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Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto

Vice-Reitora
Fátima Raquel Rosado Morais

Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas


Jocelânia Marinho Maia de Oliveira

Chefe da Editora Universitária – EDUERN


Anairam de Medeiros e Silva

Conselho Editorial
Emanoel Márcio Nunes
Isabela Pinheiro Cavalcante Lima
Diego Nathan do Nascimento Souza
Jean Henrique Costa
José Cezinaldo Rocha Bessa
José Elesbão de Almeida
Ellany Gurgel Cosme do Nascimento
Wellignton Vieira Mendes

Diagramação
Maria Helena de Medeiros

Catalogação da Publicação na Fonte.


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Paiva, André Luiz dos Santos


  Genealogia e teoria de gênero em Judith Butler [recurso eleltrônico]: subversões
teórico políticas. / André Luiz dos Santos Paiva. – Mossoró, RN: EDUERN, 2020.

162p. : PDF

ISBN: 978-65-88660-51-5

1. Teoria de gênero – Butler, Judith. 2. Genealogia - Teoria de gênero. 3. Teoria Queer.


I. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. II. Título.

UERN/BC CDD 306.766

Bibliotecário: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319

Editora filiada à:

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Meus amigos e
minhas amigas,
O Programa de Divulgação e Popularização da Produção Científica, Tecnológica e de
Inovação para o Desenvolvimento Social e Econômico do Rio Grande do Norte, pelo qual foi
possível a edição de todas essas publicações digitais, faz parte de uma plêiade de ações que
a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (FAPERN), em parceria,
nesse caso, com a Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FUERN), vem
realizando a partir do nosso Governo.

Sempre é bom lembrar que o investimento em ciência auxilia e enriquece o


desenvolvimento de qualquer Estado e de qualquer país. Sempre é bom lembrar ainda que
inovação e pesquisa científica e tecnológica são, na realidade, bens públicos que têm apoio
legal, uma vez que estão garantidos nos artigos 218 e 219 da nossa Constituição.

Por essa razão, desde que assumimos o Governo do Rio Grande do Norte, não medimos
esforços para garantir o funcionamento da FAPERN. Para tanto, tomamos uma série de
medidas que tornaram possível oferecer reais condições de trabalho. Inclusive, atendendo a
uma necessidade real da instituição, viabilizamos e solicitamos servidores de diversos outros
órgãos para compor a equipe técnica.

Uma vez composto o capital humano, chegara o momento também de pensar no capital
de investimentos. Portanto, é a primeira vez que a FAPERN, desde sua criação, em 2003, tem,
de fato, autonomia financeira. E isso está ocorrendo agora por meio da disponibilização de
recursos do PROEDI, gerenciados pelo FUNDET, que garantem apoio ao desenvolvimento da
ciência, tecnologia e inovação (CTI) em todo o território do Rio Grande do Norte.

Acreditando que o fortalecimento da pesquisa científica é totalmente perpassado pelo


bom relacionamento com as Instituições de Ensino Superior (IES), restabelecemos o diálogo
com as quatro IES públicas do nosso Estado: UERN, UFRN, UFERSA e IFRN. Além disso,
estimulamos que diversos órgãos do Governo fizessem e façam convênios com a FAPERN,
de forma a favorecer o desenvolvimento social e econômico a partir da Ciência, Tecnologia e
Inovação (CTI) no Rio Grande do Norte.

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Por fim, esta publicação que chega até o leitor faz parte de uma série de medidas que
se coadunam com o pensamento – e ações – de que os investimentos em educação, ciência
e tecnologia são investimentos que geram frutos e constroem um presente, além, claro, de
contribuírem para alicerçar um futuro mais justo e mais inclusivo para todos e todas!

Boa leitura e bons aprendizados!

Fátima Bezerra
Governadora do Rio Grande do Norte

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Parceria pelo desenvolvimento
científico do RN
A Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (FAPERN) e
a Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FUERN) sentem-se honradas
pela parceria firmada em prol do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação. A
publicação deste livro eletrônico (e-book) é fruto de esforço conjunto das duas instituições,
que em setembro de 2020 assinaram o Convênio 05/2020–FAPERN/FUERN, que, dentre seus
objetivos, prevê a publicação de quase 200 e-books. Uma ação estratégica como fomento da
divulgação científica e popularização da ciência.

Este convênio também contempla a tradução para outros idiomas de sites de


Programas de Pós-Graduação (PPGs) das instituições de ensino superior do estado, apoio a
periódicos científicos e outras ações para a divulgação, popularização e internacionalização do
conhecimento científico produzido no Rio Grande do Norte. Ao final, a FAPERN terá investido
R$ 100.000,00 (cem mil reais) oriundos do Fundo Estadual de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FUNDET), captados via Programa de Estímulo ao Desenvolvimento Industrial
do Rio Grande do Norte (PROEDI), programa aprovado em dezembro de 2019 pela Assembleia
Legislativa na forma da Lei 10.640, sancionada pela governadora, professora Fátima Bezerra.

Na publicação dos e-books, estudantes de cursos de graduação da Universidade do Estado


do Rio Grande do Norte (UERN) são responsáveis pelo planejamento visual e diagramação das
obras. A seleção dos bolsistas ficou a cargo da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE/
UERN).

No Edital 02/2020–FAPERN, os autores/organizadores puderam inscrever as obras


resultantes de suas pesquisas de mestrado e doutorado defendidas junto aos PPGs de todas
as Instituições de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICTIs) do Rio Grande Norte, bem como
coletâneas que derivem do trabalho dos grupos de pesquisa nelas sediados. Neste primeiro edital
foram inscritas 63 obras, das quais 57 tiveram aprovação após a verificação de atendimento aos
critérios e envio aos pareceristas, processo editorial que fica a cargo das Edições UERN.

Com essa parceria, a FAPERN e a FUERN unem esforços para o desenvolvimento


do Estado do Rio Grande do Norte, acreditando na força da pesquisa científica, tecnológica

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e de inovação que emana das instituições potiguares, reforçando a compreensão de que o
conhecimento é transformador da realidade social.

Agradecemos a cada autor(a) que dedica seu esforço na concretização das publicações
e a cada leitor(a) que nelas tem a oportunidade de incrementar seu conhecimento, objetivo final
do compartilhamento de estudos e pesquisas.

Gilton Sampaio de Souza


Diretor-Presidente da FAPERN

Fátima Raquel Rosado Morais


Presidente em exercício da FUERN

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Cabe a mim saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido,
cabe a nós por conseguinte saber que campos de forças reais tomar
como referência para fazer uma análise que seja eficaz em termos
táticos. Mas, afinal de contas, é esse o círculo da luta e da verdade,
ou seja, justamente, da prática filosófica.
(Michel Foucault)

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PREFÁCIO
Apresentar a obra em questão a partir de uma qualquer caracterização particular e
abstrata do tema, enredando-a em uma direção que remeta a uma perspectiva que enuncia um
dado problema de pesquisa – e aqui a dimensão dada ao problema não se coloca fortuitamente
– se torna precipitado, diante da riqueza de ideias e da densidade que a atravessa, sobretudo
quando observamos a dialogicidade como recurso para a construção de um pensamento, que
em muito se assemelha ao método de trabalho e estratégias de formulação de genealogias e
problematizações, mobilizadas pelos autores centrais da obra, a saber, Judith Butler e Michel
Foucault. Assim, antes que o leitor tenha um vislumbre do que André Paiva enuncia, ou mesmo
acerca do que trata o livro, pretendo fornecer chaves de leitura para uma interpretação dessa
polifonia de vozes inauditas.

A referida obra parece não apenas responder ao que se propõe, a saber, a compreensão
da teoria de gênero, ou ainda uma genealogia do gênero, desenvolvida por Judith Butler,
notadamente a partir das reverberações do pensamento de Michel Foucault na referida teoria,
mas traz à tona duas questões centrais para pensar o debate feminista na contemporaneidade,
na medida em que aponta uma espécie de duplo silenciamento, seja quando pensamos a pouca
importância ofertada ao lugar do gênero e da sexualidade na reflexão filosófica, sobretudo no
país, ou ainda, na mesma perspectiva androcêntrica, as razões do silenciamento das filósofas,
e o apagamento destas no cânone filosófico – lugar pensado por e para homens, que dialogam
entre si, promovendo o que certamente poderíamos denominar de “epistemicídio” contra um
vasto saber produzido por mulheres. Como afirma Haraway (1995) “o que tradicionalmente tem
vigência como saber é policiado por filósofos que codificam as leis canônicas do conhecimento”.

A negação, referente ao fato do gênero não ser pensado como tema relevante em termos
filosóficos, ou o fato de filósofas como Simone de Beauvoir, Hannah Arendt e Judith Butler,
dentre tantas outras, não serem reconhecidas ou referenciadas por um longo tempo, mostra a
importância de um trabalho como o que se apresenta, na medida em que opera uma discussão
acerca da teoria de gênero em Judith Butler, em uma dupla afronta ao instituído.

Vários são os pontos de convergência apontados pelo autor, numa tentativa de suplantar
a inexistência percebida, acerca de estudos sobre as influências foucaultianas na obra de Judith

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Butler, exceto aqueles que detêm-se em pontos específicos, produzindo leituras parcelares.
Importante mencionar de partida, que a perspectiva dialógica presente na referida obra, insere
também outros interlocutores pensados pelo autor como fundamentais na construção de uma
compreensão da proposta butleriana – de pensar questões que deslizam do gênero e sexualidade,
tema que a notabilizou, até a noção de performatividade aplicada ao entendimento do gênero, e
pensada posteriormente como base de uma compreensão sobre as possibilidades emancipatórias
da política, além de reflexões fundamentais sobre as políticas de reconhecimento e temas como
a guerra, a ética, o enquadramento, a precariedade, a vulnerabilidade e os poderes do luto e da
violência –, tais como, Hegel, Austin, Derrida, Freud, Lacan, Kristeva, mas não apenas.

Importante salientar que essa polifonia, como que a unir textos e autores de correntes
teóricas distintas, é por vezes contestada, por críticos que apontam uma espécie de ausência
de coesão teórica, no sentido de priorizar uma única corrente de pensamento, o que não
condiz com os objetivos de Butler, na medida em que a autora não constrói qualquer tipo de
compromisso epistêmico, que a faça validar ou contestar toda a produção dos autores com os
quais dialoga, além de mencionar seu trabalho não como uma tentativa de reproduzir com
fidelidade as teses dos teóricos que utiliza, mas como um “esforço de tradução cultural”, para
tanto, as possibilidades de leituras e construções emancipatórias e enriquecedoras na teoria
podem ocorrer por meio de novas apropriações.

Uma leitura mais detida permite perceber que o trabalho em questão, não apenas
apresenta uma maior compreensão acerca da centralidade da problematização e da genealogia,
constitutivas do pensamento dos autores, mas acaba por adotar a problematização como
“gesto investigativo”. Em consonância com as aberturas fornecidas pela problematização -
respectivamente objeto de estudo e método de trabalho em Foucault, e tema e estratégia em
Butler – o autor elucida que, “problematizar refere-se a questionar e tornar visíveis os modos
pelos quais as estruturas de reconhecimento operam na cultura [...]” através de uma operação
genealógica e ação de reflexão crítica, nos faz compreender que a relação entre corpo, gênero,
reconhecimento e humanidade, é fundante para uma aproximação profícua com a perspectiva
butleriana, que desliza de uma compreensão do gênero como linguagem de reconhecimento, ao
corpo como lugar material da linguagem, e por conseguinte, a linguagem como produtora de
sentidos em função da necessidade de produzir e configurar reconhecimento.

Assim, pensar o reconhecimento como fornecendo humanidade a um dado corpo


materializado e enquadrado dentro de um sistema binário de gênero, e demais marcações
que atravessam o sujeito nessa cena do reconhecimento, que os constitui, implica em acessar
corpos que capturados pelo discurso da abjeção, são alçados ao lugar da desumanização. Dessa
feita, André Paiva aponta que a produção da abjeção, excluí através da normatização aquelas
diferenças que borram a ideia de naturalidade, por não se inscreverem na lógica que enquadra
os sujeitos em um dos lados do binário.

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Sendo dentro dessas marcações que atravessam os sujeitos enquadrados nas cenas de
reconhecimento, que Butler passa a pensar gênero enquanto performatividade, concepção, que
permitia desestabilizar a distinção metafísica entre sexo/gênero e criticar uma certa aposta
identitária na política. André Paiva apresenta a noção de performatividade a partir do diálogo
com dois autores, Austin a partir da teoria dos atos performativos, e Derrida, para quem o
conceito de performativo estava atrelado aos conceitos de iterabilidade e citacionalidade, além
da dimensão da desconstrução, tornando inteligível aquilo que por vezes foi apresentado como
passível de ser criticado em Butler, na medida em que fornecia um certo grau de impenetrabilidade
nas reflexões da autora, isto é, a complexificação de um sistema de pensamento que afastava
aqueles que não estavam dispostos a adentrar em reflexões que não poderiam ser compreendidas
quando se observava a obra a partir de um olhar sobre a superfície, o que fornece ao trabalho
uma dimensão cognoscível, como uma decifração do que se esconde por trás do meramente
observável, daí mais uma vez sua importância.

A partir desse ponto o gênero é explicado pelo autor, não como algo que se é, mas
algo que se faz ou diz, sendo a identidade de gênero apresentada “a partir da repetição dos
atos estilizados de gênero, em que o próprio campo do humanamente inteligível vai sendo
instituído e, ao mesmo tempo, reformulado”. Tornando claro que não haveria um ator por trás
dos atos executados, sendo o fazer o próprio ato que performativamente constitui o sujeito.
Nesse ponto percebemos a denúncia através da qual os fatos naturais vem a ser naturalizados,
o que a aproxima da mirada foucaultiana, – essa denúncia joga luz sobre o fato de que aquilo
que é tomado como natural, é cristalizado, e produzido como uma naturalidade aparente – o
que permitiu a Butler, segundo o autor, “construir uma ontologia desontologizante da categoria
gênero, de forma a explicitar seus aspectos arbitrários de construção e consolidação baseados,
predominantemente, numa matriz de inteligibilidade heterossexual.”

O livro apresentado consegue ainda construir uma formulação acerca dos conceitos
centrais que atravessam a discussão sobre gênero e sexualidade em Butler, elaborando uma
intricada reflexão, e ao fazê-lo, se posicionando frontalmente diante de algumas críticas,
frequentemente acionadas em oposição a teorização desenvolvida pela autora. Sendo a primeira
crítica referente a ideia equivocada de que pensar a performatividade de gênero seria uma
forma de ignorar a materialidade dos corpos. Assim, André Paiva, através da construção de
uma sólida discussão sobre o lugar do corpo, no desenvolvimento da teoria de gênero, e a partir
de uma leitura cuidadosa feita sobre a relação entre corpo, materialidade e linguagem, aponta
que apesar da grande ênfase dada aos discursos, o corpo como materialidade não é recusado,
não sendo o mesmo afirmar que a interdependência entre matéria e linguagem na fabricação
performativa do corpo defendida por Butler, esvaziaria o sujeito desse corpo, visto que o
corpo não se reduz à sua descrição pela linguagem ou exclusivamente à materialização pelo
discurso. O que possibilita que o alcance da crítica dirigida a Butler, que sugere o apagamento
da materialidade dos corpos em nome da linguagem, perca força quando diante da viabilidade

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de seus argumentos, sobretudo aqueles em que produz uma problematização da materialidade
dos corpos. Diz-nos o autor:

[...] nem a materialidade nem a linguagem se tornam os definidores da fabricação


dos corpos, bem como nenhum desses fatores é eliminado em detrimento do outro.
Nesse sentido, os questionamentos que Butler opera em relação à matéria não têm
por objetivo defender sua inexistência ou irrelevância quando se pensa a definição
dos corpos e sexos, mas a necessidade de ir além de uma perspectiva que vislumbra
a materialidade desses corpos enquanto um aspecto prévio ao discurso e, por isso,
digno de erguer-se enquanto ponto de partida para pensar os corpo.

Outra crítica dirimida pelas formulações aqui apresentadas é àquela concernente


a perspectiva de que a performatividade de gênero esvaziaria a identidade de gênero e, por
conseguinte, a reivindicação identitária na política feminista. O autor irá demonstrar que o
feminismo em uma perspectiva heterossexual, branca que parte de um espaço privilegiado de
classe, tendia a invisibilizar, e mesmo inviabilizar, experiências de sujeitos atravessados por
outros marcadores sociais de diferença, como raça, sexualidade, etnia, geração, e outros, o que
acabaria gerando opressões específicas, reforçando ser “(...) nesse sentido que Butler (1993,
1999, 2004) constantemente alertará em relação ao caráter excludente que qualquer categoria
identitária opera, ainda que com finalidade de emancipação como no caso da categoria mulheres
no movimento feminista”.

Butler em diálogo com um vasto campo da teoria feminista, propõe que um programa
político que tenha em vista transformar a situação social das mulheres, deve levar em conta a
categoria “mulher”, na medida em que o discurso feminista por vezes se baseou nesta categoria
como “pressuposto universal de experiência cultural”, o que não significa qualquer menção
ao fim do feminismo, como se quis crer, mas implica num questionamento acerca de uma
suposta universalidade referente a categoria em questão, que impedia a interseccionalização
dessa mulher com todos os marcadores de opressão que a discriminam,

Nesse sentido, Butler colocará em debate o próprio conceito de gênero, tão caro ao
movimento feminista, e o faz com vistas a desenvolver um pensamento crítico acerca da
diferença sexual, e as implicações da lógica binária que daí advém, na medida em que incidirá
apenas na vida de homens e mulheres, impedindo a discussão a partir de uma diferença
bem mais ampla, que açambarcasse os diversos sujeitos subalternizados, demonstrando que
enquanto o gênero fosse um elemento central para a crítica feminista, continuaríamos a apoiar
uma heteronormatividade que precisava ser questionada.

O trabalho aqui apresentado trará uma ampla revisão da genealogia sobre os sexos e
gêneros operada por Butler, possibilitando pensar “processos de transformação nesse campo,

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o que evidencia o aspecto de luta política encontrado em sua teorização” – demonstrando o
desenvolvimento de uma filosofia política que irá criticar a normatividade como compreensão
para as tantas formas de opressão – sendo a de gênero uma delas –, opressão que irá produzir e
hierarquizar as vidas que importam daquelas que não são pensadas como sequer dignas de luto.

Anne C. Damásio
Docente do Instituto Humanitas - UFRN

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Sumário
INTRODUÇÃO 16

PARTE I 20
1. O GÊNERO PERFORMATIVO 21
1.1. Alguns pressupostos conceituais-linguísticos do gênero performativo 21
1.2. A desontologização do sujeito generificado 26
1.3. Inteligibilidade humana e matriz de gênero 32
1.4. Reconhecimento, desejo e gênero 34
1.5. Repetição, paródia e performatividade de gênero 41
2. CORPO, ABJEÇÃO E A METAFÍSICA DA SUBSTÂNCIA 46
2.1. Materialização do corpo, linguagem e performatividade 46
2.2. A abjeção e os limites dos corpos 54
2.3. Diferença sexual e a metafísica da substância 63

PARTE II 76
3. PODER E NORMA, DE FOUCAULT A BUTLER 77
3.1. Concepção de poder em Michel Foucault 77
3.2. O corpo nas redes do poder 84
3.3. O poder na teoria de gênero de Butler a partir de Foucault 87

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3.4. O poder na teoria de gênero de Butler: para além de Foucault 92
3.5. Poder e normas de sexo-gênero em Judith Butler 101
4. RESISTÊNCIAS PERFORMATIVAS: AS LUTAS EM FOUCAULT E O QUEER EM
BUTLER 106
4.1. Lutas e resistência nas relações de poder 106
4.2. O queer em questão: resistências e crítica 114
4.3. Políticas pós-identitárias de Foucault a Butler 121
5. GENEALOGIAS: CRÍTICA E TRANSFORMAÇÃO 131
5.1. Foucault, da arqueologia à genealogia 131
5.2. Genealogia como crítica em Michel Foucault 136
5.3. A genealogia do gênero em Judith Butler 144

AINDA SOBRE GENEALOGIAS: PENSANDO O PAPEL DO INTELECTUAL COM


FOUCAULT E BUTLER 150

REFERÊNCIAS 154

SOBRE O AUTOR 144

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INTRODUÇÃO
A presente obra tem como objeto central de estudo a teoria de gênero desenvolvida
pela filósofa norte-americana Judith Butler, dando destaque às repercussões do pensamento
foucaultiano nas teorizações da autora sobre o tema. A partir de um conhecimento prévio da
obra da autora, se almejou enxergar a influência que o pensamento de Michel Foucault exerceu
na construção da teoria de gênero de Butler, na qual é possível encontrar de forma clara o
alinhamento teórico de Butler com o empreendimento genealógico foucaultiano. A própria
autora, repetidas vezes e em diferentes obras, afirma realizar uma genealogia do gênero e dos
corpos.

Apesar das influências de Foucault no pensamento de Butler serem notáveis e


constantemente apontadas, num levantamento da fortuna crítica da obra da autora, pode-se
constatar a inexistência de estudos sobre essas influências, de forma que os trabalhos existentes
apenas detêm-se em pontos restritos. Uma lacuna que esta obra pretendeu sanar.

A obra foi desenvolvida tendo por base principal as obras de Judith Butler que tratam
diretamente das temáticas do gênero e do corpo como objetos principais, a saber: Gender
trouble: feminism and the subversion of identity; Bodies that matter: on the discursive limits of
“sex”; e Undoing gender. A partir dessas obras, foram selecionados outros trabalhos da filósofa
norte-americana, bem como os textos de Michel Foucault e outros filósofos citados pela autora,
a partir dos quais também se recorreu a textos não citados por Butler, mas que contribuem com
as discussões empreendidas.

Para uma aproximação mais segura com os autores objeto do presente livro, também
se recorreu a comentadores de suas obras. Por fim, textos advindos da Filosofia e das áreas das
humanidades, atrelados à perspectiva dos estudos de gênero, sexualidades e/ou queer, também
foram utilizados como ferramentas teóricas para a análise pretendida com a pesquisa.

A obra foi dividida em duas partes. Na primeira delas, se traça as principais influências
filosóficas encontradas na teoria de gênero de Judith Butler. Constituída por dois capítulos,
neles é apresentado o mapeamento das bases filosóficas do pensamento de Butler, de modo a
permitir o conhecimento de outras influências e referências teóricas que não apenas aquelas

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advindas da obra de Michel Foucault na elaboração da teoria de gênero proposta pela autora.
Na segunda parte, constituída de três capítulos, é apresentado o pensamento teórico de Foucault
e suas repercussões na obra de Butler acerca do gênero.

Na primeira parte da obra, cada subcapítulo é dedicado a uma temática específica na


teoria de gênero em Butler, com os respectivos aportes teóricos dos quais essa temática é
mais tributária. Já na segunda parte, os primeiros subcapítulos de cada capítulo dedicam-se
a discussões específicas dos pensamentos de Butler e de Foucault, resguardando sempre aos
últimos subcapítulos a explicitação das repercussões mais notáveis do pensamento foucaultiano
na teoria de gênero em Butler.

No primeiro capítulo, as análises focam na ideia de gênero desenvolvida por Butler


em sua teorização. Para isso, expõe-se inicialmente os pressupostos linguísticos encontrados
na teoria de gênero de Butler, com seu recurso à teoria dos atos de fala de Austin e posteriores
releituras dessa teoria por Derrida. Num segundo momento, expõe-se como Butler opera a
desontologização do sujeito generificado, através, principalmente, da crítica que ela realiza
acerca da ideia de sujeito como concebida por segmentos do movimento feminista. Após isso,
é discutido como o gênero consolida uma estrutura específica de inteligibilidade humana, e
como essa estrutura estabelece critérios para o reconhecimento, momento no qual se destaca
o dialógo de Butler com o pensamento de Hegel. Por fim, expõe-se qual o lugar que a filósofa
reserva para a repetição e paródia como possibilidades de subversão dos performativos de
gênero.

No segundo capítulo, foca-se na questão do corpo e da diferença sexual. Assim,


inicialmente é exposto como Butler trata da questão do corpo e de sua colocação enquanto marco
de consolidação da ideia de diferença sexual a partir da ideia de materialidade, concepção à
qual ela sobrepõe, como crítica, uma perspectiva performativa do sexo e dos corpos. Após isso,
é evidenciado o diálogo que Butler realiza com a psicanalista Julia Kristeva, da qual ela toma
de empréstimo as discussões em torno do conceito de abjeção, que consolidaria as fronteiras
dos corpos e da cultura possibilitadoras da inteligibilidade humana. Já a parte final do capítulo
é dedicada ao que Butler denominou de “metafísica da substância”, que possibilitaria a ideia de
diferença natural dos corpos, momento no qual a autora recorre à genealogia da moral realizada
por Nietzsche para justificar sua genealogia do gênero e dos corpos, vislumbrando esses como
indissociáveis, razão pela qual se conclui no segundo capítulo que, à maneira do gênero, a
produção dos corpos ocorre de forma performativa.

No terceiro capítulo, que abre a segunda parte do livro, inicia-se expondo a concepção
de poder encontrada em Michel Foucault. Para isso, é exposto como Foucault desenvolve uma
concepção do poder como produtivo que extrapola uma concepção jurídica e negativa do mesmo
a partir de suas teorizações acerca das disciplinas e do biopoder. Após isso, a questão do corpo é

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destacada enquanto um marco no pensamento foucaultiano que encontra nos corpos o principal
objeto de investimento do poder, concepção que alcança seu ápice no conceito de dispositivo
da sexualidade, o qual consolida a concepção produtiva do poder levando em consideração
tanto seus aspectos de disciplina e controle, como suas possibilidades de resistências.

Ainda no mesmo capítulo, em seu terceiro subtítulo, inicia-se a conexão do pensamento


foucaultiano com o de Judith Butler. Nesse momento, é mostrado como a concepção de poder,
anteriormente exposta, é inserida na teoria de gênero da filósofa norte-americana. Para isso,
discute-se como a concepção de poder produtivo é inserida por Butler em seu pensamento
num movimento que explicita seu caráter também performativo. Assim, a autora conecta
poder, desejo e produção de subjetividades para pensar possibilidades de agência e resistências
políticas. Após isso, é mostrado como a concepção de poder encontrada em Butler, ainda
que grandemente tributária da concepção de Foucault, também traz consigo um forte diálogo
crítico com a psicanálise, principalmente no que tange aos aspectos relacionados às proibições
e constituições das fronteiras dos corpos e das subjetividades, momento no qual se evidencia
a maneira como Butler se aproxima dos conceitos de simbólico e inconsciente de forma a
questionar a forma como eles aparecem no pensamento psicanalítico.

Fechando o terceiro capítulo, é realizada uma síntese de como as discussões anteriormente


feitas aparecem na teorização no campo do sexo e gênero. Nesse momento, são expostas as
apropriações realizadas por Butler do pensamento foucaultiano no que tange aos aspectos
produtivos do poder na fabricação dos gêneros inteligíveis. Nessa aplicação, fica evidente o
jogo que a autora realiza entre gênero e corpo, através do recurso à ideia de performatividade,
enquanto instância regulatória da produção da inteligibilidade de gênero, utilizando-se da ideia
de materialidade dos corpos.

No quarto capítulo, o foco recai sobre as resistências, aspecto indissociável das relações
de poder quando se trata da abordagem do assunto em Michel Foucault. Assim, na primeira
parte do capítulo, é exposto como Foucault analisa os processos de resistências enquanto
coextensivas ao poder, o que fortalece sua ideia do poder enquanto produtivo. Para ele, seja
através das transgressões, seja através das dissidências, é possível identificar uma multiplicidade
de formas de resistência e lutas com potencial de transformação das distribuições do poder.
Seguindo com a temática das resistências, no segundo subtítulo, expõe-se o pensamento e a
política queer enquanto uma expressão de resistência, e, a partir de Butler, mostra-se como, para
que esse campo mantenha seu potencial subversivo, é indispensável uma postura crítica frente
a ele mesmo, num processo no qual o queer se manteria aberto aos vários atravessamentos
emergentes no espaço teórico e político da abjeção.

Para finalizar o capítulo, realiza-se a análise dos reflexos dos pensamentos de Foucault,
no que tange às resistências, e de Butler, em sua especificidade queer, nas políticas identitárias.

18
Assim, é analisado como a crítica à noção de identidade se institui nos pensamentos dos
dois autores, enquanto algo que possibilita a reflexão sobre seus fundamentos. Assim,
Butler aproxima-se da categoria mulher como sujeito do feminismo, explicitando o caráter
performativo da produção das identidades e das resistências. Para isso, ela dialoga com
Foucault na identificação do caráter excludente da fabricação das identidades, advogando,
assim como fez o filósofo francês, um uso estratégico das identidades. Encerrando a última
parte do capítulo, é explicitado como o campo queer pode operar enquanto um lugar aberto de
crítica às perspectivas identitárias tradicionais.

No último capítulo, é demonstrado como Butler realiza, a partir da concepção


foucaultiana, uma genealogia do gênero. Para isso, antes de pensar suas especificidades,
expõe-se a trajetória percorrida por Foucault na passagem de sua arqueologia para seus estudos
genealógicos, através dos quais foi possível a construção conceitual das ideias de campos
discursivos e de relações de saber-poder. Após isso, analisa-se como a genealogia se configura
a partir de um exercício crítico de diagnóstico do presente, o qual não encontra um modelo
rígido e prévio de análise, mas busca acompanhar as movimentações do poder e seus possíveis
pontos de ruptura com a intenção de permitir a modificação dos campos discursivos e práticas
a eles associadas.

Por fim, é explicitado a construção da genealogia de gênero em Butler que, questionando


as normatividades, permite a abertura à transformação no campo das relações de sexo-gênero.
Assim, o exercício teórico realizado pela autora permite uma postura crítica em relação a própria
filosofia contemporânea e, mais especificamente, em suas relações com os estudos de gênero.
Isso ocorre pela implicação necessária entre a produção do conhecimento e política, através da
qual não apenas aparatos epistemológicos são postos em questão, mas também relações sociais
e aspectos culturais importantes dos marcos de inteligibilidade e lutas por reconhecimento.

Nesse sentido, a presente obra se coloca também enquanto um exercício de crítica. Essa
é posta em funcionamento através de uma produção intelectual específica que, objetivando
pensar a genealogia e a teoria de gênero em Judith Butler permite, enquanto uma espécie de
efeito colateral necessário, repensar o espaço da crítica e dos estudos de gênero no edifício da
filosofia institucionalizada, interrogando-a acerca do que pode ou não ser objeto de reflexão
filosófica, bem como acerca da finalidade do pensamento filosófico em seus imbricamentos
com a cultura e política.

19
PARTE I

20
1. O GÊNERO PERFORMATIVO

1.1. Alguns pressupostos conceituais-linguísticos do gênero performativo

Judith Butler, em suas discussões acerca do gênero (1993, 1999, 2004), apresenta o
caráter performativo do gênero destacando sua importância na construção dos processos de
inteligibilidade humana na estrutura generificada e binária na qual vivemos. A performatividade
nessa teoria está atrelada a uma repetição das normas de gênero que estão encadeadas numa
lógica heterossexual dos corpos e desejos. Nesse sentido, a ideia de performatividade mostra
como uma matriz de inteligibilidade de sexo-gênero binária impõe uma fabricação específica
dos gêneros.

O conceito de gênero performativo, ou seja, a postura do gênero enquanto discurso


normativo materializado em ato, seria, para Butler (1999, 2004), a ideia privilegiada para se
pensar a construção do gênero, e, consequentemente, da inteligibilidade humana. Assim,
seria na repetição do gênero por sujeitos determinados que estaria o lugar de sustentação da
própria ideia de gênero, bem como da matriz de inteligibilidade binária normativa masculino-
feminino, e também as possibilidades de questionamento dessa mesma norma.

O conceito de performatividade em Butler dialoga em grande medida com a teoria dos


atos performativos de Austin (1990) e a releitura desse autor desenvolvida por Derrida (1971).
Para Austin (1990), os atos performativos estabelecem a possibilidade de outra concepção de
linguagem que, estando atrelada à performatividade, vincula-se aos usos em contextos reais
da língua, e não a uma linguagem ideal. Austin (1990) realiza a distinção entre os atos de
fala constativos e performativos, sendo os primeiros atos que descrevem e os segundos atos
que fazem, praticam algo. Nesse sentido, nos atos performativos a própria fala realiza a ação
através de um enunciado, alimentando e criando ao mesmo tempo a realidade social.

Já a partir dessa leitura inicial do filósofo britânico, é possível identificar aspectos que
serão relevantes na teoria de gênero desenvolvida posteriormente por Butler. Nesse sentido,
o foco que Austin (1990) dá ao contexto de execução enquanto campo possibilitador do ato
performativo, bem como a impossibilidade de se analisar esse tipo de ato enquanto verdadeiro
ou falso, substituindo esse aspecto pela questão da sua eficácia ou fracasso, são características
que, acrescidas das posteriores críticas realizadas por Derrida (1971), darão esteira teórica
para a consolidação do conceito de gênero performativo. Esses aspectos dos atos de fala
performativos em Austin (1990) são possíveis, pois

21
A categoria “performatividade” em geral está vinculada com “efetuar”, “executar” ou
“fazer”, bem como “representar” ou “interpretar”. Especificamente, no contexto da
teoria dos atos de fala, a categoria se refere, principalmente, ao fazer o que se enuncia.
[...] São as emissões gramaticalmente corretas que, sem pretenções de verdade, têm
a propriedade de fazer e, na pior das hipóteses, de fracassar. Portanto, o objetivo das
declarações performativas, antes de descrever ou constatar a verdade ou falsidade dos
acontecimentos, é produzir uma transformação do dado ou criar a realidade através
de uma locução performativa (DE SANTO, 2013, p. 372) (tradução nossa).

É especialmente importante nas teorizações desenvolvidas por Butler a questão da


impossibilidade de se decidir pela veracidade ou falsidade dos atos performativos. Nesse
contexto, Butler (1999, 1993) radicalizará esse aspecto da teoria dos atos de fala para
questionar a possibilidade de se defender um gênero como verdadeiro ou, ainda, que uma
expressão de gênero possa ser considerada como mais verdadeira que outra. Nesse sentido, os
atos performativos de gênero podem ser descritos como manufaturados socialmente, de forma
que

Como os atos de fala, os atos de gênero – ou o que Butler chama de “estilos de


carne” – seriam performativos que estariam fora do regime falso/verdadeiro e
apontariam para a fragilidade da normatividade de gênero ao explicitarem que a
norma só pode funcionar como uma estrutura de citação e de repetição contínua.
Corpos performam gêneros, e o fazem pela repetição, sem nunca serem idênticos a si
mesmos (RODRIGUES, 2012, p. 153).

Essa repetição, para Austin (1990), exige contexto e intencionalidade, e serão sobre
esses aspectos que incidirão as críticas derridianas (1971), as quais Butler aderirá de forma
a complexificar e radicalizar o caráter construído das expressões de gênero, o que culminará
com sua reivindicação de completa desnaturalização dessas expressões. Nesse sentido, se para
Austin (1990), o campo de exercício dos atos de fala performativos pressupõe um contexto
de enunciação específico e um sujeito consciente e intencionado em sua ação, para Derrida
(1971) e Butler (1993, 1999, 2004), há uma relativização desses aspectos, o que possibilitará a
reconfiguração das próprias experiências performativas.

No que se refere à necessidade de um contexto específico de enunciação para a


constituição de um enunciado performativo, Austin (1990) afirma que “genericamente falando,
é sempre necessário que as cirscunstâncias em que as palavras forem proferidas sejam,
de algum modo, apropriadas [...]” (p. 26, grifos do autor). Assim, a ausência de contexto
correto e invariável inviabiliza o ato performativo, constituindo o que o autor denomina de
performativos infelizes ou fracassados. Dessa forma, presume-se que o contexto de enunciação
é prévio ao sujeito do enunciado e, além disso, que esse sujeito é sempre um sujeito consciente

22
dos atos que produz, de forma que, na teorização austiniana, acaba-se por impor a necessidade
da delimitação exaustiva do contexto (NAVARRO, 2008).

Ora, tanto o aspecto do contexto delimitado e prévio ao ato, como a exigência de um


sujeito consciente que torna possível os atos performativos felizes são questionados pelas
críticas realizadas ao filósofo inglês por Derrida (1971). Nesse sentido ele afirma:

Devo considerar bem conhecido e evidente que as análises de Austin exigem um valor
de contexto em permanência, e mesmo de contexto exaustivamente determinável,
direta ou teleologicamente; e a longa lista de fracassos (infelicidades) do tipo variável
que podem afetar o acontecimento performativo se torna um elemento do que Austin
sempre chama de contexto total. Um desses elementos essenciais – e não um entre
outros – continua sendo classicamente a consciência, a presença consciente da
intenção do sujeito falante com relação à totalidade de seu ato locutório. Portanto, a
comunicação performativa volta a ser comunicação de um sentido intencional, mesmo
que esse sentido não tenha referência na forma de uma coisa ou de um estado de coisas
anterior ou exterior. Essa presença consciente dos enunciadores ou receptores que
participam da realização de um performativo, sua presença consciente e intencional
em toda a operação teleologicamente implica que nada escapa à totalização (p. 17)
(tradução nossa).

A teleologia do ato performativo encontrada em Austin é questionada por Derrida


devido a possibilidade de modificação do próprio ato a partir da enunciação de atos infelizes
ou fracassados, que, antes de apenas inviabilizarem sua efetividade, podem, ainda, reformular
os próprios termos nos quais os performativos são executados. Dessa forma, há o abandono de
uma perspectiva necessariamente contextual, consciente e intencionada do ato performativo
como aspectos necessários para sua legitimação (DE SANTO, 2013). O contexto passa a ser
visto como algo insuficente enquanto referência, pois, em qualquer situação dada, o contexto
trará consigo possibilidades específicas de recontextualização ou redescrição interpretativas
que extrapolarão as interpretações inicialmente instituídas, constituindo-se assim enquanto um
campo insaturável de sentidos (NAVARRO, 2008).

É na esteira dessa crítica que Butler realizará a apropriação do pensamento de Derrida


na construção de sua teoria de gênero, partindo, principalmente, do lugar que ocupa a derrocada
do sujeito intencional na produção dos atos performativos. Nesse sentido, para a filósofa norte-
americana esses atos sustentam-se a partir da citação e repetição de atos que prescindem de
um sujeito consciente e soberano de enunciação, o que possibilita a própria sustentação da
repetição enquanto algo que apelaria a uma naturalidade originária do ato repetido:

Graças a esse anonimato citacional, os efeitos sedimentados conseguem adquirir o


status de lei ou autoridade inapelável. Por isso Butler insiste que todo ato do presente

23
é necessariamente uma repetição de um passado subsumido e que sua força reside
nesse peso histórico esquecido. Nesse sentido, para Derrida e para a filósofa, todo ato
singular não passa de um apelo à citação que apaga seu status como tal (DE SANTO,
2013, p. 379) (tradução nossa).

Esse aspecto citacional dos atos performativos, em Derrida (1971), deve-se,


principalmente, à iterabilidade que engendra um todo significante. Assim, além de não exigir
um referente determinado, e por consequência disso, produz-se também a ausência de um
significado pré-determinado, pautado estritamente na intenção do sujeito do enunciado. É
nesse contexto que, desde Austin (1990), mas por justificativas internas à estrutura e externas
contextuais, a ideia de verdade ou falsidade do enunciado performativo é substituída pela
questão de sua eficácia, bem como, já a partir de Derrida (1971), das possíveis alterações de
sua produção quando do fracasso desses mesmos enunciados.

No que tange à iterabilidade, não é possível estabelecer um código prévio fixo que
sirva de estruturante unívoco dos enunciados, apesar de que a própria capacidade de repetição
possibilita a identificação de marcas implícitas que permitem o “deciframento” e transmissão
desse mesmo código (DERRIDA, 1971). Assim, o caráter iterável dos atos performativos
seria a caracecterística presente em todas as expressões dessa modalidade de comunicação.
Essa característica levaria a um não privilégio do contexto em relação às possibilidades de
ruptura presentes no processo de iterabilidade, que poderiam, inclusive, levar um determinado
enunciado a funcionar fora de seu contexto original (GARCÍA, 2003). No entanto, o que Derrida
pretende ao investir no conceito de iterabilidade não é negar as influências que os aspectos
contextuais operam nos atos performativos, ainda que não governados necessariamente por
uma intencionalidade consciente, mas chamar a atenção “[...] precisamente para o caráter
citacional, iterável ou até ritual, que exige que todas as ‘marcas’ representem seu próprio
caráter significante” (NAVARRO, 2008, p. 621) (tradução nossa).

É possível notar, assim, que não há em Derrida (1971) uma recusa dos aspectos
comunicacionais defendidos por Austin (1990) em sua teoria dos atos de fala, uma vez que
uma das principais características do conceito de iterabilidade não é a impossibilidade de
comunicação, mas exatamento o inverso disso. O que o filósofo expõe em suas críticas a Austin
é a impossibilidade de transformar o aspecto comunicativo do signo numa pressuposta verdade
metafísica anterior à própria enunciação, sendo necessário não apenas “[...] passar de um
conceito a outro, mas inverter e deslocar uma ordem conceitual tanto quanto a ordem conceitual
clássica” (p. 25) [[...] passar de un concepto a otro, sino em invertir y em desplazar un orden
conceptual tanto como el orden no conceptual clássico], sendo essa a finalidade primeira do
trabalho que Derrida (1971) denomina de desconstrução.

24
É a partir desse deslocamento na análise que é possível defender a não necessidade
de consciência do sujeito do enunciado na emissão de atos performativos, o que, por fim,
permitiria a não saturação do contexto:

Sobretudo essa ausência essencial da intenção na atualidade do enunciado, essa


inconsciência estrutural, se vocês quiserem, impede qualquer saturação de contexto.
Para que um contexto seja exaustivamente determinável, no sentido exigido por
Austin, seria necessário pelo menos que a intenção consciente estivesse totalmente
presente e atualmente transparente para si e para os outros, uma vez que ela é um foco
determinante do contexto (DERRIDA, 1971, p. 22) (tradução nossa).

Além da questão da intencionalidade do contexto, chama a atenção na releitura realizada


por Derrida (1971) o aspecto já citado de possibilidade de pensar os atos performativos a
partir de seus fracassos, descentrando, assim, as análises focadas apenas nos performativos
felizes ou bem-sucedidos. Para Austin (1990), a eficiência das emissões performativas está
necessariamente atrelada à produção do êxito do ato de fala em realizar o que enuncia, no
entanto, como exposto por Derrida (1971), o risco de fracasso, ainda que explicitado por Austin
como algo que pode afetar a enunciação performativa, não é colocado pelo filósofo britânico
como característica essencial, mas, ao contrário disso, como exceção que inviabiliza o próprio
ato.

Para Derrida (1971), não é enquanto excessão que o fracasso ou erro deve ser pensado,
mas enquanto uma possibilidade sempre presente devido ao caráter aberto de qualquer ato
performativo, erro esse que pode, inclusive, alterar as condições necessárias para a produção
de performativos “felizes”. Nesse sentido,

[...] Austin exclui essa eventualidade (e a teoria geral que a explicaria) com uma
espécie de esforço lateral, lateralizante, mas, por isso, muito mais significativo. Ele
insiste no fato de que essa possibilidade permanece anormal, parasitária, que constitui
uma espécie de extenuação, mesmo de agonia da linguagem que deve ser mantida
fortemente à distância ou da qual é necessário desviar resolutamente (DERRIDA,
1971, p. 19) (tradução nossa).

Essa é uma característica dos atos performativos que contribuirá enormemente com
os desenvolvimentos teóricos no campo dos estudos de gênero que Butler (1993, 1999, 2004)
realiza através da incorporação do conceito de performatividade na análise da construção,
consolidação e manutenção das normatividades de gênero, bem como suas possibilidades de
subversão, uma vez que entra em cena a explicitação dos aspectos conflitivos das enunciações
performativas (NAVARRO, 2008). Nessa incorporação há destaque para a defesa derridiana

25
de que um enunciado performativo é sempre citação de outro enunciado, o que consolida uma
relação sempre aberta com o passado enquanto constituinte e o futuro enquanto algo a ser ainda
construído, uma vez que, devido a essa abertura constitutiva, todos os enunciados estão, em
alguma medida, condenados a fracassar, sendo essa uma de suas caractísticas estruturais (DE
SANTO, 2013, p. 378).

Ao se investir na ideia de fracasso do ato performativo, torna-se possível também pensar


sua possibilidade de emergência em contextos “não sérios”, como é o caso da teatralidade
(DERRIDA, 1971), aspecto que será também apropriado e repensado por Butler (1993, 1999).
A conexão entre esses aspectos se dá de forma tímida na crítica derridiana à teoria de Austin,
mas aponta para uma possível influência na centralidade que Butler dá ao aspecto teatral da
feitura do gênero (1993, 1999) ao desenvolver sua teoria (DE SANTO, 2013). Nesse sentido,
a defesa do gênero enquanto ficção política, consolidada através de processos performativos
reiterados ou subvertidos pelas versões que incorporam seus signos por meio da atuação do
gênero, torna-se possível devido ao desinvestimento da ideia de necessidade de “contextos
sérios” (AUSTIN, 1990) para a existência eficaz dos atos performativos.

A partir desses pressupostos linguísticos foi possível a Butler construir uma ontologia
desontologizante da categoria gênero, de forma a explicitar seus aspectos arbitrários de
construção e consolidação baseados, predominantemte, numa matriz de inteligibilidade
heterossexual. Essa matriz deixa de ser pensada enquanto um processo natural, com origem
e baseado em uma expressão original de gênero, para ser analisada a partir de um processo
performativo de imitação sem original, de forma que,

Essa proposta ontológica reconhece que o gênero ‘é’ uma série de imitações de outros
atos, gestos e práticas. O gênero tomado como efeito de ações repetidas, substantivado
– e não substancial –, naturalizado – e não natural –, é explicado por Butler através
de uma categoria dinâmica que pode ser liberada de um agente prévio de ação (DE
SANTO, 2013, p. 382) (tradução nossa).

1.2. A desontologização do sujeito generificado

A relação entre o ato performativo e a criação de realidades é a maior contribuição de


Austin (1990) e Derrida (1971) à ideia de performatividade posteriormente desenvolvida por
Butler (1999). No entanto, como destaca Pinto (2002) ao discutir as influências do pensamento
de Austin na performatividade tal como pensada por Butler, no encontro com o conceito,

26
Butler inseriu a questão do corpo na construção do performativo. Dessa forma, ao se falar
em performatividade em Butler (1999) fala-se de um sujeito de linguagem que não apenas
enuncia e cria realidades, mas que também é criado e materializado enquanto sujeito a partir
do performativo, forjando, reiterando e subvertendo a produção da linguagem e dos próprios
corpos por ela possibilitados enquanto espaços de enunciação.

É a partir dessa perspectiva performativa corporificada que se deve compreender a


construção teórica de Butler acerca da fabricação dos gêneros. Antes de tudo, essa é uma
concepção que desnaturaliza as experiências generificadas a partir de uma crítica interna ao
conceito de gênero no âmbito dos movimentos feministas. Para Butler (1993, 1999), a apropriação
desse conceito operava uma paradoxal naturalização das diferenças de gênero, constituindo-se
enquanto ferramenta que, ainda que explicitando o caráter social das experiências de gênero,
acabava por reforçar a continuidade entre sexo, visto como natural, e gênero, enquanto categoria
cultural.

Além disso, as discussões empreendidas por Butler contribuem com a consolidação


das críticas ao feminismo de segunda onda, que, ao operar no marco heterossexual, branco
e de um espaço privilegiado de classe, acabava por invisibilizar experiências marcadas por
outros atravessamentos de diferença que engendravam opressões específicas, como nos casos
das mulheres negras e mulheres transexuais (BARIL, 2007). É nesse sentido que Butler (1993,
1999, 2004) constantemente alertará em relação ao caráter excludente que qualquer categoria
identitária opera, ainda que com finalidade de emancipação como no caso da categoria mulheres
no movimento feminista, de forma que,

[...] o feminismo deve tomar cuidado para não idealizar certas expressões de gênero
que, por sua vez, produzam novas formas de hierarquia e exclusão. Em particular,
opus-me aos regimes de verdade que estipulavam que certos tipos de expressões de
gênero eram falsas ou derivadas, e outras verdadeiras e originais (BUTLER, 1999, p.
VIII) (tradução nossa).

