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Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitora
Fátima Raquel Rosado Morais
Diagramação
Isabelly Thayanne de Sousa Silva
ISBN: 978-65-88660-63-8
1. Territorialização. 2. Cabo de São Roque. 3. Historiografia. I. Araújo Júnior, Pedro Pinheiro de. II.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III. Título.
UERN/BC CDD 981.32
Editora Filiada à:
Meus Amigos
e minhas Amigas
Por essa razão, desde que assumimos o Governo do Rio Grande do Norte,
não medimos esforços para garantir o funcionamento da FAPERN. Para tanto,
tomamos uma série de medidas que tornaram possível oferecer reais condições de
trabalho. Inclusive, atendendo a uma necessidade real da instituição, viabilizamos
e solicitamos servidores de diversos outros órgãos para compor a equipe técnica.
Por fim, esta publicação que chega até o leitor faz parte de uma série de
medidas que se coadunam com o pensamento – e ações – de que os investimentos
em educação, ciência e tecnologia são investimentos que geram frutos e constroem
um presente, além, claro, de contribuírem para alicerçar um futuro mais justo e
mais inclusivo para todos e todas!
Fátima Bezerra
Governadora do
Rio Grande do Norte.
Parceria pelo
Desenvolvimento
do RN
Este convênio também contempla a tradução para outros idiomas de sites de Programas
de Pós-Graduação (PPGs) das instituições de ensino superior do estado, apoio a periódicos
científicos e outras ações para a divulgação, popularização e internacionalização do conhecimento
científico produzido no Rio Grande do Norte. Ao final, a FAPERN terá investido R$ 100.000,00
(cem mil reais) oriundos do Fundo Estadual de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FUNDET), captados via Programa de Estímulo ao Desenvolvimento Industrial do Rio
Grande do Norte (PROEDI), programa aprovado em dezembro de 2019 pela Assembleia
Legislativa na forma da Lei 10.640, sancionada pela governadora, professora Fátima Bezerra.
Agradecemos a cada autor(a) que dedica seu esforço na concretização das publicações
e a cada leitor(a) que nelas tem a oportunidade de incrementar seu conhecimento, objetivo
(1500-1719)
Ao decorrer da escrita desse livro, enfrentei muitos problemas que só foram superados
pela minha perspicácia em querer seguir em novos caminhos na minha vida, sobretudo
o acadêmico. Primeiramente, nesses agradecimentos, relembro de todos os membros da minha
família que contribuíram para minha formação e me levaram a amar o espaço do litoral norte,
principalmente o da praia de Zumbi, em especial a minha avó Ester Gomes de Melo (in memoriam)
e a minha madrinha e tia-avó, Iracema Gomes da Costa, com 94 anos e uma lucidez magnífica!
Aos meus tios, João Lopes e Glória Maria, professores aposentados, que contribuíram nos
meus conhecimentos humanísticos desde minha juventude. Agradecimento mais que especial a
minha mãe, Maria da Conceição Melo, pela dedicação à família e por estar sempre à disposição
no que fosse necessário. E ao meu pai, Pedro Pinheiro (in memoriam), que contribuiu na minha
formação.
Agradeço ao Governo do Estado do Rio Grande do Norte, que me concedeu uma licença,
de um dos meus vínculos, para cursar o mestrado por 26 meses. Sem ela não seria possível
estudar, pesquisar e trabalhar nesta dissertação. Como também, à Escola Estadual Peregrino
Júnior, onde leciono desde 2009, local onde tenho ótimos colegas e amigos partícipes de uma
equipe que luta por uma escola digna e gratuita para todos.
Aos meus alunos e amigos que me acompanharam nesse processo, em especial aos
grupos de alunos da Olimpíada Nacional de História do Brasil, que são mais próximos e
iniciaram seus caminhos nos estudos das humanidades. Aos meus antigos amigos, professores
e alunos da cidade de Rio do Fogo, local que virei professor pela primeira vez em 2006, nas
Escolas Estaduais Governador Lavoisier Maia e José Porto Filho, e aprendi a amar e conhecer
melhor a realidade dessa população do litoral, sendo esse um dos motivos que me levaram a
realizar este trabalho acadêmico.
Ao professor Doutor Helder Alexandre Medeiros de Macedo, com o qual pude ingressar
nos estudos sobre os sertões do Rio Grande. Foi por suas mãos que conheci a capital seridoense,
Caicó. Ele sempre direto e humano nas suas contribuições neste trabalho e que me orgulha de
ter me auxiliado no meu crescimento como historiador. À minha querida amiga Maiara Araújo,
que sempre olhou a minha pesquisa com grandiosidade, sempre me dando dicas e contribuições
nos estudos coloniais. Exemplo típico das mulheres batalhadoras deste país, acompanhei a sua
luta para conciliar o mestrado e ser mãe de primeira viagem. Sua dedicação às pesquisas e a
sua família me fizeram ser seu fã.
Ao amigo Jandson Bernardo, sempre solícito nas leituras dos meus textos, nas discussões
e nas construções de outros projetos de pesquisa. À Reginaldo Santana, que me auxiliou no
acesso aos mapas disponibilizados no site da Marinha do Brasil. À excelente geóloga Janaína
Medeiros, que me auxiliou na construção dos mapas para este trabalho. À minha querida amiga,
Daniela Castro, por me acompanhar nesse processo e contribuir nas revisões dos meus artigos e
ao nosso grupo da “high society” com Caio César, Francisco Leão, Rayram Oliveira e Lousiane
Melo, que sempre acreditaram no meu potencial. Ao professor Milton César, que me auxiliou
nas análises e entrevistas sobre a região da Lagoa do Boqueirão em Touros. À Eduardo dos
Anjos, meu ex-aluno e amigo, que meu auxiliou nas entrevistas em Rio do Fogo. Aos pescadores do
litoral norte, Flávio Gualberto de Oliveira e Edinor Rodrigues dos Anjos, que me explicaram
sobre a navegação marítima no Canal de São Roque. Ao meu querido Sávio Ribeiro, que me
aguentou nesse processo final na escrita da dissertação. Por fim, a todos aqueles que contribuíram
neste trabalho, meu muito obrigado!
Apresentacão
~
Caro leitor, este livro foi fruto de minha dissertação desenvolvida no Programa de
Pós-graduação em História, com área de concentração em História e Espaços, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (PPGH/UFRN), vinculada à Linha de Pesquisa – Formação,
Institucionalização e Apropriação dos Espaços. Essa linha trata das territorialidades urbanas e
agrárias e da institucionalização dos espaços geopolíticos. Concebe que o espaço é vivenciado
pelas ações humanas de expansão, habitação, uso, segregação e instituição social dos meios
naturais e humanos.
