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Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitora
Fátima Raquel Rosado Morais
Conselho Editorial
Emanoel Márcio Nunes
Isabela Pinheiro Cavalcante Lima
Diego Nathan do Nascimento Souza
Jean Henrique Costa
José Cezinaldo Rocha Bessa
José Elesbão de Almeida
Ellany Gurgel Cosme do Nascimento
Wellignton Vieira Mendes
Diagramação
Maria Helena de Medeiros
162p. : PDF
ISBN: 978-65-88660-51-5
Editora filiada à:
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Meus amigos e
minhas amigas,
O Programa de Divulgação e Popularização da Produção Científica, Tecnológica e de
Inovação para o Desenvolvimento Social e Econômico do Rio Grande do Norte, pelo qual foi
possível a edição de todas essas publicações digitais, faz parte de uma plêiade de ações que
a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (FAPERN), em parceria,
nesse caso, com a Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FUERN), vem
realizando a partir do nosso Governo.
Por essa razão, desde que assumimos o Governo do Rio Grande do Norte, não medimos
esforços para garantir o funcionamento da FAPERN. Para tanto, tomamos uma série de
medidas que tornaram possível oferecer reais condições de trabalho. Inclusive, atendendo a
uma necessidade real da instituição, viabilizamos e solicitamos servidores de diversos outros
órgãos para compor a equipe técnica.
Uma vez composto o capital humano, chegara o momento também de pensar no capital
de investimentos. Portanto, é a primeira vez que a FAPERN, desde sua criação, em 2003, tem,
de fato, autonomia financeira. E isso está ocorrendo agora por meio da disponibilização de
recursos do PROEDI, gerenciados pelo FUNDET, que garantem apoio ao desenvolvimento da
ciência, tecnologia e inovação (CTI) em todo o território do Rio Grande do Norte.
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Por fim, esta publicação que chega até o leitor faz parte de uma série de medidas que
se coadunam com o pensamento – e ações – de que os investimentos em educação, ciência
e tecnologia são investimentos que geram frutos e constroem um presente, além, claro, de
contribuírem para alicerçar um futuro mais justo e mais inclusivo para todos e todas!
Fátima Bezerra
Governadora do Rio Grande do Norte
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Parceria pelo desenvolvimento
científico do RN
A Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte (FAPERN) e
a Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FUERN) sentem-se honradas
pela parceria firmada em prol do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação. A
publicação deste livro eletrônico (e-book) é fruto de esforço conjunto das duas instituições,
que em setembro de 2020 assinaram o Convênio 05/2020–FAPERN/FUERN, que, dentre seus
objetivos, prevê a publicação de quase 200 e-books. Uma ação estratégica como fomento da
divulgação científica e popularização da ciência.
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e de inovação que emana das instituições potiguares, reforçando a compreensão de que o
conhecimento é transformador da realidade social.
Agradecemos a cada autor(a) que dedica seu esforço na concretização das publicações
e a cada leitor(a) que nelas tem a oportunidade de incrementar seu conhecimento, objetivo final
do compartilhamento de estudos e pesquisas.
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Cabe a mim saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido,
cabe a nós por conseguinte saber que campos de forças reais tomar
como referência para fazer uma análise que seja eficaz em termos
táticos. Mas, afinal de contas, é esse o círculo da luta e da verdade,
ou seja, justamente, da prática filosófica.
(Michel Foucault)
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PREFÁCIO
Apresentar a obra em questão a partir de uma qualquer caracterização particular e
abstrata do tema, enredando-a em uma direção que remeta a uma perspectiva que enuncia um
dado problema de pesquisa – e aqui a dimensão dada ao problema não se coloca fortuitamente
– se torna precipitado, diante da riqueza de ideias e da densidade que a atravessa, sobretudo
quando observamos a dialogicidade como recurso para a construção de um pensamento, que
em muito se assemelha ao método de trabalho e estratégias de formulação de genealogias e
problematizações, mobilizadas pelos autores centrais da obra, a saber, Judith Butler e Michel
Foucault. Assim, antes que o leitor tenha um vislumbre do que André Paiva enuncia, ou mesmo
acerca do que trata o livro, pretendo fornecer chaves de leitura para uma interpretação dessa
polifonia de vozes inauditas.
A referida obra parece não apenas responder ao que se propõe, a saber, a compreensão
da teoria de gênero, ou ainda uma genealogia do gênero, desenvolvida por Judith Butler,
notadamente a partir das reverberações do pensamento de Michel Foucault na referida teoria,
mas traz à tona duas questões centrais para pensar o debate feminista na contemporaneidade,
na medida em que aponta uma espécie de duplo silenciamento, seja quando pensamos a pouca
importância ofertada ao lugar do gênero e da sexualidade na reflexão filosófica, sobretudo no
país, ou ainda, na mesma perspectiva androcêntrica, as razões do silenciamento das filósofas,
e o apagamento destas no cânone filosófico – lugar pensado por e para homens, que dialogam
entre si, promovendo o que certamente poderíamos denominar de “epistemicídio” contra um
vasto saber produzido por mulheres. Como afirma Haraway (1995) “o que tradicionalmente tem
vigência como saber é policiado por filósofos que codificam as leis canônicas do conhecimento”.
A negação, referente ao fato do gênero não ser pensado como tema relevante em termos
filosóficos, ou o fato de filósofas como Simone de Beauvoir, Hannah Arendt e Judith Butler,
dentre tantas outras, não serem reconhecidas ou referenciadas por um longo tempo, mostra a
importância de um trabalho como o que se apresenta, na medida em que opera uma discussão
acerca da teoria de gênero em Judith Butler, em uma dupla afronta ao instituído.
Vários são os pontos de convergência apontados pelo autor, numa tentativa de suplantar
a inexistência percebida, acerca de estudos sobre as influências foucaultianas na obra de Judith
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Butler, exceto aqueles que detêm-se em pontos específicos, produzindo leituras parcelares.
Importante mencionar de partida, que a perspectiva dialógica presente na referida obra, insere
também outros interlocutores pensados pelo autor como fundamentais na construção de uma
compreensão da proposta butleriana – de pensar questões que deslizam do gênero e sexualidade,
tema que a notabilizou, até a noção de performatividade aplicada ao entendimento do gênero, e
pensada posteriormente como base de uma compreensão sobre as possibilidades emancipatórias
da política, além de reflexões fundamentais sobre as políticas de reconhecimento e temas como
a guerra, a ética, o enquadramento, a precariedade, a vulnerabilidade e os poderes do luto e da
violência –, tais como, Hegel, Austin, Derrida, Freud, Lacan, Kristeva, mas não apenas.
Importante salientar que essa polifonia, como que a unir textos e autores de correntes
teóricas distintas, é por vezes contestada, por críticos que apontam uma espécie de ausência
de coesão teórica, no sentido de priorizar uma única corrente de pensamento, o que não
condiz com os objetivos de Butler, na medida em que a autora não constrói qualquer tipo de
compromisso epistêmico, que a faça validar ou contestar toda a produção dos autores com os
quais dialoga, além de mencionar seu trabalho não como uma tentativa de reproduzir com
fidelidade as teses dos teóricos que utiliza, mas como um “esforço de tradução cultural”, para
tanto, as possibilidades de leituras e construções emancipatórias e enriquecedoras na teoria
podem ocorrer por meio de novas apropriações.
Uma leitura mais detida permite perceber que o trabalho em questão, não apenas
apresenta uma maior compreensão acerca da centralidade da problematização e da genealogia,
constitutivas do pensamento dos autores, mas acaba por adotar a problematização como
“gesto investigativo”. Em consonância com as aberturas fornecidas pela problematização -
respectivamente objeto de estudo e método de trabalho em Foucault, e tema e estratégia em
Butler – o autor elucida que, “problematizar refere-se a questionar e tornar visíveis os modos
pelos quais as estruturas de reconhecimento operam na cultura [...]” através de uma operação
genealógica e ação de reflexão crítica, nos faz compreender que a relação entre corpo, gênero,
reconhecimento e humanidade, é fundante para uma aproximação profícua com a perspectiva
butleriana, que desliza de uma compreensão do gênero como linguagem de reconhecimento, ao
corpo como lugar material da linguagem, e por conseguinte, a linguagem como produtora de
sentidos em função da necessidade de produzir e configurar reconhecimento.
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Sendo dentro dessas marcações que atravessam os sujeitos enquadrados nas cenas de
reconhecimento, que Butler passa a pensar gênero enquanto performatividade, concepção, que
permitia desestabilizar a distinção metafísica entre sexo/gênero e criticar uma certa aposta
identitária na política. André Paiva apresenta a noção de performatividade a partir do diálogo
com dois autores, Austin a partir da teoria dos atos performativos, e Derrida, para quem o
conceito de performativo estava atrelado aos conceitos de iterabilidade e citacionalidade, além
da dimensão da desconstrução, tornando inteligível aquilo que por vezes foi apresentado como
passível de ser criticado em Butler, na medida em que fornecia um certo grau de impenetrabilidade
nas reflexões da autora, isto é, a complexificação de um sistema de pensamento que afastava
aqueles que não estavam dispostos a adentrar em reflexões que não poderiam ser compreendidas
quando se observava a obra a partir de um olhar sobre a superfície, o que fornece ao trabalho
uma dimensão cognoscível, como uma decifração do que se esconde por trás do meramente
observável, daí mais uma vez sua importância.
A partir desse ponto o gênero é explicado pelo autor, não como algo que se é, mas
algo que se faz ou diz, sendo a identidade de gênero apresentada “a partir da repetição dos
atos estilizados de gênero, em que o próprio campo do humanamente inteligível vai sendo
instituído e, ao mesmo tempo, reformulado”. Tornando claro que não haveria um ator por trás
dos atos executados, sendo o fazer o próprio ato que performativamente constitui o sujeito.
Nesse ponto percebemos a denúncia através da qual os fatos naturais vem a ser naturalizados,
o que a aproxima da mirada foucaultiana, – essa denúncia joga luz sobre o fato de que aquilo
que é tomado como natural, é cristalizado, e produzido como uma naturalidade aparente – o
que permitiu a Butler, segundo o autor, “construir uma ontologia desontologizante da categoria
gênero, de forma a explicitar seus aspectos arbitrários de construção e consolidação baseados,
predominantemente, numa matriz de inteligibilidade heterossexual.”
O livro apresentado consegue ainda construir uma formulação acerca dos conceitos
centrais que atravessam a discussão sobre gênero e sexualidade em Butler, elaborando uma
intricada reflexão, e ao fazê-lo, se posicionando frontalmente diante de algumas críticas,
frequentemente acionadas em oposição a teorização desenvolvida pela autora. Sendo a primeira
crítica referente a ideia equivocada de que pensar a performatividade de gênero seria uma
forma de ignorar a materialidade dos corpos. Assim, André Paiva, através da construção de
uma sólida discussão sobre o lugar do corpo, no desenvolvimento da teoria de gênero, e a partir
de uma leitura cuidadosa feita sobre a relação entre corpo, materialidade e linguagem, aponta
que apesar da grande ênfase dada aos discursos, o corpo como materialidade não é recusado,
não sendo o mesmo afirmar que a interdependência entre matéria e linguagem na fabricação
performativa do corpo defendida por Butler, esvaziaria o sujeito desse corpo, visto que o
corpo não se reduz à sua descrição pela linguagem ou exclusivamente à materialização pelo
discurso. O que possibilita que o alcance da crítica dirigida a Butler, que sugere o apagamento
da materialidade dos corpos em nome da linguagem, perca força quando diante da viabilidade
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de seus argumentos, sobretudo aqueles em que produz uma problematização da materialidade
dos corpos. Diz-nos o autor:
Butler em diálogo com um vasto campo da teoria feminista, propõe que um programa
político que tenha em vista transformar a situação social das mulheres, deve levar em conta a
categoria “mulher”, na medida em que o discurso feminista por vezes se baseou nesta categoria
como “pressuposto universal de experiência cultural”, o que não significa qualquer menção
ao fim do feminismo, como se quis crer, mas implica num questionamento acerca de uma
suposta universalidade referente a categoria em questão, que impedia a interseccionalização
dessa mulher com todos os marcadores de opressão que a discriminam,
Nesse sentido, Butler colocará em debate o próprio conceito de gênero, tão caro ao
movimento feminista, e o faz com vistas a desenvolver um pensamento crítico acerca da
diferença sexual, e as implicações da lógica binária que daí advém, na medida em que incidirá
apenas na vida de homens e mulheres, impedindo a discussão a partir de uma diferença
bem mais ampla, que açambarcasse os diversos sujeitos subalternizados, demonstrando que
enquanto o gênero fosse um elemento central para a crítica feminista, continuaríamos a apoiar
uma heteronormatividade que precisava ser questionada.
O trabalho aqui apresentado trará uma ampla revisão da genealogia sobre os sexos e
gêneros operada por Butler, possibilitando pensar “processos de transformação nesse campo,
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o que evidencia o aspecto de luta política encontrado em sua teorização” – demonstrando o
desenvolvimento de uma filosofia política que irá criticar a normatividade como compreensão
para as tantas formas de opressão – sendo a de gênero uma delas –, opressão que irá produzir e
hierarquizar as vidas que importam daquelas que não são pensadas como sequer dignas de luto.
Anne C. Damásio
Docente do Instituto Humanitas - UFRN
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Sumário
INTRODUÇÃO 16
PARTE I 20
1. O GÊNERO PERFORMATIVO 21
1.1. Alguns pressupostos conceituais-linguísticos do gênero performativo 21
1.2. A desontologização do sujeito generificado 26
1.3. Inteligibilidade humana e matriz de gênero 32
1.4. Reconhecimento, desejo e gênero 34
1.5. Repetição, paródia e performatividade de gênero 41
2. CORPO, ABJEÇÃO E A METAFÍSICA DA SUBSTÂNCIA 46
2.1. Materialização do corpo, linguagem e performatividade 46
2.2. A abjeção e os limites dos corpos 54
2.3. Diferença sexual e a metafísica da substância 63
PARTE II 76
3. PODER E NORMA, DE FOUCAULT A BUTLER 77
3.1. Concepção de poder em Michel Foucault 77
3.2. O corpo nas redes do poder 84
3.3. O poder na teoria de gênero de Butler a partir de Foucault 87
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3.4. O poder na teoria de gênero de Butler: para além de Foucault 92
3.5. Poder e normas de sexo-gênero em Judith Butler 101
4. RESISTÊNCIAS PERFORMATIVAS: AS LUTAS EM FOUCAULT E O QUEER EM
BUTLER 106
4.1. Lutas e resistência nas relações de poder 106
4.2. O queer em questão: resistências e crítica 114
4.3. Políticas pós-identitárias de Foucault a Butler 121
5. GENEALOGIAS: CRÍTICA E TRANSFORMAÇÃO 131
5.1. Foucault, da arqueologia à genealogia 131
5.2. Genealogia como crítica em Michel Foucault 136
5.3. A genealogia do gênero em Judith Butler 144
REFERÊNCIAS 154
15
INTRODUÇÃO
A presente obra tem como objeto central de estudo a teoria de gênero desenvolvida
pela filósofa norte-americana Judith Butler, dando destaque às repercussões do pensamento
foucaultiano nas teorizações da autora sobre o tema. A partir de um conhecimento prévio da
obra da autora, se almejou enxergar a influência que o pensamento de Michel Foucault exerceu
na construção da teoria de gênero de Butler, na qual é possível encontrar de forma clara o
alinhamento teórico de Butler com o empreendimento genealógico foucaultiano. A própria
autora, repetidas vezes e em diferentes obras, afirma realizar uma genealogia do gênero e dos
corpos.
A obra foi desenvolvida tendo por base principal as obras de Judith Butler que tratam
diretamente das temáticas do gênero e do corpo como objetos principais, a saber: Gender
trouble: feminism and the subversion of identity; Bodies that matter: on the discursive limits of
“sex”; e Undoing gender. A partir dessas obras, foram selecionados outros trabalhos da filósofa
norte-americana, bem como os textos de Michel Foucault e outros filósofos citados pela autora,
a partir dos quais também se recorreu a textos não citados por Butler, mas que contribuem com
as discussões empreendidas.
Para uma aproximação mais segura com os autores objeto do presente livro, também
se recorreu a comentadores de suas obras. Por fim, textos advindos da Filosofia e das áreas das
humanidades, atrelados à perspectiva dos estudos de gênero, sexualidades e/ou queer, também
foram utilizados como ferramentas teóricas para a análise pretendida com a pesquisa.
A obra foi dividida em duas partes. Na primeira delas, se traça as principais influências
filosóficas encontradas na teoria de gênero de Judith Butler. Constituída por dois capítulos,
neles é apresentado o mapeamento das bases filosóficas do pensamento de Butler, de modo a
permitir o conhecimento de outras influências e referências teóricas que não apenas aquelas
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advindas da obra de Michel Foucault na elaboração da teoria de gênero proposta pela autora.
Na segunda parte, constituída de três capítulos, é apresentado o pensamento teórico de Foucault
e suas repercussões na obra de Butler acerca do gênero.
No terceiro capítulo, que abre a segunda parte do livro, inicia-se expondo a concepção
de poder encontrada em Michel Foucault. Para isso, é exposto como Foucault desenvolve uma
concepção do poder como produtivo que extrapola uma concepção jurídica e negativa do mesmo
a partir de suas teorizações acerca das disciplinas e do biopoder. Após isso, a questão do corpo é
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destacada enquanto um marco no pensamento foucaultiano que encontra nos corpos o principal
objeto de investimento do poder, concepção que alcança seu ápice no conceito de dispositivo
da sexualidade, o qual consolida a concepção produtiva do poder levando em consideração
tanto seus aspectos de disciplina e controle, como suas possibilidades de resistências.
No quarto capítulo, o foco recai sobre as resistências, aspecto indissociável das relações
de poder quando se trata da abordagem do assunto em Michel Foucault. Assim, na primeira
parte do capítulo, é exposto como Foucault analisa os processos de resistências enquanto
coextensivas ao poder, o que fortalece sua ideia do poder enquanto produtivo. Para ele, seja
através das transgressões, seja através das dissidências, é possível identificar uma multiplicidade
de formas de resistência e lutas com potencial de transformação das distribuições do poder.
Seguindo com a temática das resistências, no segundo subtítulo, expõe-se o pensamento e a
política queer enquanto uma expressão de resistência, e, a partir de Butler, mostra-se como, para
que esse campo mantenha seu potencial subversivo, é indispensável uma postura crítica frente
a ele mesmo, num processo no qual o queer se manteria aberto aos vários atravessamentos
emergentes no espaço teórico e político da abjeção.
Para finalizar o capítulo, realiza-se a análise dos reflexos dos pensamentos de Foucault,
no que tange às resistências, e de Butler, em sua especificidade queer, nas políticas identitárias.
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Assim, é analisado como a crítica à noção de identidade se institui nos pensamentos dos
dois autores, enquanto algo que possibilita a reflexão sobre seus fundamentos. Assim,
Butler aproxima-se da categoria mulher como sujeito do feminismo, explicitando o caráter
performativo da produção das identidades e das resistências. Para isso, ela dialoga com
Foucault na identificação do caráter excludente da fabricação das identidades, advogando,
assim como fez o filósofo francês, um uso estratégico das identidades. Encerrando a última
parte do capítulo, é explicitado como o campo queer pode operar enquanto um lugar aberto de
crítica às perspectivas identitárias tradicionais.
Nesse sentido, a presente obra se coloca também enquanto um exercício de crítica. Essa
é posta em funcionamento através de uma produção intelectual específica que, objetivando
pensar a genealogia e a teoria de gênero em Judith Butler permite, enquanto uma espécie de
efeito colateral necessário, repensar o espaço da crítica e dos estudos de gênero no edifício da
filosofia institucionalizada, interrogando-a acerca do que pode ou não ser objeto de reflexão
filosófica, bem como acerca da finalidade do pensamento filosófico em seus imbricamentos
com a cultura e política.
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PARTE I
20
1. O GÊNERO PERFORMATIVO
Judith Butler, em suas discussões acerca do gênero (1993, 1999, 2004), apresenta o
caráter performativo do gênero destacando sua importância na construção dos processos de
inteligibilidade humana na estrutura generificada e binária na qual vivemos. A performatividade
nessa teoria está atrelada a uma repetição das normas de gênero que estão encadeadas numa
lógica heterossexual dos corpos e desejos. Nesse sentido, a ideia de performatividade mostra
como uma matriz de inteligibilidade de sexo-gênero binária impõe uma fabricação específica
dos gêneros.
Já a partir dessa leitura inicial do filósofo britânico, é possível identificar aspectos que
serão relevantes na teoria de gênero desenvolvida posteriormente por Butler. Nesse sentido,
o foco que Austin (1990) dá ao contexto de execução enquanto campo possibilitador do ato
performativo, bem como a impossibilidade de se analisar esse tipo de ato enquanto verdadeiro
ou falso, substituindo esse aspecto pela questão da sua eficácia ou fracasso, são características
que, acrescidas das posteriores críticas realizadas por Derrida (1971), darão esteira teórica
para a consolidação do conceito de gênero performativo. Esses aspectos dos atos de fala
performativos em Austin (1990) são possíveis, pois
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A categoria “performatividade” em geral está vinculada com “efetuar”, “executar” ou
“fazer”, bem como “representar” ou “interpretar”. Especificamente, no contexto da
teoria dos atos de fala, a categoria se refere, principalmente, ao fazer o que se enuncia.
[...] São as emissões gramaticalmente corretas que, sem pretenções de verdade, têm
a propriedade de fazer e, na pior das hipóteses, de fracassar. Portanto, o objetivo das
declarações performativas, antes de descrever ou constatar a verdade ou falsidade dos
acontecimentos, é produzir uma transformação do dado ou criar a realidade através
de uma locução performativa (DE SANTO, 2013, p. 372) (tradução nossa).
Essa repetição, para Austin (1990), exige contexto e intencionalidade, e serão sobre
esses aspectos que incidirão as críticas derridianas (1971), as quais Butler aderirá de forma
a complexificar e radicalizar o caráter construído das expressões de gênero, o que culminará
com sua reivindicação de completa desnaturalização dessas expressões. Nesse sentido, se para
Austin (1990), o campo de exercício dos atos de fala performativos pressupõe um contexto
de enunciação específico e um sujeito consciente e intencionado em sua ação, para Derrida
(1971) e Butler (1993, 1999, 2004), há uma relativização desses aspectos, o que possibilitará a
reconfiguração das próprias experiências performativas.
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dos atos que produz, de forma que, na teorização austiniana, acaba-se por impor a necessidade
da delimitação exaustiva do contexto (NAVARRO, 2008).
Devo considerar bem conhecido e evidente que as análises de Austin exigem um valor
de contexto em permanência, e mesmo de contexto exaustivamente determinável,
direta ou teleologicamente; e a longa lista de fracassos (infelicidades) do tipo variável
que podem afetar o acontecimento performativo se torna um elemento do que Austin
sempre chama de contexto total. Um desses elementos essenciais – e não um entre
outros – continua sendo classicamente a consciência, a presença consciente da
intenção do sujeito falante com relação à totalidade de seu ato locutório. Portanto, a
comunicação performativa volta a ser comunicação de um sentido intencional, mesmo
que esse sentido não tenha referência na forma de uma coisa ou de um estado de coisas
anterior ou exterior. Essa presença consciente dos enunciadores ou receptores que
participam da realização de um performativo, sua presença consciente e intencional
em toda a operação teleologicamente implica que nada escapa à totalização (p. 17)
(tradução nossa).
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é necessariamente uma repetição de um passado subsumido e que sua força reside
nesse peso histórico esquecido. Nesse sentido, para Derrida e para a filósofa, todo ato
singular não passa de um apelo à citação que apaga seu status como tal (DE SANTO,
2013, p. 379) (tradução nossa).
No que tange à iterabilidade, não é possível estabelecer um código prévio fixo que
sirva de estruturante unívoco dos enunciados, apesar de que a própria capacidade de repetição
possibilita a identificação de marcas implícitas que permitem o “deciframento” e transmissão
desse mesmo código (DERRIDA, 1971). Assim, o caráter iterável dos atos performativos
seria a caracecterística presente em todas as expressões dessa modalidade de comunicação.
Essa característica levaria a um não privilégio do contexto em relação às possibilidades de
ruptura presentes no processo de iterabilidade, que poderiam, inclusive, levar um determinado
enunciado a funcionar fora de seu contexto original (GARCÍA, 2003). No entanto, o que Derrida
pretende ao investir no conceito de iterabilidade não é negar as influências que os aspectos
contextuais operam nos atos performativos, ainda que não governados necessariamente por
uma intencionalidade consciente, mas chamar a atenção “[...] precisamente para o caráter
citacional, iterável ou até ritual, que exige que todas as ‘marcas’ representem seu próprio
caráter significante” (NAVARRO, 2008, p. 621) (tradução nossa).
É possível notar, assim, que não há em Derrida (1971) uma recusa dos aspectos
comunicacionais defendidos por Austin (1990) em sua teoria dos atos de fala, uma vez que
uma das principais características do conceito de iterabilidade não é a impossibilidade de
comunicação, mas exatamento o inverso disso. O que o filósofo expõe em suas críticas a Austin
é a impossibilidade de transformar o aspecto comunicativo do signo numa pressuposta verdade
metafísica anterior à própria enunciação, sendo necessário não apenas “[...] passar de um
conceito a outro, mas inverter e deslocar uma ordem conceitual tanto quanto a ordem conceitual
clássica” (p. 25) [[...] passar de un concepto a otro, sino em invertir y em desplazar un orden
conceptual tanto como el orden no conceptual clássico], sendo essa a finalidade primeira do
trabalho que Derrida (1971) denomina de desconstrução.
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É a partir desse deslocamento na análise que é possível defender a não necessidade
de consciência do sujeito do enunciado na emissão de atos performativos, o que, por fim,
permitiria a não saturação do contexto:
Para Derrida (1971), não é enquanto excessão que o fracasso ou erro deve ser pensado,
mas enquanto uma possibilidade sempre presente devido ao caráter aberto de qualquer ato
performativo, erro esse que pode, inclusive, alterar as condições necessárias para a produção
de performativos “felizes”. Nesse sentido,
[...] Austin exclui essa eventualidade (e a teoria geral que a explicaria) com uma
espécie de esforço lateral, lateralizante, mas, por isso, muito mais significativo. Ele
insiste no fato de que essa possibilidade permanece anormal, parasitária, que constitui
uma espécie de extenuação, mesmo de agonia da linguagem que deve ser mantida
fortemente à distância ou da qual é necessário desviar resolutamente (DERRIDA,
1971, p. 19) (tradução nossa).
Essa é uma característica dos atos performativos que contribuirá enormemente com
os desenvolvimentos teóricos no campo dos estudos de gênero que Butler (1993, 1999, 2004)
realiza através da incorporação do conceito de performatividade na análise da construção,
consolidação e manutenção das normatividades de gênero, bem como suas possibilidades de
subversão, uma vez que entra em cena a explicitação dos aspectos conflitivos das enunciações
performativas (NAVARRO, 2008). Nessa incorporação há destaque para a defesa derridiana
25
de que um enunciado performativo é sempre citação de outro enunciado, o que consolida uma
relação sempre aberta com o passado enquanto constituinte e o futuro enquanto algo a ser ainda
construído, uma vez que, devido a essa abertura constitutiva, todos os enunciados estão, em
alguma medida, condenados a fracassar, sendo essa uma de suas caractísticas estruturais (DE
SANTO, 2013, p. 378).
