora (ou, neste sentido, sócio-
histórica) da parábola precisa, num primeiro momento, pôr novamente

60 61
os pés no chão. As parábolas falam da realidade social - também as rico feminista? Como ampliar, de forma feliz e construtiva, a nossa lei­
chamadas parábolas da natureza (as plantas são percebidas a partir da tura a partir da ótica dos pobres para uma leitura a partir da ótica das
perspectiva de pessoas humanas que precisam delas para a sua alimen­ pobres, também? Conseguimos, de maneira bastante profunda e coe­
tação). Nas parábolas é descrito e colocado de pernas pro ar o mundo de rente, desmistificar e desacreditar a leitura alienada e alienante da Bíblia
homens e mulheres diaristas, meeiros/as, escravos/as, grandes fazendei­ na ótica “dos opressores”. E ninguém no CEBI achará que a ótica “dos
ros e latifundiários. Por isso é necessário partir da pesquisa social-histó- oprimidos” seja apenas um aspecto facultativo da nossa leitura - temos
rica desse mundo. O que vale uma dracma, e o que significa que uma a consciência de que ela é a nossa opção básica. Mas ainda estamos
mulher que tem dez dracmas não pára de procurar pela dracma perdida? correndo o perigo de abraçar com esta opção apenas a metade das pes­
Para saber onde o Reino de Deus, na parábola, põe de pernas pro ar o soas oprimidas, por falta de atenção voltada para a ótica “das oprimi­
“costumeiro” (que deve ser a realidade da sociedade), é preciso fazer das”. Ou talvez melhor: por falta de um instrumental fácil, bem integra­
pesquisa social-histórica, para não ocorrerem erros graves. A pesquisa do, que possa sistematizar essa atenção. E ainda temos pouca consciên­
da realidade da sociedade nas parábolas precisa ser feita também por cia do fato de que a ótica “das oprimidas” também não pode ser um
homens, com uma aproximação feminista crítica ao patriarcado, não só aspecto facultativo da nossa leitura, que também ela teria que ser uma
para que a metade da humanidade não fique no escuro, mas também opção básica nossa.
para que não se crie um mundo de aparências ilusório no qual um diaris­ O sonho é: ajudar a fazer crescer essa consciência entre as asses­
ta alimenta também mulher e filhos/as com um denar. Na verdade, po­ soras e os assessores do CEBI, ajudar a pensar em formas e meios para
rém, a sua mulher precisava fazer trabalho mal remunerado para que ela uma melhor preparação dessas pessoas, seja em termos de método e
e os/as filhos/as pudessem viver. conceito, seja em termos de informações e conteúdos. Será que isto não
Portanto, é necessário usar certas ferramentas históricas que su­ deveria ser uma tarefa prioritária da Dimensão do “Gênero” dentro do
põem os aspectos de uma aproximação social-histórica feminista aqui nosso Programa de Formação?
descritos, integrando aos passos metodológicos costumeiros da análise A partir dessa preocupação e desse sonho, e tendo em mente o
literário-exegética a análise sócio-histórica, usando o conceito da “Crí­ método sócio-histórico feminista da Luise, quero elencar aqui alguns
tica do Patriarcado”. Isso vale tanto para detalhes do texto quanto para a questionamentos que eu gostaria de ver refletidos nos âmbitos do CEBI.
situação geral do povo de Israel, do movimento de Jesus e das comuni­ Este elenco não está muito sistematizado; é antes uma tempestade de
dades cristãs primitivas. idéias, a partir de questões que se tomaram importantes para mim, nos
últimos tempos, nas últimas assessorias que prestei ou presenciei.
* Na(s) primeira(s) etapa(s) de uma Escola Bíblica, a preparação
E daí - que importância tem isso para nós no CEBI?
do terreno exige a apresentação do sistema tributário, do sistema tribal,
Ou: a minha preocupação e o meu sonho... etc. Mas a questão da corvéia e da escravatura, por exemplo, são geral­
Quando digo “nós no CEBI”, penso em primeiro lugar nos/nas mente abordadas apenas a partir do trabalho do homem. Dificilmente se
assessores/as populares e nos/nas assessores/as que ajudam na forma­ fala sobre o trabalho forçado da mulher ou sobre a situação específica
ção destes/as. Penso bem concretamente nas nossas Escolas Bíblicas no da escrava que quase automaticamente significam violação sexual. Di­
Regional Tocantins-Araguaia, nas nossas Escolas Bíblicas para Jovens ficilmente se fala sobre a “exploração” da procriação no sistema
do Centro-Oeste, e nas instâncias de formação parecidas que conheço monárquico, sobre toda a questão da “prostituição” e da religiosidade
através do meu serviço de coordenação e assessoria. E sinto necessida­ popular (sobretudo feminina) ao lado do javismo... Não seria bom inte­
de de partilhar com vocês (seja quem for...) uma preocupação e um grar aqui a apresentação do sistema do patriarcado e completar a expo­
sonho que estou levando comigo há bastante tempo. sição dos sistemas tributário e tribal com informações sobre a situação
A preocupação é: como incentivar e intensificar (nos ambientes específica da mulher e da criança?
de formação descritos acima) uma leitura de gênero, de forma natural, * As chamadas “conjunturas” que costumamos expor na introdu­
integrada e não polêmica, por exemplo na linha do método social-histó- ção de uma determinada época bíblica tentam destacar a situação do