O objeto desse estudo remete ao litoral norte da então Capitania do Rio Grande, com
o recorte temporal estabelecido entre os anos de 1500 e 1719. Apesar de ser um período
extenso para análise, buscou-se pesquisar primordialmente as fontes cartográficas e os relatos
dos cronistas do período selecionado, assim, o nosso livro não prevê uma coleta exaustiva de
documentos manuscritos do período. Nos primórdios do período colonial, esse espaço foi palco
dos primeiros contatos entre os grupos indígenas e os navegadores europeus no princípio do
século XVI. Essa região correspondeu, no período imperial, aos antigos limites territoriais da
Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Navegantes do Porto de Touros. Segundo Nilson Patriota,
essa vila foi criada através da Lei Provincial nº 21, de 27 de março de 1835, desmembrada da
Vila de Extremoz. Até os anos 1930, a extensão de sua costa marítima era de 180 quilômetros,
começando na Barra de Maxaranguape e terminando no Pontal de Guamaré.
Ao longo do século XX, esse território foi desmembrado em vários municípios, que,
na atualidade são partícipes da Microrregião do Litoral Nordeste do Estado do Rio Grande do
Norte, correspondendo aos municípios de Maxaranguape, Rio do Fogo, Touros, São Miguel
do Gostoso, Pedra Grande, Pureza e Taipu. Como se observa no mapa atual a seguir, onde se
encontram as atuais divisões territoriais desses municípios, os principais rios e lagoas da região
e os principais topônimos que foram utilizados neste trabalho.
***
Mapa do espaço pesquisado: adjacências do Cabo de São Roque e seus topônimos na atualidade
Fonte: Mapa elaborado com auxílio do Google Earth, a partir dos dados do mapeamento dos parrachos conforme:
Amaral (2003). Trabalho técnico com o programa Qgis 3.4 realizado por Janaína Medeiros da Silva, a partir da
análise de Pedro Pinheiro de Araújo Júnior.
Sumário
1
1 INTRODUÇÃO 16
2
2 A TERRITORIALIZAÇÃO DO CABO DE SÃO ROQUE
NO SÉCULO XVI
28
3
CARTOGRAFIA FRANCESA
5
4.4 OS DONOS DO PODER: A TRAJETÓRIA DO VEREADOR 110
DOMINGOS CARVALHO DA SILVA
FONTES 121
REFERÊNCIAS 129
1 Introducão
~
O historiador Augusto Tavares de Lira, na obra História do Rio Grande do Norte
(1921), ao descrever sobre os primeiros anos de colonização portuguesa, entre os séculos XVI
e XVII, na então Capitania do Rio Grande, indicou que na região ao norte da Cidade do Natal,
“o povoamento não ultrapassava ainda o Maxaranguape, a dez ou 11 léguas da capital.” Essa
análise possibilita diversos questionamentos. Que fontes permitiram o autor constituir tal
informação? Todo um espaço que compreende na atualidade a Microrregião do Litoral Nordeste
do Rio Grande do Norte era um vazio populacional nos tempos coloniais? Por que os grupos
indígenas, que habitavam esse espaço, foram silenciados? O que era a compreensão de
“povoamento” para Tavares de Lira? Esses questionamentos são válidos para entender os processos
históricos da formação desse espaço ao norte de Natal. As pesquisas realizadas a posteriori de
Tavares de Lira, sobre o período colonial, trouxeram poucas averiguações sobre esse espaço e
mantiveram as linhas de raciocínio sobre o povoamento até o rio Maxaranguape ao norte de
Natal. A reverberação sobre o povoamento no litoral norte persistiu com o historiador Tarcísio
Medeiros, que assimilou a mesma informação de Tavares de Lira (MEDEIROS, 1973, p. 38),
tal como a historiadora Denise Mattos Monteiro. Esta última inseriu em seu livro um mapa do
Rio Grande do período colonial onde os limites do povoamento, ao norte de Natal, eram até as
margens do rio Maxaranguape (MONTEIRO, 2002, p. 62).
Esses questionamentos sobre a ocupação desse espaço ao norte de Natal surgiram ainda
na juventude deste autor, quando veraneava nos meses de janeiro na praia de Zumbi. Posteriormen-
te, persistiram já como professor de História da rede pública estadual no município de Rio do
Fogo1. Ambas localidades estão no litoral norte. Parte dessas indagações foram investigadas
1
Rio do Fogo é um dos mais jovens dentre os 167 municípios que integram o território do Estado do Rio Grande
do Norte. Emancipado em 1995 do município de Maxaranguape através de um plebiscito realizado em 17 de
setembro, data histórica para os moradores, foi criado através da Lei Estadual nº 6.842, de 21 de dezembro
de 1995 e instalado em 1º de janeiro de 1997. Faz divisa ao norte com Touros, ao sul com Maxaranguape, a
oeste com o Oceano Atlântico e a leste com o município de Pureza. O território é dividido em seis distritos,
sendo três litorâneos: praias de Pititinga, Zumbi e Rio do Fogo (sede); e os interioranos: Punaú, Catolé e Canto
Grande. Segundo o censo do IBGE 2010, a população ultrapassa um pouco mais de 10.000 habitantes (ARAÚJO
JÚNIOR, 2013, p. 1).
16
em conjunto com os alunos da Escola Estadual José Porto Filho, entre os anos de 2007-2008, ao
realizarem pesquisas e entrevistas com os moradores mais antigos da sede do município. Esse
trabalho foi importante devido à formação de livretos que buscaram reconstruir a Memória e
a História do lugar.
A povoação do território teve início nos idos de 1877, quando quatro famílias,
fugindo de uma grande seca, deixaram o Sertão potiguar e penetraram nos caminhos
do litoral, até alcançarem a região banhada pelo Rio Roxo, onde fixaram moradia.
As famílias se instalaram incialmente na margem esquerda do pequeno rio de águas
escuras, que posteriormente denominou-se Rio do Fogo. [...] Na trajetória de sua
17
consolidação, Rio do Fogo contou em seus primeiros anos com a participação
incentivadora de nomes importantes, como: Francisco Apolinário, Francisco de Brito,
Eliseu Ribeiro, José Gaspar [...] (MORAIS, 2004, p. 199).
Na observação desse fragmento, percebe-se que o autor utilizou de relatos orais ao citar
o nome dos primeiros moradores, infelizmente, não citando as fontes das informações prestadas
em seu livro. O grande problema é que esses dados são utilizados pelos órgãos governamentais,
tais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como a principal fonte histórica
sobre esses lugares em seus relatórios por município. Os dados são utilizados pelo Estado,
Prefeitura e, por fim, pela comunidade escolar, que reverbera aos alunos do lugar que as origens
do município estão ligadas aos grupos de flagelados da seca de 1877, que se assentaram na praia
em busca de refúgio. A partir dos dados de Tavares de Lira e Marcos César Cavalcanti, todo
esse espaço litorâneo estava sem registro documental da presença de colonos portugueses ou
povos indígenas no decorrer do período colonial? Esse espaço só foi ocupado no final do século
XIX? Esses questionamentos são o mote principal da problemática proposta neste trabalho.