A partir dessa leitura é possível notar o paradoxo engendrado no investimento


na categoria política de mulheres enquanto sujeito do feminismo. Se, por um lado, essa
demarcação é necessária para instituir a própria inteligibilidade do movimento, por outro, a
demarcação dos sujeitos do movimento acaba por operar exclusões a partir de categorias que
são sedimentadas, como as de sexo e gênero distintos e binários, bem como uma expressão
de sexualidade específica, a heterossexual (ROSA, 2012). Ou seja, o que Butler defende em
sua crítica à apropriação do conceito de gênero é que a operação do movimento feminista
pode, ao naturalizar uma certa expressão dos gêneros, produzir um efeito diverso ao desejado
inicialmente, que seria a superação da opressão das mulheres. Sobre a especificidade da leitura
realizada por Butler, Baril (2007) afirma:

27
Portanto, esta filósofa acredita que um certo uso da categoria de mulheres gera os
efeitos opostos de uma liberação. Ela argumenta que as mulheres são os efeitos de
enunciados performativos elaborados num quadro heterosexista. Assim, o uso de tais
categorias de identidade é paradoxal, pois visa, por um lado, liberar o grupo-alvo
e, por outro lado, incluí-lo, pelo mesmo fato, em uma estrutura normativa rígida e
que, portanto, ignora o caráter fictício e construído dessa categoria (p. 69) (tradução
nossa).

É essa interpretação crítica que permite a Butler articular de forma precisa o campo
dos gêneros com a constituição, consolidação e manutenção de uma determinada organização
política e cultural, de forma que “[...] torna-se impossível separar ‘gênero’ das interseções
políticas e culturais nas quais é invariavelmente produzido e mantido” (BUTLER, 1999, p. 06)
(tradução nossa). Nesse sentido, antes de qualquer possibilidade de naturalização do sistema
de gênero binário, o que é defendido pela filósofa é a artificialidade dos construtos de gênero
que acabam, devido ao seu caráter repetitivo, naturalizando a relação entre uma determinada
anatomia, ou sexo, e expressões de gênero e sexualidade específicas.

Para Butler (1999), a ideia de um sistema de gênero que reflete diferenças sexuais naturais
não se sustenta, uma vez que é o próprio processo de naturalização que impõe essa relação de
mimetismo. Apesar de suas críticas em relação às perspectivas feministas que adotam para si
esse pressuposto, não é possível definir o pensamento de Judith Butler como pós feminista, uma
vez que, através de sua crítica, não há a intenção de suplantar as teorias e políticas feministas,
mas radicalizá-las através de uma crítica interna (BUTLER; TOHIDI, 2017). Esse aspecto
permite também destacar o não abandono da própria categoria mulheres, mas apenas uma
postura de uso estratégico dessa identidade para a ação política, mantendo o conceito aberto a
ressignificações para que esse não opere processos de exclusão que inviabilizem a agência de
sujeitos determinados (BARIL, 2007).

Essa compreensão e apropriação do feminismo, bem como do conceito de mulheres,


relaciona-se com a própria concepção de identidade que atravessa a teorização de Butler. Nesse
sentido, o gênero seria um aspecto indissociável da constituição subjetiva em nossa cultura,
sendo impossível pensar o gênero enquanto categoria pré ou pós identitária, uma vez que os
moldes de inteligibilidade que possibilitam o reconhecimento do sujeito enquanto humano
passa, necessariamente, pela sua inclusão nas categorias de gênero disponíveis (BUTLER,
1999). Dessa forma, como defende Baril (2007), “[...] para Butler, a noção de identidade
independente, não generificada, é absurda. A identidade é, segundo ela, sempre já ‘sexuada’ no
nível social, no sentido de que não é possível, na estrutura dominante, definir a identidade de
uma pessoa sem que ela seja generificada” (p. 73) (tradução nossa).

Essa relação intrínsica entre gênero e constituição identitária dos sujeitos é possível
devido a não conexão entre produção de gênero e a pré-existência de um sujeito intencionado

28
e consciente que elegeria seu gênero. Ou seja, o gênero, ainda que se tratando de um construto
social específico que engendra as identidades, não pressupõe um agente prévio que o produza,
o que levaria à conclusão da existência de um sujeito anterior às categorias de gênero. Nesse
sentido,

[...] se o gênero é construído, não é necessariamente construído por um “eu” ou


um “nós” que encontra-se antes dessa construção em qualquer sentido espacial ou
temporal de “antes”. De fato, não está claro que possa haver um “eu” ou um “nós”
que não tenha sido submetido, sujeitado ao gênero, onde generificar é, entre outras
coisas, as relações diferenciadoras pelas quais os sujeitos falantes passam a existir.
Submetido ao gênero, e subjetivado pelo gênero, o “eu” não precede nem segue o
processo desse generificação, mas emerge apenas dentro e como matriz das próprias
relações de gênero (BUTLER, 1993, p. 07) (tradução nossa).

Essa matriz de gênero é uma das responsáveis pela delimitação do campo do humanamente
inteligível, mantendo assim relações de coerência que culminam com a determinação linear e
excludente entre sexo, gênero e sexualidade, numa dinâmica na qual o pertencimento a uma
das categorias binárias pré-estabelecidas impossibilita a identificação com seu par, bem como
determina os demais caracteres de sexo-gênero dos sujeitos (BUTLER, 1999).

É a partir da crítica a esse aspecto restritivo e excludente das identidades de sexo-


gênero que Butler opera o questionamento do aspecto identitário como marco principal que
viabilizaria a agência política dos indivíduos e coletivos. Essa crítica, no entanto, não advoga
pelo abandono das identidades ou recusa de seu potencial para a transformação dos marcos
sociais de inteligibilidade que regem as experiências humanas, uma vez que a unificação
possibilitada pelo marco identitário potencializa a ação política. O que a filósofa propõe a partir
da subversão do próprio conceito de identidade é uma utilização aberta dos marcos identitários,
com a finalidade de evitar uma imposição rígida que acabe por excluir experiências e grupos
que não se adequem aos marcos normativos estabelecidos pelos movimentos de minorias, o
que ocasionaria a produção de exclusões que imporiam uma postura antagônica à defendida
pelos próprios movimentos. Dessa forma,

Segundo Butler, as políticas de identidade, baseam-se na identidade específica de um


grupo de pessoas (mulheres, gays e lésbicas etc.) e, portanto, acerca das categorias
de identidade, tem-se vantagens e desvantagens. Por um lado, eles fornecem uma
plataforma unificada para os grupos reivindicarem seus direitos, proporcionando-lhes
certa estabilidade e firmeza. Por outro lado, esse tipo de política tende a homogeneizar
os grupos dados, apagar as diferenças entre as pessoas e silenciar as discussões e
conflitos inerentes a qualquer agrupamento. Dessa maneira, as políticas identitárias
normatizam as pessoas, para forçá-las a entrar na definição fixa de identidade ou
grupo (ou categoria de identidade) ou excluem aqueles que se recusam a fazê-lo
(BARIL, 2007, p. 75) (tradução nossa).

29
Nesse sentido, o que Butler reinvidica é a necessidade de desnaturalização das identidades
sexuais e de gênero que permita o vislumbre dos gêneros não como realidades prévias aos
sujeitos, mas como um campo normativo que delimita o próprio espaço que possibilita, ou
não, a identificação dos sujeitos enquanto humanos. As expressões de gênero seriam, assim, a
postura em ato de uma cópia sem original que possibilitaria aos sujeitos seu ingresso no próprio
campo normativo da cultura. Ou seja, não haveria uma verdade ontológica dos gêneros, mas
uma construção artificial que, como principal ferramenta de consolidação, utilizaria o recurso
à naturalização dessas expressões.

Ao questionar a pretensa naturalidade das expressões de gênero binárias, Butler conclui


que “[...] não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; que a identidade é
performativamente constituída pelas mesmas ‘expressões’ que são expostas como sendo seus
resultados” (BUTLER, 1999, p. 33) (tradução nossa), de maneira que se torna impossível
reivindicar uma verdade dos gêneros que se localize de forma anterior ao sujeito. Não haveria,
assim, um gênero original que passaria a ser repetido através de atos performativos, mas a
produção paródica da própria ideia de original baseada na pretensa naturalidade das expressões
de gênero. É a partir desse pressuposto que Butler opera uma desontologização do sujeito
generificado, o que possibilita pensar alternativas no que se refere à postura do gênero em ato
que deixem em aberto o estatuto de veracidade ou falsidade dessas expressões, uma vez que, se
“[...] os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, nem reais nem aparentes, nem originais
nem derivados. Como portadores credíveis desses atributos, no entanto, os gêneros também
podem se tornar completamente e radicalmente incríveis” (BUTLER, 1999, p. 180) (tradução
nossa).

Dado que o campo do gênero se constitui enquanto espaço de produção da própria


inteligibilidade humana, ao reivindicar possibilidades outras de expressões de gênero, o que
se defende, por consequência, é a revisão do próprio conceito de humano. Ora, assim como os
conceitos de homem e mulher, masculino e feminino, o conceito de humano se sustenta a partir
de generalizações que implicam a adesão a pressupostos assimilados como universais, naturais
e inevitáveis (ROSA, 2012). No entanto, se o recurso à originalidade que justifica a reprodução
de determinadas performances sociais é abandonado em detrimento de uma leitura que abdica
da pretensão de estabelecimento de uma ontologia inevitável para a experiência humana, passa
a ser possível pensar o campo do humanamente inteligível, assim como as expressões de gênero
que o possibilita, enquanto marcos normativos passíveis de alteração.

O marco de inteligibilidade humana no que tange às suas expressões de gênero passa,


assim, a ser visto como um espaço de produção de hierarquias. Essa hierarquia é baseada
na constituição da diferença sexual enquanto categoria natural para a consolidação do molde
binário de gênero. É contra essa naturalização que opera a teoria de gênero desenvolvida por

30
Judith Butler, de forma que o caráter culturalmente construído das expressões de gênero é
explicitado, bem como as relações políticas que sustentam essa hierarquia. Nesse sentido,

Butler também insiste no fato de que ‘sexo’, gênero, sexualidade, orientação sexual
e identidade sexual não compartilham nenhum elo estrutural, necessário ou mesmo
metafísico. Ela lembra que esses vários elementos foram justapostos culturalmente
para se encaixarem em uma matriz de poder heteronormativa e heterosexista (BARIL,
2007, p. 63) (tradução nossa).

Essa perspectiva permite, além de um questionamento teórico, o investimento num


pensamento que possibilita a ação política, num sentido de propor a necessidade de revisão
do campo normativo e simbólico que sustenta o sistema binário de gênero com a finalidade
de ampliar o campo do humanamente inteligível. Assim, o ideal de gênero é questionado
em sua pretensão de estabelecimento de uma ontologia teleológica para a consolidação das
experiências humanas, o que abre espaço para a construção de outra ética de sexo-gênero,
pautada na desnaturalização das experiências.

Ao questionar o campo normativo de pretensões naturais, Butler explicita o embuste


presente na instituição do essencialismo na definição dos gêneros. Nesse sentido, não haveria
uma essência ou naturalidade dos gêneros, o que, por consequência, explicita o equívoco que
seria pensar as expressões de sexo-gênero enquanto estáveis e substanciais (BARIL, 2007).
Com isso, pode-se notar duas formas de pensar as experiências de gênero, uma de pretensão
natural e inflexível, o que coincidiria com o que, para alguns autores, seriam as representações
ideológicas do gênero (HÉRITIER, 1996; DE SOUSA FILHO, 2017); e uma perpectiva crítica
que defende a desontologização dessas experiências, distinção sobre a qual Butler (1999)
afirma:

Podemos ser tentados a fazer a seguinte distinção: uma perspectiva descritiva do


gênero inclui considerações sobre o que torna o gênero inteligível, uma investigação
sobre suas condições de possibilidade, enquanto uma explicação normativa procura
responder à pergunta de quais expressões de gênero são aceitáveis e quais não são,
fornecendo razões persuasivas para distinguir entre essas expressões dessa maneira.
A questão, no entanto, sobre o que se qualifica como ‘gênero’ já é, em si, uma questão
que atesta uma operação de poder amplamente normativa, uma operação fugidia de
‘qual será o caso’ sob a rubrica de ‘qual é o caso’. Assim, a própria descrição do
campo de gênero não faz sentido a priori ou separada da questão de sua operação
normativa (P. XXI) (tradução nossa).

É esse vínculo entre as experiências de gênero e um determinado campo normativo que


permite à Butler pensá-las enquanto performativas. Nesse sentido, a ideia de performatividade

31
ocupa o conceito anteriormente estabelecido enquanto identidade de gênero, num processo no
qual o gênero deixa de ser entendido como algo que o sujeito é, para ser inserido no campo de
uma prática que o sujeito faz e que o produz como sujeito (BUTLER, 1999; LLOYD, 1999).

A compreensão do gênero enquanto um fazer performativo não inviabiliza pensar o


sujeito, tampouco leva à sua negação. O que ocorre é uma mudança no foco analítico, uma vez
que o sujeito deixa de ter estatuto ontológico anterior aos seus atos de gênero (LLOYD, 1999),
ou seja, não há primeiro o sujeito que engendraria o gênero, mas um sujeito que se estabelece
na própria fabricação dos gêneros através da performatividade. Esse movimento ocorre porque,
a partir da perspectiva da performatividade de gênero, é a própria linguagem e discursos que
possibilitam sua emergência, sendo esses anteriores ao sujeito e não o inverso disso (SALIH,
2012), o que permite a Butler utilizar a performatividade como categoria filosófica (NAVARRO,
2008) que possibilita a desontologização da própria ideia de sujeito generificado.

1.3. Inteligibilidade humana e matriz de gênero

A leitura performativa do gênero em Butler desnaturaliza e desontologiza essa categoria,


no entanto, isso não opera uma exclusão do gênero do campo do que constitui os sujeitos. Esse
movimento se opera, pois, se por um lado, o gênero não pode ser pensado como possuindo
existência anterior ao sujeito e aos atos que o tornam viável, por outro, esse sujeito só se consolida
enquanto humanamente inteligível se inserido numa das expressões performativas de gênero
aceitas. Ou seja, o gênero como ato performativo corporificado não é prévio ao sujeito, uma
vez que emerge no mesmo momento de sua emergência, mas, para que esse seja reconhecido
enquanto tal, é necessário sua adesão à matriz de gênero normativamente instituída, uma vez
que “[...] a matriz das relações de gênero é anterior à emergência do humano” (BUTLER, 1993,
p. 07) (tradução nossa).

É o caráter prévio das normas de gênero em relação à experiência dos sujeitos sócio-
historicamente localizados que engendra relações normativas para a adesão dos sujeitos à
matriz de inteligibilidade no campo do gênero. Nesse sentido, uma série de estratégias sociais
opera para garantir a conformidade dos sujeitos às expressões de gênero o mais próximas
possíveis do ideal regulatório que as instituem. Sobre o caráter compulsório na imposição de
gêneros inteligíveis aos sujeitos Butler afirma:

[...] como estratégia de sobrevivência nos sistemas compulsórios, o gênero é uma


performance com consequências claramente punitivas. Os gêneros discretos fazem
parte do que ‘humaniza’ os indivíduos na cultura contemporânea; na verdade, punimos
regularmente àqueles que não conseguem fazer seu gênero corretamente. Como não

32
existe uma ‘essência’ que o gênero expresse ou externalize, nem um ideal objetivo ao
qual o gênero aspira, e porque o gênero não é um fato, os vários atos de gênero criam
a idéia de gênero e, sem esses atos, não haveria absolutamente gênero. O gênero é,
portanto, uma construção que oculta regularmente sua gênese; o acordo coletivo tácito
de realizar, produzir e sustentar gêneros discretos e polares como ficções culturais
é obscurecido pela credibilidade dessas produções – e pelas punições que ocorrem
por não se concordar em acreditar nelas; a construção ‘compele’ nossa crença em
sua necessidade e naturalidade. As possibilidades históricas materializadas através
de vários estilos corporais nada mais são do que aquelas ficções culturais reguladas
punitivamente alternadamente incorporadas e desviadas sob coação (BUTLER, 1999,
p. 178) (tradução nossa).

Essa relação apontada por Butler explicita o campo no qual as “escolhas” de gênero
ocorrem. Nesse sentido, nem a leitura voluntarista nem a leitura determinista para a constituição
dos sujeitos generificados dão conta da complexidade do processo. Numa perspectiva
voluntarista, os sujeitos são pensados enquanto completamente autônomos na definição do seu
gênero, o que invisibiliza todos os processos normativos, com expressões de coação inclusas,
que delimitam as possibilidades dessa escolha. Já uma leitura determinista trata esse campo
normativo como completamente rígido, não passível de modificação ou subversão, o que acaba
por excluir qualquer possibilidade de agência do sujeito frente às determinações, sejam elas de
caráter natural ou social, do gênero.

Assim, em Butler, encontramos uma leitura que possibilita uma visão mais complexa
do processo de constituição dos sujeitos generificados. Nesse sentido, instituem-se relações
específicas que tanto constrangem os indivíduos em direção a uma matriz de inteligibilidade a
partir da instituição de normas, tabus e expectativas (CHAMBERS, 2007), o que impossibilita
a escolha do gênero enquanto processo descolado do campo social e político no qual ocorre
(SALIH, 2012), como também possibilitam a reformulação das normas na própria colocação
em ato da partitura de gênero a partir de citações não contextualizadas que podem, além de
produzir punições para os sujeitos que assim agem, modificar a própria matrix de gênero.
Dessa maneira,

Butler defende (ao longo de seu trabalho) que as práticas que produzem sujeitos
generificados também são os locais onde a agência crítica é possível. O gênero é
simultaneamente um mecanismo de constrangimento (um conjunto de normas que
nos definem como normal/anormal) e um local para a atividade produtiva (LLOYD,
1999, p. 200) (tradução nossa).

É através desse processo muitas vezes paradoxal que o sujeito generificado se institui,
de forma que se pode concluir que a matriz de gênero opera de forma indissociável da
produção da inteligibilidade humana. Isso ocorre a partir da delimitação da coerência entre

33
sexo, gênero e sexualidade enquanto uma relação naturalizada que engendra o sujeito moderno
(HAWKESWORTH, 1997). Nesse sentido, a partir da repetição dos atos estilizados de
gênero, o próprio campo do humanamento inteligível vai sendo instituído e, ao mesmo tempo,
reformulado, de forma que

As regras que governam a identidade inteligível, isto é, que permitem e restringem a


asserção inteligível de um “eu”, regras que são parcialmente estruturadas por matrizes
hierárquicas de gênero e heterossexualidade compulsória, operam através da repetição.
De fato, quando se diz que o sujeito é constituído, isso significa simplesmente que o
sujeito é uma consequência de certos discursos governados por regras que governam
a invocação inteligível da identidade. O sujeito não é determinado pelas regras pelas
quais é gerado porque a significação não é um ato fundador, mas um processo regulado
de repetição que se oculta e aplica suas regras precisamente através da produção de
efeitos substancializadores. De certo modo, toda significação ocorre dentro da órbita
da compulsão de repetir; “agência”, então, é localizar-se na possibilidade de variação
nessa repetição (BUTLER, 1999, p. 185) (tradução nossa).

1.4. Reconhecimento, desejo e gênero

É o campo instituído para o humanamente inteligível que possibilitará, ou não, o


reconhecimento social dos sujeitos. Para o desenvolvimento teórico das relações entre o campo
de inteligibilidade humana e reconhecimento social, Butler recorre constantemente em seus
escritos ao pensamento de Hegel. Dessa forma, a partir, principalmente, das discussões acerca
da dialética entre senhor e servo empreendidas por Hegel, Butler busca analisar as possibilidades
de reconhecimento humano no que tange especificamente à produção dos sujeitos generificados.

A análise do reconhecimento em Hegel é precedida pela discussão acerca do desejo


(Begierde), de forma que é a partir dele, em seu processo de negação e consumo do objeto,
que se inicia o movimento que pode propiciar o reconhecimento (WILLIANS, 1997). O que
ocorre nesse movimento é a transição entre o momento do desejo, uma vez que a lógica de
sua satisfação elimina a possibilidade de reconhecimento entre autoconsciências (GADAMER,
1976), e o momento da busca pelo reconhecimento, dialética necessária para a superação
do paradoxo no qual o desejo encontra-se devido a sua necessidade de destruição do objeto
(NEUHOUSER, 2009). Assim, no lugar da destruição, a lógica do reconhecimento possibilita
a emergência de uma realidade intersubjetiva (KOJÈVE, 1969).

A luta é estabelecida enquanto primeiro momento da tentativa de consolidação do


reconhecimento, no qual as duas autoconsciências arriscam a própria vida, engendrando, assim,
uma luta de vida ou morte: “a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo
que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte” (HEGEL,

34
2014, p.145). Essa luta deve pressupor a possibilidade de reconhecimento mútuo, dado que
só faz sentido a luta entre autoconsciências capazes de reconhecer uma a outra. A luta de vida
ou morte ocorre no âmbito da autodeterminação que tem por finalidade a negação do outro,
sendo indispensável o risco à vida para produção do reconhecimento enquanto autoconsciência
(MENESES, 2011).

No entanto, se há morte, há a negação do ser, do puro ser natural que é pré-requisito


para a autoconsciência. Assim, na morte não se obtém o reconhecimento, uma vez que o outro
é eliminado e a negação que ocorre na luta não conserva o que é negado. Depreende-se disso
que o reconhecimento é necessariamente recíproco. Para que haja reconhecimento as duas
consciências-de-si devem agir diferenciadamente (KOJÈVE, 1969). São esses dois momentos
que proporcionam o estabelecimento da dialética senhor-servo enquanto possibilidade de
consolidação do reconhecimento. Assim,

[...] os dois momentos são como duas figuas opostas da consciência: uma, a
consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência
dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor,
outra é o escravo (HEGEL, 2014, p. 147).

A relação senhor-servo ocorre exatamente como saída do impasse da luta de vida e morte,
o que leva a passagem do primeiro momento do desejo enquanto apetite destrutivo ao desejo
de reconhecimento, no qual o outro mantêm-se na relação enquanto momento indispensável,
havendo a necessidade de que esse outro seja não apenas um ser vivo, mas também outra
autoconsciência. Assim, “o ser humano é formado apenas em termos de um desejo direcionado
a outro desejo, o que é – finalmente – em termos de um desejo de reconhecimento” (KOJÈVE,
1969, p. 07) (tradução nossa).

Nessa dialética, o senhor caracteriza-se enquanto pura autoconsciência. Nesse sentido,


e em oposição à figura do servo, ele é pura negatividade por se perceber como não determinado,
sem identificação específica, logo independente:

O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser independente,


pois justamente ali o escravo está retido; essa é sua cadeia, da qual não podia abstrair-
se na luta, e por isso se mostrou dependente, por ter sua independência na coisidade.
O senhor, porém, é a potência sobre esse ser, pois mostrou na luta que tal ser só vale
para ele como um negativo. O senhor é a potência que está por cima desse ser; ora,
esse ser é a potência que está sobre o Outro; logo, o senhor tem esse Outro por baixo
de si: é este o silogismo [da dominação] (HEGEL, 2014, p. 147).

35
Essa relação estabelece um impasse, pois ao tentar realizar a noção de autoidentidade o
senhor procura estabelecer uma relação imediata consigo, mas isso inviabiliza o reconhecimento,
uma vez que esse depende de uma relação mútua com um outro. Ao contrário disso, o senhor
acaba por realizar um movimento de negação do outro, o servo, no entanto, não através da
destruição simples, marca da luta de vida ou morte, mas através da dominação (SAFATLE,
2007; MENESES, 2011).

A dominação, vista pelo lado do senhor, apresenta-se enquanto o inverso do que


pretendeu ser, pois explicita não a autonomia do senhor, mas sua dependência em relação
ao servo. Ou seja, seu reconhecimento ocorre por uma consciência que não pode reconhecer
dada a não reciprocidade da relação estabelecida entre senhor e servo, uma vez que, para
o senhor, o servo apresenta-se enquanto inessencial, de forma que ele não opera no servo
o mesmo movimento que o servo opera em relação ao senhor. Assim, do lado do senhor, o
reconhecimento não se efetiva, pois não reconhece o servo, sendo apenas por ele reconhecido.
O senhor interpreta o servo enquanto uma coisa, através da qual goza da coisa trabalhada numa
relação necessariamente mediatizada pelo servo.

O servo, por seu turno, ocupa na relação de dominação o lado da vida, da coisidade.
É servo por medo da morte e pela possibilidade que essa condição lhe dá de manter a vida,
sendo através da servidão que ocorre a reconciliação com a objetividade necessária para o
reconhecimento da consciência-de-si (MENESES, 2011).

O reconhecimento não é efetivado no percurso expresso na Fenomenologia do Espírito.


Isso se dá porque, para que haja reconhecimento, é necessário certo grau de reciprocidade, ou
seja, que os envolvidos na relação deem um ao outro certo valor que atribuem a si mesmos
(NEUHOUSER, 2009). Nesse sentido, na relação senhor-servo o que é estabelecido é uma
relação de opressão e repressão que inviabiliza o reconhecimento, que só é válido quando o
processo inteiro é recíproco (GADAMER, 1976). Apesar disso, a discussão empreendida por
Hegel (2014) acerca do reconhecimento apresenta-se enquanto uma profícua ferramenta teórica,
tendo sido apropriada para discutir o reconhecimento, notadamente no âmbito da filosofia
política, por diversos autores que se debruçaram sobre esse conceito, partindo de Hegel, mas
extrapolando-o para aplicações em discussões e contextos específicos os mais diversos, como
é o caso da própria Judith Butler (1987).

Em sua obra dedicada a analisar a recepção francesa da filosofia de Hegel, Subjects of


Desire (1987), Butler realiza uma leitura que conecta de forma contundente a produção dos
sujeitos e o desejo numa concepção ampliada desse conceito em relação à desenvolvida por
Hegel. Nesse movimento, a autora toma como foco a questão do reconhecimento que é, ao
fim, desejo de reconhecimento. Assim, Butler (1987) defende que os momentos apresentados
por Hegel na Fenomelogia do Espírito para o reconhecimento são ilustrativos das formas de
satisfação do desejo na constituição de sujeitos certos de si:

36
As cenas provisórias de Hegel, o estágio da autoconfiança, a luta pelo reconhecimento,
a dialética do senhor e do servo, são ficções instrutivas, formas de organizar o mundo
que se mostram limitadas demais para satisfazer o desejo do sujeito de se descobrir
como substância (p. 21) (tradução nossa).

É a partir da relação da autoconsciência com a alteridade que a questão do reconhecimento


ganha forma e importância, pois apenas numa relação de alteridade pode haver a verdadeira
satisfação do desejo, que é, ao fim, desejo por outro desejo. Nesse sentido, Butler (1987)
defende que “[...] o reconhecimento se torna a forma mais sofisticada de reflexão que promete
satisfazer o desejo” (p. 43) (tradução nossa), numa sequência que se inicia com o desejo
enquanto consumação, passa pelo desejo por reconhecimento, chegando finalmente num desejo
por outro desejo, que seria a efetivação do reconhecimento. É a partir dessa interpretação que
Butler (1987) retira o desejo do lugar de uma forma não complexa ou sofisticada de saber e o
eleva ao padrão de verdade que regeria o percurso da Fenomenologia do Espírito.

Para Butler (1987), é o percurso do desejo que permite afirmar a ambiguidade da


autoconsciência, que se dá tanto através da autodeterminação como quanto experiência
extática (ek-static) em sua relação com o mundo e demais autoconsciências. Assim, através do
reconhecimento, o desejo inicial de afirmação da autoconsciência enquanto pura abstração é
abandonado, dando lugar a uma relação que possibilita um movimento singular entre autonomia
e alienação. Nesse sentido, “o desejo aqui perde seu caráter como uma atividade puramente
consumidora e se caracteriza pela ambiguidade de uma troca na qual duas autoconsciências
afirmam sua respectiva autonomia (independência) e alienação (alteridade)” (p.50-1) (tradução
nossa).

Ao desenvolver essa discussão, Butler (1987) recorre à questão do lugar do corpo na


dinâmica do desejo, uma vez que, para ela, a existência da autoconsciência pressupõe não
apenas a vida como encontramos explicitamente em Hegel (2014), mas também uma identidade
corporificada, sendo o corpo o âmbito no qual se encontra o limite da liberdade. A autora
defende que, apesar de Hegel partir do pressuposto de que a vida corporificada é uma pré-
condição para a liberdade, ele ainda mantém a assunção filosófica de que liberdade e vida
corporificada não são essenciais uma para a outra.

O corpo torna-se ainda mais central nas análises desenvolvidas por Butler (1987)
por ser através dele que é possível a transformação do mundo. Assim, a partir das atividades
de transformação do mundo natural em reflexões humanas, o desejo pode manifestar-se, no
sentido de que, expresso através do trabalho, dá forma ao mundo com a finalidade de encontrar-
se refletido nele. Esse processo requer o reconhecimento mútuo entre autoconsciências, pois
só através dele o desejo pode compartilhar uma orientação em direção ao mundo material para
encontrar-se tanto nele quanto nas outras autoconsciências.

37
Esse vínculo forte entre corporeidade e dinâmica do desejo permite que Butler conecte
suas discussões acerca do desejo a partir de Hegel às suas discussões em torno do gênero.
Nesse âmbito, ela defende que a vida do desejo e a vida do gênero não podem ser facilmente
separadas, uma vez que o gênero é uma categoria identitária que, até o momento, tem sido
constitutiva das experiências humanas. Assim, da mesma maneira que o desejo em geral anseia
por reconhecimento, o gênero, sendo animado pelo desejo, também o desejará (BUTLER,
2004).

Essa discussão do reconhecimento a partir do gênero se dá no marco das discussões que


Butler realiza acerca da própria categoria humano. Nesse contexto, algumas vidas, inseridas
sempre num marco normativo, seriam caracterizadas como humanas, enquanto outras, por
fugirem em alguma medida das normas, passariam a ser consideradas como algo menos que
humanas e, assim, indignas de reconhecimento de constituição de um eu. Butler (2004) resume
esse processo da seguinte maneira:

[...] o ‘eu’ pelo qual me encontro ao mesmo tempo constituído por normas e
dependente delas, mas que também se esforça para viver de maneira a manter uma
relação crítica e transformadora com elas. Isso não é fácil, porque o ‘eu’ se torna, até
certo ponto, irreconhecível, ameaçado de inviabilidade, tornando-se completamente
desfeito quando deixa de incorporar a norma de forma a tornar esse ‘eu’ totalmente
reconhecível (p.03) (tradução nossa).

Nesse contexto, emerge o paradoxo do reconhecimento, pois, se por um lado, para


que haja reconhecimento é nessário que hajam normas de inteligibilidade que o possibilitem,
por outro lado, essas mesmas normas podem ser os instrumentos de exclusão e inviabilização
do reconhecimento. Assim, sem reconhecimento não se pode viver, mas ao mesmo tempo os
termos nos quais esse reconhecimento se dá podem tornar a vida não habitável (BUTLER,
2004). Isso ocorre devido ao caráter arbitrário do que é considerado enquanto vida humana,
que, por isso, apresenta-se enquanto um espaço de disputa para uma constituição identitária
que parte das rupturas possíveis do âmbito do que se considera o humano.

No âmbito específico do gênero percebe-se que ser ou tornar-se de um determinado


gênero é sempre algo que passa pelo reconhecimento do outro. Isso estabelece um campo
ético que descentra o indivíduo generificado que, assim, será necessariamente deslocado
constantemente da pretensão de univocidade, levando os indivíduos, muitas vezes, à reprodução
da luta de vida e morte, na qual está em disputa o ser ou não considerados como pessoas e como
humanos dentro dos marcos normativos disponíveis (BUTLER, 2004).

É através dessa luta que ocorrem os processos de violência de gênero. Essa se dá devido
a negação de reconhecimento do outro que não se adequa às normas de gênero instituindo-se

38
um sistema binário (masculino-feminino) de inteligibilidade humana, sistema esse ancorado
na genitália para a instituição de um sistema de sexo-gênero-desejo linear (BUTLER, 1999). A
negação do outro se dá, assim, através da negação de seu corpo, o que corrobora com a conexão
entre desejo e corpo defendida por Butler (1987, 2004), expressando-se através da resistência em
repensar os parêmetros de inteligibilidade para além da reprodução performativa naturalizada
dos gêneros e dos corpos (BUTLER, 1993, 1999, 2004). Nesse sentido, a violência de gênero
“[...] emerge de um profundo desejo de manter a ordem do gênero binário natural ou necessária,
de fazer dela uma estrutura, natural ou cultural, ou ambas, à qual nenhum humano possa se
opor e ainda permanecer humano” (BUTLER, 2004, p. 35) (tradução nossa), desejo esse que
pode ser entendido enquanto mais uma tentativa da autoconsciência negar a necessidade de um
outro para tornar-se verdadeira.

No entanto, além do caminho da violência, outros traçados podem ser construídos a


partir do que Butler (1987, 1997, 2004) denomina de experiência extática do desejo em Hegel.
Se o reconhecimento deve ser um movimento recíproco, é necessário haver em sua instituição
algo que permita que esse vá além dos aspectos incorporativos e destrutivos encontrados na luta
de vida e morte e na dialética senhor-servo. Seria esse o imperativo ético de um reconhecimento
guiado pela possibilidade de aceitação da diferença do outro. Nesse sentido, Butler (2004)
enfatiza a estrutura extática da noção de reconhecimento em Hegel para ir além das duas
figuras principais por ele explicitadas na Fenomenologia do Espírito, pois, para a filósofa, ao
introduzir a noção de reconhecimento na seção da relação senhor-servo, Hegel narra o encontro
primário com o outro, sendo necessário ir além desse momento para que o reconhecimento
efetivamente ocorra, numa leitura pós-hegeliana do reconhecimento (BUTLER, 2005). Isso
permitiria a construção de outra ontologia da diferença e alteridade, na qual o reconhecimento
é um processo em que o eu devém outro e não pode retornar a ser o que era, o que denota a
impossibilidade do eu constituir-se enquanto uma instância relacionada apenas consigo:

Hegel nos deu uma noção extática do eu que é, necessariamente, fora de si, não é
idêntica a si mesma, diferenciada desde o início. É o eu aqui que considera sua reflexão
ali, mas está igualmente ali, refletido e refletindo. Sua ontologia é precisamente ser
dividido e estendido de maneiras irrecuperáveis. De fato, qualquer que seja o eu que
emerge no curso da Fenomenologia do Espírito, ele está sempre a uma distância
temporal de sua aparência anterior; é transformado através do seu encontro com a
alteridade, não para voltar a si mesmo, mas para se tornar um eu que nunca foi.
A diferença o lança para um futuro irreversível. Ser um eu é, nesses termos, estar
à distância de quem se é, não gozar da prerrogativa da identidade própria (o que
Hegel chama de autoconfiança), mas ser lançado, sempre, fora de si mesmo, outro em
relação a si mesmo (BUTLER, 2004, p. 148) (tradução nossa).

Para Butler (2004), é a partir dessa relação extática na dinâmica do reconhecimento que
seria possível passar dos momentos marcados pela vulnerabilidade das figuras narradas por

39
Hegel, para um momento no qual a lógica de destruição é colocada em questão devido à sua
relação intrínseca com o outro, na qual o eu nunca é por conta própria ou isolado, mas estabelece
uma relação ética com o outro que não permite o apagamento de sua própria alteridade.

Nesse contexto, a questão das normas sociais apresenta-se como constitutiva do


movimento para Butler, pois apenas através da existência de normas de reconhecimento que
sustentem a viabilidade humana das diferenças pode haver a persistência do desejo, de forma
que a autonomia e persistência do eu dependem fundamentalmente de normas sociais que
excedem esse mesmo eu, numa ampliação da relação extática entre o eu e o outro que impõe
o questionamento crítico e ético perpétuo do considerado enquanto humano e suas formas de
produção e reprodução. Assim, para Butler (2005), se ocorre a falha repetida em conferir ou
receber reconhecimento, o horizonte normativo que rege esse âmbito de reconhecimento deve
ser questionado, sendo esse questionamente parte da própria dinâmica do desejo, impondo,
assim, um ponto de crítica através da interrogação e luta em relação às normas disponíveis.

Essa relação extática em relação às normas, externas e anteriores à constituição do eu,


é a única forma de conhecer a si mesmo através de uma mediação que se encontra além ou
fora do eu, dado que as normas não foram feitas pelos sujeitos que a performatizam estando
sempre atreladas a quadros de referência que, em última instância, permitem a humanização
ou desumanização dos indivíduos. Nessa relação, apenas o questionamento e a crítica podem
viabilizar normas sociais de reconhecimento que se estabeleçam em formatos mais estáveis
que a luta de vida e morte e da dialética senhor-servo. Apenas a partir da crítica seria possível
a ampliação do que se considera humano, numa dinâmica na qual o campo do humanamente
reconhecível permita uma resposta ética às muitas faces humanas e suas possíveis variações
(BUTLER, 2005).

Com essa discussão, Butler (2005) defende que, na Fenomelogia do Espírito e suas
estruturas diádicas de reconhecimento, o que Hegel narrou não pretendeu ser a última palavra
acerca da questão, mas estágios que podem e devem ser superados se há a pretensão da
produção ética de vidas humanamente viáveis. Nesse sentido, ela acaba indo além da relação
entre autoconsciências explícitas no texto de Hegel, ampliando os aspectos desenvolvidos na
Fenomenologia para os campos sociais e políticos, que apenas de forma discreta e implícita
aparecem no texto de Hegel (BOUTON, 2009); sendo possível afirmar que, em Butler, o foco
das discussões em torno do reconhecimento é comunitário (STARK, 2014), em detrimento do
individual ou intersubjetivo de forma estrita.

Em Butler, a questão do reconhecimento extrapola a estrutura diádica hegeliana através


do foco que a autora dá à força das normas que impõem a produção das subjetividades. Nessse
sentido, através do reconhecimento, que poderia ser visto enquanto atos performativos de
reconhecimento (FERRARESE, 2011), as subjetividades seriam constituídas, de forma que

40
o reconhecimento seria a necessária obediência, ou auto-condicionamento (BOUTON, 2009),
para a constituição de si. No entanto, as formas de sujeição através do reconhecimento não
estariam definidas a priori, de forma que seria necessária a reiterada atualização do campo
ético para que o reconhecimento possa se dar de forma a abarcar uma maior parcela das pessoas
dentro do marco do humanamente inteligível.

O conceito de reconhecimento para Butler torna-se, assim, um ponto de partida ou


ferramenta para a construção de uma ética da diferença que não está necessariamente articulada
a algum pré-requisito moral ou ético, de forma que o reconhecimento se apresentaria enquanto
horizonte e objetivo da ética defendida pela autora (FERRARESE, 2011). Sendo a ética o que
estabelece os limites da inteligibilidade humana, defende-se, ao se colocar o reconhecimento
enquanto horizonte, que esses limites possam ser negociados no contato com a alteridade
desafiante aos quadros normativos estabelecidos, deslocando os sujeitos para fora de si mesmos,
ou seja, impondo uma relação extática entre os indivíduos (STARK, 2014).

O que Butler pretende com sua apropriação do conceito de reconhecimento em Hegel


é expandir seu campo de alcance para a justificação do imperativo ético de ampliação dos
limites normativos que possibilitam a inteligibilidade humana. Nesse sentido, Butler extrapola,
introduzindo um problema agudo da contemporaneidade, a teorização hegeliana por essa não
levar em conta o caráter de mecanismo excludente que o conceito de humanidade carrega
(STARK, 2014), bem como por inserir um compromisso ético com a ampliação dos campos de
inteligibilidade humana, extrapolando-se o campo conceitual e apresentando-se enquanto uma
teoria declaradamente engajada politicamente.

São essas torções do conceito de reconhecimento que permitem à autora, sem negar
as importantes contribuições do pensamento de Hegel e mais pela necessidade de manter seu
campo de teorização aberto, declarar-se como pós-hegeliana (BUTLER, 2005). Assim, é o
caráter aberto da apropriação que Butler realiza do reconhecimento a partir de Hegel (STARK,
2014) que permite o imperativo ético de constante redefinição do que seria a efetivação do
reconhecimento, tanto no campo teórico como no campo político, sempre não completamente
satisfeito para manter-se aberto à alteridade.

1.5. Repetição, paródia e performatividade de gênero

O campo de inteligibilidade de gênero e reconhecimento humano se sustenta a partir da


repetição performativa de um sistema binário de sexo-gênero. Nesse sentido, a consolidação
do gênero relaciona-se diretamente com a repetição normativa de determinados significados
fabricados no campo social que são naturalizados a partir de suas repetições (BUTLER, 1999).

41
Essa leitura da fabricação performativa do gênero permite uma conexão forte entre
inteligibilidade e normas sociais, uma vez que seriam essas que sustentariam a estrutura binária
de gênero. Além disso, ao investir no campo sociocultural enquanto espaço privilegiado da
fabricação dos gêneros, Butler prescinde de uma ontologia do gênero que tornaria indispensável
o investimento num sujeito autônomo, que seria o único responsável por expressar a “verdade”
de seu gênero. Nesse sentido,

Se os atributos e atos de gênero, as várias maneiras pelas quais um corpo mostra ou


produz sua significação cultural, são performativas, então não existe uma identidade
preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveriam atos de
gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma verdadeira
identidade de gênero seria revelada como uma ficção reguladora. O fato de que essa
realidade de gênero é criada por meio de performances sociais sustentadas significa
que as próprias noções de um sexo essencial e uma masculinidade ou feminilidade
verdadeira ou permanente também são constituídas como parte da estratégia que
oculta o caráter performativo de gênero e as possibilidades performativas de proliferar
configurações de gênero fora dos quadros restritivos de dominação masculina e
heterossexualidade compulsória (BUTLER, 1999, p. 180) (tradução nossa).

Nesse movimento, a própria performance de gênero consolidaria o sujeito, no lugar de


ser uma expressão deste (BUTLER, 1999). O gênero passa a ser visto, assim, enquanto um
enunciado performativo sem base metafísica ou ontológica, de forma que o sujeito humano
não nasce com um gênero natural, mas, ao invés disso, seria o próprio gênero um dos aspectos
responsáveis por engendrar os sujeitos (BARIL, 2007), não sendo nem anterior nem posterior
a estes.

É nessa altura que Butler opera a crítica identitária do gênero, uma vez que as identidades,
na maior parte das vezes, acabam por reforçar a naturalização das expressões de gênero, o
que dificultaria a reformulação do campo do humanamente inteligível que possibilitaria o
reconhecimento de um maior leque de experiências sexuais e de gênero. É num sentido de
explicitar o caráter dinâmico das identidades que Butler exercitará sua crítica performativa:

A primeira coisa a entender sobre performatividade é o que ela não é: identidades não
são feitas em um único momento no tempo. Elas são feitas de novo e mais uma vez.
Isso não significa que as identidades são radicalmente novas toda vez que são criadas,
mas apenas que leva algum tempo para que sejam consolidadas; elas são dinâmicas e
históricas (BUTLER; REDDY, 2004, p. 116) (tradução nossa).

É a partir da leitura performativa do sujeito generificado que Butler desenvolve uma


teoria que conecta a produção de subjetividades ao campo da história e da cultura, rejeitando

42
qualquer apelo ao natural, universal ou transcendental (JAGGER, 2008). Nesse sentido, as
identidades de sexo-gênero não representariam uma essência humana, mas o campo de disputa
na qual a própria ideia do que viria a ser humano ocorre, de forma que a possibilidade de
modificação do próprio marco de intelegibilidade torna-se possível. É a partir dessa leitura que
Safatle (2006) afirma:

Podemos dizer que a base da perspectiva de Judith Butler encontra-se na tentativa de


fornecer uma teoria anti-representativa do sexual. Identidades sexuais não devem ser
pensadas como “representações” suportadas pela estrutura binária de sexos. Trata-se,
ao contrário, de tentar escapar da própria noção de representação por meio de uma
“teoria performativa do sexual”. Teoria que sustenta a possibilidade de realização de
atos subjetivos capazes de produzir de maneira plástica novas identidades sexuais ou,
ainda, novos modos de gozo que subvertam as interdições postas pelo sistema binário
de gêneros (p. 52).

Apenas a partir dessa leitura crítica do conceito de identidade seria viável a ruptura
com processos de naturalização identitária, de forma a tornar possível a reformulação do
campo “representativo” no que tange aos gêneros e sexualidades. Nesse sentido, ao invés de
um investimento nas identidades enquanto campo de possibilidade de construção de agência,
o que Butler realiza é uma inflexão em direção à desestabilização performativa das identidades
como forma de ampliação das possibilidades de produção subjetiva (SAFATLE, 2006). Para
isso, a filósofa realiza uma “crítica paródica que, por inaugurar um deslocamento perpétuo de
identidades, teria a força de sugerir a abertura a processos de ressignificação capazes de se
disseminarem na malha social” (SAFATLE, 2006, p. 53).

No que tange à desestabilização das identidades sexuais e de gênero, é notório o destaque


que Butler (1993, 1999) dá às experiências de transformação de gênero como as de drag queens.
Segundo a autora, seria através da paródia de gênero que esses sujeitos desestabilizariam
as estruturas binárias que regem os parâmetros de inteligibilidade. No entanto, o recurso à
ideia de paródia não contradiz a defesa que Butler faz da ausência de original na dinâmica de
citacionalidade dos gêneros, de forma que

A noção de paródia de gênero aqui defendida não supõe que exista um original que
essas identidades paródicas imitem. De fato, a paródia está na própria noção de um
original [...] então a paródia de gênero revela que a identidade original após a qual o
gênero se modifica é uma imitação sem origem (BUTLER, 1999, p. 175) (tradução
nossa).

As discussões em torno da paródia de gênero em Butler denunciam, assim, a própria


artificialidade de qualquer expressão de gênero, mesmo as que se adequam de forma mais

43
próxima aos ideais normativos de sexo-gênero. Nesse sentido, a experiência drag seria, para a
autora, a expressão mais explícita do modelo imitativo de fabricação do gênero na produção de
todas as subjetividades, razão pela qual Butler se apropria dessa experiência como um modelo
possível para a subversão das identidades. Para a autora, “[...] drag é subversivo na medida em
que reflete sobre a estrutura imitativa pela qual o gênero hegemônico é produzido e contesta
a reivindicação da heterossexualidade de naturalidade e originalidade” (BUTLER, 1993, p.
125) (tradução nossa). Dessa forma, não haveria experiências de gênero mais válidas que
outras, mas apenas aquelas que se aproximam mais dos ideiais regulatórios em suas produções
subjetivas, sendo essas igualmente baseadas na imitação (BUTLER, 1993, 1999).

O gênero em Butler apresenta-se, então, como um efeito fruto do processo de


naturalização. Nesse sentido, o sujeito é constituído a partir de uma identidade de sexo-gênero
que impõe a ilusão de correspondência entre sua identidade e seu íntimo, de forma que a
expressão de gênero por ele atualizada é vista enquanto reflexo natural de sua interioridade
que antecederia a interpelação de gênero (GARCÍA, 2003). No entanto, essa internalização
do gênero nunca ocorre de forma completa, uma vez que não há original a ser repetido, mas
apenas um campo de inteligibilidade humana que delimita o que seriam os gêneros inteligíveis
(BUTLER, 1999).

Esse espaço de inteligibilidade, dado seu caráter performativo, está em constante


modificação, de forma que se insere nas possíveis disputas políticas dessse campo. Esse
processo ocorre porque “não é em um único ato de constituição ou invenção que o sujeito
é criado, mas através da recitação e repetição. Isso [...] tem uma influência importante na
capacidade da recitação paródica produzir certos efeitos transgressivos” (LLOYD, 1999, p.
197) (tradução nossa).