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povo oprimido dentro da descrição das respetivas situações históricas. da Bíblia” 2, de fácil acesso, chama essas moças inocentemente de “cri­
Não seria bom integrar aqui observações gerais ou fatos concretos a adas” - quase tem-se a impressão de estar lendo um classificado que
respeito da situação da mulher? procura empregadas domésticas. O ANET, porém, um livrão caríssimo,
* A nossa “leitura dos quatro lados” já ganha, às vezes, o quinto escrito em inglês, obra-base para textos do Antigo Oriente, fala nitida­
lado do “cotidiano” - não seria bom incentivar aqui a pesquisa da situ­ mente de “concubines”. Não consegui descobrir qual é a palavra origi­
ação específica da mulher e da criança? nal do texto, e se no acádico a palavra “ amtu” (a tradução honesta seria
* No conjunto dos textos habitualmente estudados, não seria bom “escrava” !) significa também “concubina”. Mas descobri que no hebraico
integrar (mais) textos que falam de mulheres ou da situação da mulher, isso não é o caso, e descobri sobretudo que toda a terminologia a respei­
ou fazer (mais) o exercício de aplicar uma chave feminista em determi­ to da “escrava” (e concubina, logicamente) tem suas conotações bem
nados textos? nítidas no sentido da procriação (quer dizer da exploração sexual), en­
* A “leitura feminista” é realizada, muitas vezes, de maneira um quanto a palavra para o “escravo” vem da raiz “trabalhar”. Isso me le­
pouco isolada. Lembro de exemplos da minha própria prática: um dia vou a uma série de reflexões sobre os limites do nosso conhecimento,
sobre “Mulheres nas primeiras comunidades” que assessorei na etapa sobre a nossa falta de informações a respeito dos aspectos mais básicos
Atos/Cartas Paulinas - que era assessorada em geral por outro assessor - destas realidades. (E nem o artigo do Carlos Dreher sobre “Escravos no
foi o ponto alto da etapa, mas essa abordagem de leitura feminista en­ AT”, EB 18, nem os artigos sobre escravidão no âmbito do jubileu em
trou tarde: foi realizada na quinta etapa de seis. O aproveitamento do EB 58 eram capazes de ampliar estes limites). Outro exemplo: as inter­
Dia Internacional da Mulher para a introdução na Leitura Feminista du­ pretações da história que são passadas em cursos populares são muitas
rante uma I a etapa, Formação do Povo, sobrecarregou a “turma” inte­ vezes baseadas em livrinhos da ACO, na “História de Israel a partir dos
lectual e emocionalmente diante de tanta novidade acumulada nesta eta­ Pobres” do Pixley, etc. São livros ótimos que, para mim pessoalmente,
pa... Não seria bom chegar a uma integração natural da leitura de gêne­ ajudaram muito no meu processo de “conversão” para uma leitura
ro, ao ponto de que esta perpasse todos os temas, todas as etapas de uma libertadora-popular. Mas eles e tantos outros semelhantes foram escri­
Escola Bíblica, e não fique apenas como “amostras” de leitura feminista? tos em épocas e com preocupações que ainda não deram margem para a
* Não seria bom as pessoas que assessoram etapas de Escolas leitura feminista. Nem a maioria dos estudos e artigos mais recentes das
Bíblicas integrarem na sua preparação, no seu material já elaborado, o publicações do CEBI, dos Estudos Bíblicos, etc., consegue integrar este
aspecto da leitura de gênero? E não seria ótimo se fossem todas as pes­ aspecto. Não seria bom analisar e tentar corrigir e completar esse mate­
soas que fizessem isso, não apenas as mulheres...? rial a respeito do aspecto feminista?
* O material que temos à disposição para nos preparar para essas * Existem muitos estudos bem aprofundados no âmbito da teo­
assessorias é normalmente material tradicional na linha do método his- logia feminista e da leitura bíblica feminista que poderiam ajudar nesse
tórico-crítico, e material na linha da leitura libertadora em geral. Porém trabalho de análise e complementação. Mas às vezes se trata de publica­
o material “tradicional” muitas vezes silencia ou distorce as informa­ ções ainda não traduzidas para o português, ou de publicações bastante
ções mais básicas sobre a situação da mulher. Um exemplo de um caso científicas e/ou específicas. Muitas vezes sinto falta de algo mais sim­
que me ocorreu ultimamente: dei uma olhada nas cartas de Amama, ples, mais geral, que eu possa recomendar para pessoas interessadas, ou
para a preparação de uma assessoria sobre o “Mundo da Bíblia”. Nas que possa servir para a integração rápida e fácil do aspecto feminista no
Escolas Bíblicas do Tocantins já criamos o costume gostoso de fazer assunto de uma assessoria. Isto vale sobretudo para o AT. Não seria bom
uma apresentação teatral bem divertida de algumas dessas cartas de reis colecionar ou elaborar (mais) material para ampliar os limites do nosso
de Canaã, que suplicam a ajuda do faraó contra os hapirus. Mas, apesar conhecimento, para aumentar as nossas informações - um material que
de tanto costume de mexer com essas cartas, nunca tinha descoberto possa servir de maneira sistemática na preparação das nossas assessorias?
aquela que trata da venda de 40 moças de Gazer para o faraó Amenófis
III... Fiquei assustada com esta minha falta de percepção, mas o que me Em resumo: não seria bom elaborar subsídios populares na linha
deu raiva mesmo foi o seguinte: o livrinho dos “Documentos do Mundo de uma “História Social Feminista”, seja para o AT, seja para o NT (o