Um ano antes, em 1921, Augusto Tavares de Lira construiu uma narrativa semelhante
em sua obra, já questionada no início deste texto. Valorizando os feitos dos lusitanos e utilizando
como principal fonte de sua narrativa, sobre os primórdios da colonização, a obra História do
Brasil, de Frei Vicente de Salvador. Porém, um diferencial do autor em relação à Rocha Pombo
2
O termo historiografia clássica foi utilizado pela historiadora Denise Mattos Monteiro ao fazer uma análise sobre
a produção historiografia norte-rio-grandense no I Encontro Regional da Anpuh-RN (MONTEIRO, 2004, p. 51).
Essa visão se perpetuou nas produções do Programa de Pós-graduação em História da UFRN. Nas pesquisas
de Helder Macedo e Tyego F. da Silva, foi utilizada essa denominação para se referir aos livros publicados na
primeira metade do século XX, por Câmara Cascudo, Tavares de Lira e Rocha Pombo. As obras desses autores, que
contribuíram na produção da História do Rio Grande do Norte, são consideradas como a principal referência aos
estudos sobre o período colonial (MACEDO, 2007, p. 71; SILVA, 2015, p. 79).
18
são as citações e as referências bibliográficas utilizadas de forma constante ao longo de seu texto,
tornando a sua obra uma das principais fontes de pesquisa sobre a História do Rio Grande do
Norte. No tocante aos grupos indígenas, o autor escreveu:
Essa perspectiva fatalista de Augusto Tavares de Lira sobre os grupos indígenas que
faziam parte da composição dos indivíduos que integravam a Capitania coloca esses sujeitos
como extintos da participação histórica da formação do Rio Grande do Norte. Principalmente
ao utilizar o termo “raça primitiva”, usando o mesmo raciocínio de Rocha Pombo. Essa historiografia
do início do século XX colocou os grupos indígenas que habitavam a Capitania do Rio Grande
como meros expectadores dessas narrativas. Foram silenciados e esquecidos nessas obras. São
citados apenas em pequenos relatos de ataques aos portugueses, nos acordos de paz firmados
no contexto da fundação de Natal, nos conflitos com os holandeses e na Guerra dos Bárbaros.
A partir da segunda metade do século XX, uma nova leva de pesquisas surgiu sobre o
período colonial. Luís da Câmara Cascudo encabeçou essa análise quando lançou História do
Rio Grande do Norte (1955). Porém, o escritor manteve o discurso de Tavares de Lira sobre o
desaparecimento dos grupos indígenas no contexto do processo colonizador. Se Lira informou
que os indígenas foram “exterminados” ao longo desse processo, Cascudo estabeleceu o fim
desses povos no início do século XIX, ao afirmar: “o indígena entrou para morrer” (CASCUDO,
1984, p. 43). Mais uma vez o discurso fatalista e do esquecimento desses povos persistiu na
historiografia sobre o período colonial do Rio Grande do Norte.
Câmara Cascudo, todavia, contribuiu nas pesquisas sobre o litoral norte ao indicar
as referências sobre os estudos coloniais e indígenas e na indicação de artigos da Revista do
IHGB. Percebe-se que o significado e história de algumas localidades não foram trabalhadas
ou deixadas sem descrição na obra. Talvez por estar em processo de pesquisa na época, Câmara
Cascudo retomou-o na obra Nomes da Terra (1968). Nessa obra, fez uma vasta pesquisa sobre
os topônimos do Rio Grande do Norte, descrevendo as origens indígena, africana ou portuguesa
19
das localidades desse Estado. Porém, existem algumas lacunas nesse trabalho que provocam
dificuldades nas pesquisas de historiadores do período colonial, uma delas é a falta de citação
documental e referência bibliográfica. Um dos topônimos litorâneos pesquisados pelo autor foi
a praia de Zumbi. Segundo ele, “em 1777, Manoel Gomes Tição possuía o sítio do Zumbi na
praia de Punahu” (CASCUDO, 1968, p. 133). Além disso, não se sabe, por exemplo, que dicionário
tupi foi utilizado por Câmara Cascudo para compreender os significados dos topônimos litorâneos
ou sertanejos.
Surgem nos seus escritos os primeiros esboços de uma História que se preocupava com
a História Indígena ao utilizar os termos “etnia” ou “tráfico vermelho”, referindo-se aos grupos
indígenas e ao processo de colonização portuguesa. Porém, equivoca-se nesses conceitos no
final do livro ao retomar o termo “raça” ao se referir aos escravos africanos: “o negro, das três
raças, foi o elemento que por último chegou ao Rio Grande do Norte” (MEDEIROS, 1973, p.
41-54). Desse modo, entende-se que os indígenas têm etnia e os negros têm raça, colocando esses
dois grupos em categorias diferentes de análise etnográfica. Tarcísio Medeiros ainda manteve
o conceito “raça” na obra Proto-História do Rio Grande do Norte (1985). Em ambos
20
os trabalhos estabeleceu-se os limites territoriais dos grupos indígenas a partir da divisão
regional da época da pesquisa. Aproximando-se aos estudos de Câmara Cascudo, sobre essa
modalidade de divisão, feita a partir da análise dos topônimos. O dito autor contribui com
os estudos arqueológicos sobre os povos indígenas ao analisar na sua obra outros estudos já
realizados pelos pesquisadores do Museu Câmara Cascudo (MCC) nos anos de 1960 e 1970.
Essas pesquisas investigaram os povos paleoíndios e indígenas a partir dos artefatos cerâmicos
encontrados nos sítios arqueológicos do litoral e região agreste do Rio Grande do Norte.
Nas décadas de 1980 e 1990, o historiador Olavo de Medeiros Filho, membro efetivo
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), publicou obras que
contemplavam suas pesquisas sobre o período colonial na Capitania do Rio Grande. Destaca-se
como um dos primeiros a publicar um estudo dedicado aos povos indígenas, na obra Índios do
Açu e Seridó (1984). O autor amplificou o conhecimento histórico sobre os grupos indígenas
que habitavam a Capitania, retirando esses personagens dos silêncios das pesquisas realizadas
no século XX.
O dito pesquisador tem como principal mérito as suas exaustivas pesquisas em fontes e
livros do período do domínio holandês, principalmente na indicação das fontes documentais e
iconográficas. Na pesquisa da cartografia colonial, mais precisamente nos estudos dos topôni-
mos litorâneos, destacam-se as obras Naufrágios no Litoral Potiguar33 (1988), Terra Natalense
(1991), Aconteceu na Capitania do Rio Grande (1997), Os Holandeses na Capitania do Rio
Grande (1998) e Notas para a história do Rio Grande do Norte (2001). Essas publicações
contribuem para as pesquisas sobres os espaços coloniais no sentido de indicação das fontes,
porém são obras descritivas e com rarefeito esforço reflexivo sobre o processo de colonização.
3
Na obra o autor descreve indicações dos topônimos litorâneos a partir dos relatos do cronista português
Gabriel Soares de Sousa. Descreve a Ponta do Santo Cristo, o Cabo de São Roque, os rios Pititinga, Uguaçu e
Maxaranguape como as principais referências geográficas para a navegação costeira pela Capitania (MEDEIROS
FILHO, 1988, p. 11-12).