Devido a esse caráter aberto na perspectiva performativa do gênero defendida por Butler,
o gênero pode ser pensando muito mais como uma expressão de atos que como expressão do
que os sujeitos são. Essa leitura permite a desnaturalização das expressões de gênero, uma vez
que insere, nas discussões acerca da apropriação do gênero pelos sujeitos, a possibilidade de
se pensar as possíveis “falhas” que podem possibilitar novas configurações no que tange às
experiências sexuais e de gênero, processo no qual

O eu permanente de gênero será estruturado por atos repetidos que buscam aproximar
o ideal de uma base substancial de identidade, mas que, em sua descontinuidade
ocasional, revelam a temporalidade e contingência do fundamento dessa “base”
(BUTLER, 1999, p. 179) (tradução nossa).

44
Essa postura do gênero em ato depende da incorporação de gestos e performances na
produção do próprio corpo dos sujeitos. Nesse sentido, o corpo pode ser também desnaturalizado,
uma vez que através dos corpos, notadamente a partir de atos performativos que destoam
dos moldes normativos que se pretendem naturais, que ele pode ser pensado enquanto
performativamente constituído. Esse processo explicita a relação intrínseca entre gênero e
corpo, o que leva Butler a questionar a dicotomia entre natureza e cultura que realiza uma
distinção radical entre corpo, que ocuparia o lugar da natureza, e gênero, que seria expressão
da cultura. Asssim, extrapolando essa dicotomia o gênero seria performativo para Butler,

[...] porque existe apenas nos atos que o constituem. Ou, de forma menos oblíqua,
uma identidade de gênero é produzida por meio de gestos, práticas, declarações,
ações e movimentos corporais específicos. Uma identidade de gênero é, portanto,
um efeito de fazer gênero. A teoria da performatividade de gênero permite a Butler,
então, avançar em direção a uma teoria inovadora da subjetividade (LLOYD, 2007,
p. 1431) (tradução nossa).

45
2. CORPO, ABJEÇÃO E A METAFÍSICA DA SUBSTÂNCIA

2.1. Materialização do corpo, linguagem e performatividade

No desenvolvimento da teoria de gênero por Butler, apesar da grande ênfase dada


aos discursos, o corpo como materialidade não é recusado (SALIH, 2012). O que ocorre é
a desnaturalização desse corpo, de forma que ele é posto como algo que não existe antes de
um discurso e antes de uma matriz de inteligibilidade cultural que o institua enquanto verdade
natural. Levar essa discussão à radicalidade aponta para uma perspectiva que desloca o corpo
como verdade última do sujeito e o vislumbra como espaço enunciativo normativo (BUTLER,
1993). Será esse espaço de enunciação que forjará os corpos numa lógica binária. Não há nesse
pensamento uma recusa dos corpos, mas sim um questionamento da ideia de diferença sexual
que sustenta os processos de materialização performativa dos corpos, de forma que Butler
(1993) propõe uma espécie de genealogia crítica dos corpos que retirará a sua materialidade de
um espaço conceitual irredutível.

Butler explicita a relação que, pensar o corpo enquanto campo performativo, estabelece
entre o linguístico e o “teatral” ou performático. Para a autora, esses dois aspectos não podem
ser pensados separadamente, estando em constante relação na fabricação de corpos e gêneros
inteligíveis. Sobre esse aspecto, ela afirma:

[...] minha teoria às vezes oscila entre entender a performatividade como lingüística
e considerá-la enquanto teatral. Cheguei a pensar que os dois são invariavelmente
relacionados, quiasmaticamente, e que uma reconsideração do ato de fala como
uma instância de poder invariavelmente chama a atenção tanto para suas dimensões
teatrais como linguísticas (BUTLER, 1999. p. XXV) (tradução nossa).

Nesse sentido, o corpo não seria algo que pode ser analisado enquanto apenas
materialmente constituído, o que tampouco leva a filósofa a defender uma constituição corporal
estritamente linguística. Ou seja, a constituição dos sujeitos passa pela materialidade dos corpos,
no entanto, essa materialidade é sempre interpretada, significada e ressignificada pela cultura.
Com essa leitura acerca da fabricação também linguística dos corpos (1993), o que Butler
propõe é que o corpo em sua materialidade, inteligível apenas a partir de referências linguísticas
e culturais específicas, não é meramente descrito, mas, enquanto enunciado performativo, ele é
forjado no processo mesmo de enunciação (BUTLER, 1993; DIAZ, 2012).

46
Para defender esse argumento, Butler recorre à crítica das leituras hegemônicas acerca
da diferença entre sexo e gênero, a saber: o sexo ocupa o lugar da natureza enquanto realidade
material inegável, ao passo que o gênero se relaciona aos significados sociais e culturais que
esse mesmo corpo ganharia em seu encontro com a cultura. No entanto,

Esse mesmo conceito de sexo como matéria, sexo como instrumento de significação
cultural [...] é uma formação discursiva que atua como base naturalizada para a
distinção natureza/cultura e as estratégias de dominação que essa distinção apóia. A
relação binária entre cultura e natureza promove uma relação de hierarquia na qual
a cultura “impõe” livremente significado à natureza e, portanto, a torna um “Outro”
a ser apropriado para seus próprios usos ilimitados, salvaguardando a idealidade do
significante e da estrutura de significação no modelo de dominação (BUTLER, 1999,
p. 47-8) (tradução nossa).

Nesse sentido, não seria viável pensar o sexo como instância material pré-discursiva, pois
qualquer menção a uma realidade que antecede o discurso já é ela mesma forjada discursivamente.
Nesse processo, nem a materialidade antecede o discurso, nem o discurso engendra de forma
absoluta a matéria (BUTLER, 1998). O que Butler sugere com esse argumento é que não é
possível resumir nem a matéria à pura discursividade, como tampouco defender a existência
de uma materialidade que prescinde do discurso para ganhar inteligibilidade. Sinteticamente,
é possível dizer que “[...] a afirmação do sexo sempre ocorre dentro de um processo discursivo
de materialização no qual a mesma afirmação do sexo é formada” (DIAZ, 2012, p. 1264)
(tradução nossa).

O discurso acerca do sexo seria, assim, formador da própria categoria sexo e de sua
partição binária. No entanto, afirmar isso não significa, em Butler, que seria o discurso que
originaria o sexo, mas sim que não é possível a referência a um corpo puro ou original que
se encontra num campo pré-discurso ou antecedente à cultura que o interpreta, haja vista que
qualquer menção a uma esfera antecedente ao discurso já é ela mesma forjada discursivamente
em sua delimitação (BUTLER, 1993).

O corpo em sua materialidade enquanto espaço privilegiado da definição binária dos


sexos passa a ganhar outro estatuto em sua relação com a linguagem para Butler. A partir de sua
teoria, é possível defender que não há um corpo que seria representado posteriormente através
da linguagem, mas que, performativamente, o corpo ganha realidade no exato momento em
que ingressa nos sistemas de representação que o antecedem, constituindo-o (JAGGER, 2008).
Nesse sentido, apesar do corpo não ser reduzível a linguagem, não é possível o acesso a ele
fora dessa mesma linguagem. O corpo, bem como a distinção dos sexos que as representações
discursivas impõem, só podem ser pensados e falados através da linguagem, de forma que as
construções linguísticas envolvidas nesses processos são centrais para o entendimento do lugar
do corpo em nossa cultura (LLOYD, 2007).

47
Com a defesa desse caráter construído linguística e performativamente do corpo, Butler
ataca uma distinção muito cara às discussões em torno do gênero que a precederam. Nesse
sentido, a filósofa questiona a distinção radical entre sexo e gênero que coloca o gênero como
uma construção posterior ao sexo, numa espécie de ingresso da cultura nos corpos. Ela irá
defender que tanto o sexo como o gênero são fabricações e se relacionam com a criação e
manutenção de determinada matriz de inteligibilidade que, para ser sustentada, naturaliza o
sexo de forma a justificar o binarismo de gênero. Nesse processo, seria explicitado exatamente
o caráter construído do sexo, de forma que

[...] o “sexo” referido como anterior ao gênero será em si uma postulação, uma
construção, oferecida pela linguagem, como aquela que é anterior à linguagem, antes
da construção. Mas esse sexo postulado como anterior à construção se tornará, em
virtude do postulado, o efeito desse mesmo postulado, a construção da construção. Se
o gênero é a construção social do sexo, e se não há acesso a esse “sexo”, exceto por
meio de sua construção, parece não apenas que o sexo é absorvido pelo gênero, mas que
“sexo” se torna algo como uma ficção, talvez uma fantasia, instalada retroativamente
em um local pré-lingüístico para o qual não há acesso direto (BUTLER, 1993, p. 05)
(tradução nossa).

Para sustentar sua argumentação Butler foca exatamente no processo de materialização


do corpo, de forma a desnaturalizar os discursos acerca da distinção entre sexo e gênero,
explicitando as relações entre matéria e linguagem que operam na construção da ideia de sexo e,
consequentemente, de sua divisão binária. Para Butler (1999), a constituição dos corpos, assim
como ocorre no caso do gênero, se dá em cruzamento com fatores políticos que delimitam a
viabilidade dos sujeitos, de forma que o corpo enquanto ideia unificada, com partes e formas
bem delimitadas, está sempre atravessado por uma linguagem que está atrelada a interesses
políticos específicos.

Disso depreende-se que, no que tange à fabricação performativa do corpo defendida por
Butler, as relações entre matéria e linguagem produzem uma interdependência necessária que
inviabiliza pensar esses dois aspectos de forma separada (NAVARRO, 2008). Isso ocorre pela
impossibilidade de se pensar o corpo e a matéria fora de qualquer marco de inteligibilidade
cultural que é prévio aos sujeitos de enunciação e, assim,

[...] não faz sentido aceitar uma distinção entre materialidade/construção, porque
simplesmente não há como sairmos de nossas estruturas culturais ou, para ser mais
precisa, fora da linguagem e das significações, a fim de obter algo essencial, incluindo,
neste caso, a matéria ou materialidade do corpo (JAGGER, 2008, p. 1089) (tradução
nossa).

48
A realidade material estaria, assim, sempre associada a determinadas estruturas
linguísticas e epistemológicas que viabilizam a sua apreensão, o que demarca a necessária
relação entre materialidade e linguagem (NAVARRO, 2008). A essa altura a própria distinção
entre realidade material ou corporal e construção se torna impossível, dado que não se recorre
à ideia de uma matéria que ganharia posteriormente sentido através da cultura, mas de marcos
culturais que, de forma concomitante ao ingresso do corpo na cultura, possibilita a sua apreensão
em sua materialidade.

A compreensão indissociável do corpo em sua materialidade em relação aos marcos


linguísticos que a permitem não culmina na reificação da linguagem em detrimento da
materialidade dos corpos. O corpo, para Butler, não deixa de ter realidade material, mas essa
realidade não é prévia ao ingresso desse corpo na linguagem. Nesse sentido, o próprio conceito
de matéria opera enquanto um marco regulatório que delimita as fronteiras de inteligibibilidade
do que viria a ser um corpo humano (JAGGER, 2008).

Para Butler, não ocorre do corpo em sua materialidade ser pensado enquanto um
construto meramente linguístico. O que se opera em sua construção teórica é a conexão entre
essa materialidade e o campo discursivo que a torna inteligível, dado que qualquer ideia que se
tenha acerca do que é o corpo passa, necessariamente, pela sua conexão com a linguagem, de
forma que “qualquer teoria do corpo culturalmente construído [...] deve questionar ‘o corpo’
como uma construção de generalidade suspeita quando é figurada como passiva e anterior ao
discurso” (BUTLER, 1999, p. 164) (tradução nossa).

Assim, nem a materialidade nem a linguagem se tornam os definidores da fabricação dos


corpos, bem como nenhum desses fatores é eliminado em detrimento do outro. Nesse sentido,
os questionamentos que Butler opera em relação à matéria não têm por objetivo defender sua
inexistência ou irrelevância quando se pensa a definição dos corpos e sexos, mas a necessidade
de ir além de uma perspectiva que vislumbra a materialidade desses corpos enquanto um
aspecto prévio ao discurso e, por isso, digno de erguer-se enquanto ponto de partida para pensar
os corpos. Acerca desse descentramento da matéria no pensamento de Butler, Navarro (2008)
afirma:

Não se trata apenas de explorar o processo de construção dessa ideia de ‘matéria’ (ou
ideias de matéria, porque obviamente não é um conceito fornecido com uma única
história), mas também de entender alguns dos problemas que surgem da conjugação,
por um lado, das limitações do discurso de considerar o assunto a partir de uma
exterioridade absoluta, transcendente ao meio discursivo em que é apresentado e, por
outro, a materialidade própria de todo significante linguístico, sem o qual nenhum
efeito de significação poderia ser considerado (p. 1620) (tradução nossa).

49
Não haveria, assim, materialidade prévia a ser acessada pelos discursos, uma vez que,
ao acessar a matéria já estamos também inseridos no discurso. No entanto, isso é diferente de
dizer que o corpo é ele mesmo apenas um discurso, pois se estabelece a relação entre corpo e
linguagem exatamente devido à impossibilidade da linguagem conectar-se com algo que tenha
sido imposto enquanto radicalmente exterior a ela (DIAZ, 2012). É nesse sentido que Butler
afirma em entrevista concedida a Reddy (2004) que “impressões culturais no corpo tornam-se
parte da própria fisiologia do corpo, de modo que torna-se impossível separar o biológico do
cultural das formas que algumas pessoas costumavam fazer” (p. 118) (tradução nossa), não
sendo possível a radical distinção entre matéria e linguagem.

Com isso, fica claro que, para Butler, não há realidade além da linguagem a qual se
possa acessar de alguma forma (DIAZ, 2012). Para a filósofa, até mesmo “o esforço para
descrever a matéria é sempre apenas isso: uma escrita sobre o corpo, uma materialização do
corpo somente na e através da linguagem” (CHAMBERS, 2007, p. 48) (tradução nossa).
Dessa forma, matéria e sentido estão conectados de forma inseparável num processo no qual
materializar é, ao mesmo tempo, significar. A partir dessa perspectiva teórica, Butler constrói
uma teoria que acaba por questionar pressupostos importantes no que tange à definição do
corpo e, consequentemente, da diferença sexual (LLOYD, 2007).

Nesse pensamento, do ponto de vista epistemológico, a autora acaba por rever a própria
ideia do que venha a ser algo construído através da linguagem e da cultura. Nesse sentido, ela
opera o questionamento do lugar do construído no pensamento e na vida dos sujeitos de forma
a explicitar a centralidade que as construções têm na própria consolidação dos sujeitos. É a
partir desses pressupostos que ela questionará:

[...] por que o que é construído é entendido como algo com caráter artificial e
dispensável? O que devemos fazer de construções sem as quais não poderíamos
pensar, viver, absolutamente fazer sentido, aquelas que adquiriram para nós um tipo
de necessidade? Existem certas construções do corpo constitutivas nesse sentido:
que não poderíamos operar sem elas, sem as quais não haveria “eu”, nem “nós”?
Pensar o corpo como construído exige repensar o significado da própria construção
(BUTLER, 1993, p. XI) (tradução nossa).

É essa forma de vislumbrar o caráter construído dos corpos que permitirá a ela, assim
como faz em relação ao gênero, defender o caráter performativo do corpo. Pensar o corpo
enquanto performativo explicita o aspecto normativo inerente aos processos de significação
que os corpos ganham através da linguagem, num processo no qual os discursos sobre o corpo
não têm uma função meramente descritiva (DIAZ, 2012). “Declarar, como faz Butler, que o
sexo é sempre (‘em alguma medida’) performativo é declarar que os corpos não são meramente
descritos; eles são sempre constituídos no ato da descrição” (SALIH, 2012 p. 124-5).

50
A ideia de elaboração performativa do sexo não culmina na defesa de que este seja uma
mera ficção linguística e, logo, passível de ser eliminada enquanto construto que faz parte da
constituição das subjetividades. Pensar o sexo enquanto enquanto performativo, na verdade,
explicita as relações intrínsecas entre esse e o espaço da cultura que possibilita os limites da
inteligibilidade humana. Nesse sentido, antes de vislumbrar o sexo e os corpos como matéria
prévia à cultura e à linguagem, o que se trata na perspectiva de Butler é explicitar como

O chamado “extradiscursivo” não deixa de ser nomeado como tal por um exercício
discursivo do qual não pode alcançar a libertação que exige. E essa operação decide
o que é material, qual é o objeto a que nos referimos, é uma operação de seleção, de
certa violência, que define o que está incluído na categoria sexo, de corpo material, e
o que é excluído (DIAZ, 2012, p. 1271) (tradução nossa).

O que ganha centralidade nessa interpretação do sexo e dos corpos é o campo social no
qual a matéria ganha inteligibilidade. É nesse sentido que Butler irá contestar o caráter imutável
do sexo, dado que “[...] talvez esse construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído
quanto o gênero; na verdade, talvez já tenha sido sempre gênero, com a conseqüência de que
a distinção entre sexo e gênero acaba sendo nenhuma” (BUTLER, 1999, p. 10-11) (tradução
nossa). Com essa afirmação, o que Butler explicita é o caráter social da designação do que
seria o sexo, de forma que a superfície corporal, que não é negada em momento algum pela
filósofa, tem que passar por um processo de incorporação das normas culturais, essas repetidas
e reinterpretadas numa dinâmica que é, por sua vez, linguístico-discursiva, logo, performativa
(NAVARRO, 2008).

A partir dessas discussões é possível vislumbrar o lugar que os discursos ocupam na


fabricação dos corpos sexuados. Não há, assim, a possibilidade de pensar essa materialidade
fora de um campo discursivo específico, bem como não é possível dissociar os aspectos
linguísticos e discursivos da materialidade que se relacionam com esses num processo em que
nenhum dos fatores antecede ou define completamento o outro. Assim, o que fica explicitado
no pensamento de Butler é a impossibilidade de distinção radical entre matéria e discurso, de
forma que

[...] sua perspectiva acerca da performatividade do discurso na materialização do sexo


é uma tentativa de demonstrar ainda mais as limitações dessa distinção, concentrando-
se no significado da linguagem e da significação sem reduzir tudo a elas. Assim, ela
insiste que a visão da materialidade envolvida em seu relato desafia os entendimentos
de referência tradicionais e do senso comum, mas não envolve alguma forma de
idealismo ou nominalismo – a redução da ‘realidade’ a uma questão de linguagem
(JAGGER, 2008, p. 1178) (tradução nossa).

51
O que fica claro a partir das discussões empreendidas por Butler é que a materialidade
dos corpos não é independente dos discursos sociais que, no fim, dão inteligibilidade e existência
a eles (MARTÍNEZ, 2015). Nesse sentido, a autora opera não a criação de uma ontologia dos
corpos, mas a análise das condições específicas sob as quais os corpos são impostos enquanto
sexuados. Martínez (2015) explica essa forma de pensar a materialidade dos corpos em Butler
a partir da escolha da autora em focar não apenas na questão da matéria, mas da materialização,
o que permite uma análise processual dessa dinâmica:

Seu aporte para contribuir com essa modelização teórica é trocar a idéia de matéria
corporal/sexo pela de materialização, como um processo comandado por discursos
regulatórios e arranjos de poder. Assim, a materialidade do corpo sexuado é
enquadrada em um processo de produção forçada desde o início, nos diz Butler. É
uma designação de sexo forçada, imposta por um aparato regulatório que impele
compulsivamente à heterossexualidade (p. 329) (tradução nossa).

O que Butler provoca com essa perspectiva é uma leitura que mostra o caráter material
do próprio discurso, uma vez que esse não opera de forma descolada dos corpos. É na relação
entre matéria e discurso que o próprio corpo ganha inteligibilidade, sendo essa regulada por
ideais normativos que limitam necessariamente as experiências subjetivas no que tange aos
aspectos de sexo-gênero. Assim, em Butler, “Em vez de negar a realidade da materialidade,
como os críticos tendem a reivindicar, o foco está no papel da linguagem e da significação (e
nas exclusões, repudiações e não inteligibilidades) na produção de qualquer aparente realidade
em sua materialidade (JAGGER, 2008, p. 264) (tradução nossa).

Apesar de explicitar o caráter imposto da produção sexuada dos corpos, Butler não
incorre na defesa de impossibilidade de modificação dessas relações. Nesse sentido, a partir de
seu pensamento que reconceitualiza a materialidade dos corpos, se torna também possível, uma
vez vislumbrado o caráter construído dos sexos, pensar outras possibilidades que engendrem
marcos de inteligibilidade mais abertos à multiplicidade. Nesse sentido, ela acaba por denunciar
o aspecto excludente que o processo de incorporação das normas engendra, o que justificaria,
inclusive, o esforço em pensar esse movimento. Sobre isso ela afirma:

Se a materialidade do sexo é definida no discurso, essa demarcação produzirá um


domínio sexual do excluído e deslegitimado. Portanto, será tão importante pensar em
como e com que finalidade os corpos são construídos, quanto pensar em como e com
que finalidade os corpos não são construídos e, além disso, perguntar depois como os
corpos que falham na materialização fornecem o necessário “exterior”, se não o apoio
necessário, para os corpos que, materializando a norma, se qualificam como corpos
que importam (BUTLER, 1993, p. 15-6) (tradução nossa).

52
O processo de produção dos corpos sexuados em Butler através da produção de um
campo de inteligibilidade está intimamente relacionado à produção do corpo enquanto algo a
que se deve atribuir um gênero. Isso ocorre devido à noção de que o corpo seria o definidor
das possibilidades de gênero. Nesse sentido, para dois sexos, haveriam apenas dois gêneros
que imprimiriam a cultura nos corpos sexuados (BUTLER, 1999). No entanto, para a filósofa,
ao se defender essa dicotomia, o que ocorre é, na verdade, o apagamento do construto do
sexo, uma vez que, ao se defender que os sexos ganham sentido numa relação de continuidade
estabelecida com os gêneros, o sexo acaba por ser absorvido pela própria ideia de gênero.
Sobre isso, ela afirma:

Se o gênero consiste nos significados sociais que o sexo assume, então o sexo não
acumula significados sociais como propriedades aditivas, mas é substituído pelos
significados sociais que assume; o sexo é abandonado no decurso dessa assunção,
e o gênero surge, não como um termo em uma relação contínua de oposição ao
sexo, mas como o termo que absorve e desloca o “sexo”, a marca de sua completa
substancialização em gênero ou o que, de um ponto de vista materialista, pode
constituir uma completa dessubstancialização (BUTLER, 1993, p. 05) (tradução
nossa).

É a partir dessa crítica que Butler defende que, à semelhança dos gêneros, no que tange
aos sexos, também há um movimento de tornar-se que se relaciona diretamente com a própria
noção binária de gênero que nossa organização social sustenta. Devido a essa leitura é possível
à Butler destacar as relações entre gênero e sexo, o que não é o mesmo que eliminar a noção de
sexo, uma vez que o explicitado é não a inexistência dos sexos, mas seu caráter discursivamente
construído a partir de aparatos sociais e políticos específicos. Nesse processo, o corpo, não
sendo reduzível ao discurso, o excede e pode, inclusive, reformular as normas que o limitam.
Nesse sentido,

É interessante evitar um idealismo que reduz toda a matéria a signos, mas sem cair
em um realismo extremo que separa radicalmente a matéria dos signos. A primeira
posição ignora o fato de que a matéria não pode ser criada pelo discurso. O segundo
ignora o fato de que a matéria é e somente se materializa através do discurso. Ambos
ainda estão cegos para a simples verdade de que todos os signos são em si materiais
(MARTÍNEZ, 2015, p. 333) (tradução nossa).

O que se depreende a partir disso é que não há em um momento o sexo e noutro o


gênero, mas que o sexo é desde o princípio generificado como forma de dar inteligibilidade a
esse construto. Nesse sentido, só é possível entender os sexos através das normas de gênero
(CHAMBERS, 2007). Esse processo ocorre porque nascemos num mundo no qual já preexistem

53
normas de gênero, o que se reflete na própria construção de corpos sexuados que viabilizariam
a formação dos sujeitos generificados como forma de ingresso na cultura.

Assim, a própria distinção entre materialidade e construção se torna impossível, dado


que qualquer matéria só ganha sentido a partir de uma construção que é também discursiva. Isso
ocorre devido a não haver a possibilidade de se pensar ou viver qualquer experiência fora de
um marco cultural, uma vez que estamos todos o tempo inteiro imersos no campo da linguagem
e das significações (JAGGER, 2008). Não haveria, assim, a essência do sexo delimitando as
experiências de gênero, mas a incidência da cultura na construção de marcos específicos de
inteligibilidade sexual e de gênero, o que permite pensar, inclusive, possibilidades outras de
vivenciar o sexo e o gênero, pois

Se o sexo não limita o gênero, então talvez existam gêneros, formas de interpretar
culturalmente o corpo sexuado, que não são de modo algum restritos pela aparente
dualidade do sexo. Considerando a conseqüência adicional de que, se o gênero é algo
que alguém se torna – mas nunca pode ser – então o próprio gênero é um tipo de devir
ou atividade, e esse gênero não deve ser concebido como um substantivo, uma coisa
substancial ou um marcador cultural estático, mas sim como uma ação incessante e
repetida de algum tipo (BUTLER, 1999, p. 143) (tradução nossa).

2.2. A abjeção e os limites dos corpos

É a construção de um campo de inteligibilidade específico que define se as experiências


de sexo-gênero terão ou não reconhecimento social. Nesse sentido, pensar o que engendra
os limites desse marco se torna indispensável para uma melhor compreensão da fabricação
dicotômica dos corpos e dos gêneros em nossa organização social. Para Butler, a demarcação
desses limites passa pela relação que o campo social estabelece com determinadas experiências
que serão marcadas pela abjeção, conceito que a filósofa toma de empréstimo da psicanalista
Julia Kristeva.

Em obra dedicada à discussão da abjeção, Kristeva (1982) explicita os mecanismos


psíquicos envolvidos na produção das experiências de abjeção. A produção da abjeção está
relacionada diretamente às possibilidades de ingresso na ordem simbólica. Desse modo, o abjeto
apresenta-se enquanto algo radicalmente excluído do lugar da produção de significados. No
entanto, isso não significa dizer que o abjeto seja algo inexistente, mas sim que ele se configura
enquanto algo não reconhecido pela ordem simbólica vingente, podendo ser entendido como
aquilo que se insere no lugar de uma negação: “Não eu, não isso. Mas, também, não nada.
‘Algo’ que eu não reconheço enquanto alguma coisa” (KRISTEVA, 1982, p.02) (tradução
nossa).

54
É o caráter existente, porém negado, que melhor demarca o espaço da abjeção na
ordem simbólica. Assim, o abjeto torna-se um elemento não assimilado, mas que se relaciona
diretamente com o desejo de todos os sujeitos, a partir de uma relação que, ao negar a existência
do abjeto, acaba por demarcar as fronteiras do que pode ser reconhecido, bem como estabelece
um campo do interdito que desafia os próprios limites do desejo. Nesse sentido, a questão
da abjeção está conectada à emergência dos sujeitos, uma vez que “[...] abjeção não é um
estágio passageiro, mas um processo perpétuo que desempenha um papel central no projeto de
subjetividade” (TYLER, 2009, p. 80) (tradução nossa).

Na produção de subjetividades, sempre desejante, o abjeto ocupa um lugar de perversão,


dado que a inclusão de um objeto no campo abjeto se ancora no superego que identifica na
abjeção um espaço que recusa as proibições e a Lei, por vezes desafiando-as e corrompendo-
as através não da negação, mas das possíveis vantagens que possa ter em relação ao campo
simbólico instituído. Para Kristeva (1982), enquanto o campo simbólico prima por ordem e
manutenção, “a abjeção, por outro lado, é imoral, sinistra, intrigante e sombria: um terror que
se dissolve, um ódio que sorri, uma paixão que usa o corpo para escambo em vez de inflamar,
um devedor que te vende, um amigo que esfaqueia você” (p. 04) (tradução nossa).

É por isso que a abjeção é exercitada quando um Outro toma meu lugar definindo o
que deveria ser o eu. Esse Outro necessariamente é precedente ao eu, uma vez que representa e
impõe a ordem simbólica que se apropria das subjetividades, possibilitando, paradoxalmente,
a constituição do próprio eu (KRISTEVA, 1982). É devido a essa relação necessariamente
conflituosa entre o abjeto e o Outro que, a partir das discussões de Kristeva, é possível pensar
ações políticas de inclusão e exclusão, como a que ocorre no campo dos gêneros. Assim, o
abjeto relaciona-se com o desejo e a cultura, encontrando-se na relação conflituosa entre esses
dois aspectos da produção de subjetividades, estabelecendo as fronteiras dos corpos individuais
e do corpo social (TYLER, 2009).

O abjeto pode ser compreendido tanto enquanto coisas quanto práticas, bem como as
forças a elas relacionadas, que se opõem ao enraizamento do ego, uma vez que se coloca entre o
que é e o que não é. É devido a essa característica que o abjeto é pensado por Kristeva enquanto
um elemento com potencial disruptivo no campo social (TYLER, 2009), muitas vezes forçando
as fronteiras estabelecidas pela ordem simbólica (KRISTEVA, 1982).

É exatamente nas bordas que o abjeto atua, pois, se as fronteiras são exatamente aquilo
que delimitam o que sou, o que inclui a própria experiência corporal, interessa ao ego estabelecer
de forma clara o que deve ser mantido exterior a mim, enquanto uma impossibilidade que
produz um movimento de recusa de qualquer ambiguidade. No entanto, a possibilidade da
ambiguidade segue enquanto ameaça ao ego, o que, paradoxalmente, permite sua própria
consolidação devido à manutenção das fronteiras. Sobre essa relação entre abjeção e produção

55
dos limites do próprio ego, Kristeva (1982) afirma: “Podemos chamá-la de fronteira; a abjeção
é acima de tudo ambiguidade. Porque, enquanto libera uma amarra, não exclui radicalmente o
sujeito de que trata – pelo contrário, a abjeção reconhece que está em perigo perpétuo” (p. 09)
(tradução nossa).

É devido a essa relação entre o abjeto e o ego que a autora afirma que a abjeção persiste
na produção das subjetividades nas formas de exclusão ou tabu. Sendo assim, por não poder ser
nem assimilado nem completamente esquecido, a relação que os sujeitos estabelecem com o
abjeto pode muitas vezes tomar feições fóbicas, sendo essa postura uma forma de evitação das
escolhas que o contato com o abjeto abrem enquanto possibilidades que distanciam o sujeito
do que foi estabelecido enquanto suas fronteiras (KRISTEVA, 1982).

Essa dinâmica não ocorre sem conflito para o ego, que é continuamente desafiado pelos
limites da abjeção, nesse sentido,

Quando sou assolado pela abjeção, a trança distorcida de afetos e pensamentos


que chamo por esse nome não tem, propriamente falando, um objeto definível. O
abjeto não é um objeto diante de mim, que eu nomeie ou imagine. Tampouco é uma
brincadeira, uma alteridade incessantemente fugindo em uma busca sistemática de
desejo. O que é abjeto não é meu correlato, o qual, me fornecendo alguém ou algo
mais como apoio, me permitiria ser mais ou menos despregado e autônomo. O abjeto
tem apenas uma qualidade do objeto – a de se opor a mim (KRISTEVA, 1982, p. 01)
(tradução nossa).

A expressão da fobia em torno do abjeto pode tomar diversas formas, que vão desde
expressões de nojo, passando pelo discurso de ódio, chegando até a possibilidade de violência
física. Assim, independente de sua maneira de expressão, a dinâmica fóbica institui uma força
de exclusão que acaba por afastar o abjeto de qualquer identificação como algo propriamente
humano (TYLER, 2009). É a partir dessa exclusão que a heterogeneidade é excluída, ainda que
imaginariamente, evitando assim o contato dos sujeitos com a tensão (HARRINGTON, 1998),
o que consolida as fronteiras e estabiliza o ego de forma identificada com a Lei (KRISTEVA,
1982).

Apesar disso, por sua proximidade fronteiriça, o abjeto pode exercer fascínio ativando
o desejo, o que gera uma relação paradoxal entre o ego e o abjeto. Para Kristeva (1982), essa
dinâmica ocorre através da reminiscência de conteúdos inconscientes que recusam a completa
diferenciação em relação ao abjeto, o que explicita a impossibilidade de uma divisão completa
entre o sujeito e objeto na dinâmica de estruturação psíquica.

Com isso, fica evidente o risco sempre iminente de “poluição” através do abjeto, o
que engendra o encrudescimento das lógicas de proibição, o que, paradoxalmente, reforça a

56
possibilidade de fascínio. Esse processo ocorre como forma de proteger as fronteiras psíquicas
do que deve ser encarado enquanto radicalmente outro, reforçando as fronteiras entre o eu e o
outro, entre o interno e o externo (KRISTEVA, 1982).

Butler defende que esse processo geral da formação psíquica ocorre também na
produção dos gêneros inteligíveis, de forma que a produção das fronteiras do que seriam os
gêneros reconhecidos passa, necessariamente, pela produção de abjeção em relação a uma
série de outras experiências sexuais e de gênero. Em sua leitura, a filósofa recorre à teorização
psicanalítica, sem, no entanto, aderir a seus pressupostos de forma completa.

A principal divergência da teórica em relação à psicanálise encontra-se exatamente nas


discussões em torno da assunção dos gêneros. Para Butler (1993, 1999), a distinção entre ser e
ter o falo acaba por referendar uma naturalização do binarismo de gênero, através da reificação
de um campo simbólico baseado na distinção absoluta entre masculino e feminimo. Sobre isso,
e tomando o pensamento de Lacan como base, ela afirma:

Lacan continua essa exposição da comédia heterossexual, explicando que esse


‘aparecer como sendo’ o Falo que as mulheres são obrigadas a fazer é inevitavelmente
mascarada. O termo é significativo porque sugere significados contraditórios: por um
lado, se o ‘ser’, a especificação ontológica do Falo, é disfarçado, parece reduzir todo
ser a uma forma de aparecer, a aparência de ser, com a conseqüência de que toda
ontologia de gênero é redutível ao jogo das aparências. Por outro lado, a mascarada
sugere que existe um ‘ser’ ou uma especificação ontológica da feminilidade antes
do disfarce, um desejo ou demanda feminina que é mascarada e capaz de revelar
que, de fato, pode prometer uma eventual interrupção e deslocamento da economia
significante falogocêntrica (BUTLER, 1999, p. 60) (tradução nossa).

Ora, o que Butler procura explicitar é que a psicanálise teria a possibilidade de


desnaturalizar as diferenças de gênero, no entanto, acaba por referendar um sistema de sexo-
gênero normativo. Nesse sentido, é notável o potencial subversivo que a teoria freudiana da
bissexualidade originária possui, no entanto, “a conceituação da bissexualidade em termos
de disposições, feminina e masculina, que têm objetivos heterossexuais como correlatos
intencionais, sugere que, para Freud, a bissexualidade é a coincidência de dois desejos
heterossexuais dentro de uma única psiquê” (BUTLER, 1999. p. 77) (tradução nossa), o que
acaba por afastar a ideia de homossexualidade mesmo quando se trata de um possível desejo
por indivíduos do mesmo gênero.

O que ocorre na teorização freudiana é, antes mesmo do tabu do incesto, a construção


de um tabu em torno da homossexualidade. Assim, acaba-se por ocultar a construção dos
limites do real, processo esse que possibilita a reificação da ordem simbólica que culmina

57
com a defesa psicanalítica de que fora desse campo só é possível a psicose, o desligamento do
compartilhamento social.

No entanto, Butler (1999) defende que não há razão para que se recuse um amor sexual
original do filho pelo pai, por exemplo, de forma que a defesa freudiana da passagem pelo
Édipo marcado necessariamente pela heterossexualidade apenas referenda a recusa de que a
constituição do ego, que passa pela interiorização da identidade de gênero, é uma construção que
antes de adequar-se à ordem simbólica, é ela mesma responsável por construí-la e consolidá-la.
É nesse sentido que Butler (1999) afirma que “os limites para o ‘real’ são produzidos dentro da
heterossexualização naturalizada dos corpos, nos quais os fatos físicos servem como causas e
os desejos refletem os efeitos inexoráveis dessa fisicalidade” (p. 90) (tradução nossa).

É nessa altura da discussão que Butler encontra-se com o conceito de abjeção e o


incorpora às suas teorizações em torno dos gêneros. Ela explicita, assim, o trabalho que envolve
o processo de consolidação da naturalização dos gêneros, o que exige a diferenciação radical
não apenas entre o masculino e o feminino, mas também daquilo que desafia esses limites, que
é, por isso, lançado ao campo da abjeção. Para a filósofa a questão que se impõe

[...] é se as formas que dizem produzir a vida corporal operam através da produção de
um domínio excluído que se limita e assombra o campo da vida corporal inteligível.
A lógica desta operação é, em certa medida, psicanalítica, uam vez que a força da
proibição produz o espectro de um retorno aterrorizante (BUTLER, 1993, p. 54)
(tradução nossa).

Assim, o que fica explícito na teoria de gênero de Judith Butler é o papel decisivo que
a ordem simbólica desempenha na criação de um marco cultural de inteligibilidade de gênero.
Para a autora, a questão principal de suas teorizações acerca dos corpos e gêneros relaciona-
se com a busca do entendimento em torno do que constituiria uma vida qualificada enquanto
humana, o que, antes de relacionar-se com uma naturalidade ou metafísica da espécie, diz
respeito a uma certa delimitação das relações de poder (BUTLER, 1999). Desse modo, ela
afirma que

[...] a “coerência” e a “continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou


analíticas da personalidade, mas, antes, normas socialmente instituídas e mantidas de
inteligibilidade. Na medida em que a “identidade” é assegurada através dos conceitos
estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” é posta
em questão pela emergência cultural daqueles seres de gênero “incoerentes” ou
“descontínuos” que parecem ser mas que não cumprem as normas de inteligibilidade
cultural de gênero pelas quais as pessoas são definidas (BUTLER, 1999, p. 23)
(tradução nossa).

58
Pode-se dizer, assim, que a ordem simbólica que se afirma como inevitável e imodificável
é, na realidade, performada. Nesse processo, a divisão generificada dos sujeitos atua como um
campo normativo que impõe seus critérios para que se acesse a própria condição de humano. É
por essa razão que em Butler é impossível descolar o gênero dos corpos que o tornam possíveis.
Assim, as fronteiras de gênero acabam por estar intimamente conectadas com a constituição
de inteligibilidade em torno dos corpos humanos, num processo que replica uma metafísica da
diferença sexual nas experiências que passam a ser generificadas (BUTLER, 1993).

O que se pode concluir a partir de Butler é a relação intrínseca entre ordem simbólica
e relações de poder. Nesse sentido, antes de ser um espaço de inserção do sujeito na cultura, o
simbólico opera movimentos de exclusão. Isso se dá devido à necessidade de identificação que
os indivíduos têm para firmarem-se enquanto sujeitos. Essa identificação opera por exclusão a
partir do momento em que, para constituírem-se enquanto sujeitos, é necessário a diferenciação
entre o que se é e o que não se pode ser, ou seja, o abjeto, o que estabelece as fronteiras entre o
pensável e o impensável, o inteligível e o seu oposto (MARTÍNEZ, 2015).

É através desse mecanismo que o corpo torna-se lugar privilegiado para a formação
subjetiva, sempre através de um processo normativo que acaba por reificar a ordem simbólica
enquanto inevitável, argumento que se sustenta principalmente devido a longa duração do poder
performativo, o que dificulta mudanças amplas em sua configuração (NAVARRO, 2008). Dessa
forma, é muito mais a proibição e a constituição das margens entre o inteligível e o abjeto que
forjam os gêneros e os corpos a partir de uma matriz binária, o que, segundo Butler (1993), nos
conecta inevitavelmente à questão dos critérios prévios de produção de inteligibilidade, pois

Se a delimitação, formação e deformação de corpos sexuados é animada por um


conjunto de proibições fundamentais, um conjunto de critérios impostos de
inteligibilidade, então não estamos apenas considerando como os corpos aparecem
do ponto de vista de uma posição teórica ou localização epistêmica em um distância
dos próprios corpos. Pelo contrário, estamos perguntando como os critérios do sexo
inteligível operam para constituir um campo de corpos e como precisamente podemos
entender os critérios específicos para produzir os corpos que eles regulam (BUTLER,
1993, p. 55) (tradução nossa).

Assim, quando se fala de uma ordem simbólica que sustenta o binarismo de gênero
através da fabricação de corpos específicos, o que está em discussão é, na verdade, a constituição
de uma matriz cultural que opera enquanto marco normativo que possibilita, ou não, a inserção
dos indivíduos no campo da cultura, o que acaba por romper a distinção entre os aspectos
ontológicos e sociopolíticos (BUTLER, 2012).

É a partir da não adequação a essa matriz cultural que as identidades de gênero não
completamente enraizadas no binarismo são postas como falhas no desenvolvimento da

59
subjetividade ou até mesmo impossibilidades lógicas dentro do domínio dicotômico, o que
engendra sujeitos que são lançados à abjeção devido à sua inviabilidade nos marcos de
inteligibilidade instituídos (BUTLER, 1999, 1993).

No entanto, para Butler, é exatamente nessa dinâmica de inadequação que os limites


normativos são denunciados. Isso ocorre porque a exclusão nunca é completa, uma vez que o
espaço binário normativo no que tange à produção dos gêneros e sexualidades não prescinde
de um exterior que delimita seu próprio território, pois, como bem condensa Diaz (2012),
“O ‘exterior constitutivo’ não é um ‘exterior absoluto’ (‘absolute outside’), não é um exterior
ontológico oposto ao campo do discurso; só pode ser concebido em relação ao discurso, às
margens do discurso” (p. 1235) (tradução nossa).

O que fica evidenciado, então, é a possibilidade de subversão que as experiências


abjetas apresentam através da recitação que rompe com a lógica de gênero hegemônica, o
que reivindica significação para corpos e estilos de vida excluídos por ela na constituição dos
espaços abjetos (DIAZ, 2012). Assim, se, por um lado, a regulação do gênero e das sexualidades
tenta suprimir a multiplicidade que ameaça os marcos heterossexuais reprodutivos (BUTLER,
1999), por outro

Os termos políticos que visam estabelecer uma identidade segura ou coerente são
perturbados por esse fracasso da performatividade discursiva em estabelecer,
finalmente e completamente, a identidade a que se refere. A iterabilidade ressalta o
status não idêntico de tais termos; o exterior constitutivo significa que a identidade
sempre exige precisamente aquilo que não pode suportar (BUTLER, 1993, p. 188)
(tradução nossa).

Pode-se constatar, assim, que o impensável e ininteligível na cultura não são


completamente excluídos dela, mas passam a funcionar enquanto as fronteiras que delimitam
o que seria a vida propriamente humana. Dado que a existência humana em nosso campo
simbólico passa, necessariamente, pela adesão a um gênero que, por sua vez, está ligado a corpos
específicos, ter inviabilizado o ingresso nesse sistema, que é construído de forma dicotômica
e, por isso, restritivo, é, ao fim, não se constituir enquanto uma vida humana propriamente dita
(BUTLER, 1999).

Os indivíduos que não se encaixam no campo normativo do gênero passam a ocupar,


assim, o espaço do abjeto, que funciona como fronteira entre o humano e o algo menos
que humano. Nesse sentido, a produção das fronteiras que delimitam os limites do abjeto
desumaniza determinadas expressões de corpo e gênero enquanto falhas de citação genérica
(BUTLER, 1999). Esses sujeitos serão muitas vezes afirmados como fora da cultura, seja pelo

60
desvio moral, seja pelo desvio patológico. No entanto, como afirma Butler (1999), o fora da
cultura não existe, uma vez que a própria interpretação acerca da experiência dos sujeitos
que não se adequam ao binarismo dos corpos e gêneros é realizada a partir do marco cultural
hegemônico, de forma que “esse ideal regulatório é então exposto como uma norma e uma
ficção que se disfarça como uma lei do desenvolvimento que regula o campo sexual que ele
pretende descrever” (BUTLER, 1999, p. 173) (tradução nossa).

O que vemos ocorrer é a produção do ininteligível enquanto estratégia de construção


social da abjeção (BUTLER, 1993). Isso expressa a violência contida na constituição dos corpos
e gêneros. Essa constituição, apesar de naturalizada pelo campo simbólico que compartilhamos,
mostra-se enquanto uma dinâmica coercitiva de dar e receber os nomes que engendram as
subjetividades. É no ato de ser nomeado que o indíviduo ingressa efetivamente no simbólico
e, assim, pode constituir-se, tendo às suas margens as experiências abjetas que servem para
confirmar seu lugar social (SABSAY, 2012). É nesse sentido que Butler (1999) afirma que

O que permanece “impensável” e “indizível” nos termos de uma padrão cultural


existente não é necessariamente o que é excluído da matriz de inteligibilidade desse
padrão; pelo contrário, é o marginalizado, e não o excluído, a possibilidade cultural
que exige pavor ou, no mínimo, o despender de sanções. Não ter reconhecimento
social como um heterossexual efetivo é perder uma possível identidade social e talvez
obter uma que seja radicalmente menos sancionada. O “impensável” está, portanto,
totalmente dentro da cultura, mas totalmente excluído da cultura dominante (p. 98-9)
(tradução nossa).

Essa dinâmica explicita o aspecto contruído da abjeção. Assim, não é possível uma
separação completa do ponto de vista de produção cultural da inteligibilidade entre essa e o
abjeto. Isso ocorre devido à função de fronteira que o não inteligível na cultura ocupa, de forma
que o abjeto acaba por ganhar um espaço negativo no campo social. O que Butler explicita com
esse argumento é que o espaço normativo tanto institui as experiências e corpos inteligíveis,
como aqueles que são seu outro radical, não havendo contradição em se afirmar que o abjeto
também forma o domínio do que é possível e inteligível na cultural através de um exterior
constitutivo (BUTLER, 1993).

A abjeção engendra, assim, corpos que são impensáveis e, paradoxalmente, constitutivos


do espaço da inteligibilidade humana enquanto seu exterior radical. Dessa maneira, o que é
considerado enquanto menos que uma vida humana, enquanto expressão de uma impossibilidade
subjetiva, acaba por não importar enquanto sujeito, uma vez que seu caráter de fronteira é
imposto pelo campo social enquanto exterioridade absoluta (DIAZ, 2012).

61
No entanto, quando Butler afirma que os corpos abjetos não contam enquanto corpos
verdadeiros, ela não recusa a materialidade dos corpos que não importam (BUTLER, 1993),
mas assinala que esses corpos ocupam um espaço específico através de uma existência
marginalizada, o que possibilita que atuem enquanto vidas que estão o tempo todo a reivindicar
reconhecimento (LLOYD, 2007), reivindicar alterações no campo simbólico que se pretende
como único possível, bem como imutável.

Ainda que Butler (1993, 1999) foque nas discussões em torno do gênero, a questão da
abjeção extrapola esse campo, uma vez que, como explicitado por Kristeva (1982), quando se
fala de abjeção, o que está em jogo é a própria entrada dos indíviduos na esfera simbólica e,
assim, a assunção ou não de uma subjetividade. Dessa forma, a abjeção diz respeito a todos os
corpos e experiências que não são consideradas como expressões genuinamente humanas para
o marco simbólico o qual desafiam (BUTLER, 1998).

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas da vida social ‘não vivíveis’ e
‘inabitáveis’ que, no entanto, são densamente povoadas por aqueles que não gozam
do status de sujeito, mas cuja vida sob o signo do ‘não vivível’ é necessária para
circunscrever o domínio do sujeito. Essa zona de inabitabilidade constituirá o limite
definidor do domínio do sujeito […] (BUTLER, 1993, p. 03) (tradução nossa).

É devido a essa inserção num espaço nebuloso da cultura que Butler defenderá a
necessidade de alteração do campo simbólico como estratégia de ampliação do espectro de vidas
que contam enquanto importantes. Ora, o que se impõe nessa discussão é o estatuto ontológico
que as discussões em torno da abjeção possuem, uma vez que está em jogo a inserção de
determinados indivíduos na categoria humana (LLOYD, 2007), sendo a constituição simbólica
do que se considera enquanto uma vida humana que deve mudar para a consolidação de uma
estrutura social menos excludente.