A partir desses pressupostos linguísticos foi possível a Butler construir uma ontologia
desontologizante da categoria gênero, de forma a explicitar seus aspectos arbitrários de
construção e consolidação baseados, predominantemte, numa matriz de inteligibilidade
heterossexual. Essa matriz deixa de ser pensada enquanto um processo natural, com origem
e baseado em uma expressão original de gênero, para ser analisada a partir de um processo
performativo de imitação sem original, de forma que,
Essa proposta ontológica reconhece que o gênero ‘é’ uma série de imitações de outros
atos, gestos e práticas. O gênero tomado como efeito de ações repetidas, substantivado
– e não substancial –, naturalizado – e não natural –, é explicado por Butler através
de uma categoria dinâmica que pode ser liberada de um agente prévio de ação (DE
SANTO, 2013, p. 382) (tradução nossa).
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Butler inseriu a questão do corpo na construção do performativo. Dessa forma, ao se falar
em performatividade em Butler (1999) fala-se de um sujeito de linguagem que não apenas
enuncia e cria realidades, mas que também é criado e materializado enquanto sujeito a partir
do performativo, forjando, reiterando e subvertendo a produção da linguagem e dos próprios
corpos por ela possibilitados enquanto espaços de enunciação.
[...] o feminismo deve tomar cuidado para não idealizar certas expressões de gênero
que, por sua vez, produzam novas formas de hierarquia e exclusão. Em particular,
opus-me aos regimes de verdade que estipulavam que certos tipos de expressões de
gênero eram falsas ou derivadas, e outras verdadeiras e originais (BUTLER, 1999, p.
VIII) (tradução nossa).
27
Portanto, esta filósofa acredita que um certo uso da categoria de mulheres gera os
efeitos opostos de uma liberação. Ela argumenta que as mulheres são os efeitos de
enunciados performativos elaborados num quadro heterosexista. Assim, o uso de tais
categorias de identidade é paradoxal, pois visa, por um lado, liberar o grupo-alvo
e, por outro lado, incluí-lo, pelo mesmo fato, em uma estrutura normativa rígida e
que, portanto, ignora o caráter fictício e construído dessa categoria (p. 69) (tradução
nossa).
É essa interpretação crítica que permite a Butler articular de forma precisa o campo
dos gêneros com a constituição, consolidação e manutenção de uma determinada organização
política e cultural, de forma que “[...] torna-se impossível separar ‘gênero’ das interseções
políticas e culturais nas quais é invariavelmente produzido e mantido” (BUTLER, 1999, p. 06)
(tradução nossa). Nesse sentido, antes de qualquer possibilidade de naturalização do sistema
de gênero binário, o que é defendido pela filósofa é a artificialidade dos construtos de gênero
que acabam, devido ao seu caráter repetitivo, naturalizando a relação entre uma determinada
anatomia, ou sexo, e expressões de gênero e sexualidade específicas.
Para Butler (1999), a ideia de um sistema de gênero que reflete diferenças sexuais naturais
não se sustenta, uma vez que é o próprio processo de naturalização que impõe essa relação de
mimetismo. Apesar de suas críticas em relação às perspectivas feministas que adotam para si
esse pressuposto, não é possível definir o pensamento de Judith Butler como pós feminista, uma
vez que, através de sua crítica, não há a intenção de suplantar as teorias e políticas feministas,
mas radicalizá-las através de uma crítica interna (BUTLER; TOHIDI, 2017). Esse aspecto
permite também destacar o não abandono da própria categoria mulheres, mas apenas uma
postura de uso estratégico dessa identidade para a ação política, mantendo o conceito aberto a
ressignificações para que esse não opere processos de exclusão que inviabilizem a agência de
sujeitos determinados (BARIL, 2007).
Essa relação intrínsica entre gênero e constituição identitária dos sujeitos é possível
devido a não conexão entre produção de gênero e a pré-existência de um sujeito intencionado
28
e consciente que elegeria seu gênero. Ou seja, o gênero, ainda que se tratando de um construto
social específico que engendra as identidades, não pressupõe um agente prévio que o produza,
o que levaria à conclusão da existência de um sujeito anterior às categorias de gênero. Nesse
sentido,
Essa matriz de gênero é uma das responsáveis pela delimitação do campo do humanamente
inteligível, mantendo assim relações de coerência que culminam com a determinação linear e
excludente entre sexo, gênero e sexualidade, numa dinâmica na qual o pertencimento a uma
das categorias binárias pré-estabelecidas impossibilita a identificação com seu par, bem como
determina os demais caracteres de sexo-gênero dos sujeitos (BUTLER, 1999).
29
Nesse sentido, o que Butler reinvidica é a necessidade de desnaturalização das identidades
sexuais e de gênero que permita o vislumbre dos gêneros não como realidades prévias aos
sujeitos, mas como um campo normativo que delimita o próprio espaço que possibilita, ou
não, a identificação dos sujeitos enquanto humanos. As expressões de gênero seriam, assim, a
postura em ato de uma cópia sem original que possibilitaria aos sujeitos seu ingresso no próprio
campo normativo da cultura. Ou seja, não haveria uma verdade ontológica dos gêneros, mas
uma construção artificial que, como principal ferramenta de consolidação, utilizaria o recurso
à naturalização dessas expressões.
30
Judith Butler, de forma que o caráter culturalmente construído das expressões de gênero é
explicitado, bem como as relações políticas que sustentam essa hierarquia. Nesse sentido,
Butler também insiste no fato de que ‘sexo’, gênero, sexualidade, orientação sexual
e identidade sexual não compartilham nenhum elo estrutural, necessário ou mesmo
metafísico. Ela lembra que esses vários elementos foram justapostos culturalmente
para se encaixarem em uma matriz de poder heteronormativa e heterosexista (BARIL,
2007, p. 63) (tradução nossa).
31
ocupa o conceito anteriormente estabelecido enquanto identidade de gênero, num processo no
qual o gênero deixa de ser entendido como algo que o sujeito é, para ser inserido no campo de
uma prática que o sujeito faz e que o produz como sujeito (BUTLER, 1999; LLOYD, 1999).
É o caráter prévio das normas de gênero em relação à experiência dos sujeitos sócio-
historicamente localizados que engendra relações normativas para a adesão dos sujeitos à
matriz de inteligibilidade no campo do gênero. Nesse sentido, uma série de estratégias sociais
opera para garantir a conformidade dos sujeitos às expressões de gênero o mais próximas
possíveis do ideal regulatório que as instituem. Sobre o caráter compulsório na imposição de
gêneros inteligíveis aos sujeitos Butler afirma:
32
existe uma ‘essência’ que o gênero expresse ou externalize, nem um ideal objetivo ao
qual o gênero aspira, e porque o gênero não é um fato, os vários atos de gênero criam
a idéia de gênero e, sem esses atos, não haveria absolutamente gênero. O gênero é,
portanto, uma construção que oculta regularmente sua gênese; o acordo coletivo tácito
de realizar, produzir e sustentar gêneros discretos e polares como ficções culturais
é obscurecido pela credibilidade dessas produções – e pelas punições que ocorrem
por não se concordar em acreditar nelas; a construção ‘compele’ nossa crença em
sua necessidade e naturalidade. As possibilidades históricas materializadas através
de vários estilos corporais nada mais são do que aquelas ficções culturais reguladas
punitivamente alternadamente incorporadas e desviadas sob coação (BUTLER, 1999,
p. 178) (tradução nossa).
Essa relação apontada por Butler explicita o campo no qual as “escolhas” de gênero
ocorrem. Nesse sentido, nem a leitura voluntarista nem a leitura determinista para a constituição
dos sujeitos generificados dão conta da complexidade do processo. Numa perspectiva
voluntarista, os sujeitos são pensados enquanto completamente autônomos na definição do seu
gênero, o que invisibiliza todos os processos normativos, com expressões de coação inclusas,
que delimitam as possibilidades dessa escolha. Já uma leitura determinista trata esse campo
normativo como completamente rígido, não passível de modificação ou subversão, o que acaba
por excluir qualquer possibilidade de agência do sujeito frente às determinações, sejam elas de
caráter natural ou social, do gênero.
Assim, em Butler, encontramos uma leitura que possibilita uma visão mais complexa
do processo de constituição dos sujeitos generificados. Nesse sentido, instituem-se relações
específicas que tanto constrangem os indivíduos em direção a uma matriz de inteligibilidade a
partir da instituição de normas, tabus e expectativas (CHAMBERS, 2007), o que impossibilita
a escolha do gênero enquanto processo descolado do campo social e político no qual ocorre
(SALIH, 2012), como também possibilitam a reformulação das normas na própria colocação
em ato da partitura de gênero a partir de citações não contextualizadas que podem, além de
produzir punições para os sujeitos que assim agem, modificar a própria matrix de gênero.
Dessa maneira,
Butler defende (ao longo de seu trabalho) que as práticas que produzem sujeitos
generificados também são os locais onde a agência crítica é possível. O gênero é
simultaneamente um mecanismo de constrangimento (um conjunto de normas que
nos definem como normal/anormal) e um local para a atividade produtiva (LLOYD,
1999, p. 200) (tradução nossa).
É através desse processo muitas vezes paradoxal que o sujeito generificado se institui,
de forma que se pode concluir que a matriz de gênero opera de forma indissociável da
produção da inteligibilidade humana. Isso ocorre a partir da delimitação da coerência entre
33
sexo, gênero e sexualidade enquanto uma relação naturalizada que engendra o sujeito moderno
(HAWKESWORTH, 1997). Nesse sentido, a partir da repetição dos atos estilizados de
gênero, o próprio campo do humanamento inteligível vai sendo instituído e, ao mesmo tempo,
reformulado, de forma que
34
2014, p.145). Essa luta deve pressupor a possibilidade de reconhecimento mútuo, dado que
só faz sentido a luta entre autoconsciências capazes de reconhecer uma a outra. A luta de vida
ou morte ocorre no âmbito da autodeterminação que tem por finalidade a negação do outro,
sendo indispensável o risco à vida para produção do reconhecimento enquanto autoconsciência
(MENESES, 2011).
[...] os dois momentos são como duas figuas opostas da consciência: uma, a
consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência
dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor,
outra é o escravo (HEGEL, 2014, p. 147).
A relação senhor-servo ocorre exatamente como saída do impasse da luta de vida e morte,
o que leva a passagem do primeiro momento do desejo enquanto apetite destrutivo ao desejo
de reconhecimento, no qual o outro mantêm-se na relação enquanto momento indispensável,
havendo a necessidade de que esse outro seja não apenas um ser vivo, mas também outra
autoconsciência. Assim, “o ser humano é formado apenas em termos de um desejo direcionado
a outro desejo, o que é – finalmente – em termos de um desejo de reconhecimento” (KOJÈVE,
1969, p. 07) (tradução nossa).
35
Essa relação estabelece um impasse, pois ao tentar realizar a noção de autoidentidade o
senhor procura estabelecer uma relação imediata consigo, mas isso inviabiliza o reconhecimento,
uma vez que esse depende de uma relação mútua com um outro. Ao contrário disso, o senhor
acaba por realizar um movimento de negação do outro, o servo, no entanto, não através da
destruição simples, marca da luta de vida ou morte, mas através da dominação (SAFATLE,
2007; MENESES, 2011).
O servo, por seu turno, ocupa na relação de dominação o lado da vida, da coisidade.
É servo por medo da morte e pela possibilidade que essa condição lhe dá de manter a vida,
sendo através da servidão que ocorre a reconciliação com a objetividade necessária para o
reconhecimento da consciência-de-si (MENESES, 2011).
36
As cenas provisórias de Hegel, o estágio da autoconfiança, a luta pelo reconhecimento,
a dialética do senhor e do servo, são ficções instrutivas, formas de organizar o mundo
que se mostram limitadas demais para satisfazer o desejo do sujeito de se descobrir
como substância (p. 21) (tradução nossa).
O corpo torna-se ainda mais central nas análises desenvolvidas por Butler (1987)
por ser através dele que é possível a transformação do mundo. Assim, a partir das atividades
de transformação do mundo natural em reflexões humanas, o desejo pode manifestar-se, no
sentido de que, expresso através do trabalho, dá forma ao mundo com a finalidade de encontrar-
se refletido nele. Esse processo requer o reconhecimento mútuo entre autoconsciências, pois
só através dele o desejo pode compartilhar uma orientação em direção ao mundo material para
encontrar-se tanto nele quanto nas outras autoconsciências.
37
Esse vínculo forte entre corporeidade e dinâmica do desejo permite que Butler conecte
suas discussões acerca do desejo a partir de Hegel às suas discussões em torno do gênero.
Nesse âmbito, ela defende que a vida do desejo e a vida do gênero não podem ser facilmente
separadas, uma vez que o gênero é uma categoria identitária que, até o momento, tem sido
constitutiva das experiências humanas. Assim, da mesma maneira que o desejo em geral anseia
por reconhecimento, o gênero, sendo animado pelo desejo, também o desejará (BUTLER,
2004).
[...] o ‘eu’ pelo qual me encontro ao mesmo tempo constituído por normas e
dependente delas, mas que também se esforça para viver de maneira a manter uma
relação crítica e transformadora com elas. Isso não é fácil, porque o ‘eu’ se torna, até
certo ponto, irreconhecível, ameaçado de inviabilidade, tornando-se completamente
desfeito quando deixa de incorporar a norma de forma a tornar esse ‘eu’ totalmente
reconhecível (p.03) (tradução nossa).
É através dessa luta que ocorrem os processos de violência de gênero. Essa se dá devido
a negação de reconhecimento do outro que não se adequa às normas de gênero instituindo-se
38
um sistema binário (masculino-feminino) de inteligibilidade humana, sistema esse ancorado
na genitália para a instituição de um sistema de sexo-gênero-desejo linear (BUTLER, 1999). A
negação do outro se dá, assim, através da negação de seu corpo, o que corrobora com a conexão
entre desejo e corpo defendida por Butler (1987, 2004), expressando-se através da resistência em
repensar os parêmetros de inteligibilidade para além da reprodução performativa naturalizada
dos gêneros e dos corpos (BUTLER, 1993, 1999, 2004). Nesse sentido, a violência de gênero
“[...] emerge de um profundo desejo de manter a ordem do gênero binário natural ou necessária,
de fazer dela uma estrutura, natural ou cultural, ou ambas, à qual nenhum humano possa se
opor e ainda permanecer humano” (BUTLER, 2004, p. 35) (tradução nossa), desejo esse que
pode ser entendido enquanto mais uma tentativa da autoconsciência negar a necessidade de um
outro para tornar-se verdadeira.
Hegel nos deu uma noção extática do eu que é, necessariamente, fora de si, não é
idêntica a si mesma, diferenciada desde o início. É o eu aqui que considera sua reflexão
ali, mas está igualmente ali, refletido e refletindo. Sua ontologia é precisamente ser
dividido e estendido de maneiras irrecuperáveis. De fato, qualquer que seja o eu que
emerge no curso da Fenomenologia do Espírito, ele está sempre a uma distância
temporal de sua aparência anterior; é transformado através do seu encontro com a
alteridade, não para voltar a si mesmo, mas para se tornar um eu que nunca foi.
A diferença o lança para um futuro irreversível. Ser um eu é, nesses termos, estar
à distância de quem se é, não gozar da prerrogativa da identidade própria (o que
Hegel chama de autoconfiança), mas ser lançado, sempre, fora de si mesmo, outro em
relação a si mesmo (BUTLER, 2004, p. 148) (tradução nossa).
Para Butler (2004), é a partir dessa relação extática na dinâmica do reconhecimento que
seria possível passar dos momentos marcados pela vulnerabilidade das figuras narradas por
39
Hegel, para um momento no qual a lógica de destruição é colocada em questão devido à sua
relação intrínseca com o outro, na qual o eu nunca é por conta própria ou isolado, mas estabelece
uma relação ética com o outro que não permite o apagamento de sua própria alteridade.
Com essa discussão, Butler (2005) defende que, na Fenomelogia do Espírito e suas
estruturas diádicas de reconhecimento, o que Hegel narrou não pretendeu ser a última palavra
acerca da questão, mas estágios que podem e devem ser superados se há a pretensão da
produção ética de vidas humanamente viáveis. Nesse sentido, ela acaba indo além da relação
entre autoconsciências explícitas no texto de Hegel, ampliando os aspectos desenvolvidos na
Fenomenologia para os campos sociais e políticos, que apenas de forma discreta e implícita
aparecem no texto de Hegel (BOUTON, 2009); sendo possível afirmar que, em Butler, o foco
das discussões em torno do reconhecimento é comunitário (STARK, 2014), em detrimento do
individual ou intersubjetivo de forma estrita.
40
o reconhecimento seria a necessária obediência, ou auto-condicionamento (BOUTON, 2009),
para a constituição de si. No entanto, as formas de sujeição através do reconhecimento não
estariam definidas a priori, de forma que seria necessária a reiterada atualização do campo
ético para que o reconhecimento possa se dar de forma a abarcar uma maior parcela das pessoas
dentro do marco do humanamente inteligível.
São essas torções do conceito de reconhecimento que permitem à autora, sem negar
as importantes contribuições do pensamento de Hegel e mais pela necessidade de manter seu
campo de teorização aberto, declarar-se como pós-hegeliana (BUTLER, 2005). Assim, é o
caráter aberto da apropriação que Butler realiza do reconhecimento a partir de Hegel (STARK,
2014) que permite o imperativo ético de constante redefinição do que seria a efetivação do
reconhecimento, tanto no campo teórico como no campo político, sempre não completamente
satisfeito para manter-se aberto à alteridade.
41
Essa leitura da fabricação performativa do gênero permite uma conexão forte entre
inteligibilidade e normas sociais, uma vez que seriam essas que sustentariam a estrutura binária
de gênero. Além disso, ao investir no campo sociocultural enquanto espaço privilegiado da
fabricação dos gêneros, Butler prescinde de uma ontologia do gênero que tornaria indispensável
o investimento num sujeito autônomo, que seria o único responsável por expressar a “verdade”
de seu gênero. Nesse sentido,
É nessa altura que Butler opera a crítica identitária do gênero, uma vez que as identidades,
na maior parte das vezes, acabam por reforçar a naturalização das expressões de gênero, o
que dificultaria a reformulação do campo do humanamente inteligível que possibilitaria o
reconhecimento de um maior leque de experiências sexuais e de gênero. É num sentido de
explicitar o caráter dinâmico das identidades que Butler exercitará sua crítica performativa:
A primeira coisa a entender sobre performatividade é o que ela não é: identidades não
são feitas em um único momento no tempo. Elas são feitas de novo e mais uma vez.
Isso não significa que as identidades são radicalmente novas toda vez que são criadas,
mas apenas que leva algum tempo para que sejam consolidadas; elas são dinâmicas e
históricas (BUTLER; REDDY, 2004, p. 116) (tradução nossa).
42
qualquer apelo ao natural, universal ou transcendental (JAGGER, 2008). Nesse sentido, as
identidades de sexo-gênero não representariam uma essência humana, mas o campo de disputa
na qual a própria ideia do que viria a ser humano ocorre, de forma que a possibilidade de
modificação do próprio marco de intelegibilidade torna-se possível. É a partir dessa leitura que
Safatle (2006) afirma:
Apenas a partir dessa leitura crítica do conceito de identidade seria viável a ruptura
com processos de naturalização identitária, de forma a tornar possível a reformulação do
campo “representativo” no que tange aos gêneros e sexualidades. Nesse sentido, ao invés de
um investimento nas identidades enquanto campo de possibilidade de construção de agência,
o que Butler realiza é uma inflexão em direção à desestabilização performativa das identidades
como forma de ampliação das possibilidades de produção subjetiva (SAFATLE, 2006). Para
isso, a filósofa realiza uma “crítica paródica que, por inaugurar um deslocamento perpétuo de
identidades, teria a força de sugerir a abertura a processos de ressignificação capazes de se
disseminarem na malha social” (SAFATLE, 2006, p. 53).
A noção de paródia de gênero aqui defendida não supõe que exista um original que
essas identidades paródicas imitem. De fato, a paródia está na própria noção de um
original [...] então a paródia de gênero revela que a identidade original após a qual o
gênero se modifica é uma imitação sem origem (BUTLER, 1999, p. 175) (tradução
nossa).
43
próxima aos ideais normativos de sexo-gênero. Nesse sentido, a experiência drag seria, para a
autora, a expressão mais explícita do modelo imitativo de fabricação do gênero na produção de
todas as subjetividades, razão pela qual Butler se apropria dessa experiência como um modelo
possível para a subversão das identidades. Para a autora, “[...] drag é subversivo na medida em
que reflete sobre a estrutura imitativa pela qual o gênero hegemônico é produzido e contesta
a reivindicação da heterossexualidade de naturalidade e originalidade” (BUTLER, 1993, p.
125) (tradução nossa). Dessa forma, não haveria experiências de gênero mais válidas que
outras, mas apenas aquelas que se aproximam mais dos ideiais regulatórios em suas produções
subjetivas, sendo essas igualmente baseadas na imitação (BUTLER, 1993, 1999).
Devido a esse caráter aberto na perspectiva performativa do gênero defendida por Butler,
o gênero pode ser pensando muito mais como uma expressão de atos que como expressão do
que os sujeitos são. Essa leitura permite a desnaturalização das expressões de gênero, uma vez
que insere, nas discussões acerca da apropriação do gênero pelos sujeitos, a possibilidade de
se pensar as possíveis “falhas” que podem possibilitar novas configurações no que tange às
experiências sexuais e de gênero, processo no qual
O eu permanente de gênero será estruturado por atos repetidos que buscam aproximar
o ideal de uma base substancial de identidade, mas que, em sua descontinuidade
ocasional, revelam a temporalidade e contingência do fundamento dessa “base”
(BUTLER, 1999, p. 179) (tradução nossa).
44
Essa postura do gênero em ato depende da incorporação de gestos e performances na
produção do próprio corpo dos sujeitos. Nesse sentido, o corpo pode ser também desnaturalizado,
uma vez que através dos corpos, notadamente a partir de atos performativos que destoam
dos moldes normativos que se pretendem naturais, que ele pode ser pensado enquanto
performativamente constituído. Esse processo explicita a relação intrínseca entre gênero e
corpo, o que leva Butler a questionar a dicotomia entre natureza e cultura que realiza uma
distinção radical entre corpo, que ocuparia o lugar da natureza, e gênero, que seria expressão
da cultura. Asssim, extrapolando essa dicotomia o gênero seria performativo para Butler,
[...] porque existe apenas nos atos que o constituem. Ou, de forma menos oblíqua,
uma identidade de gênero é produzida por meio de gestos, práticas, declarações,
ações e movimentos corporais específicos. Uma identidade de gênero é, portanto,
um efeito de fazer gênero. A teoria da performatividade de gênero permite a Butler,
então, avançar em direção a uma teoria inovadora da subjetividade (LLOYD, 2007,
p. 1431) (tradução nossa).
45
2. CORPO, ABJEÇÃO E A METAFÍSICA DA SUBSTÂNCIA
Butler explicita a relação que, pensar o corpo enquanto campo performativo, estabelece
entre o linguístico e o “teatral” ou performático. Para a autora, esses dois aspectos não podem
ser pensados separadamente, estando em constante relação na fabricação de corpos e gêneros
inteligíveis. Sobre esse aspecto, ela afirma:
[...] minha teoria às vezes oscila entre entender a performatividade como lingüística
e considerá-la enquanto teatral. Cheguei a pensar que os dois são invariavelmente
relacionados, quiasmaticamente, e que uma reconsideração do ato de fala como
uma instância de poder invariavelmente chama a atenção tanto para suas dimensões
teatrais como linguísticas (BUTLER, 1999. p. XXV) (tradução nossa).
Nesse sentido, o corpo não seria algo que pode ser analisado enquanto apenas
materialmente constituído, o que tampouco leva a filósofa a defender uma constituição corporal
estritamente linguística. Ou seja, a constituição dos sujeitos passa pela materialidade dos corpos,
no entanto, essa materialidade é sempre interpretada, significada e ressignificada pela cultura.
Com essa leitura acerca da fabricação também linguística dos corpos (1993), o que Butler
propõe é que o corpo em sua materialidade, inteligível apenas a partir de referências linguísticas
e culturais específicas, não é meramente descrito, mas, enquanto enunciado performativo, ele é
forjado no processo mesmo de enunciação (BUTLER, 1993; DIAZ, 2012).
46
Para defender esse argumento, Butler recorre à crítica das leituras hegemônicas acerca
da diferença entre sexo e gênero, a saber: o sexo ocupa o lugar da natureza enquanto realidade
material inegável, ao passo que o gênero se relaciona aos significados sociais e culturais que
esse mesmo corpo ganharia em seu encontro com a cultura. No entanto,
Esse mesmo conceito de sexo como matéria, sexo como instrumento de significação
cultural [...] é uma formação discursiva que atua como base naturalizada para a
distinção natureza/cultura e as estratégias de dominação que essa distinção apóia. A
relação binária entre cultura e natureza promove uma relação de hierarquia na qual
a cultura “impõe” livremente significado à natureza e, portanto, a torna um “Outro”
a ser apropriado para seus próprios usos ilimitados, salvaguardando a idealidade do
significante e da estrutura de significação no modelo de dominação (BUTLER, 1999,
p. 47-8) (tradução nossa).
Nesse sentido, não seria viável pensar o sexo como instância material pré-discursiva, pois
qualquer menção a uma realidade que antecede o discurso já é ela mesma forjada discursivamente.
Nesse processo, nem a materialidade antecede o discurso, nem o discurso engendra de forma
absoluta a matéria (BUTLER, 1998). O que Butler sugere com esse argumento é que não é
possível resumir nem a matéria à pura discursividade, como tampouco defender a existência
de uma materialidade que prescinde do discurso para ganhar inteligibilidade. Sinteticamente,
é possível dizer que “[...] a afirmação do sexo sempre ocorre dentro de um processo discursivo
de materialização no qual a mesma afirmação do sexo é formada” (DIAZ, 2012, p. 1264)
(tradução nossa).
O discurso acerca do sexo seria, assim, formador da própria categoria sexo e de sua
partição binária. No entanto, afirmar isso não significa, em Butler, que seria o discurso que
originaria o sexo, mas sim que não é possível a referência a um corpo puro ou original que
se encontra num campo pré-discurso ou antecedente à cultura que o interpreta, haja vista que
qualquer menção a uma esfera antecedente ao discurso já é ela mesma forjada discursivamente
em sua delimitação (BUTLER, 1993).
