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MITOS E VERDADES
RESUMO
Este texto parte da hipótese segundo a qual o que, de fato, ameaça nas
chamadas novas organizações familiares é que elas questionam a noção de família
vigente na cultura ocidental, obrigando-nos a um trabalho de luto das antigas posições
libidinais. Para sustentar esta hipótese, o autor faz uma pequena digressão histórica
para mostrar que o ser humano sempre acolheu com suspeitas e medos qualquer
mudança, e que a humanidade sempre foi obrigada a produzir “reorganizações
simbólicas”, para adequar-se à nova leitura de mundo. Discute-se, em seguida, a noção
de família em outras culturas e a origem desta mesma noção na cultura ocidental. Para
o autor, o sistema representativo que chamamos “família” varia segundo a sociedade.
E o significante “família” é composto por fatores conscientes e/ou inconscientes, que
definem a maneira e engendram as categorias pelas quais o mundo social é organizado.
Além disso, qualquer modelo de família é tributário da ordem social que o produz. Posto
que o modelo de família tradicional nunca foi sinônimo de “normalidade”, o autor discute
o que é realmente necessário para que a inserção no simbólico ocorra, ou seja, para
a sobrevivência psíquica da criança, e isto independentemente dos protagonistas da
organização familiar que acolhe o recém-nascido quando de sua chegada no mundo.
Somos de tal forma impregnados mos, para onde vamos, o que nos cons-
pelas associações sintagmáticas que uti- titui como sujeitos...
lizamos para decompor o mundo e, em É por isso que não acredito, como
seguida, recompô-lo que, muitas vezes, o defendo em um artigo anterior (Ceccarelli,
novo é sentido como uma ameaça, pois 2006), que exista na atualidade uma crise
nos obriga a reavaliar as representações sem precedentes. A História nos mostra
que confortavam nossas angústias. É com que a humanidade está sempre em crise:
dificuldade que abrimos mão de valores e a luta, nos primeiros séculos de nossa era,
teorias que nos têm sido tão caras para ler para a implantação da ideologia cristã
o real. Ademais, qualquer mudança re- contra a pagã; as transformações do
quer um trabalho de luto no qual antigas mundo estanque do feudalismo pelas idéias
posições libidinais são abandonadas em liberais que, paulatinamente, foram sendo
prol de novos investimentos. E nunca introduzidas pela revolução burguesa; (na
abandonamos de bom grado um modo de Idade Média, é importante lembrar, quem
satisfação pulsional, ainda que um outro já ousasse questionar a participação de tudo
se nos acene (Freud, 1917/1976a). que é vivo — plantas, animais, seres
A necessidade de certezas e de humanos — na cadeia dos seres corria
imutabilidade pode ser tão forte, que só o risco de ter a língua arrancada, o corpo
nos damos conta de que nossas verda- torturado, queimado para que a ordem
des não passam de construções histori- natural e imutável fosse preservada: a
camente datadas quando elas são ques- que serviram os Tribunais da Inquisi-
tionadas. Um dos exemplos mais pun- ção?); o capitalismo incipiente, que fez do
gentes é o período da adolescência, sujeito não apenas produtor como no feu-
quando o jovem constrói sua própria dalismo mas, também e sobretudo, consu-
maneira de ler o mundo. Muitas vezes, midor; as mudanças trazidas pelo Renas-
suas verdades acham-se em completa cimento; as conseqüências da Revolução
oposição às de seus pais, o que pode Industrial no século XVIII; as duas Gran-
gerar uma crise entre eles. Para alguns, des Guerras e outras tantas.
aceitar a nova leitura de mundo trazido Tudo isso levou a mudanças sócio-
pelo jovem pode ser insuportável, pois político-econômicas que, apoiadas nos
os obriga a repensar, ou mesmo aban- movimentos feministas, acirraram o de-
donar, tudo aquilo que até então era tido bate, iniciado no século XIX, sobre o lugar
como “natural” e “imutável” e que ser- dos homens e o das mulheres nas rela-
via de referência para se locomoverem ções sociais, no trabalho, na reprodução,
no simbólico. Evidencia-se, assim, o nas questões demográficas, e assim por
caráter imaginário de toda verdade, diante. Umas das conseqüências deste
provocando o retorno dos eternos ques- reposicionamento social foi a emergência
tionamentos: quem somos, de onde vie- de um discurso, sem dúvida revolucioná-
nal, os agentes promotores do fato psíqui- soberana, porque é nesta que, em primei-
co são um homem e uma mulher, os novos ro lugar, se plasma o rosto de um povo; é
modelos de família sugerem que outros nesta onde os seus membros adquirem os
modos de produção de subjetividade são ensinamentos fundamentais”. Quando
possíveis. isso não ocorre “é a sociedade no seu
No modelo dito “tradicional”, ho- conjunto que sofre violência e se torna,
mens e mulheres tinham lugares e fun- por sua vez, geradora de múltiplas violên-
ções bem definidas. O pai, que trabalhava cias”.