Evidentemente que uma recusa completa do campo simbólico é impossível, no entanto,


Butler (1999) questiona a impossibilidade que ela enxerga nas discussões realizadas por
Kristeva (1982) de emancipação através da alteração na ordem simbólica. Apesar disso, ao
inserir o abjeto como parte da formação das subjetividades e, consequentemente, da cultura,
Kristeva acaba por abrir a possibilidade explorada por Butler de uma possível dissolução da
ordem simbólica (LLOYD, 2007).

Butler (1993) analisa essa inserção do sujeito na cultura através da constituição de um


corpo generificado pela ordem simbólica nos mesmos termos de identificação que Kristeva
(1982) defende. Nesse sentido, a filósofa afirma que

62
A formação de um sujeito requer uma identificação com o fantasma normativo do
“sexo”, e essa identificação ocorre através de um repúdio que produz um domínio
de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir. É um repúdio que
cria a valência da “abjeção” e seu status para o sujeito como um espectro ameaçador.
Além disso, a materialização de um determinado sexo envolverá centralmente a
regulamentação de práticas de identificação, de modo que a identificação com a
abjeção do sexo seja persistentemente rejeitada (BUTLER, 1993, p. 03) (tradução
nossa).

No entanto, ao descrever essa dinâmica, Butler não pretende referendá-la como


um universal inevitável, mas, ao contrário, expor a ficção ideológica que torna os corpos
generificados possíveis, através da naturalização da diferença sexual que opera enquanto um
marco restritivo para a expressão das subjetividades; o que a leva ao questionamento desse
mesmo marco de forma a flexibilizar do ponto de vista ontológico os limites do que seria uma
vida humana para além da diferença sexual.

2.3. Diferença sexual e a metafísica da substância

Ao questionar a categoria diferença sexual enquanto constituinte inevitável das


subjetividades, Butler (1993, 1999) desenvolve um conceito que denominou de metafísica da
substância. Seria essa metafísica a responsável por instituir um paradigma naturalístico que
impõe uma relação causal entre corpos, gêneros, sexualidade e desejo enquanto expressão
genuína da subjetividade, ao invés de construtos sociais mantidos por coerções de variadas
modalidades (BUTLER, 1999). Salih (2012) define esse conceito da seguinte maneira:

A “metafísica da substância” refere-se à crença difundida de que o sexo e corpo


são entidades materiais, “naturais”, autoevidentes, ao passo que, para Butler, como
veremos, sexo e gênero são construções culturais “fantasmáticas” que demarcam e
definem o corpo (p. 72).

O que está em jogo no investimento nos aspectos culturais da diferença sexual


no pensamento de Butler é o questionamento da própria distinção entre natureza e cultura.
Dessa forma, inclusive os modelos teóricos que explicam o gênero a partir da ideia de que
esse seria a expressão da cultura que marcam corpos que são bases ou receptáculos naturais,
são questionados. Inclusive a ideia da natureza enquanto algo passivo que serviria enquanto
ponto de partida para a cultura contribui e adensa as demarcações excludentes nos campos dos
gêneros e sexualidades, consolidando também a metafísica da substância criticada pela autora
(BUTLER, 1993).

63
Ao pensar a metafísica da substância, Butler desenvolve um aprofundamento acerca
do tema da materialidade dos corpos, uma vez que é tomando a corporeidade como ponto
de partida inevitável para a justificação da diferença sexual que a metafísica da substância
consolida-se. Consequentemente, o que a filósofa busca compreender é como a materialidade
dos corpos, a qual ela não recusa, passou a ser imposta como algo do campo do irredutível
ao invés de também construída do ponto de vista metafísico através de discursos e práticas
específicas (BUTLER, 1993).

Ao se tomar o corpo enquanto momento fundante da diferença sexual, o que ocorre


é a normatização das experiências num sentido que os momentos gênero e sexualidade que
apareceriam enquanto distintos, na verdade consolidam-se enquanto meras continuidades dos
marcadores corporais da diferença sexual, o que permite a Butler afirmar que

A afirmação não problemática de “ser” uma mulher e “ser” heterossexual seria


sintomática dessa metafísica da substância de gênero. No caso de ‘homens’ e
“mulheres”, essa alegação tende a subordinar a noção de gênero à de identidade e a
concluir que uma pessoa é um gênero e o é em virtude de seu sexo, senso psíquico de
um eu, e várias expressões desse eu psíquico, sendo o mais saliente o desejo sexual
(BUTLER, 1999, p. 29) (tradução nossa).

O que se expressa no pensamento de Butler é a constituição de um pensamento que


diz respeito ao campo da ontologia, uma vez que não seria possível à autora desenvolver suas
teorizações acerca das experiências generificadas sem se deparar com a necessidade de repensar
o próprio conceito do que viria a ser a existência humana. Assim, o que interessa a Butler é
pensar os efeitos particulares dessa metafísica no mundo, numa dinâmica que legitima algumas
expressões sexuais e de gênero, ao passo que lança outras à abjeção (LLYOD, 2007).

Butler denuncia a metafísica da substância justamente devido aos efeitos de violência e


exclusão que essa possibilita. Para ela, não há propriedades naturais ou internas que sustentem
a hierarquização ocasionada pela diferença sexual, mas dinâmicas culturais e políticas que
o fazem, de forma que não há justificação para que os corpos e expressões de gênero sejam
pautados numa dinâmica binária. Jagger (2008) afirma que essa conclusão dialoga diretamente
com a defesa que Butler realiza do gênero enquanto performativo, de maneira que

A noção de desempenho e performatividade de Butler evita questões metafísicas sobre


o status ontológico da diferença sexual, pois focaliza a maneira como a diferença
sexual funciona como diferença ontológica, no regime epistêmico/ontológico
contemporâneo (JAGGER, 2008, p. 762) (tradução nossa).

64
Essa incursão no campo da metafísica e epistemologia em Butler tem grande influência
do pensamento de Nietzsche, notadamente no que se refere às discussões empreendidas por
esse autor em sua Genealogia da moral (NIETZSCHE, 2013). Nessa obra, Nietzsche busca
traçar as origens dos conceitos de bem e mal, bom e mau partindo de algumas questões:

[...] de que modo inventou o homem estas apreciações de valor: o bem e o mal?
E que valor têm em si mesmas? Foram ou não favoráveis ao desenvolvimento da
humanidade? São um sintoma funesto do empobrecimento vital, de degeneração? Ou
indicam, pelo contrário, plenitude, força e vontade de viver, coragem, confiança no
futuro da vida? (NIETZSCHE, 2013, p. 25)

Em seu percurso para responder tais perguntas, o filósofo parte de uma postura cética
em relação a pretensa verdade dos conceitos por ele analisados. É dessa forma que Nietzsche
(2013) defende a necessidade do estabelecimento da crítica frente aos valores morais a partir
do conhecimento das condições e contextos nos quais esses surgiram e desenvolveram-se
enquanto postulados.

A partir de sua genealogia, Nietzsche denuncia a arbitrariedade do estabelecimento dos


valores morais, de forma que não haveria uma verdade por trás dos conceitos, mas um ato,
sendo esse o ato de inventar, fabricar as bases para uma moralidade. É dessa forma que ele
afirma que há uma oficina de fabricação de ideais e que essa, para ele, cheira “a mentira e a
embuste” (NIETZSCHE, 2013, p. 50).

O caráter mentiroso dessa criação, em Nietzsche (2013), se explica pela moralidade


hegemônica de origem cristã ter como pressupostos uma reificação da valorização do sofrimento
e do castigo, características por ele denominadas de moral escrava que, em suas insatisfações
com os atos dos senhores, criam uma moral de valorização do oposto ao que esses praticavam.
No entanto, esse momento de invenção é ocultado, o que leva os humanos a acreditarem que os
valores por eles seguidos são os únicos ou, ao menos, os melhores possíveis.

Para Nietzsche (2013), “com a ajuda de tais invenções, conseguiu a vida justificar
seu próprio ‘mal’; talvez hoje precisássemos de outras invenções, por exemplo, considerar a
vida como enigma, como um problema do conhecimento” (p. 67), o que explicita a intenção
do autor de não apenas identificar o funcionamento de uma determinada moral, mas também
questioná-la. Sendo o humano um ser que mede, aprecia e avalia valores, seria necessário,
assim, reiventá-los com a finalidade de produção de uma experiência de vida não pautada na
moralidade escrava valorizadora da crueldade e do castigo.

Evidentemente que essa alteração dos valores não é afirmada enquanto uma tarefa fácil,
uma vez que o questionamento dos padrões morais baseados no binarismo entre bem e mal

65
enquanto categorias antagônicas e excludentes é um ataque à própria crença humana em relação
a existência de uma verdade. Nesse sentido, todos que não se adequam a essa moralidade são
vistos enquanto devedores em relação aos imperativos morais e, assim, culpados:

O culpado é um devedor que não só não paga as vantagens obtidas, as suas dívidas,
como também ataca ao credor: a partir desse momento não só se priva de todos estes
bens e vantagens, como também será lembrada a importância desses bens. A cólera
do credor, isto é, da comunidade ofendida, constitui-o outra vez ao estado selvagem,
põe-no fora da lei, recusa-lhe a proteção e contra ele pode já cometer-se qualquer ato
de hostilidade (NIETZSCHE, 2013, p. 70).

Esse ataque que desperta cólera é, em Nietzsche, intencional. Assim, antes de questionar
a validade dos valores morais, o que o filófoso realiza é o questionamento da própria ideia de
verdade que subjaz à defesa da moral. Em outro momento de sua obra (NIETZSCHE, 2011) ele
já havia feito referência ao que denomina de pathos da verdade. Nele, a partir da capacidade
humana do esquecimento, imagina-se que a verdade é algo que se possui enquanto categoria
irrefutável, e isso inviabiliza o vislumbre da verdade enquanto “cascas vazias” (NIETZSCHE,
2011, p. 10) e possibilita a defesa da verdade como categoria estável e independente da criação
humana.

Essa opção pelo “esquecimento” do caráter construído da verdade se dá devido a


necessidade humana de viver em sociedade, ou no rebanho, como denomina Nietzsche (2011,
2013). Para que isso ocorra é necessário o estabelecimento de um acordo de paz que passa
necessariamente pela sustentação das verdades enquanto parâmetros estáveis e, por isso,
apresentados enquanto absolutos, pois

[...] na medida em que o homem, ao mesmo tempo por necessidade e por tédio,
quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é concluir a paz e, de acordo
com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o aspecto mais brutal do bellum
omnium contra omnes desapareça do seu mundo. Ora, este tratado de paz fornece
algo como um primeiro passo em vista de tal enigmático instinto de verdade. De
fato, aquilo que daqui em diante deve ser a “verdade” é então fixado, quer dizer,
é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a
legislação da linguagem vai agora fornecer também as primeiras leis da verdade,
pois, nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma oposição entre verdade e mentira
(NIETZSCHE, 2011, p. 09-10).

Depreende-se disso que o desejo humano de estabelecimento da verdade relaciona-se


com os resultados favoráveis possibilitados por ela, num sentido de facilitação da conservação
da vida, o que leva Nietzsche (2011) à conclusão de que o conhecimento puro pouco importa

66
na delimitação do conceito de verdade, pois está no centro da questão não o estatuto mesmo
da verdade, mas os benefícios por ela trazidos, o que justifica a postura hostil em relação às
verdades com potencial destrutivo.

Se configura nesse cenário uma versão realista da verdade que estabelece as crenças
humanas enquanto aquilo que refletem de forma adequada a realidade. Para que isso se sustente
se recorrerá, assim, a uma pretensa objetividade em relação à verdade, defendida enquanto
independente do humano, que por seu turno entra em contato com as verdades do mundo através
de uma postura desinteressada e, por isso, neutra. O pathos da verdade, assim, consolida-se
instituindo a verdade como algo pré existente em relação ao humano, ao invés da ideia de que
a verdade é ela mesma constituída através da experiência humana (GEMES, 1992).

Esse mecanismo de produção da verdade é ocultado e, a partir de operações de


simplicação, o humano pode criar um mundo inteligível e gerível por ele a partir de sistemas
de verdadeiro ou falso (GEMES, 1992). No entanto, Nietzsche (2011, 2013) chama a atenção
ao inverso desse pressuposto e denuncia que, para construção e manutenção dessa ordem de
coisas, é possível perceber um grande relativismo em torno do que se pode considerar enquanto
verdade. Para isso ele irá recorrer, principalmente, ao conceito de metáfora como explicativo
da formação do conceito de verdade. Nesse sentido o filósofo expõe:

O que é portanto a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e


antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas,
transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso,
pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são
ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a sua força
sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas
apenas como metal (NIETZSCHE, 2011, p. 12-3).

Nietzsche refuta, assim, a noção de verdade incondicional e, portanto, válida em


qualquer tempo (GEMES, 1992). É devido a isso que Glenn (2004) afirma que “a ideia central
na visão de realidade em Nietzsche é que tudo é fluido, em movimento. Para colocar em termos
filosóficos, a natureza do mundo está no devir, não no ser” (p. 576) (tradução nossa), ou seja,
em Nietzsche encontramos a ideia de que os conceitos, antes de serem verdades, são imposições
artificiais à realidade. Desse modo, ocorre um processo de antroformização da realidade através
da criação de ideias e leis pretensamente naturais e invariáveis (GLENN, 2004).

Ao se falar sobre as coisas da realidade humana, acredita-se no mais das vezes que se
possui ou que seja possível possuir um saber sobre as coisas propriamente. No entanto, Nietzsche
(2011) insiste que essas conclusões não passam de metáforas sem relação necessária e direta
com as coisas. Apesar dessa dinâmica metafórica e arbitrária, o que permite a manutenção na

67
crença na ideia da verdade das coisas e dos conceitos é a repetição compartilhada das metáforas.
Nesse sentido, Nietzsche (2011) afirma que ocorre uma produção de mentiras dentro de uma
dinâmica de convenção, denominada por ele de mentira de rebanho, que obriga os indivíduos
a não apenas mentir, mas esquecer a origem criada das verdades, essas passando a serem
defendidas enquanto realidades absolutas e fechadas em si mesmas.

A mentira, devido ao esquecimento, ocorre então de forma inconsciente, a partir dos


costumes que se perdem no tempo. Isso permite que se instale o sentimento de verdade em
relação às criações humanas (NIETZSCHE, 2011). Esta fábula construída pelo filósofo acerca
da verdade nos leva à tese central de sua incursão acerca da verdade: o conhecimento humano
deve ser analisado a partir de uma perpectiva relativa, o que pressupõe o abandono de qualquer
recurso conceitual que parta de uma ideia de absoluto, uma vez que,

Todo conceito surge da postulação da identidade do não-idêntico. Assim como


é evidente que uma folha não é nunca completamente idêntica à outra, é também
bastante evidente que o conceito de folha foi formado a partir do abandono arbitrário
destas características particulares e do esquecimento daquilo que diferencia um objeto
de outro. O conceito faz nascer a idéia de que haveria na natureza, independentemente
das folhas particulares, algo como a “folha”, algo como uma forma primordial,
segundo a qual todas as folhas teriam sido tecidas, desenhadas, cortadas, coloridas,
pregueadas, pintadas, mas por mãos tão inábeis que nenhum exemplar teria saído
tão adequado ou fiel, de modo a ser uma cópia em conformidade com o original
(NIETZSCHE, 2011, p. 12).

A partir dessas ideias de Nietzsche fica explícito que esse processo não ocorre apenas
na vida cotidiana e não refletida. A filosofia e as ciências operariam da mesma maneira, dizendo
verdades que são desde sempre metáforas, através de abstrações esquecidas enquanto tais.
Estando o filósofo e o cientista também imersos na vida de rebanho, acabam por replicar em
suas áreas os aspectos que contribuem para a manutenção da paz no rebanho, pautando a ideia
de verdade muito mais num aspecto moral. Nesse sentido, a verdade passa a ser o que facilita
a vida em rebanho, e a mentira aquilo que a ameaça (SOBRINHO, 2011, p. 06).

Associam-se, assim, epistemologia e moral, numa dinâmica que replicará no âmbito


da construção dos sabares os conflitos encontrados entre o forte e o fraco no campo moral.
Isso leva à necessidade de pensar a questão da verdade enquanto algo relacionado à política,
uma vez que diz respeito às lutas acerca do poder. Dessa forma, a epistemologia não pode
ser pensada enquanto o estudo objetivo de como conhecemos as coisas, mas enquanto um
campo relacionado com escolhas também morais que acabam por operar em muitos dos casos
divisões dicotômicas acerca da realidade, baseadas, principalmente, na distinção entre o falso
e o verdadeiro (GLENN, 2004).

68
A operação dessa dicotomia ocorre devido ao desejo humano de dominar o mundo, o
que leva à criação dos conceitos que, em seguida, é esquecida enquanto tal. Assim, devido à sua
utilidade na manutenção da vida em rebanho, os conceitos humanos se tornam uma espécie de
segunda natureza, num processo que impõe um marco epistemológico a partir da expressão da
fraqueza como a mais pura verdade (GLENN, 2004).

A principal expressão dessa dinâmica é notada na insistência do estabelecimento de um


pensamento binário acerca da realidade e das variadas experiências humanas. Nessa direção,
a maior parte das pessoas entra em contato com o mundo a partir de uma leitura bifurcada
(GLENN, 2004), na qual verdade e moral entrelaçam-se, uma vez que o considerado verdadeiro
confunde-se com o que se considera bom. Isso leva ao ocultamente da própria complexidade
da experiência do mundo, pois tudo com o que se estabelece contato deve enquadrar-se nas
duas categorias prévias disponíveis, o que leva a uma postura de não questionamento acerca da
fabricação das categorias.

Nietzsche (2011) defende não haver nada mais distante da certeza que essa maneira de
operar acerca das coisas, que ignora o arbitrário de sua própria fabricação: “Classificamos as
coisas segundo os gêneros, designamos l’arbre como masculino e a planta como feminino: que
transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone da certeza” (p. 10). Essas
classificações devem ser superadas para o pensamento do filósofo, que a partir dos conceitos
existentes parte em direção ao seu questionamento e fabricação de outras possibilidades. É
nesse sentido que Nietzsche utiliza as ideias como armas, e estas, antes de descrever a realidade,
a constroem (GEMES, 1992), pois, para ele,

Esta armadura e este chão gigantesco dos conceitos, aos quais o homem necessitado
se agarra durante a vida para assim se salvar, não é para o intelecto liberado senão um
andaime e um joguete para suas obras de arte mais audaciosas; e quando ele o quebra,
o parte em pedaços e o reconstrói juntando ironicamente as peças mais disparatadas
e separando as peças que se encaixam melhor, isto revela que ele não precisa mais
daquele expediente da indigência e que não se encontra mais guiado pelos conceitos,
mas pelas intuições. (NIETZSCHE, 2011, p. 20).

Encontraremos essa vocação também em Judith Butler, que opera a politização dos
conceitos que demarcam a constituição da diferença sexual enquanto um de seus objetivos
teóricos. Para ela, existem razões políticas para a substancialização dos gêneros numa
perspectiva binária (BUTLER, 1999), partindo desse pressuposto para a crítica à uma ontologia
do gênero que naturaliza as ideias e opressões a elas relacionadas.

As categorias homem e mulher que sustentam a ontologia da diferença sexual funcionam


a partir de uma relação de anterioridade ofuscada das mesmas, uma vez que apesar de preexistirem

69
aos sujeitos, são afirmadas enquanto emergentes no momento de surgimento de cada um dos
corpos sexuados. Nesse processo, a natureza imporia sua lei que demarcaria a necessária
partição binária dos sexos e dos gêneros, sem a menção a qualquer tipo de constrangimento ou
mecanismo de poder que a sustente (RODRÍGUEZ, 2002). Esse processo possibilita um senso
de estabilidade nas experiências dos corpos e dos gêneros que apresentariam uma coerência
necessária principalmente no que se refere a uma continuidade entre genitália e gênero, e, ainda
depois, desse com um exercício específico de sexualidade (JAGGER, 2008).

No entanto, essa ontologia do gênero estável (LLOYD, 1999), a partir da perspectiva


performativa da fabricação dos corpos e dos gêneros defendida por Butler (1999; 1993), passa
a ser questionada devido ao seu caráter de estabilização excludente no que tange aos tipos de
identidade possibilitadoras de uma existência propriamente humana, que, para serem mantidos,
necessitam da produção e reprodução dos corpos a partir de atos performativos. Para a filósofa,
“‘Natureza’ e o domínio da materialidade são ideias, construções ideológicas, produzidas pelas
instituições sociais para apoiar os interesses políticos do contrato heterossexual (BUTLER,
1999, p. 159) (tradução nossa).

A autora recorre, assim, ao conceito de ontologia, para questioná-lo. Em sua teoria de


gênero, a ontologia é pensada a partir da repetição de discursos e atos que constrangem a uma
forma habitual e, por isso naturalizada, das vivências dos corpos e gêneros. Nesse sentido,
produz-se a abjeção das experiências que, ainda que expressas na realidade, não respondem
propriamente à ordem simbólica instituída (BUTLER, 1999), configurando-se, assim, enquanto
não vivíveis (DIAZ, 2012).

Deve-se, dessa forma, historicizar essas categorias e a construção dos discursos que as
defendem enquanto naturais e, por isso, imodificáveis. Nesse sentido, é necessário interrogar a
ontologia enquanto algo que revela fundamentalmente a verdade das subjetividades e passar a
vê-las enquanto contingenciais e produtoras de efeitos de verdade, num processo de recusa de
seu caráter neutro e objetivo, insistindo, assim, no caráter político de suas fabricações (LLOYD,
1999). Apenas a partir disso será possível reconhecer que

O corpo, então, tem seu uso determinado cultural/socialmente e a quebra daquilo


que foi instituído aparece como uma ameaça tanto à ordem social, quanto ao próprio
indivíduo. Contudo, vale destacar, essa determinação cultural/social do corpo (e dos
seus usos) não é tomada como tal, senão que a cultura se apresenta tão somente como
uma zeladora daquilo que a natureza instituiu. Há uma ontologia aí encoberta, ou
seja, um a priori que a cultura/sociedade apenas revela e busca preservar, do que seja
o “ser do homem” e o “ser da mulher”, um protótipo que a partir da sua descrição
é tomado como regra fixa a partir da qual são classificados “homens” e “mulheres”
(ROSA, 2012, p. 49).

70
Para romper com essa dinâmica, seria preciso explicitar o caráter de construção
ficcional dos corpos e dos gêneros, isso porque as narrativas em torno do sistema binário de
sexo e gênero instituem um momento anterior ao discurso que justificaria a naturalização dos
corpos. No entanto, Butler (1999) defende a impossibilidade de se recorrer a qualquer ideia de
anterioridade em relação ao discurso, uma vez que os termos utilizados, inclusive do ponto de
vista linguístico, são instituídos e utilizados necessariamente no mesmo momento de criação
das diferenças dos corpos e dos gêneros.

É a partir dessa perspectiva que Butler (1999, 1993) denuncia o caráter performativo da
construção não apenas dos gêneros, mas também dos corpos, no sentido de que os atos e signos
que atravessam os corpos são eles mesmos responsáveis pelas demarcações da inteligibilidade
de gênero. Assim, não seria possível pensar numa substância anterior à linguagem e à cultura
sobre a qual os signos seriam construídos, pois

Se a noção de substância permanente é uma construção fictícia produzida através da


ordenação compulsória de atributos em sequências coerentes de gênero, parece que
o gênero como substância, a viabilidade do homem e da mulher como substantivos é
posta em questão pelo jogo dissonante de atributos que não estão em conformidade
com modelos sequenciais ou causais de inteligibilidade (BUTLER, 1999, p. 32)
(tradução nossa).

É nessa altura de seu pensamento que Butler, assim como Nietzsche, interessa-se pelos
aspectos epistemológicos envolvidos na construção da metafísica da substância que impõe
a diferença sexual enquanto demarcador das diferenças de gênero. Nesse sentido, a autora
questiona os marcos através dos quais se percebe as subjetividades no que tange aos aspectos
dos gêneros e corpos, propondo que esses não podem ser acessados ou conhecidos enquanto
entidades ontológicas fixas e prévias ao discurso que os engendram. Isso ocorre devido ao fato
de que “qualquer tentativa de pensar, conversar ou escrever sobre isso, como ela compreende,
requer, portanto, o uso da linguagem. Como consequência, todo conhecimento e compreensão
acerca do corpo é mediado linguisticamente” (LLOYD, 2007, p. 2162) (tradução nossa).

É a mediação da linguagem que permite a Butler analisar as enunciações de caráter


ontológico não a partir dos marcos da verdade ou falsidade, mas enquanto um campo enunciativo
que, devido ao seu caráter construído, pode ser questionado e, consequentemente, reformulado
numa direção oposta à metafísica dominante (DIAZ, 2012). Assim, o pertencer ou não a um
gênero não possue em Butler nenhum caráter ontológico ou metafísico, sendo necessário
rever os parâmetros instituídos que engendram violências sobre uma série de experiências
divergentes dos padrões normativos naturalizados. Essa concepção acaba pondo em xeque
uma série de categorias binárias sustentadas pelas epistemologias hegemônicas, bem como por

71
perspectivas ontológicas que, pretendendo-se detentoras dos parâmetros de verdade acerca dos
corpos e dos gêneros, acabam apenas por referendar uma estrutura normativa excludente. No
entanto, é possível notar a partir da teoria de gênero de Judith Butler que os corpos e os gêneros

Não “são” nem o ser, ou o não ser, ou o nada; nem a essência ou a substância nem a
não-essência ou a não-substância, o acidente; nem natureza nem anti-natureza; nem
a ideia e sua ausência, ignorância; nem racionalidade e sua negativa, irracionalidade;
nem a universalidade e seus opostos, a particularidade e a singularidade, etc.,
etc. “A e não-A” nada mais são que efeitos performativos do discurso filosófico,
representações simbólicas de políticas e comunicações particulares e históricas
nas quais o sujeito masculino está envolvido, com o objetivo de dar legitimidade e
permanência às referidas situações particulares e históricas (NAVARRO, 2008, p.
272) (tradução nossa).

É a partir dessa dinâmica de ausência de uma ontologia fixa e imutável anterior à própria
cultura que Butler consolidará sua crítica às perspectivas políticas e epistemológicas identitárias
naturalizantes, que, via de regra, recorrem à metafísica da substância para legitimação de suas
categorizações excludentes e, no mais das vezes, binárias. Para a filósofa,

Claramente, as identidades podem aparecer frequentemente como substantivos


inertes; de fato, os modelos epistemológicos tendem a tomar essa aparência como
ponto de partida teórico. No entanto, o “eu” substantivo só aparece como tal através
de uma prática significante que busca ocultar seu próprio funcionamento e naturalizar
seus efeitos. Além disso, qualificar-se como identidade substantiva é uma tarefa
árdua, pois essas aparências são identidades geradas por regras, que se baseiam na
invocação consistente e repetida de regras que condicionam e restringem práticas
culturalmente inteligíveis de identidade (BUTLER, 1999, p. 184) (tradução nossa).

No que tange aos processos de naturalização, a questão dos corpos emerge enquanto
central, pois, devido à sua inegável realidade material, acabam por serem estabelecidos
enquanto ponto de partida para pensar a diferença de sexo-gênero. É por essa razão que Butler
(1993) privilegia as discussões em torno do corpo. Nesse sentido, a autora rejeita a dicotomia
entre mente e corpo e analisa do ponto de vista teórico e político a incidência dos discursos
na constituição dos corpos generificados, de forma a explicitar as relações entre sexo e gênero
enquanto constituintes das subjetividades a partir de uma matriz binária que encontra nas
diferenças entre as genitálias a justificativa para a partição binária dos gêneros (CHAMBERS,
2007).

No entanto, longe de confundir a materialidade do corpo com os discursos que estabelecem


sua realidade, Butler propõe que a própria condição material do corpo só ganha sentido dentro

72
de um marco discursivo específico. Assim, não haveria o corpo enquanto categoria irredutível
a partir do qual seria possível afirmar a verdade dos sexos, mas desde sempre discursos acerca
da realidade material dos corpos que os dividem através de um esquema binário e, por isso,
excludente, sendo a partir dessa divisão que se estabelece a ontologia dos gêneros atrelados
sempre aos corpos e, mais especificamente, às genitálias.

A questão da materialidade dos corpos deixa assim de ser, na filósofa, uma questão
estritamente natural para ser pensada no marco de uma materialização, dado que até mesmo o
conceito do que se entende enquanto matéria necessariamente passa pelo crivo da linguagem
e da cultura. “Nesse sentido, conhecer o significado de algo é saber como e por que importa,
onde ‘importar’ significa de uma só vez ‘materializar’ e ‘significar’” (BUTLER, 1993, p. 32)
(tradução nossa). A defesa realizada por Butler diz respeito à impossibilidade de pensar a
materialidade dos corpos fora da linguagem, num processo que primaria pela realidade
ontológica da diferença sexual enquanto ponto de partida para a consolidação das diferenças
de gênero. Assim, para Butler (1993),

Postular uma materialidade fora da linguagem, sendo essa materialidade considerada


ontologicamente distinta da linguagem, é minar a possibilidade de que a linguagem
possa ser capaz de indicar ou corresponder a esse domínio de alteridade radical. Daí
que a distinção absoluta entre linguagem e materialidade que garantiria a função
referencial da linguagem mina essa função radicalmente (p. 68) (tradução nossa).

Dessa forma, mais do que a busca por uma base irredutível para o estabelecimento da
diferença sexual, Butler propõe a problematização do próprio conceito de materialidade e,
consequentemente, da matriz de sexo-gênero binária. Isso ocorre devido à defesa que Butler
realiza acerca da constituição histórico-cultural dessa matriz, num sentido no qual se torna
impossível conceituar a própria materialidade dos corpos fora dos discursos hegemônicos
acerca do sexo e dos gêneros (MARTÍNEZ, 2015).

Depreende-se disso a reiteração da ideia do caráter performativo da linguagem,


inclusive quando se trata de algo com inegável realidade material como o corpo. No entanto,
essa materialidade só ganha sentido dentro da cultura, não havendo, por isso, a possibilidade
de se pensar qualquer ontologia dos corpos baseada em dados que se pretendam prévios à
linguagem.

A partir disso não é possível afirmar que haja em Butler a redução da materialidade
dos corpos à linguagem, mas apenas uma conexão necessária e insuperável entre esses dois
aspectos. Assim, falar em materialidade da linguagem ou de uma linguagem performativa que
dá estatuto de realidade à matéria não é estabelecer uma indistinção entre elas. Em não havendo

73
oposição entre materialidade e linguagem, como pretendem defender os discursos que impõem
a diferença sexual como uma realidade inegável por prévia a qualquer imersão na linguagem e
na cultura, não é tampouco possível afirmar, por oposição, que matéria e linguagem tratam-se
da mesma coisa. As dinâmicas estabelecidas entre esses fatores são constantes. Em Butler, eles
estão sempre encontrando-se e colocando-se ao mesmo tempo enquanto além e aquém um do
outro. Sendo isso que permite à autora afirmar que

Linguagem e materialidade estão totalmente embutidas uma na outra, quiasmáticas


em sua interdependência, mas nunca colapsadas totalmente uma na outra, isto é,
reduzidas uma à outra e, ainda assim, nunca superam completamente a outra. Sempre
já implicadas uma na outra, sempre superando uma a outra, linguagem e materialidade
nunca são totalmente idênticas nem totalmente diferentes (BUTLER, 1993, p. 69)
(tradução nossa).

É essa maneira de vislumbrar as relações entre corpo e linguagem que permite a


Butler questionar a crença ontológica acerca das pretensas essências dos gêneros baseadas na
diferença sexual (ROSA, 2012). A partir dessa concepção, pode-se falar, então, de processos
de materialização dos corpos atravessados pela linguagem, de forma que o corpo institui-se
enquanto instância de inteligibilidade humana através não de uma força ontológica, mas de
um jogo de ideias acerca dos corpos que possibilitam a constituição de um marco específico
(LLOYD, 2007).

Essa perspectiva performativa para a análise dos processos de materialização dos corpos
permite a Butler (1993) questionar os marcos normativos da diferença sexual que estabelecem
uma leitura binária da experiência humana no âmbito do gênero. A partir disso, a autora refuta
qualquer pretensão de se pensar os corpos enquanto esfera ontológica e, por isso, pré-discursiva
e pré-política, apontando assim para uma agenda que, nos campos ético e cultural, possibilite a
defesa do pluralismo (CHAMBERS, 2007).

O corpo emerge, em Butler, não enquanto instância justificadora de delimitações das


experiências humanas, nem mesmo no que se refere à sua instituição enquanto ponto de partida
único para a ação política. Para a filósofa , os corpos importam não por trazerem consigo uma
verdade basilar das subjetividades, mas por instituírem-se enquanto vulneráveis justamente
devido à emergência de um marco regulador excludente binário (CHAMBERS, 2007). A
partir desse marco institui-se o outro radical que, por isso, passa a ser pensado enquanto uma
impossibilidade e, assim, passível de eliminação.

Esse processo impõe uma necessária relação de disputa em torno do que se vem a definir
enquanto uma vida propriamente humana, conceito sob o qual a matriz de sexo-gênero, baseada
na ideia de diferença sexual, não torna possível o ingresso de experiências disparatadas de seus

74
moldes, sendo isso que leva a pensadora a questionar a formação de dinâmicas de distribuição
desigual dos poderes no campo das experiências sexuais e de gênero, num sentido de que
“aqui, não é apenas uma questão de como o discurso fere os corpos, mas como certas lesões
estabelecem certos corpos nos limites das ontologias disponíveis, nos esquemas disponíveis de
inteligibilidade” (BUTLER, 1993, p. 224) (tradução nossa).

75
PARTE II

76
3. PODER E NORMA, DE FOUCAULT A BUTLER

3.1. Concepção de poder em Michel Foucault

Foucault é, muitas vezes, reconhecido como o teórico das relações de poder. Isso se deve
ao fato de que, ao longo de seu percurso intelectual, o autor foi aproximando-se de uma analítica
do poder construída de forma singular. Um dos aspectos que denotam essa singularidade na
teorização acerca do poder em Foucault é o fato do autor não buscar uma origem do poder ou
sua teoria. Nesse sentido, o que o filósofo defende é a existência de uma série de agenciamentos,
nos quais se cruzam discursos, práticas e instituições que forjam os sujeitos através de relações
de poder (REVEL, 2005), estas, por sua vez, nunca saturadas apenas pelas ideias de dominação
ou violência (MACHADO, 2016).

Essa concepção é exatamente o que justifica, para Foucault, não se falar exatamente do
poder, mas, principalmente, de relações de poder. Isso denota o caráter histórico que Foucault
credita às suas análises acerca do poder que são, por isso, sempre localizadas, levando em
consideração as transformações efetivas ou potenciais nessas relações, de forma a ser possível
afirmar que, em Foucault, “não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente
formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural,
uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2016,
p. 12).

A partir dessa concepção, o que pode ser realizada é uma análise sempre transitória das
relações de poder. Identificar não uma forma geral de funcionamento, mas a maneira como,
num determinado contexto e em determinada época, o poder é posto em circulação, como são
engendradas ações específicas que culminam com um determinado estado de coisas transitórias
e, ainda, em que direção seria possível agir para que ocorram transformações nas relações de
poder (PEZ, 2016). Sobre seu empreendimento teórico no campo do poder, bem como suas
especificidades, Foucault (2008a) afirma:

Em primeiro lugar, a análise desses mecanismos de poder que iniciamos há alguns


anos e a que damos seguimento agora, a análise desses mecanismos de poder não é
de forma alguma uma teoria geral do que é o poder. Não é uma parte, nem mesmo um
início dela. Nessa análise, trata-se simplesmente de saber por ondo isso passa, como se
passa, entre quem e quem, entre que ponto e que ponto, segundo quais procedimentos
e com quais efeitos. Logo, só poderia ser, no máximo, e só pretende ser, no máximo,

77
um início de teoria, não do que é o poder, mas do poder, contanto que se admita que
o poder não é, justamente, uma substância, um fluido, algo que decorreria disto ou
daquilo, mas simplesmente na medida em que se admita que o poder é um conjunto
de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou funcão e tema manter –
mesmo que não o consigam – justamente o poder. É um conjunto de procedimentos,
e é assim e somente assim que se poderia entender que a análise dos mecanismos de
poder dá início a algo como uma teoria do poder (p. 03-4).

Essa forma de compreender o poder permite a Foucault retirá-lo da esfera daquilo que
uns possuem em detrimento de outros, o que complexifica enormemente as análises em torno
da questão do poder. Assim, não haveria uma identidade específica para as relações de poder
que o localizariam numa instituição ou aparelho como o Estado, por exemplo (ESCOBAR,
1985). A forma do poder não seria apenas a da lei e das regras que limitam as possibilidades
subjetivas, mas, através de dinâmicas complexas e, muitas vezes, micropolíticas, as relações de
poder seriam elas mesmas as responsáveis por produzir os sujeitos (MAY, 1993), bem como,
em seu funcionamento, permitem o questionamento e a disputa desses espaços de formação
subjetiva através das lutas que emergem das múltiplas ramificações do poder (ESCOBAR,
1985).

Guattari (2007) analisa essa forma peculiar de vislumbrar o poder em Foucault como
o que permite conectar sua concepção de poder com a produção das subjetividades e com o
desejo, de forma que se pode

[...] notar que sua concepção muito particular de poder tem por consequência [...]
“estendê-lo”, se posso dizer, em direção do desejo. É assim que ele trata do poder
como de uma matéria que releva de um investimento, e não de uma lei do “tudo ou
nada”. Durante sua vida, Michel Foucault recusou encarar o poder como uma entidade
reificada. Para ele, as relações de poder e, por via de conseqüência, as estratégias de
luta não se resumem nunca a ser apenas simples relações de forças objetivas; elas
engajam os processos de subjetivação nisso que eles têm de mais essencial, de mais
irredutivelmente singular [...] (p. 37).

Essa conexão entre as relações de poder e produção das subjetividades é central em


todas as análises que Foucault realiza em seus estudos localizadas do poder e opera, ainda, uma
segunda conexão indispensável para o filósofo: a entre poder e saber. Nesse autor encontramos
uma relação de imanência entre esses dois momentos, uma vez que, estabelecendo relações
um com o outro, nota-se que essas relações são indispensáveis para a constuição de um e de
outro, ainda que, em Foucault, se mantenha a diferença conceitual entre poder e saber que, não
confundindo-se, guardam entre si essa relação necessária de mutualidade (PEZ, 2016).

78
Isso ocorre pois, a partir das relações que muitas vezes Foucault denomina de saber-
poder, é exercitada uma dinâmica de consolidação ou questionamento dos funcionamentos das
instituições e de formas específicas de organização do poder. Nesse sentido, uma gama de saberes
é posta em movimento para a criação, consolidação e manutenção de dinâmicas específicas de
poder, assim como é através do poder que esses saberes são constituídos enquanto saberes
verdadeiros que, por isso, justificam as relações de poder que sustentam. É essa constância que
possibilita a emergência das normas (PEZ, 2016) culminando com a politização dos saberes e
com a conexão entre os poderes e epistemologia.

Encontramos em Foucault um poder de funcionamento múltiplo, de localização incerta


e que aplica sua força em várias direções, o que permite ao filósofo conceber o poder em forma
de rede movente ao invés de como uma estrutura vertical e rígida. Esse poder criaria os objetos
sobre os quais se exerce, o que inclui as subjevidades (MAY, 1993), de forma que é impossível
encontrar em Foucault um antes ou um fora do poder, mas apenas cruzamentos, tensões e
modificações nas redes de poder que engendram as relações. Nesse sentido, todas as produções
humanas carregam consigo as marcas de uma determinada forma de distribuição dos poderes
que sustentam e são por essas relações sustentadas. É devido a essa forma de funcionamentos
das relações de poder que se pode afirmar que

O poder não se funda em si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. Se preferirem,


simplificando, não haveria relações de produção mais – ao lado, acima, vindo a
posteriori modificá-las, perturbá-las, torná-las mais consistentes, mais coerentes,
mais estáveis – mecanismos de poder. Não haveria, por exemplo, relações de tipo
familiar que tivessem, a mais, mecanismos de poder, não haveria relações sexuais
que tivessem, a mais, ao lado, acima, mecanismos de poder. Os mecanismos de poder
são parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o efeito e a causa
delas, mesmo que, é claro, entre os diferentes mecanismos de poder que podemos
encontrar nas relações de produção, nas relações familiares, nas relações sexuais, seja
possível encontrar coordenações laterais, subordinações hierárquicas, isomorfismos,
identidades ou analogias técnicas, efeitos encadeados que permitem percorrer de uma
maneira ao mesmo tempo lógica, coerente e válida o conjunto dos mecanismos de
poder e apreendê-los no que podem ter de específico num momento dado, durante um
período dado, num campo dado (FOUCAULT, 2008a P. 04-5).

A primeira modalidade de poder analisada por Foucault foi a que ele denominou de
poder disciplinar. Nessa forma de organização do poder, encontra-se uma dinâmica de vigilância
que, utilizando-se das estruturas das instituições, acaba por determinar formas específicas
de funcionamento social e produção de subjetividades. A lógica disciplinar é marcada,
principalmente, pela instauração de normas que devem ser seguidas por todos sob pena de
distribuição de punições para aqueles que não se adequem a elas (BRANCO, 2015). Para
Foucault (2008a), uma disciplina é uma forma de recortar a multiplicidade com a finalidade de
padronização, ou seja, através das disciplinas se consegue, a partir de um trabalho individual de

79
domesticação dos sujeitos, construir um único edifício social de funcionamento mais previsível
e, consequentemente, mais facilmente controlável. Dessa forma,

O mecanismo disciplinar também codifica perpetuamente em permitido e proibido,


ou melhor, em obrigatório e proibido, ou seja, o ponto sobre o qual um mecanismo
disciplinar incide são menos as coisas a não fazer do que as coisas a fazer. Uma boa
disciplina é o que lhes diz a cada instante o que vocês devem fazer (FOUCAULT,
2008a, p. 60).

Apesar dessa conexão entre disciplina e norma, não se deve confundir os funcionamentos
disciplinares enquanto dinâmicas necessariamente regidas juridicamente. Ou seja, a
disciplina, ainda que possa lançar mão do recurso da lei, não é, absolutamente, caracterizada
principalmente por ela, dado que muitas das vezes essas normas são naturalizadas, encontrando
nessa naturalização sua própria justificação (REVEL, 2005). Isso permite a Foucault localizar
em diversas instituições que, inicialmente, parecem ter funcionamentos distintos, a incidência
das mesmas lógicas de disciplinamento, como as encontradas nas prisões, nas fábricas, nos
quarteis, nos hospitais e nas famílias.

É assim que se desenvolvem, nas tramas das relações de poder e saber não uma
delimitação entre o lícito ou ilícito, mas uma distinção entre o normal e o anormal. Dessa
forma, Foucault estabelece uma análise mais global que aquelas vinculadas às leis. Isso ocorre,
pois, uma disciplina será tão mais eficaz quanto mais penetrar nas vidas dos sujeitos de forma
completa e contínua. Para isso, elas instituem uma série de saberes acerca do humano que
permitem a prática de uma verdadeira ortopedia social que garante a incidência dos mesmos
mecanismos sobre cada indivíduo (BERT, 2013).

A partir disso, “[...] as instituições disciplinares fazem funcionar um poder que,


polimorfo e polivalente, não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e
personificado, mas é sobretudo difuso, espalhado, minucioso, capilar” (MUCHAIL, 1985, p.
206), o que corrobora com a tese foucaultiana de que a lógica do poder não é estritamente
jurídica, mas incide sobre todas as relações sociais que possam ser estabelecidas nos contextos
determinados, nunca saturados em seus arranjos. Foucault analisa, assim, as disciplinas a partir
de um marco mais global de análise, de forma que, iniciando suas discussões tomando como
referência instituições totais e fechadas, passa em seguida a explicitar como a modelização das
subjetividades não ocorre apenas nesses espaços, mas é exercitada de forma capilar no campo
social atravessando, muitas vezes de forma pouco perceptível, a formação subjetiva de todos
os indivíduos (BERT, 2013). Ele resume da seguinte maneira o funcionamento disciplinar da
sociedade:

80
A disciplina, é claro, analisa, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os
gestos, os atos, as operações. Ela os decompõe em elementos que são suficientes para
percebê-los, de um lado, e modificá-los, de outro. É isso, esse célebre quadriculamento
disciplinar que procura estabelecer os elementos mínimos de percepção e suficientes
de modificação. Em segundo lugar, a disciplina classifica os elementos assim
identificados em função de objetivos determinados. Quais são os melhores gestos a
fazer para obter determinado resultado? [...] Em terceiro lugar, a disciplina estabelece
as sequências ou as coordenações ótimas: como encadear os gestos uns aos outros,
como dividir os soldados por manobra, como distribuir as crianças escolarizadas em
hierarquias e dentro de classifícações? Em quarto lugar, a disciplina estabelece os
procedimentos de adestramento progressivo e de controle permanente e, enfim, a
partir daí, estabelece a demarcação entre os que serão considerados inaptos, incapazes
e os outros. Ou seja, é a partir daí que se faz a demarcação entre o normal e o anormal.
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo
ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização
disciplinar consiste em procurar tomar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a
esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma
e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na
normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo,
há um caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma
estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal se tornam
possíveis (FOUCAULT, 2008a, p. 74-5).

As operações para garantia de cumprimento das normas também não seguem estritamente
o modelo jurídico da punição, mas se espalham por toda a vida cotidiana dos indivíduos através,
principalmente, da figura do especialista. Foucault destaca a função dos especialistas que,
mobilizando campos discursivos específicos, atualizam e mantém em operação determinadas
relações de poder através de normas que extrapolam os limites das instituições. Devido ao
foco nesse processo de desistitucionalização das normas (BERT, 2013), Foucault passa a se
debruçar sobre outra modalidade de poder, denominada por ele de biopoder (FOUCAULT,
1988; 2008a; 2008b).

Modificando e complexificando seu foco de análise, sem com isso recusar suas
teorizações acerca do poder disciplinar, Foucault descreve o surgimento e a operacionalização
de um outro conceito que será caro à modernidade, o de população. Para ele, chama a atenção
o fato de que, a partir da modernidade as “características biológicas fundamentais vai poder
entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT,
2008a, p. 03). Nesse sentido, a naturalidade da espécie entra no campo da política tendo como
objetivo a gestão das populações, num processo em que já não importa primariamente pensar
os gestos e atos individuais de forma a discipliná-los, ainda que siga sendo importante esse
momento de exercício de poder, mas a construção de uma forma geral de controle que atravesse
as coletividades, nas quais os indivíduos são meros meios para o objetivo final.

É através da biopolítica que o humano enquanto espécie entra de forma absoluta


nos cálculos do poder e, consequentemente, na seara das tecnologias de saber, uma vez que,
indispensável para o exercício do poder sobre as populações é a constituição de saberes que

81
permitam analisar e ordenar os fatos biológicos dado sua importante função social. Assim,
quando Foucault fala de vida em suas discussões em torno do biopoder, não é no sentido
mais comum desse termo, mas da fabricação de um novo conceito de vida humana operado a
partir da modernidade, com toda a carga epistemológica que emerge dos discursos científicos
que acabam por consolidar os critérios de normalidade e anormalidade, estabelecendo, dessa
forma, as fronteiras da vida humana (CAPONI, 2016).

Esses saberes especializados sustentam formas de governo sobre os corpos e as


populações. Nesse sentido, além de uma grande temática para os discursos científicos, ao
mesmo tempo, a vida se torna ponto chave para a garantia da governamentabilidade e gestão
das populações modernas (CAPONI, 2016). Esse poder de gestão sobre as vidas é exercido
em dois níveis, que conectam a biopolítica às lógicas disciplinares: num primeiro momento há
uma anátomo-política do corpo humano e, num segundo nível, a biopolítica das populações.
De um lado, a fabricação de corpos dóceis, de outro, a regulação e o controle das populações
(FOUCAULT, 1988). Dois movimentos articulados que são imprescindíveis um ao outro para
fabricação do humano moderno (GUTTING, 2005; MAY, 1993), de forma que, quando se trata
de biopoder, nota-se que

Essa forma de poder intervém diretamente sobre os elementos aleatórios que


atravessam uma população mediante medidas incitativas, preventivas e corretivas.
Não se trata mais, então, de apenas disciplinar o indivíduo, mas de garantir que ele
seja regulado. Portanto, com a biopolítica, não existe desaparecimento do poder
disciplinar, mas especialmente um ajuste das microtécnicas disciplinares diante
de uma nova preocupação, a de velar pelo conjunto dos fenômenos vitais de uma
população. Esses dois tipos de intervenção sobre o social, o disciplinar e a biopolítica,
formam um sistema de engrenagem que reforça cada uma das duas lógicas (BERT,
2013, p. 128).