47
Com a defesa desse caráter construído linguística e performativamente do corpo, Butler
ataca uma distinção muito cara às discussões em torno do gênero que a precederam. Nesse
sentido, a filósofa questiona a distinção radical entre sexo e gênero que coloca o gênero como
uma construção posterior ao sexo, numa espécie de ingresso da cultura nos corpos. Ela irá
defender que tanto o sexo como o gênero são fabricações e se relacionam com a criação e
manutenção de determinada matriz de inteligibilidade que, para ser sustentada, naturaliza o
sexo de forma a justificar o binarismo de gênero. Nesse processo, seria explicitado exatamente
o caráter construído do sexo, de forma que
[...] o “sexo” referido como anterior ao gênero será em si uma postulação, uma
construção, oferecida pela linguagem, como aquela que é anterior à linguagem, antes
da construção. Mas esse sexo postulado como anterior à construção se tornará, em
virtude do postulado, o efeito desse mesmo postulado, a construção da construção. Se
o gênero é a construção social do sexo, e se não há acesso a esse “sexo”, exceto por
meio de sua construção, parece não apenas que o sexo é absorvido pelo gênero, mas que
“sexo” se torna algo como uma ficção, talvez uma fantasia, instalada retroativamente
em um local pré-lingüístico para o qual não há acesso direto (BUTLER, 1993, p. 05)
(tradução nossa).
Disso depreende-se que, no que tange à fabricação performativa do corpo defendida por
Butler, as relações entre matéria e linguagem produzem uma interdependência necessária que
inviabiliza pensar esses dois aspectos de forma separada (NAVARRO, 2008). Isso ocorre pela
impossibilidade de se pensar o corpo e a matéria fora de qualquer marco de inteligibilidade
cultural que é prévio aos sujeitos de enunciação e, assim,
[...] não faz sentido aceitar uma distinção entre materialidade/construção, porque
simplesmente não há como sairmos de nossas estruturas culturais ou, para ser mais
precisa, fora da linguagem e das significações, a fim de obter algo essencial, incluindo,
neste caso, a matéria ou materialidade do corpo (JAGGER, 2008, p. 1089) (tradução
nossa).
48
A realidade material estaria, assim, sempre associada a determinadas estruturas
linguísticas e epistemológicas que viabilizam a sua apreensão, o que demarca a necessária
relação entre materialidade e linguagem (NAVARRO, 2008). A essa altura a própria distinção
entre realidade material ou corporal e construção se torna impossível, dado que não se recorre
à ideia de uma matéria que ganharia posteriormente sentido através da cultura, mas de marcos
culturais que, de forma concomitante ao ingresso do corpo na cultura, possibilita a sua apreensão
em sua materialidade.
Para Butler, não ocorre do corpo em sua materialidade ser pensado enquanto um
construto meramente linguístico. O que se opera em sua construção teórica é a conexão entre
essa materialidade e o campo discursivo que a torna inteligível, dado que qualquer ideia que se
tenha acerca do que é o corpo passa, necessariamente, pela sua conexão com a linguagem, de
forma que “qualquer teoria do corpo culturalmente construído [...] deve questionar ‘o corpo’
como uma construção de generalidade suspeita quando é figurada como passiva e anterior ao
discurso” (BUTLER, 1999, p. 164) (tradução nossa).
Não se trata apenas de explorar o processo de construção dessa ideia de ‘matéria’ (ou
ideias de matéria, porque obviamente não é um conceito fornecido com uma única
história), mas também de entender alguns dos problemas que surgem da conjugação,
por um lado, das limitações do discurso de considerar o assunto a partir de uma
exterioridade absoluta, transcendente ao meio discursivo em que é apresentado e, por
outro, a materialidade própria de todo significante linguístico, sem o qual nenhum
efeito de significação poderia ser considerado (p. 1620) (tradução nossa).
49
Não haveria, assim, materialidade prévia a ser acessada pelos discursos, uma vez que,
ao acessar a matéria já estamos também inseridos no discurso. No entanto, isso é diferente de
dizer que o corpo é ele mesmo apenas um discurso, pois se estabelece a relação entre corpo e
linguagem exatamente devido à impossibilidade da linguagem conectar-se com algo que tenha
sido imposto enquanto radicalmente exterior a ela (DIAZ, 2012). É nesse sentido que Butler
afirma em entrevista concedida a Reddy (2004) que “impressões culturais no corpo tornam-se
parte da própria fisiologia do corpo, de modo que torna-se impossível separar o biológico do
cultural das formas que algumas pessoas costumavam fazer” (p. 118) (tradução nossa), não
sendo possível a radical distinção entre matéria e linguagem.
Com isso, fica claro que, para Butler, não há realidade além da linguagem a qual se
possa acessar de alguma forma (DIAZ, 2012). Para a filósofa, até mesmo “o esforço para
descrever a matéria é sempre apenas isso: uma escrita sobre o corpo, uma materialização do
corpo somente na e através da linguagem” (CHAMBERS, 2007, p. 48) (tradução nossa).
Dessa forma, matéria e sentido estão conectados de forma inseparável num processo no qual
materializar é, ao mesmo tempo, significar. A partir dessa perspectiva teórica, Butler constrói
uma teoria que acaba por questionar pressupostos importantes no que tange à definição do
corpo e, consequentemente, da diferença sexual (LLOYD, 2007).
Nesse pensamento, do ponto de vista epistemológico, a autora acaba por rever a própria
ideia do que venha a ser algo construído através da linguagem e da cultura. Nesse sentido, ela
opera o questionamento do lugar do construído no pensamento e na vida dos sujeitos de forma
a explicitar a centralidade que as construções têm na própria consolidação dos sujeitos. É a
partir desses pressupostos que ela questionará:
[...] por que o que é construído é entendido como algo com caráter artificial e
dispensável? O que devemos fazer de construções sem as quais não poderíamos
pensar, viver, absolutamente fazer sentido, aquelas que adquiriram para nós um tipo
de necessidade? Existem certas construções do corpo constitutivas nesse sentido:
que não poderíamos operar sem elas, sem as quais não haveria “eu”, nem “nós”?
Pensar o corpo como construído exige repensar o significado da própria construção
(BUTLER, 1993, p. XI) (tradução nossa).
É essa forma de vislumbrar o caráter construído dos corpos que permitirá a ela, assim
como faz em relação ao gênero, defender o caráter performativo do corpo. Pensar o corpo
enquanto performativo explicita o aspecto normativo inerente aos processos de significação
que os corpos ganham através da linguagem, num processo no qual os discursos sobre o corpo
não têm uma função meramente descritiva (DIAZ, 2012). “Declarar, como faz Butler, que o
sexo é sempre (‘em alguma medida’) performativo é declarar que os corpos não são meramente
descritos; eles são sempre constituídos no ato da descrição” (SALIH, 2012 p. 124-5).
50
A ideia de elaboração performativa do sexo não culmina na defesa de que este seja uma
mera ficção linguística e, logo, passível de ser eliminada enquanto construto que faz parte da
constituição das subjetividades. Pensar o sexo enquanto enquanto performativo, na verdade,
explicita as relações intrínsecas entre esse e o espaço da cultura que possibilita os limites da
inteligibilidade humana. Nesse sentido, antes de vislumbrar o sexo e os corpos como matéria
prévia à cultura e à linguagem, o que se trata na perspectiva de Butler é explicitar como
O chamado “extradiscursivo” não deixa de ser nomeado como tal por um exercício
discursivo do qual não pode alcançar a libertação que exige. E essa operação decide
o que é material, qual é o objeto a que nos referimos, é uma operação de seleção, de
certa violência, que define o que está incluído na categoria sexo, de corpo material, e
o que é excluído (DIAZ, 2012, p. 1271) (tradução nossa).
O que ganha centralidade nessa interpretação do sexo e dos corpos é o campo social no
qual a matéria ganha inteligibilidade. É nesse sentido que Butler irá contestar o caráter imutável
do sexo, dado que “[...] talvez esse construto chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído
quanto o gênero; na verdade, talvez já tenha sido sempre gênero, com a conseqüência de que
a distinção entre sexo e gênero acaba sendo nenhuma” (BUTLER, 1999, p. 10-11) (tradução
nossa). Com essa afirmação, o que Butler explicita é o caráter social da designação do que
seria o sexo, de forma que a superfície corporal, que não é negada em momento algum pela
filósofa, tem que passar por um processo de incorporação das normas culturais, essas repetidas
e reinterpretadas numa dinâmica que é, por sua vez, linguístico-discursiva, logo, performativa
(NAVARRO, 2008).
51
O que fica claro a partir das discussões empreendidas por Butler é que a materialidade
dos corpos não é independente dos discursos sociais que, no fim, dão inteligibilidade e existência
a eles (MARTÍNEZ, 2015). Nesse sentido, a autora opera não a criação de uma ontologia dos
corpos, mas a análise das condições específicas sob as quais os corpos são impostos enquanto
sexuados. Martínez (2015) explica essa forma de pensar a materialidade dos corpos em Butler
a partir da escolha da autora em focar não apenas na questão da matéria, mas da materialização,
o que permite uma análise processual dessa dinâmica:
Seu aporte para contribuir com essa modelização teórica é trocar a idéia de matéria
corporal/sexo pela de materialização, como um processo comandado por discursos
regulatórios e arranjos de poder. Assim, a materialidade do corpo sexuado é
enquadrada em um processo de produção forçada desde o início, nos diz Butler. É
uma designação de sexo forçada, imposta por um aparato regulatório que impele
compulsivamente à heterossexualidade (p. 329) (tradução nossa).
O que Butler provoca com essa perspectiva é uma leitura que mostra o caráter material
do próprio discurso, uma vez que esse não opera de forma descolada dos corpos. É na relação
entre matéria e discurso que o próprio corpo ganha inteligibilidade, sendo essa regulada por
ideais normativos que limitam necessariamente as experiências subjetivas no que tange aos
aspectos de sexo-gênero. Assim, em Butler, “Em vez de negar a realidade da materialidade,
como os críticos tendem a reivindicar, o foco está no papel da linguagem e da significação (e
nas exclusões, repudiações e não inteligibilidades) na produção de qualquer aparente realidade
em sua materialidade (JAGGER, 2008, p. 264) (tradução nossa).
Apesar de explicitar o caráter imposto da produção sexuada dos corpos, Butler não
incorre na defesa de impossibilidade de modificação dessas relações. Nesse sentido, a partir de
seu pensamento que reconceitualiza a materialidade dos corpos, se torna também possível, uma
vez vislumbrado o caráter construído dos sexos, pensar outras possibilidades que engendrem
marcos de inteligibilidade mais abertos à multiplicidade. Nesse sentido, ela acaba por denunciar
o aspecto excludente que o processo de incorporação das normas engendra, o que justificaria,
inclusive, o esforço em pensar esse movimento. Sobre isso ela afirma:
52
O processo de produção dos corpos sexuados em Butler através da produção de um
campo de inteligibilidade está intimamente relacionado à produção do corpo enquanto algo a
que se deve atribuir um gênero. Isso ocorre devido à noção de que o corpo seria o definidor
das possibilidades de gênero. Nesse sentido, para dois sexos, haveriam apenas dois gêneros
que imprimiriam a cultura nos corpos sexuados (BUTLER, 1999). No entanto, para a filósofa,
ao se defender essa dicotomia, o que ocorre é, na verdade, o apagamento do construto do
sexo, uma vez que, ao se defender que os sexos ganham sentido numa relação de continuidade
estabelecida com os gêneros, o sexo acaba por ser absorvido pela própria ideia de gênero.
Sobre isso, ela afirma:
Se o gênero consiste nos significados sociais que o sexo assume, então o sexo não
acumula significados sociais como propriedades aditivas, mas é substituído pelos
significados sociais que assume; o sexo é abandonado no decurso dessa assunção,
e o gênero surge, não como um termo em uma relação contínua de oposição ao
sexo, mas como o termo que absorve e desloca o “sexo”, a marca de sua completa
substancialização em gênero ou o que, de um ponto de vista materialista, pode
constituir uma completa dessubstancialização (BUTLER, 1993, p. 05) (tradução
nossa).
É a partir dessa crítica que Butler defende que, à semelhança dos gêneros, no que tange
aos sexos, também há um movimento de tornar-se que se relaciona diretamente com a própria
noção binária de gênero que nossa organização social sustenta. Devido a essa leitura é possível
à Butler destacar as relações entre gênero e sexo, o que não é o mesmo que eliminar a noção de
sexo, uma vez que o explicitado é não a inexistência dos sexos, mas seu caráter discursivamente
construído a partir de aparatos sociais e políticos específicos. Nesse processo, o corpo, não
sendo reduzível ao discurso, o excede e pode, inclusive, reformular as normas que o limitam.
Nesse sentido,
É interessante evitar um idealismo que reduz toda a matéria a signos, mas sem cair
em um realismo extremo que separa radicalmente a matéria dos signos. A primeira
posição ignora o fato de que a matéria não pode ser criada pelo discurso. O segundo
ignora o fato de que a matéria é e somente se materializa através do discurso. Ambos
ainda estão cegos para a simples verdade de que todos os signos são em si materiais
(MARTÍNEZ, 2015, p. 333) (tradução nossa).
53
normas de gênero, o que se reflete na própria construção de corpos sexuados que viabilizariam
a formação dos sujeitos generificados como forma de ingresso na cultura.
Se o sexo não limita o gênero, então talvez existam gêneros, formas de interpretar
culturalmente o corpo sexuado, que não são de modo algum restritos pela aparente
dualidade do sexo. Considerando a conseqüência adicional de que, se o gênero é algo
que alguém se torna – mas nunca pode ser – então o próprio gênero é um tipo de devir
ou atividade, e esse gênero não deve ser concebido como um substantivo, uma coisa
substancial ou um marcador cultural estático, mas sim como uma ação incessante e
repetida de algum tipo (BUTLER, 1999, p. 143) (tradução nossa).
54
É o caráter existente, porém negado, que melhor demarca o espaço da abjeção na
ordem simbólica. Assim, o abjeto torna-se um elemento não assimilado, mas que se relaciona
diretamente com o desejo de todos os sujeitos, a partir de uma relação que, ao negar a existência
do abjeto, acaba por demarcar as fronteiras do que pode ser reconhecido, bem como estabelece
um campo do interdito que desafia os próprios limites do desejo. Nesse sentido, a questão
da abjeção está conectada à emergência dos sujeitos, uma vez que “[...] abjeção não é um
estágio passageiro, mas um processo perpétuo que desempenha um papel central no projeto de
subjetividade” (TYLER, 2009, p. 80) (tradução nossa).
É por isso que a abjeção é exercitada quando um Outro toma meu lugar definindo o
que deveria ser o eu. Esse Outro necessariamente é precedente ao eu, uma vez que representa e
impõe a ordem simbólica que se apropria das subjetividades, possibilitando, paradoxalmente,
a constituição do próprio eu (KRISTEVA, 1982). É devido a essa relação necessariamente
conflituosa entre o abjeto e o Outro que, a partir das discussões de Kristeva, é possível pensar
ações políticas de inclusão e exclusão, como a que ocorre no campo dos gêneros. Assim, o
abjeto relaciona-se com o desejo e a cultura, encontrando-se na relação conflituosa entre esses
dois aspectos da produção de subjetividades, estabelecendo as fronteiras dos corpos individuais
e do corpo social (TYLER, 2009).
O abjeto pode ser compreendido tanto enquanto coisas quanto práticas, bem como as
forças a elas relacionadas, que se opõem ao enraizamento do ego, uma vez que se coloca entre o
que é e o que não é. É devido a essa característica que o abjeto é pensado por Kristeva enquanto
um elemento com potencial disruptivo no campo social (TYLER, 2009), muitas vezes forçando
as fronteiras estabelecidas pela ordem simbólica (KRISTEVA, 1982).
É exatamente nas bordas que o abjeto atua, pois, se as fronteiras são exatamente aquilo
que delimitam o que sou, o que inclui a própria experiência corporal, interessa ao ego estabelecer
de forma clara o que deve ser mantido exterior a mim, enquanto uma impossibilidade que
produz um movimento de recusa de qualquer ambiguidade. No entanto, a possibilidade da
ambiguidade segue enquanto ameaça ao ego, o que, paradoxalmente, permite sua própria
consolidação devido à manutenção das fronteiras. Sobre essa relação entre abjeção e produção
55
dos limites do próprio ego, Kristeva (1982) afirma: “Podemos chamá-la de fronteira; a abjeção
é acima de tudo ambiguidade. Porque, enquanto libera uma amarra, não exclui radicalmente o
sujeito de que trata – pelo contrário, a abjeção reconhece que está em perigo perpétuo” (p. 09)
(tradução nossa).
É devido a essa relação entre o abjeto e o ego que a autora afirma que a abjeção persiste
na produção das subjetividades nas formas de exclusão ou tabu. Sendo assim, por não poder ser
nem assimilado nem completamente esquecido, a relação que os sujeitos estabelecem com o
abjeto pode muitas vezes tomar feições fóbicas, sendo essa postura uma forma de evitação das
escolhas que o contato com o abjeto abrem enquanto possibilidades que distanciam o sujeito
do que foi estabelecido enquanto suas fronteiras (KRISTEVA, 1982).
Essa dinâmica não ocorre sem conflito para o ego, que é continuamente desafiado pelos
limites da abjeção, nesse sentido,
A expressão da fobia em torno do abjeto pode tomar diversas formas, que vão desde
expressões de nojo, passando pelo discurso de ódio, chegando até a possibilidade de violência
física. Assim, independente de sua maneira de expressão, a dinâmica fóbica institui uma força
de exclusão que acaba por afastar o abjeto de qualquer identificação como algo propriamente
humano (TYLER, 2009). É a partir dessa exclusão que a heterogeneidade é excluída, ainda que
imaginariamente, evitando assim o contato dos sujeitos com a tensão (HARRINGTON, 1998),
o que consolida as fronteiras e estabiliza o ego de forma identificada com a Lei (KRISTEVA,
1982).
Apesar disso, por sua proximidade fronteiriça, o abjeto pode exercer fascínio ativando
o desejo, o que gera uma relação paradoxal entre o ego e o abjeto. Para Kristeva (1982), essa
dinâmica ocorre através da reminiscência de conteúdos inconscientes que recusam a completa
diferenciação em relação ao abjeto, o que explicita a impossibilidade de uma divisão completa
entre o sujeito e objeto na dinâmica de estruturação psíquica.
Com isso, fica evidente o risco sempre iminente de “poluição” através do abjeto, o
que engendra o encrudescimento das lógicas de proibição, o que, paradoxalmente, reforça a
56
possibilidade de fascínio. Esse processo ocorre como forma de proteger as fronteiras psíquicas
do que deve ser encarado enquanto radicalmente outro, reforçando as fronteiras entre o eu e o
outro, entre o interno e o externo (KRISTEVA, 1982).
Butler defende que esse processo geral da formação psíquica ocorre também na
produção dos gêneros inteligíveis, de forma que a produção das fronteiras do que seriam os
gêneros reconhecidos passa, necessariamente, pela produção de abjeção em relação a uma
série de outras experiências sexuais e de gênero. Em sua leitura, a filósofa recorre à teorização
psicanalítica, sem, no entanto, aderir a seus pressupostos de forma completa.
57
com a defesa psicanalítica de que fora desse campo só é possível a psicose, o desligamento do
compartilhamento social.
No entanto, Butler (1999) defende que não há razão para que se recuse um amor sexual
original do filho pelo pai, por exemplo, de forma que a defesa freudiana da passagem pelo
Édipo marcado necessariamente pela heterossexualidade apenas referenda a recusa de que a
constituição do ego, que passa pela interiorização da identidade de gênero, é uma construção que
antes de adequar-se à ordem simbólica, é ela mesma responsável por construí-la e consolidá-la.
É nesse sentido que Butler (1999) afirma que “os limites para o ‘real’ são produzidos dentro da
heterossexualização naturalizada dos corpos, nos quais os fatos físicos servem como causas e
os desejos refletem os efeitos inexoráveis dessa fisicalidade” (p. 90) (tradução nossa).
[...] é se as formas que dizem produzir a vida corporal operam através da produção de
um domínio excluído que se limita e assombra o campo da vida corporal inteligível.
A lógica desta operação é, em certa medida, psicanalítica, uam vez que a força da
proibição produz o espectro de um retorno aterrorizante (BUTLER, 1993, p. 54)
(tradução nossa).
Assim, o que fica explícito na teoria de gênero de Judith Butler é o papel decisivo que
a ordem simbólica desempenha na criação de um marco cultural de inteligibilidade de gênero.
Para a autora, a questão principal de suas teorizações acerca dos corpos e gêneros relaciona-
se com a busca do entendimento em torno do que constituiria uma vida qualificada enquanto
humana, o que, antes de relacionar-se com uma naturalidade ou metafísica da espécie, diz
respeito a uma certa delimitação das relações de poder (BUTLER, 1999). Desse modo, ela
afirma que
58
Pode-se dizer, assim, que a ordem simbólica que se afirma como inevitável e imodificável
é, na realidade, performada. Nesse processo, a divisão generificada dos sujeitos atua como um
campo normativo que impõe seus critérios para que se acesse a própria condição de humano. É
por essa razão que em Butler é impossível descolar o gênero dos corpos que o tornam possíveis.
Assim, as fronteiras de gênero acabam por estar intimamente conectadas com a constituição
de inteligibilidade em torno dos corpos humanos, num processo que replica uma metafísica da
diferença sexual nas experiências que passam a ser generificadas (BUTLER, 1993).
O que se pode concluir a partir de Butler é a relação intrínseca entre ordem simbólica
e relações de poder. Nesse sentido, antes de ser um espaço de inserção do sujeito na cultura, o
simbólico opera movimentos de exclusão. Isso se dá devido à necessidade de identificação que
os indivíduos têm para firmarem-se enquanto sujeitos. Essa identificação opera por exclusão a
partir do momento em que, para constituírem-se enquanto sujeitos, é necessário a diferenciação
entre o que se é e o que não se pode ser, ou seja, o abjeto, o que estabelece as fronteiras entre o
pensável e o impensável, o inteligível e o seu oposto (MARTÍNEZ, 2015).
É através desse mecanismo que o corpo torna-se lugar privilegiado para a formação
subjetiva, sempre através de um processo normativo que acaba por reificar a ordem simbólica
enquanto inevitável, argumento que se sustenta principalmente devido a longa duração do poder
performativo, o que dificulta mudanças amplas em sua configuração (NAVARRO, 2008). Dessa
forma, é muito mais a proibição e a constituição das margens entre o inteligível e o abjeto que
forjam os gêneros e os corpos a partir de uma matriz binária, o que, segundo Butler (1993), nos
conecta inevitavelmente à questão dos critérios prévios de produção de inteligibilidade, pois
Assim, quando se fala de uma ordem simbólica que sustenta o binarismo de gênero
através da fabricação de corpos específicos, o que está em discussão é, na verdade, a constituição
de uma matriz cultural que opera enquanto marco normativo que possibilita, ou não, a inserção
dos indivíduos no campo da cultura, o que acaba por romper a distinção entre os aspectos
ontológicos e sociopolíticos (BUTLER, 2012).
É a partir da não adequação a essa matriz cultural que as identidades de gênero não
completamente enraizadas no binarismo são postas como falhas no desenvolvimento da
59
subjetividade ou até mesmo impossibilidades lógicas dentro do domínio dicotômico, o que
engendra sujeitos que são lançados à abjeção devido à sua inviabilidade nos marcos de
inteligibilidade instituídos (BUTLER, 1999, 1993).
Os termos políticos que visam estabelecer uma identidade segura ou coerente são
perturbados por esse fracasso da performatividade discursiva em estabelecer,
finalmente e completamente, a identidade a que se refere. A iterabilidade ressalta o
status não idêntico de tais termos; o exterior constitutivo significa que a identidade
sempre exige precisamente aquilo que não pode suportar (BUTLER, 1993, p. 188)
(tradução nossa).
60
desvio moral, seja pelo desvio patológico. No entanto, como afirma Butler (1999), o fora da
cultura não existe, uma vez que a própria interpretação acerca da experiência dos sujeitos
que não se adequam ao binarismo dos corpos e gêneros é realizada a partir do marco cultural
hegemônico, de forma que “esse ideal regulatório é então exposto como uma norma e uma
ficção que se disfarça como uma lei do desenvolvimento que regula o campo sexual que ele
pretende descrever” (BUTLER, 1999, p. 173) (tradução nossa).
Essa dinâmica explicita o aspecto contruído da abjeção. Assim, não é possível uma
separação completa do ponto de vista de produção cultural da inteligibilidade entre essa e o
abjeto. Isso ocorre devido à função de fronteira que o não inteligível na cultura ocupa, de forma
que o abjeto acaba por ganhar um espaço negativo no campo social. O que Butler explicita com
esse argumento é que o espaço normativo tanto institui as experiências e corpos inteligíveis,
como aqueles que são seu outro radical, não havendo contradição em se afirmar que o abjeto
também forma o domínio do que é possível e inteligível na cultural através de um exterior
constitutivo (BUTLER, 1993).
61
No entanto, quando Butler afirma que os corpos abjetos não contam enquanto corpos
verdadeiros, ela não recusa a materialidade dos corpos que não importam (BUTLER, 1993),
mas assinala que esses corpos ocupam um espaço específico através de uma existência
marginalizada, o que possibilita que atuem enquanto vidas que estão o tempo todo a reivindicar
reconhecimento (LLOYD, 2007), reivindicar alterações no campo simbólico que se pretende
como único possível, bem como imutável.
Ainda que Butler (1993, 1999) foque nas discussões em torno do gênero, a questão da
abjeção extrapola esse campo, uma vez que, como explicitado por Kristeva (1982), quando se
fala de abjeção, o que está em jogo é a própria entrada dos indíviduos na esfera simbólica e,
assim, a assunção ou não de uma subjetividade. Dessa forma, a abjeção diz respeito a todos os
corpos e experiências que não são consideradas como expressões genuinamente humanas para
o marco simbólico o qual desafiam (BUTLER, 1998).
O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas da vida social ‘não vivíveis’ e
‘inabitáveis’ que, no entanto, são densamente povoadas por aqueles que não gozam
do status de sujeito, mas cuja vida sob o signo do ‘não vivível’ é necessária para
circunscrever o domínio do sujeito. Essa zona de inabitabilidade constituirá o limite
definidor do domínio do sujeito […] (BUTLER, 1993, p. 03) (tradução nossa).
É devido a essa inserção num espaço nebuloso da cultura que Butler defenderá a
necessidade de alteração do campo simbólico como estratégia de ampliação do espectro de vidas
que contam enquanto importantes. Ora, o que se impõe nessa discussão é o estatuto ontológico
que as discussões em torno da abjeção possuem, uma vez que está em jogo a inserção de
determinados indivíduos na categoria humana (LLOYD, 2007), sendo a constituição simbólica
do que se considera enquanto uma vida humana que deve mudar para a consolidação de uma
estrutura social menos excludente.
62
A formação de um sujeito requer uma identificação com o fantasma normativo do
“sexo”, e essa identificação ocorre através de um repúdio que produz um domínio
de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir. É um repúdio que
cria a valência da “abjeção” e seu status para o sujeito como um espectro ameaçador.
Além disso, a materialização de um determinado sexo envolverá centralmente a
regulamentação de práticas de identificação, de modo que a identificação com a
abjeção do sexo seja persistentemente rejeitada (BUTLER, 1993, p. 03) (tradução
nossa).