21
do principal núcleo urbano desse espaço litorâneo, a cidade de Touros. Natural da mesma cidade,
o autor pesquisou sobre Touros e as cidades que se emanciparam desse município ao longo do
século XX, construindo no seu texto dados importantes sobre esse espaço pouco problematizado
na historiografia. A partir de relatos orais dos moradores de várias localidades, nas citações de
fontes paroquiais, sesmariais e nos estudos bibliográficos, procurou fazer uma história geral
desse município, ligando esse espaço como um importante ponto estratégico, tanto aos feitos
dos “descobrimentos” portugueses como às rotas da aviação transoceânica entre África e o
Brasil entre os anos 1930-1940.
No final dos anos 1990, foram publicados trabalhos produzidos por professores do
Departamento de História da UFRN, ligados aos estudos coloniais. A professora Fátima Martins
de Lopes lançou Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande
do Norte (2003). Uma das primeiras pesquisas acadêmicas sobre o processo de colonização e
desaparecimento dos grupos indígenas desse espaço colonial, um verdadeiro divisor de águas
na historiografia colonial do Rio Grande do Norte. Uma de suas contribuições está na mudança
do conceito sobre a expansão colonial, ao chamar esse processo de “povoamento colonial”.
Concordando com esse termo, percebemos o reconhecimento da autora de que os povos indígenas
também povoavam o Rio Grande. Essa perspectiva muda o olhar sobre esses grupos, pois na
historiografia clássica, os termos povoamento, povoado ou habitante estavam ligados apenas
aos colonos portugueses.
22
A partir do ano de 2008, com as defesas das dissertações do PPGH/UFRN, o
leque de pesquisas sobre a Capitania do Rio Grande do Norte continuou ampliando os
estudos coloniais sobre esse espaço. Desse modo, destaca-se Helder Alexandre Medeiros de
Macedo contribuindo para a História Indígena e dos estudos cartográficos em Ocidentalização,
Territórios e Populações Indígenas no Sertão da Capitania do Rio Grande (2007), devido à
sua análise sobre esse processo de “ocidentalização” a partir da investigação de fontes
cartoriais, paroquias, militares e cartográficas. Fez uma análise breve do Mapa de Cantino de
1501, considerando-o como marco primordial do processo que ele chama de “ocidentalização”
da Capitania do Rio Grande. Utilizou-se do mapa de Luís Teixeira, de 1574, para problematizar
sobre as divisões das Capitanias Hereditárias. Por fim, utilizou o mapa de Jacques de Vaulx de
Claye para analisar a iconografia dos contatos entres franceses e índios Potiguara no litoral do
Rio Grande, além de analisar em detalhes sobre essa cultura indígena e suas representações no
mapa da cartografia francesa do século XVI. Reiteramos, todavia, que o objeto central de estudo
deste trabalho estava calcado nas transformações provocadas pelo fenômeno da ocidentalização
nos espaços e nas vidas dos indígenas que habitavam os sertões do Rio Grande do Norte.
A dissertação de Júlio César Vieira de Alencar, intitulada Para que enfim se colonizem
estes sertões: A Câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (2017), fornece dados importantes
para compreender as redes clientelares entre os agentes camarários, a posse das terras na
capitania e os conflitos com os grupos indígenas. Tal como Helder Macedo, o autor trabalha
o conceito de “território” ao descrever esse processo, elaborando no seu trabalho, mapas para
descrever a apropriação de terras em várias ribeiras da Capitania, citando o Porto de Touros e a
região das Salinas, ambas no litoral norte como partícipes desse processo colonizador.
Dessa forma, Júlio César Alencar estabeleceu nesses mapas informações sobre a extensão
da região salineira e a denominação de “Porto de Touros”. Porém, faltaram as descrições dos
rios perenes da região no mapa sobre a Ribeira do Ceará-Mirim, como, por exemplo os rios
Maxaranguape, Punaú e Maceió, sendo todos eles importantes marcos nas divisões das sesmarias
costeiras do litoral norte.
Feito o percurso pela produção historiográfica do Rio Grande do Norte acerca do litoral
norte da antiga capitania, deteremo-nos, na próxima seção, a detalhar as questões da análise
das fontes utilizadas para essa investigação.
***
23
Para dar respaldo à investigação, foram utilizadas diversas tipologias de fontes. As
fontes cartográficas selecionadas são dos séculos XVI e XVII, e serão utilizadas no primeiro e
segundo capítulos deste livro, no total de 25 documentos, como cartas, atlas e livros produzidos
em países europeus – Portugal, França, Espanha e Holanda. Os documentos cartográficos estão
divididos em dois blocos distintos, que são: Carta de La Cosa (1500), Planisfério de Cantino
(1502), Planisfério de Caverio (1505), Mapa de Lopo Homem (1519), Carta de Diogo Ribeiro
(1529), Carta de Gaspar Viegas (1534), Atlas de Nicolas Vallard (1547), Mapa de Diogo
Homem (1558), Mapa de Bartolomeu Velho (1561), Mapa de Jacopo Gastaldi (1565), Mapa
de Fernão Vaz Dourado (1571), Atlas de Luiz Teixeira (1574), Mapa de Jaqcques de Vaulx de
Claye (1579), Atlas de Joan Martinez (1587) e o Mapa de Theodoro de Bry (1592).
O segundo bloco são: Mapas de João Teixeira Albernaz I (1612), Atlas e Mapas de
João Teixeira Albernaz, o Moço (1627; 1630; 1631; 1640; 1642; 1666), Carta de Jorge Marcgraf
(1643), Mapa de Nicolas Sanson (1656) e o Atlas de Johannes Vingboons (1665). Todos disponíveis
para consulta através das plataformas digitais em sites de museus, instituições universitárias e
arquivos públicos como a Biblioteca Digital Mundial (https://www.wdl.org/pt/) e a Biblioteca
do Congresso Americano (https://www.loc.gov/).
24
eólicas. Essas fontes trazem amostragem do material arqueológico encontrado, identificando se
são do período pré-histórico ou do período do contato entre grupos indígenas e europeus. Esses
relatórios e o material arqueológico encontrado estão custodiados e disponíveis para consulta
em três instituições na cidade do Natal: MCC, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e o Laboratório de Arqueologia da UFRN (LARQ).
As mesmas instituições salvaguardam outras fontes que foram utilizadas neste trabalho,
como os artefatos cerâmicos, cerâmicas de grés, fragmentos de louças, miçangas venezianas e
de faiança francesa que foram encontrados pelo Projeto Dunas4, realizado entre os anos 1990 e
2000. Esse material arqueológico foi proveniente de cinco sítios arqueológicos identificados no
espaço de estudo: Enseada de Pititinga, Zumbi, Rio do Fogo I, Rio do Fogo II e Lagoa do Sal.