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primeiro número desta série poderia ser dedicado à apresentação de vá­
rias correntes do Movimento Feminista, da Teologia Feminista, da Lei­
tura Feminista da Bíblia, e de várias “Chaves de Leitura Bíblica Popular
na Ótica do Gênero”), e incentivar a integração deste material em todos Dívida de Mulher
os âmbitos das nossas reflexões e assessorias? V

É este último questionamento que revela o meu maior sonho a As mulheres que são, para mim,
respeito do serviço da “Dimensão do Gênero”, do CEBI em geral - não Palavras na Palavra
seria muito bom, companheiras e companheiros, sonhar esse sonho li­
geiro, em mutirão?! (Em memória dos 20 anos do CEBI)

Agostinha Vieira de M ello

Tereza (para mim Terezinha), Téa, Ana Maria,


Ivone, Nancy, Haidi, Elaine, Edna,
Mercedes, Ivoni, Mônica, Soave,
íria, Cecília, Isabel, Marta, Julieta
(das praias e das fronteiras do CEBI)
Dona Maria da Praia, Quitéria, Filó,
Zefão, Alda, Fátima, Dorinha, Nazaré,
Dona Nega, Ana
(pobres, resistentes, de dores e de coragem que falam)
Eva, Sara, Raquel, Lia, Agar,
Esquartejada do levita, Raabe, Tamar
Maria de Nazaré, Maria do Perfume, Sogra de Pedro,
Maria Madalena, Samaritana, Cananéia, Hemorroísa,
A que fermenta o pão, a que perde e reencontra a moeda,
Talita, Priscila
as das Escrituras em estação patriarcal
que falam de outras rasgando os véus
dos palácios, dos quartéis, dos templos
pelas casas, pelas mas, pelas cidades e roças
resgatando o tempo nosso de cada dia.
As anônimas de todos os tempos,
grupo silenciado no humano grupo,
falam até nos corpos, resistentes dançarinas no gingado da vida,
olhos d’água, promessa de pororocas.
Desculpem a desordem da lista,
mas o afeto é livre, leve, solto
e a memória nunca dá conta

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nem do nome de Deus nem dos seus... Para acolher as moças do poema..
Devo-lhes muito: nas minhas encarnações,
nas minhas ressurreições Agostinha Vieira de Mello
nos meus gritos e sussurros Há muitos jeitos de falar sobre o mundo, os acontecimentos, as
na minha corporal espiritualidade relações humanas, as pessoas, as estruturas, a terra, o cosmos. As Escri­
no meu canto e poesia turas Sagradas falam também sobre tudo isso. É como uma tapeçaria,
nas minhas noites e manhãs uma rede tecida por antigos artesãos e artesãs que têm seus jeitos de
na minha bússola de gênero tecer, de trançar, de entrelaçar os fios. Os artesãos e artesãs têm seus
no meu jeito de confiar e desconfiar chãos, seus condicionamentos. As vezes, na História, teceram vestes
no meu jeito de desconstruir e construir amplas, bonitas que nos ajudam a caminhar com largueza, dando mais
na minha alargação de tenda gosto à vida. Outras vezes chegaram a tecer camisas de força... Bíblia,
no meu jeito de querer bem aos pobres tecelagem construída com palavras.