63
Ao pensar a metafísica da substância, Butler desenvolve um aprofundamento acerca
do tema da materialidade dos corpos, uma vez que é tomando a corporeidade como ponto
de partida inevitável para a justificação da diferença sexual que a metafísica da substância
consolida-se. Consequentemente, o que a filósofa busca compreender é como a materialidade
dos corpos, a qual ela não recusa, passou a ser imposta como algo do campo do irredutível
ao invés de também construída do ponto de vista metafísico através de discursos e práticas
específicas (BUTLER, 1993).
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Essa incursão no campo da metafísica e epistemologia em Butler tem grande influência
do pensamento de Nietzsche, notadamente no que se refere às discussões empreendidas por
esse autor em sua Genealogia da moral (NIETZSCHE, 2013). Nessa obra, Nietzsche busca
traçar as origens dos conceitos de bem e mal, bom e mau partindo de algumas questões:
[...] de que modo inventou o homem estas apreciações de valor: o bem e o mal?
E que valor têm em si mesmas? Foram ou não favoráveis ao desenvolvimento da
humanidade? São um sintoma funesto do empobrecimento vital, de degeneração? Ou
indicam, pelo contrário, plenitude, força e vontade de viver, coragem, confiança no
futuro da vida? (NIETZSCHE, 2013, p. 25)
Em seu percurso para responder tais perguntas, o filósofo parte de uma postura cética
em relação a pretensa verdade dos conceitos por ele analisados. É dessa forma que Nietzsche
(2013) defende a necessidade do estabelecimento da crítica frente aos valores morais a partir
do conhecimento das condições e contextos nos quais esses surgiram e desenvolveram-se
enquanto postulados.
Para Nietzsche (2013), “com a ajuda de tais invenções, conseguiu a vida justificar
seu próprio ‘mal’; talvez hoje precisássemos de outras invenções, por exemplo, considerar a
vida como enigma, como um problema do conhecimento” (p. 67), o que explicita a intenção
do autor de não apenas identificar o funcionamento de uma determinada moral, mas também
questioná-la. Sendo o humano um ser que mede, aprecia e avalia valores, seria necessário,
assim, reiventá-los com a finalidade de produção de uma experiência de vida não pautada na
moralidade escrava valorizadora da crueldade e do castigo.
Evidentemente que essa alteração dos valores não é afirmada enquanto uma tarefa fácil,
uma vez que o questionamento dos padrões morais baseados no binarismo entre bem e mal
65
enquanto categorias antagônicas e excludentes é um ataque à própria crença humana em relação
a existência de uma verdade. Nesse sentido, todos que não se adequam a essa moralidade são
vistos enquanto devedores em relação aos imperativos morais e, assim, culpados:
O culpado é um devedor que não só não paga as vantagens obtidas, as suas dívidas,
como também ataca ao credor: a partir desse momento não só se priva de todos estes
bens e vantagens, como também será lembrada a importância desses bens. A cólera
do credor, isto é, da comunidade ofendida, constitui-o outra vez ao estado selvagem,
põe-no fora da lei, recusa-lhe a proteção e contra ele pode já cometer-se qualquer ato
de hostilidade (NIETZSCHE, 2013, p. 70).
Esse ataque que desperta cólera é, em Nietzsche, intencional. Assim, antes de questionar
a validade dos valores morais, o que o filófoso realiza é o questionamento da própria ideia de
verdade que subjaz à defesa da moral. Em outro momento de sua obra (NIETZSCHE, 2011) ele
já havia feito referência ao que denomina de pathos da verdade. Nele, a partir da capacidade
humana do esquecimento, imagina-se que a verdade é algo que se possui enquanto categoria
irrefutável, e isso inviabiliza o vislumbre da verdade enquanto “cascas vazias” (NIETZSCHE,
2011, p. 10) e possibilita a defesa da verdade como categoria estável e independente da criação
humana.
[...] na medida em que o homem, ao mesmo tempo por necessidade e por tédio,
quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é concluir a paz e, de acordo
com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o aspecto mais brutal do bellum
omnium contra omnes desapareça do seu mundo. Ora, este tratado de paz fornece
algo como um primeiro passo em vista de tal enigmático instinto de verdade. De
fato, aquilo que daqui em diante deve ser a “verdade” é então fixado, quer dizer,
é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a
legislação da linguagem vai agora fornecer também as primeiras leis da verdade,
pois, nesta ocasião e pela primeira vez, aparece uma oposição entre verdade e mentira
(NIETZSCHE, 2011, p. 09-10).
66
na delimitação do conceito de verdade, pois está no centro da questão não o estatuto mesmo
da verdade, mas os benefícios por ela trazidos, o que justifica a postura hostil em relação às
verdades com potencial destrutivo.
Se configura nesse cenário uma versão realista da verdade que estabelece as crenças
humanas enquanto aquilo que refletem de forma adequada a realidade. Para que isso se sustente
se recorrerá, assim, a uma pretensa objetividade em relação à verdade, defendida enquanto
independente do humano, que por seu turno entra em contato com as verdades do mundo através
de uma postura desinteressada e, por isso, neutra. O pathos da verdade, assim, consolida-se
instituindo a verdade como algo pré existente em relação ao humano, ao invés da ideia de que
a verdade é ela mesma constituída através da experiência humana (GEMES, 1992).
Ao se falar sobre as coisas da realidade humana, acredita-se no mais das vezes que se
possui ou que seja possível possuir um saber sobre as coisas propriamente. No entanto, Nietzsche
(2011) insiste que essas conclusões não passam de metáforas sem relação necessária e direta
com as coisas. Apesar dessa dinâmica metafórica e arbitrária, o que permite a manutenção na
67
crença na ideia da verdade das coisas e dos conceitos é a repetição compartilhada das metáforas.
Nesse sentido, Nietzsche (2011) afirma que ocorre uma produção de mentiras dentro de uma
dinâmica de convenção, denominada por ele de mentira de rebanho, que obriga os indivíduos
a não apenas mentir, mas esquecer a origem criada das verdades, essas passando a serem
defendidas enquanto realidades absolutas e fechadas em si mesmas.
A partir dessas ideias de Nietzsche fica explícito que esse processo não ocorre apenas
na vida cotidiana e não refletida. A filosofia e as ciências operariam da mesma maneira, dizendo
verdades que são desde sempre metáforas, através de abstrações esquecidas enquanto tais.
Estando o filósofo e o cientista também imersos na vida de rebanho, acabam por replicar em
suas áreas os aspectos que contribuem para a manutenção da paz no rebanho, pautando a ideia
de verdade muito mais num aspecto moral. Nesse sentido, a verdade passa a ser o que facilita
a vida em rebanho, e a mentira aquilo que a ameaça (SOBRINHO, 2011, p. 06).
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A operação dessa dicotomia ocorre devido ao desejo humano de dominar o mundo, o
que leva à criação dos conceitos que, em seguida, é esquecida enquanto tal. Assim, devido à sua
utilidade na manutenção da vida em rebanho, os conceitos humanos se tornam uma espécie de
segunda natureza, num processo que impõe um marco epistemológico a partir da expressão da
fraqueza como a mais pura verdade (GLENN, 2004).
Nietzsche (2011) defende não haver nada mais distante da certeza que essa maneira de
operar acerca das coisas, que ignora o arbitrário de sua própria fabricação: “Classificamos as
coisas segundo os gêneros, designamos l’arbre como masculino e a planta como feminino: que
transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone da certeza” (p. 10). Essas
classificações devem ser superadas para o pensamento do filósofo, que a partir dos conceitos
existentes parte em direção ao seu questionamento e fabricação de outras possibilidades. É
nesse sentido que Nietzsche utiliza as ideias como armas, e estas, antes de descrever a realidade,
a constroem (GEMES, 1992), pois, para ele,
Esta armadura e este chão gigantesco dos conceitos, aos quais o homem necessitado
se agarra durante a vida para assim se salvar, não é para o intelecto liberado senão um
andaime e um joguete para suas obras de arte mais audaciosas; e quando ele o quebra,
o parte em pedaços e o reconstrói juntando ironicamente as peças mais disparatadas
e separando as peças que se encaixam melhor, isto revela que ele não precisa mais
daquele expediente da indigência e que não se encontra mais guiado pelos conceitos,
mas pelas intuições. (NIETZSCHE, 2011, p. 20).
Encontraremos essa vocação também em Judith Butler, que opera a politização dos
conceitos que demarcam a constituição da diferença sexual enquanto um de seus objetivos
teóricos. Para ela, existem razões políticas para a substancialização dos gêneros numa
perspectiva binária (BUTLER, 1999), partindo desse pressuposto para a crítica à uma ontologia
do gênero que naturaliza as ideias e opressões a elas relacionadas.
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aos sujeitos, são afirmadas enquanto emergentes no momento de surgimento de cada um dos
corpos sexuados. Nesse processo, a natureza imporia sua lei que demarcaria a necessária
partição binária dos sexos e dos gêneros, sem a menção a qualquer tipo de constrangimento ou
mecanismo de poder que a sustente (RODRÍGUEZ, 2002). Esse processo possibilita um senso
de estabilidade nas experiências dos corpos e dos gêneros que apresentariam uma coerência
necessária principalmente no que se refere a uma continuidade entre genitália e gênero, e, ainda
depois, desse com um exercício específico de sexualidade (JAGGER, 2008).
Deve-se, dessa forma, historicizar essas categorias e a construção dos discursos que as
defendem enquanto naturais e, por isso, imodificáveis. Nesse sentido, é necessário interrogar a
ontologia enquanto algo que revela fundamentalmente a verdade das subjetividades e passar a
vê-las enquanto contingenciais e produtoras de efeitos de verdade, num processo de recusa de
seu caráter neutro e objetivo, insistindo, assim, no caráter político de suas fabricações (LLOYD,
1999). Apenas a partir disso será possível reconhecer que
70
Para romper com essa dinâmica, seria preciso explicitar o caráter de construção
ficcional dos corpos e dos gêneros, isso porque as narrativas em torno do sistema binário de
sexo e gênero instituem um momento anterior ao discurso que justificaria a naturalização dos
corpos. No entanto, Butler (1999) defende a impossibilidade de se recorrer a qualquer ideia de
anterioridade em relação ao discurso, uma vez que os termos utilizados, inclusive do ponto de
vista linguístico, são instituídos e utilizados necessariamente no mesmo momento de criação
das diferenças dos corpos e dos gêneros.
É a partir dessa perspectiva que Butler (1999, 1993) denuncia o caráter performativo da
construção não apenas dos gêneros, mas também dos corpos, no sentido de que os atos e signos
que atravessam os corpos são eles mesmos responsáveis pelas demarcações da inteligibilidade
de gênero. Assim, não seria possível pensar numa substância anterior à linguagem e à cultura
sobre a qual os signos seriam construídos, pois
É nessa altura de seu pensamento que Butler, assim como Nietzsche, interessa-se pelos
aspectos epistemológicos envolvidos na construção da metafísica da substância que impõe
a diferença sexual enquanto demarcador das diferenças de gênero. Nesse sentido, a autora
questiona os marcos através dos quais se percebe as subjetividades no que tange aos aspectos
dos gêneros e corpos, propondo que esses não podem ser acessados ou conhecidos enquanto
entidades ontológicas fixas e prévias ao discurso que os engendram. Isso ocorre devido ao fato
de que “qualquer tentativa de pensar, conversar ou escrever sobre isso, como ela compreende,
requer, portanto, o uso da linguagem. Como consequência, todo conhecimento e compreensão
acerca do corpo é mediado linguisticamente” (LLOYD, 2007, p. 2162) (tradução nossa).
71
perspectivas ontológicas que, pretendendo-se detentoras dos parâmetros de verdade acerca dos
corpos e dos gêneros, acabam apenas por referendar uma estrutura normativa excludente. No
entanto, é possível notar a partir da teoria de gênero de Judith Butler que os corpos e os gêneros
Não “são” nem o ser, ou o não ser, ou o nada; nem a essência ou a substância nem a
não-essência ou a não-substância, o acidente; nem natureza nem anti-natureza; nem
a ideia e sua ausência, ignorância; nem racionalidade e sua negativa, irracionalidade;
nem a universalidade e seus opostos, a particularidade e a singularidade, etc.,
etc. “A e não-A” nada mais são que efeitos performativos do discurso filosófico,
representações simbólicas de políticas e comunicações particulares e históricas
nas quais o sujeito masculino está envolvido, com o objetivo de dar legitimidade e
permanência às referidas situações particulares e históricas (NAVARRO, 2008, p.
272) (tradução nossa).
É a partir dessa dinâmica de ausência de uma ontologia fixa e imutável anterior à própria
cultura que Butler consolidará sua crítica às perspectivas políticas e epistemológicas identitárias
naturalizantes, que, via de regra, recorrem à metafísica da substância para legitimação de suas
categorizações excludentes e, no mais das vezes, binárias. Para a filósofa,
No que tange aos processos de naturalização, a questão dos corpos emerge enquanto
central, pois, devido à sua inegável realidade material, acabam por serem estabelecidos
enquanto ponto de partida para pensar a diferença de sexo-gênero. É por essa razão que Butler
(1993) privilegia as discussões em torno do corpo. Nesse sentido, a autora rejeita a dicotomia
entre mente e corpo e analisa do ponto de vista teórico e político a incidência dos discursos
na constituição dos corpos generificados, de forma a explicitar as relações entre sexo e gênero
enquanto constituintes das subjetividades a partir de uma matriz binária que encontra nas
diferenças entre as genitálias a justificativa para a partição binária dos gêneros (CHAMBERS,
2007).
72
de um marco discursivo específico. Assim, não haveria o corpo enquanto categoria irredutível
a partir do qual seria possível afirmar a verdade dos sexos, mas desde sempre discursos acerca
da realidade material dos corpos que os dividem através de um esquema binário e, por isso,
excludente, sendo a partir dessa divisão que se estabelece a ontologia dos gêneros atrelados
sempre aos corpos e, mais especificamente, às genitálias.
A questão da materialidade dos corpos deixa assim de ser, na filósofa, uma questão
estritamente natural para ser pensada no marco de uma materialização, dado que até mesmo o
conceito do que se entende enquanto matéria necessariamente passa pelo crivo da linguagem
e da cultura. “Nesse sentido, conhecer o significado de algo é saber como e por que importa,
onde ‘importar’ significa de uma só vez ‘materializar’ e ‘significar’” (BUTLER, 1993, p. 32)
(tradução nossa). A defesa realizada por Butler diz respeito à impossibilidade de pensar a
materialidade dos corpos fora da linguagem, num processo que primaria pela realidade
ontológica da diferença sexual enquanto ponto de partida para a consolidação das diferenças
de gênero. Assim, para Butler (1993),
Dessa forma, mais do que a busca por uma base irredutível para o estabelecimento da
diferença sexual, Butler propõe a problematização do próprio conceito de materialidade e,
consequentemente, da matriz de sexo-gênero binária. Isso ocorre devido à defesa que Butler
realiza acerca da constituição histórico-cultural dessa matriz, num sentido no qual se torna
impossível conceituar a própria materialidade dos corpos fora dos discursos hegemônicos
acerca do sexo e dos gêneros (MARTÍNEZ, 2015).
A partir disso não é possível afirmar que haja em Butler a redução da materialidade
dos corpos à linguagem, mas apenas uma conexão necessária e insuperável entre esses dois
aspectos. Assim, falar em materialidade da linguagem ou de uma linguagem performativa que
dá estatuto de realidade à matéria não é estabelecer uma indistinção entre elas. Em não havendo
73
oposição entre materialidade e linguagem, como pretendem defender os discursos que impõem
a diferença sexual como uma realidade inegável por prévia a qualquer imersão na linguagem e
na cultura, não é tampouco possível afirmar, por oposição, que matéria e linguagem tratam-se
da mesma coisa. As dinâmicas estabelecidas entre esses fatores são constantes. Em Butler, eles
estão sempre encontrando-se e colocando-se ao mesmo tempo enquanto além e aquém um do
outro. Sendo isso que permite à autora afirmar que
Essa perspectiva performativa para a análise dos processos de materialização dos corpos
permite a Butler (1993) questionar os marcos normativos da diferença sexual que estabelecem
uma leitura binária da experiência humana no âmbito do gênero. A partir disso, a autora refuta
qualquer pretensão de se pensar os corpos enquanto esfera ontológica e, por isso, pré-discursiva
e pré-política, apontando assim para uma agenda que, nos campos ético e cultural, possibilite a
defesa do pluralismo (CHAMBERS, 2007).
Esse processo impõe uma necessária relação de disputa em torno do que se vem a definir
enquanto uma vida propriamente humana, conceito sob o qual a matriz de sexo-gênero, baseada
na ideia de diferença sexual, não torna possível o ingresso de experiências disparatadas de seus
74
moldes, sendo isso que leva a pensadora a questionar a formação de dinâmicas de distribuição
desigual dos poderes no campo das experiências sexuais e de gênero, num sentido de que
“aqui, não é apenas uma questão de como o discurso fere os corpos, mas como certas lesões
estabelecem certos corpos nos limites das ontologias disponíveis, nos esquemas disponíveis de
inteligibilidade” (BUTLER, 1993, p. 224) (tradução nossa).
75
PARTE II
76
3. PODER E NORMA, DE FOUCAULT A BUTLER
Foucault é, muitas vezes, reconhecido como o teórico das relações de poder. Isso se deve
ao fato de que, ao longo de seu percurso intelectual, o autor foi aproximando-se de uma analítica
do poder construída de forma singular. Um dos aspectos que denotam essa singularidade na
teorização acerca do poder em Foucault é o fato do autor não buscar uma origem do poder ou
sua teoria. Nesse sentido, o que o filósofo defende é a existência de uma série de agenciamentos,
nos quais se cruzam discursos, práticas e instituições que forjam os sujeitos através de relações
de poder (REVEL, 2005), estas, por sua vez, nunca saturadas apenas pelas ideias de dominação
ou violência (MACHADO, 2016).
Essa concepção é exatamente o que justifica, para Foucault, não se falar exatamente do
poder, mas, principalmente, de relações de poder. Isso denota o caráter histórico que Foucault
credita às suas análises acerca do poder que são, por isso, sempre localizadas, levando em
consideração as transformações efetivas ou potenciais nessas relações, de forma a ser possível
afirmar que, em Foucault, “não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente
formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural,
uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2016,
p. 12).
A partir dessa concepção, o que pode ser realizada é uma análise sempre transitória das
relações de poder. Identificar não uma forma geral de funcionamento, mas a maneira como,
num determinado contexto e em determinada época, o poder é posto em circulação, como são
engendradas ações específicas que culminam com um determinado estado de coisas transitórias
e, ainda, em que direção seria possível agir para que ocorram transformações nas relações de
poder (PEZ, 2016). Sobre seu empreendimento teórico no campo do poder, bem como suas
especificidades, Foucault (2008a) afirma:
77
um início de teoria, não do que é o poder, mas do poder, contanto que se admita que
o poder não é, justamente, uma substância, um fluido, algo que decorreria disto ou
daquilo, mas simplesmente na medida em que se admita que o poder é um conjunto
de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou funcão e tema manter –
mesmo que não o consigam – justamente o poder. É um conjunto de procedimentos,
e é assim e somente assim que se poderia entender que a análise dos mecanismos de
poder dá início a algo como uma teoria do poder (p. 03-4).
Essa forma de compreender o poder permite a Foucault retirá-lo da esfera daquilo que
uns possuem em detrimento de outros, o que complexifica enormemente as análises em torno
da questão do poder. Assim, não haveria uma identidade específica para as relações de poder
que o localizariam numa instituição ou aparelho como o Estado, por exemplo (ESCOBAR,
1985). A forma do poder não seria apenas a da lei e das regras que limitam as possibilidades
subjetivas, mas, através de dinâmicas complexas e, muitas vezes, micropolíticas, as relações de
poder seriam elas mesmas as responsáveis por produzir os sujeitos (MAY, 1993), bem como,
em seu funcionamento, permitem o questionamento e a disputa desses espaços de formação
subjetiva através das lutas que emergem das múltiplas ramificações do poder (ESCOBAR,
1985).
Guattari (2007) analisa essa forma peculiar de vislumbrar o poder em Foucault como
o que permite conectar sua concepção de poder com a produção das subjetividades e com o
desejo, de forma que se pode
[...] notar que sua concepção muito particular de poder tem por consequência [...]
“estendê-lo”, se posso dizer, em direção do desejo. É assim que ele trata do poder
como de uma matéria que releva de um investimento, e não de uma lei do “tudo ou
nada”. Durante sua vida, Michel Foucault recusou encarar o poder como uma entidade
reificada. Para ele, as relações de poder e, por via de conseqüência, as estratégias de
luta não se resumem nunca a ser apenas simples relações de forças objetivas; elas
engajam os processos de subjetivação nisso que eles têm de mais essencial, de mais
irredutivelmente singular [...] (p. 37).
78
Isso ocorre pois, a partir das relações que muitas vezes Foucault denomina de saber-
poder, é exercitada uma dinâmica de consolidação ou questionamento dos funcionamentos das
instituições e de formas específicas de organização do poder. Nesse sentido, uma gama de saberes
é posta em movimento para a criação, consolidação e manutenção de dinâmicas específicas de
poder, assim como é através do poder que esses saberes são constituídos enquanto saberes
verdadeiros que, por isso, justificam as relações de poder que sustentam. É essa constância que
possibilita a emergência das normas (PEZ, 2016) culminando com a politização dos saberes e
com a conexão entre os poderes e epistemologia.
A primeira modalidade de poder analisada por Foucault foi a que ele denominou de
poder disciplinar. Nessa forma de organização do poder, encontra-se uma dinâmica de vigilância
que, utilizando-se das estruturas das instituições, acaba por determinar formas específicas
de funcionamento social e produção de subjetividades. A lógica disciplinar é marcada,
principalmente, pela instauração de normas que devem ser seguidas por todos sob pena de
distribuição de punições para aqueles que não se adequem a elas (BRANCO, 2015). Para
Foucault (2008a), uma disciplina é uma forma de recortar a multiplicidade com a finalidade de
padronização, ou seja, através das disciplinas se consegue, a partir de um trabalho individual de
79
domesticação dos sujeitos, construir um único edifício social de funcionamento mais previsível
e, consequentemente, mais facilmente controlável. Dessa forma,
Apesar dessa conexão entre disciplina e norma, não se deve confundir os funcionamentos
disciplinares enquanto dinâmicas necessariamente regidas juridicamente. Ou seja, a
disciplina, ainda que possa lançar mão do recurso da lei, não é, absolutamente, caracterizada
principalmente por ela, dado que muitas das vezes essas normas são naturalizadas, encontrando
nessa naturalização sua própria justificação (REVEL, 2005). Isso permite a Foucault localizar
em diversas instituições que, inicialmente, parecem ter funcionamentos distintos, a incidência
das mesmas lógicas de disciplinamento, como as encontradas nas prisões, nas fábricas, nos
quarteis, nos hospitais e nas famílias.
É assim que se desenvolvem, nas tramas das relações de poder e saber não uma
delimitação entre o lícito ou ilícito, mas uma distinção entre o normal e o anormal. Dessa
forma, Foucault estabelece uma análise mais global que aquelas vinculadas às leis. Isso ocorre,
pois, uma disciplina será tão mais eficaz quanto mais penetrar nas vidas dos sujeitos de forma
completa e contínua. Para isso, elas instituem uma série de saberes acerca do humano que
permitem a prática de uma verdadeira ortopedia social que garante a incidência dos mesmos
mecanismos sobre cada indivíduo (BERT, 2013).
80
A disciplina, é claro, analisa, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os
gestos, os atos, as operações. Ela os decompõe em elementos que são suficientes para
percebê-los, de um lado, e modificá-los, de outro. É isso, esse célebre quadriculamento
disciplinar que procura estabelecer os elementos mínimos de percepção e suficientes
de modificação. Em segundo lugar, a disciplina classifica os elementos assim
identificados em função de objetivos determinados. Quais são os melhores gestos a
fazer para obter determinado resultado? [...] Em terceiro lugar, a disciplina estabelece
as sequências ou as coordenações ótimas: como encadear os gestos uns aos outros,
como dividir os soldados por manobra, como distribuir as crianças escolarizadas em
hierarquias e dentro de classifícações? Em quarto lugar, a disciplina estabelece os
procedimentos de adestramento progressivo e de controle permanente e, enfim, a
partir daí, estabelece a demarcação entre os que serão considerados inaptos, incapazes
e os outros. Ou seja, é a partir daí que se faz a demarcação entre o normal e o anormal.
A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo
ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização
disciplinar consiste em procurar tomar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a
esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma
e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na
normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo,
há um caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma
estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal se tornam
possíveis (FOUCAULT, 2008a, p. 74-5).
As operações para garantia de cumprimento das normas também não seguem estritamente
o modelo jurídico da punição, mas se espalham por toda a vida cotidiana dos indivíduos através,
principalmente, da figura do especialista. Foucault destaca a função dos especialistas que,
mobilizando campos discursivos específicos, atualizam e mantém em operação determinadas
relações de poder através de normas que extrapolam os limites das instituições. Devido ao
foco nesse processo de desistitucionalização das normas (BERT, 2013), Foucault passa a se
debruçar sobre outra modalidade de poder, denominada por ele de biopoder (FOUCAULT,
1988; 2008a; 2008b).
Modificando e complexificando seu foco de análise, sem com isso recusar suas
teorizações acerca do poder disciplinar, Foucault descreve o surgimento e a operacionalização
de um outro conceito que será caro à modernidade, o de população. Para ele, chama a atenção
o fato de que, a partir da modernidade as “características biológicas fundamentais vai poder
entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT,
2008a, p. 03). Nesse sentido, a naturalidade da espécie entra no campo da política tendo como
objetivo a gestão das populações, num processo em que já não importa primariamente pensar
os gestos e atos individuais de forma a discipliná-los, ainda que siga sendo importante esse
momento de exercício de poder, mas a construção de uma forma geral de controle que atravesse
as coletividades, nas quais os indivíduos são meros meios para o objetivo final.
81
permitam analisar e ordenar os fatos biológicos dado sua importante função social. Assim,
quando Foucault fala de vida em suas discussões em torno do biopoder, não é no sentido
mais comum desse termo, mas da fabricação de um novo conceito de vida humana operado a
partir da modernidade, com toda a carga epistemológica que emerge dos discursos científicos
que acabam por consolidar os critérios de normalidade e anormalidade, estabelecendo, dessa
forma, as fronteiras da vida humana (CAPONI, 2016).
82
disputas que movimentam as conexões das relações de poder em todo tempo modificando
suas formas de expressão e distribuição. Assim, “[...] a impressão de que o poder vacila é
falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua”
(FOUCAULT, 2016a, p. 235), sendo possível apenas a partir de um modelo que não encontra
no poder o sinônimo de dominação analisar as relações a partir de um marco não estritamente
repressivo, mas também produtivo.