fora, dirigia o carro e passeava com a Ao mesmo tempo, a História da
família nos finais de semana — cabeça família (Burguière, Klapisch-Zuber,
da família —, era o provedor que detinha Segalen & Zonabend, Orgs., 1986) nos
um poder inquestionável. Os cuidados da informa da heterogeneidade dos arranjos
casa — a comida, a faxina, enfim, o familiares, os quais, cada um dentro de
necessário para que o bem-estar de todos seu próprio universo discursivo, atribuem
fosse o melhor possível — eram garanti- os lugares simbólicos de “pai” e “mãe”
dos pela rainha do lar. Neste arranjo, das mais variadas formas: “O parentesco
todos pareciam felizes e tudo concordava não é uma invariante, mas, sim, um fenô-
com uma ordem imutável. Unidos para meno histórico e contingente” (Aran &
sempre, “para o melhor e para o pior”, Correa, 2004, p. 332). Frente à grande
pelos laços sagrados do matrimônio, as diversidade dos modelos familiares, os
desavenças do casal não constituíam antropólogos não procuram mais classifi-
ameaças à estabilidade do lar. Até hoje car as sociedades em termos de civiliza-
este modelo é defendido por muitos como ção, mas, antes, tentam evidenciar as
o único capaz de sustentar a ordem social invariáveis a partir das quais as diversida-
e de produzir subjetivações sadias. Em des culturais são criadas (Fine, 2002). A
um documento publicado em 31 de julho referência invariável é a aliança matrimo-
de 2004 — Carta aos Bispos da Igreja nial, cuja definição varia segundo as cul-
Católica sobre a colaboração do ho- turas. Nessas, são inúmeros os arranjos
mem e da mulher na Igreja e no mundo que dissociam o sexo dos progenitores, de
— o atual Papa, quando era ainda o suas condições de pai e mãe, assim como
Cardeal Prefeito Ratzinger, presidente da a realidade biológica da concepção e da
Congregação da Doutrina e da Fé, novo filiação (Cadoret, 1999), como aqueles
nome dado ao antigo Tribunal da Inquisi- compostos por filhos de uniões anteriores
ção, defende esta posição. Ali, Ratzinger nos quais, sem guardar laços consangüí-
(Ratzinger, 2004) sustenta que as mulhe- neos, todos se sentem em família.
res devem estar “presentes, ativamente e Um exemplo, sem dúvida estranho
até com firmeza, na família, que é a à organização simbólica da cultura oci-
sociedade primordial e, em certo sentido, dental, acontece com os bavendas na
África do Sul. A mulher filha única susci- das como ameaças à estabilidade social,
ta um problema de descendência, pois o o que evidencia o seu caráter imaginário:
sistema de parentesco desta sociedade é se fosse fixa, nada a ameaçaria e não
patrilinear. A solução encontrada é bas- haveria mudanças. Dito de outra forma,
tante peculiar: a mulher torna-se pai ca- as novas organizações familiares produ-
sando-se com outra mulher. Esta última zem um modo de circulação pulsional
terá filhos com os amantes oficialmente diferente daquele criado pelo modelo tra-
reconhecidos pelo grupo social. A “des- dicional.