no meu jeito de carregar meus 72 anos. Nós, mulheres, sempre estivemos presentes nessa arte de inter­
Devo-lhes muito... Dívida entre mulheres, como é paga? pretar, nesse vaivém com a Palavra. Mesmo como minoria, mesmo si­
Impagável no modelo dos FMIs da vida lenciadas, sempre irrompemos furando o tecido androcêntrico... Nessa
e dos poderes da abominação das dominações. arte-hermenêutica sempre estivemos farejando a compreensão das coi­
Entre nós é diferente... sas, daquilo que tece o cotidiano, até o mergulho na Fonte da Vida,
Tento quitá-la com um poema meu, não, Deus “menina e menino”. Mas só mais recentemente estamos crescen­
emprestado de um homem, Rubem Alves do, imprimindo nosso jeito. A hermenêutica feminista já é uma “ofici­
e com ele “la nave va” e nela o sonho da parceria também. na” que se espalha, toma impulso, ganha competência, fortalece sua iden­
Lá onde ele fala teologia tidade, celebra sua espiritualidade.
vale o nome mais denso do desejo mais quente de vocês: No bojo das hermenêuticas (com outras acentuações), na pers­
com um beijo de gratidão nos cotidianos pectiva de gênero, ela debruça-se lutando por uma leitura mais igualitá­
pelos séculos dos séculos. ria não justificadora da superioridade do homem sobre a mulher. O so­
Amém. nho vai longe: a parceria de m ulheres e homens igualm ente
“Teologia é um jeito de falar sobre o corpo. construtores(as) despoluindo uma sociedade patriarcal, discriminadora
O corpo dos sacrificados. e que oprime tanto homens como mulheres. Este trabalho não é mágico,
São corpos que pronunciam o nome sagrado: DEUS... triunfalista nem excludente. E artesanato somado a outros que se empe­
A teologia é um poema do corpo, nham também em mudanças transformadoras estruturais onde, de fato,
O corpo orando, “a Justiça e a Paz se abracem”.
O corpo dizendo as suas esperanças, O texto que se segue, “As visões se clareando por olhos de mu­
Falando sobre o seu medo de morrer, lheres se interpenetrando” foi lido e acompanhado por uma silenciosa
Sua ânsia de imortalidade, coreografia no 3o Encontro do “Jardim Partilhado ” realizado em Ca-
Apontando para utopias maragibe/PE (ir lho 98), encontro ecumênico de mulheres tanto do Nor­
Espadas transformadas em arados... te como do Sul das Américas que trabalham em Teologia, Bíblia, Ética,
Lanças fundidas em podadeiras... Antropologia, Educação Popular e com prática com grupos de mulhe­
Por meio desta fala res. O tema geral foi: “Para além da Violência, Mulheres, Solidarieda­
Os corpos se dão as mãos, de, Forças de Mudança” ’. O dia dedicado à Bíblia constou, além de
Se fundem num abraço de amor, outras abordagens, do enfoque da Hermenêutica Feminista em lingua­
E se sustentam para resistir e para caminhar. ” gem poética. Como poderão perceber (e quero acentuar), trata-se ape­