Essa característica produtiva do poder é explicitada com maior clareza nos estudos
que Foucault realizou acerca da sexualidade (FOUCAULT, 1988, 2016a, 2016b). O filósofo
demonstra como a criação de um dispositivo da sexualidade forja a produção de uma maneira
específica de organizar os corpos e os prazeres que mais exige que se fale do sexo, do que
o reprime. Nesse processo emergem uma série de saberes que construem as figuras da
anormalidade no campo da sexualidade, como a mulher histérica, a criança onanista e o adulto
perverso, que devem ser analisados tanto com a intenção de recuperação para a normalidade,
como para que, ao se encontrar as razões de seus desvios, se possa prevenir a emergência de
novos anormais (FOUCAULT, 1988, 2010b; MAY, 1993).
Com isso, ocorre um descentramento que permite retirar a repressão do centro das
discussões em torno do poder, substituindo um modelo jurídico pelo conceito de dispositivo,
mobilizando uma série de saberes, práticas e instituições para a postura em movimento de um
poder que, antes de temer os objetos sobre os quais se exerce, tem nesses mesmos objetos a
possibilidade de seu exercício, numa dinâmica na qual a repressão e a proibição são apenas
83
formas extremas de exercício de poder, que muitas vezes demostram exatamente os limites das
relações de poder (FOUCAULT, 2016b).
Em suas teorizações acerca do poder, o corpo emerge enquanto problema para Foucault.
Nesse sentido, desde a lógica disciplinar das instituições totais, até a constituição do que ele
denominou de dispositivo da sexualidade, vê-se um movimento de inflexão em direção ao
corpo, uma vez que, para Foucault, não é possível pensar a produção das subjetividades sem
pensar concomitantemente a produção, as distribuições, bem como as resistências produzidas
sobre ou a partir dos corpos.
Desde o marco das disciplinas nota-se um investimento material sobre a realidade dos
corpos, num sentido de, agindo sobre o que o indivíduo possui de mais concreto, se procurar
estabelecer a criação de corpos dóceis (FOUCAULT, 2014). Dessa forma, o poder disciplinar
vai penetrando o cotidiano e produzindo as subjetividades desde os menores gestos passíveis
de análise e padronização, ao que Foucault (2016a, 2016c) denominou de microfísica do
poder. Essa é a maior característica das relações de poder no que Foucault denomina de Idade
Clássica, momento no qual os exercícios de adestramento, regulação e normalização incindem
diretamente sobre os corpos com maior intensidade a partir das técnicas disciplinares e dos
saberes a elas associadas.
Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos
e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas,
entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não
se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção
sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitudes,
rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle:
não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do
corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação
se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente
importa é a do exercício. A modalidade, enfim: implica uma coerção ininterrupta,
constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado
e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo,
o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem
uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de “disciplinas”
(FOUCAULT, 2014, p. 134-5).
84
O que explica esse interesse das disciplinas sobre a formatação dos corpos é exatamente
o caráter produtivo do poder, uma vez que no lugar de objeto de suplício, os corpos são
objetos de adestramento para retirada do maior proveito possível dele (MACHADO, 2016).
É devido a essa estratégia que Foucault (2014) fala de uma anatomia política que, a partir
do esquadrinhamento do corpo institui uma espécie de mecânica do poder com finalidade de
fabricação de corpos dóceis, ou seja, submissos. Ao vislumbre desse corpo mecânico, aos
poucos, vai-se também acrescentando o corpo enquanto pretensa naturalidade, o que culmina
com a emergência do biopoder. Este mantém o corpo como alvo dos mecanismos de poder
instituídos, criando ainda novas formas de saber sobre ele, de maneira que “o corpo se constitui
como peça de uma máquina multissegmentar” (FOUCAULT, 2014, p. 162).
A forma como Foucault encarou a sexualidade distoa dos discursos das ciências
sexuais, para convergir para sua teorização acerca do poder. Nesse sentido, ele aponta como
não há realmente uma verdade por traz dos discursos acerca do sexo e da sexualidade, mas sua
produção pelas relações de saber-poder que consolidam o dispositivo. Desa maneira,
85
sexualidade, mas, ao contrário, uma incitação à fala acerca do sexo e da sexualidade, como uma
forma de confissão moderna. Se instaura, dessa maneira, um prazer em fazer falar e saber sobre
o sexo que interroga a todos acerca de suas sexualidades, num verdadeiro circuito de prazer-
saber (FOUCAULT, 1988).
Se é verdade que a “sexualidade” é o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma
tecnologia política complexa, deve-se reconhecer que esse dispositivo não funciona
simetricamente lá e cá, e não produz, portanto, os mesmos efeitos. Portanto, é preciso
voltar a formulações há muito tempo desacreditadas: deve-se dizer que existe uma
sexualidade burguesa, que existem sexualidades de classe. Ou antes, que a sexualidade
é originária e historicamente burguesa e que induz, em seus deslocamentos sucessivos
e em suas transposições, efeitos de classe específicos (FOUCAULT, 1988, p. 137).
86
campo de lutas em torno do corpo que divide instâncias e é ainda mais complexificada quando
das capturas possíveis dos processos de resistências. Daí a insistência de Foucault de pensar
poder e resistência como que duas faces de uma mesma moeda, sendo impossível pensar um
sem conexão com o outro.
Essas capturas referem-se aos efeitos positivos do poder que disciplina e controla,
pois, além de limitar, esses poderes engendram desejo, sendo impossível pensar a produção
de subjetividades sem o recurso ao desejo. Nesse sentido, a partir das respostas de revoltas
dos corpos se passa a produzir novamente um processo de incitação ao mostrar e falar sobre o
corpo, mas um corpo específico, que possa inclusive ingressar nos circuitos econômicos num
processo no qual tudo é permitido, desde que mantidos os ganhos produtivos das vivências,
como bem explicita Foucault ao falar que se pode ficar inclusive nu, desde que se trate de um
corpo magro, bonito e bronzeado (FOUCAULT, 2016a).
Na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exercício
do poder... Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente
ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que, do
século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo
poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes
disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas,
nas cidades, nos edifícios, nas famílias... E depois, a partir dos anos 1960, percebeu-
se que esse poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que
as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre
o corpo (FOUCAULT, 2016a, p. 237).
Para Butler (1999), o campo político é sempre um campo de disputa e, dessa forma,
não seria possível pensar um lugar na política que não fosse atravessado por relações de poder.
87
Poder que, seguindo Foucault, refere-se não apenas ao poder jurídico ou repressivo, mas aos
funcionamentos que permitem a própria emergência do sujeito. Nesse sentido, entra como
marco importante na teorização de Butler o caráter produtivo e dual do poder, pois, além do
poder jurídico que mais explicitamente é exercitado na política, também há o aspecto produtivo
do poder que, muitas vezes, não aparece de forma tão transparente no campo social.
Butler (1999) propõe que existe uma lei que estabelece os parâmetros de inteligibilidade
humana, sendo essa lei invocada enquanto fundamento das relações de poder, ocultando seu
caráter construído através da naturalização que a legitima. Para sua operação é indispensável
essa espécie de ocultamento de sua construção, de forma que o poder possa efetivamente
exercer sua função produtiva, para além das dinâmicas de negação e repressão. A apropriação
dessa leitura foucaultiana do poder é justificada por Butler devido ao fato de que
Foucault salienta que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que eles
posteriormente representam. As noções jurídicas de poder parecem regular a vida
política em termos puramente negativos – isto é, através da limitação, proibição,
regulamentação, controle e até mesmo “proteção” de indivíduos relacionados a essa
estrutura política através da operação contingente e retrátil da escolha. Mas os sujeitos
regulados por tais estruturas são, em virtude de serem sujeitados a elas, formados,
definidos e reproduzidos de acordo com os requisitos delas (BUTLER, 1999, p. 4)
(tradução nossa).
88
Atos performativos são formas de discurso autorizativos: a maioria dos performativos,
por exemplo, são afirmações que, no enunciado, também executam uma certa ação e
exercem um poder vinculativo. Implicados em uma rede de autorização e punição, os
performativos tendem a incluir sentenças legais, batismos, inaugurações, declarações
de propriedade, declarações que não apenas executam uma ação, mas conferem um
poder vinculativo à ação performada. Se o poder do discurso de produzir aquilo que
ele denomina está ligado à questão da performatividade, então o performativo é um
domínio em que o poder atua como discurso (BUTLER, 1993, p. 225) (tradução
nossa).
É devido a isso que Butler endossa a defesa foucaultiana de que as leituras estritamente
dialógicas do poder precisam ser questionadas, uma vez que correm o risco de, inclusive, pensar
uma dinâmica de igualdade nos jogos de poder, num processo no qual uma espécie de acordo
ou contrato equilibraria as dinâmicas de poder. Ora, se por um lado tanto Foucault quanto
Butler corroboram com a ideia de que o poder circula em todas as relações sociais, por outro
não há nesses autores uma leitura ingênua que permita acreditar na ideia de cessão consentida
de poder que, por fim, justificariam as opressões.
No campo específicos dos gêneros e das sexualidades, Butler (1999) destaca o caráter
normativo culturalmente construído do dispositivo que regula os corpos e os desejos. Nesse
sentido, ela novamente endossa a teorização de Foucault (1988) ao defender que não há no
campo dos corpos e das sexualidades algo anterior ou exterior à aparição desses processos, uma
vez que eles são fabricados pelas relações de poder nas quais estão aparentemente inseridas. O
que a filósofa enfatiza é a impossibilidade de se pensar qualquer menção à cultura ou à política
a partir da ideia de algo nos corpos e nas sexualidades que deve ser liberado do poder. Ao
invés disso, Butler (1999) defende a necessidade de modificações nas relações de poder que
viabilizem o reconhecimento de uma parcela cada vez maior de experiências.
Com isso, emerge o desafio de pensar como, para que hajam alterações nas matrizes de
poder hegemônicas, é necessário partir de sua própria forma de funcionamento, num processo
no qual se deixa de reproduzir acriticamente o instituído e ocorre a busca de sua subversão
através da repetição da lei que, ao invés de consolidá-la, permite seu deslocamento. É nessa
altura de sua teorização que Butler questiona os pressupostos de um certo feminismo que recorre
à ideia de patriarcado enquanto uma estrutura que teria se consolidado através da repressão de
89
um passado imaginário de igualdade ou até mesmo de superioridade feminina. Esse tipo de
leitura, para a autora, acabaria por reificar a desigualdade, uma vez que, ou o poder masculino
teria alguma legitimidade por sua capacidade de se impor ao feminino, ou essa legitimidade
não seria passível de crítica devido a impossibilidade de recusar a naturalidade da dominação,
uma vez que não se encontra registro histórico do pretenso momento de igualdade entre os
gêneros (BUTLER, 1999).
Nesse sentido, o objeto da repressão não seria um desejo ou uma experiência anterior
ao poder, mas as múltiplas configurações de poder que engendram o próprio objeto que,
posteriormente, parece ser anterior às relações de poder estabelecidas. Dessa forma, nota-se
uma relação necessária entre desejo e poder, num processo no qual um não pode ser pensado
sem o outro, pois o próprio desejo consolidaria as estruturas de poder que o tornam possível.
Esse paradoxo é analisado por Butler (1999), no campo das sexualidades, da seguinte maneira:
Esse processo é, evidentemente, ocultado pelas dinâmicas do poder, seja do lado dos
processos hegemônicos, seja do lado das teorias e políticas que, pretendendo exercer uma
função crítica, acabam por recorrer à ideia de um fora do poder. Isso permite a manutenção da
ideia de um desejo a ser decifrado, seja para dominá-lo, seja para liberá-lo. Nesse sentido, Butler
(1999) destaca como o conceito de repressão acaba por permitir aos poderes hegemônicos a
consolidação de suas estratégias, uma vez que ele é instituído enquanto ponto de partida para o
exercício do poder.
90
Ao explicitar essas dinâmicas, Butler realiza a defesa já posta por Foucault (1988) de
que a sexualidade, antes de ser uma instância anterior ao poder na qual se poderia encontrar
a verdade dos sujeitos, é algo historicamente construída através de uma “[...] organização
específica de poder, discurso, corpos e afetividade” (BUTLER, 1999, p. 117) (tradução nossa).
Assim, o que esses autores instituem é um discurso reverso no campo dos gêneros, corpos e
sexualidades que, negando a ideia de origem, permite pensar que na realidade se está frente a
efeitos específicos de poder.
Devido a isso, diferentemente do que inicialmente possa parecer, a ideia de não haver
um fora das relações de poder, não leva a afirmação de que não haveria espaço para a agência
dos sujeitos. Mas, pelo contrário, é justo a clareza da impossibilidade de se estar fora das
relações de poder que permite aos sujeitos agência para sua transformação efetiva. Disso
depreende-se não haver a possibilidade de se pensar agência política isoladamente em relação
às dinâmicas de poder, sendo o próprio poder em sua acepção ampla que permite o exercício da
agência (BUTLER, 1999).
91
resistência. Esse movimento não pode ser previsto com precisão pelos sujeitos que o operam,
pois isso acabaria por levar à crença num sujeito que deixaria de ser visto estritamente como
determinado para ser pensado a partir de uma leitura estritamente liberal de um sujeito
completamente autônomo e autodeterminado (BUTLER, 2004).
Utilizar-se das possibilidades de agência seria então, para Butler (1997, 2004), assumir
responsabilidades frente a construção do futuro, ainda que este não esteja pré determinado antes
da operação dos movimentos. Nesse sentido, o campo da contestação e transformação política
se institui enquanto momento de agonismo que, para o alcance da ampliação da experiência
democrática, necessita manter-se aberto em suas táticas e sujeitos que o ocupam (BUTLER,
2004).
Para que o poder seja posto em movimento a partir de uma dinâmica de instabilidade
que pode levar à ampliação das possibilidades subjetivas, Butler defende a necessidade de
uma análise crítica das relações de poder, encontrando, em grande medida, no pensamento de
Michel Foucault, uma maneira de defender que
Uma análise crítica da sujeição envolve: (1) uma descrição de como o poder regulador
mantém os sujeitos em subordinação, produzindo e explorando a demanda por
continuidade, visibilidade e lugar; (2) o reconhecimento de que o sujeito produzido
como contínuo, visível e localizado é, no entanto, assombrado por um excedente
inassimilável, uma melancolia que marca os limites da subjetivação; (3) um relato
da iterabilidade do sujeito que mostra como a agência pode muito bem consistir em
se opor e transformar os termos sociais pelos quais é gerada (BUTLER, 1997, p. 29)
(tradução nossa).
92
com o pensamento de Michel Foucault, mas acrescenta discussões advindas da psicanálise,
notadamente a lacaniana, para complexificar o lugar que os sujeitos e as dinâmicas sociais
ocupam nos processos de proibição. No que tange ao pensamento foucaultiano, sem, no entanto,
se restringir a ele, a autora explicita como, a partir do modelo jurídico de poder, é operada a
proibição de certos atos e práticas. Além disso, expõe como, a partir dessas limitações, pode-se
pensar e intervir sobre as fronteiras a serem extrapoladas pelos processos de resistência.
Na esfera específica das sexualidades, Butler (1993) chama a atenção para a possível
erotização das práticas proibidas, uma vez que, ao se proibir algo, além de fazê-lo vir a público,
têm-se também o efeito de inserir o proibido enquanto potencial fonte de investimentos eróticos.
Esse efeito é também encontrado no âmbito dos corpos, dado que a formação e delimitação
das fronteiras corporais também se fundam numa série de proibições, e essas permitem o
engendramento de um critério de inteligibilidade que acaba por ser a própria possibilidade de
constituição subjetiva. Sobre essa questão Butler avança e afirma:
É nessa altura de seu pensamento que Butler realiza uma inflexão em direção à
psicanálise. Isso ocorre pela crítica realizada pela autora acerca da polarização entre as teorias
do poder e a teorias sobre o psíquismo, algo que, segundo ela, encontramos, inclusive, em
Michel Foucault (BUTLER, 1999). Para realizar essa espécie de integração entre as teorizações
em torno do poder e as discussões acerca da formação psíquica, Butler recorre, principalmente,
ao conceito de simbólico em Lacan, ainda que opere críticas e reapropriações singulares do
vislumbre lacaniano sobre a formação do psiquismo humano.
93
Assim, em Lacan (1953), encontramos uma forte conexão dos registros psíquicos com
a linguagem, relação que se torna ainda mais estreita quando falamos do simbólico. Nesse
sentido, o ingresso no registro simbólico se dá enquanto processo de ingresso na cultura e,
consequentemente, na linguagem. Essa linguagem não é defendida pelo psicanalista enquanto
natural, de forma que sequer é possível determinar em que momento ela começou, tampouco
definir como as coisas se davam antes de sua emergência.
A linguagem exerce uma função que remete aos primórdios da experiência humana,
sendo ela a responsável por tornar os indivíduos sujeitos, a partir do compartilhamento do que
Lacan (1953) denominou de senha. Para isso, o humano deu sentido às palavras, o que foi um
grande avanço no campo da linguagem, e esse sentido passou a ser compartilhado de forma a
tornar possível a comunicação, uma vez que,
[...] na origem, o homem é que, com efeito, dá seu sentido à palavra [mot]. E que só
as palavras [mots] depois se encontraram no comum acordo da comunicabilidade,
isto é, que as mesmas palavras [mots] servem para se reconhecer a mesma coisa; é
precisamente em função de relações, de uma relação de saída que possibilitou a estas
pessoas serem pessoas que se comuniquem (LACAN, 1953, s/p).
A partir dessa relação com as palavras, logo, relação discursiva, é possível falar de
um registro simbólico propriamente dito, ainda que esse não se restrinja às expressões faladas
ou escritas da subjetividade humana. É através do registro simbólico que o humano pode ser
reconhecido e assim reconhecer-se enquanto um eu, sendo no campo simbólico que o sujeito
encontra pertencimento a partir da formação de uma unidade. Essa unidade, ainda que não
permanente, projeta-se sucessivamente enquanto sequência de unidades. Essa relação entre
constituição do eu e temporalidade no registro simbólico é resumida da seguinte maneira:
94
enquanto algo construído na experiência humana, acaba por reificar esse registro de maneira
a tornar inviável a experiência humana fora dos marcos da subjetivação estabelecida pelo
funcionamento simbólico (BUTLER, 1997; 1993).
Butler (1993) realiza a conexão entre o registro simbólico e o poder, de forma que, ao
se pensar o simbólico, se estaria frente a um marco de regulação que estabelece um ideal de
funcionamento psíquico. Ao questionar o caráter rígido que a psicanálise impõe ao registro
simbólico, Butler opera um movimento que permite a reformulação das leis simbólicas, num
sentido destas perderem seu estatuto de adesão necessária. Assim, o que a filósofa propõe
é a possibilidade de ressignificação da esfera simbólica, o que passaria pela adesão radical
à ideia de temporalidade que o próprio Lacan havia destacado quando da delimitação dos
registros psíquicos. Isso permitiria a retirado do simbólico de um lugar estruturado de forma
semi permanente e o colocaria numa dinâmica mais flexível do ponto de vista psíquico, bem
como e por consequência, no que tange às dinâmicas sociais e políticas (BUTLER, 1993).
Para que essa reelaboração temporal seja possível, uma outra crítica deve ser exercitada.
Ela se refere ao questionamento da autoridade que emerge através da Lei tal qual encontrada na
psicanálise lacaniana. Nesse sentido, a Lei passaria a ser vista como mais uma ficção reguladora
que se pretende universal e necessária, e essa leitura acompanha o que Foucault (2017, 2015)
denominou de modelo jurídico do poder.
Butler (1993) chama a atenção acerca desse funcionamento da Lei, mostrando como ela
estrutura no processo de produção de subjetividades um excesso de poder creditado ao simbólico
que oculta sua instância citacional pela qual se consolida. Acerca disso, torna-se indispensável
analisar a partir de que mecanismos o simbólico é investido de poder, num sentido desse impor
uma sobreposição do simbólico em relação ao imaginário, registro que, por sua capacidade
criativa, tem a possibilidade de colocar em xeque as leis simbólicas. Assim, as identificações
realizadas no registro imaginário são duplamente capturadas pelo registro simbólico. Primeiro
porque a identificação imaginária é previamente investida pela lei simbólica, que é estabelecida
como o parâmetro a priori; segundo pela Lei não poder ser questionada pelo imaginário, dado
ser instituída enquanto autoridade que precede qualquer possibilidade de ingresso na cultura e
na linguagem.
95
há uma posição anterior privilegiada que legisle sem possibilidade de questionamento acerca
da formação psíquica e processos de subjetivação, mas, ao contrário disso, o que ocorre é a
reificação de uma ficção reguladora.
Com essa discussão, Butler (1997, 1993) explicita o caráter disciplinar que o conceito
de simbólico e de Lei operam no que tange a formação subjetiva de forma geral, bem como
aos aspectos de sexo-gênero que lhe concernem. Assim, a ideia de psiquismo acaba por operar
em marco semelhante a ideia de alma, enquanto instância que baseia metafisicamente as
experiências dos indivíduos ao se instituir como marco inicial e sobre o qual a origem ou
construção não se questiona (NAVARRO, 2008). Nota-se a partir disso o caráter problemático
de se tomar imperativos culturais, como o simbólico, enquanto verdades inescapáveis, ainda
que esses não devam, por isso, serem eliminados do horizonte de análise, uma vez que Butler
(1997, 1993) não recusa a existência do registro simbólico, mas sim seu caráter rígido e de
difícil mutabilidade.
O que a autora propõe é uma leitura que leve em consideração o simbólico a partir do
cruzamento com a ideia de disciplina, de forma a complexificar ambos os conceitos, relação
sobre a qual ela afirma:
96
necessariamente atrelada ao mimetismo estrito que encontramos no registro simbólico. Essa
concepção de real é a mesma encontrada em Lacan (1953), no entanto, para o autor, mantêm-
se a ideia de que é indispensável que o real se dobre ao simbólico para que o sujeito seja
viável, o que acaba por legitimar o simbólico como marco cultural e linguístico indispensável;
enquanto que, para Butler (1993), a questão que emerge é a de como politizar essa relação entre
linguagem e real, de forma a se apropriar do espaço de resistência psíquica enquanto lugar de
resistências políticas.
Para operar esse movimento, Butler (1993) questiona a prevalência do regsitro simbólico
no que tange à autoridade de produzir o interior e exterior do que conta enquanto vida psíquica
legítima através dos processos de forclusão. Com isso, Butler defende que, apesar de todas
as formações de linguagem terem a necessidade de operar por exclusões, isso não quer dizer
que todas as exclusões são equivalentes umas às outras. Para ela, “o que é necessário é uma
maneira de avaliar politicamente como a produção de ininteligibilidade cultural é mobilizada
de maneira variável para regular o campo político, ou seja, quem contará como um ‘sujeito’,
e quem será obrigado a não contar” (BUTLER, 1993, p. 207) (tradução nossa). Nesse
sentido, estabelecer o registro do real enquanto um exterior impossível acaba por inviabilizar
experiências não enquadráveis de forma inquestionável no registro simbólico, o que acaba por
confirmar a hipótese da autora de que as dinâmicas psíquicas relacionam-se com relações de
poder contingentes que permitem ou não o reconhecimento das variadas experiências humanas.
A complexa dinâmica entre o real e o simbólico analisada por Butler (1993) encontra-se
diretamente relacionada à sua apropriação de que o inconsciente, tal qual pensado por Freud e
Lacan, também se configura enquanto uma experiência de resistência. O que se encontra nas
dinâmicas inconscientes são, muito comumente, processos de resistência à normalização que
são impostas pelas necessidades de conformidade com o campo da cultura, logo, com o registro
simbólico. A resistência opera devido ao fato de que, ainda que o sujeito precise se adequar às
normas para ser reconhecido enquanto tal, a experiência psíquica nunca se restringe ao restrito
da cultura, uma vez que há sempre em operação os registros do real e do imaginário (BUTLER,
1997).
97
falhas na constituição subjetiva, permitindo abrir um campo de questionamento e transformação
política que se arrogue a possibilidade de não reificar o registro simbólico e, com isso, permitir
campos de reconhecimento mais amplos.
O que Butler (1993, 1997) explicita em sua crítica ao conceito de diferença sexual no
que concerne a psicanálise é que essa acaba por limitar as possibilidades de resistências que o
processo de formação psíquica pode ter, uma vez que, ao invés de investir nesse âmbito enquanto
potencialmente disruptivo, o pensamento psicanalítico tradicional acaba por utilizá-lo enquanto
instrumento de normalização reiterativa do poder simbólico de estruturar dinâmicas sexistas e
98
homofóbicas. Dessa forma, o simbólico antes de ser pensado enquanto instância estabilizadora
do psiquismo que permite aos indivíduos ingressarem na cultura, deve ser compreendido
O que ocorre com a crítica que Butler realiza do simbólico e suas relações com
determinadas distribuições de poder dialoga com sua defesa de que a formação do psiquismo e
as dinâmicas do desejo nunca são completamente determinadas por uma instância, a exemplo
do simbólico, mas, ao contrátio “[...] se caracterizam pelo deslocamento, podem exceder a
regulação, assumir novas formas em resposta à regulação, até transformarem-se e torná-la
atrativa. Nesse sentido, a sexualidade nunca é totalmente redutível ao ‘efeito’ desta ou daquela
operação do poder regulador” (BUTLER, 2004, p. 15) (tradução nossa).
Butler parece operar movimento semelhante ao realizado por Deleuze e Guattari (2011),
num sentido de questionamento das intenções universalizantes e deterministas das concepções
de inconsciente, complexo de Édipo e registros simbólicos. Deleuze e Guattari (2011) propõem
um funcionamento produtivo do desejo, em oposição ao desejo enquanto falta encontrado na
psicanálise. Nesse sentido, sem negar de forma absoluta a formação do sujeito a partir do
Édipo, o que eles propõem com sua esquizoanálise é que Édipo seria uma forma de produção
psíquica, a predominante na organização social capitalista, mas não a única.
Baremblitt (2010) defende que essa concepção de desejo permite a Deleuze e Guattari o
estabelecimento de uma proposição acerca do psíquico sobretudo ética. Isso ocorre porque, ao
introduzir o caráter produtivo do desejo em sua concepção de psiquismo, os autores permitem
o ingresso do desejo na materialidade produtiva da realidade, uma vez que é rompida a cisão
entre psiquismo e realidade social através da potência criativa do que eles denominaram de
máquinas desejantes. Assim, “há em toda parte máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas
99
esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, nada mais querem dizer”
(BAREMBLITT, 2010, p. 12).
100
de pensar o Édipo enquanto momento estruturante universal e percebê-lo enquanto uma forma
totalizante de produção psíquica.
[...] uma transexualidade microscópica em toda parte, que faz com que a mulher
contenha tantos homens quanto o homem, e o homem mulheres, capazes de entrar,
uns com os outros, umas com as outras, em relações de produção de desejo que
subvertem a ordem estatística dos sexos (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 390).
Butler, por seu turno, opta intencionalmente por manter o pensamento de Deleuze
e Guattari distanciado de sua teorização, aproximando-se de Foucault para justificar seus
questionamentos acerca do lugar que o simbólico ocupa em psicanálise e das relações
paradoxais que suas críticas explicitam. Nesse sentido, ela chama a atenção para o fato de
que, de um lado, não é possível viver fora de normas de reconhecimento e, por outro, essas
normas podem, muitas vezes, produzir sofrimento a diversos sujeitos. É por isso que Butler
(1993, 1997) explicita o caráter político das dinâmicas de reconhecimento, sendo necessário
o vislumbre das hierarquias que essas podem engendrar com a finalidade de modificação de
suas estruturações de poder, o que deve passar, necessariemente, por modificações no registro
simbólico da realidade.