4
Projeto desenvolvido sob a coordenação do arqueólogo Paulo Tadeu de Souza Albuquerque (UFRN),
identificando um número significativo de sítios arqueológicos pré-coloniais e de contato euro-indígena, nas
áreas de dunas do litoral oriental norte-rio-grandense. Tiveram como objetivo central o cadastramento dos sítios
arqueológicos desse espaço (MEDEIROS, 2016, p. 18).
25
As primeiras representações desse espaço em estudo foram realizadas a partir da confecção
de mapas. Desse modo, nos dois primeiros capítulos, essas fontes foram analisadas sob uma das
tríades do pensamento de Henri Lefebvre: “o espaço concebido”. Seria aquele dos cientistas,
dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas, de certos artistas próximos da cientificidade,
identificando o vivido e o percebido ao concebido. Em outras palavras, é o espaço dominante
numa sociedade. As concepções do espaço tenderiam para um sistema de signos verbais,
portanto, elaborados intelectualmente (LEFEBVRE, 2013, p. 100). Concordando com a ideia
de Henri Lefebvre sobre o espaço concebido, os mapas têm essa característica de descrever um
espaço que era ainda desconhecido do público europeu, ou seja, estava no plano da abstração.
Aproximando-se da ideia do “espaço concebido”, Tiago Kramer nos relata que “a cartografia,
por mais que não possa ser vista como um discurso neutro e objetivo, é obra de ficção sobre um
espaço imaginado que se torna real apenas por meio de um discurso persuasivo convincente”
(OLIVEIRA, 2014, p. 165).
Outras categorias a serem apropriadas e utilizadas neste livro são as de território, terri-
torialização e sertão. Pode-se observar que no processo de apropriação dos sertões do Cabo de
São Roque, essa ação foi estimulada pela Coroa Portuguesa e seus agentes, desse modo, essas
categorias são aplicadas nos capítulos deste livro, a partir das óticas de autores selecionados como
Cláudia Damasceno Fonseca, que descreve que o sertão colonial é “um espaço em perpétuo
vir a ser: sua conversão em território se faz à medida que o povoamento avança e se intensifica”
(FONSECA, 2011, p. 54). Para a autora, o sertão pode designar “regiões extensas, pouco
habitadas, selvagens, inexploradas ou pouco conhecidas, não cartografadas e de limites fluidos
ou subjetivos” (FONSECA, 2011, p. 54). Para Jerusa Pires Ferreira, existe uma polarização de
significações sobre essa categoria “sertão” que “estaria ligado ao conceito de fertilidade da
terra, de abundância vegetal, de mata, e, por outro lado, encontra-se o sentido de aridez de
despovoamento que remeteria à acepção de deserto” (FERREIRA, 2004, p. 29). Na percepção
de Antônio Robert de Moraes, esses espaços coloniais tornam-se sertões ao atraírem o interesse
de agentes sociais que visam estabelecer novas formas de ocupação e exploração dessas paragens
(MORAES, 2003, p. 2). Serão, também, aplicados no Capítulo 2 os conceitos de espaço e
caminhar de Yi-Fu Tuan (1980; 1983) sobre as experiências dos colonos lusos no litoral nas
paisagens dunares.
Por fim, o livro aqui apresentado se enquadra no bojo de produções acadêmicas recentes
sobre o período colonial, em especial nos estudos sobre os espaços coloniais na Capitania do
Rio Grande. Abordamos neste trabalho aspectos ligados aos primórdios da concentração fundiária
e um suposto “desaparecimento” dos grupos indígenas da região dos sertões do Cabo de São
26
Roque. Almeja-se conseguir preencher lacunas da historiografia sobre o litoral norte e os
primeiros contatos, nesse espaço, entre europeus e indígenas.
27
2 A Territorializacão do cabo
~
de São Roque no Século xvi
O atual litoral norte-rio-grandense foi palco dos primeiros contatos entre os grupos
indígenas e europeus nos primórdios do século XVI. Existe, na atualidade, uma discussão
histográfica, fora do âmbito acadêmico e patrocinada pelo Governo do Estado do Rio Grande
do Norte e IHGRN, sobre a questão dos “descobrimentos” portugueses em 1500. Tal discussão
centra-se no ponto em que a esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral aportou nas imediações
da atual cidade de Touros e não em Porto Seguro, na região ao sul da Bahia, em 22 de abril de
1500. Essas questões têm um forte apelo dos setores ligados ao turismo do Estado. Porém, não
é uma discussão historiográfica recente, já que desde os anos 1920 esses debates ocorrem5.
5
Luís da Câmara Cascudo já se debruçava sobre essa temática ao publicar A Intencionalidade no Descobrimento
do Brasil (1924) e O Mais Antigo Marco Colonial do Brasil (1934). Os dois trabalhos foram reunidos no livro
Dois Ensaios de História (1965).
28
Concordando com a interpretação do autor sobre o espaço, no contexto do encontro
colonial, ele foi construído a partir dos relatos dos cronistas e da cartografia do período. São
essas fontes produzidas pelos agentes da Coroa Portuguesa, exemplos de representações do
espaço, que nas concepções de muitos autores, as quais veremos adiante, descreveram esse es-
paço como território dos Potiguara6. Porém, temos algumas questões para compreender. Como
eram os limites territoriais para os Potiguara? De que modo a historiografia e a documentação
dos primórdios da conquista podem esclarecer esses questionamentos? De que forma a História
Indígena pode contribuir nessa pesquisa?
Na segunda metade do século XIX, Francisco Adolfo Varnhagen publicou História Geral
do Brasil (1877) descrevendo, em seus primeiros capítulos, uma história dos indígenas. Ele
estipulou que existiam antes da chegada dos portugueses, em 1500, em torno de 1 milhão de
indivíduos. Em seu trabalho, fez uma descrição desses povos, utilizando-se de imagens
iconográficas e de fontes de época para demonstrar a formação social desses povos. Mas
percebe-se a utilização de referências dos povos indígenas que habitavam a atual região sudeste
do Brasil. Desse modo, faz uma história desses povos de forma aglutinadora, como se todos
os povos indígenas fossem de uma mesma cultura, sem investigar as especificidades de cada
sociedade e seu território.
Em meados do século XX, Caio Prado Júnior, na sua obra História Econômica do Brasil
(1945), imerge esses povos indígenas sob a perspectiva de uma dominação mercantilista dos
povos europeus na América. O autor descreve que esses indígenas viviam em uma terra par-
camente habitada por tribos nômades ainda na Idade da Pedra e os que vivam no litoral eram
relativamente numerosos e pacíficos (PRADO JÚNIOR, 2004 [1945], p. 24-32). Analisando
essas informações, percebe-se uma incongruência de dados em relação à quantidade de grupos
indígenas na época do encontro colonial, ora o autor informa que tinham muitos, ora descreve
que eram poucos.
6
Para Fátima Martins Lopes, os Potiguara eram do tronco linguístico Tupi-Guarani que, como seus aparentados do
restante do litoral leste do Brasil, tomaram contato com os europeus desde o início das navegações exploratórias
da costa (LOPES, 2003, p. 44).