cendência” assim produzida receberá o Foi a partir dos séculos XVI e
nome e a herança dos genitores da mu- XVII que o Estado começou a participar
lher-pai dando, desta forma, continuidade mais de perto na classificação e na desig-
ao sistema patrilinear. A mulher-pai, por nação das atividades dos indivíduos den-
sua vez, também poderá tornar-se mãe e tro da ordem política que ele queria man-
ter seus próprios filhos. Ocupando o lugar ter (Lenoir, 2003). O discurso ideológico
simbólico de pai, a mulher-pai mantém a então produzido apresentava a ordem
organização social (Parseval, 2004). familiar instituída como algo natural, logo,
Se os elementos que definem o inquestionável. Neste sentido pode-se di-
sistema representativo que chamamos zer que a família é uma coisa “estádica”,
“família” variam segundo a sociedade, ou seja, criada pelo Estado (Lenoir, 2003,
podemos concluir que o significante “fa- p. 483), pois, em grande medida, é o
mília” é representado, como todo signifi- Estado que controla a produção simbólica
cante, por fatores conscientes e/ou in- que determina a família. Através de crité-
conscientes, que definem a maneira e rios que ele mesmo estabelece, o Estado
engendram as categorias pelas quais o moderno está sempre “fabricando” a fa-
mundo social é organizado. Qualquer mília e produzindo dispositivos que garan-
modelo de família é tributário da ordem tam a sua estabilidade — regulamenta-
social que o produz. Ordem geradora do ções patrimoniais, de sucessão, de sobre-
discurso ideológico que apresenta a famí- nome — segundo uma moral rigorosa:
lia não como um construto social arbitrá- demarcação entre filhos legítimos e natu-
rio e convencional mas, antes, como algo rais, o lugar da concubina, etc. Esse mo-
natural, por vezes sagrado, universal e delo de família, centrado no poder patriar-
imutável (Sousa Filho, 2003). cal, foi amplamente apoiado pela Igreja,
Nessa perspectiva, interrogar-se pois entrava em ressonância com o mo-
sobre família implica outra questão bem delo Cristão de família (Vainfas, 1986/
mais profunda, que diz respeito aos fun- 1992). Ainda hoje, a moral cristã defende,
damentos que sustentam a ordem social. a sua maneira, estes valores — a
Não é sem razão, já o dissemos, que as indissolubilidade do casamento, a
novas organizações familiares são senti- monogamia, a fidelidade —, posicionan-
do-se contra tudo que os ameaça: contra- tellung) pulsional no discurso social para
cepção, aborto, uniões livres, o uso de respaldar-se.
preservativo, homopaternidade, e outras Sabemos, no entanto, e para isso
organizações familiares. não foi necessário esperar pela psicaná-
Vemos que a família assim como o lise, que o modelo de família tradicional
casamento no Ocidente nem sempre fo- nunca foi sinônimo de “normalidade”. O
ram como são hoje, e as uniões de duas argumento segundo o qual a presença do
pessoas nem sempre tiveram o caráter par homem/mulher é indispensável para a
sagrado como o é para o cristianismo: os produção de “subjetividades sadias” não
primeiros séculos de nossa era foram se sustenta. A prática clínica, sobretudo a
marcados por intensas lutas político-eco- infantil, é rica em exemplos onde o proble-
nômicas entre a moral cristã incipiente e ma apresentado pela criança é um sinto-
as práticas ditas “pagãs”, de concubinato ma dos pais. E em situações nas quais se
e divórcio, tão comuns no mundo antigo. poderia esperar um desfecho preocupan-
A origem divina do matrimônio, entendida te, como, por exemplo, em famílias nas
como a união de Jesus com a Igreja, quais um dos pais, se não os dois, parece
baseia-se na interpretação agostiniana não participar de forma significativa do
das Escrituras (Vainfas, 1986/1992). Ao universo psíquico da criança, esta não
longo dos séculos, os valores da moral apresenta nenhum problema particular-
cristã transformaram-se nos ideais que mente dramático. Isto significa que não
sustentam o imaginário da cultura ociden- existe uma forma de organização familiar
tal. Tais ideais, que juntamente com a ideal que, inequivocamente, garantiria um
autoridade paterna fazem parte do supe- desenrolar mais sadio, ou mais patogêni-
rego, derivam do mundo externo, guar- co, para a constituição do sujeito: do ponto
dam as influências do passado e da tradi- de vista psíquico, as famílias são sempre
ção que, outrora, foram sentidas intensa- construídas e os filhos sempre adotivos,
mente (Freud, 1924/1976a). Entende-se, pois são os laços afetivos que, como todo
por um outro caminho, por que as novas investimento, vão organizar o significante
organizações familiares ameaçam a he- família. Não raro, a rivalidade entre os
gemonia do modelo de família tradicional membros, o ódio entre os irmãos, o res-
provocando reações tão truculentas: o sentimento para com os pais definem este
que está, no fundo, sendo ameaçado é a significante. (É interessante lembrar que
posição libidinal que sustenta a represen- a primeira família da qual se tem notícia
tação de família no imaginário judaico- foi marcada pelo fratricídio, devido ao
cristão, ou seja, os ideais culturais. Os ciúme, levando ao “rompimento da frater-