Ao destacar as formas de disciplinamento e controle encontradas na modernidade,


Foucault recusa vislumbrar o poder enquanto algo estritamente repressivo, uma vez que,
como explicitado por seus estudos, o poder tem muito mais a característica de criação de
subjetividades que repressão de uma verdade que estaria escondida em alguma parte do humano.
Assim, encontramos em Foucault uma leitura positiva acerca do poder, que permite tanto a
construção de saberes, como a sustentação de seu funcionamento de forma mais completa que
a estritamente repressiva (GUTTING, 2005).

O que é possível depreender do pensamento foucaultiano é uma conexão necessária


entre as relações de poder e a história, uma vez que através dessas relações foram constituídas
as organizações sociais e as subjetividades que a sustentam e são por elas fabricadas (MAY,
1993). É nesse sentido que Foucault defende não haver um antes ou um fora do poder, mas

82
disputas que movimentam as conexões das relações de poder em todo tempo modificando
suas formas de expressão e distribuição. Assim, “[...] a impressão de que o poder vacila é
falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua”
(FOUCAULT, 2016a, p. 235), sendo possível apenas a partir de um modelo que não encontra
no poder o sinônimo de dominação analisar as relações a partir de um marco não estritamente
repressivo, mas também produtivo.

Essa característica produtiva do poder é explicitada com maior clareza nos estudos
que Foucault realizou acerca da sexualidade (FOUCAULT, 1988, 2016a, 2016b). O filósofo
demonstra como a criação de um dispositivo da sexualidade forja a produção de uma maneira
específica de organizar os corpos e os prazeres que mais exige que se fale do sexo, do que
o reprime. Nesse processo emergem uma série de saberes que construem as figuras da
anormalidade no campo da sexualidade, como a mulher histérica, a criança onanista e o adulto
perverso, que devem ser analisados tanto com a intenção de recuperação para a normalidade,
como para que, ao se encontrar as razões de seus desvios, se possa prevenir a emergência de
novos anormais (FOUCAULT, 1988, 2010b; MAY, 1993).

Junto a emergência desses saberes, exercita-se o que Foucault denominou de “prazer em


exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro
lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travestí-lo”
(FOUCAULT, 1988, p. 52-3), nesse último caso quando da experiência de indivíduos que,
acreditando estar indo contra o poder, estão, em realidade partindo desde as concepções de
dominação de poder numa tentativa dela escapar. Com isso Foucault não pretende também
defender não haver o que fazer em relação aos poderes instituídos, mas que, ao analisar essas
relações e, consequentemente, pensar alternativas às distribuições do poder, é necessário
complexificar o foco da análise e vislumbrar

Primeiro, que o esclarecimento, a “iluminação” da sexualidade não foi feita só nos


discursos, mas também na realidade das instituições e das práticas. Segundo, que as
proibições existem, são numerosas e fortes. Mas que fazem parte de uma economia
complexa em que existem ao lado de incitações, de manifestações, de valorizações.
(FOUCAULT, 2016b, p. 345).

Com isso, ocorre um descentramento que permite retirar a repressão do centro das
discussões em torno do poder, substituindo um modelo jurídico pelo conceito de dispositivo,
mobilizando uma série de saberes, práticas e instituições para a postura em movimento de um
poder que, antes de temer os objetos sobre os quais se exerce, tem nesses mesmos objetos a
possibilidade de seu exercício, numa dinâmica na qual a repressão e a proibição são apenas

83
formas extremas de exercício de poder, que muitas vezes demostram exatamente os limites das
relações de poder (FOUCAULT, 2016b).

3.2. O corpo nas redes do poder

Em suas teorizações acerca do poder, o corpo emerge enquanto problema para Foucault.
Nesse sentido, desde a lógica disciplinar das instituições totais, até a constituição do que ele
denominou de dispositivo da sexualidade, vê-se um movimento de inflexão em direção ao
corpo, uma vez que, para Foucault, não é possível pensar a produção das subjetividades sem
pensar concomitantemente a produção, as distribuições, bem como as resistências produzidas
sobre ou a partir dos corpos.

Desde o marco das disciplinas nota-se um investimento material sobre a realidade dos
corpos, num sentido de, agindo sobre o que o indivíduo possui de mais concreto, se procurar
estabelecer a criação de corpos dóceis (FOUCAULT, 2014). Dessa forma, o poder disciplinar
vai penetrando o cotidiano e produzindo as subjetividades desde os menores gestos passíveis
de análise e padronização, ao que Foucault (2016a, 2016c) denominou de microfísica do
poder. Essa é a maior característica das relações de poder no que Foucault denomina de Idade
Clássica, momento no qual os exercícios de adestramento, regulação e normalização incindem
diretamente sobre os corpos com maior intensidade a partir das técnicas disciplinares e dos
saberes a elas associadas.

Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos
e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas,
entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não
se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção
sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitudes,
rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle:
não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do
corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação
se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente
importa é a do exercício. A modalidade, enfim: implica uma coerção ininterrupta,
constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado
e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo,
o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem
uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de “disciplinas”
(FOUCAULT, 2014, p. 134-5).

84
O que explica esse interesse das disciplinas sobre a formatação dos corpos é exatamente
o caráter produtivo do poder, uma vez que no lugar de objeto de suplício, os corpos são
objetos de adestramento para retirada do maior proveito possível dele (MACHADO, 2016).
É devido a essa estratégia que Foucault (2014) fala de uma anatomia política que, a partir
do esquadrinhamento do corpo institui uma espécie de mecânica do poder com finalidade de
fabricação de corpos dóceis, ou seja, submissos. Ao vislumbre desse corpo mecânico, aos
poucos, vai-se também acrescentando o corpo enquanto pretensa naturalidade, o que culmina
com a emergência do biopoder. Este mantém o corpo como alvo dos mecanismos de poder
instituídos, criando ainda novas formas de saber sobre ele, de maneira que “o corpo se constitui
como peça de uma máquina multissegmentar” (FOUCAULT, 2014, p. 162).

É na junção entre a anátomo-política do corpo humano e a bio-política das populações


que Foucault (1988) encontrará a criação do dispositivo da sexualidade. Para ele, esse
dispositivo diz respeito ao “[...] regime de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso
sobre a sexualidade humana” (FOUCAULT, 1988, p. 17), e ainda institui a sexualidade como
o espaço privilegiado para a compreensão das subjetividades. É a partir desse dispositivo que
ocorre o processo de aprendizagem da sexualidade, o qual institui as fronteiras entre o certo e o
errado ou, mais precisamente, entre o normal e o anormal. Esse aprendizado ocorre a partir das
relações de poder que articulam a sexualidade com a produção da verdade, recorrendo para isso
às ciências sexuais em suas várias facetas que, ao encarar a pretensa verdade da sexualidade
humana, acaba por criá-la (BERT, 2013).

A forma como Foucault encarou a sexualidade distoa dos discursos das ciências
sexuais, para convergir para sua teorização acerca do poder. Nesse sentido, ele aponta como
não há realmente uma verdade por traz dos discursos acerca do sexo e da sexualidade, mas sua
produção pelas relações de saber-poder que consolidam o dispositivo. Desa maneira,

A reorientação conceitual de Foucault acerca da sexualidade, sua transformação


de um objeto de conhecimento em um efeito cumulativo de poder [...] lhe permite
efetivamente deslocar ontologias convencionais do sexual e, assim, resistir às
reivindicações preemptivas de vários conhecimentos especializados modernos, de
epistemologias positivistas que constituem a sexualidade como algo (ou como o)
real, um fenômeno natural objetivo a ser conhecido pela mente (HALPERIN, 1995,
p. 41) (tradução nossa).

A partir disso, depreende-se que há todo um esforço para a manutenção da pretensa


sexualidade normal, o que por si denuncia a artificialidade dessa criação. Assim, o que é posto
em funcionamento é a regulação do sexo para a construção de subjetividades específicas. Nessa
fabricação não é o interdito que demarca a forma predominante de atuação do dispositivo da

85
sexualidade, mas, ao contrário, uma incitação à fala acerca do sexo e da sexualidade, como uma
forma de confissão moderna. Se instaura, dessa maneira, um prazer em fazer falar e saber sobre
o sexo que interroga a todos acerca de suas sexualidades, num verdadeiro circuito de prazer-
saber (FOUCAULT, 1988).

Ocorre nessas operações uma obrigação de falar, que é, ao fim, a imposição de


exposição das verdades dos sujeitos. É interrogada nesse processo a sexualidade não apenas
dos tidos por normais, mas sobretudo, daqueles que ocupam o lugar da anormalidade. Nessa
busca pela verdade do sexo, todos os detalhes são tidos por importantes, daí a busca intensa
pela proliferação dos discursos acerca do sexo e da sexualidade. Essa imposição ao discurso
dos anormais não permite que haja um espaço legitimado para essas experiências, mas, ao
contrário, viabiliza a regulação das sexualidades tidas por normais a partir da criação de um não
lugar, ou, sempre que possível, a partir da reinserção desses sujeitos nos circuitos de produção
ou lucro (FOUCAULT, 1988).

Devido a essa formatação diferenciada Foucault defende a existência de segmentos


específicos para se pensar a produção do dispositivo da sexualidade, pois,

Se é verdade que a “sexualidade” é o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma
tecnologia política complexa, deve-se reconhecer que esse dispositivo não funciona
simetricamente lá e cá, e não produz, portanto, os mesmos efeitos. Portanto, é preciso
voltar a formulações há muito tempo desacreditadas: deve-se dizer que existe uma
sexualidade burguesa, que existem sexualidades de classe. Ou antes, que a sexualidade
é originária e historicamente burguesa e que induz, em seus deslocamentos sucessivos
e em suas transposições, efeitos de classe específicos (FOUCAULT, 1988, p. 137).

Em grande medida, é devido a essas características do dispositivo da sexualidade que


Foucault defende a necessidade de recusar os modelos que naturalizam o sexo e normatizam as
sexualidades, bem como impõem a elas uma forma normal de funcionamento. Dessa forma, a
direção da análise transpõe a visão da sexualidade enquanto a verdade primeira dos sujeitos, indo
em direção a construção de um pensamento que defende que a sua fabricação é um processo em
diálogo com a produção de uma modalidade específica de subjetividade (FOUCAULT, 2004)
a partir do investimento do corpo pelo poder, que a começar pelos exercícios disciplinares,
foi se espalhando pelo campo social e unindo-se às tecnologias biopolíticas de controle das
populações (FOUCAULT, 2016a).

Evidentemente, esse processo não é unidirecional, pois, ao explorar os corpos, as


relações de poder abrem também possibilidades de recriação de modos de vida a partir deles
(FOUCAULT, 2004), sendo essa uma consequência direta dessa dinâmica. Isso estabelece um

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campo de lutas em torno do corpo que divide instâncias e é ainda mais complexificada quando
das capturas possíveis dos processos de resistências. Daí a insistência de Foucault de pensar
poder e resistência como que duas faces de uma mesma moeda, sendo impossível pensar um
sem conexão com o outro.

Essas capturas referem-se aos efeitos positivos do poder que disciplina e controla,
pois, além de limitar, esses poderes engendram desejo, sendo impossível pensar a produção
de subjetividades sem o recurso ao desejo. Nesse sentido, a partir das respostas de revoltas
dos corpos se passa a produzir novamente um processo de incitação ao mostrar e falar sobre o
corpo, mas um corpo específico, que possa inclusive ingressar nos circuitos econômicos num
processo no qual tudo é permitido, desde que mantidos os ganhos produtivos das vivências,
como bem explicita Foucault ao falar que se pode ficar inclusive nu, desde que se trate de um
corpo magro, bonito e bronzeado (FOUCAULT, 2016a).

Depreende-se dessas discussões o caráter corpóreo do poder em nossa sociedade, desde


suas incidências disciplinares, passando pelas expressões biopolíticas e sempre resvalando em
processos de resistências. É nesse sentido que Foucault (2016a) afirma:

Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício
do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente
ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que, do
século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo
poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes
disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas,
nas cidades, nos edifícios, nas famílias... E depois, a partir dos anos 1960, percebeu-
se que esse poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que
as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre
o corpo (FOUCAULT, 2016a, p. 237).

3.3. O poder na teoria de gênero de Butler a partir de Foucault

A concepção de poder encontrada em Judith Butler é, em grande medida, tributária das


discussões empreendidas acerca das relações de poder por Michel Foucault. Nesse sentido,
Butler realiza a inserção da concepção foucaultiana de poder produtivo em suas teorizações
acerca dos gêneros e das sexualidades, destacando o caráter performativo do funcionamento do
poder, bem como propondo que a ela se acrescente uma preocupação maior com os aspectos da
formação psíquica, momento no qual a filósofa recorre à psicanálise.

Para Butler (1999), o campo político é sempre um campo de disputa e, dessa forma,
não seria possível pensar um lugar na política que não fosse atravessado por relações de poder.

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Poder que, seguindo Foucault, refere-se não apenas ao poder jurídico ou repressivo, mas aos
funcionamentos que permitem a própria emergência do sujeito. Nesse sentido, entra como
marco importante na teorização de Butler o caráter produtivo e dual do poder, pois, além do
poder jurídico que mais explicitamente é exercitado na política, também há o aspecto produtivo
do poder que, muitas vezes, não aparece de forma tão transparente no campo social.

Os aspectos produtivos do poder conectam-se com os processos de subjetivação, bem


como com a consolidação de um conceito de humano. Para Butler (2004), isso explicita a
historicidade desse termo, que através do tempo consolida uma concepção específica e, muitas
vezes, excludente de humanidade. As normas criam e operam, assim, o campo que permite ou
não o reconhecimento. Dessa maneira, as disputas em torno do poder seriam, antes de qualquer
coisa, disputas em torno do reconhecimento dos sujeitos enquanto humanos.

Butler (1999) propõe que existe uma lei que estabelece os parâmetros de inteligibilidade
humana, sendo essa lei invocada enquanto fundamento das relações de poder, ocultando seu
caráter construído através da naturalização que a legitima. Para sua operação é indispensável
essa espécie de ocultamento de sua construção, de forma que o poder possa efetivamente
exercer sua função produtiva, para além das dinâmicas de negação e repressão. A apropriação
dessa leitura foucaultiana do poder é justificada por Butler devido ao fato de que
Foucault salienta que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que eles
posteriormente representam. As noções jurídicas de poder parecem regular a vida
política em termos puramente negativos – isto é, através da limitação, proibição,
regulamentação, controle e até mesmo “proteção” de indivíduos relacionados a essa
estrutura política através da operação contingente e retrátil da escolha. Mas os sujeitos
regulados por tais estruturas são, em virtude de serem sujeitados a elas, formados,
definidos e reproduzidos de acordo com os requisitos delas (BUTLER, 1999, p. 4)
(tradução nossa).

Ao pensar as formas de exercício do poder, Butler defende uma leitura performativa


de seu funcionamento. Para a autora, a performatividade é uma modalidade específica de
poder, num processo que engendra discursos e práticas na criação das realidades sociais e
políticas. A materizalização propiciada pela performatividade acaba por delimitar o campo
do possível na cultura, bem como as possibilidades de subversão exercitadas através dos
processos de resistência que ocorrem seja na forma de práticas que modificam as dinâmicas de
materialização, seja através da contestação política direta. O performativo consolida-se, assim,
enquanto um imperativo normativo que regula em grande medida as relações de poder, incluso
nelas o exterior constitutivo das experiências abjetas, o que denota o caráter produtivo dos atos
performativos, bem como as possibilidades de sua modificação (BUTLER, 1993).

A força da performatividade é exercida através de sua capacidade de estabilizar as


categorias materializadas através de processos de reiteração que se prolongam no tempo. Nesse
sentido,

88
Atos performativos são formas de discurso autorizativos: a maioria dos performativos,
por exemplo, são afirmações que, no enunciado, também executam uma certa ação e
exercem um poder vinculativo. Implicados em uma rede de autorização e punição, os
performativos tendem a incluir sentenças legais, batismos, inaugurações, declarações
de propriedade, declarações que não apenas executam uma ação, mas conferem um
poder vinculativo à ação performada. Se o poder do discurso de produzir aquilo que
ele denomina está ligado à questão da performatividade, então o performativo é um
domínio em que o poder atua como discurso (BUTLER, 1993, p. 225) (tradução
nossa).

A concepção performativa do poder encontrada em Butler consolida a necessidade de


questionamento das políticas de verdade que naturalizam uma certa distribuição dos poderes
(BUTLER, 2004). Dessa forma, torna-se possível o questionamento das relações de poder
estabelecidas, uma vez que essas deixam de ser vistas enquanto uma ordem imutável de coisas,
pois, se o caráter produtivo do poder engendra determinadas formas de subjetivação, é possível
pensar sua instrumentalização para a consolidação de formas mais inclusivas de produção
subjetiva e, consequentemente, social e política.

É devido a isso que Butler endossa a defesa foucaultiana de que as leituras estritamente
dialógicas do poder precisam ser questionadas, uma vez que correm o risco de, inclusive, pensar
uma dinâmica de igualdade nos jogos de poder, num processo no qual uma espécie de acordo
ou contrato equilibraria as dinâmicas de poder. Ora, se por um lado tanto Foucault quanto
Butler corroboram com a ideia de que o poder circula em todas as relações sociais, por outro
não há nesses autores uma leitura ingênua que permita acreditar na ideia de cessão consentida
de poder que, por fim, justificariam as opressões.

No campo específicos dos gêneros e das sexualidades, Butler (1999) destaca o caráter
normativo culturalmente construído do dispositivo que regula os corpos e os desejos. Nesse
sentido, ela novamente endossa a teorização de Foucault (1988) ao defender que não há no
campo dos corpos e das sexualidades algo anterior ou exterior à aparição desses processos, uma
vez que eles são fabricados pelas relações de poder nas quais estão aparentemente inseridas. O
que a filósofa enfatiza é a impossibilidade de se pensar qualquer menção à cultura ou à política
a partir da ideia de algo nos corpos e nas sexualidades que deve ser liberado do poder. Ao
invés disso, Butler (1999) defende a necessidade de modificações nas relações de poder que
viabilizem o reconhecimento de uma parcela cada vez maior de experiências.

Com isso, emerge o desafio de pensar como, para que hajam alterações nas matrizes de
poder hegemônicas, é necessário partir de sua própria forma de funcionamento, num processo
no qual se deixa de reproduzir acriticamente o instituído e ocorre a busca de sua subversão
através da repetição da lei que, ao invés de consolidá-la, permite seu deslocamento. É nessa
altura de sua teorização que Butler questiona os pressupostos de um certo feminismo que recorre
à ideia de patriarcado enquanto uma estrutura que teria se consolidado através da repressão de

89
um passado imaginário de igualdade ou até mesmo de superioridade feminina. Esse tipo de
leitura, para a autora, acabaria por reificar a desigualdade, uma vez que, ou o poder masculino
teria alguma legitimidade por sua capacidade de se impor ao feminino, ou essa legitimidade
não seria passível de crítica devido a impossibilidade de recusar a naturalidade da dominação,
uma vez que não se encontra registro histórico do pretenso momento de igualdade entre os
gêneros (BUTLER, 1999).

Nesse sentido, o objeto da repressão não seria um desejo ou uma experiência anterior
ao poder, mas as múltiplas configurações de poder que engendram o próprio objeto que,
posteriormente, parece ser anterior às relações de poder estabelecidas. Dessa forma, nota-se
uma relação necessária entre desejo e poder, num processo no qual um não pode ser pensado
sem o outro, pois o próprio desejo consolidaria as estruturas de poder que o tornam possível.
Esse paradoxo é analisado por Butler (1999), no campo das sexualidades, da seguinte maneira:

[...] a querela parece também realizar a articulação de um tropo temporal


de uma sexualidade subversiva que floresce antes da imposição de uma lei, após
sua derrubada, ou durante seu reinado, como um desafio constante à sua autoridade.
Aqui parece sensato reinvocar Foucault que, ao afirmar que a sexualidade e o poder
são coextensivos, refuta implicitamente a postulação de uma sexualidade subversiva
ou emancipatória que poderia estar livre da lei. Podemos levar adiante o argumento
apontando que “o antes” da lei e “o depois” são modos de temporalidade instituídos
discursiva e performativamente que são invocados nos termos de uma estrutura
normativa que afirma que sua subversão, desestabilização ou deslocamento requerem
uma sexualidade que de alguma forma escapa às proibições hegemônicas do sexo.
Para Foucault, essas proibições são invariavelmente e inadvertidamente produtivas
no sentido de que “o sujeito” que deveria ser fundado e produzido dentro e por
meio dessas proibições não tem acesso a uma sexualidade que, em certo sentido,
está “fora”, “antes”, ou “depois” do próprio poder. O poder, e não a lei, abrange
tanto as funções jurídicas (proibitivas e regulatórias) quanto as funções produtivas
(inadvertidamente geradoras) das relações diferenciais. Portanto, a sexualidade que
emerge na matriz das relações de poder não é uma simples replicação ou cópia da
própria lei, uma repetição uniforme de uma economia de identidade masculinista. As
produções desviam-se de seus propósitos originais e inadvertidamente mobilizam
possibilidades de “sujeitos” que não apenas excedem os limites da inteligibilidade
cultural, mas expandem efetivamente os limites do que é, de fato, culturalmente
inteligível (p. 38-9) (tradução nossa).

Esse processo é, evidentemente, ocultado pelas dinâmicas do poder, seja do lado dos
processos hegemônicos, seja do lado das teorias e políticas que, pretendendo exercer uma
função crítica, acabam por recorrer à ideia de um fora do poder. Isso permite a manutenção da
ideia de um desejo a ser decifrado, seja para dominá-lo, seja para liberá-lo. Nesse sentido, Butler
(1999) destaca como o conceito de repressão acaba por permitir aos poderes hegemônicos a
consolidação de suas estratégias, uma vez que ele é instituído enquanto ponto de partida para o
exercício do poder.

90
Ao explicitar essas dinâmicas, Butler realiza a defesa já posta por Foucault (1988) de
que a sexualidade, antes de ser uma instância anterior ao poder na qual se poderia encontrar
a verdade dos sujeitos, é algo historicamente construída através de uma “[...] organização
específica de poder, discurso, corpos e afetividade” (BUTLER, 1999, p. 117) (tradução nossa).
Assim, o que esses autores instituem é um discurso reverso no campo dos gêneros, corpos e
sexualidades que, negando a ideia de origem, permite pensar que na realidade se está frente a
efeitos específicos de poder.

Devido a isso, diferentemente do que inicialmente possa parecer, a ideia de não haver
um fora das relações de poder, não leva a afirmação de que não haveria espaço para a agência
dos sujeitos. Mas, pelo contrário, é justo a clareza da impossibilidade de se estar fora das
relações de poder que permite aos sujeitos agência para sua transformação efetiva. Disso
depreende-se não haver a possibilidade de se pensar agência política isoladamente em relação
às dinâmicas de poder, sendo o próprio poder em sua acepção ampla que permite o exercício da
agência (BUTLER, 1999).

Essa leitura permite a defesa da possibilidade de transformação das relações de poder.


Isso ocorre devido a negação tanto do vislumbre da liberdade a partir de um modelo liberal
clássico, como também de uma perspectiva existencial. Dessa forma, ocorre que, ao estabelecer
os limites e as fronteiras, o poder acaba por também tornar visível as possibilidades de suas
superações através do reemprego do poder (BUTLER, 1999).

A essa altura é notável a influência de Foucault no pensamento de Butler, pois,


assim como o filósofo, ela recusa pensar a formação subjetiva enquanto um dado acabado, o
vislumbrando enquanto processo que não encontra uma conclusão ou uma totalidade. Assim,
conclui-se que a produção dos sujeitos relaciona-se com a repetição que, sem criar a cada
vez um novo sujeito, permite, a partir da agência, a reconfiguração das formações subjetivas
através da proliferação de efeitos questionadores da força das normalizações (BUTLER, 1997).

Fica explícito no pensamento de Butler sua adesão à concepção foucaultiana de que


o sujeito não é nunca completamente definido pela sujeição, ainda que essa seja momento
constituinte dele. Nesse sentido, “o poder considerado como uma condição do sujeito não é
necessariamente o mesmo que o poder considerado como o que se diz que o sujeito exerce.
O poder que inicia o sujeito falha em permanecer num contínuo em relação ao poder que é
a agência do sujeito” (BUTLER, 1997, p. 12) (tradução nossa), e essa impossibilidade de
definição completa se dá devido ao espaço possível de resistências operadas pelos indivíduos
(BUTLER, 1997).

Essa dinâmica permite o vislumbre da complexa relação estabelecida entre a produção


das subjetividades e a vida política (BUTLER, 2004), num processo no qual ocorre não uma
transferência do poder de um lugar a outro, mas sua transformação através dos processos de

91
resistência. Esse movimento não pode ser previsto com precisão pelos sujeitos que o operam,
pois isso acabaria por levar à crença num sujeito que deixaria de ser visto estritamente como
determinado para ser pensado a partir de uma leitura estritamente liberal de um sujeito
completamente autônomo e autodeterminado (BUTLER, 2004).

Utilizar-se das possibilidades de agência seria então, para Butler (1997, 2004), assumir
responsabilidades frente a construção do futuro, ainda que este não esteja pré determinado antes
da operação dos movimentos. Nesse sentido, o campo da contestação e transformação política
se institui enquanto momento de agonismo que, para o alcance da ampliação da experiência
democrática, necessita manter-se aberto em suas táticas e sujeitos que o ocupam (BUTLER,
2004).

Ao incorporar as teorizações acerca do poder em Foucault, Butler consegue consolidar


uma perspectiva não personalista do poder em sua teoria de gênero. O poder é pensado pela
autora enquanto relações que instituem uma gramática para a subjetivação dos indivíduos
baseadas na construção de uma ficção metafísica que naturaliza seu funcionamento. Além
disso, Butler escapa, assim como Foucault, de uma visão determinista e maniqueísta do poder,
de maneira que, ainda que haja em seu funcionamento uma grande potência de achatamento
e recusa das diferenças, também nesse funcionamento encontram-se as possibilidades de
subversão, posto não haver formas fixas dos atos de poder, mas dinâmicas de reiteração que
permitem tanto a persistência como a instabilidade de suas relações (BUTLER, 1993).

Para que o poder seja posto em movimento a partir de uma dinâmica de instabilidade
que pode levar à ampliação das possibilidades subjetivas, Butler defende a necessidade de
uma análise crítica das relações de poder, encontrando, em grande medida, no pensamento de
Michel Foucault, uma maneira de defender que

Uma análise crítica da sujeição envolve: (1) uma descrição de como o poder regulador
mantém os sujeitos em subordinação, produzindo e explorando a demanda por
continuidade, visibilidade e lugar; (2) o reconhecimento de que o sujeito produzido
como contínuo, visível e localizado é, no entanto, assombrado por um excedente
inassimilável, uma melancolia que marca os limites da subjetivação; (3) um relato
da iterabilidade do sujeito que mostra como a agência pode muito bem consistir em
se opor e transformar os termos sociais pelos quais é gerada (BUTLER, 1997, p. 29)
(tradução nossa).

3.4. O poder na teoria de gênero de Butler: para além de Foucault

Ao discutir as formas de funcionamento do poder, Butler (1993), frequentemente,


recorre ao conceito de proibição como marco de análise. Nesse sentido, ela segue dialogando

92
com o pensamento de Michel Foucault, mas acrescenta discussões advindas da psicanálise,
notadamente a lacaniana, para complexificar o lugar que os sujeitos e as dinâmicas sociais
ocupam nos processos de proibição. No que tange ao pensamento foucaultiano, sem, no entanto,
se restringir a ele, a autora explicita como, a partir do modelo jurídico de poder, é operada a
proibição de certos atos e práticas. Além disso, expõe como, a partir dessas limitações, pode-se
pensar e intervir sobre as fronteiras a serem extrapoladas pelos processos de resistência.

Na esfera específica das sexualidades, Butler (1993) chama a atenção para a possível
erotização das práticas proibidas, uma vez que, ao se proibir algo, além de fazê-lo vir a público,
têm-se também o efeito de inserir o proibido enquanto potencial fonte de investimentos eróticos.
Esse efeito é também encontrado no âmbito dos corpos, dado que a formação e delimitação
das fronteiras corporais também se fundam numa série de proibições, e essas permitem o
engendramento de um critério de inteligibilidade que acaba por ser a própria possibilidade de
constituição subjetiva. Sobre essa questão Butler avança e afirma:

Se as proibições, em certo sentido, constituem morfologias projetadas, a reformulação


dos termos dessas proibições sugere a possibilidade de projeções variáveis, modos
variáveis de delinear e teatralizar superfícies corporais. Essas seriam “ideias” do corpo
sem as quais não poderia haver ego, nem centralização temporária da experiência. Na
medida em que essas “ideias” de apoio são reguladas pela proibição e pelo sofrimento,
elas podem ser entendidas como os efeitos forçados e materializados do poder
regulador. Mas precisamente porque as proibições nem sempre “funcionam”, ou seja,
nem sempre produzem o corpo dócil que se adapta totalmente ao ideal social, elas
podem delinear superfícies corporais que não significam polaridades heterossexuais
convencionais. Essas superfícies corporais variáveis ou egos corporais podem, assim,
tornarem-se locais de transferência de características que não pertencem mais a
nenhuma anatomia (BUTLER, 1993, p. 64) (tradução nossa).

É nessa altura de seu pensamento que Butler realiza uma inflexão em direção à
psicanálise. Isso ocorre pela crítica realizada pela autora acerca da polarização entre as teorias
do poder e a teorias sobre o psíquismo, algo que, segundo ela, encontramos, inclusive, em
Michel Foucault (BUTLER, 1999). Para realizar essa espécie de integração entre as teorizações
em torno do poder e as discussões acerca da formação psíquica, Butler recorre, principalmente,
ao conceito de simbólico em Lacan, ainda que opere críticas e reapropriações singulares do
vislumbre lacaniano sobre a formação do psiquismo humano.

Ao desenvolver sua teorização aplicada à clínica psicanalítica, Lacan desenvolveu


marcos, denominados por ele de registros, que permitiram a criação de uma forma específica,
ainda que em dialógo direto com o pensamento freudiano, de conceber o psiquismo humano
(CLAVURIER, 2013). Esses marcos foram por ele denominados de real, imaginário e
simbólico (LACAN, 1953), e eles “[...] constituem o lugar de habitação do dito, ou seja,
homem enquanto ser falante: elas são as três dimensões constitutivas do espaço habitado pelo
homem na condição de ser falante” (CLAVURIER, 2013, p. 129).

93
Assim, em Lacan (1953), encontramos uma forte conexão dos registros psíquicos com
a linguagem, relação que se torna ainda mais estreita quando falamos do simbólico. Nesse
sentido, o ingresso no registro simbólico se dá enquanto processo de ingresso na cultura e,
consequentemente, na linguagem. Essa linguagem não é defendida pelo psicanalista enquanto
natural, de forma que sequer é possível determinar em que momento ela começou, tampouco
definir como as coisas se davam antes de sua emergência.

A linguagem exerce uma função que remete aos primórdios da experiência humana,
sendo ela a responsável por tornar os indivíduos sujeitos, a partir do compartilhamento do que
Lacan (1953) denominou de senha. Para isso, o humano deu sentido às palavras, o que foi um
grande avanço no campo da linguagem, e esse sentido passou a ser compartilhado de forma a
tornar possível a comunicação, uma vez que,

[...] na origem, o homem é que, com efeito, dá seu sentido à palavra [mot]. E que só
as palavras [mots] depois se encontraram no comum acordo da comunicabilidade,
isto é, que as mesmas palavras [mots] servem para se reconhecer a mesma coisa; é
precisamente em função de relações, de uma relação de saída que possibilitou a estas
pessoas serem pessoas que se comuniquem (LACAN, 1953, s/p).

A partir dessa relação com as palavras, logo, relação discursiva, é possível falar de
um registro simbólico propriamente dito, ainda que esse não se restrinja às expressões faladas
ou escritas da subjetividade humana. É através do registro simbólico que o humano pode ser
reconhecido e assim reconhecer-se enquanto um eu, sendo no campo simbólico que o sujeito
encontra pertencimento a partir da formação de uma unidade. Essa unidade, ainda que não
permanente, projeta-se sucessivamente enquanto sequência de unidades. Essa relação entre
constituição do eu e temporalidade no registro simbólico é resumida da seguinte maneira:

O que eu gostaria de destacar a respeito deste registro, do simbólico, porém, é


importante. É isto: logo que se trata do simbólico, isto é, aquilo em que o sujeito
se dirige numa relação propriamente humana, logo que se trata de um registro do
“eu” [je], aquilo em que o sujeito se dirige em “eu quero, eu amo...”, há sempre
algo, literalmente falado, problemático, isto é, que há aí um elemento temporal muito
importante a se considerar (LACAN, 1953, s/p).

É a partir dessa concepção temporalizada e radicalmente conectada ao campo da cultura


e da linguagem que Butler realiza a aproximação de sua teorização acerca do poder e das
relações de sexo-gênero com o pensamento lacaniano. No entanto, a autora identifica uma
espécie de desvio no pensamento de Lacan, pois, ainda que ele coloque o registro simbólico

94
enquanto algo construído na experiência humana, acaba por reificar esse registro de maneira
a tornar inviável a experiência humana fora dos marcos da subjetivação estabelecida pelo
funcionamento simbólico (BUTLER, 1997; 1993).

Butler (1993) realiza a conexão entre o registro simbólico e o poder, de forma que, ao
se pensar o simbólico, se estaria frente a um marco de regulação que estabelece um ideal de
funcionamento psíquico. Ao questionar o caráter rígido que a psicanálise impõe ao registro
simbólico, Butler opera um movimento que permite a reformulação das leis simbólicas, num
sentido destas perderem seu estatuto de adesão necessária. Assim, o que a filósofa propõe
é a possibilidade de ressignificação da esfera simbólica, o que passaria pela adesão radical
à ideia de temporalidade que o próprio Lacan havia destacado quando da delimitação dos
registros psíquicos. Isso permitiria a retirado do simbólico de um lugar estruturado de forma
semi permanente e o colocaria numa dinâmica mais flexível do ponto de vista psíquico, bem
como e por consequência, no que tange às dinâmicas sociais e políticas (BUTLER, 1993).

Para que essa reelaboração temporal seja possível, uma outra crítica deve ser exercitada.
Ela se refere ao questionamento da autoridade que emerge através da Lei tal qual encontrada na
psicanálise lacaniana. Nesse sentido, a Lei passaria a ser vista como mais uma ficção reguladora
que se pretende universal e necessária, e essa leitura acompanha o que Foucault (2017, 2015)
denominou de modelo jurídico do poder.

Butler (1993) chama a atenção acerca desse funcionamento da Lei, mostrando como ela
estrutura no processo de produção de subjetividades um excesso de poder creditado ao simbólico
que oculta sua instância citacional pela qual se consolida. Acerca disso, torna-se indispensável
analisar a partir de que mecanismos o simbólico é investido de poder, num sentido desse impor
uma sobreposição do simbólico em relação ao imaginário, registro que, por sua capacidade
criativa, tem a possibilidade de colocar em xeque as leis simbólicas. Assim, as identificações
realizadas no registro imaginário são duplamente capturadas pelo registro simbólico. Primeiro
porque a identificação imaginária é previamente investida pela lei simbólica, que é estabelecida
como o parâmetro a priori; segundo pela Lei não poder ser questionada pelo imaginário, dado
ser instituída enquanto autoridade que precede qualquer possibilidade de ingresso na cultura e
na linguagem.

É exatamente nesse aspecto apriorístico do simbólico que Butler (1993) encontra a


brecha que permite a refutação do caráter de lugar de estabelecimento de lei absoluta para esse
registro. Para ela, a autoridade da Lei é constituída através de recursos citacionais que, em
sua repetição ocultada, engendram o caráter inquestionável da ordem simbólica, permitindo à
psicanálise defender que fora do simbólico apenas a psicose é possível. Essa espécie de ameaça
em torno da impossibilidade de constituição subjetiva fora dos marcos simbólicos instituídos
acaba por denunciar a arbitrariedade de seu estabelecimento, de forma que, para Butler, não

95
há uma posição anterior privilegiada que legisle sem possibilidade de questionamento acerca
da formação psíquica e processos de subjetivação, mas, ao contrário disso, o que ocorre é a
reificação de uma ficção reguladora.

Com essa discussão, Butler (1997, 1993) explicita o caráter disciplinar que o conceito
de simbólico e de Lei operam no que tange a formação subjetiva de forma geral, bem como
aos aspectos de sexo-gênero que lhe concernem. Assim, a ideia de psiquismo acaba por operar
em marco semelhante a ideia de alma, enquanto instância que baseia metafisicamente as
experiências dos indivíduos ao se instituir como marco inicial e sobre o qual a origem ou
construção não se questiona (NAVARRO, 2008). Nota-se a partir disso o caráter problemático
de se tomar imperativos culturais, como o simbólico, enquanto verdades inescapáveis, ainda
que esses não devam, por isso, serem eliminados do horizonte de análise, uma vez que Butler
(1997, 1993) não recusa a existência do registro simbólico, mas sim seu caráter rígido e de
difícil mutabilidade.

O que a autora propõe é uma leitura que leve em consideração o simbólico a partir do
cruzamento com a ideia de disciplina, de forma a complexificar ambos os conceitos, relação
sobre a qual ela afirma:

Nesse sentido, discordo da perspectiva de Foucault da hipótese repressiva como


meramente uma instância do poder jurídico e defendo que essa concepção não trata das
maneiras pelas quais a “repressão” opera como uma modalidade de poder produtivo.
Pode haver uma maneira de sujeitar a psicanálise a uma redescrição foucaultiana,
mesmo que o próprio Foucault tenha recusado essa possibilidade. Este texto aceita
como ponto de partida a noção de Foucault de que o poder regulador produz os
sujeitos que controla, que o poder não é apenas imposto externamente, mas funciona
como o meio regulatório e normativo pelo qual os sujeitos são formados. O retorno
à psicanálise, portanto, é guiado pela questão de como certas normas reguladoras
formam um sujeito “sexuado” em termos que estabelecem a indistinguibilidade da
formação psíquica e corporal. Onde algumas perspectivas psicanalíticas localizam
a constituição do “sexo” em um momento de desenvolvimento ou como um efeito
de uma estrutura simbólica quase permanente, eu entendo esse efeito constitutivo do
poder regulador como reiterado e reiterável. Para essa compreensão do poder como
uma produção restrita e reiterativa, é crucial acrescentar que o poder também funciona
através da exclusão do efeito, da produção de um “fora”, um domínio do inabitável e
de ininteligibilidade que limita o domínio de efeitos inteligíveis (BUTLER, 1993, p.
22) (tradução nossa).

É a partir da proposição de uma leitura que mescla os aspectos do psiquismo com


as dinâmicas de funcionamento do poder que Butler abre espaço em sua teorização para os
processos de resistência. O que é proposto nessa altura do pensamento de Butler é que o
registro do real acaba por impor resistências ao processo de ingresso no simbólico, de maneira
que é possível pensar o real enquanto campo que possibilita ao psíquico uma experiência não

96
necessariamente atrelada ao mimetismo estrito que encontramos no registro simbólico. Essa
concepção de real é a mesma encontrada em Lacan (1953), no entanto, para o autor, mantêm-
se a ideia de que é indispensável que o real se dobre ao simbólico para que o sujeito seja
viável, o que acaba por legitimar o simbólico como marco cultural e linguístico indispensável;
enquanto que, para Butler (1993), a questão que emerge é a de como politizar essa relação entre
linguagem e real, de forma a se apropriar do espaço de resistência psíquica enquanto lugar de
resistências políticas.

Para operar esse movimento, Butler (1993) questiona a prevalência do regsitro simbólico
no que tange à autoridade de produzir o interior e exterior do que conta enquanto vida psíquica
legítima através dos processos de forclusão. Com isso, Butler defende que, apesar de todas
as formações de linguagem terem a necessidade de operar por exclusões, isso não quer dizer
que todas as exclusões são equivalentes umas às outras. Para ela, “o que é necessário é uma
maneira de avaliar politicamente como a produção de ininteligibilidade cultural é mobilizada
de maneira variável para regular o campo político, ou seja, quem contará como um ‘sujeito’,
e quem será obrigado a não contar” (BUTLER, 1993, p. 207) (tradução nossa). Nesse
sentido, estabelecer o registro do real enquanto um exterior impossível acaba por inviabilizar
experiências não enquadráveis de forma inquestionável no registro simbólico, o que acaba por
confirmar a hipótese da autora de que as dinâmicas psíquicas relacionam-se com relações de
poder contingentes que permitem ou não o reconhecimento das variadas experiências humanas.

A complexa dinâmica entre o real e o simbólico analisada por Butler (1993) encontra-se
diretamente relacionada à sua apropriação de que o inconsciente, tal qual pensado por Freud e
Lacan, também se configura enquanto uma experiência de resistência. O que se encontra nas
dinâmicas inconscientes são, muito comumente, processos de resistência à normalização que
são impostas pelas necessidades de conformidade com o campo da cultura, logo, com o registro
simbólico. A resistência opera devido ao fato de que, ainda que o sujeito precise se adequar às
normas para ser reconhecido enquanto tal, a experiência psíquica nunca se restringe ao restrito
da cultura, uma vez que há sempre em operação os registros do real e do imaginário (BUTLER,
1997).

No entanto, a própria experiência inconsciente não passa sem o escrutínio da crítica.


Assim, mesmo quando se pensa o inconsciente enquanto uma instância que opera a partir das
resistências, Butler (1997) não deixa de tensionar a discussão apontando que não há nada que
permita defender que o inconsciente não é ele mesmo atravessado e estruturado por relações
de poder engendradas no campo da cultura. Nesse sentido, fica explícito que a resistência
inconsciente não necessariamente será produtiva quando se pensa em termos de resistências
políticas. O que deve ser depreendido das análises de Butler acerca do inconsciente não é que
esse seria o lugar privilegiado para o questionamento da ordem simbólica, mas apenas que ele
é o lugar possível para a ocorrência desse processo, uma vez que denuncia a possibilidade de

97
falhas na constituição subjetiva, permitindo abrir um campo de questionamento e transformação
política que se arrogue a possibilidade de não reificar o registro simbólico e, com isso, permitir
campos de reconhecimento mais amplos.

As resistências do inconsciente ao simbólico permitem a rearticulação dos termos


desse último, dado denunciarem os esforços necessários para a legitimação da cultura e da
linguagem, o que permite a Butler a sua articulação com a concepção de poder encontrada em
Michel Foucault, uma vez que,

A noção de “simbólico” não trata da multiplicidade de vetores de poder sobre os quais


Foucault insiste, pois o poder em Foucault não consiste apenas na elaboração reiterada
de normas ou demandas interpelantes, mas é formativo ou produtivo, maleável,
múltiplo, proliferativo e conflituoso. Além disso, em suas ressignificações, a própria
lei é transmutada naquilo que se opõe e excede seus propósitos originais. Nesse
sentido, o discurso disciplinar não constitui unilateralmente um sujeito em Foucault,
ou melhor, se o fizer, constitui simultaneamente a condição para a desconstituição do
sujeito (BUTLER, 1997, p. 99) (tradução nossa).

No campo psicanalítico, ocorre o ocultamente dessa relação intrínseca entre psiquismo


e relações de poder, exatamente por, na esfera das relações de sexo-gênero, haver a necessidade
de manutenção da ideia de diferença sexual que sustenta a base da teoria e clínica psicanalítica:
o complexo de Édipo. Para Butler (1993), o tabu do incesto que sustenta a triangulação
edípica da formação psíquica é, antes disso, um tabu sobre a homossexualidade. Isso porque
durante a passagem pelo Édipo, os indivíduos necessariamente passarão por uma identificação
estruturante com o genitor do gênero oposto ao que foi designado, o que sustenta a partição
binária entre os sexos e, consequentemente, entre os gêneros.

O que ocorre no processo de passagem pelo Édipo é a conexão simultânea entre a


anatomia dos corpos e a linguagem, de forma que se torna impossível pensar uma sem a
outra, o que acaba por estabelecer uma relação tautológica. Dessa primeira conexão, advém a
impossibilidade encontrada em psicanálise de emergência do sujeito sem o marco da diferença
sexual pensada de forma binária, o que tem por consequência a imposição da heterossexualidade
enquanto norma a partir da qual todas as expressões de sexualidades passam a ser medidas
(BUTLER, 1993).

O que Butler (1993, 1997) explicita em sua crítica ao conceito de diferença sexual no
que concerne a psicanálise é que essa acaba por limitar as possibilidades de resistências que o
processo de formação psíquica pode ter, uma vez que, ao invés de investir nesse âmbito enquanto
potencialmente disruptivo, o pensamento psicanalítico tradicional acaba por utilizá-lo enquanto
instrumento de normalização reiterativa do poder simbólico de estruturar dinâmicas sexistas e

98
homofóbicas. Dessa forma, o simbólico antes de ser pensado enquanto instância estabilizadora
do psiquismo que permite aos indivíduos ingressarem na cultura, deve ser compreendido

[...] como dimensão normativa da constituição do sujeito sexuado na linguagem.


Ele consiste em uma série de demandas, tabus, sanções, injunções, proibições,
idealizações impossíveis e ameaças – atos de fala performativos, por assim dizer, que
exercem o poder de produzir o campo de sujeitos sexuados culturalmente viáveis:
atos performativos, em outras palavras, com o poder de produzir ou materializar
efeitos subjetivos (BUTLER, 1993, p. 106) (tradução nossa).

O que ocorre com a crítica que Butler realiza do simbólico e suas relações com
determinadas distribuições de poder dialoga com sua defesa de que a formação do psiquismo e
as dinâmicas do desejo nunca são completamente determinadas por uma instância, a exemplo
do simbólico, mas, ao contrátio “[...] se caracterizam pelo deslocamento, podem exceder a
regulação, assumir novas formas em resposta à regulação, até transformarem-se e torná-la
atrativa. Nesse sentido, a sexualidade nunca é totalmente redutível ao ‘efeito’ desta ou daquela
operação do poder regulador” (BUTLER, 2004, p. 15) (tradução nossa).

Butler parece operar movimento semelhante ao realizado por Deleuze e Guattari (2011),
num sentido de questionamento das intenções universalizantes e deterministas das concepções
de inconsciente, complexo de Édipo e registros simbólicos. Deleuze e Guattari (2011) propõem
um funcionamento produtivo do desejo, em oposição ao desejo enquanto falta encontrado na
psicanálise. Nesse sentido, sem negar de forma absoluta a formação do sujeito a partir do
Édipo, o que eles propõem com sua esquizoanálise é que Édipo seria uma forma de produção
psíquica, a predominante na organização social capitalista, mas não a única.

A impossibilidade de universalização do Édipo em qualquer tempo e cultura é, para a


perspectiva esquizoanalítica, a prova de que ele é uma forma de postura em funcionamento de
dinâmicas de repressão. Para Deleuze e Guattari (2011) “acredita-se muitas vezes que Édipo
é fácil, que é dado. Mas não é assim: Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas
desejantes” (p. 13), de forma que se torna indispensável evidenciar o caráter produtivo do
desejo, e não uma dinâmica de falta, para que seja possível a ruptura com a triangulação edípica
que engendra sujeitos predominantemente neuróticos.

Baremblitt (2010) defende que essa concepção de desejo permite a Deleuze e Guattari o
estabelecimento de uma proposição acerca do psíquico sobretudo ética. Isso ocorre porque, ao
introduzir o caráter produtivo do desejo em sua concepção de psiquismo, os autores permitem
o ingresso do desejo na materialidade produtiva da realidade, uma vez que é rompida a cisão
entre psiquismo e realidade social através da potência criativa do que eles denominaram de
máquinas desejantes. Assim, “há em toda parte máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas

99
esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, nada mais querem dizer”
(BAREMBLITT, 2010, p. 12).