A maneira com que Butler pensa as relações de poder e suas implicações reflete-se
diretamente em sua teorização acerca da produção dos gêneros e dos corpos. Nesse sentido, ela
101
chama a atenção para a consolidação de determinadas estruturas de poder enquanto marcos que
engendram a estrutura binária nos campos das relações de sexo-gênero. O que a filósofa propõe
é o exercício do poder enquanto atividade incidente na materialidade dos corpos e que, por isso,
institui efeitos formativos do que vem a ser considerado enquanto subjetividade ou, ainda mais
radicalmente, enquanto uma vida humana (BUTLER, 1999, 1993).
Esse exercício do poder através da materialidade dos corpos aparece enquanto externo
ao discurso e às próprias relações de poder, mas isso configura-se enquanto uma dissimulação
do regime de saber-poder que estabelece o marco de inteligibilidade binário, uma vez que
a diferença sexual acaba por operar enquanto um ponto de partida epistemológico para se
pensar a realidade dos corpos e dos gêneros. No entanto, Butler (1993) explicita em sua crítica
que aceitar esse ponto de partida constitutivo tem efeitos políticos específicos, o que exige
a realização de uma genealogia do poder no campo dos corpos e gêneros para um melhor
vislumbre das dinâmicas de poder em seu funcionamento e capacidade de formação da própria
ideia de sujeito.
Butler (1993) advoga que o gênero é parte do que constitui o sujeito em nosso campo
social, de forma que, entre outros marcadores, o gênero é consolidado a partir de relações de
poder específicas enquanto categoria fundante da experiência humana. Dessa forma, para a
garantia de sua postura em ato, são instituídos normas para a produção e regulação dos corpos
e das experiências adequadas ao marco de gênero binário. No entanto, a autora destaca não
defender, por isso, uma espécie de determinismo cultural, pois, se por um lado, as relações
de poder engendram um modelo no campo do gênero, por outro, os processos de resistência
possibilitam o questionamento e modificação dessas relações.
102
gênero exije e institue seu próprio regime disciplinar e regulatório (BUTLER, 2004,
p. 41) (tradução nossa).
Depreende-se disso que Butler realiza uma aplicação específica das teorizações de
Foucault acerca do poder. Assim, ocorre na teoria de gênero da filósofa a consolidação de um
pensamento disciplinar acerca da produção do gênero, num sentido de haver em sua crítica
a explicitação de que algumas práticas e desejos são favorecidos pelas relações de poder em
detrimento de outras que passam a ser punidas através da instituição do lugar do ilegítimo,
ininteligível e anormal, ou seja, da consolidação do espaço do abjeto, de forma que “a relação
corpo-performatividade-gênero é em muitos aspectos paralela à apresentada entre corpo-
biopoder-sujeito em Foucault” (NAVARRO, 2008, p. 1208) (tradução nossa), ainda que não se
confunda completamente com ela.
Nessa altura de sua teorização, Butler (1993) aproxima-se em suas discussões acerca
do gênero das discussões empreendidas por Foucault (2014) sobre a fabricação dos corpos
dos prisioneiros. Com isso, ela consegue estabelecer um nexo de contingência histórica
que permite o entrelaçamento do poder com a série de discursos que ao mesmo tempo que
viabilizam a materizalização dos corpos, ocultam a dinâmica regulada da fabricação desses e,
consequentemente, dos sujeitos.
103
distribuição do poder no que refere às estruturas de sexo-gênero. Assim, é possível retomar a
concepção performativa de corpo defendida por Butler (1993), na qual a nomeação do corpo
nos marcos da diferença sexual permite a emergência dos sujeitos através de práticas de poder
discursivamente reiteradas, impedindo que se pense o corpo enquanto anterior a categoria de
gênero, dado o fato da própria materialidade ser engendrada em marcos culturais que passam a
governar a produção dos corpos.
É possível, dessa maneira, conectar a produção dos corpos sexuados com a produção
do regime de heteressexualidade que privilegia algumas identificações sexuais em detrimento
de outras através da assunção de normas que são, ao fim, a assunção do próprio sexo e gênero.
Esse processo é explicado por Butler (1993) enquanto uma formação discursiva performativa,
isso porque
104
funcionamento a autora utiliza o recurso de analisar a postura do gênero em ato enquanto
algo carregado de teatralidade, ainda que recuse a instância de auto criação que esse termo
possa indicar, assinalando uma reformulação da ideia de perfomativo encontrada no campo das
expressões teatrais. Assim,
105
4. RESISTÊNCIAS PERFORMATIVAS: AS LUTAS EM FOUCAULT E O
QUEER EM BUTLER
Nas análises realizadas por Michel Foucault acerca do poder encontramos constantemente
a relação de seu funcionamento com dinâmicas de lutas e resistências. Nesse sentido, além
de descrever os efeitos jurídicos e produtivos do poder, o filósofo buscou em seus estudos
explicitar as possibilidades de modificação nas distribuições do poder ocasionadas pelas lutas
engendradas enquanto forma de expressão do próprio funcionamento do poder (FOUCAULT,
2008a).
Essa relação de lutas permite aos indivíduos a fabricação de experiências que não se
adequam de forma completa ao instituído pelas normas hegemônicas, ainda que isso não ocorra
necessariamente de forma intencional ou racionalizada pelos sujeitos envolvidos. Sobre essa
dinâmica, Foucault (2008a) afirma:
106
O que vou lhes propor é a palavra, mal construída sem dúvida, “contraconduta” –
palavra que só tem a vantagem de possibilitar referir-nos ao sentido ativo da palavra
“conduta”. Contraconduta no sentido de luta contra os procedimentos postos em
prática para conduzir os outros, o que faz que eu prefira essa palavra a “inconduta”,
que só se refere ao sentido passivo da palavra, do comportamento: não se conduzir
como se deve. Além disso, essa palavra – “contraconduta” – talvez também
permita evitar certa substantificação que a palavra “dissidência” permite. Porque
de dissidência vem “dissidente”, ou o inverso, pouco importa – em todo caso, faz
dissidência quem é dissidente. Ora, não estou muito certo de que essa substantificação
seja útil. Temo inclusive que seja perigosa, porque sem dúvida não tem muito sentido
dizer, por exemplo, que um louco ou um delinquente são dissidentes. Temos aí um
procedimento de santificação ou de heroização que não me parece muito válido. Em
compensação, empregando a palavra contraconduta, é sem dúvida possível, sem ter
de sacralizar como dissidente fulano ou beltrano, analisar os componentes na maneira
como alguém age efetivamente no campo muito geral da política ou no campo muito
geral das relações de poder. Isso permite identificar a dimensão, o componente de
contraconduta, a dimensão de contraconduta que podemos encontrar perfeitamente
nos delinquentes, nos loucos, nos doentes. Portanto, análise dessa imensa família do
que poderíamos chamar de contracondutas (p. 266).
107
Em Foucault (2004), a liberdade é vislumbrada enquanto intrínseca à própria experiência
humana, não se constituindo enquanto algo alheio ao desejo ou nele escondido. Ao invés disso,
o pensador propõe que por meio dos desejos é possível exercitar a liberdade de forma a criar
novas relações sociais, e essas, por sua vez, podem configurar-se enquanto reformulações das
dinâmicas de poder instituídas. Assim, Foucault rompe com a ideia de que poder e liberdade
estariam numa relação de contradição, pois as possibilidades de exercício de liberdade estariam
já em funcionamento em toda manifestação do poder (REVEL, 2005).
Ao explicitar o lugar da liberdade nas relações de poder, Foucault acaba por reforçar
sua concepção do poder enquanto não meramente proibitivo, mas também produtivo. Dessa
maneira, fica claro que
[...] o poder não é intrinsecamente, nem apenas, negativo: não é apenas o poder de
negar, suprimir, restringir – o poder de dizer não, você não pode. O poder também é
positivo e produtivo. Produz possibilidades de ação, de escolha – e, finalmente, produz
as condições para o exercício da liberdade (assim como a liberdade constitui uma
condição para o exercício do poder). O poder não é, portanto, oposto à liberdade. E
liberdade, consequentemente, não é liberdade do poder – não é uma zona privilegiada
fora do poder, não constrangida pelo poder – mas potencialmente interna ao poder,
até mesmo um efeito do poder (HALPERIN, 1995, p. 17) (tradução nossa).
108
Depreende-se disso que não há liberdade absoluta, assim como não há exercício de
poder que não seja atravessado pelas liberdade. Por isso “não podemos nos colocar fora da
situação, em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder. Eu não quis dizer que
somos sempre presos, pelo contrário, que somos sempre livres. Enfim, em poucas palavras, há
sempre a possibilidade de mudar as coisas” (FOUCAULT, 2004, p. 268).
Com isso, Foucault (2015) exercita mais uma vez sua concepção produtiva do poder, a
qual necessita do espaço da liberdade para ser pensada. O que o autor propõe é que as análises
acerca dos processos de exclusão operem de forma a identificar as relações de poder que as
sustentam e justificam para que seja possível o exercício da transgressão. Dessa forma, para
além da lei e das normas, há o espaço de liberdade que possibilita aos sujeitos um campo de
transgressão e, além disso, de dissidência.
109
enquanto um ataque às moralidades e estruturas que estabelecem as leis, consistindo num
exercício localizado de liberdade que tem por finalidade tornar a lei irreal ou inefetiva.
Os primeiros têm como ponto de ataque o lugar em que se intricam moral, variadas
relações de poder próprias à sociedade capitalista, instrumentos de controle
implementados pelo Estado. Lutar contra a coerção não é a mesma coisa que transpor
o interdito, uma coisa não pode ser confundida com outra. Praticar a transgressão é
tornar a lei irreal e impotente num momento e num lugar, para uma pessoa; entrar em
dissidência é atacar essa conexão, essa coerção (FOUCAULT, 2015, p. 104-5).
Pode-se constatar que as resistências são parte do poder, uma vez que apenas se pode
afirmar que há relação de poder em dinâmicas sobre as quais é possível resistir. As resistências
apenas podem ser pensadas em suas operações concretas, uma vez que estão relacionadas
diretamente às manobras das lutas que se tornam indissociáveis dos objetos de poder sobre os
quais intervêem (MAY, 1993). Toda resistência pode fundar as relações de poder, bem como
110
ser resultado dessas relações, sendo elas, antes de tudo, a possibilidade de criar novos espaços
de lutas e agência que permitem transformações nas distribuições do poder (REVEL, 2005).
Essa relação necessária entre poder e resistência permite a Foucault pensar em termos
de estratégias e táticas, evidenciando o caráter agonístico que é imputado às relações de poder
encontrado em seu pensamento. Nessa dinâmica, não é sequer possível encontrar um ponto de
início ou fim entre poder e resistências, dado que “cada movimento de um serve de ponto de
apoio para uma contra-ofensiva do outro” (REVEL, 2005). Foucault estabelece, assim, uma
reciprocidade que inviabiliza uma consideração simplista que colocaria o poder no lugar do
que é negativo e a resistência no espaço estratégico da liberação do poder. Isso porque o poder é
exercido através de uma dinâmica produtiva que pressupõe a resistência em seu funcionamento.
Dessa forma, não é exatamente contra o poder que a resistência se estabelece; pois assim
sendo, a resistência mesma estaria inviabilizada; mas contra certos efeitos de poder que forjam
relações de dominação; por outro lado, não houvesse resistência, não haveria efeitos de poder
no âmbito da dominação, mas apenas questões relacionadas à obediência, num sentido de
como obedecer (REVEL, 2005). Sobre essa relação indissociável e necessária entre poder e
resistências Foucault (2016b) afirma:
As formas que tomam os processos de resistência, assim como ocorre com o poder em
todas as suas expressões, são variadas. Devido a isso, vemos em Foucault uma valorização das
lutas locais ou micropolíticas, pois essas tratam de resistências postas em ação por subjetividades
e grupos com questões específicas relacionadas com variadas distribuições do poder no campo
social através de marcadores como geração, gênero e etnia. Esse vislumbre permite à Foucault,
em seus próprios estudos localizados, exercitar sua concepção de poder a partir da construção
de uma ontologia crítica do presente (BRANCO, 2015).
111
diagnóstico do presente das formas específicas de dominação, bem como dos processos de
resistências a elas correlacionadas (MAY, 1993).
Encontra-se mais uma vez nessa concepção acerca das resistências a defesa de que
o poder opera de forma difusa, não se restringindo às modalidades de poder relacionadas à
soberania. Por isso, a eficácia dos processos de resistências residiria em sua capacidade de
também articular-se de forma múltipla e mutante. Nesse sentido, além da multiplicidade de
expressões da resistência, seria necessária uma variedade de análises situadas para uma maior
compreensão, no âmbito inclusive de uma teoria geral da política, dos domínios das lutas que
atravessam as múltiplas relações de poder. Essa necessidade decorre de que
A multiplicidade das lutas decorre do fato do poder não possuir uma matriz única de
funcionamento que se disseminaria na sociedade. Sendo assim, não é possível afirmar que
todas as suas manifestações são expressões dessa matriz geral, mas que são construídas nas
correlações engendradas nas lutas, não havendo, por isso “o lugar da grande recusa, foco de
toda rebelião, lei revolucionária” (ESCOBAR, 1985, p. 211). Para Foucault (2004) a resistência
é um elemento das estratégias de poder, num sentido dela apoiar-se sobre as relações de poder
que combate. Sobre o poder se impõe a resistência não de forma externa, mas no lugar mesmo
de sua aplicação, sendo possível pensar o poder enquanto uma relação necessária entre dois
polos num jogo de forças que acaba por modificar as relações de poder previamente instituídas,
numa dinâmica que inviabiliza uma visão estática de seu funcionamento (MAY, 1993), e isso
ocorre por sempre haver a possibilidade de recusa de uma determinada forma de distribuição
do poder.
Essa recusa não se refere ao poder como tal, mas a um dizer não a determinados
arranjos de seu exercício para extrapolar a simples negação, numa dinâmica que torna a
resistência produtiva. Nesse sentido, “dizer não constitui a forma mínima de resistência. Mas,
naturalmente, em alguns momentos é muito importante. É preciso dizer não e fazer deste não
uma forma decisiva de resistência” (FOUCAULT, 2004, p. 268).
Com suas discussões, Foucault expõe as condições para o exercício do poder e, devido
ao seu caráter relacional, também as condições de exercício das resistências. Ao analisar os
112
processos de resistência ele consolida sua teorização acerca do caráter produtivo do poder, num
processo que escapa a uma causalidade simples e impõe um conjunto de relações complexas que
atuam nas redes de poder de forma que nelas mesmas, e não enquanto uma forma de oposição
radical, se encontrariam as possibilidades de modificação de suas distribuições. Acerca disso,
é possível notar que
Ele toma cuidado de seriar as condições permitindo avançar em direção a uma nova
economia das relações de poderes. As lutas de transformação da subjetividade,
precisa ele, não são simples formas de oposição à autoridade; elas são caracterizadas
pelo fato:
1. de que são “transversais” (ou seja, para Michel Foucault, que elas saem dos quadros
de um país particular);
2. de que se opõem a todas as categorias de efeitos de poder, àqueles, por exemplo,
que se exercem sobre o corpo e a saúde, e não somente àqueles que são aferentes às
lutas sociais “visíveis”;
3. de que são imediatas, nesse sentido de que visam às formações de poder mais
próximas e que elas não se remetem a hipotéticas soluções a termo, como aquelas que
se pode achar nos programas de partidos políticos;
4. de que põem em causa o estatuto do indivíduo normalizado e afirma um direito
fundamental à diferença (de modo algum incompatível, aliás, com alternativas
comunitárias);
5. de que visam aos privilégios do saber e sua função mistificadora;
6. de que implicam uma recusa das violências econômicas e ideológicas de Estado
e de todas as suas formas de inquisição científicas e administrativas (GUATTARI,
2007, p. 36).
É essa leitura que vemos Foucault (1988) operar no que refere à sexualidade. Nesse
âmbito específico, temos uma aplicação da ideia de que não é possível analisar as relações de
poder e as resistências a elas atreladas enquanto uma dinâmica de simples oposição. É devido
a isso que o filósofo afirma ser necessário “não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está
dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade”
(FOUCAULT, 1988, p. 171). A ênfase é dada aos processos de resistência antes da ideia de
liberação. Ainda que Foucault não desqualifique a ideia de liberação, ele explicita como,
para uma modificação efetiva das relações de poder no que tange aos corpos e aos exercícios
da sexualidade, é necessário ir além da ideia que consiste em acreditar que seria possível se
desvincular do poder e permitir emergir a verdadeira expressão do sexo (FOUCAULT, 1988).
Na crítica realizada à ideia de liberação subjaz a manutenção de sua concepção de poder,
de forma a ser necessário localizar historicamente as permissões e interdições em torno do
sexo, para, a partir das distribuições atuais de poder, se mobilizar politicamente resistências
que, passando necessariamente pelos corpos e seus prazeres, modifiquem a realidade do poder
(HALPERIN, 1995).
113
Em Foucault, a liberação é uma possibilidade de constituição de quadros de ética
e práticas de liberdade. Nesse sentido, ela não se coloca no marco de uma experiência
totalizadora, apartada do poder, mas relaciona-se diretamente com seu funcionamento. Através
desse processo, as dinâmicas de liberação podem emergir enquanto táticas de resistências
consolidadas pelas experiências questionadoras dos campos normativos instituídos, sem, por
isso, cair no equívoco da possibilidade de assunção de uma experiência que rompe com o poder
por questionar suas estruturas de funcionamento (DE SOUSA FILHO, 2008).
Se, por uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade, quisermos
opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de
resistência às captações do poder, será com relação à instância do sexo que deveremos
liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque
não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres (FOUCAULT, 1988, p. 171).
114
MISKOLCI, 2011). Nesse processo de construção de prática e pensamento alguns fatores
foram determinantes para a emergência e a consolidação das políticas e Estudos queer, dentre
os principais encontram-se a descoberta e consequente crise gerada pela aids, notadamente
nos meios homossexuais e de divergência de sexo-gênero; a crítica aos movimentos gays e
lésbicos que passaram a ter uma feição mais normatizada com foco na ideia de inclusão; e
o questionamento do feminismo tradicional, que se consolidou enquanto um movimento de
mulheres brancas de classes média e alta, o que invisibilizava experiências de outras mulheres
que reivindicavam uma perspectiva interseccional para o movimento feminista (SÁEZ, 2007).
A crise da aids explicitou que a construção social dos corpos, sua repressão, o
exercício do poder, a homofobia, a exclusão social, o colonialismo, a luta de classes,
o racismo, o sistema de sexo e gênero, o heterocentrismo, etc., são fenômenos que
se comunicam entre si, que são produzidos por meio de um conjunto de tecnologias
complexas, e que a reação ou a resistência a esses poderes também exige estratégias
articuladas que levem em conta numerosos critérios: raça, classe social, gênero,
imigração, doença... critérios fundamentais de luta que colocam sobre a mesa as
multidões queer (p. 69) (tradução nossa).
115
Nesse contexto, as políticas e os Estudos Queer colocam-se tanto em oposição às
demandas da heterossexualidade enquanto regime político para os corpos e modos de vida
(WITTIG, 2004), quanto em oposição aos movimentos gays e lésbicos que têm como principal
reivindicação a assimilação dentro do sistema heterossexual, que, por sua vez, se articula de
modo decisivo aos modos de produção capitalista baseados no consumo e na propriedade
(MISKOLCI, 2011). Assim, a perspectiva queer demonstra sua radicalidade em questionar
as normatividades sociais acerca dos corpos, sexualidades e, posteriormente, dos vários
atravessamentos que essas questões carregam, em todas as suas manifestações, estabelecendo
uma postura radical de questionamento das normatividades. Dessa forma, “a política queer é
basicamente antiassimilacionista, renuncia à lógica de integração na sociedade heterossexual
e se coloca num lugar decididamente marginal” (GARCÍA, 2007, p. 44) (tradução nossa)
tanto em relação às instituições heterossexuais tradicionais, quanto em relação aos movimentos
gays e lésbicos que, a partir da perspectiva do contexto da emergência queer, reivindicavam a
assimilação de suas diferenças à norma (SULLIVAN, 2003). Sobre essa característica de recusa
a uma assimilação que, para os queers, se trata antes de tudo de um processo de domesticação
dos movimentos sociais e dos corpos, Miskolci (2011) afirma:
Além dos movimentos gays e lésbicos, outro campo de disputa política também
possibilitou a emergência das políticas e do pensamento queer: o feminismo. No entanto,
antes de constituírem-se enquanto questionamento estrito das possibilidades e conquistas
do feminismo, as perspectivas queer propuseram um debate que objetivou complexificar as
demandas e práticas políticas de um feminismo que passou a mostrar-se sempre relacionado
às mulheres brancas e heterossexuais. Nesse sentido, as políticas e Estudos queer foram ao
mesmo tempo influenciadas e influenciadoras do que se convencionou chamar de “feminismo
de terceira onda”, um movimento que à categoria gênero tenta adicionar outros atravessamentos
sociais que influenciam os processos de violências, controle e disciplinas dos corpos como as
questões relativas às sexualidades, classe social e etnia ou raça (BOURCIER e MOLINER,
2012). O que se manifesta nessa postura crítica das perspectivas queer é o questionamento da
mulher enquanto categoria estagnada e facilmente identificável como um coletivo homogêneo.
De acordo com García (2007), “a crítica a esse essencialismo será o ponto de partida do
feminismo pós-estruturalista e também da teoria de gênero proposta a partir da teoria queer”
(p. 35) (tradução nossa).
116
As respostas queer às questões relativas à aids, aos movimentos gays, lésbicos e
feministas constituem-se então enquanto possibilidades subversivas, o que não quer dizer
que entre esses campos de embate político e discursivo não ocorram negociações. Ou seja, o
processo de emergência queer não se consolida enquanto uma recusa simplista do já instituído
no campo das relações e discussões acerca dos corpos, gênero e sexualidades, mas num diálogo
constante de forma que “[...] queer demarca tanto uma continuidade quanto uma ruptura com
os modelos do liberacionismo gay e do feminismo lésbico” (JAGOSE, 2005, p. 75) (tradução
nossa), bem como com o feminismo mais tradicional e militâncias em torno da questão da aids.
O que se estabelece então, tanto em relação aos movimentos aqui citados, quanto
em relação à heterossexualidade enquanto regime político (WITTIG, 2004) que possibilitou
a emergência, seja num modelo libertário ou assimilacionista, desses movimentos, é uma
intensificação das resistências com a perspectiva queer num contexto que Preciado (2011), a
partir de Foucault (1988), denomina de sexopolítico:
Butler (1993) pensa a afirmação queer como uma questão relativa à interpelação dos
sujeitos, que, a partir de uma prática discursivo-linguística estabelece uma relação outra com
a experiência da subalternidade através de um jogo contínuo de repetição e reinvenção de
termos. Ela afirma:
117
O termo “queer” emerge como uma interpelação que levanta a questão do estatuto
da força e resistência e da estabilidade e variabilidade inseridas na performatividade.
O termo “queer” tem operado como uma prática linguística cujo propósito tem sido
envergonhar o sujeito que nomeia ou, ainda, a produção de um sujeito através dessa
interpelação constrangedora. “Queer” deriva sua força precisamente da invocação
repetida pela qual liga-se à acusação, patologização e insulto. Essa é uma invocação
pela qual forma-se um vínculo social homofóbico através dos tempos. A interpelação
evoca interpelações passadas e conecta os falantes, como se eles falassem em uníssono
através dos tempos. Nesse sentido, é sempre um coro imaginário que escarneia:
queer! (BUTLER, 1993, p. 18) (tradução nossa).
Dessa maneira, no que se refere à questão queer pode-se afirmar o mesmo que Didier
Eribon (2008) afirma acerca da questão gay: “No início há a injúria” (p. 27), “a injúria me faz
saber que sou alguém que não é como os outros, que não está na norma. Alguém que é viado
[queer]: estranho, bizarro, doente. Anormal” (p. 28). A injúria se constitui enquanto a repetição
de atos de linguagem que tem caráter performativo, pois estabelecem os lugares que os sujeitos
podem ocupar a partir da interpelação que é lançada a esses, um lugar específico no meio
social é criado para o sujeito injuriado nesse processo, o que inclui a própria produção das
subjetividades:
A injúria não é apenas uma fala que descreve. Ela não se contenta em me anunciar o que
sou. Se alguém me xinga de “viado nojento” (ou “negro nojento” ou “judeu nojento”),
ou até, simplesmente de “viado” (“negro” ou “judeu”), ele não procura me comunicar
uma informação sobre mim mesmo. Aquele que lança a injúria me faz saber que tem
domínio sobre mim, que estou em poder dele. E esse poder é primeiramente o de me
ferir. De marcar minha consciência com essa ferida ao inscrever a vergonha no mais
fundo da minha mente. Essa consciência ferida, envergonhada de si mesma, torna-
se um elemento constitutivo da minha personalidade. Assim, poderíamos analisar a
palavra de injúria como um “enunciado performativo” [...] (ERIBON, 2008, p. 28-9).
118
queer cada vez mais aprofundam suas relações com outros atravessamentos relacionados às
diferenças. Essa tendência é apontada por Muñoz (2007), que explicita como, apesar do registro
predominantemente sexual, o pensamento queer tem ampliado seu projeto de desnaturalização
para outros eixos de identificação além dos de sexo e gênero. Essa leitura é compartilhada por
Jagose (2005) quando afirma que “o queer tem tendido a ocupar um registro predominantemente
sexual. No entanto, sinais recentes indicam que seu projeto desnaturalizador está sendo exercido
em outros eixos de identificação além do de sexo e gênero” (JAGOSE, 2005, p. 99) (tradução
nossa).
A perspectiva queer passa, assim, a ser uma forma de tentar analisar a constituição dos
espaços de abjeção, “[...] pensar em como as margens são constituídas, como chegam a ser
fixadas como lugares perigosos habitados por pessoas desprezíveis, muito mais do que aceitar
o lugar de minorias” (PELÚCIO, 2014, p. 75). Nesse sentido, o queer não se relaciona apenas
com as sexualidades alternativas, mas constitui-se enquanto espaço de produção discursiva
polimorfa que interroga tanto a heterossexualidade quanto outras normatividades sociais
(SWAIN, 2001).
Para Miskolci (2011), “em termos políticos, a perspectiva queer constitui uma proposta
que se baseia na experiência subjetiva e social da abjeção como meio privilegiado para a
construção de uma ética coletiva” (p. 58). Ou seja, o sujeito interpelado queer apropria-se do
espaço a ele imposto pela norma e o reinventa, de forma que este espaço, mantendo sua relação
com as normatividades sociais, passa não mais a afirmá-la, mas a questioná-la. Nesse processo
de questionamento da norma as políticas e os Estudos queer apresentam uma peculiaridade em
relação aos movimentos que os precederam, seu foco recai sobre uma política de conhecimento
da diferença (MISKOLCI, 2011), antes de preocupar-se com a demarcação de um espaço
específico de lutas de cunho identitário.