29
esses povos nativos como viventes da “idade da pedra” ou como “nômades e pacíficos”. Sem
um estudo aprofundado ou analítico sobre essas sociedades, corroborando com um viés historiográ-
fico que colocou esses sujeitos como meros coadjuvantes do período colonial.
No século XXI, novas abordagens surgem sobre a história indígena. João Pacheco de
Oliveira, utilizando-se do referencial estabelecido pelo antropólogo Talal Asad, apropriou-se
do conceito de “encontro colonial” para investigar os primórdios do contato entre europeus e
indígenas nas Américas. Descreve como uma categoria analítica central para a produção de um
conhecimento crítico sobre o social. “Longe de ser o palco para o teatro do absurdo, o encontro
colonial é o lócus onde se atualizam todas as práticas e representações, é ali que se instituem
as relações sociais, produzindo simultaneamente o colonizador e o colonizado” (OLIVEIRA,
2014, p. 168). Desse modo, será utilizado esse conceito para o estudo do processo de territorialização
dos sertões do Cabo de São Roque e das relações entre indígenas e grupos europeus, portugueses
e franceses.
Segundo Greg Urban e Gabriela Martin, os povos indígenas que viviam no litoral do
que chamamos de Brasil se estabeleceram nesse espaço por volta do ano 1000, tomando como
base o Calendário Gregoriano. Os mesmos pesquisadores indicam que várias línguas seriam,
então, uma única língua, reunidas sob o nome de “Tupi-Guarani”, que não deve ser confundido
com a família mais ampla. Os grupos que ocupavam essa costa até a foz do Amazonas eram os
Tupinambás, Tupiniquins e Potiguara (URBAN, 1998, p. 92; MARTIN, 1997, p. 205).
As estimativas sobre a quantidade de indígenas que moravam nesse espaço variam entre
1 a 5 milhões de indivíduos antes do encontro colonial. O atual litoral norte do Rio Grande do
Norte foi palco desse contato entre europeus e indígenas nos primeiros anos do século XVI7.
Os viajantes europeus foram incumbidos pela Coroa Portuguesa de descrever as novas terras
do além-mar. Rocha Pombo nos descreveu que “o litoral do território que forma hoje o Estado
do Rio Grande do Norte foi seguramente dos primeiros, nesta parte da America do Sul, que
receberam visitas de expedições européas” (POMBO, 1922, p. 23).
7
Adolfo Varnhagen e outros historiadores, como Tavares de Lira, Capistrano de Abreu, Rocha Pombo e Câmara
Cascudo, descreveram que esse litoral foi visitado antes da expedição de Pedro Álvares Cabral em 1500. Porém,
sem descrever se nesses eventos ocorreu encontro entre europeus e indígenas.
30
modo, a partir da carta “As Quatro Navegações”, atribuída ao navegador florentino, denominou-se
essa região costeira com a toponímia de “Cabo de São Roque” (PATRIOTA, 2000, p.184). A
expedição foi realizada logo após a chegada do navegador português Pedro Álvares Cabral a
Porto Seguro, em 22 de abril de 1500, feito considerado marco primordial dos encontros
coloniais na atual costa do Brasil (ARAÚJO JÚNIOR, 2013, p. 6).
[...] Os homens que ali estavam, descendo à praia com arcos e flechas, puseram-se
a disparar e infligiram tal terror em nossa gente – os batéis em que estavam resva-
lavam na areia ao navegar, não podendo fugir com rapidez -, que ninguém então se
lembrou de pegar em armas, de modo que muitas flechas eles dispararam até que
desferimos quatro tiros de bombarda sem atingir ninguém. Ao ouvir o estrondo,
todos em fuga correram de volta ao monte onde estavam as mulheres a esquartejar
o jovem que haviam matado, enquanto olhávamos em vão, mas não era em vão que
nos mostravam os pedaços que, assando num grande fogo que tinham aceso, depois
comiam: também os homens, fazendo-nos sinais semelhantes, davam a entender que
haviam matado e assim comido outros dois cristãos nossos, e exatamente por isso
acreditamos que falavam a verdade. Esse ultraje ofendeu-nos a fundo, pois vimos
com nossos próprios olhos a profanação com que trataram o morto (VESPÚCIO,
2013 [1504-1505], p. 46-48).
Outro autor que esclareceu que esse encontro colonial foi realizado entre navegadores
da Coroa Portuguesa e indígenas Potiguara foi o historiador Capistrano de Abreu. O mesmo
nos informa que “a expedição de 1501 entrou logo em conflito com a gente da terra, provavelmente
31
Potiguares” (ABREU, 2013, p. 235). Paulatinamente esse espaço foi apropriado pelos colo-
nos portugueses nos séculos subsequentes através da concessão de sesmarias. Além disso, as
crônicas de Vespúcio consolidaram a toponímia Cabo de São Roque, que “tornou-se, para os
navegantes que vinha, a estes mares, o ponto de referência mais conhecido” (POMBO, 1922,
p. 26). Essa referência pode ser observada nos mapas e atlas que foram elaborados por diversos
cartógrafos europeus no decorrer da primeira metade do século XVI.
Após a descrição dos Potiguara realizada por Américo Vespúcio, existe um hiato de
85 anos de silêncios de fontes escritas de origem portuguesa sobre esse povo no litoral norte,
surgindo posteriormente com os escritos de Gabriel Soares de Sousa em 1587. Segundo Fátima
Martins Lopes, nem os grupos franceses que aportaram na costa do Rio Grande à procura de
pau-brasil deixaram relatos sobre esse período inicial, principalmente porque aqui estavam
como corsários, flibusteiros autorizados pela Coroa Francesa, mas não legais do ponto de vista
das relações políticas europeias (LOPES, 2003, p. 47-48).
Fonte: Mapa elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, com auxílio do Google Earth, a partir dos escritos
de Gabriel Soares de Sousa (1587), Américo Vespúcio (1503), Rocha Pombo (1921) e Tavares de Lira (1922).
Além dos relatórios dos sítios arqueológicos identificados pelo Projeto Dunas, organizados em quadros na Tese
de Doutorado de Iago Henrique Medeiros (2016).
32
O cronista Gabriel Soares de Sousa e os religiosos católicos, Frei Vicente de Salvador
e Frei Fernão Cardim informaram limites territoriais diferentes para esse povo indígena. Na
percepção do primeiro, o rio Assu seria os limites “extremos entre os Tapuias e os Potiguares”
(SOUSA, 1851 [1587], p. 23). Para o segundo, percebe-se uma amplificação dos domínios dos
Potiguara pela costa “da Paraíba até o Maranhão, algumas quatrocentas léguas” (SALVADOR,
2013 [1627], p. 169). O último restringe o território destes e os intitula apenas de “senhores da
Paraíba” (CARDIM, 1925, p. 195). Pelas análises cartográficas, percebemos que esse domínio
Potiguara era vasto. No Mapa de Bartolomeu Velho de 1561 (ver Anexo A), foram nomeados
diversos territórios indígenas ao longo da costa e intitulou toda faixa litorânea entre atual do
Ceará e a Paraíba de “Pitiguares”.