Essa forma de funcionamento do desejo permite que diversos fluxos encontrem-se e


desencontrem-se sem qualquer compromisso necessário com uma estrutura, seja ela social ou
psíquica, dado que até mesmo essa distinção torna-se inviável (DELEUZE e GUATTARI, 2011).
Isso permite à esquizoanálise a defesa da existência de infinitas maneiras de funcionamento
inconscientes, que podem tanto direcionar-se para a produção de subjevidades sujeitadas, como
para formas de subjetivação libertárias (BAREMBLITT, 2010).

É através dessa concepção de desejo e inconsciente que será possível à perspectiva


esquizoanalítica defender que

A psicanálise seria a ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico.


E este modo de produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção
edipiano. É no seio da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única,
eterna e universal, que se gera “o sujeito psíquico”. Toda outra forma é considerada
imcompleta e aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico,
afirmam que não existe um modo de produção deste que seja universal e eterno. Mas
sim, que existe um modo historicamente dominante de produção do sujeito psíquico
que, obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do
psiquismo (vamos dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar) é a produção de homens
narcisistas, egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis,
majoritariamente heterossexuais etc. Enfim, o que constitui o psiquismo habitual do
nosso modo de ser, que se supõe universal (BAREMBLITT, 2010, p. 18).

Apesar dos vários aspectos que aproximam o pensamento de Butler do de Deleuze e


Guattari, a filósofa opta por não estabelecer um diálogo mais profícuo com esses autores. A
crítica realizada por Butler localiza-se na concepção de desejo enquanto falta que é defendida
pelos esquizoanalistas, conceito acerca do qual a autora tece críticas por preferir compreender
a concepção de desejo em psicanálise enquanto baseada na negatividade. Sobre isso ela afirma:

A psicanálise parece centrada no problema da falta para Deleuze, mas eu tendo a


centrar-me no problema da negatividade. Uma razão pela qual me opus a Deleuze é
que não encontrei nenhum registro negativo no seu trabalho, e temi que ele estivesse
propondo uma defesa maníaca contra a negatividade (BUTLER, 2004, p. 198)
(tradução nossa).

A despeito dessa divergência, persistem os pontos de aproximação entre a leitura


acerca da formação psíquica nesses autores. Eles consistem numa concepção que não permite
a desvinculação entre a produção desejante e a produção da realidade, bem como numa recusa

100
de pensar o Édipo enquanto momento estruturante universal e percebê-lo enquanto uma forma
totalizante de produção psíquica.

São esses pressupostos que permitem a Butler (1993) realizar importantes


questionamentos acerca da categoria da diferença sexual e que também permitem a Deleuze
e Guattari (2011) afirmarem que no que tange aos gêneros e sexualidades encontramos na
produção desejante

[...] uma transexualidade microscópica em toda parte, que faz com que a mulher
contenha tantos homens quanto o homem, e o homem mulheres, capazes de entrar,
uns com os outros, umas com as outras, em relações de produção de desejo que
subvertem a ordem estatística dos sexos (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 390).

Butler, por seu turno, opta intencionalmente por manter o pensamento de Deleuze
e Guattari distanciado de sua teorização, aproximando-se de Foucault para justificar seus
questionamentos acerca do lugar que o simbólico ocupa em psicanálise e das relações
paradoxais que suas críticas explicitam. Nesse sentido, ela chama a atenção para o fato de
que, de um lado, não é possível viver fora de normas de reconhecimento e, por outro, essas
normas podem, muitas vezes, produzir sofrimento a diversos sujeitos. É por isso que Butler
(1993, 1997) explicita o caráter político das dinâmicas de reconhecimento, sendo necessário
o vislumbre das hierarquias que essas podem engendrar com a finalidade de modificação de
suas estruturações de poder, o que deve passar, necessariemente, por modificações no registro
simbólico da realidade.

Os limites do simbólico estariam, para Butler (1997), relacionados à questão do


conhecimento e da verdade, e estes numa conexão, já explicitada por Michel Foucault, com
as relações de poder. É nesse sentido que, no âmbito da produção das normas de sexo-gênero
ela afirma que “[...] somos confrontados com os limites do que é conhecível, limites que
exercem uma certa força, mas não se baseiam em nenhuma necessidade, limites que só podem
ser percorridos ou interrogados arriscando uma certa segurança, partindo de uma ontologia
estabelecida” (BUTLER, 2004, p. 27) (tradução nossa).

3.5. Poder e normas de sexo-gênero em Judith Butler


A maneira com que Butler pensa as relações de poder e suas implicações reflete-se
diretamente em sua teorização acerca da produção dos gêneros e dos corpos. Nesse sentido, ela

101
chama a atenção para a consolidação de determinadas estruturas de poder enquanto marcos que
engendram a estrutura binária nos campos das relações de sexo-gênero. O que a filósofa propõe
é o exercício do poder enquanto atividade incidente na materialidade dos corpos e que, por isso,
institui efeitos formativos do que vem a ser considerado enquanto subjetividade ou, ainda mais
radicalmente, enquanto uma vida humana (BUTLER, 1999, 1993).

Esse exercício do poder através da materialidade dos corpos aparece enquanto externo
ao discurso e às próprias relações de poder, mas isso configura-se enquanto uma dissimulação
do regime de saber-poder que estabelece o marco de inteligibilidade binário, uma vez que
a diferença sexual acaba por operar enquanto um ponto de partida epistemológico para se
pensar a realidade dos corpos e dos gêneros. No entanto, Butler (1993) explicita em sua crítica
que aceitar esse ponto de partida constitutivo tem efeitos políticos específicos, o que exige
a realização de uma genealogia do poder no campo dos corpos e gêneros para um melhor
vislumbre das dinâmicas de poder em seu funcionamento e capacidade de formação da própria
ideia de sujeito.

Butler (1993) advoga que o gênero é parte do que constitui o sujeito em nosso campo
social, de forma que, entre outros marcadores, o gênero é consolidado a partir de relações de
poder específicas enquanto categoria fundante da experiência humana. Dessa forma, para a
garantia de sua postura em ato, são instituídos normas para a produção e regulação dos corpos
e das experiências adequadas ao marco de gênero binário. No entanto, a autora destaca não
defender, por isso, uma espécie de determinismo cultural, pois, se por um lado, as relações
de poder engendram um modelo no campo do gênero, por outro, os processos de resistência
possibilitam o questionamento e modificação dessas relações.

A repetição ritualizada do gênero se expressa através do complexo processo de produção


subjetiva, no qual o indivíduo não está determinado completamente pelas relações de poder
hegemônicas, mas, tampouco, coloca-se em relação ao poder numa posição de exterioridade
através de uma autonomia completa que culminaria na ideia de um sujeito de escolha e agência
ilimitadas (BUTLER, 1993). Essa forma de vislumbrar as relações de poder aproxima-se
intensamente da concepção foucaultiana de poder, ainda que Butler defenda especificidades
em sua leitura quando da aproximação com a temática específica do gênero, pois,

Tipos particulares de regulação podem ser entendidos como instâncias de um poder


regulador mais geral, que é especificado enquanto a regulação de gênero. Aqui eu
contrario Foucault em alguns aspectos. Pois, se a sabedoria foucaultiana parece
consistir na percepção de que o poder regulador tem certas características históricas
amplas e que opera tanto no gênero quanto em outros tipos de normas sociais e
culturais, parece que o gênero é apenas o exemplo de uma operação reguladora de um
poder maior. Eu argumentaria contra essa subsunção de gênero ao poder regulador
que o aparato regulador que governa o gênero é específico. Não pretendo sugerir que
a regulação de gênero seja paradigmática do poder regulador enquanto tal, mas que o

102
gênero exije e institue seu próprio regime disciplinar e regulatório (BUTLER, 2004,
p. 41) (tradução nossa).

Depreende-se disso que Butler realiza uma aplicação específica das teorizações de
Foucault acerca do poder. Assim, ocorre na teoria de gênero da filósofa a consolidação de um
pensamento disciplinar acerca da produção do gênero, num sentido de haver em sua crítica
a explicitação de que algumas práticas e desejos são favorecidos pelas relações de poder em
detrimento de outras que passam a ser punidas através da instituição do lugar do ilegítimo,
ininteligível e anormal, ou seja, da consolidação do espaço do abjeto, de forma que “a relação
corpo-performatividade-gênero é em muitos aspectos paralela à apresentada entre corpo-
biopoder-sujeito em Foucault” (NAVARRO, 2008, p. 1208) (tradução nossa), ainda que não se
confunda completamente com ela.

A articulação entre corpo, poder e performatividade de gênero é explicitada por Butler


(1993) quando a autora reforça as relações necessárias entre matéria e linguagem, corpo e
gênero. Ela expõe como a categoria “sexo” impõe-se enquanto um campo normativo que
delimita a inteligibilidade dos corpos através de uma estrutura binária generificada. Nesse
sentido, o sexo opera muito mais do que como norma, mas enquanto um ideal regulatório
que exercita não apenas as expressões punitivas do poder, mas também, e principalmente, seu
caráter produtivo (BUTLER, 1993).

Os corpos são, assim, compelidos a uma determinada forma de materialização regulada


que engendra a própria ideia de materialidade consolidada através dos tempos ocultando sua
fabricação. Dessa maneira, o corpo não é uma condição original e ponto de partida para a
produção das subjetividades, mas é ele mesmo expressão dos processos que viabilizam o
sujeito dentro de um marco regulatório produtivo reiterativo da materialidade. “Nesse sentido,
o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos será totalmente material,
mas a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do
poder” (BUTLER, 1993, p. 02) (tradução nossa).

Nessa altura de sua teorização, Butler (1993) aproxima-se em suas discussões acerca
do gênero das discussões empreendidas por Foucault (2014) sobre a fabricação dos corpos
dos prisioneiros. Com isso, ela consegue estabelecer um nexo de contingência histórica
que permite o entrelaçamento do poder com a série de discursos que ao mesmo tempo que
viabilizam a materizalização dos corpos, ocultam a dinâmica regulada da fabricação desses e,
consequentemente, dos sujeitos.

A partir dessas discussões é possível a reformulação da própria ideia de materialidade


dos corpos, num sentido de que essa passa a ser vista enquanto inserida em dinâmicas específicas
de poder, num processo no qual normas regulatórias operam para garantia de uma determinada

103
distribuição do poder no que refere às estruturas de sexo-gênero. Assim, é possível retomar a
concepção performativa de corpo defendida por Butler (1993), na qual a nomeação do corpo
nos marcos da diferença sexual permite a emergência dos sujeitos através de práticas de poder
discursivamente reiteradas, impedindo que se pense o corpo enquanto anterior a categoria de
gênero, dado o fato da própria materialidade ser engendrada em marcos culturais que passam a
governar a produção dos corpos.

É possível, dessa maneira, conectar a produção dos corpos sexuados com a produção
do regime de heteressexualidade que privilegia algumas identificações sexuais em detrimento
de outras através da assunção de normas que são, ao fim, a assunção do próprio sexo e gênero.
Esse processo é explicado por Butler (1993) enquanto uma formação discursiva performativa,
isso porque

O “sexo” é sempre produzido como uma reiteração de normas hegemônicas.


Essa reiteração produtiva pode ser lida como um tipo de performatividade. A
performatividade discursiva parece produzir aquilo que nomeia, representar seu
próprio referente, nomear e fazer, nomear e fabricar. Paradoxalmente, porém, essa
capacidade produtiva do discurso é derivativa, uma forma de iterabilidade cultural ou
rearticulação, uma prática de ressignificação, não de criação ex nihilo. De um modo
geral, um performativo funciona para produzir aquilo que declara. Como prática
discursiva (“atos” performativos devem ser repetidos para se tornarem eficazes), os
performativos constituem um locus de produção discursiva. Nenhum “ato” à parte
de uma prática regularizada e sancionada pode exercer o poder de produzir aquilo
que declara. De fato, um ato performativo separado de um conjunto de convenções
reiterados e, portanto, sancionadas, pode aparecer apenas como um esforço vão para
produzir efeitos que ele não pode (BUTLER, 1993, p. 107) (tradução nossa).

É devido a essa forma de operação na fabricação da materialidade dos corpos que


Butler aproxima de forma radical corpo e gênero, sendo impossível uma distinção completa
entre esses dois momentos da produção subjetiva. Isso ocorre pois, assim como o corpo, e ao
mesmo tempo desse, o gênero consolida-se através de redes de poder que apresentam uma
série de normas e regulações viabilizadoras de determinadas experiências de sexo-gênero, ao
passo que lançam à abjeção uma série de outras. Nesse sentido, a identificação com um gênero
ocorre a partir da identificação com uma série de normas que expressam um poder prévio às
identificações (BUTLER, 1993).

Ao chamar a atenção para o caráter normativo da assunção do gênero, Butler (1993)


destaca que o gênero nunca é uma eleição, mas uma imposição para a efetivação dos sujeitos,
ainda que seja possível apropriações das normas que acabem por questioná-las e deslocá-
las. Os indivíduos são compelidos a realizarem as suas “escolhas” de gênero, sendo essas
previamente delimitadas pelo marco de inteligibilidade cultural que o sustenta. Devido a esse

104
funcionamento a autora utiliza o recurso de analisar a postura do gênero em ato enquanto
algo carregado de teatralidade, ainda que recuse a instância de auto criação que esse termo
possa indicar, assinalando uma reformulação da ideia de perfomativo encontrada no campo das
expressões teatrais. Assim,

Como resultado dessa reformulação da performatividade, (a) a performatividade de


gênero não pode ser teorizada à parte da prática forçada e reiterativa dos regimes
sexuais reguladores; (b) o relato da ação condicionada por esses mesmos regimes de
discurso/poder não pode ser confundido com voluntarismo ou individualismo, muito
menos com consumação, e de forma alguma pressupõe um sujeito específico; (c) o
regime da heterossexualidade opera para circunscrever e contornar a “materialidade”
do sexo, e essa “materialidade” é formada e sustentada através e como materialização
de normas reguladoras que são em parte as da hegemonia heterossexual; (d) a
materialização de normas requer os processos identificatórios pelos quais as normas
são assumidas ou apropriadas, e essas identificações precedem e permitem a formação
de um sujeito, mas não são, estritamente falando, realizadas por um sujeito; e (e)
os limites do construtivismo são expostos naqueles limites da vida corporal em que
corpos abjetos ou deslegitimados deixam de contar como “corpos” (BUTLER, 1993,
p. 15) (tradução nossa).

Fica estabelecido com isso um aparato de poder que normaliza as expressões do


masculino e do feminino através de uma dinâmica que interseciona corpo, gênero e subjetividade
impondo uma inteligibilidade hormonal, cromossômica, psíquica e performativa para a sujeição
aos parâmetros de inteligibilidade de gênero. Ao se destacar o funcionamento dessas operações
de poder é possível deixar de presumir que as expressões de gênero hegemônicas são naturais,
pois ficam explícitas as normas que constrangem os indivíduos no processo de produção das
subjetividades. Dessa forma, as noções de masculino e feminino são elas mesmas fabricadas e
reiteradas no momento da sujeição (BUTLER, 2004).

Depreende-se disso que no campo do gênero ocorre a organização de uma presunção


de normalidade na estruturação do mundo inteligível. Sendo assim, não há uma aproximação
neutra possível na esfera epistemológica no que tange às análises do gênero, ou seja, não há
a possibilidade de pensar o gênero e os corpos fora das relações de poder que instituem suas
normas, pois ao se tentar realizar algo assim já se estaria partindo da organização presumida do
poder (BUTLER, 2004). O que fica claro com isso é que Butler torna inseparáveis as análises
da constituição identitária, das sujeições e resistências nos processos de incorporação ou recusa
das normas de sexo-gênero de um questionamento acerca do próprio ato de pensar sobre esses
processos, uma vez que as regulações que atingem os corpos e os gêneros necessitam elas
mesmas de aparatos teóricos, técnicos e científicos que as justifiquem para que a dinâmica de
fabricação dos corpos e dos gêneros sejam ocultadas através de dispositivos de saber-poder
específicos.

105
4. RESISTÊNCIAS PERFORMATIVAS: AS LUTAS EM FOUCAULT E O
QUEER EM BUTLER

4.1. Lutas e resistência nas relações de poder

Nas análises realizadas por Michel Foucault acerca do poder encontramos constantemente
a relação de seu funcionamento com dinâmicas de lutas e resistências. Nesse sentido, além
de descrever os efeitos jurídicos e produtivos do poder, o filósofo buscou em seus estudos
explicitar as possibilidades de modificação nas distribuições do poder ocasionadas pelas lutas
engendradas enquanto forma de expressão do próprio funcionamento do poder (FOUCAULT,
2008a).

É de extrema importância o destaque dado ao aspecto de luta no que tange às dinâmicas


do poder, pois a partir dela é possível sustentar a concepção de que não há a possibilidade de se
pensar a ação política enquanto algo que ocorra fora do poder, seja de forma anterior ou posterior
em relação a ele. Dessa forma, pensar as lutas e resistências enquanto constituintes de qualquer
relação de poder possibilita vê-las enquanto contingentes e, por isso, modificáveis. Isso ocorre
por numa relação específica de poder operarem concomitantemente uma multiplicidade de
forças que, em contato, estabelecem uma direção possível para essa relação. Com isso, pode-
se notar não haver o espaço por excelência das resistências, mas processos capilarizados no
funcionamento do poder que se distribuem no campo social (MACHADO, 2016).

Essa complexa relação entre poder e resistências já aparece em Foucault em seus


estudos acerca das práticas disciplinares na modernidade. Apesar do autor defender que há
uma fabricação dos corpos através das disciplinas, ele também destaca que essa lógica de
dominação é um dos aspectos de constituição do sujeito, mas outras dinâmicas somam-se a ela
e práticas de subjetivação emergem nos conflitos que deflagram as lutas (BERT, 2013). A vida,
a partir disso, torna-se objeto político, sendo ela o que está no centro das lutas (FOUCAULT,
1988).

Essa relação de lutas permite aos indivíduos a fabricação de experiências que não se
adequam de forma completa ao instituído pelas normas hegemônicas, ainda que isso não ocorra
necessariamente de forma intencional ou racionalizada pelos sujeitos envolvidos. Sobre essa
dinâmica, Foucault (2008a) afirma:

106
O que vou lhes propor é a palavra, mal construída sem dúvida, “contraconduta” –
palavra que só tem a vantagem de possibilitar referir-nos ao sentido ativo da palavra
“conduta”. Contraconduta no sentido de luta contra os procedimentos postos em
prática para conduzir os outros, o que faz que eu prefira essa palavra a “inconduta”,
que só se refere ao sentido passivo da palavra, do comportamento: não se conduzir
como se deve. Além disso, essa palavra – “contraconduta” – talvez também
permita evitar certa substantificação que a palavra “dissidência” permite. Porque
de dissidência vem “dissidente”, ou o inverso, pouco importa – em todo caso, faz
dissidência quem é dissidente. Ora, não estou muito certo de que essa substantificação
seja útil. Temo inclusive que seja perigosa, porque sem dúvida não tem muito sentido
dizer, por exemplo, que um louco ou um delinquente são dissidentes. Temos aí um
procedimento de santificação ou de heroização que não me parece muito válido. Em
compensação, empregando a palavra contraconduta, é sem dúvida possível, sem ter
de sacralizar como dissidente fulano ou beltrano, analisar os componentes na maneira
como alguém age efetivamente no campo muito geral da política ou no campo muito
geral das relações de poder. Isso permite identificar a dimensão, o componente de
contraconduta, a dimensão de contraconduta que podemos encontrar perfeitamente
nos delinquentes, nos loucos, nos doentes. Portanto, análise dessa imensa família do
que poderíamos chamar de contracondutas (p. 266).

Com essa complexificação proporcionada pelo conceito de contraconduta, Foucault


acaba por explicitar que mesmo quando se tratam das lutas será sempre necessária uma
análise específica de suas estratégias, não havendo a possibilidade, assim como ocorre com
o conceito de poder, de se falar das lutas enquanto conceito geral. Nesse sentido, as lutas
enquanto integrantes do funcionamento político sempre abrem espaços novos de negociação e
renegociação do que se entende como o que somos enquanto sociedade, e isso inviabiliza uma
leitura transcendental seja do sujeito, seja da sociedade e de suas relações de poder (OWEN,
2005).

As lutas dizem respeito, então, às práticas de transformação possíveis engendradas


nos processos de constituição subjetiva. Elas são construídas nas relações complexas entre os
sujeitos e os outros de suas relações, numa dinâmica na qual, ainda que sujeitados a inúmeras
normas, os sujeitos podem produzir-se diferentemente num sentido de questionamento do já
estabelecido. Isso exige que os sujeitos, em alguma medida, identifiquem os perigos na ordem
hegemônica às suas possibilidades de criação. Nesse sentido, a realidade do que somos deixa
de estar no âmbito de algo inquestionável para ser atravessado por transgressões e dissidências
possíveis que podem chacoalhar as estruturas sociais e, consequentemente, transformá-las
(OWEN, 2005).

Várias são as possibilidades de lutas explicitadas por Foucault, o que denota a


complexidade com que o filósofo vislumbra essa seara. Para Owen (2005), “Foucault
distingue três tipos de luta: luta contra a discriminação religiosa, étnica e sexual, lutas contra a
exploração social e econômica e lutas contra a sujeição (ou subjetivação)” (p. 200) (tradução
nossa). Comum a todas essas modalidades está uma certa esfera de liberdade que os indivíduos
possuem, o que permite a ação de resistências dentro das relações de poder.

107
Em Foucault (2004), a liberdade é vislumbrada enquanto intrínseca à própria experiência
humana, não se constituindo enquanto algo alheio ao desejo ou nele escondido. Ao invés disso,
o pensador propõe que por meio dos desejos é possível exercitar a liberdade de forma a criar
novas relações sociais, e essas, por sua vez, podem configurar-se enquanto reformulações das
dinâmicas de poder instituídas. Assim, Foucault rompe com a ideia de que poder e liberdade
estariam numa relação de contradição, pois as possibilidades de exercício de liberdade estariam
já em funcionamento em toda manifestação do poder (REVEL, 2005).

Isso ocorre porque, em Foucault, a liberdade é um elemento presente nas formas


de subjetivação, podendo ser vista como um pressuposto destas. Dado as disciplinas serem
exercitadas sobre indivíduos que podem, em alguma medida, a elas resistir, pois caso contrário
não haveria sequer sentido em se falar de disciplinar ou controlar, a liberdade opera como
momento indissociável das relações de poder. A partir dessa conexão, é possível afirmar que
Foucault, ao se debruçar sobre o poder, nos deixa também uma teorização acerca da liberdade,
ainda que, como no caso do poder, o autor não tenha pretendido deixar uma teoria da liberdade
(DE SOUSA FILHO, 2008).

O exercício do poder revela-se, assim, enquanto irrevogavelmente associado às


possibilidades de liberdade. Isso ocorre devido ao caráter necessariamente relacional das
dinâmicas de poder que em suas estratégias encontram enquanto condição de exercício a
liberdade, de forma que “sem liberdade, não há possibilidade de ocorrer nenhuma relação e
exercício de poder possível. Todo poder, quando relacional, requer liberdade de ação entre os
envolvidos [...]” (BRANCO, 2015, p 37). É sempre enquanto agonística entre pessoas livres
que se exercita o poder, o que inclui tensões e conflitos que podem viabilizar a modificação
das dinâmicas de poder, sendo esse processo vivenciado tanto na emergência dos processos
individuais quanto sociais (BRANCO, 2015).

Ao explicitar o lugar da liberdade nas relações de poder, Foucault acaba por reforçar
sua concepção do poder enquanto não meramente proibitivo, mas também produtivo. Dessa
maneira, fica claro que

[...] o poder não é intrinsecamente, nem apenas, negativo: não é apenas o poder de
negar, suprimir, restringir – o poder de dizer não, você não pode. O poder também é
positivo e produtivo. Produz possibilidades de ação, de escolha – e, finalmente, produz
as condições para o exercício da liberdade (assim como a liberdade constitui uma
condição para o exercício do poder). O poder não é, portanto, oposto à liberdade. E
liberdade, consequentemente, não é liberdade do poder – não é uma zona privilegiada
fora do poder, não constrangida pelo poder – mas potencialmente interna ao poder,
até mesmo um efeito do poder (HALPERIN, 1995, p. 17) (tradução nossa).

108
Depreende-se disso que não há liberdade absoluta, assim como não há exercício de
poder que não seja atravessado pelas liberdade. Por isso “não podemos nos colocar fora da
situação, em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder. Eu não quis dizer que
somos sempre presos, pelo contrário, que somos sempre livres. Enfim, em poucas palavras, há
sempre a possibilidade de mudar as coisas” (FOUCAULT, 2004, p. 268).

O caráter não absoluto da liberdade no pensamento de Michel Foucault o permite


analisar de forma complexa as relações de exclusão, transgressão, dissidência e marginalização.
Em relação à exclusão, Foucault (2015) defende a necessidade dessa ser pensada enquanto
um fenômeno que extrapola o âmbito da lei e da representação, de maneira a vê-la enquanto
necessariamente colocando em ação uma série de mecanismos de poder que, agindo de forma
concomitante, demarcam as fronteiras do que é incluído e do que é excluído. Nesse sentido, ele
estabelece a crítica da exclusão enquanto representação de um simples consenso social, acerca
da qual ele afirma:

Essa noção de exclusão parece-me, portanto, permanecer dentro do campo das


representações e não levar em conta – não poder, conseguinte, levar em conta – nem
analisar as [lutas], as relações, as operações especificadas do poder a partir das quais,
precisamente, se faz a exclusão. A exclusão seria o efeito representativo geral de
várias estratégias e táticas de poder, que a própria noção de exclusão não pode atingir
por si só. Além disso, essa noção possibilita responsabilizar a sociedade em geral
pelo mecanismo por meio do qual o excluído acaba excluído. Em outras palavras,
perde-se não só o mecanismo histórico, político, de poder, como também se corre o
risco de ser induzido em erro no que se refere à instância que exclui, pois a exclusão
[parece] referir-se a algo como um consenso social que rejeita, ao passo que por trás
disso talvez não haja várias instâncias perfeitamente especificadas, por conseguinte
definíveis, de poder que são responsáveis pelo mecanismo de exclusão (FOUCAULT,
2015, p. 05).

Com isso, Foucault (2015) exercita mais uma vez sua concepção produtiva do poder, a
qual necessita do espaço da liberdade para ser pensada. O que o autor propõe é que as análises
acerca dos processos de exclusão operem de forma a identificar as relações de poder que as
sustentam e justificam para que seja possível o exercício da transgressão. Dessa forma, para
além da lei e das normas, há o espaço de liberdade que possibilita aos sujeitos um campo de
transgressão e, além disso, de dissidência.

O que encontramos nessa concepção é a conexão entre a transgressão e o questionamento


de um certo campo moral que sustenta em grande medida as exclusões. Foucault (2015) torna
clara a relação entre moral e poder num sentido de que, “[...] a moral não está dentro da cabeça
das pessoas: está inscrita nas relações de poder, e apenas a modificação das relações de poder
pode trazer a modificação da moralidade” (p.106). Nessa dinâmica, a transgressão operaria

109
enquanto um ataque às moralidades e estruturas que estabelecem as leis, consistindo num
exercício localizado de liberdade que tem por finalidade tornar a lei irreal ou inefetiva.

Ao sujeito que transgride é imposto o lugar da marginalidade. A marginalização é


uma forma de exercício de poder que intenciona excluir o indivíduo ao mesmo tempo que
busca minimizar ao máximo os efeitos da transgressão. Ocorre nesse processo a constituição
identitária do sujeito transgressor pautada em sua luta com o poder, de forma que, ainda que ele
não esteja completamente determinado pelas estruturas de poder, não pode por isso se localizar
enquanto uma experiência que está fora do poder (GUTTING, 2005).

Foucault (2015) propõe um parâmetro para a análise da legitimidade desses processos


de transgressão. Para isso ele recorre à categoria do intolerável enquanto parâmetro ético que
permite a diferenciação das diversas expressões de revolta que podem ser encontradas no campo
social. Essa resistência ao intolerável ocorre pelas transgressões, mas também pelo que Foucault
(2015) denomina de dissidência. Nesse sentido, se com as transgressões temos expressões
localizadas de resistência, quando se trata das dissidências, opera-se um questionamento mais
amplo das formas de funcionamento do poder, sendo possível seu exercício inclusive sem se
lançar mão da transgressão. Ao analisar os grupos transgressores e a dinâmica de dissidência o
filósofo afirma que

Os primeiros têm como ponto de ataque o lugar em que se intricam moral, variadas
relações de poder próprias à sociedade capitalista, instrumentos de controle
implementados pelo Estado. Lutar contra a coerção não é a mesma coisa que transpor
o interdito, uma coisa não pode ser confundida com outra. Praticar a transgressão é
tornar a lei irreal e impotente num momento e num lugar, para uma pessoa; entrar em
dissidência é atacar essa conexão, essa coerção (FOUCAULT, 2015, p. 104-5).

É perceptível que o conceito de resistências não denota uma substância ou um apêndice


do poder, mas se estabelem numa relação coextensiva à ele. Nesse sentido, assim como o
poder tem como característica sua inventividade e produtividade, nos processos de resistências
encontramos também a necessidade dessa configuração. Assim, as resistências distribuem-se
de forma capilar nas redes de poder, aparecendo em todos os momentos em que o poder é
exercido (FOUCAULT, 2016b).

Pode-se constatar que as resistências são parte do poder, uma vez que apenas se pode
afirmar que há relação de poder em dinâmicas sobre as quais é possível resistir. As resistências
apenas podem ser pensadas em suas operações concretas, uma vez que estão relacionadas
diretamente às manobras das lutas que se tornam indissociáveis dos objetos de poder sobre os
quais intervêem (MAY, 1993). Toda resistência pode fundar as relações de poder, bem como

110
ser resultado dessas relações, sendo elas, antes de tudo, a possibilidade de criar novos espaços
de lutas e agência que permitem transformações nas distribuições do poder (REVEL, 2005).

Essa relação necessária entre poder e resistência permite a Foucault pensar em termos
de estratégias e táticas, evidenciando o caráter agonístico que é imputado às relações de poder
encontrado em seu pensamento. Nessa dinâmica, não é sequer possível encontrar um ponto de
início ou fim entre poder e resistências, dado que “cada movimento de um serve de ponto de
apoio para uma contra-ofensiva do outro” (REVEL, 2005). Foucault estabelece, assim, uma
reciprocidade que inviabiliza uma consideração simplista que colocaria o poder no lugar do
que é negativo e a resistência no espaço estratégico da liberação do poder. Isso porque o poder é
exercido através de uma dinâmica produtiva que pressupõe a resistência em seu funcionamento.
Dessa forma, não é exatamente contra o poder que a resistência se estabelece; pois assim
sendo, a resistência mesma estaria inviabilizada; mas contra certos efeitos de poder que forjam
relações de dominação; por outro lado, não houvesse resistência, não haveria efeitos de poder
no âmbito da dominação, mas apenas questões relacionadas à obediência, num sentido de
como obedecer (REVEL, 2005). Sobre essa relação indissociável e necessária entre poder e
resistências Foucault (2016b) afirma:

Não coloco uma substância da resistência em face de uma substância do poder.


Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma
possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre
modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia
precisa (p. 360).

As formas que tomam os processos de resistência, assim como ocorre com o poder em
todas as suas expressões, são variadas. Devido a isso, vemos em Foucault uma valorização das
lutas locais ou micropolíticas, pois essas tratam de resistências postas em ação por subjetividades
e grupos com questões específicas relacionadas com variadas distribuições do poder no campo
social através de marcadores como geração, gênero e etnia. Esse vislumbre permite à Foucault,
em seus próprios estudos localizados, exercitar sua concepção de poder a partir da construção
de uma ontologia crítica do presente (BRANCO, 2015).

As resistências articulam-se, assim, enquanto forma de resposta às dominações


micropolíticas, o que inviabiliza a construção de um programa geral que mobilize toda as
suas expressões no que se refere a uma possível agenda de lutas determinada a priori e com
caráter rígido. Além disso, no que tange ao lugar que os intelectuais teriam nesses cenários,
Foucault recusa a ideia de que caberia a eles o papel de determinar as verdades das lutas em
suas estratégias e objetivos, mas sim restringir-se a realizar as análises que possibilitem o

111
diagnóstico do presente das formas específicas de dominação, bem como dos processos de
resistências a elas correlacionadas (MAY, 1993).

Encontra-se mais uma vez nessa concepção acerca das resistências a defesa de que
o poder opera de forma difusa, não se restringindo às modalidades de poder relacionadas à
soberania. Por isso, a eficácia dos processos de resistências residiria em sua capacidade de
também articular-se de forma múltipla e mutante. Nesse sentido, além da multiplicidade de
expressões da resistência, seria necessária uma variedade de análises situadas para uma maior
compreensão, no âmbito inclusive de uma teoria geral da política, dos domínios das lutas que
atravessam as múltiplas relações de poder. Essa necessidade decorre de que

A resistência [...] é um evento contingente, não necessariamente aparecendo, mas


existindo apenas quando realmente aparece. E quando aparece é, frequentemente,
como Foucault mostrou, uma resistência local e não global. Isso não significa que não
há resistência global; a resistência às forças soberanas de repressão – uma resistência
que geralmente ocorre em nome de algum direito – é uma luta comum e muitas vezes
justificada. O que isso significa é que a luta contra a dominação não é redutível à
resistência contra o exercício do poder soberano (MAY, 1993, p. 2141) (tradução
nossa).

A multiplicidade das lutas decorre do fato do poder não possuir uma matriz única de
funcionamento que se disseminaria na sociedade. Sendo assim, não é possível afirmar que
todas as suas manifestações são expressões dessa matriz geral, mas que são construídas nas
correlações engendradas nas lutas, não havendo, por isso “o lugar da grande recusa, foco de
toda rebelião, lei revolucionária” (ESCOBAR, 1985, p. 211). Para Foucault (2004) a resistência
é um elemento das estratégias de poder, num sentido dela apoiar-se sobre as relações de poder
que combate. Sobre o poder se impõe a resistência não de forma externa, mas no lugar mesmo
de sua aplicação, sendo possível pensar o poder enquanto uma relação necessária entre dois
polos num jogo de forças que acaba por modificar as relações de poder previamente instituídas,
numa dinâmica que inviabiliza uma visão estática de seu funcionamento (MAY, 1993), e isso
ocorre por sempre haver a possibilidade de recusa de uma determinada forma de distribuição
do poder.

Essa recusa não se refere ao poder como tal, mas a um dizer não a determinados
arranjos de seu exercício para extrapolar a simples negação, numa dinâmica que torna a
resistência produtiva. Nesse sentido, “dizer não constitui a forma mínima de resistência. Mas,
naturalmente, em alguns momentos é muito importante. É preciso dizer não e fazer deste não
uma forma decisiva de resistência” (FOUCAULT, 2004, p. 268).

Com suas discussões, Foucault expõe as condições para o exercício do poder e, devido
ao seu caráter relacional, também as condições de exercício das resistências. Ao analisar os

112
processos de resistência ele consolida sua teorização acerca do caráter produtivo do poder, num
processo que escapa a uma causalidade simples e impõe um conjunto de relações complexas que
atuam nas redes de poder de forma que nelas mesmas, e não enquanto uma forma de oposição
radical, se encontrariam as possibilidades de modificação de suas distribuições. Acerca disso,
é possível notar que

Ele toma cuidado de seriar as condições permitindo avançar em direção a uma nova
economia das relações de poderes. As lutas de transformação da subjetividade,
precisa ele, não são simples formas de oposição à autoridade; elas são caracterizadas
pelo fato:
1. de que são “transversais” (ou seja, para Michel Foucault, que elas saem dos quadros
de um país particular);
2. de que se opõem a todas as categorias de efeitos de poder, àqueles, por exemplo,
que se exercem sobre o corpo e a saúde, e não somente àqueles que são aferentes às
lutas sociais “visíveis”;
3. de que são imediatas, nesse sentido de que visam às formações de poder mais
próximas e que elas não se remetem a hipotéticas soluções a termo, como aquelas que
se pode achar nos programas de partidos políticos;
4. de que põem em causa o estatuto do indivíduo normalizado e afirma um direito
fundamental à diferença (de modo algum incompatível, aliás, com alternativas
comunitárias);
5. de que visam aos privilégios do saber e sua função mistificadora;
6. de que implicam uma recusa das violências econômicas e ideológicas de Estado
e de todas as suas formas de inquisição científicas e administrativas (GUATTARI,
2007, p. 36).

É essa leitura que vemos Foucault (1988) operar no que refere à sexualidade. Nesse
âmbito específico, temos uma aplicação da ideia de que não é possível analisar as relações de
poder e as resistências a elas atreladas enquanto uma dinâmica de simples oposição. É devido
a isso que o filósofo afirma ser necessário “não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está
dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade”
(FOUCAULT, 1988, p. 171). A ênfase é dada aos processos de resistência antes da ideia de
liberação. Ainda que Foucault não desqualifique a ideia de liberação, ele explicita como,
para uma modificação efetiva das relações de poder no que tange aos corpos e aos exercícios
da sexualidade, é necessário ir além da ideia que consiste em acreditar que seria possível se
desvincular do poder e permitir emergir a verdadeira expressão do sexo (FOUCAULT, 1988).
Na crítica realizada à ideia de liberação subjaz a manutenção de sua concepção de poder,
de forma a ser necessário localizar historicamente as permissões e interdições em torno do
sexo, para, a partir das distribuições atuais de poder, se mobilizar politicamente resistências
que, passando necessariamente pelos corpos e seus prazeres, modifiquem a realidade do poder
(HALPERIN, 1995).

113
Em Foucault, a liberação é uma possibilidade de constituição de quadros de ética
e práticas de liberdade. Nesse sentido, ela não se coloca no marco de uma experiência
totalizadora, apartada do poder, mas relaciona-se diretamente com seu funcionamento. Através
desse processo, as dinâmicas de liberação podem emergir enquanto táticas de resistências
consolidadas pelas experiências questionadoras dos campos normativos instituídos, sem, por
isso, cair no equívoco da possibilidade de assunção de uma experiência que rompe com o poder
por questionar suas estruturas de funcionamento (DE SOUSA FILHO, 2008).

Se há a necessidade de liberação, essa não se refereria ao poder de forma intrínseca,


num sentido de se buscar a possibilidade de uma expressão da sexualidade fora de suas redes,
mas à categoria sexo em sua configuração atual. Isso posto,

Se, por uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade, quisermos
opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de
resistência às captações do poder, será com relação à instância do sexo que deveremos
liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque
não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres (FOUCAULT, 1988, p. 171).

4.2. O queer em questão: resistências e crítica

O pensamento e a postura política queer surgiram entre o fim da década de 1980


(SÁEZ, 2007) e início da década de 1990, inicialmente nos Estados Unidos, e dialogam com
o feminismo de terceira onda, com os estudos culturais e pós-estruturalistas e com os estudos
subalternos (SOUZA; BENETTI, 2015; GARCÍA, 2007). O queer apropria-se de um insulto,
que poderia ser traduzido por “bicha”, “viado”, estranho ou anormal, para instituir outra relação
com os processos de subalternidades (PELÚCIO, 2014; LOURO, 2001; COLLING, s/a).

Apesar do substantivo escolhido para nomear esse novo campo de estudos e


enfrentamento político, o queer não se confunde com os estudos gays e lésbicos já consolidados
no período da sua emergência (GARCÍA, 2007). Essa diferença é demarcada pelos próprios
teóricos e militantes queer que reivindicam, diferentemente dos intelectuais vinculados aos
estudos gays e lésbicos, uma derrocada das políticas identitárias e uma ampliação da análise
dos processos de subalternidades em relação ao marco estrito das sexualidades, tomando como
objeto os sujeitos e expressões abjetas que escapam aos processos normativos de forma geral
(BENETTI, 2013).

O queer surge inicialmente enquanto política de questionamento e enfrentamento, para


apenas posteriormente consolidar-se enquanto campo de reflexão teórica (PELÚCIO, 2014;

114
MISKOLCI, 2011). Nesse processo de construção de prática e pensamento alguns fatores
foram determinantes para a emergência e a consolidação das políticas e Estudos queer, dentre
os principais encontram-se a descoberta e consequente crise gerada pela aids, notadamente
nos meios homossexuais e de divergência de sexo-gênero; a crítica aos movimentos gays e
lésbicos que passaram a ter uma feição mais normatizada com foco na ideia de inclusão; e
o questionamento do feminismo tradicional, que se consolidou enquanto um movimento de
mulheres brancas de classes média e alta, o que invisibilizava experiências de outras mulheres
que reivindicavam uma perspectiva interseccional para o movimento feminista (SÁEZ, 2007).

Com a disseminação da aids, o investimento biopolítico sobre os corpos pensado por


Foucault (1988) foi levado ao seu extremo, de forma que o corpo pôde ser visto em suas relações
com o poder em uma de suas formas mais crua e fascista. No entanto, se os danos aos sujeitos que
vivenciaram a experiência da aids, no período inicial do que foi afirmado enquanto epidemia,
foram grandes, dado que houve a constituição da ideia de grupos de risco que culminaram
com políticas conservadoras de disciplinamento e controle dos corpos dos sujeitos que não se
enquadravam nas moralidades sociais (gays, pessoas trans, drogaditos, profissionais do sexo),
por outro lado, ao tornar mais intensas e, consequentemente, mais visíveis as manifestações
da biopolítica, esse processo gerou uma rede interseccional de sujeitos afetados direta ou
indiretamente pela aids, bem como a possibilidade de emergência de perspectivas outras sobre
os corpos que não as instituídas pelos saberes médicos e psicológicos. Para Sáez (2007),

A crise da aids explicitou que a construção social dos corpos, sua repressão, o
exercício do poder, a homofobia, a exclusão social, o colonialismo, a luta de classes,
o racismo, o sistema de sexo e gênero, o heterocentrismo, etc., são fenômenos que
se comunicam entre si, que são produzidos por meio de um conjunto de tecnologias
complexas, e que a reação ou a resistência a esses poderes também exige estratégias
articuladas que levem em conta numerosos critérios: raça, classe social, gênero,
imigração, doença... critérios fundamentais de luta que colocam sobre a mesa as
multidões queer (p. 69) (tradução nossa).

A partir dessas problematizações se institui uma rede de ativismos e construções


teóricas a partir da aids (JAGOSE, 2005), e é nesse momento que as políticas queer emergem
como ponto de crítica, ao articularem-se com perspectivas teóricas emergentes. Assim, “[...]
o queer e a aids estão interconectados por estarem articulados através de uma entendimento
pós-moderno acerca da morte do sujeito, e ambos entendem a identidade como um curioso e
ambivalente lugar” (JAGOSE, p.95) (tradução nossa). Esse entendimento servirá de crítica aos
movimentos gays e lésbicos que, principalmente a partir dos pânicos morais instituídos com a
aids, foram gradativamente tornando-se mais afeitos à ideia de “modos de vida gays” que se
adequassem aos padrões normativos heterossexuais (MISKOLCI, 2011).

115
Nesse contexto, as políticas e os Estudos Queer colocam-se tanto em oposição às
demandas da heterossexualidade enquanto regime político para os corpos e modos de vida
(WITTIG, 2004), quanto em oposição aos movimentos gays e lésbicos que têm como principal
reivindicação a assimilação dentro do sistema heterossexual, que, por sua vez, se articula de
modo decisivo aos modos de produção capitalista baseados no consumo e na propriedade
(MISKOLCI, 2011). Assim, a perspectiva queer demonstra sua radicalidade em questionar
as normatividades sociais acerca dos corpos, sexualidades e, posteriormente, dos vários
atravessamentos que essas questões carregam, em todas as suas manifestações, estabelecendo
uma postura radical de questionamento das normatividades. Dessa forma, “a política queer é
basicamente antiassimilacionista, renuncia à lógica de integração na sociedade heterossexual
e se coloca num lugar decididamente marginal” (GARCÍA, 2007, p. 44) (tradução nossa)
tanto em relação às instituições heterossexuais tradicionais, quanto em relação aos movimentos
gays e lésbicos que, a partir da perspectiva do contexto da emergência queer, reivindicavam a
assimilação de suas diferenças à norma (SULLIVAN, 2003). Sobre essa característica de recusa
a uma assimilação que, para os queers, se trata antes de tudo de um processo de domesticação
dos movimentos sociais e dos corpos, Miskolci (2011) afirma:

A vertente de reflexão nascente tinha em comum com as manifestações políticas


queer um comprometimento (commitment) com a recusa à assimilação nos termos
hegemônicos e o foco na experiência social da abjeção, da vivência daquelas e
daqueles que são – desde a infância – xingados e humilhados por seu gênero diferente,
indefinido ou, pura e simplesmente, em desacordo com o socialmente esperado (p.
52).

Além dos movimentos gays e lésbicos, outro campo de disputa política também
possibilitou a emergência das políticas e do pensamento queer: o feminismo. No entanto,
antes de constituírem-se enquanto questionamento estrito das possibilidades e conquistas
do feminismo, as perspectivas queer propuseram um debate que objetivou complexificar as
demandas e práticas políticas de um feminismo que passou a mostrar-se sempre relacionado
às mulheres brancas e heterossexuais. Nesse sentido, as políticas e Estudos queer foram ao
mesmo tempo influenciadas e influenciadoras do que se convencionou chamar de “feminismo
de terceira onda”, um movimento que à categoria gênero tenta adicionar outros atravessamentos
sociais que influenciam os processos de violências, controle e disciplinas dos corpos como as
questões relativas às sexualidades, classe social e etnia ou raça (BOURCIER e MOLINER,
2012). O que se manifesta nessa postura crítica das perspectivas queer é o questionamento da
mulher enquanto categoria estagnada e facilmente identificável como um coletivo homogêneo.
De acordo com García (2007), “a crítica a esse essencialismo será o ponto de partida do
feminismo pós-estruturalista e também da teoria de gênero proposta a partir da teoria queer”
(p. 35) (tradução nossa).

116
As respostas queer às questões relativas à aids, aos movimentos gays, lésbicos e
feministas constituem-se então enquanto possibilidades subversivas, o que não quer dizer
que entre esses campos de embate político e discursivo não ocorram negociações. Ou seja, o
processo de emergência queer não se consolida enquanto uma recusa simplista do já instituído
no campo das relações e discussões acerca dos corpos, gênero e sexualidades, mas num diálogo
constante de forma que “[...] queer demarca tanto uma continuidade quanto uma ruptura com
os modelos do liberacionismo gay e do feminismo lésbico” (JAGOSE, 2005, p. 75) (tradução
nossa), bem como com o feminismo mais tradicional e militâncias em torno da questão da aids.

O que se estabelece então, tanto em relação aos movimentos aqui citados, quanto
em relação à heterossexualidade enquanto regime político (WITTIG, 2004) que possibilitou
a emergência, seja num modelo libertário ou assimilacionista, desses movimentos, é uma
intensificação das resistências com a perspectiva queer num contexto que Preciado (2011), a
partir de Foucault (1988), denomina de sexopolítico:

A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço


de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas,
homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As
minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão
torna-se queer (PRECIADO, 2011, p. 14).

A escolha do nome dessa multidão de resistência sexopolítica não se deu de forma


arbitrária. De acordo com Louro (2001), “queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo,
excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa
com que são designados homens e mulheres homossexuais” (p. 546). Essa apropriação de um
insulto se deu como uma forma de resistência através do discurso. Assim, antes de defender-se
da negatividade que o termo queer trazia e traz consigo em língua inglesa, o que os militantes
e pensadores queer propuseram foi a afirmação desse termo como uma possibilidade de
demarcar um espaço marginal que não pretendia ser assimilado pela norma. Nesse processo
ocorre uma subversão das expectativas normativas (LOURO, 2001) acerca das militâncias
relacionadas aos corpos, gênero e sexualidades, dado que, na contramão das perspectivas
assimilacionistas, os queers se colocaram como afirmadores de sua abjeção como instrumento
político, num movimento de reconhecimento sem assimilação e resistente às imposições
culturais (MISKOLCI, 2012).