novos modelos de família, além das “ame- nidade” (Gn, 4, 8). Embora castigado de
aças” que provocam, não encontram (ain- maneira que em nada deixa a desejar aos
da) nenhuma representação (Vors- castigos infligidos pelo tirano da horda, é
Caim quem dá continuidade à humanida- cas fizeram com que esta função venha
de (Gn, 4, 17). Além disso, não podemos sendo exercida por outras pessoas, como
nos esquecer que a maioria quase absolu- vimos na antropologia, ou outras instânci-
ta dos “desvios de conduta”: comporta- as sociais. Nessa perspectiva, o que está
mentos anti-sociais, delinqüência, margi- em declínio é o sistema patriarcal: uma
nalidade, sociopatias, drogadicção, enfim, forma de organização social onde o agen-
as mais diversas modalidades do sofri- te promotor de alteridade, o agente
mento psíquico, foram engendrados no castrador, é encarnado pelo pai. É este
seio do modelo tradicional, composto por lugar, evidentemente imaginário, que cen-
casais heterossexuais. No mínimo duas traliza o poder no pai dando continuidade
reflexões se impõem: o sexo de quem se ao pater potestas romano, que os novos
ocupa das crianças não traz, a priori, arranjos familiares desconstroem. A an-
nenhuma garantia; a heterossexualidade tropologia nos informa que não existe um
como produtora de “normalidade” é a modo único de separação da célula narcí-
idealização de uma posição libidinal. A sica mãe-filho (Parseval, 2004). Indepen-
questão que, de fato, releva da psicanálise dente da forma como ela se dá, o comple-
pode ser formulada assim: o que perma- xo de castração imporá à criança restri-
nece, o que há de fundamental, para que ções para a constituição de sua psicos-
a subjetivação ocorra e isso independen- sexualidade. O Édipo, por ser uma repre-
temente do arranjo familiar que acolhe o sentação fantasmática sustentada por um
sujeito no mundo? Como se darão a cons- relato mitológico, é, ao mesmo tempo,
trução do mito individual e a produção da universal e singular. Universal, pois mar-
verdade singular do sujeito nos novos ca o que é próprio e o que diferencia o
arranjos afetivos? humano: a interdição do incesto, presente
Para que haja inserção no simbóli- em toda e qualquer cultura que, via recal-
co — inserção esta que nunca é feita sem que, nos obriga a abandonar nossos pri-
dor como atesta o Mal-estar na cultura meiros objetos sexuais, “o que constitui,
— é necessário que alguém encarne o talvez, a mutilação mais drástica que a
Outro. Este Outro — que Freud chama vida erótica do homem em qualquer épo-
de pai, e Lacan de “função paterna” — é ca já experimentou” (Freud, 1930/1974,
o agente promotor de alteridade. Sua p. 124). Particular, pois o que determina a
função é a de propiciar o movimento circulação dos afetos é a ordem simbólica
psíquico, presente em toda cultura, que da cultura que acolhe o recém-nascido.
insere a criança na ordem simbólica pró- Ordem esta que define, também, as re-
pria ao humano ou, se preferimos, que vai presentações do masculino e do feminino.
socializá-la. Nos textos freudianos, esta Cada cultura tem as mais diversas varia-
função é atribuída ao pai da realidade. ções em torno do tema, pois a circulação
Entretanto, as mudanças socioeconômi- pulsional que o complexo de Édipo suscita
Aran, M., & Correa, M. (2004). Sexuali- Ceccarelli, P. R. (2005). Violência sim-
dade e política na cultura contempo- bólica e organizações familiares. In
rânea: o reconhecimento social e T. Feres-Carneiro (Org.), Família e
jurídico do casal homossexual. casal: Efeitos da contemporanei-
Physis: Revista de Saúde Coleti- dade (pp. 266-277). Rio de Janeiro:
va, Rio de Janeiro, 14(2), 329-341. PUC-Rio.
SUMMARY
According to the main hypotheses of this paper the so-called new family
organizations are often felt as a threat because they put in question the traditional family
representation in the occidental culture, which leads us to a process of mourning
concerning past libidinal positions. To sustain this hypotheses the author follows a
historical digression to show that human beings have always regarded suspiciously and
fearfully any social changes, and that humanity has always been forced to produce
“symbolic reorganizations” to adapt to the new ways of understanding the world. The
author also discusses what other societies name “family”, as well as the construction
of the definition of family in our culture. According to the author the representative
system we call “family” varies from one society to another. Thus the signifier “family” is
composed of conscious and unconscious elements that determinate how the social
world is organized. Moreover, any family model can only be understood in the social
context in which is emerges. Taking as a stand point that the traditional family model
has never granted any “normality”, the author discuss what is basically necessary to
insert the baby into the symbolic world, that is, to guarantee his or her psychic survival,
independently of the protagonists of the family organization that receive the newborn
when he or she comes into existence.
Key words: Family. New family organizations. Inscription in the symbolic order.
Oedipus complex. Psychic survival.
RESUMEN