O que está em jogo com a teoria queer é, antes de tudo a discussão em torno do que
constituiria os sujeitos das sexualidades e dos gêneros, bem como os marcos que delimitam os
conhecimentos acerca deles. Nesse sentido, os estudos e políticas queer acabam por expor que
119
categorias como sexo, corpo, gênero e sexualidade são fabricadas através de recursos culturais
e linguísticos engendrados em determinados circuitos de saber-poder (CÉSAR, 2016). Isso
implica numa visão performativa tal qual pensada por Butler (1999, 1993) que dificulta o
estabelecimento de identidades em termos não contingentes, incluindo o próprio termo queer,
que para manter seu potencial de resistência subversiva deve estabelecer uma relação crítica
consigo mesmo. Assim,
Essa visão da performatividade implica que o discurso tem uma história que não
apenas precede, mas condiciona seus usos contemporâneos, e que essa história
efetivamente descentra a visão presenteísta do sujeito como a origem exclusiva
ou o proprietário do que é dito. Isso significa também que os termos que usamos
frequentemente exigem uma volta contra essa historicidade constitutiva; reivindicam,
assim, os termos pelos quais insistimos em politizar a identidade e o desejo. Aqueles
de nós que questionamos as suposições presenteístas das categorias de identidade
contemporâneas somos, portanto, às vezes acusados de fazer teoria despolitizante.
E, no entanto, se a crítica genealógica do sujeito é o interrogatório daquelas relações
constitutivas e excludentes de poder através das quais os recursos discursivos
contemporâneos são formados, segue-se que a crítica ao sujeito queer é crucial para
a democratização contínua da política queer (BUTLER, 1993, p. 227) (tradução
nossa).
A teoria queer possibilita a construção de modos de vida outros abrindo mão da filiação
rígida às políticas identitárias e mantendo seu foco nas experiências de contracondultas no que
tange aos corpos, desejos e práticas sociais (CÉSAR, 2016), mas isso não é garantia de que
sempre operará enquanto resistência. Butler (1993) chama a atenção para a necessidade de que
se leve em conta ainda outros marcadores sociais de diferença para que o potencial subversivo
queer mantenha-se em funcionamento. Para que isso ocorra, é necessário a desconstrução
do próprio termo queer, que passaria a também levar em conta questões referentes a classe,
raça e etnia, por exemplo. Isso porque, “se a política ‘queer’ se posicionar independentemente
dessas outras modalidades de poder, ela perderá sua força democratizante” (BUTLER, 1993,
p. 229) (tradução nossa), num sentido de estar paralisada num determinado aspecto e leitura
da realidade que acabaria por ocultar a contingência histórica de seus próprios termos. Essa
capacidade de abertura, assimilação e ressignificação encontra-se na emergência do pensamento
queer, pois
Na política queer, de fato, dentro da própria significação do que é “queer”, lemos uma
prática ressignificante na qual o poder desancionador do nome “queer” é revertido
para sancionar uma contestação dos termos de legitimidade sexual. Paradoxalmente,
mas também com grande promessa, o sujeito que é “queerizado” no discurso público
por meio de interpelações homofóbicas de vários tipos assume ou titula esse mesmo
termo como base discursiva de uma oposição. Esse tipo de citação emergirá como
teatral na medida em que imitar e tornar hiperbólica a convenção discursiva que
120
também reverte. O gesto hiperbólico é crucial para a exposição da “lei” homofóbica
que não pode mais controlar os termos de suas próprias estratégias de abjeção
(BUTLER, 1993, p. 232) (tradução nossa).
Dessa forma, ao se propor que essa perspectiva siga operando através de citações
subversivas de maneira a incluir em seu campo discussões transversais às de gênero e
sexualidades, pretende-se mantê-lo enquanto locus possível de crítica social. Acerca disso,
Butler (1993) propõe um possível núcleo para avançar no que tange à teoria e políticas queer,
algo notado por ela já enquanto uma realidade, que seria o centramento das análises nas
experiências de abjeção, pois elas permitem o vislumbre de determinadas relações de poder
pautadas na produção de hierarquias indicadoras de possíveis vias de resistência que manteriam
a possibilidade de questionamento e ressignificação social e política.
A leitura que Foucault realiza acerca das perpectivas de resistência pautadas na ideia
de liberação encontra sua base, principalmente, na crítica por ele exercitada no que tange às
identidades. Ele destaca como a identidade é uma espécie de “jogo” que serviria ao favorecimento
de determinadas relações em detrimento de outras. Nesse sentido, se elas são utilizadas com a
finalidade de produção de relações de prazer e amizade, haveria aí um bom uso das identidades;
no entanto, se o que se busca com o recurso da identidade é o desvelamento da verdade do
sujeito, o encontro com uma pretensa “identidade própria”, então aí se teria a imposição de uma
lei ou código instituído enquanto parâmetro, e esse, por sua vez, exigiria a coerência do sujeito
consigo mesmo, o que reforçaria as normatividades tradicionais (FOUCAULT, 2004).
121
identidades de sexo-gênero, frente aos processos de captura identitária, passaria a ser pensada
enquanto uma “[...] prática crítica de transformação do modo de existir destinada a nos libertar
das identidades sociais e sexuais impostas pelos diversos dispositivos contemporâneos de
normalização, controle e condução de condutas” (DUARTE, 2016, p. 41).
Com isso, não se pode concluir que Foucault abdique da noção de identidade. Em
realidade, ele apregoa um possível uso estratégico dessa noção, e seu vislumbre enquanto um
possível marcador para identificação de relações de poder específicas. O cuidado tomado pelo
filósofo se refere às formas de defesa identitárias que exigem o recurso ao essencialismo, à
ideia de discurso e prática verdadeiras que condicionaria de forma hermética a produção das
subjetividades (DUARTE, 2016). Para Foucault (2004), “nós não devemos excluir a identidade
se é pelo viés da identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar
essa identidade como uma regra ética universal” (p. 266).
César (2016), ao realizar uma análise de inspiração foucaultiana dos movimentos LGBT
explicita as dificuldades para um uso estratégico das identidades. Para ele, predomina nesse
contexto uma espécie de captura pelo dispositivo da sexualidade analisado por Foucault (1988),
num sentido das sexualidades divergentes acabarem por ser recontextualizadas e deslocadas de
forma a seguir operando enquanto o fora da norma que delimita os limites da normalidade.
Com o pensamento foucaultiano acerca das correlações entre identidade e poder é colocado em
xeque o estatuto de verdade que o sujeito possuiria. Nesse sentido, a ideia de sujeito acaba por
criar fronteiras teóricas e políticas que estabilizam os espaços de intelibilidade e, num contexto
no qual as distribuições do poder operam de maneiras excludentes e desiguais é necessário
interrogar essa modalidade de funcionamento da identidade, pois, predominantemente, ela está
a serviço de dispositivos biopolíticos de controle e regulação dos corpos e suas experiências.
Apenas a partir desse questionamento se poderá observar de que forma são produzidas as
desigualdes e exclusões, bem como identificar em que pontos são exercitadas as resistências
com potencial de alteração das distribuições do poder.
É isso que Butler (2004, 1999, 1993) realiza em sua leitura crítica das identidades,
notadamente em suas discussões em torno do feminismo. Para a autora, a representação do
sujeito do feminismo ancorada na identidade da mulher traz consigo alguns problemas a ser
considerados. Essa problematização conecta-se com a leitura realizada por Butler da formação
linguística e política que instui as identidades de forma geral, e a das mulheres de forma
específica. Dessa forma, ela defende que a noção de mulher enquanto sujeito do feminismo é
ela mesma uma formação discursiva pautada em políticas identitárias representacionais, e isso
acaba por impor ao feminismo uma constituição a partir da linguagem do sistema político do
qual o feminismo supõe emancipar-se (BUTLER, 1999).
Essa concepção dialoga com a incorporação que Butler realiza da noção de poder
foucaultiana, uma vez que interroga ao feminismo acerca da possibilidade de se pensar a
122
produção de um sujeito identitário que preexista aos sistemas que pretendem questionar. Para
ela,
Fica explícito mais uma vez a crítica que Butler realiza da ideia de uma instância pré
cultural ou pré discursiva para o sexo, a qual basearia os construtos culturais do gênero. Para
a filósofa, as identidades são efeitos de práticas significantes em funcionamento nos regimes
de poder-saber que consolidam a heterossexualidade enquanto regime compulsório. Assim,
antes de dizer respeito à busca de uma identidade que permitiria o embate político em torno
das questões de gênero, para a consolidação de um processo de resistência, o feminismo deve
radicalizar sua crítica às configurações identitárias em torno do gênero de forma a atingir
também a própria categoria tomada por ele enquanto base, para assim extrapolar a tradicional
concepção de agência liberal (JAGGER, 2008).
É notável o efeito de desconstrução que essa concepção possui, pois coloca em xeque
as ideias de materialidade, corpo e sexo, muitas vezes, bases de seguimentos feministas. Isso
ocorre porque Butler refuta a ideia de igualdade baseada em premissas identitárias, uma vez
que essa igualdade pressupõe o estabelecimento de limites identitários fixos que acabam por
excluir experiências divergentes de seus parâmetros (JAGGER, 2008). Butler, assim como
Foucault, defende ser a regulação a responsável pela geração do objeto que alega apenas
descobrir e regular, nesse sentido, “[...] ao produzir o sexo como uma categoria de identidade,
123
isto é, ao definir o sexo como um sexo ou outro, a regulação discursiva do sexo começa a
funcionar” (BUTLER, 2008, p. 97), estando esse funcionamento implicado na produção da
própria categoria sexo.
Ela argumenta, portanto, que longe das representações feministas das mulheres (no
sentido lingüístico) serem simples reflexos do que as mulheres são (o que, em outras
palavras, correspondem à verdade subjacente do que é ser mulher), elas são, em fato,
mecanismos de poder através dos quais as próprias mulheres são construídas como
tipos particulares de sujeitos. Com base no trabalho de Foucault, ela argumenta que o
feminismo exibe uma estrutura “jurídica” (LLOYOD, 2007, p. 949) (tradução nossa).
124
O que Butler (1999) propõe é a problematização da ideia de identidade através do
vislumbre das operações políticas engendradas em sua produção. Nesse sentido, a adequação
política de uma categoria relaciona-se com interesses que, no caso do feminismo, moldam o
que viria a ser uma mulher de forma geral e, consequentemente, enquanto sujeito político. Isso
é ocultado através das políticas identitárias que performatizam o sujeito mulher enquanto que
dissimulam as elaborações políticas e epistemológicas que o possibilitam a partir dos corpos
sexuados e da ideia de inscrição cultural sobre corpos naturais.
Com isso, não significa dizer que Butler recusa absolutamente as identidades, mas
apenas que não credita a elas um caráter essencialista. Assim como Foucault, ela encontrará
125
possibilidades de usos para as identidades. Em Foucault (2004) há a proposição da criatividade
enquanto modalidade de expressão afirmativa. Ele defende que novas formas de vida, de
relacionamentos e expressões culturais são fatores de desestabilização nas normatividades
sociais, ao menos se esses, além de expressarem identidades, expressem de forma ampla suas
potências de criação.
Ao analisar especificamente os modos de vida gay, Foucault (2004) advoga que a criação
de uma cultura não é sinônimo de produção de modos de vida resistentes. Nesse sentido, apesar
de afirmar a necessidade de criação de uma cultura, ele o faz com o adendo dessa não poder
se abster do embate em torno da identidade. Isso ocorre para não se cair no essencialismo do
sujeito identitário como fundamento único e unívoco para as lutas, uma vez que esse pressupõe
normalizações e domesticações reprodutoras das distribuições desiguais do poder (DUARTE,
2016).
Essa maior abertura permite aos coletivos articular de forma radical vida e política, num
sentido da esfera dos direitos ser ampliada permitindo, assim, a experimentação e criação de
modos de vida. Nesse processo, as identidades sexuais acabam secundarizadas, sendo inclusive
embaralhadas, o que possibilita a problematização dos limites do binarismo de sexo-gênero
(DUARTE, 2016). Isso expressa o caráter ético da constituição dos sujeitos nas dinâmicas
de resistência que questionam o primado das identidades frente às múltiplas experiências,
permitindo uma nova relação consigo e com os outros que viabiliza o pensamento e ação
crítica. Para César (2016),
Tal ação de reflexão crítica sobre o presente, sobre si mesmo e sobre os outros é
assumida e levada a cabo como forma de resistência em relação aos poderes que
constituíram o sujeito assujeitado, condição central para que se instaurem novas
formas de relação consigo e com os outros, mais livres e mais autônomas (p. 144).
É a partir dessa leitura dos usos estratégicos das identidades que Butler (1999) analisa
o papel das minorias de sexo-gênero na modificação das estruturas binárias que normatizam os
sujeitos. Para ela, é necssário uma coalisão de minorias sexuais que transcendam as categorias
identitárias simplistas, para que as violências sobre os corpos e experiências perpetradas
através de normas restritivas possam ser revistas. A sexualidade é uma esfera complexa, e
por isso não deve ser reduzida a um conjunto delimitado de possibilidades. Isso se dá devido
a existirem várias dinâmicas discursivas e de poder institucional operando na fabricação dos
corpos generificados e suas expressões de sexualidade, sendo essas dinâmicas irredutíveis a
uma lógica unívoca de hierarquia que acaba por ocultar o caráter produtivo do poder.
126
No campo das teorizações e políticas feministas Butler propõe uma reavaliação radical das
estruturas ontológicas identitárias enquanto base para uma política de caráter representacional.
Nesse sentido, é necessário ampliar as maneiras de pensar identidade de gênero para que o
feminismo não fique preso a uma única base de pretensão imutável baseada na identidade das
mulheres e, em oposição a isso, concectar-se às variadas posições de identidade, bem como de
anti identidades que, via de regra, o feminismo acaba por excluir. Assim,
Com esse lugar paradoxal das identidades no seio do feminismo, evita-se a regulação
identitária enquanto política primária do movimento. Isso é imprescindível pois as demandas
pela construção e expressão de uma identidade coerente impõem uma normatização das políticas
de identidade que acaba por tomar o lugar da crítica dos contextos culturais e normativos que
invisibilizam o caráter necessariamente dinâmico da construção das identidades e, com isso,
seu potencial de questionamento (BUTLER, 1993).
127
fundamentos naturalizados. Paradoxalmente, a reconceitualização da identidade
como efeito, ou seja, produzida ou gerada, abre possibilidades de “agência” que
são insidiosamente impedidas por posições que tomam as categorias de identidade
como fundacionais e fixas. Para uma identidade ser um efeito, significa que ela não
é fatalmente determinada, nem totalmente artificial e arbitrária. O fato de o status
constituído da identidade ser mal interpretado nessas duas linhas conflitantes, sugere
as maneiras pelas quais o discurso feminista sobre a construção cultural permanece
preso no binarismo desnecessário do livre arbítrio e do determinismo. A construção
não se opõe à agência; é o cenário necessário para a agência, os próprios termos nos
quais a agência é articulada e se torna culturalmente inteligível. A tarefa crítica para
o feminismo não é estabelecer um ponto de vista fora das identidades construídas;
essa presunção é a construção de um modelo epistemológico que negaria sua própria
localização cultural e, portanto, se promoveria como sujeito global, uma posição que
implanta precisamente as estratégias imperialistas que o feminismo deve criticar.
A tarefa crítica é, antes, localizar estratégias de repetição subversiva possibilitadas
por essas construções, afirmar as possibilidades locais de intervenção participando
precisamente daquelas práticas de repetição que constituem identidades e, portanto,
apresentam a possibilidade imanente de contestá-las (BUTLER, 1999, p. 187-8)
(tradução nossa).
Ainda que explicitando o potencial disruptivo das políticas e estudos queer, Butler
(1993, 2004) aponta para a necessidade de crítica acerca das possibilidades de fixação identitária
em sua esfera. Nesse sentido, ela defende enquanto necessária a genealogia crítica do sujeito
queer, na direção de estabelecimento de uma dimensão autocrítica dos ativismos queer. Com
isso, ela não quer dizer que o termo deixe de ser utilizado, mas sim desconstruído e reformulado
em sua prática política, de maneira a não ocorrer uma paralização tanto no que tange a uma
128
fixação identitária, tampouco no que se refere a uma possível crítica estéril que inviabilizaria o
próprio termo em seus potenciais subversivos.
A política queer, para permanecer queer, precisa ser capaz de desempenhar a função
de esvaziar a delicadeza de sua referencialidade ou positividade, protegendo-a contra
sua tendência ao concreto encorporamento e, assim, preservando a delicadeza como
uma relação resistente e não como uma substância de oposição (p. 113) (tradução
nossa).
129
Assim, ainda que o queer não tenha absolutamente perdido sua utilidade e força
política, é indispensável que exerça a todo momento um movimento de renovação, de forma
que se mantenha o espaço das identidades enquanto vazios, passíveis de ser temporariamente
preenchidos de forma estratégica sem qualquer pretensão de conceitualização unívoca
(HALPERIN, 1995). Apenas assim as relações de poder podem ser questionadas e reformuladas,
num processo de invenção coletiva que possibilite a ampliação do espectro ético do que se
considera enquanto uma vida humana.
130
5. GENEALOGIAS: CRÍTICA E TRANSFORMAÇÃO
Devido ao seu caráter aberto “a obra não pode ser considerada como unidade imediata,
nem como unidade certa, nem como unidade homogênea” (FOUCAULT, 2013, p. 30), ou
seja, a análise discursiva que toma para si a perspectiva foucaultiana tem por objetivo muito
mais pensar as descontinuidades que as continuidades, as diferenças que as identidades, enfim,
os inúmeros atravessamentos nas relações de saber-poder que podem ser instituídas num
determinado campo discursivo num determinado momento histórico-social.
131
investigação arqueológica como uma “investigação daquilo que torna necessária determinada
forma de pensamento [...]” (p. 40), ou seja, a partir da constituição de uma arqueologia se pode
analisar não apenas a constituição de um campo discursivo específico, como também pensar as
razões para que esse discurso tenha surgido e não outro em seu lugar.
A riqueza conceitual das propostas foucaultianas está muito mais na abertura que
este autor operou no campo das análises dos discursos que num possível fechamento na
possibilidade de construção de um novo método. Assim, o que passa a ser evidenciado é o caráter
incompleto das formações discursivas, sobre as quais mais importa pensar descontinuidades
e silenciamentos do que a possibilidade de instituição de uma leitura total e inequívoca. Há,
assim, a possibilidade de pensar uma multiplicidade de objetos sobre os quais não se pretende
desenvolver uma leitura interpretativa, que pode ser considerada o avesso de uma leitura
arqueológica.
132
funcionamento entrelaçado de práticas discursivas e práticas não discursivas. Com
efeito, o saber e o poder se apoiam e se reforçam mutuamente (p. 323).
Assim, não é possível desvincular a produção dos discursos tidos por verdadeiros de
uma determinada distribuição dos poderes na sociedade. É nesse sentido que o encadeamento
saber-poder se expressa no pensamento foucaultiano, que analisa como determinadas formas
de produção discursiva produzem e são produzidas em cruzamento com formas específicas de
exercício de poder nos processos de produção das subjetividades.
Os discursos podem ser, assim, eles mesmos considerados enquanto práticas sociais,
articulados que estão com as relações de poder e as produções das subjetividades (FERNANDES,
2012). Assim, nas práticas sociais institui-se uma determinada distribuição dos poderes através
das relações entre sujeitos, grupos e instituições e “há uma produção de discurso que integra
essas relações de poder e volta-se para a produção da subjetividade por meio da sujeição dos
indivíduos a uma verdade que, então, é apresentada, até mesmo imposta, a eles” (FERNANDES,
2012, p. 54). Castro (2016) aponta como no pensamento foucaultiano o poder é a maneira que,
através de dispositivos específicos, se conduz as condutas dos indivíduos de forma a facilitar
as condutas desejadas e dificultar ou limitar as indesejadas. É a partir do poder que “[...] somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de
viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem
consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2010a, p. 22).
No entanto, não é apenas enquanto instrumento de sujeição que o poder pode ser
exercitado, “[...] o poder implica e/ou requer a resistência” (FERNANDES, 2012, p. 56), sendo
nesse jogo, que se dá principalmente a partir das micro relações, que as possibilidades de
subversão se instituem. Assim, se por um lado, o poder, a partir de uma produção histórica
que se efetiva nas relações concretas de sujeição, produz as subjetividades disciplinadas e
controladas; por outro, será também nessas relações que as possibilidades de resistência se
efetivam, explicitando assim a função muito mais produtiva que repressiva do poder (ERIBON,
2008). Essas resistências se manifestam nas próprias relações de saber-poder que inicialmente
produziram os assujeitamentos, de forma que
133
É nesse sentido, e tratando especificamente das relações entre saber e poder, que
Foucault (2016c) reivindica a necessidade de “[...] desvincular o poder da verdade das formas
de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento”
(p. 54), tendo esse autor também destacado as possiblidades de resistência nos processos de
subjetivação. Castro (2016) chamará a atenção para como o debruçar-se acerca das questões
referentes ao poder fez com que Foucault elaborasse ferramentas conceituais próprios para sua
analítica. Assim, como para a análise dos arquivos e formações discursivas houve a construção
de uma arqueologia, no que tange às análises do poder surge como possibilidade metodológica
a genealogia.
Castro (2016) destaca a importância de não se pensar a genealogia como uma ruptura
ou como uma forma de oposição à arqueologia, de forma que seria mais apropriado pensar
essas duas formas de análise em suas especificidades em relação aos períodos do pensamento
foucaultiano, denotando muito mais uma questão de foco e ampliação que de concepções.
Nesse sentido “[...] a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de
investigação para incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e,
sobretudo, a relação não discursividade/discursividade” (CASTRO, 2016, p. 185).
134
dos discursos e dos saberes “[...] em termos de estratégia e táticas de poder” (CASTRO, 2016,
p. 185).
Esse foco permite pensar a inserção dos discursos e dos saberes no âmbito das práticas
sociais através e a partir de determinadas distribuições do poder. É nesse jogo que emerge o
que Foucault (2010a) denominou de saberes sujeitados. Esses saberes se referem tanto aos
blocos de saberes históricos esquecidos ou relegados pelos saberes hegemônicos que, pelos
meios da erudição, reaparecem enquanto crítica, como também dizem respeito aos saberes não
qualificados enquanto saberes conceituais e postos enquanto hierarquicamente inferiores em
relação aos saberes científicos, aos quais Foucault (2010a) denominou de saberes das pessoas.
Nesse contexto, Foucault (2010a) estabelece uma função de luta para a genealogia: será “[...]
exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a
genealogia deve travar o combate” (FOUCAULT, 2010a, p. 10), sendo no acoplamento das duas
modalidades de saberes sujeitados conceituadas pelo autor que se encontra a possibilidade de
construção de um saber histórico das lutas e a utilização desses saberes na contemporaneidade.
É nesse sentido que Foucault (2010a) destaca a importância de se
135
O discurso aparece como espaço possível de lutas devido às suas relações com o desejo
e com o poder (FOUCAULT, 2011), sendo através da genealogia que se tornaria possível a
análise dessas relações. Somente a partir de uma perspectiva que permita pensar o caráter
descontínuo, arbitrário e conflitivo dos discursos e das relações de poder seria possível exercitar
as possibilidades de subversão e questionamento a partir das resistências. Nesse sentido,
a genealogia atuaria como uma forma de questionar o próprio poder científico, de forma a
tornar os saberes sujeitados – sejam os históricos ou o saber das pessoas – livres, de forma que
esses pudessem ser utilizados nas lutas contra as coerções científicas e, consequentemente, de
disciplinamento das relações sociais (FOUCAULT, 2010a). O empreendimento genealógico
estaria relacionado, assim, às lutas contra os privilégios do saber, o que, no fim, relaciona-se
diretamente com as lutas contra a submissão, sujeição e formas de subjetivação no meio social
(FOUCAULT, 2010a; FERNANDES, 2012).
No exercício genealógico não são considerados apenas os saberes oficiais, mas também
a multiplicidade de discursos e práticas que sustentam e questionam determinadas distribuições
do poder. Nesse sentido, há a implicação das pesquisas genealógicas com a ação de desassujeitar
os saberes que Foucault (2010a) denominou de históricos, uma vez que esses seriam capazes
de instituírem-se enquanto oposição à ordem do discurso (FOUCAULT, 2011) estabelecida. A
genealogia não pode ser pensada enquanto método fechado em suas técnicas e procedimentos,
pois deve adequar-se a cada modalidade de discurso e prática sobre as quais se debruça. A
crítica da atualidade a partir da análise das relações de saber-poder se institui como sua maior
característica, o que permite a consolidação de um modo de ver as coisas relacional, uma
maneira de relacionar-se com a história e suas produções. Para Veiga-Neto (2009),
Isso tudo aponta no sentido de que a assim chamada teoria foucaultiana do sujeito e
suas correlatas metodologias são mais ferramentas do que máquinas acabadas. Aqui
cabe trazer o conceito de teorização, talvez mais apropriado do que simplesmente
teoria. Parece que estamos diante de uma teoria que só a posteriori se revela como
136
tal, ou seja, uma teoria que não estava antes lá para guiar a investigação. E estamos
diante, também, de uma metodologia cuja invariante, ao longo de toda a obra,
pode ser sintetizada no permanente envolvimento com a noção de problema: tanto
problematizando – enquanto atitude radicalmente crítica – quanto perguntando por
que algo se torna ou é declarado problemático para nós. Nesse sentido, mudando a
maneira de problematizar e mudando os próprios problemas, pode-se dizer que a
invariante metodológica e temática em Foucault é a própria variação… (p. 91-2)
137
movimento de crítica acerca do próprio estatuto dos saberes (OWEN, 2005). Não se encontra
no projeto genealógico de Foucault uma atividade positivista ou de pretensões empiristas. As
hegemonias dos saberes considerados científicos são, inclusive, questionadas, num sentido de
ocorrer o questionamento de um bloco monolítico de saber através do processo de análise dos
efeitos de poder que esse institui, sendo possível afirmar inclusive que “o que confere validade
a um projeto genealógico é a vulnerabilidade e as fissuras que provoca no solo teórico unificado
e sólido da discursividade científica dominante” (RESENDE, 2016, p. 130).
[...] em vez de partir dos universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou antes,
em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade obrigatória para um
certo número de práticas concretas, gostaria de partir dessas práticas concretas e, de
certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas (p. 05).
Ele decide partir da inexistência dos universais para indagar a história, ao invés de partir
da história para explicitar supostos universais. Isso ocorre devido a sua opção por explicitar os
aspectos disruptivos das mudanças, num sentido das unidades impostas pela ideia de universal
serem tentativas de tornar regulares processos de produção de experiências e subjetividades
que são irregulares. Assim, Foucault opera em suas pesquisas a inclusão das descontinuidades,
o que o leva ao questionamento dos universais a partir do interior de sua fabricação (MAY,
1993).