Butler (1993) pensa a afirmação queer como uma questão relativa à interpelação dos
sujeitos, que, a partir de uma prática discursivo-linguística estabelece uma relação outra com
a experiência da subalternidade através de um jogo contínuo de repetição e reinvenção de
termos. Ela afirma:

117
O termo “queer” emerge como uma interpelação que levanta a questão do estatuto
da força e resistência e da estabilidade e variabilidade inseridas na performatividade.
O termo “queer” tem operado como uma prática linguística cujo propósito tem sido
envergonhar o sujeito que nomeia ou, ainda, a produção de um sujeito através dessa
interpelação constrangedora. “Queer” deriva sua força precisamente da invocação
repetida pela qual liga-se à acusação, patologização e insulto. Essa é uma invocação
pela qual forma-se um vínculo social homofóbico através dos tempos. A interpelação
evoca interpelações passadas e conecta os falantes, como se eles falassem em uníssono
através dos tempos. Nesse sentido, é sempre um coro imaginário que escarneia:
queer! (BUTLER, 1993, p. 18) (tradução nossa).

Dessa maneira, no que se refere à questão queer pode-se afirmar o mesmo que Didier
Eribon (2008) afirma acerca da questão gay: “No início há a injúria” (p. 27), “a injúria me faz
saber que sou alguém que não é como os outros, que não está na norma. Alguém que é viado
[queer]: estranho, bizarro, doente. Anormal” (p. 28). A injúria se constitui enquanto a repetição
de atos de linguagem que tem caráter performativo, pois estabelecem os lugares que os sujeitos
podem ocupar a partir da interpelação que é lançada a esses, um lugar específico no meio
social é criado para o sujeito injuriado nesse processo, o que inclui a própria produção das
subjetividades:

A injúria não é apenas uma fala que descreve. Ela não se contenta em me anunciar o que
sou. Se alguém me xinga de “viado nojento” (ou “negro nojento” ou “judeu nojento”),
ou até, simplesmente de “viado” (“negro” ou “judeu”), ele não procura me comunicar
uma informação sobre mim mesmo. Aquele que lança a injúria me faz saber que tem
domínio sobre mim, que estou em poder dele. E esse poder é primeiramente o de me
ferir. De marcar minha consciência com essa ferida ao inscrever a vergonha no mais
fundo da minha mente. Essa consciência ferida, envergonhada de si mesma, torna-
se um elemento constitutivo da minha personalidade. Assim, poderíamos analisar a
palavra de injúria como um “enunciado performativo” [...] (ERIBON, 2008, p. 28-9).

Assim, a tomada do termo ou expressão queer como espaço de embate político


institui-se no espaço ambíguo da relação entre a injúria e o insulto e a afirmação subversiva
da diferença, o que se reflete também nas possibilidades de intepretação e interpelação que
a palavra queer possibilita na língua inglesa, dado que este termo não possui um significado
fechado nem relaciona-se especificamente com uma identidade genérica ou sexual específica;
razão pela qual Doty (1997), por exemplo, justifica sua escolha pelo termo: “Eu [...] queria
achar um termo com certa ambiguidade, um termo que pudesse descrever uma ampla variedade
de ímpetos e expressões culturais, deixando espaço para descrições e expressões bissexuais,
transexuais e heterossexuais queer” (p. 02) (tradução nossa).

Além dessa ambiguidade do termo queer em relação às experiências de gênero e


sexualidades disparatadas da norma, com o tempo, pode-se perceber que as discussões

118
queer cada vez mais aprofundam suas relações com outros atravessamentos relacionados às
diferenças. Essa tendência é apontada por Muñoz (2007), que explicita como, apesar do registro
predominantemente sexual, o pensamento queer tem ampliado seu projeto de desnaturalização
para outros eixos de identificação além dos de sexo e gênero. Essa leitura é compartilhada por
Jagose (2005) quando afirma que “o queer tem tendido a ocupar um registro predominantemente
sexual. No entanto, sinais recentes indicam que seu projeto desnaturalizador está sendo exercido
em outros eixos de identificação além do de sexo e gênero” (JAGOSE, 2005, p. 99) (tradução
nossa).

Nesse sentido, as relações entre o queer e os processos de construção da abjeção se


intensificam, de forma que é possível afirmar que pensar e fazer política queer é pensar o
subversivo, o não inteligível, o abjeto. Miskolci (2012) afirma que a questão queer, é, antes
de ser uma questão estrita das sexualidades, uma questão da abjeção. O abjeto, de acordo com
Butler (1999), é o inominável na cultura, o que é visto como algo a ser eliminado dela e que, no
entanto, constitui o próprio espaço da norma como único espaço legítimo. Assim, o abjeto acaba
por ser o impensável e, ao mesmo tempo, o indispensável constituinte do espaço privilegiado
das normatividades. No entanto, o queer assume o lugar do abjeto não de forma negativa, mas
como uma maneira de fazer política através da experiência, do desejo e da subversão.

A perspectiva queer passa, assim, a ser uma forma de tentar analisar a constituição dos
espaços de abjeção, “[...] pensar em como as margens são constituídas, como chegam a ser
fixadas como lugares perigosos habitados por pessoas desprezíveis, muito mais do que aceitar
o lugar de minorias” (PELÚCIO, 2014, p. 75). Nesse sentido, o queer não se relaciona apenas
com as sexualidades alternativas, mas constitui-se enquanto espaço de produção discursiva
polimorfa que interroga tanto a heterossexualidade quanto outras normatividades sociais
(SWAIN, 2001).

Para Miskolci (2011), “em termos políticos, a perspectiva queer constitui uma proposta
que se baseia na experiência subjetiva e social da abjeção como meio privilegiado para a
construção de uma ética coletiva” (p. 58). Ou seja, o sujeito interpelado queer apropria-se do
espaço a ele imposto pela norma e o reinventa, de forma que este espaço, mantendo sua relação
com as normatividades sociais, passa não mais a afirmá-la, mas a questioná-la. Nesse processo
de questionamento da norma as políticas e os Estudos queer apresentam uma peculiaridade em
relação aos movimentos que os precederam, seu foco recai sobre uma política de conhecimento
da diferença (MISKOLCI, 2011), antes de preocupar-se com a demarcação de um espaço
específico de lutas de cunho identitário.

O que está em jogo com a teoria queer é, antes de tudo a discussão em torno do que
constituiria os sujeitos das sexualidades e dos gêneros, bem como os marcos que delimitam os
conhecimentos acerca deles. Nesse sentido, os estudos e políticas queer acabam por expor que

119
categorias como sexo, corpo, gênero e sexualidade são fabricadas através de recursos culturais
e linguísticos engendrados em determinados circuitos de saber-poder (CÉSAR, 2016). Isso
implica numa visão performativa tal qual pensada por Butler (1999, 1993) que dificulta o
estabelecimento de identidades em termos não contingentes, incluindo o próprio termo queer,
que para manter seu potencial de resistência subversiva deve estabelecer uma relação crítica
consigo mesmo. Assim,

Essa visão da performatividade implica que o discurso tem uma história que não
apenas precede, mas condiciona seus usos contemporâneos, e que essa história
efetivamente descentra a visão presenteísta do sujeito como a origem exclusiva
ou o proprietário do que é dito. Isso significa também que os termos que usamos
frequentemente exigem uma volta contra essa historicidade constitutiva; reivindicam,
assim, os termos pelos quais insistimos em politizar a identidade e o desejo. Aqueles
de nós que questionamos as suposições presenteístas das categorias de identidade
contemporâneas somos, portanto, às vezes acusados de fazer teoria despolitizante.
E, no entanto, se a crítica genealógica do sujeito é o interrogatório daquelas relações
constitutivas e excludentes de poder através das quais os recursos discursivos
contemporâneos são formados, segue-se que a crítica ao sujeito queer é crucial para
a democratização contínua da política queer (BUTLER, 1993, p. 227) (tradução
nossa).

A teoria queer possibilita a construção de modos de vida outros abrindo mão da filiação
rígida às políticas identitárias e mantendo seu foco nas experiências de contracondultas no que
tange aos corpos, desejos e práticas sociais (CÉSAR, 2016), mas isso não é garantia de que
sempre operará enquanto resistência. Butler (1993) chama a atenção para a necessidade de que
se leve em conta ainda outros marcadores sociais de diferença para que o potencial subversivo
queer mantenha-se em funcionamento. Para que isso ocorra, é necessário a desconstrução
do próprio termo queer, que passaria a também levar em conta questões referentes a classe,
raça e etnia, por exemplo. Isso porque, “se a política ‘queer’ se posicionar independentemente
dessas outras modalidades de poder, ela perderá sua força democratizante” (BUTLER, 1993,
p. 229) (tradução nossa), num sentido de estar paralisada num determinado aspecto e leitura
da realidade que acabaria por ocultar a contingência histórica de seus próprios termos. Essa
capacidade de abertura, assimilação e ressignificação encontra-se na emergência do pensamento
queer, pois

Na política queer, de fato, dentro da própria significação do que é “queer”, lemos uma
prática ressignificante na qual o poder desancionador do nome “queer” é revertido
para sancionar uma contestação dos termos de legitimidade sexual. Paradoxalmente,
mas também com grande promessa, o sujeito que é “queerizado” no discurso público
por meio de interpelações homofóbicas de vários tipos assume ou titula esse mesmo
termo como base discursiva de uma oposição. Esse tipo de citação emergirá como
teatral na medida em que imitar e tornar hiperbólica a convenção discursiva que

120
também reverte. O gesto hiperbólico é crucial para a exposição da “lei” homofóbica
que não pode mais controlar os termos de suas próprias estratégias de abjeção
(BUTLER, 1993, p. 232) (tradução nossa).

Dessa forma, ao se propor que essa perspectiva siga operando através de citações
subversivas de maneira a incluir em seu campo discussões transversais às de gênero e
sexualidades, pretende-se mantê-lo enquanto locus possível de crítica social. Acerca disso,
Butler (1993) propõe um possível núcleo para avançar no que tange à teoria e políticas queer,
algo notado por ela já enquanto uma realidade, que seria o centramento das análises nas
experiências de abjeção, pois elas permitem o vislumbre de determinadas relações de poder
pautadas na produção de hierarquias indicadoras de possíveis vias de resistência que manteriam
a possibilidade de questionamento e ressignificação social e política.

4.3. Políticas pós-identitárias de Foucault a Butler

A leitura que Foucault realiza acerca das perpectivas de resistência pautadas na ideia
de liberação encontra sua base, principalmente, na crítica por ele exercitada no que tange às
identidades. Ele destaca como a identidade é uma espécie de “jogo” que serviria ao favorecimento
de determinadas relações em detrimento de outras. Nesse sentido, se elas são utilizadas com a
finalidade de produção de relações de prazer e amizade, haveria aí um bom uso das identidades;
no entanto, se o que se busca com o recurso da identidade é o desvelamento da verdade do
sujeito, o encontro com uma pretensa “identidade própria”, então aí se teria a imposição de uma
lei ou código instituído enquanto parâmetro, e esse, por sua vez, exigiria a coerência do sujeito
consigo mesmo, o que reforçaria as normatividades tradicionais (FOUCAULT, 2004).

Essa concepção acerca das identidades em Foucault permite o vislumbre da produção de


subjetividades enquanto acontecimento composto nas relações de saber e poder, num sentido de
que, antes de se tentar delimitar a verdade de uma determinada identidade, mais interessante é
analisar as relações de poder e práticas de saber a partir das quais elas se constituem tornando-a
viável ou não. Essa busca deve se dar através de uma análise da atualidade, incluindo ainda
as dinâmicas de resistências que o tempo todo tensionam os limites identitários estabelecidos
(PEZ, 2016).

Nesse processo é afetuada a consolidação de um espaço possível para a crítica, num


sentido da identidade deixar de ser analisada em termos de verdade absoluta para ser analisada
através de uma dinâmica de autorreflexividade que deve ser inerente aos processos que se
pretendem instituir enquanto resistência. A resistência, já tratando do âmbito específico das

121
identidades de sexo-gênero, frente aos processos de captura identitária, passaria a ser pensada
enquanto uma “[...] prática crítica de transformação do modo de existir destinada a nos libertar
das identidades sociais e sexuais impostas pelos diversos dispositivos contemporâneos de
normalização, controle e condução de condutas” (DUARTE, 2016, p. 41).

Com isso, não se pode concluir que Foucault abdique da noção de identidade. Em
realidade, ele apregoa um possível uso estratégico dessa noção, e seu vislumbre enquanto um
possível marcador para identificação de relações de poder específicas. O cuidado tomado pelo
filósofo se refere às formas de defesa identitárias que exigem o recurso ao essencialismo, à
ideia de discurso e prática verdadeiras que condicionaria de forma hermética a produção das
subjetividades (DUARTE, 2016). Para Foucault (2004), “nós não devemos excluir a identidade
se é pelo viés da identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar
essa identidade como uma regra ética universal” (p. 266).

César (2016), ao realizar uma análise de inspiração foucaultiana dos movimentos LGBT
explicita as dificuldades para um uso estratégico das identidades. Para ele, predomina nesse
contexto uma espécie de captura pelo dispositivo da sexualidade analisado por Foucault (1988),
num sentido das sexualidades divergentes acabarem por ser recontextualizadas e deslocadas de
forma a seguir operando enquanto o fora da norma que delimita os limites da normalidade.
Com o pensamento foucaultiano acerca das correlações entre identidade e poder é colocado em
xeque o estatuto de verdade que o sujeito possuiria. Nesse sentido, a ideia de sujeito acaba por
criar fronteiras teóricas e políticas que estabilizam os espaços de intelibilidade e, num contexto
no qual as distribuições do poder operam de maneiras excludentes e desiguais é necessário
interrogar essa modalidade de funcionamento da identidade, pois, predominantemente, ela está
a serviço de dispositivos biopolíticos de controle e regulação dos corpos e suas experiências.
Apenas a partir desse questionamento se poderá observar de que forma são produzidas as
desigualdes e exclusões, bem como identificar em que pontos são exercitadas as resistências
com potencial de alteração das distribuições do poder.

É isso que Butler (2004, 1999, 1993) realiza em sua leitura crítica das identidades,
notadamente em suas discussões em torno do feminismo. Para a autora, a representação do
sujeito do feminismo ancorada na identidade da mulher traz consigo alguns problemas a ser
considerados. Essa problematização conecta-se com a leitura realizada por Butler da formação
linguística e política que instui as identidades de forma geral, e a das mulheres de forma
específica. Dessa forma, ela defende que a noção de mulher enquanto sujeito do feminismo é
ela mesma uma formação discursiva pautada em políticas identitárias representacionais, e isso
acaba por impor ao feminismo uma constituição a partir da linguagem do sistema político do
qual o feminismo supõe emancipar-se (BUTLER, 1999).

Essa concepção dialoga com a incorporação que Butler realiza da noção de poder
foucaultiana, uma vez que interroga ao feminismo acerca da possibilidade de se pensar a

122
produção de um sujeito identitário que preexista aos sistemas que pretendem questionar. Para
ela,

[...] a questão das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de


que não exista um sujeito “anterior” à lei, aguardando representação na ou pela lei.
Talvez o sujeito, assim como a invocação de um “antes” temporal, seja constituído
pela lei como fundamento fictício de sua própria reivindicação de legitimidade.
A suposição predominante da integridade ontológica do sujeito perante a lei pode
ser entendida como o traço contemporâneo da hipótese do estado da natureza, essa
fábula fundacionalista constitutiva das estruturas jurídicas do liberalismo clássico. A
invocação performativa de um “antes” não histórico se torna a premissa fundamental
que garante uma ontologia pré-social de pessoas que consentem livremente em ser
governadas e, portanto, constituem a legitimidade do contrato social (BUTLER,
1999, p. 05) (tradução nossa).

Dentro dessa dinâmica, o feminismo necessita ser cauteloso em relação a idealização de


determinadas expressões de gênero, uma vez que não existiriam as expressões mais ou menos
verdadeiras do ponto de vista ontológico, mas produções discursivas e políticas conectadas
às distribuições do poder numa sociedade marcada pela ideia liberal de contrato social. Nesse
sentido, Butler (1999) evidencia os regimes de verdade pelos quais se consolida a identidade das
mulheres enquanto ponto de partida para as demandas feministas, de forma que sua teorização
expõe a fabricação até mesmo das categorias pretendidas enquanto naturais e, por isso, bases
para a agência e agenda política feminista.

Fica explícito mais uma vez a crítica que Butler realiza da ideia de uma instância pré
cultural ou pré discursiva para o sexo, a qual basearia os construtos culturais do gênero. Para
a filósofa, as identidades são efeitos de práticas significantes em funcionamento nos regimes
de poder-saber que consolidam a heterossexualidade enquanto regime compulsório. Assim,
antes de dizer respeito à busca de uma identidade que permitiria o embate político em torno
das questões de gênero, para a consolidação de um processo de resistência, o feminismo deve
radicalizar sua crítica às configurações identitárias em torno do gênero de forma a atingir
também a própria categoria tomada por ele enquanto base, para assim extrapolar a tradicional
concepção de agência liberal (JAGGER, 2008).

É notável o efeito de desconstrução que essa concepção possui, pois coloca em xeque
as ideias de materialidade, corpo e sexo, muitas vezes, bases de seguimentos feministas. Isso
ocorre porque Butler refuta a ideia de igualdade baseada em premissas identitárias, uma vez
que essa igualdade pressupõe o estabelecimento de limites identitários fixos que acabam por
excluir experiências divergentes de seus parâmetros (JAGGER, 2008). Butler, assim como
Foucault, defende ser a regulação a responsável pela geração do objeto que alega apenas
descobrir e regular, nesse sentido, “[...] ao produzir o sexo como uma categoria de identidade,

123
isto é, ao definir o sexo como um sexo ou outro, a regulação discursiva do sexo começa a
funcionar” (BUTLER, 2008, p. 97), estando esse funcionamento implicado na produção da
própria categoria sexo.

Devido à sua crítica às políticas identitárias e à defesa do caráter performativo do


sexo e do gênero, a teoria de gênero em Butler (1999, 1993) é, muitas vezes, vista enquanto
problemática. De acordo com essas concepções, isso ocorre pela teoria de Butler trazer o
risco de inviabilizar o próprio feminismo em suas demandas, uma vez que esse pressuporia a
necessidade de um sujeito bem estabelecido. Apesar disso, a autora insiste que as representações
acerca da mulher enquanto sujeito do feminismo esbarram nos limites de constituição de um
sujeito que ignora o seu próprio processo de construção:

Ela argumenta, portanto, que longe das representações feministas das mulheres (no
sentido lingüístico) serem simples reflexos do que as mulheres são (o que, em outras
palavras, correspondem à verdade subjacente do que é ser mulher), elas são, em fato,
mecanismos de poder através dos quais as próprias mulheres são construídas como
tipos particulares de sujeitos. Com base no trabalho de Foucault, ela argumenta que o
feminismo exibe uma estrutura “jurídica” (LLOYOD, 2007, p. 949) (tradução nossa).

Esse aspecto jurídico no feminismo identificado por Butler culmina na produção de


exclusões típicas da estrutura binária de sexo-gênero analisada pela filósofa. Nesse sentido, a
pretensa universalidade e unidade do sujeito do feminismo é interrogada devido à sua conexão
com funções discursivas que constrangem a uma determinada representação em detrimento de
outras. A defesa de um sujeito estável para o feminismo, para Butler (1999) leva à negação de
uma série de experiências que acabam por ser invisibilizadas para a manutenção da estabilidade
discursiva e política do feminismo, e isso inclui processos reguladores e coercitivos para a
delimitação do que viria a ser uma mulher.

Os processos de regulação também levam à exclusão através de outros marcadores sociais


de diferença que devem ser levados em consideração quando das lutas por reconhecimento,
como os referentes a classe, raça, etnia e outros eixos atrelados a relações de poder específicas,
complexificando o conceito de identidade, que não pode mais ser pensado enquanto uma noção
fixa ao risco de consolidar exclusões ao invés de refutá-las. Acerca dos riscos atrelados ao
estabelecimento da identidade enquanto ponto de partida para as lutas, Butler (1993) afirma:

Assim, toda insistência na identidade deve, em algum momento, levar a um balanço


das exclusões constitutivas que reconsolidam os diferenciais de poder hegemônico,
exclusões que cada articulação foi forçada a fazer para prosseguir. Essa reflexão crítica
será importante para não replicar, no nível da política de identidade, os movimentos
tão excludentes que iniciaram a virada para identidades específicas inicialmente (p.
118) (tradução nossa).

124
O que Butler (1999) propõe é a problematização da ideia de identidade através do
vislumbre das operações políticas engendradas em sua produção. Nesse sentido, a adequação
política de uma categoria relaciona-se com interesses que, no caso do feminismo, moldam o
que viria a ser uma mulher de forma geral e, consequentemente, enquanto sujeito político. Isso
é ocultado através das políticas identitárias que performatizam o sujeito mulher enquanto que
dissimulam as elaborações políticas e epistemológicas que o possibilitam a partir dos corpos
sexuados e da ideia de inscrição cultural sobre corpos naturais.

A partir disso, é possível problematizar novamente o corpo enquanto instância a


priori para a construção de demandas políticas em torno do gênero, pois o corpo é ele mesmo
moldado por forças políticas estratégicas em seu direcionamento à produção de marcas de
sexo que garantam a manutenção das normatividades heterossexuais (BUTLER, 1999). O sexo
tomado enquanto princípio de identidade reforma, assim, a produção binária excludente na
esfera do gênero, de maneira que “é-se macho ou fêmea, nunca os dois ao mesmo tempo, e
nunca nenhum dos dois” (BUTLER, 2008, p. 99).

O sexo verdadeiro emerge, assim, enquanto um destino determinado pelo biológico,


consolidando a ideia de uma heterossexualidade natural que opera enquanto marco disciplinador
de uma certa finalidade do poder em seus movimentos de reprodução (BUTLER, 2008). Devido
a isso, Butler aponta o imperativo de estabelecimento de uma reflexão crítica acerca das ideias
de emancipação baseadas na diferença sexual que norteiam muitas das políticas feministas,
pois essas consolidam o binômio que, em grande medida, é o responsável pela produção das
desigualdades no campo do gênero (MELONI, 2008).

Acerca da identidade das mulheres enquanto base para o feminismo, encontramos em


Butler a impossibilidade de estabelecimento de alguma característica ou essência que estejam
para além da possibilidade de crítica e a refutação de uma experiência transcendente no campo
do gênero a partir da ideia de um fora ou antes da cultura e da política (MELONI, 2008). É a
partir disso que Butler defende a construção de uma genealogia do feminismo, num sentido de
que

Traçar as operações políticas que produzem e ocultam o que se qualifica enquanto o


sujeito jurídico do feminismo é precisamente a tarefa de uma genealogia feminista
da categoria mulheres. No curso desse esforço para questionar as “mulheres” como
o sujeito do feminismo, a invocação não problematizada dessa categoria pode provar
impedir a possibilidade do feminismo como uma política representacional (BUTLER,
1999, p. 09) (tradução nossa).

Com isso, não significa dizer que Butler recusa absolutamente as identidades, mas
apenas que não credita a elas um caráter essencialista. Assim como Foucault, ela encontrará

125
possibilidades de usos para as identidades. Em Foucault (2004) há a proposição da criatividade
enquanto modalidade de expressão afirmativa. Ele defende que novas formas de vida, de
relacionamentos e expressões culturais são fatores de desestabilização nas normatividades
sociais, ao menos se esses, além de expressarem identidades, expressem de forma ampla suas
potências de criação.

Ao analisar especificamente os modos de vida gay, Foucault (2004) advoga que a criação
de uma cultura não é sinônimo de produção de modos de vida resistentes. Nesse sentido, apesar
de afirmar a necessidade de criação de uma cultura, ele o faz com o adendo dessa não poder
se abster do embate em torno da identidade. Isso ocorre para não se cair no essencialismo do
sujeito identitário como fundamento único e unívoco para as lutas, uma vez que esse pressupõe
normalizações e domesticações reprodutoras das distribuições desiguais do poder (DUARTE,
2016).

Essa maior abertura permite aos coletivos articular de forma radical vida e política, num
sentido da esfera dos direitos ser ampliada permitindo, assim, a experimentação e criação de
modos de vida. Nesse processo, as identidades sexuais acabam secundarizadas, sendo inclusive
embaralhadas, o que possibilita a problematização dos limites do binarismo de sexo-gênero
(DUARTE, 2016). Isso expressa o caráter ético da constituição dos sujeitos nas dinâmicas
de resistência que questionam o primado das identidades frente às múltiplas experiências,
permitindo uma nova relação consigo e com os outros que viabiliza o pensamento e ação
crítica. Para César (2016),

Tal ação de reflexão crítica sobre o presente, sobre si mesmo e sobre os outros é
assumida e levada a cabo como forma de resistência em relação aos poderes que
constituíram o sujeito assujeitado, condição central para que se instaurem novas
formas de relação consigo e com os outros, mais livres e mais autônomas (p. 144).

É a partir dessa leitura dos usos estratégicos das identidades que Butler (1999) analisa
o papel das minorias de sexo-gênero na modificação das estruturas binárias que normatizam os
sujeitos. Para ela, é necssário uma coalisão de minorias sexuais que transcendam as categorias
identitárias simplistas, para que as violências sobre os corpos e experiências perpetradas
através de normas restritivas possam ser revistas. A sexualidade é uma esfera complexa, e
por isso não deve ser reduzida a um conjunto delimitado de possibilidades. Isso se dá devido
a existirem várias dinâmicas discursivas e de poder institucional operando na fabricação dos
corpos generificados e suas expressões de sexualidade, sendo essas dinâmicas irredutíveis a
uma lógica unívoca de hierarquia que acaba por ocultar o caráter produtivo do poder.

126
No campo das teorizações e políticas feministas Butler propõe uma reavaliação radical das
estruturas ontológicas identitárias enquanto base para uma política de caráter representacional.
Nesse sentido, é necessário ampliar as maneiras de pensar identidade de gênero para que o
feminismo não fique preso a uma única base de pretensão imutável baseada na identidade das
mulheres e, em oposição a isso, concectar-se às variadas posições de identidade, bem como de
anti identidades que, via de regra, o feminismo acaba por excluir. Assim,

A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista se


a formação do sujeito ocorrer dentro de um campo de poder regularmente enterrado
através da afirmação desse fundamento. Talvez, paradoxalmente, a “representação”
faça sentido para o feminismo somente quando o sujeito “mulheres” não for presumido
em parte alguma (BUTLER, 1999, p. 09) (tradução nossa).

Com esse lugar paradoxal das identidades no seio do feminismo, evita-se a regulação
identitária enquanto política primária do movimento. Isso é imprescindível pois as demandas
pela construção e expressão de uma identidade coerente impõem uma normatização das políticas
de identidade que acaba por tomar o lugar da crítica dos contextos culturais e normativos que
invisibilizam o caráter necessariamente dinâmico da construção das identidades e, com isso,
seu potencial de questionamento (BUTLER, 1993).

A defesa de Butler é pelo maior investimento na ideia de diferença que de identidade,


pelo vislumbre mais amplo da forma pelas quais as identificações são formadas e potencialmente
deslocadas, num processo de desestabilização que força a lógica identitária de não contradição a
aparecer. Assim, e devido aos vários atravessamentos de poder operantes, nota-se que políticas
de coalisão identitárias acabam por requerer uma identificação necessária com o sujeito do
movimento para que haja legitimidade tanto do indivíduo, como do próprio movimento. Ocorre
com isso de consolidar-se no seio dos movimentos as lógicas de exclusão que esses apregoam
combater (BUTLER, 1993).

Devido às violências necessárias para a consolidação de uma identidade rígida Butler


questiona usos que não passem por uma estratégia e ignorem o caráter fabricado das categorias.
Acerca dessa concepção, no que tange ao feminismo e evidenciado a necessidade de uma
leitura crítica, ela afirma:

Tentei sugerir que as categorias de identidade frequentemente presumidas como


fundamentais para a política feminista, ou seja, consideradas necessárias para
mobilizar o feminismo como uma política de identidade, trabalham simultaneamente
para limitar e restringir antecipadamente as possibilidades culturais que o feminismo
deve supostamente abrir. As restrições tácitas que produzem o “sexo” culturalmente
inteligível devem ser entendidas como estruturas políticas produtivas e não como

127
fundamentos naturalizados. Paradoxalmente, a reconceitualização da identidade
como efeito, ou seja, produzida ou gerada, abre possibilidades de “agência” que
são insidiosamente impedidas por posições que tomam as categorias de identidade
como fundacionais e fixas. Para uma identidade ser um efeito, significa que ela não
é fatalmente determinada, nem totalmente artificial e arbitrária. O fato de o status
constituído da identidade ser mal interpretado nessas duas linhas conflitantes, sugere
as maneiras pelas quais o discurso feminista sobre a construção cultural permanece
preso no binarismo desnecessário do livre arbítrio e do determinismo. A construção
não se opõe à agência; é o cenário necessário para a agência, os próprios termos nos
quais a agência é articulada e se torna culturalmente inteligível. A tarefa crítica para
o feminismo não é estabelecer um ponto de vista fora das identidades construídas;
essa presunção é a construção de um modelo epistemológico que negaria sua própria
localização cultural e, portanto, se promoveria como sujeito global, uma posição que
implanta precisamente as estratégias imperialistas que o feminismo deve criticar.
A tarefa crítica é, antes, localizar estratégias de repetição subversiva possibilitadas
por essas construções, afirmar as possibilidades locais de intervenção participando
precisamente daquelas práticas de repetição que constituem identidades e, portanto,
apresentam a possibilidade imanente de contestá-las (BUTLER, 1999, p. 187-8)
(tradução nossa).

A possibilidade de contestação em Butler relaciona-se com a ideia do gênero ser


instituído através da naturalização de uma estabilidade e coerência sendo necessário identificar
os momentos nos quais o sistema binário está em disputa, nos quais as categorias identitárias
são colocadas em questão e, assim, perceber os espaços de transformação possíveis (BUTLER,
2004). Isso posto, o questionamento da ideia de identidade defendido por Butler acaba
por mostrar-se enquanto um potente instrumento de desconstrução que coloca em xeque
dinâmicas de violência através da política, uma vez que, “a desconstrução da identidade não é
a desconstrução da política; antes, estabelece como político os próprios termos pelos quais a
identidade é articulada” (BUTLER, 1999, p. 189) (tradução nossa).

Nesse ínterim, Butler (1993) insere a discussão em torno do queer no âmbito de um


questionamento identitário. Ela destaca como, enquanto um exemplo de política citacional, o
queer possibilita a reelaboração da abjeção em direção à agência política. Esse processo não
ocorreria simplesmente enquanto um discurso reverso no qual a afirmação queer reverteria o
jogo pelo qual é subalternizado através da abjeção, mas seria uma afirmação política do abjeto
mesmo, num sentido de reformular a própria história do termo através de uma dinâmica de
ressignificação.

Ainda que explicitando o potencial disruptivo das políticas e estudos queer, Butler
(1993, 2004) aponta para a necessidade de crítica acerca das possibilidades de fixação identitária
em sua esfera. Nesse sentido, ela defende enquanto necessária a genealogia crítica do sujeito
queer, na direção de estabelecimento de uma dimensão autocrítica dos ativismos queer. Com
isso, ela não quer dizer que o termo deixe de ser utilizado, mas sim desconstruído e reformulado
em sua prática política, de maneira a não ocorrer uma paralização tanto no que tange a uma

128
fixação identitária, tampouco no que se refere a uma possível crítica estéril que inviabilizaria o
próprio termo em seus potenciais subversivos.

A filósofa propõe cuidado em relação à totalização das categorias identitárias


performadas, ainda que destaque a necessidade do “erro” da identidade enquanto indispensável,
desde que se mantenha a clareza de seu caráter performativo, temporário e estratégico. Nesse
sentido, a afirmação queer pode ser útil enquanto estratégia de afiliação, não podendo ser descrita
enquanto um lugar representacional fechado, mas sim enquanto um termo necessariamente
contingente (BUTLER, 1993).

O objetivo de Butler com sua análise é reforçar o caráter de desnaturalização de sua


teoria. Repensar o questionamento dos discursos e do poder enquanto estabelecimento de
um futuro definido previamente através de um projeto que estabelece passos rígidos a serem
seguidos, de forma que, ao invés disso, se mantenha os processos de ressignificação abertos.
Somente dessa forma é possível colocar em funcionamento a crítica que permitirá analisar a
cada momento as convergências e divergências em relação às variadas dinâmicas de poder
instituídas num determinado contexto e, consequentemente, criar estratégias de lutas locais e
temporais (BUTLER, 1993).

É notável que o campo queer abre a possibilidade de questionamento de uma ideia


rígida de eu, funcionando enquanto questionador de alguma substância de sexo-gênero. Isso
permite a reelaboração ética no que tange a essas relações e práticas relacionadas (HALPERIN,
1995). No entanto, “sem a perspectiva crítica, a política depende fundamentalmente de um
desconhecimento – e despolitização – das próprias relações de força pelas quais é instituído seu
próprio campo de operação” (BUTLER, 2004, p. 107) (tradução nossa). Assim, realizar esse
exercício crítico em relação às teorias e políticas queer é, ao fim, reivindicar a manutenção de
seu potencial subservivo. Nesse sentido, é possível aproximar esse campo da perspectiva que
Foucault defende ser necessária para se pensar as lutas no campo das sexualidades, a saber: que
não é possível a articulação de lutas efetivas partindo do pressuposto de haver algo na esfera da
sexualidade que necessita de liberação, num sentido de uma espécie de natureza preexistente a
ser liberta (FOUCAULT, 1988).

Halperin (1995), ao realizar uma aproximação entre as políticas queer e o pensamento


de Michel Foucault, conclui, assim como Butler (1993) o havia feito, que

A política queer, para permanecer queer, precisa ser capaz de desempenhar a função
de esvaziar a delicadeza de sua referencialidade ou positividade, protegendo-a contra
sua tendência ao concreto encorporamento e, assim, preservando a delicadeza como
uma relação resistente e não como uma substância de oposição (p. 113) (tradução
nossa).

129
Assim, ainda que o queer não tenha absolutamente perdido sua utilidade e força
política, é indispensável que exerça a todo momento um movimento de renovação, de forma
que se mantenha o espaço das identidades enquanto vazios, passíveis de ser temporariamente
preenchidos de forma estratégica sem qualquer pretensão de conceitualização unívoca
(HALPERIN, 1995). Apenas assim as relações de poder podem ser questionadas e reformuladas,
num processo de invenção coletiva que possibilite a ampliação do espectro ético do que se
considera enquanto uma vida humana.

130
5. GENEALOGIAS: CRÍTICA E TRANSFORMAÇÃO

5.1. Foucault, da arqueologia à genealogia

Em sua Arqueologia do saber, Foucault (2013) desenvolve discussões acerca da


constituição dos saberes através de enunciados, formações discursivas e do conceito de arquivo.
Um enunciado, para Foucault (2013), se inscreve na história e sempre se encontra articulado
com outros enunciados na medida em que se apoiem numa mesma formação discursiva, que
por sua vez pode se manifestar de diversas formas. Para o autor, um enunciado “[...] não é em
si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades
possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço [...]” (p.
105) discursos ou campos discursivos específicos, de forma que se pode pensar os enunciados
enquanto elementos constituintes dos campos discursivos, tendo como critério de identificação
as relações que os enunciados estabelecem entre si. Assim, é através dos enunciados que é
possível pensar os discursos em seus atravessamentos e, com isso, vislumbrá-los enquanto
práticas que se refletem no manejo social de forma direta, o que rompe com o binarismo entre
discurso e prática, uma vez que, na perspectiva foucaultiana, não há discursos que não estejam
associados a práticas sociais específicas.

A análise de determinados tipos de enunciados nos lança a campos discursivos singulares


e, nesse contexto, as obras ou arquivos analisados podem ser encarados enquanto formas de
enunciação que constituem um campo maior de análise, de forma que o debruçar-se sobre essas
obras não é um processo hermético, mas, ao contrário disso, nos lança a uma séria de práticas
discursivas e sociais que estão além das obras analisadas.

Devido ao seu caráter aberto “a obra não pode ser considerada como unidade imediata,
nem como unidade certa, nem como unidade homogênea” (FOUCAULT, 2013, p. 30), ou
seja, a análise discursiva que toma para si a perspectiva foucaultiana tem por objetivo muito
mais pensar as descontinuidades que as continuidades, as diferenças que as identidades, enfim,
os inúmeros atravessamentos nas relações de saber-poder que podem ser instituídas num
determinado campo discursivo num determinado momento histórico-social.

Foucault (2013) denomina de arqueologia esse trabalho teórico de pensar os arquivos,


que podem ser dos mais diversos tipos, enquanto espaços privilegiados para o entendimento
dos campos discursivos a partir de seus enunciados. Silveira (2014) sintetiza o conceito de

131
investigação arqueológica como uma “investigação daquilo que torna necessária determinada
forma de pensamento [...]” (p. 40), ou seja, a partir da constituição de uma arqueologia se pode
analisar não apenas a constituição de um campo discursivo específico, como também pensar as
razões para que esse discurso tenha surgido e não outro em seu lugar.

A riqueza conceitual das propostas foucaultianas está muito mais na abertura que
este autor operou no campo das análises dos discursos que num possível fechamento na
possibilidade de construção de um novo método. Assim, o que passa a ser evidenciado é o caráter
incompleto das formações discursivas, sobre as quais mais importa pensar descontinuidades
e silenciamentos do que a possibilidade de instituição de uma leitura total e inequívoca. Há,
assim, a possibilidade de pensar uma multiplicidade de objetos sobre os quais não se pretende
desenvolver uma leitura interpretativa, que pode ser considerada o avesso de uma leitura
arqueológica.

É nesse movimento de abertura que o próprio Foucault, posteriormente, ampliará as


possibilidades de análise da constituição do saber, extrapolando a questão da construção do
conhecimento científico e se debruçando em questões relacionadas às instituições a às práticas
(FOUCAULT, 2010a; CASTRO, 2016). Essa ampliação se deu, principalmente, devido ao
foco que o autor passou a dar às suas construções teóricas que se deslocaram, sem abandoná-
la, da noção de produção discursiva e dos saberes para a análise das relações de poder que
possibilitam e são possibilitadas tanto pelos saberes institucionalizados e referendados
cientificamente, como pelas práticas pelas quais esses se constituem e são constituídos através
de dispositivos específicos (FOUCAULT, 2010a).

A concepção de poder em Foucault (2010a; 2016c) o coloca em termos de relações e


circulações ao invés de pensá-lo enquanto algo que os sujeitos detêm ou não. O poder seria,
assim, algo que todos, em diferentes medidas, podem exercer a depender dos contextos nos
quais se constituem enquanto sujeitos. Nesse sentido, o poder não teria uma localização definida
na sociedade, mas, pelo contrário, circularia por todo o corpo social em jogos de negociações
que permitem pensar as relações de poder em forma de rede.

No processo de circulação e distribuição do poder, a produção e circulação dos discursos


têm centralidade. Nesse sentido, “não há de um lado o discurso e de outro o poder, opostos
um ao outro” (CASTRO, 2016, p. 120), mas relações que se estabelecem entre determinadas
formas de produção discursivas e maneiras específicas de circulação do poder. Castro (2016)
explica esse entrelaçamento das produções discursivas com a questão do poder em Foucault da
seguinte maneira:

A formação do saber requer que se leve em consideração, além das práticas


discursivas, as práticas não discursivas; e também que se preste particular atenção ao

132
funcionamento entrelaçado de práticas discursivas e práticas não discursivas. Com
efeito, o saber e o poder se apoiam e se reforçam mutuamente (p. 323).

Assim, não é possível desvincular a produção dos discursos tidos por verdadeiros de
uma determinada distribuição dos poderes na sociedade. É nesse sentido que o encadeamento
saber-poder se expressa no pensamento foucaultiano, que analisa como determinadas formas
de produção discursiva produzem e são produzidas em cruzamento com formas específicas de
exercício de poder nos processos de produção das subjetividades.

Os discursos podem ser, assim, eles mesmos considerados enquanto práticas sociais,
articulados que estão com as relações de poder e as produções das subjetividades (FERNANDES,
2012). Assim, nas práticas sociais institui-se uma determinada distribuição dos poderes através
das relações entre sujeitos, grupos e instituições e “há uma produção de discurso que integra
essas relações de poder e volta-se para a produção da subjetividade por meio da sujeição dos
indivíduos a uma verdade que, então, é apresentada, até mesmo imposta, a eles” (FERNANDES,
2012, p. 54). Castro (2016) aponta como no pensamento foucaultiano o poder é a maneira que,
através de dispositivos específicos, se conduz as condutas dos indivíduos de forma a facilitar
as condutas desejadas e dificultar ou limitar as indesejadas. É a partir do poder que “[...] somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de
viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem
consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2010a, p. 22).

No entanto, não é apenas enquanto instrumento de sujeição que o poder pode ser
exercitado, “[...] o poder implica e/ou requer a resistência” (FERNANDES, 2012, p. 56), sendo
nesse jogo, que se dá principalmente a partir das micro relações, que as possibilidades de
subversão se instituem. Assim, se por um lado, o poder, a partir de uma produção histórica
que se efetiva nas relações concretas de sujeição, produz as subjetividades disciplinadas e
controladas; por outro, será também nessas relações que as possibilidades de resistência se
efetivam, explicitando assim a função muito mais produtiva que repressiva do poder (ERIBON,
2008). Essas resistências se manifestam nas próprias relações de saber-poder que inicialmente
produziram os assujeitamentos, de forma que

[...] a ‘resistência’ consiste, com frequência, em dar nova significação a um enunciado


ou a um discurso. O poder toma ‘apoio’ em pontos de ‘resistência’, mas as resistências
costumam encontrar força virando estrategicamente contra o poder suas próprias
garras. Portanto, o ‘discurso reverso’, o contra-discurso, não é necessariamente um
outro discurso, um discurso contrário (ERIBON, 2008, p. 378).

133
É nesse sentido, e tratando especificamente das relações entre saber e poder, que
Foucault (2016c) reivindica a necessidade de “[...] desvincular o poder da verdade das formas
de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento”
(p. 54), tendo esse autor também destacado as possiblidades de resistência nos processos de
subjetivação. Castro (2016) chamará a atenção para como o debruçar-se acerca das questões
referentes ao poder fez com que Foucault elaborasse ferramentas conceituais próprios para sua
analítica. Assim, como para a análise dos arquivos e formações discursivas houve a construção
de uma arqueologia, no que tange às análises do poder surge como possibilidade metodológica
a genealogia.

Castro (2016) destaca a importância de não se pensar a genealogia como uma ruptura
ou como uma forma de oposição à arqueologia, de forma que seria mais apropriado pensar
essas duas formas de análise em suas especificidades em relação aos períodos do pensamento
foucaultiano, denotando muito mais uma questão de foco e ampliação que de concepções.
Nesse sentido “[...] a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de
investigação para incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e,
sobretudo, a relação não discursividade/discursividade” (CASTRO, 2016, p. 185).

Assim, se, por um lado, encontramos na arqueologia a possibilidade de pensar as


formações dos discursos em suas relações com a constituição da verdade; na genealogia, o foco
recai sobre as práticas sociais, não sem considerar os atravessamentos constantes que esses
dois aspectos exercitam um sobre o outro. Nesse contexto, pode-se sintetizar afirmando que
“[...] a arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia,
a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes
dessujeitados que daí se desprendem” (FOUCAULT, 2010a, p. 11). Ou seja, indo além das
análises dos arquivos e das formações discursivas a eles associadas na construção da verdade,
o que se encontra com a genealogia é a possibilidade de articular esses mesmos discursos
com práticas sociais específicas, incluídas nesse contexto as práticas não discursivas, para
analisar uma certa distribuição dos poderes em contextos específicos, o que inclui as formas
possíveis de resistência, momento no qual encontram-se os aspectos que sintetizam o percurso
do pensamento de Foucault: a produção dos saberes, a distribuição do poder e a produção das
subjetividades.

Em alguns aspectos, a genealogia permite a complexificação das análises que recairão


nas relações de saber-poder em seus cruzamentos com a produção das subjetividades. Assim,
se na arqueologia o foco recai sobre os discursos, na “[...] genealogia dos saberes, por sua vez,
situa-se sobre o eixo discurso-poder, práticas discursivas-enfrentamentos de poder” (CASTRO,
2016, p. 187). Nesse sentido, a genealogia se ocupa da formação efetiva dos discursos inseridos
numa lógica específica de distribuição de poder (FOUCAULT, 2011), o que permite a análise

134
dos discursos e dos saberes “[...] em termos de estratégia e táticas de poder” (CASTRO, 2016,
p. 185).

Foucault desenvolve sua genealogia enquanto um método de interpretação (CASTRO,


2016). Para esse autor “[...] a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade
de um sentido [...]” (FOUCAULT, 2011, p. 70), mas “[...] concerne à formação efetiva dos
discursos, quer no interior dos limites do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das
vezes, de um lado e de outro da delimitação” (FOUCAULT, 2011, p. 65). Nesse sentido, o que
importa às análises genealógicas são as relações de poder, não as relações de sentido de forma
estrita (FOUCAULT, 2016c), uma vez que é no campo das lutas enquanto jogos de poder que
se exercitam relações de dominação, bem como de resistência (FOUCAULT, 2010a). Assim, a
opção genealógica se dá através da “[...] recusa das análises que se referem ao campo simbólico
ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de
genealogia das relações de força, de desenvolvimento estratégico e de táticas” (FOUCAULT,
2016c, p. 41).

Esse foco permite pensar a inserção dos discursos e dos saberes no âmbito das práticas
sociais através e a partir de determinadas distribuições do poder. É nesse jogo que emerge o
que Foucault (2010a) denominou de saberes sujeitados. Esses saberes se referem tanto aos
blocos de saberes históricos esquecidos ou relegados pelos saberes hegemônicos que, pelos
meios da erudição, reaparecem enquanto crítica, como também dizem respeito aos saberes não
qualificados enquanto saberes conceituais e postos enquanto hierarquicamente inferiores em
relação aos saberes científicos, aos quais Foucault (2010a) denominou de saberes das pessoas.
Nesse contexto, Foucault (2010a) estabelece uma função de luta para a genealogia: será “[...]
exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a
genealogia deve travar o combate” (FOUCAULT, 2010a, p. 10), sendo no acoplamento das duas
modalidades de saberes sujeitados conceituadas pelo autor que se encontra a possibilidade de
construção de um saber histórico das lutas e a utilização desses saberes na contemporaneidade.
É nesse sentido que Foucault (2010a) destaca a importância de se

[...] fazer que intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não


legitimados, contra a instância teórica unitária que pretendia filtrá-los, hierarquizá-
los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de
uma ciência que seria possuída por alguns. As genealogias não são, portanto, retornos
positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata. As genealogias
são, muito exatamente, anticiências. Não que elas reivindiquem o direito lírico à
ignorância e ao não saber, não que se tratasse de recusa de saber ou do pôr em jogo,
do pôr em destaque os prestígios de uma experiência imediata, ainda não captada
pelo saber. Não é disso que se trata. Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto
contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma
insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que
são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado
no interior de uma sociedade como a nossa (p. 10).

135
O discurso aparece como espaço possível de lutas devido às suas relações com o desejo
e com o poder (FOUCAULT, 2011), sendo através da genealogia que se tornaria possível a
análise dessas relações. Somente a partir de uma perspectiva que permita pensar o caráter
descontínuo, arbitrário e conflitivo dos discursos e das relações de poder seria possível exercitar
as possibilidades de subversão e questionamento a partir das resistências. Nesse sentido,
a genealogia atuaria como uma forma de questionar o próprio poder científico, de forma a
tornar os saberes sujeitados – sejam os históricos ou o saber das pessoas – livres, de forma que
esses pudessem ser utilizados nas lutas contra as coerções científicas e, consequentemente, de
disciplinamento das relações sociais (FOUCAULT, 2010a). O empreendimento genealógico
estaria relacionado, assim, às lutas contra os privilégios do saber, o que, no fim, relaciona-se
diretamente com as lutas contra a submissão, sujeição e formas de subjetivação no meio social
(FOUCAULT, 2010a; FERNANDES, 2012).