33
2.2 A cartografia da Conquista
Entre os séculos XV e XVI ocorreu uma verdadeira revolução na ciência e na arte cartográ-
fica. Na ciência, pela introdução das latitudes observadas, do meridiano graduado nas cartas
e do cálculo do valor do grau terrestre, o que permite uma representação muito mais exata
da superfície do planeta. Na arte, pela formação e generalização daquilo que Jaime Cortesão
intitula de o estilo naturalista, sendo esse um estilo utilizado nos primeiros mapas criados
para descrever o litoral do atual território brasileiro. Foram confeccionados a partir de relatos
e estudos de militares e cronistas ligados à administração da Coroa Portuguesa (CORTESÃO,
1965, p. 86). Esses agentes da Coroa deveriam retratar as terras recém-descobertas para que
o governo central, em Lisboa, fosse capaz de conhecer esse novo espaço e estabelecer novas
políticas administrativas, além de expandir seu território de além-mar8.
Entretanto, ocorre uma divergência entre outros autores sobre a concepção das análises
desses mapas do período colonial. Beatriz Siqueira Bueno, pesquisadora ligada à História Urbana,
defende que o pesquisador, ao analisar melhor os mapas, deve compreender antes como foram
as “condições técnicas da sua produção”, isto é, refletir sobre quais períodos históricos foram
produzidas essas fontes, ou “como os engenheiros militares, em Portugal e no Brasil, realizavam os
levantamentos de campo, preparavam seu gabinete, sua mesa de trabalho, suas folhas de papel,
seu estojo de desenhos? ” (BUENO, 2004, p. 194). Diferente dessa perspectiva do olhar do
pesquisador diante da fonte cartográfica, a geógrafa Giseli Girardi diverge de Beatriz Bueno
e amplifica essas concepções ao informar que os mapas são “produções culturais de discursos
sobre o território”. Para a autora, a importância do mapa “reside na sua leitura e não exclusi-
vamente na sua elaboração técnica”. Por fim, Giseli Girardi vê o mapa como uma forma de
representação do espaço, tanto gráfica como visual. Entende como “uma mediação entre a
8
Segundo Patricia Seed, o termo “descoberta” foi utilizado pelos portugueses para designar seus métodos de
encontrar novas terras, em um processo sistemático pelo qual novas terras e novos povos eram achados. A autora
informa que a “descoberta constituía a essência de suas reivindicações de autoridades de além-mar” (SEED, 1999,
p. 145).
34
realidade e o leitor dessa realidade espacial; como uma imagem (possível) do mundo. Assim, o
mapa reproduz um sistema de valores sociais que são culturais e históricos” (GIRARDI, 2000,
p. 43). Concordando com as ideias de Giseli Girardi, os mapas analisados mostram o processo
de apropriação de novos espaços encabeçados pelos diversos agentes de reinos europeus em
terras americanas.
Uma das primeiras cartas a descrever o litoral do atual Brasil foi confeccionada pelo
marinheiro Juan de la Cosa, em outubro de 1500. Estabelecido no Porto de Santa Maria, na
atual Espanha, ele foi piloto de Alonso de Hojeda, que navegou pela costa setentrional da
América do Sul em nome dos Reis Católicos e, por seis anos, foi mestre de cartas de marear
nas viagens de Cristóvão Colombo, na última década do século XV, ou seja, foi testemunha
das “descobertas” marítimas do período. Realizou sete viagens entre a Europa e a América até
sua morte, após um conflito com grupos indígenas em Cartagena, em 1511, na atual Colômbia
(LEITE, 1921, p.120; MARTÍN-MERÁS, 2000, p.79).
Essa Carta foi contestada pelos historiadores portugueses, Duarte Leite e Jaime Cortesão,
na qual rebateram também as informações de Adolfo Varnhagen sobre as aproximações de
navegadores ligados à Coroa Espanhola nesse espaço litorâneo, antes da viagem do “descobrimento”
de Pedro Álvares Cabral. As produções desses autores portugueses reforçavam uma visão da
supremacia náutica e cartográfica lusitana no século XVI e do pioneirismo desses navegadores
sobre os mares do atlântico sul. Relativizou ou omitiu a participação dos espanhóis no contato
da costa a oeste do Cabo de São Roque. Pesquisadores mais contemporâneos consideram a
importância desse documento histórico, sendo este o primeiro registro cartográfico do Novo
Mundo como resultado direto da “descoberta” empreendida por Cristóvão Colombo em 1492.
35
Em meados do século XX, José Moreira Brandão Castelo Branco lançou na revista do
IHGRN uma pesquisa sobre a cartografia colonial e fez um estudo sobre a Carta de la Cosa. O
referido documento está sob guarda do Museu Naval de Madri na Espanha. Como se observa
na Figura 1, são desenhados os esboços dos contornos continentais da América do Sul até as
imediações do atual Nordeste brasileiro com poucos dados sobre esse litoral recém-descoberto,
como se o cosmógrafo ainda estivesse em processo de criação da Carta em seu local de produção.
Em contrapartida, a costa africana é rica em informações toponímicas e iconográficas. O documen-
to foi, a exemplo da cartografia da época, reflexo da renovação advinda da Renascença, dos
avanços científicos pela invenção da imprensa e sua aplicação na produção de mapas e pelos
descobrimentos de novos continentes, terras e mares (ROCHA, 2005).
Observa-se que essas Cartas não eram utilizadas como um guia de navegação para os
marinheiros em suas viagens, e sim para a ilustração e divulgação das novas descobertas
territoriais aos monarcas e às suas cortes nos reinos Ibéricos9. No caso do reino hispânico,
havia um local de produção cartográfico específico, A Casa de Contratação da Índias em Sevilha,
criada em 14 de fevereiro de 1503, a partir dos desdobramentos das viagens de Cristóvão
Colombo. O espaço centralizou o comércio e a organização de frotas para as Índias, estabeleceu
os estudos científicos orientados por cosmógrafos, impulsionou nas confecções de mapas de
marear, de instrumentos náuticos e na formação de novos pilotos. Para Luisa Martín-Merás, a
Carta de Juan de la Cosa é um protótipo dos manuscritos produzidos por essa instituição, foi
confeccionada com pedaços de pergaminho de pele de carneiro, e por ser do pescoço do animal,
o mapa ficou de forma irregular (MARTÍN-MERÁS, 2000, p. 74).
9
O historiador Lucas Montalvão Rabelo, na sua dissertação A representação do rio ‘das’ Amazonas na cartografia
quinhentista: entre a tradição e a experiência (2015), realizou uma vasta pesquisa sobre o Rio Amazonas, a partir
das fontes cartográficas do século XVI, destacando-se a Carta de Juan de la Cosa. Seu trabalho é importante ao
esmiuçar sobre a pesquisa cartográfica do período, indicando autores e fontes que ampliam o conhecimento sobre
a Cartografia Histórica no Brasil.