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nas de algumas acentuações assumidas pela hermenêutica feminista si­ 2. METALÚRGICA, companheira
tuada no chão latino-americano. Dei carne ao nosso jeito de ler a Bíblia Mostra-nos a arte da desmontagem e da montagem,
visualizando algumas “moças”: a marinheira, a metalúrgica, a bruxa, a livra-nos de produzir engrenagens absolutizadoras
sacerdotisa, a curandeira, a bailarina, a remadora, a ecumênica. Ficaria que fecham para a direita ou para a esquerda
muito contente se vocês completassem com mais criatividade, compe­ e impedem nossos veículos
tência e experiência o “bloco” dessas moças. de correrem com autonomia.
Obrigada! Queremos o passeio nosso sem pretensões
de Mercedes Benz auto-suficientes.
Fornece-nos, de quebra, o bom óleo
As visões se clareando por olhos de mulheres
das nossas interrogações de hoje
se interpenetrando sem desprezar os suores dos operários
e operárias de ontem.
1. MARINHEIRA, lança o barco mar adentro, mulher adentro!
Interessa-nos o movimento
Ajuda-nos a cortar as águas não tanto as retas finais...
devolvendo-lhes a limpidez Montadeira política
embaçada por tantas poluições! Chaplin dos tempos modernos,
Clareia para nós o sentido de nossas vidas, como desparafusar as bases
as ondas de nossas dores das fábricas da injustiça?
o redemoinho de nossas resistências Como somar com quem busca
a espuma de nossas esperanças. construindo o Jardim Partilhado?
Toca nossos corpos com o teu sal marinho Ajuda-nos a contribuir com esse sonho maior
para conhecer melhor também com a faísca do livrinho doce e amargo!
nossos baixos e altos relevos.
Mostra-nos como manejar o leme, 3. BRUXA, SACERDOTISA, CURANDEIRA, IRMÃ
a rosa de nosso sexo
Experiente do Mistério Maior
de pétalas tão doloridas aqui teu canto e teu silêncio
pelos duros abusos. se interpenetram em nós
Conta-nos como vencer os monstros marinhos
em carne e respiração comum.
(que também aportam em nossas praias!)
Não podemos chamar a Fonte que amamos
malditas baleias
por um só nome, e explicá-la
carregando nos seus ventres
por um só jeito de brincar...
centrais robotizadas
Somos mulheres da Vida
de economias sugadoras
sentimos seu jeito de brilhar
de mal viver social
com nossos jeitos, brilhantes também.
que no gênero nos tatuam a ferro e a fogo.
... “sólo el amor con su ciência
Aconchega-te a nós, ó espaçosa,
nos vuelve tan inocentes” ...
Abre-nos à leitura sem fronteiras
Tão inocentes e por isso tão audaciosas
dos ciclos dos seres humanos
ao ponto de rebatizarmos os símbolos
da terra
com as poeiras do nosso chão
do cosmos
abraça-nos em justiça e paz!