5.2. Genealogia como crítica em Michel Foucault

As análises genealógicas realizadas por Foucault em seu percurso intelectual se


consolidaram enquanto localizadas e focadas nas relações de poder instituídas na atualidade.
Dessa forma, pode-se vislumbrar esse tipo de trabalho enquanto uma crítica do presente que
evidencia determinadas dinâmicas, as quais sustentam e justificam relações específicas de poder.
A contingência dessas relações é, então, explicitada, através de ferramentas que interligam a
história, os corpos e suas multiplicidades (GUTTING, 2005).

No exercício genealógico não são considerados apenas os saberes oficiais, mas também
a multiplicidade de discursos e práticas que sustentam e questionam determinadas distribuições
do poder. Nesse sentido, há a implicação das pesquisas genealógicas com a ação de desassujeitar
os saberes que Foucault (2010a) denominou de históricos, uma vez que esses seriam capazes
de instituírem-se enquanto oposição à ordem do discurso (FOUCAULT, 2011) estabelecida. A
genealogia não pode ser pensada enquanto método fechado em suas técnicas e procedimentos,
pois deve adequar-se a cada modalidade de discurso e prática sobre as quais se debruça. A
crítica da atualidade a partir da análise das relações de saber-poder se institui como sua maior
característica, o que permite a consolidação de um modo de ver as coisas relacional, uma
maneira de relacionar-se com a história e suas produções. Para Veiga-Neto (2009),

Isso tudo aponta no sentido de que a assim chamada teoria foucaultiana do sujeito e
suas correlatas metodologias são mais ferramentas do que máquinas acabadas. Aqui
cabe trazer o conceito de teorização, talvez mais apropriado do que simplesmente
teoria. Parece que estamos diante de uma teoria que só a posteriori se revela como

136
tal, ou seja, uma teoria que não estava antes lá para guiar a investigação. E estamos
diante, também, de uma metodologia cuja invariante, ao longo de toda a obra,
pode ser sintetizada no permanente envolvimento com a noção de problema: tanto
problematizando – enquanto atitude radicalmente crítica – quanto perguntando por
que algo se torna ou é declarado problemático para nós. Nesse sentido, mudando a
maneira de problematizar e mudando os próprios problemas, pode-se dizer que a
invariante metodológica e temática em Foucault é a própria variação… (p. 91-2)

Dentro dessas variações, Foucault busca consistências e continuidades possíveis, e


isso é distinto de uma busca por continuidades ou causalidades simples, uma vez que essas
exigiriam a aderência a uma ontologia transcendental para a explicação geral de todas as
formas de emergência do poder. Foucault apresenta, assim, uma forma de fazer filosofia através
da análise das relações de poder, análise essa que não apenas diagnostica o presente, mas, ao
fazê-lo, também abre espaço para o questionamento e transformação das expressões atuais das
distribuições dos poderes. Ao descrever os estudos por ele realizados no que tange à análise das
relações de poder, Foucault (2008a) afirma:

Em suma, o ponto de vista adotado em todos esses estudos consistia em procurar


destacar as relações de poder da instituição, a fim de analisá-las [sob o prisma] das
tecnologias, destacá-las também da função, para retomá-las numa análise estratégica
e destacá-las do privilégio do objeto, a fim de procurar ressituá-las do ponto de vista
da constituição dos campos, domínios e objetos de saber (p. 159).

Nota-se que não há no projeto foucaultiano de genealogia nenhuma menção a ideia de


origem, algo que inicialmente pode-se associar ao termo genealogia. A partir disso, Foucault
evita o estabelecimento de um ponto inicial das dinâmicas do poder que serviriam de base
para suas discussões. Ao contrário disso, o filósofo toma a contingência enquanto marca dos
processos que analisa (GUTTING, 2005). A genealogia opera, assim, a análise das dispersões
e descontinuidades das forças, sem qualquer pretensão de apontar universais (MAY, 1993). O
projeto crítico de genealogia encontrado em Foucault recusa a implementação de uma espécie
de metafísica do poder, uma vez que não recorre a uma essência atemporal e unitária enquanto
parâmetro de verdade. Na realidade, a genealogia desafia a metafísica das origens ao se colocar
necessariamente em termos históricos e localizados, o que denota um anti essencialismo que
permite o questionamento (OWEN, 2005).

O caráter crítico de questionamento dos empreendimentos genealógicos aponta para


uma forma específica de atividade intelectual, num sentido de, além de dispensar o recurso a um
sujeito ou poder transcendental, também, e como efeito disso, colocar em xeque a autoridade
da verdade. Essa postura permite o compromisso com a investigação acerca da formação do
presente através de um recurso histórico que não impõe esquemas absolutos, realizando um

137
movimento de crítica acerca do próprio estatuto dos saberes (OWEN, 2005). Não se encontra
no projeto genealógico de Foucault uma atividade positivista ou de pretensões empiristas. As
hegemonias dos saberes considerados científicos são, inclusive, questionadas, num sentido de
ocorrer o questionamento de um bloco monolítico de saber através do processo de análise dos
efeitos de poder que esse institui, sendo possível afirmar inclusive que “o que confere validade
a um projeto genealógico é a vulnerabilidade e as fissuras que provoca no solo teórico unificado
e sólido da discursividade científica dominante” (RESENDE, 2016, p. 130).

O problema dos universais é apontado por Foucault (2008b) quando da explicitação de


seu método. Ele afirma que

[...] em vez de partir dos universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou antes,
em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade obrigatória para um
certo número de práticas concretas, gostaria de partir dessas práticas concretas e, de
certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas (p. 05).

Ele decide partir da inexistência dos universais para indagar a história, ao invés de partir
da história para explicitar supostos universais. Isso ocorre devido a sua opção por explicitar os
aspectos disruptivos das mudanças, num sentido das unidades impostas pela ideia de universal
serem tentativas de tornar regulares processos de produção de experiências e subjetividades
que são irregulares. Assim, Foucault opera em suas pesquisas a inclusão das descontinuidades,
o que o leva ao questionamento dos universais a partir do interior de sua fabricação (MAY,
1993).

Com esse empreendimento, Foucault reconstrói a história da verdade, num sentido de


construir genealogias que permitiram não reconstruir a gênese do verdadeiro em cada contexto
específico por ele analisado através dos possíveis erros ali operados, mas num sentido de
explicitação de regimes de veridição que impõem um direito à verdade ao mesmo tempo que as
instituem enquanto única via de vislumbre da realidade. Isso leva Foucault a se abster de tentar
descrever exaustivamente sistemas de verdade compreendidos enquanto autômonos, e isso
permite que o filósofo incline sua atenção à produção de discursos privilegiados que instituem
a própria distinção entre verdadeiro e falso (FOUCAULT, 2008b).

Essa distinção é indispensável para uma certa forma de distribuição do poder, num
sentido de instituir no campo das práticas dispositivos que exercitam saberes e poderes que se
movem predominantemente numa direção e, no campo epistemológico, a ideia de erro a partir
da qual se passa a buscar a validade ou não de um determinado enunciado tendo a própria lei
da verdade como régua. Essa demarcação do verdadeiro e do falso acaba por marcar o real
com elementos que não possuem existência absoluta, como se pretende fazer acreditar através

138
dos dispositivos de saber-poder, mas que nem por isso deixam de ter existência enquanto
moduladores das experiências (FOUCAULT, 2008b).

Ao explicitar esse funcionamento, Foucault permite o vislumbre de que, na realidade,


quando da análise genealógica dos pretensos universais baseados na ideia de verdade,

Trata-se de mostrar por que interferências toda uma série de práticas – a partir do
momento em que são coordenadas a um regime de verdade –, por que interferências
essa série de práticas pôde fazer que o que não existe (a loucura, a doença, a
delinqüência, a sexualidade, etc.) se tornasse porém uma coisa, uma coisa que no
entanto continuava não existindo. Ou seja, não [como] um erro – quando digo que o
que não existe se torna uma coisa, não quero dizer que se trata de mostrar como um
erro pôde efetivamente ser construído –, não como a ilusão pôde nascer, mas [o que]
eu gostaria de mostrar [é] que foi certo regime de verdade e, por conseguinte, não
um erro que fez que uma coisa que não existe possa ter se tornado uma coisa. Não é
uma ilusão, já que foi precisamente um conjunto de práticas, e de práticas reais, que
estabeleceu isso e, por isso, o marca imperiosamente no real (FOUCAULT, 2008b,
p. 26-7).

A essa altura surge uma crítica da verdade no pensamento foucaultiano. Essa crítica
conecta-se com o aspecto político da perspectiva genealógica em Foucault, uma vez que uma
genealogia “não é uma história do verdadeiro, não é uma história do falso: a história da veridição
é que tem importância politicamente” (FOUCAULT, 2008b, p. 50-1). Fica evidenciado na
concepção de veridição em detrimento das de verdadeiro ou falso o caráter provisório dos
empreendimentos genealógicos. Nesse sentido, no exercício crítico acerca de relações de poder
localizadas, o que encontramos é a organização e explicitação de interrelações temporárias que
podem, por isso, ser questionadas e reformuladas (MACHADO, 2016). Essa visão é possível
por encontrarmos em Foucault não a verdade, mas verdades; não a política, mas políticas, ou,
de forma mais precisa, micropolíticas (MAY, 1993).

Devido a essa multiplicidade não se pode reivindicar às genealogias a constituição de


um projeto unívoco tanto do ponto de vista teórico, quanto do metodológico. Assim, realizar
uma genealogia é operar uma análise fragmentada e mutante da realidade (MACHADO,
2016). A verdade é posta a prova nos empreendimentos genealógicos, num sentido do poder
que emerge do conceito de verdadeiro passar de um lugar inquestionável para ser localizado
enquanto alvo principal da crítica. Através desse exercício, Foucault especifica quais as formas
que os dispositivos de saber-poder operam na cultura, bem como as implicações ético-políticas
dessas distribuições (OWEN, 2005). Ao explicar em que consiste o aspecto de crítica de seus
empreendimentos o filósofo francês afirma:

139
A crítica que lhes proponho consiste em determinar em que condições e com quais
efeitos se exerce uma veridição, isto é, mais uma vez, um tipo de formulação do
âmbito de certas regras de verificação e de falsificação. Por exemplo, quando digo
que a crítica consistiria em determinar em que condições e com quais efeitos se exerce
uma veridição, vocês vêem que o problema não consistiria em dizer, portanto: vejam
como a psiquiatria é opressiva, já que é falsa. Não consistiria nem mesmo em ser
um pouco mais sofisticado e dizer: olhem como ela e opressiva, já que é verdadeira.
Consistiria em dizer que o problema está em trazer à luz as condições que tiveram de
ser preenchidas para que se pudessem emitir sobre a loucura – mas a mesma coisa
valeria para a delinqüência, a mesma coisa valeria para o sexo – os discursos que
podem ser verdadeiros ou falsos de acordo com as regras que são as da medicina ou
as da confissão ou as da psicologia, pouco importa, ou as da psicanálise.
Em outras palavras, para que tenha um alcance político, a análise tem de visar não
a gênese das verdades ou a memória dos erros. Saber quando determinada ciência
começou a dizer a verdade, que importância tem? Lembrar-se de todos os erros que
os médicos cometeram ao falar sobre o sexo ou a loucura não adianta nada... A meu
ver, o que tern uma importância política atual é determinar que regime de veridição
foi instaurado num determinado momento (FOUCAULT, 2008b, p. 50).

É justamente devido à essa conexão com o político que as genealogias podem ser vistas
enquanto análises da atualidade. Isso ocorre pela conexão dos empreendimentos genealógicos
com as relações de poder que emergem em nossos sistemas atuais de dominação (GUTTING,
2005). Ao explicitar a multiplicidade histórica que permitem a produção de uma determinada
forma de distribuição do poder, Foucault realiza um uso político dessas emergências, o que
permite a ele rearticular saber e poder num sentido de uma crítica sobre as bases históricas de
constituição da verdade, bem como através de uma visibilização de saberes sujeitados.

Dessa forma, Foucault interroga acerca do que seria nosso presente, instituindo uma
forma específica de esclarecimento filosófico (MAY, 1993). Através de empreendimentos
empíricos, Foucault lança luz sobre as condições de emergência dos sistemas de inteligibilidades
estabilizados através de relações de saber-poder. Para isso, ele identifica as convergências de
elementos dispersos tendo como critério os efeitos desses nos contextos localizados analisados
a partir de recortes no corpo social. Com isso, ele opera uma crítica do presente sem a pretensão
de erigir um modelo filosófico ideal, mas enquanto um questionamento da aceitação de
determinadas condições de produção de saberes e práticas a eles associadas (BERT, 2013).

Atrelada à crítica epistemológica exercitada na genealogia encontramos um


questionamento da aceitação docilizada das relações de poder instituídas (BERT, 2013).
Com isso, pensar diferentemente atrela-se de forma radical e irreversível à possibilidade de
reestruturação dos dispositivos e seus enunciados. Evidencia-se, dessa forma, os aspectos
éticos das análises genealógicas, num sentido dessas permitirem a emergência de uma escrita
política acerca dos saberes (MAY, 1993). Esses aspectos éticos se evidenciam por, ao analisar
as distribuições do poder e, consequentemente, os saberes que sustentam e justificam essas
relações, ficar delimitado não apenas o conhecimento e suas formas de imposição na realidade,

140
mas também as implicações políticas dos saberes e das práticas e ele conectadas. Dessa forma,
é impossível pensar um empreendimento epistemológico que não seja ao mesmo tempo
relacionado à política. É essa relação intrínseca entre epistemologia e política que leva May
(1993) a afirmar o seguinte sobre Foucault:

Se Foucault era um autor político sobre o nosso conhecimento, não é porque ele tinha
algo a dizer sobre como eram nossos conhecimentos ou nossa razão. De fato, falar
de nosso conhecimento ou de nossa razão (ou mesmo, às vezes, de nossa sociedade)
convida aos tipos de cegueira que permitiram nossos conhecimentos e às estratégias
nas quais eles estão engajados para continuarem firmes (p. 65) (tradução nossa).

Devido à sua concepção de poder, ao falar de política nos campos dos saberes, Foucault
não estava defendendo uma concepção de política macro, realizada necessariamente através
dos grandes aparatos do Estado, mas, ao invés disso, encontramos em sua concepção o
reforço da ideia de micropolítica, uma vez que essa pode facilmente ser exercitada em práticas
capilarizadas no meio social através de dispositivos nem sempre facilmente identificáveis com
os aparelhos disciplinares de Estado.

Isso não quer dizer que Foucault hierarquize os poderes que emanam diretamente do
Estado e aqueles que se localizam além ou aquém desse. Na realidade, o autor explicita um
novo entendimento de política que impõe novos formatos às intervenções. Assim, antes de
se referir a um objeto de validação do que seria o poder e suas relações, depreende-se do
conceito de micropolítica uma nova perspectiva de investigação. Essa perspectiva parte do
questionamento da possibilidade de se recorrer a uma base transcendente para as lutas políticas,
algo que comumente se coloca enquanto um fundamento da filosofia política (MAY, 1993),
instituindo no lugar dessa uma leitura de luta e de autodeterminação pautada no imperativo de
compreensão acerca do presente e das relações de saber-poder nele construídas.

A intimidade entre conhecimento e relações de poder é evidenciada no pensamento


genealógico de Foucault. É devido a isso que as genealogias podem ser pensadas enquanto
uma justificação epistêmica para o encontro de outros fundamentos para a análise do poder e
da produção de subjetividades engendradas em suas redes. Com isso, Foucault rejeita qualquer
fundamentalismo (MAY, 1993) e, ao extrapolar o campo da epistemologia, acaba por permitir o
vislumbre que não há sequer a possibilidade de se pensar aspectos epistemológicos sem esbarrar
em relações de poder determindas e, consequente, nas repercussões éticas que viabilizam ou
não condições de identidades específicas (OWEN, 2005).

Uma vez compreendido que quando do tema das genealogias temos uma questão tanto
epistemológica quanto política evidencia-se a razão de Foucault ter abdicado de esquemas

141
que buscassem um fundamento único e inequívoco para analisar o poder. A partir desse
empreendimento ganha-se profundida nas análises e, assim, não mais é possível partir da
separação dos marcos epistemológicos ou políticos, pois essas instâncias estão longe de serem
passíveis de apreensão de forma isolada uma da outra. Dessa forma, é possivel asseverar que

O projeto genealógico não é realizado nem pelo recurso ao argumento transcendental,


nem por recusa epistêmica; ele é realizado reconhecendo o que significa dizer
que algo é conhecido e exibindo algumas coisas que se afirma serem conhecidas
contra outras, não para negar a verdade dessas coisas, mas para levantar questões
sobre seu papel político (e apenas assim lançar alguma aspersão à sua verdade). A
genealogia pode ser chamada de política empírica radical, arrancando conceitos e
reivindicações transcendentais de sua confortável posição na base do conhecimento,
incitando suspeitas sobre o que aparece sob o disfarce de natureza ou necessidade,
provocando desconfiança em relação ao transhistórico e eterno – tudo isso traçando
linhas históricas, uma análise da emergência e descendência, que requer nada mais
que uma crença nos fatos históricos (p. 1864) (tradução nossa).

Uma visão não exaustiva das relações de poder torna-se possível através do vislumbre
micropolítico de seu funcionamento. Se o exercício do poder não puder ser resumido ao
exercício da soberania, o entendimento das formas de dominação contemporânea deve buscar
nas práticas de saber-poder parte do entendimento do que somos. Nesse sentido, antes de ser
vista enquanto a forma de leitura que permite o vislumbre da verdade dos funcionamentos do
poder, as genealogias devem ser pensadas enquanto ferramentas epistêmicas que permitem
acesso às relações micropolíticas (MAY, 1993), essas responsáveis pelo descortinar das formas
de produção das verdades.

O vislumbre da micropolítica é exercitado, dessa forma, enquanto crítica, sendo essa


crítica realizada não contra os saberes, mas em nome do próprio saber, esse agora não sendo
visto enquanto categoria transcendente e inquestionável. O mesmo ocorre quando da crítica
das práticas, dado que essa operação de questionamento não visa ao fim das práticas, mas sua
rearticulação dentro de uma determinada relação de poder, ou seja, a partir do lugar possível das
resistências. Assim, a genealogia apresenta-se como uma arma contra as formas de dominação,
impondo a crítica às relações de saber-poder que sustentam as opressões. Essa crítica realiza a
demonstração de que essas relações não são naturais, mas localizadas no espaço histórico (MAY,
1993). Devido a essa localização não é possível a universalização de qualquer genealogia,
sendo necessário sempre um novo começar dos empreendimentos genealógicos, que terão
como pressuposto apenas uma ampla concepção acerca do poder e de seu funcionamento a
guiar o que Guattari denominou de cartografia, e, nesse sentido,

Cada cartografia, regional ou global, segundo seja levada por pretensões ideológicas,
estéticas ou científicas, define seu próprio campo de eficiência pragmática, e é bem

142
evidente que uma renúncia, como aquela de Foucault, aos mitos reducionistas que
têm geralmente curso nas ciências humanas, não poderia ser sem incidência sobre as
questões políticas e micropolíticas […] (GUATTARI, 2007, p. 34).

Um conceito que serve para uma maior compreensão do que vem a ser a genealogia
é o de problematização. A partir de uma perspectiva genealógica, problematizar refere-se a
questionar e tornar visíveis os modos pelos quais as estruturas de reconhecimento operam na
cultura. Ao permitir esse vislumbre, a problematização permite também a transformação, a
possibilidade de, a partir da erupção de novas maneiras de distribuir os poderes, ser diferente.
Nesse sentido, a questão que guia as problematizações refere-se sempre ao estatuto do que
somos e, além disso, do que efetivamente se pode vir a ser enquanto sujeito e comunidade
(OWEN, 2005).

Ao problematizar não se está, no entanto, apenas substituindo uma forma de ver e agir por
outras, que seriam vistas como mais válidas ou verdadeiras. Ao invés disso, a problematização
abre um campo de questionamento possível que deve operar todo o tempo no contato com as
relações de saber-poder em suas dinâmicas de distribuição e redistribuição. Revel (2005), ao
defender a problematização como tarefa da filosofia, afirma que

O termo problematização implica duas conseqüências. De um lado, o verdadeiro


exercício crítico do pensamento se opõe à idéia de uma busca metódica da “solução”:
a tarefa da filosofia não é, portanto, a de resolver – inclua-se: substituir uma solução
por uma outra – mas a de “problematizar”, não a de reformar mas a de instaurar uma
distância crítica, de “desprender-se”, de retomar os problemas. De outro lado, esse
esforço de problematização não é, de maneira alguma, um anti-reformismo ou um
pessimismo relativista (p. 71).

A problematização passa, dessa forma, pela historização dos objetos sobre os quais
se debruça. Nesse sentido, busca acompanhar as transformações pelas quais esse objeto
passou, de forma a explicitar as formas de consolidação de discursos e práticas instituídas
enquanto verdadeiras (BERT, 2013). Para esse empreendimento é necessário a atuação em três
eixos: primeiro na leitura histórica da verdade acerca de nós mesmo; segundo, a historização
concomitante das relações de poder que estão conectadas com os sabres que instituem as
verdades e, por fim; as reverberações éticas que as dinâmicas de saber-poder impõem ao que
somos (OWEN, 2005).

Com isso, nota-se os aspectos tanto teóricos como metodológicos do que é uma
genealogia. Nesse sentido, ela se impõe enquanto uma tática epistemológica, política e ética
de questionamento com possíveis efeitos de transformação em relação aos objetos sobre os

143
quais se debruça, sendo esse caráter aberto dos empreendimentos genealógicos o que permite
a eles problematizar variados contextos através da checagem das formas de veridição que
possibilitam o surgimento e consolidação de determinadas dinâmicas de saber-poder.

Foucault (2016e) explicita a genealogia como uma minúcia estratégica que torna risível
qualquer tentativa de alcance das origens. O recurso à história encontrado nos empreendimentos
genealógicos é utilizado não para confirmá-las, mas, ao contrário disso, refutá-las. O filósofo
francês se ocupa, assim, de pensar sobre os aparecimentos de determinados dispositivos e
relações de poder a eles vinculadas, o que abre esses campos à multiplicidade, tanto do ponto de
vista epistemológico, quanto do ponto de vista ético e político. Somente a partir disto, é possível
pensar em genealogias que tomem para si objetos vários, sem pretensão à universalização, mas
com objetivos de explicitação das suas formas de emergência, funcionamento e possibilidades
de modificação.

5.3. A genealogia do gênero em Judith Butler

Judith Butler em vários momentos de suas obras acerca dos gêneros e das sexualidades
denomina o empreendimento teórico por ela desenvolvido de genealogia. Ela justifica essa
espécie de filiação ao fato de que em seus trabalhos realiza a crítica das ideias relacionadas
a uma origem e originalidade das experiências de gênero. Nesse sentido, e através de uma
perspectiva genealógica, ela expõe os fundamentos das categorias de sexo e gênero baseados
numa determinada formação do poder, o que a permite conectar as expressões de sexo e gênero
às dinâmicas políticas das instituições e práticas discursivas que forjam as ideias de origem e
naturalidade no campo por ela analisado (BUTLER, 1999).

O essencialismo e a imutabilidade dos conceitos de sexo e gênero são questionados por


Butler, num sentido de descentrar as análises acerca desses marcadores da heterossexualidade
compulsória e seus efeitos na produção de identidades inteligíveis. Para isso, a autora realiza sua
genealogia identificando as condições de possibilidade de produção do regime heterossexual
para os corpos e desejos, bem como as experiências e expressões que são deslegitimadas através
da produção da abjeção, que excluem através da normatização as diferenças para manter a ideia
de naturalidade das expressões eleitas como originais (MELONI, 2008).

A genealogia realizada por Butler opera, assim, uma crítica ao conceito de diferença
sexual, partindo dela para a proposição de transformações mobilizadas através do desmonte
do sistema de sexo e gênero binário heterossexual como matriz de inteligibilidade humana.
Com seu empreendimento ela constrói o diagnóstico do presente das relações de sexo e gênero,
incluindo aí críticas ao próprio movimento feminista, que muitas vezes toma para si sem

144
questionamento o paradigma da diferença sexual. Isso efetivamente consolida seu trabalho
enquanto genealógico, uma vez que

O filósofo diagnostica o presente. O filósofo é um genealogista. Não busca origens,


não substancia nada, não sentencia ou procura um princípio absoluto que explique
a realidade. A crítica genealógica não destrói categorias, isto é, não “destrói” o
sujeito, a “mulher” ou o feminino; trata-se de investigar as cumplicidades discursivas
e as reivindicações de validade de cada um desses termos e o papel que eles
desempenharam nos discursos feministas (MELONI, 2008, p. 75) (tradução nossa).

A crítica genalógica do gênero abarca ainda os aspectos de produção do corpo, uma vez
que, para Butler (1993), o sexo e sua delimitação corporal binária é sempre também gênero.
Devido a isso, ela estabelece uma relação de crítica com a normatização dos corpos. Nesse
sentido, questiona o vislumbre do corpo enquanto apriorístico em relação à cultura marcado
posteriormente pelo gênero (BUTLER, 1999, 1993). Para a filósofa, a naturalização dos
corpos é mais um elemento possibilitador da hierarquização de gênero, de forma que insistir
na distinção entre natureza e cultura quando da teorização acerca dos sexos consolida a rigidez
e violência do dispositivo do gênero. Isso leva Butler ao questionamento epistemológico da
distinção entre natureza e cultura, pois ela não seria para a filósofa um simples vislumbre da
realidade, mas um investimento de poder no campo da produção do conhecimento (BUTLER,
1999, 1993).

A teoria de gênero de Butler não se abstêm em nenhum momento de conectar as


expressões do sexo e do gênero às discussões acerca das distribuições do poder. Assim, ela
segue uma forma de análise que, encontrando seu momento inicial nas análises acerca dos
valores realizada por Nietzsche e passando pelos empreendimentos sobre o poder realizados
por Foucault, consolida na filosofia contemporânea uma postura crítica de análise da atualidade.
Essa forma de análise passa necessariamente pela historização dos objetos sobre os quais se
debruça. No entanto, a história não é pensada enquanto um dado objetivo, mas enquanto uma
articulação que estabelece vínculos que são artificialmente transformados em necessários.
Assim, ao analisar a história das coisas, pode-se notar como os objetos foram tornados enquanto
naturais com pretensão a preexistirem em relação a qualquer aproximação teórica com eles.
É Foucault (1988) que inicia a aplicação dessa modalidade crítica de historização no campo
das sexualidades, mas pode-se dizer que Butler (1993, 1999, 2004) aprofunda e complexifica,
através de sua leitura genealógica, as análises nesse campo.

A partir de Foucault, e indo além dos objetivos dele, Butler explicita o que estaria
ocultado sob a égide do natural no que tange aos corpos, gêneros e sexualidades, tendo sua
crítica à ideia de diferença sexual como pilar principal para a sustentação de sua teoria. Com

145
isso, a filósofa permite a transformação do campo de estudos no qual localizam-se seus trabalhos
e, consequentemente, a transformação social, cultural e política no que tange as relações de
sexo e de gênero na atualidade.

Partindo da problematização do sujeito mulheres, passando pelo questionamento do


caráter natural dos corpos até chegar na valorização de experiências subversivas no âmbito
dos gêneros como as encontradas nas drag queens, Butler extrapola a distinção dicotômica
entre anatomia e papéis sociais tão presentes nos estudos de gênero. Ao fazer isso, ela
também reivindica e necessidade de usos intencionalmente políticos das teorias, de forma
a se questionar a ideia de neutralidade que permeia os paradigmas científicos e filosóficos
tradicionais (HERRANZ, 2013). Nesse processo de politização das diferenças e dos estudos
que a tomam como objeto, ela destaca também a necessidade de se levar em consideração
os variados marcadores sociais de diferença, sem incorrer numa simplificação que elevaria o
gênero ao lugar da grande expressão de poder que determinaria os limites da inteligibilidade
humana, no entanto, sem também pretender construir uma teoria que desse conta de todos esses
marcadores. Sobre essa questão, Butler (1993) afirma:

Por um lado, qualquer análise que privilegia um vetor de poder em detrimento de


outro sem dúvida se tornará vulnerável a críticas de que ele não apenas ignora ou
desvaloriza os outros, mas que suas próprias construções dependem da exclusão dos
outros para proceder. Por outro lado, qualquer análise que pretenda abranger todos os
vetores de poder corre o risco de um certo imperialismo epistemológico que consiste
na pressuposição de que algum autor possa explicitar e explicar completamente as
complexidades do poder contemporâneo. Nenhum autor ou texto pode oferecer tal
reflexão sobre o mundo, e aqueles que afirmam oferecer tais análises tornam-se
suspeitos em virtude dessa mesma afirmação (p. 18) (tradução nossa).

Essa forma de vislumbre é possível pela apropriação da crítica feita por Foucault que
Butler realiza acerca da concepção jurídica de poder. Ela expõe a necessidade da assunção da
crítica acerca das categorias identitárias contemporâneas que, através de estruturas jurídicas,
naturalizam e imobilizam as expressões do que é aceito enquanto humanamente inteligível. Ela
realiza essa crítica, por exemplo, quando de sua análise acerca do feminismo, uma vez que, a
partir da genealogia do sujeito mulheres ela põe em questão a possibilidade de se determinar
quem ocuparia o lugar de sujeito do feminismo sem que com isso se incorra na exclusão de
expressões várias no campo dos gêneros (BUTLER, 1999).

Ela não pretendeu com isso defender a impossibilidade de uma agenda feminista,
mas explicitar os limites dessa agenda com a finalidade de tornar o feminismo uma forma de
resistência mais potente. Para isso, Butler defende ser necessário a articulação complexa de
marcadores de poder, num sentido de que não se poderia eleger apenas um critério para a ação

146
política, uma vez que todos eles tratam de aspectos localizados e parciais da experiência social,
cultural e política (BUTLER, 1993). Devido a essa complexidade o vislumbre estritamente
jurídico do poder deve ser ampliado em direção aos seus aspectos produtivos. Nesse sentido,
não se trataria de analisar como as pessoas são de um determinado gênero, mas através de que
efeitos de poder é possível a assunção de um gênero dentro de determinados parâmetros de
inteligibilidade. A genealogia do gênero aponta, assim, para o questionamento das estruturas
de saber-poder que impõem uma certa configuração cultural enquanto absolutamente natural e,
por isso, real e hegemônica (BUTLER, 1999).

Butler (1999) recorre mais uma vez ao pensamento de Foucault para sustentar sua
concepção genealógica do gênero, notadamente nas discussões realizadas pelo autor em torno
do dispositivo da sexualidade:

Ser sexuado, para Foucault, é estar sujeitado a um conjunto de regulações sociais,


e ter a lei que dirige essas regulações reside tanto no princípio formativo do sexo,
gênero, prazeres e desejos de uma pessoa quanto como no princípio hermenêutico
da autointerpretação. A categoria sexo é, portanto, inevitavelmente reguladora,
e qualquer análise que faça com que essa categoria seja pressuposto estende
acriticamente e legitima ainda mais essa estratégia reguladora como regime de poder/
saber (BUTLER, 1999, p. 122) (tradução nossa).

A regulação do sexo ocorre, principalmente, a partir do recurso à aparência dos corpos


para Butler (1993). É através disso que o regime de saber-poder no campo dos gêneros dissimula
sua fabricação e se impõe enquanto natural. Por essa razão, Butler reivindica a necessidade
de se avançar em relação às concepções de gênero pautadas na ideia de diferença sexual.
Ao realizar esse movimento, a autora consegue, também, avançar no que tange aos aspectos
produtivos do poder, num sentido de, ao pensar as incidências dos dispositivos de poder sobre
os corpos, também explicitar os processos de normalização e subjetivação engendrados nessas
incidências, momento no qual ela lança mão, além do pensamento de Michel Foucault, da
teorização psicanalítica (JAGGER, 2008).

Butler opera a reformulação das políticas de identidade através de uma concepção


performativa de sexo e gênero. Acerca disso, é notável o esforço realizado pela filósofa para
explicitar a existência de um regime de poder excludente que privilegia a heterossexualidade,
de forma que as categorias homem e mulher são, antes de naturais, políticas. Butler (1993,
1999, 2004) opera esse movimento sem cair na negação dessas categorias, mas realizando
uma genealogia crítica de sua emergência e formas de manutenção. A partir dessa genealogia
é possível compreender o funcionamento dos dispositivos dos gêneros e das sexualidades,
num sentido de conectar aspectos biológicos, culturais e psíquicos na consolidação de um
determinado sistema de sexo-gênero como ideal regulatório (MELONI, 2008).

147
A partir da visão genealógica de Butler sobre os sexos e gêneros é possível pensar os
processos de transformação nesse campo, o que evidencia o aspecto de luta política encontrado
em sua teorização. Nesse sentido, a reformulação ou subversão das políticas de identidade
realizadas por Butler se referem tanto a um empreendimento teórico como a uma necessidade
da luta política acerca da qual são realizadas as teorizações (MELONI, 2008).

O espaço da luta política em Butler prescinde, dessa maneira, de um ponto de partida


estático e universal pautado numa identidade específica. Em realidade, será exatamente nas
experiências da diferença que recairá o foco da autora (MELONI, 2008), através de sua ênfase
nas expressões de abjeção e constituição de uma alteridade que, ao ser excluída, possibilita o
surgimento das fronteiras que estabelecem o que viria a ser uma vida propriamente humana das
outras consideradas algo menos que isso. A filósofa multiplica, assim, os sujeitos políticos e as
possibilidades de luta, de maneira que,

Voltando mais uma vez a Foucault, Butler nos encoraja a pensar não mais em um
sujeito político, mas em múltiplas “subjetividades” ou “subjetivações”, em novas
possibilidades de vida, em diferentes modos de existência, em outras afiliações ou
modos de ser em comum (MELONI, 2008, p. 81) (tradução nossa).

Ainda que se mantenha como uma crítica das políticas de identidade em sua faceta
necessariamente excludente, Butler não cai em niilismo num sentido de recusa estrita da
existência das identidades. Ao invés disso, ela realiza a genealogia crítica das identidades
de forma a evidenciar seu caráter construído e, consequentemente, localizado em tempo e
contextos. Torna-se possível com isso um olhar sobre si mesmo, de maneira a questionar o
instituído lutando por transformações. Esse movimento não retira o sujeito das redes de poder
ou o torna imune a elas, mas permite operar mudanças nas formas de distribuição do poder,
e, por consequência, nos processos de subjetivação por elas engendrados. Pode-se dizer, em
síntese, que “[...] a genealogia é uma jornada após a qual retornamos ao ponto de partida, mas
sem ser os mesmos” (HERRANZ, 2013, p. 348) (tradução nossa).

A genealogia abre espaço para o tensionamento das relações de poder, de forma


a permitir a ampliação dos marcos de inteligibilidade. Nesse sentido, os empreendimentos
genealógicos podem ser vistos enquanto armas para as lutas políticas, podendo ser utilizadas
estrategicamente para a proposição de transformação social. A partir disso, a própria noção de
política se altera para que seja possível agendas e ações que não desconsiderem os movimentos
caóticos da realidade que inviabilizam o fechamento absoluto em categorias de identidade
fixas. Nesse movimento, as políticas de identidades, assim como as genealogias, passam a
ser compreendidas como práticas estratégicas e não como instâncias de poder que podam as
possibilidades de liberdade dos diversos sujeitos políticos (HERRANZ, 2013).

148
É essa concepção de genealogia e política que Butler carrega ao realizar as suas
análises em torno das questões de sexo e gênero, rearticulando esses dispositivos a partir de
sua concepção perfomativa do poder. Assim,

[...] Butler exibirá uma certa visão de política de gênero vinculada a um poder
performativo incorporado em corpos que violam continuamente os termos do
discurso em que se inscrevem voluntariamente. A chamada “paródia de gênero”
será um desses jogos estratégicos que atuarão como um cavalo de Tróia, mostrando
a flexibilidade da realidade incorporada em corpos progressivamente “limpos”
de natureza essencial, até um ponto em que a importância dos corpos é a própria
importância da matéria expressa em um estilo (como o efeito puramente superficial
do trabalho de autoconstrução realizado por toda a realidade: tomada como sujeito e
objeto) (HERRANZ, 2013, p. 350) (tradução nossa).

Butler realiza, através do performativo e da ideia de paródia, uma torção nos marcos
epistêmicos que orientam as análises em torno das experiências de sexo-gênero. Para isso,
ela articula uma série de autores de forma inédita e criativa. A partir do marco de pensamento
foucaultiano, e o extrapolando, ela permite que as formas de análise em torno das experiências
de sexo, gênero e sexualidades sejam postas em xeque, num movimento através do qual ela
evidencia os artifícios na fabricação dos marcos de inteligibilidade culturais e, além desses, de
inteligibilidade epistemológica que consolidam as relações de saber-poder sobre as quais se
debruça em sua genealogia do gênero.

149
AINDA SOBRE GENEALOGIAS:
PENSANDO O PAPEL DO INTELECTUAL COM FOUCAULT E BUTLER

Pensar as relações de poder e as possibilidades de sua transformação, eis o que


encontramos tanto em Michel Foucault como em Judith Butler. Esses autores mobilizam
pensamentos e constroem teorias originais que se inserem constantemente nos trabalhos
daqueles que pretendem pensar a atualidade e, ao fazer isso, apontam espaços possíveis de
mudanças através da reconfiguração ética num sentido de tornar o campo social mais inclusivo,
ou seja, àqueles para os quais é indispensável uma ética do reconhecimento abrangente e aberta
à inserção de grupos cada vez mais amplos.

Essa postura conecta-se com o que Foucault denominou de intelectual específico. Esse
intelectual já não seria posto enquanto a voz que diria a verdade das experiências e realidades
sobre as quais se debruça, mas enquanto um problematizador do fato de que, no mais das vezes,
os sujeitos sabem bem da realidade em que vivem e são capazes de identificar as dinâmicas de
opressão incidentes sobre suas existências, mas, devido aos circuitos de saber-poder instituídos,
são privados de discurso. Foucault (2016d) aponta como os próprios intelectuais muitas vezes
sustentam essa lógica de desigualdade, quando se colocam enquanto a consciência de um grupo
devido às suas possibilidades de discurso que se adequam às dinâmicas do poder.

Nesse cenário, para Foucault (2016d) cabe ao intelectual não replicar as desigualdades
no que tange a possibilidade de discurso, mas questioná-las. Assim, antes de se colocar a frente
ou acima das experiências para emitir as verdades, o intelectual específico deve cumprir o papel
de lutra contra as formas de poder produtoras de assimetrias. Essa luta não deve ser pensada
enquanto substituta das lutas realizdas pelos grupos oprimidos, mas unir-se a ela através do que
o intelectual tem como potencial arma: sua localização na ordem do saber.

Pensar o papel do intelectual na atualidade é atentar à necessidade de não se entrar


num elitismo no campo da construção do saber. A partir do século XX houve uma realocação
social do intelectual, de sua linguagem e finalidade, e isso impõe que se abra mão de se pensar
a intelectualidade como uma espécie de casta privilegiada com acesso à verdade, para pensá-
la como sujeitos ativamente participantes da vida social e, consequentemente, potencialmente
engajados nas variadas lutas que ali emergem (ARAÚJO, 2008). O intelectual especifíco
proposto por Foucault vai, assim, opor-se a esse elitismo e realizar uma crítica da atualidade,
através, muitas vezes, de uma militância formalmente diferente da militância tradicianal

150
(BERT, 2013), ainda que não haja nenhuma contradição ou impossibilidade de pertencimento
mútuo nas variadas formas de militância, uma vez que os novos focos de luta não significam o
fim das antigas formas de oposição às expressões da dominação (MAY, 1993).

Isso impõe uma nova forma de trabalho intelectual, com estratégias particulares para
identificar e lutar contra as opressões. Nesse sentido, o que o intelectual específico constrói são
formas particulares de contato com as análises históricas e filosóficas acerca de seu tempo, num
processo no qual a construção do pensamento se consolida, ao mesmo tempo, enquanto forma
de resistência. Para que esse trabalho seja efetivo, é indispensável escutar os oprimidos pelos
dispositivos de saber-poder em funcionamento, o que se opõe ao tradicional local de baluarte
da verdade sobre as experiências (MAY, 1993).

Isso ocorre devido aos intelectuais estarem eles também imersos na sociedade e não fora
dela, imersos nas relações de poder, e não afastados delas para realizar as suas análises. Assim,
é possível a construção de uma espécie de solidariedade em relação às lutas e aos sujeitos
mais diretamente nelas inseridos (MAY, 1993). Em realidade, ao se notar esse pertencimento
necessário às relações de poder, Foucault (2016d) defende que se têm o início da própria
percepção do como ocorre os exercícios do poder e de como ele se distribui num determinado
contexto e momento.

É interessante notar como esse lugar do intelectual específico muitas vezes o coloca
numa relação paradoxal tanto com as hegemonias sociais, como com os movimentos que
são instituídos em resistência a elas. Isso porque ele está no agonismo das lutas do cotidiano
e, ao mesmo tempo que inserido nelas de forma próxima aos indivíduos e grupos que as
protagonizam, realiza análises que podem ir contra o que esses grupos defendem (PAGNI,
2016). Exemplo disso são as discussões que Foucault (1988) realizou acerca da sexualidade,
nas quais questionou o paradigma da liberação, marca de muitos movimentos sociais; como
também Butler (1993, 1999, 2004), que ao questionar a ideia de diferença sexual, colocou em
xeque um importante pressuposto de muitas perspectivas feministas.

No entanto, mais do que a coerência com as lutas, Foucault permitiu a construção de


uma coerência com um determinado projeto filosófico. Nesse sentido, ao analisar as diversas
relações de poder em seu funcionamento necessariamente agonístico, o filósofo não deixou
de dar atenção ao seu próprio lugar de enunciação. Ao pensar a atualidade, ele também
impôs a necessidade de se pensar o que viria a ser um intelectual nessa atualidade enquanto
ofício que se insere num determinado circuito de saber-poder. Por isso, o intelectual deve
ser consciente do funcionamento desses circuitos para melhor atuar num âmbito que nunca é
apenas epistemológico, dada sua conexão necessária com a política (PAGNI, 2016).

O fazer intelectual se conecta, assim, a uma estratégia de poder, e isso impõe que se
assuma responsabilidades políticas. Essa responsabilização diz respeito a interferência que os

151
intelectuais podem exercitar nas políticas de verdade de suas épocas, e, através delas, propor
modificações na atualidade das lutas. Dessa forma, mostrar a possibilidade de fabricação de
vidas outras em contextos determinadas passa a ser uma das principais tarefas do intelectual
específico defendido por Foucault, o que impõe uma complexa dinâmica de constituição
discursiva associada, muitas vezes, a vivência ética de uma concepção política que afirma as
diferenças (PAGNI, 2016).

O intelectual específico em Foucault é aquele que percebe as implicações políticas de


seu fazer e, ao invés de reforçar os dispositos de saber-poder que engendram assimetrias e
relações de dominação, questiona-as e abre espaço para as transformações. Acerca do tipo de
intectual que pode cumprir esse papel, Foucault (2016b) afirma:

Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza
e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de
força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará
amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de
passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer
qual revolução e qual pena). Que fique claro que os únicos que podem responder são
os que aceitam arriscar a vida para fazê-la (p. 362).

Foi esse o tipo de intelectual que o próprio Foucault foi; e é esse tipo de intectual que
encontramos em Butler. Essa autora questiona os paradigmas de seu campo de atuação para
propor uma radical implicação política de seu fazer intelectual. Nesse sentido, ela opera uma
crítica acerca do que pode ou não ser considerado filosofia. Para isso a autora expõe como
uma série de mudanças no espaço de enunciação filosófica levaram à perda do controle de
determinados grupos filosóficos institucionalizados no que tange à enunciação e definição do
que viria ou não a ser filosofia (BUTLER, 2004).

Para Butler (2004), a filosofia tida por tradicional e, muitas das vezes, auto afirmada
enquanto verdadeira, é uma modalidade de conhecimento que se pretende apartada da vida no
momento de sua construção, ao mesmo tempo em que acredita que suas construções teóricas
podem resolver ou aliviar a vida de suas dificuldades, paradoxo de difícil sustentação nos dois
momentos estabelecedores de seus pressupostos. Esse paradoxo permite a emergência de um
outro, que é a proliferação de uma espécie de segunda filosofia fabricada fora das fronteiras da
filosofia institucionalizada, o que permite o aparecimento de um duplo da filosofia.

O mais curioso desse processo, de acordo com Butler (2004), é não raramente esse duplo
acabar por ser mais facilmente apropriado pelos círculos intelectuais não institucionalizados
de filosofia, fazendo com que o significado de filosofia para a maior parte das pessoas esteja
atrelado exatamente a essa filosofia de fora das fronteiras, seja ela realizada nos espaços

152
inicialmente definidos para a filosofia “tradicional”, seja ela realizada em outros campos de
conhecimento que se apropriam do pensamento filosófico, produzindo neste uma espécie de
torção para a construção de edifícios conceituais próprios.

A filosofia institucionalizada se vê, assim, num contexto no qual é impossível voltar a


ela mesma, pois a relação com essa alteridade a lança num jogo duplo de tentativa de recusa e
absorção dos demais usos da filosofia, ao mesmo tempo em que a modifica. Assim, é impossível
não notar

[...] o uso da palavra “filosofia” para designar tipos de pesquisas que em nenhum
sentido reconhecível espelham a prática acadêmica que eles realizam e que eles
entendem como seu dever e privilégio definir e proteger. A filosofia, escandalosamente,
se duplicou. Nos termos de Hegel, encontrou-se fora de si, perdeu-se no “Outro”
(BUTLER, 2004, p. 233) (tradução nossa).

Dessa forma, não faria mais sentido falar de uma filosofia, mas de usos variados dela, e
esses, cada vez mais frequentemente, aderem à concepção de intelectual específico encontrada
em Foucault. Butler (2004) defende que esses usos não são simples reflexos das teorizações
realizadas em espaços institucionalizados enquanto tradicionais para a filosofia, mas , ao invés
disso, “de certa forma, as discussões culturalmente mais importantes da filosofia são realizadas
por estudiosos que sempre trabalharam fora dos muros institucionais da filosofia” (BUTLER,
2004, p. P. 247) (tradução nossa). Assim, a função mimética que discussões e campos não
tradicionais de filosofia operam em relação a esse tipo de conhecimento produz usos políticos
que reconfiguram tanto o conhecimento quanto a realidade social e cultura sobre as quais
se debruçam. Esse movimento é operado pelo aspecto crítico questionador de premissas
epistemológicas e culturais fundacionais realizadas pelas provocações teóricas localizadas
realizadas pelos seus autores (BUTLER, 1993).

Seguindo a esteira de Judith Butler e Michel Foucault, o presente livro pretendeu dar
prosseguimento a análises localizadas a partir do instrumental teórico da filosofia, aderindo às
perspectivas críticas que defendem não haver separação radical entre produção de conhecimento
e política, bem como entre conhecimento filosófico e realidade social em seu funcionamento e
possibilidades de transformação. Dessa maneira, a genealogia da teoria e genealogia de gênero
aqui realizada, ainda que denote um esforço teórico direcionado muito mais aos aspectos
epistemológicos do pensamento de Butler, pretendeu aumentar a intensidade das vozes abjetas
no marco de sexo-gênero, notadamente na filosofia brasileira, que, apenas recentemente e
ainda de forma muito tímida, tem se interessado pelos estudos nessa área enquanto realidades
passíveis de atenção por parte dos saberes filosóficos.

153
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Sobre o Autor
André Luiz dos Santos Paiva
Doutor em Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política pela UFRN.
Concentra interesses de pesquisa nas áreas de estudos de gênero, sexualidades e
queer, nos cruzamentos entre aspectos teóricos, ético-políticos e epistemológicos
instituídos nas relações de poder que atravessam os corpos nos processos de
fabricação dos gêneros e sexualidades.

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