Essa distinção é indispensável para uma certa forma de distribuição do poder, num
sentido de instituir no campo das práticas dispositivos que exercitam saberes e poderes que se
movem predominantemente numa direção e, no campo epistemológico, a ideia de erro a partir
da qual se passa a buscar a validade ou não de um determinado enunciado tendo a própria lei
da verdade como régua. Essa demarcação do verdadeiro e do falso acaba por marcar o real
com elementos que não possuem existência absoluta, como se pretende fazer acreditar através
138
dos dispositivos de saber-poder, mas que nem por isso deixam de ter existência enquanto
moduladores das experiências (FOUCAULT, 2008b).
Trata-se de mostrar por que interferências toda uma série de práticas – a partir do
momento em que são coordenadas a um regime de verdade –, por que interferências
essa série de práticas pôde fazer que o que não existe (a loucura, a doença, a
delinqüência, a sexualidade, etc.) se tornasse porém uma coisa, uma coisa que no
entanto continuava não existindo. Ou seja, não [como] um erro – quando digo que o
que não existe se torna uma coisa, não quero dizer que se trata de mostrar como um
erro pôde efetivamente ser construído –, não como a ilusão pôde nascer, mas [o que]
eu gostaria de mostrar [é] que foi certo regime de verdade e, por conseguinte, não
um erro que fez que uma coisa que não existe possa ter se tornado uma coisa. Não é
uma ilusão, já que foi precisamente um conjunto de práticas, e de práticas reais, que
estabeleceu isso e, por isso, o marca imperiosamente no real (FOUCAULT, 2008b,
p. 26-7).
A essa altura surge uma crítica da verdade no pensamento foucaultiano. Essa crítica
conecta-se com o aspecto político da perspectiva genealógica em Foucault, uma vez que uma
genealogia “não é uma história do verdadeiro, não é uma história do falso: a história da veridição
é que tem importância politicamente” (FOUCAULT, 2008b, p. 50-1). Fica evidenciado na
concepção de veridição em detrimento das de verdadeiro ou falso o caráter provisório dos
empreendimentos genealógicos. Nesse sentido, no exercício crítico acerca de relações de poder
localizadas, o que encontramos é a organização e explicitação de interrelações temporárias que
podem, por isso, ser questionadas e reformuladas (MACHADO, 2016). Essa visão é possível
por encontrarmos em Foucault não a verdade, mas verdades; não a política, mas políticas, ou,
de forma mais precisa, micropolíticas (MAY, 1993).
139
A crítica que lhes proponho consiste em determinar em que condições e com quais
efeitos se exerce uma veridição, isto é, mais uma vez, um tipo de formulação do
âmbito de certas regras de verificação e de falsificação. Por exemplo, quando digo
que a crítica consistiria em determinar em que condições e com quais efeitos se exerce
uma veridição, vocês vêem que o problema não consistiria em dizer, portanto: vejam
como a psiquiatria é opressiva, já que é falsa. Não consistiria nem mesmo em ser
um pouco mais sofisticado e dizer: olhem como ela e opressiva, já que é verdadeira.
Consistiria em dizer que o problema está em trazer à luz as condições que tiveram de
ser preenchidas para que se pudessem emitir sobre a loucura – mas a mesma coisa
valeria para a delinqüência, a mesma coisa valeria para o sexo – os discursos que
podem ser verdadeiros ou falsos de acordo com as regras que são as da medicina ou
as da confissão ou as da psicologia, pouco importa, ou as da psicanálise.
Em outras palavras, para que tenha um alcance político, a análise tem de visar não
a gênese das verdades ou a memória dos erros. Saber quando determinada ciência
começou a dizer a verdade, que importância tem? Lembrar-se de todos os erros que
os médicos cometeram ao falar sobre o sexo ou a loucura não adianta nada... A meu
ver, o que tern uma importância política atual é determinar que regime de veridição
foi instaurado num determinado momento (FOUCAULT, 2008b, p. 50).
É justamente devido à essa conexão com o político que as genealogias podem ser vistas
enquanto análises da atualidade. Isso ocorre pela conexão dos empreendimentos genealógicos
com as relações de poder que emergem em nossos sistemas atuais de dominação (GUTTING,
2005). Ao explicitar a multiplicidade histórica que permitem a produção de uma determinada
forma de distribuição do poder, Foucault realiza um uso político dessas emergências, o que
permite a ele rearticular saber e poder num sentido de uma crítica sobre as bases históricas de
constituição da verdade, bem como através de uma visibilização de saberes sujeitados.
Dessa forma, Foucault interroga acerca do que seria nosso presente, instituindo uma
forma específica de esclarecimento filosófico (MAY, 1993). Através de empreendimentos
empíricos, Foucault lança luz sobre as condições de emergência dos sistemas de inteligibilidades
estabilizados através de relações de saber-poder. Para isso, ele identifica as convergências de
elementos dispersos tendo como critério os efeitos desses nos contextos localizados analisados
a partir de recortes no corpo social. Com isso, ele opera uma crítica do presente sem a pretensão
de erigir um modelo filosófico ideal, mas enquanto um questionamento da aceitação de
determinadas condições de produção de saberes e práticas a eles associadas (BERT, 2013).
140
mas também as implicações políticas dos saberes e das práticas e ele conectadas. Dessa forma,
é impossível pensar um empreendimento epistemológico que não seja ao mesmo tempo
relacionado à política. É essa relação intrínseca entre epistemologia e política que leva May
(1993) a afirmar o seguinte sobre Foucault:
Se Foucault era um autor político sobre o nosso conhecimento, não é porque ele tinha
algo a dizer sobre como eram nossos conhecimentos ou nossa razão. De fato, falar
de nosso conhecimento ou de nossa razão (ou mesmo, às vezes, de nossa sociedade)
convida aos tipos de cegueira que permitiram nossos conhecimentos e às estratégias
nas quais eles estão engajados para continuarem firmes (p. 65) (tradução nossa).
Devido à sua concepção de poder, ao falar de política nos campos dos saberes, Foucault
não estava defendendo uma concepção de política macro, realizada necessariamente através
dos grandes aparatos do Estado, mas, ao invés disso, encontramos em sua concepção o
reforço da ideia de micropolítica, uma vez que essa pode facilmente ser exercitada em práticas
capilarizadas no meio social através de dispositivos nem sempre facilmente identificáveis com
os aparelhos disciplinares de Estado.
Isso não quer dizer que Foucault hierarquize os poderes que emanam diretamente do
Estado e aqueles que se localizam além ou aquém desse. Na realidade, o autor explicita um
novo entendimento de política que impõe novos formatos às intervenções. Assim, antes de
se referir a um objeto de validação do que seria o poder e suas relações, depreende-se do
conceito de micropolítica uma nova perspectiva de investigação. Essa perspectiva parte do
questionamento da possibilidade de se recorrer a uma base transcendente para as lutas políticas,
algo que comumente se coloca enquanto um fundamento da filosofia política (MAY, 1993),
instituindo no lugar dessa uma leitura de luta e de autodeterminação pautada no imperativo de
compreensão acerca do presente e das relações de saber-poder nele construídas.
Uma vez compreendido que quando do tema das genealogias temos uma questão tanto
epistemológica quanto política evidencia-se a razão de Foucault ter abdicado de esquemas
141
que buscassem um fundamento único e inequívoco para analisar o poder. A partir desse
empreendimento ganha-se profundida nas análises e, assim, não mais é possível partir da
separação dos marcos epistemológicos ou políticos, pois essas instâncias estão longe de serem
passíveis de apreensão de forma isolada uma da outra. Dessa forma, é possivel asseverar que
Uma visão não exaustiva das relações de poder torna-se possível através do vislumbre
micropolítico de seu funcionamento. Se o exercício do poder não puder ser resumido ao
exercício da soberania, o entendimento das formas de dominação contemporânea deve buscar
nas práticas de saber-poder parte do entendimento do que somos. Nesse sentido, antes de ser
vista enquanto a forma de leitura que permite o vislumbre da verdade dos funcionamentos do
poder, as genealogias devem ser pensadas enquanto ferramentas epistêmicas que permitem
acesso às relações micropolíticas (MAY, 1993), essas responsáveis pelo descortinar das formas
de produção das verdades.
Cada cartografia, regional ou global, segundo seja levada por pretensões ideológicas,
estéticas ou científicas, define seu próprio campo de eficiência pragmática, e é bem
142
evidente que uma renúncia, como aquela de Foucault, aos mitos reducionistas que
têm geralmente curso nas ciências humanas, não poderia ser sem incidência sobre as
questões políticas e micropolíticas […] (GUATTARI, 2007, p. 34).
Um conceito que serve para uma maior compreensão do que vem a ser a genealogia
é o de problematização. A partir de uma perspectiva genealógica, problematizar refere-se a
questionar e tornar visíveis os modos pelos quais as estruturas de reconhecimento operam na
cultura. Ao permitir esse vislumbre, a problematização permite também a transformação, a
possibilidade de, a partir da erupção de novas maneiras de distribuir os poderes, ser diferente.
Nesse sentido, a questão que guia as problematizações refere-se sempre ao estatuto do que
somos e, além disso, do que efetivamente se pode vir a ser enquanto sujeito e comunidade
(OWEN, 2005).
Ao problematizar não se está, no entanto, apenas substituindo uma forma de ver e agir por
outras, que seriam vistas como mais válidas ou verdadeiras. Ao invés disso, a problematização
abre um campo de questionamento possível que deve operar todo o tempo no contato com as
relações de saber-poder em suas dinâmicas de distribuição e redistribuição. Revel (2005), ao
defender a problematização como tarefa da filosofia, afirma que
A problematização passa, dessa forma, pela historização dos objetos sobre os quais
se debruça. Nesse sentido, busca acompanhar as transformações pelas quais esse objeto
passou, de forma a explicitar as formas de consolidação de discursos e práticas instituídas
enquanto verdadeiras (BERT, 2013). Para esse empreendimento é necessário a atuação em três
eixos: primeiro na leitura histórica da verdade acerca de nós mesmo; segundo, a historização
concomitante das relações de poder que estão conectadas com os sabres que instituem as
verdades e, por fim; as reverberações éticas que as dinâmicas de saber-poder impõem ao que
somos (OWEN, 2005).
Com isso, nota-se os aspectos tanto teóricos como metodológicos do que é uma
genealogia. Nesse sentido, ela se impõe enquanto uma tática epistemológica, política e ética
de questionamento com possíveis efeitos de transformação em relação aos objetos sobre os
143
quais se debruça, sendo esse caráter aberto dos empreendimentos genealógicos o que permite
a eles problematizar variados contextos através da checagem das formas de veridição que
possibilitam o surgimento e consolidação de determinadas dinâmicas de saber-poder.
Foucault (2016e) explicita a genealogia como uma minúcia estratégica que torna risível
qualquer tentativa de alcance das origens. O recurso à história encontrado nos empreendimentos
genealógicos é utilizado não para confirmá-las, mas, ao contrário disso, refutá-las. O filósofo
francês se ocupa, assim, de pensar sobre os aparecimentos de determinados dispositivos e
relações de poder a eles vinculadas, o que abre esses campos à multiplicidade, tanto do ponto de
vista epistemológico, quanto do ponto de vista ético e político. Somente a partir disto, é possível
pensar em genealogias que tomem para si objetos vários, sem pretensão à universalização, mas
com objetivos de explicitação das suas formas de emergência, funcionamento e possibilidades
de modificação.
Judith Butler em vários momentos de suas obras acerca dos gêneros e das sexualidades
denomina o empreendimento teórico por ela desenvolvido de genealogia. Ela justifica essa
espécie de filiação ao fato de que em seus trabalhos realiza a crítica das ideias relacionadas
a uma origem e originalidade das experiências de gênero. Nesse sentido, e através de uma
perspectiva genealógica, ela expõe os fundamentos das categorias de sexo e gênero baseados
numa determinada formação do poder, o que a permite conectar as expressões de sexo e gênero
às dinâmicas políticas das instituições e práticas discursivas que forjam as ideias de origem e
naturalidade no campo por ela analisado (BUTLER, 1999).
A genealogia realizada por Butler opera, assim, uma crítica ao conceito de diferença
sexual, partindo dela para a proposição de transformações mobilizadas através do desmonte
do sistema de sexo e gênero binário heterossexual como matriz de inteligibilidade humana.
Com seu empreendimento ela constrói o diagnóstico do presente das relações de sexo e gênero,
incluindo aí críticas ao próprio movimento feminista, que muitas vezes toma para si sem
144
questionamento o paradigma da diferença sexual. Isso efetivamente consolida seu trabalho
enquanto genealógico, uma vez que
A crítica genalógica do gênero abarca ainda os aspectos de produção do corpo, uma vez
que, para Butler (1993), o sexo e sua delimitação corporal binária é sempre também gênero.
Devido a isso, ela estabelece uma relação de crítica com a normatização dos corpos. Nesse
sentido, questiona o vislumbre do corpo enquanto apriorístico em relação à cultura marcado
posteriormente pelo gênero (BUTLER, 1999, 1993). Para a filósofa, a naturalização dos
corpos é mais um elemento possibilitador da hierarquização de gênero, de forma que insistir
na distinção entre natureza e cultura quando da teorização acerca dos sexos consolida a rigidez
e violência do dispositivo do gênero. Isso leva Butler ao questionamento epistemológico da
distinção entre natureza e cultura, pois ela não seria para a filósofa um simples vislumbre da
realidade, mas um investimento de poder no campo da produção do conhecimento (BUTLER,
1999, 1993).
A partir de Foucault, e indo além dos objetivos dele, Butler explicita o que estaria
ocultado sob a égide do natural no que tange aos corpos, gêneros e sexualidades, tendo sua
crítica à ideia de diferença sexual como pilar principal para a sustentação de sua teoria. Com
145
isso, a filósofa permite a transformação do campo de estudos no qual localizam-se seus trabalhos
e, consequentemente, a transformação social, cultural e política no que tange as relações de
sexo e de gênero na atualidade.
Essa forma de vislumbre é possível pela apropriação da crítica feita por Foucault que
Butler realiza acerca da concepção jurídica de poder. Ela expõe a necessidade da assunção da
crítica acerca das categorias identitárias contemporâneas que, através de estruturas jurídicas,
naturalizam e imobilizam as expressões do que é aceito enquanto humanamente inteligível. Ela
realiza essa crítica, por exemplo, quando de sua análise acerca do feminismo, uma vez que, a
partir da genealogia do sujeito mulheres ela põe em questão a possibilidade de se determinar
quem ocuparia o lugar de sujeito do feminismo sem que com isso se incorra na exclusão de
expressões várias no campo dos gêneros (BUTLER, 1999).
Ela não pretendeu com isso defender a impossibilidade de uma agenda feminista,
mas explicitar os limites dessa agenda com a finalidade de tornar o feminismo uma forma de
resistência mais potente. Para isso, Butler defende ser necessário a articulação complexa de
marcadores de poder, num sentido de que não se poderia eleger apenas um critério para a ação
146
política, uma vez que todos eles tratam de aspectos localizados e parciais da experiência social,
cultural e política (BUTLER, 1993). Devido a essa complexidade o vislumbre estritamente
jurídico do poder deve ser ampliado em direção aos seus aspectos produtivos. Nesse sentido,
não se trataria de analisar como as pessoas são de um determinado gênero, mas através de que
efeitos de poder é possível a assunção de um gênero dentro de determinados parâmetros de
inteligibilidade. A genealogia do gênero aponta, assim, para o questionamento das estruturas
de saber-poder que impõem uma certa configuração cultural enquanto absolutamente natural e,
por isso, real e hegemônica (BUTLER, 1999).
Butler (1999) recorre mais uma vez ao pensamento de Foucault para sustentar sua
concepção genealógica do gênero, notadamente nas discussões realizadas pelo autor em torno
do dispositivo da sexualidade:
147
A partir da visão genealógica de Butler sobre os sexos e gêneros é possível pensar os
processos de transformação nesse campo, o que evidencia o aspecto de luta política encontrado
em sua teorização. Nesse sentido, a reformulação ou subversão das políticas de identidade
realizadas por Butler se referem tanto a um empreendimento teórico como a uma necessidade
da luta política acerca da qual são realizadas as teorizações (MELONI, 2008).
Voltando mais uma vez a Foucault, Butler nos encoraja a pensar não mais em um
sujeito político, mas em múltiplas “subjetividades” ou “subjetivações”, em novas
possibilidades de vida, em diferentes modos de existência, em outras afiliações ou
modos de ser em comum (MELONI, 2008, p. 81) (tradução nossa).
Ainda que se mantenha como uma crítica das políticas de identidade em sua faceta
necessariamente excludente, Butler não cai em niilismo num sentido de recusa estrita da
existência das identidades. Ao invés disso, ela realiza a genealogia crítica das identidades
de forma a evidenciar seu caráter construído e, consequentemente, localizado em tempo e
contextos. Torna-se possível com isso um olhar sobre si mesmo, de maneira a questionar o
instituído lutando por transformações. Esse movimento não retira o sujeito das redes de poder
ou o torna imune a elas, mas permite operar mudanças nas formas de distribuição do poder,
e, por consequência, nos processos de subjetivação por elas engendrados. Pode-se dizer, em
síntese, que “[...] a genealogia é uma jornada após a qual retornamos ao ponto de partida, mas
sem ser os mesmos” (HERRANZ, 2013, p. 348) (tradução nossa).
148
É essa concepção de genealogia e política que Butler carrega ao realizar as suas
análises em torno das questões de sexo e gênero, rearticulando esses dispositivos a partir de
sua concepção perfomativa do poder. Assim,
[...] Butler exibirá uma certa visão de política de gênero vinculada a um poder
performativo incorporado em corpos que violam continuamente os termos do
discurso em que se inscrevem voluntariamente. A chamada “paródia de gênero”
será um desses jogos estratégicos que atuarão como um cavalo de Tróia, mostrando
a flexibilidade da realidade incorporada em corpos progressivamente “limpos”
de natureza essencial, até um ponto em que a importância dos corpos é a própria
importância da matéria expressa em um estilo (como o efeito puramente superficial
do trabalho de autoconstrução realizado por toda a realidade: tomada como sujeito e
objeto) (HERRANZ, 2013, p. 350) (tradução nossa).
Butler realiza, através do performativo e da ideia de paródia, uma torção nos marcos
epistêmicos que orientam as análises em torno das experiências de sexo-gênero. Para isso,
ela articula uma série de autores de forma inédita e criativa. A partir do marco de pensamento
foucaultiano, e o extrapolando, ela permite que as formas de análise em torno das experiências
de sexo, gênero e sexualidades sejam postas em xeque, num movimento através do qual ela
evidencia os artifícios na fabricação dos marcos de inteligibilidade culturais e, além desses, de
inteligibilidade epistemológica que consolidam as relações de saber-poder sobre as quais se
debruça em sua genealogia do gênero.
149
AINDA SOBRE GENEALOGIAS:
PENSANDO O PAPEL DO INTELECTUAL COM FOUCAULT E BUTLER
Essa postura conecta-se com o que Foucault denominou de intelectual específico. Esse
intelectual já não seria posto enquanto a voz que diria a verdade das experiências e realidades
sobre as quais se debruça, mas enquanto um problematizador do fato de que, no mais das vezes,
os sujeitos sabem bem da realidade em que vivem e são capazes de identificar as dinâmicas de
opressão incidentes sobre suas existências, mas, devido aos circuitos de saber-poder instituídos,
são privados de discurso. Foucault (2016d) aponta como os próprios intelectuais muitas vezes
sustentam essa lógica de desigualdade, quando se colocam enquanto a consciência de um grupo
devido às suas possibilidades de discurso que se adequam às dinâmicas do poder.
Nesse cenário, para Foucault (2016d) cabe ao intelectual não replicar as desigualdades
no que tange a possibilidade de discurso, mas questioná-las. Assim, antes de se colocar a frente
ou acima das experiências para emitir as verdades, o intelectual específico deve cumprir o papel
de lutra contra as formas de poder produtoras de assimetrias. Essa luta não deve ser pensada
enquanto substituta das lutas realizdas pelos grupos oprimidos, mas unir-se a ela através do que
o intelectual tem como potencial arma: sua localização na ordem do saber.
150
(BERT, 2013), ainda que não haja nenhuma contradição ou impossibilidade de pertencimento
mútuo nas variadas formas de militância, uma vez que os novos focos de luta não significam o
fim das antigas formas de oposição às expressões da dominação (MAY, 1993).
Isso impõe uma nova forma de trabalho intelectual, com estratégias particulares para
identificar e lutar contra as opressões. Nesse sentido, o que o intelectual específico constrói são
formas particulares de contato com as análises históricas e filosóficas acerca de seu tempo, num
processo no qual a construção do pensamento se consolida, ao mesmo tempo, enquanto forma
de resistência. Para que esse trabalho seja efetivo, é indispensável escutar os oprimidos pelos
dispositivos de saber-poder em funcionamento, o que se opõe ao tradicional local de baluarte
da verdade sobre as experiências (MAY, 1993).
Isso ocorre devido aos intelectuais estarem eles também imersos na sociedade e não fora
dela, imersos nas relações de poder, e não afastados delas para realizar as suas análises. Assim,
é possível a construção de uma espécie de solidariedade em relação às lutas e aos sujeitos
mais diretamente nelas inseridos (MAY, 1993). Em realidade, ao se notar esse pertencimento
necessário às relações de poder, Foucault (2016d) defende que se têm o início da própria
percepção do como ocorre os exercícios do poder e de como ele se distribui num determinado
contexto e momento.
É interessante notar como esse lugar do intelectual específico muitas vezes o coloca
numa relação paradoxal tanto com as hegemonias sociais, como com os movimentos que
são instituídos em resistência a elas. Isso porque ele está no agonismo das lutas do cotidiano
e, ao mesmo tempo que inserido nelas de forma próxima aos indivíduos e grupos que as
protagonizam, realiza análises que podem ir contra o que esses grupos defendem (PAGNI,
2016). Exemplo disso são as discussões que Foucault (1988) realizou acerca da sexualidade,
nas quais questionou o paradigma da liberação, marca de muitos movimentos sociais; como
também Butler (1993, 1999, 2004), que ao questionar a ideia de diferença sexual, colocou em
xeque um importante pressuposto de muitas perspectivas feministas.
O fazer intelectual se conecta, assim, a uma estratégia de poder, e isso impõe que se
assuma responsabilidades políticas. Essa responsabilização diz respeito a interferência que os
151
intelectuais podem exercitar nas políticas de verdade de suas épocas, e, através delas, propor
modificações na atualidade das lutas. Dessa forma, mostrar a possibilidade de fabricação de
vidas outras em contextos determinadas passa a ser uma das principais tarefas do intelectual
específico defendido por Foucault, o que impõe uma complexa dinâmica de constituição
discursiva associada, muitas vezes, a vivência ética de uma concepção política que afirma as
diferenças (PAGNI, 2016).
Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza
e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de
força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará
amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de
passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer
qual revolução e qual pena). Que fique claro que os únicos que podem responder são
os que aceitam arriscar a vida para fazê-la (p. 362).
Foi esse o tipo de intelectual que o próprio Foucault foi; e é esse tipo de intectual que
encontramos em Butler. Essa autora questiona os paradigmas de seu campo de atuação para
propor uma radical implicação política de seu fazer intelectual. Nesse sentido, ela opera uma
crítica acerca do que pode ou não ser considerado filosofia. Para isso a autora expõe como
uma série de mudanças no espaço de enunciação filosófica levaram à perda do controle de
determinados grupos filosóficos institucionalizados no que tange à enunciação e definição do
que viria ou não a ser filosofia (BUTLER, 2004).
Para Butler (2004), a filosofia tida por tradicional e, muitas das vezes, auto afirmada
enquanto verdadeira, é uma modalidade de conhecimento que se pretende apartada da vida no
momento de sua construção, ao mesmo tempo em que acredita que suas construções teóricas
podem resolver ou aliviar a vida de suas dificuldades, paradoxo de difícil sustentação nos dois
momentos estabelecedores de seus pressupostos. Esse paradoxo permite a emergência de um
outro, que é a proliferação de uma espécie de segunda filosofia fabricada fora das fronteiras da
filosofia institucionalizada, o que permite o aparecimento de um duplo da filosofia.
O mais curioso desse processo, de acordo com Butler (2004), é não raramente esse duplo
acabar por ser mais facilmente apropriado pelos círculos intelectuais não institucionalizados
de filosofia, fazendo com que o significado de filosofia para a maior parte das pessoas esteja
atrelado exatamente a essa filosofia de fora das fronteiras, seja ela realizada nos espaços
152
inicialmente definidos para a filosofia “tradicional”, seja ela realizada em outros campos de
conhecimento que se apropriam do pensamento filosófico, produzindo neste uma espécie de
torção para a construção de edifícios conceituais próprios.
[...] o uso da palavra “filosofia” para designar tipos de pesquisas que em nenhum
sentido reconhecível espelham a prática acadêmica que eles realizam e que eles
entendem como seu dever e privilégio definir e proteger. A filosofia, escandalosamente,
se duplicou. Nos termos de Hegel, encontrou-se fora de si, perdeu-se no “Outro”
(BUTLER, 2004, p. 233) (tradução nossa).
Dessa forma, não faria mais sentido falar de uma filosofia, mas de usos variados dela, e
esses, cada vez mais frequentemente, aderem à concepção de intelectual específico encontrada
em Foucault. Butler (2004) defende que esses usos não são simples reflexos das teorizações
realizadas em espaços institucionalizados enquanto tradicionais para a filosofia, mas , ao invés
disso, “de certa forma, as discussões culturalmente mais importantes da filosofia são realizadas
por estudiosos que sempre trabalharam fora dos muros institucionais da filosofia” (BUTLER,
2004, p. P. 247) (tradução nossa). Assim, a função mimética que discussões e campos não
tradicionais de filosofia operam em relação a esse tipo de conhecimento produz usos políticos
que reconfiguram tanto o conhecimento quanto a realidade social e cultura sobre as quais
se debruçam. Esse movimento é operado pelo aspecto crítico questionador de premissas
epistemológicas e culturais fundacionais realizadas pelas provocações teóricas localizadas
realizadas pelos seus autores (BUTLER, 1993).
Seguindo a esteira de Judith Butler e Michel Foucault, o presente livro pretendeu dar
prosseguimento a análises localizadas a partir do instrumental teórico da filosofia, aderindo às
perspectivas críticas que defendem não haver separação radical entre produção de conhecimento
e política, bem como entre conhecimento filosófico e realidade social em seu funcionamento e
possibilidades de transformação. Dessa maneira, a genealogia da teoria e genealogia de gênero
aqui realizada, ainda que denote um esforço teórico direcionado muito mais aos aspectos
epistemológicos do pensamento de Butler, pretendeu aumentar a intensidade das vozes abjetas
no marco de sexo-gênero, notadamente na filosofia brasileira, que, apenas recentemente e
ainda de forma muito tímida, tem se interessado pelos estudos nessa área enquanto realidades
passíveis de atenção por parte dos saberes filosóficos.
153
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Sobre o Autor
André Luiz dos Santos Paiva
Doutor em Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política pela UFRN.
Concentra interesses de pesquisa nas áreas de estudos de gênero, sexualidades e
queer, nos cruzamentos entre aspectos teóricos, ético-políticos e epistemológicos
instituídos nas relações de poder que atravessam os corpos nos processos de
fabricação dos gêneros e sexualidades.
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