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com as faíscas das nossas estrelas que só dá a mão ao homem e afoga a mulher?
até com as contradições de Ajuda-nos!
nossos rituais de vagalumes! Precisamos navegar pelas águas da igualdade entre um e outra.
Que fazer, remadora, para vencer a corrente que diz: A lei é tudo!
4. BAILARINA, irmã Ajuda-nos! Precisamos daquela correnteza que, inteirinha,
aposta na Vida! é a vida, é a vida, e é bonita!
Ensina-me teus passos Que fazer, remadora, para vencer a corrente que reduz
tua ginga, teu ritmo todo o movimento das águas a um só e diz: Só este presta!
deixa sair o teu cheiro! Ajuda-nos! Precisamos dilatar-nos e acolher
Como aprender, apreender, conhecer os diversos movimentos da dinâmica da água-vida!
sabedoria Que fazer, remadora, para vencer a corrente que diz:
sem desenhá-la com o corpo? Só pode haver dois tipos de corrente,
Como lidar com as leituras uma que presta toda pura, outra toda impura, não presta.
imobilizadas nos dualismos? Ajuda-nos, remadora, a vida é bonita e humana
Vem, menina, logo misturada como ela é.
Passeia por nosso ouvir, Livra-nos de ficarmos como um martelo desumano
cheirar, degustar, olhar, tocar baixando sentenças: Puro! Impuro!
sopra-os com teu ar quente...
Depois vamos sair
pela chuva ou pelo sol 6. ECUMÊNICA
conversando, pensando. Ó Ecumênica moça de tendas alargadas!
Iremos mais longe, mais longe, Continuamente ela tem que afastar para mais longe as estacas
encontraremos parceiros e parceiras para que entre mais gente na tenda!
para o baile sem culpas Não te contentas em acolher companheiras e companheiros
roda de prazeres de uma só confissão teológica.
e cantaremos o refrão: Teu coração de carne e não de pedra sempre se dilata.
“o amor de Julieta e de Romeu A vida é ecumênica. Onde ela apaixona, onde ela é defendida,
igualzinho ao meu e ao seu.” aí há chão para comunhões... e para tantas aventuras mais!
O Ecumênica romeira, não nos deixes ser parceiras e parceiros
5. REMADORA apenas dos que crêem no que acreditamos.
Não nos deixes presas a caminhar somente com quem tem
Precisamos de ti, remadora nossos traços, nossas devoções, nossas utopias.
Tu, tarimbada em discernir as correntes que cortam as águas. Ensina-nos a alargar a nossa tenda e acolher
Tu, que em tempo de águas tão adversas, com calos nas mãos, as riquezas fundamentais.
manejas teus remos contra-corrente! Não queremos viver só da pobreza dos nossos tesouros.
Ah! até onde podem levar as más correntes? Abre nossa arca ao que é aspiração
Dá-nos um pouco dessa ótica que é ética quase de louca-varrida e experiência fundamentais do humano viver!
para lermos hoje as várias correntes que entraram Que nossas leituras da Vida e da Bíblia
na nossa leitura da Vida e da Bíblia. tenham entranhas abertas.
Que fazer, remadora, para vencer a corrente

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