36
Figura 1 – Detalhe da Carta de la Cosa de 1500, onde se observa no canto inferior esquerdo o formato em cor
verde do continente sul americano
– Detalhe da Carta de la Cosa de 1500, onde se observa no canto inferior esquerdo o formato em cor verde do
Fonte: MUSEU NAVAL DE MADRI. Planisfério náutico de Juan de la Cosa, 1500. Madri. Códice CE257.
Disponível em: https://mostre.museogalileo.it/waldseemuller/iwal.php?c%5B%5D=38821. Acesso em: 10 jul.
2018.
37
Figura 2 – Detalhe da Carta de la Cosa de 1500, onde foram descritos os antigos
topônimos da costa setentrional no final do século XV
Fonte: MUSEU NAVAL DE MADRI. Planisfério náutico de Juan de la Cosa, 1500. Madri. Códice CE257. Dis-
ponível em: https://mostre.museogalileo.it/waldseemuller/iwal.php?c%5B%5D=38821. Acesso em: 10 jul. 2018.
38
foi o pioneiro nesses espaços e, por conseguinte, seria um contraponto às recém-descobertas
envolvendo o navegador português Pedro Álvares Cabral na Terra de Santa Cruz, feito
realizado em abril de 1500 e divulgado na Corte de Lisboa pelo navegador Gaspar de Lemos,
que havia retornado da frota de Cabral em meados do mesmo ano. Como o período de produção
do mapa de Juan de la Cosa foi em outubro de 1500, ou seja, um pouco mais de três meses após
a divulgação das descobertas de Cabral em Lisboa, percebe-se na análise cartográfica uma disputa
territorial e de primazia pelas descobertas da costa da Terra de Santa Cruz entre os reinos ibéricos.
Isso ficou mais evidente quando comparamos com o Mapa de Cantino de 1502.
Uma das primeiras representações cartográficas do Cabo de São Roque foi o planisfério
conhecido como Mapa de Cantino de 1502 (Figura 3). O documento é uma cópia comprada
secretamente de um cosmógrafo de Portugal pelo embaixador do Duque de Ferrara, Alberto
Cantino, considerado como o mais antigo mapa do Brasil, e mostra os limites territoriais
conhecidos pelos navegadores portugueses até aquele ano. Porém, diferente do Mapa de Juan
de la Cosa, esse mapa foi produzido para fins de espionagem sobre as rotas e territórios descobertos
pelos navegadores ibéricos, nele são exibidas as costas ainda não delimitadas das Américas,
Oceania e partes da Ásia, como se observa no detalhe da Figura 3. Também é visualizada a costa
setentrional e meridional da Terra de Santa Cruz, além de apresentar uma iconografia com
papagaios vermelhos e uma flora litorânea, como lista também alguns topônimos, tais como
Rio São Francisco, Baía de Todos os Santos e a Ilha de Quaresma, sendo possivelmente a atual
Fernando de Noronha. Destaca-se nesta costa o topônimo “Cabo de San Jorge” encimado por
uma bandeira da Coroa Portuguesa, representando a legitimidade sobre as terras recém-descobertas.
Pode-se supor que o referido topônimo seja o Cabo de São Roque, local descrito nos relatos de
Américo Vespúcio em 1501 e que faz uma oposição ao Mapa de Juan de la Cosa ao confirmar
a posse portuguesa neste litoral.
39
Figura 3– Detalhe do Planisfério de Cantino de 1502
Fonte: BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE DE ESTENSE. Carta del Cantino, 1502-1505c. Modena. Códice:
C.G.A.2. Disponível em: http://bibliotecaestense.beniculturali.it/info/img/geo/i-mo-beu-c.g.a.2.html. Acesso
em: 21 jul. 2018.
Na análise do historiador Duarte Leite sobre o Mapa de Cantino, o Cabo de São Roque
pode ser a Ponta do Calcanhar no atual município de Touros (LEITE, 1923, p. 267). Um detalhe
que se observa no documento é que foi retirada uma parte do pergaminho e colado outro
pedaço por cima do desenho anterior. Justamente na representação da costa do atual Nordeste
do Brasil, percebe-se o topônimo “San Jorge” grafado duas vezes na haste da bandeira portuguesa,
indicando um possível erro feito pelo cosmógrafo na representação dessa costa.
O livro Esmeraldo, manuscrito redigido por volta 1505 e atribuído a Duarte Pacheco
Pereira, descreve 210 topônimos das costas descobertas do além-mar, entre eles estão “Angra
de Sam Roque” e “Santa Maria da Rabida”, esses topônimos podem designar a costa setentrional
entre os atuais estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, mas como na época existiam
imprecisões cartográficas, podem designar também o litoral leste entre São Roque e o Cabo de
Santo Agostinho. No Dicionário da língua Portuguesa de Raphael Bluteau, o termo “Angra”
significa: “braço de mar, que entre duas pontas de terra se mete mais para dentro que porto, e
menos que barra, ou baía” (BLUTEAU, 1789, p. 83), em dicionários mais recentes, estabelece-se
como “enseada, ou pequena baía, largamente aberta” (OLIVEIRA, 1983, p. 24).
Desse modo, podemos supor que a atual Enseada de Pititinga, entre a Ponta do Calcanhar
e o Cabo de São Roque foi chamada de “Angra de Sam Roque” pelo navegador Duarte Pacheco
Pereira e seja supostamente o local do contato entre os tripulantes da Viagem de 1501 e os
40
indígenas Potiguara. Na carta da Terceira Navegação de América Vespúcio, antes do conflito
entre os portugueses e indígenas nas imediações do Cabo de São Roque, ele descreveu essa
necessidade: “Padecendo da falta de lenha e água, concordamos em voltar àquela terra para
prover-nos do que era necessário [...]” (VESPÚCIO, 2013 [1504-1505], p. 46). Lembrando que
esse espaço possui pequenos riachos, lagoas e uma vegetação de cerrado, imprescindíveis para
o abastecimento de água e lenha para os navios da época.
Fonte: BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. [Atlas nautique du Monde, dit atlas Miller]; 2-5. [Atlas
Miller: feuilles 2 a 5]. 1519. Departamento de Mapas e Planos, Códice: GE DD-683 (RES). Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b55002607s/f1.item.r=lopo%20homem.zoom. Acesso em: 11 jul. 2018.
41
Na Figura 4, é um detalhe da carta denominada Terra Brasilis que corresponde à quarta
folha de um manuscrito sobre pergaminho, também conhecido como Atlas Miller, sendo este
um dos primeiros a apresentar iconografias no interior do continente sul-americano, como era
comum no estilo artístico da época, representando os indígenas e o comércio de pau-brasil. O
documento foi feito pelo cartógrafo português Lopo Homem e pelos cartógrafos “Reinéis”,
Pedro Reinel, o pai, e Jorge Reinel, o filho, e com iluminuras de António de Holanda ou Gregório
Lopes. O mapa possui 146 topônimos escritos em latim ao longo da costa, entre o Maranhão e
o Rio da Prata, com representações coloridas e radiosa da natureza, bem conforme ao chamamento
de “Terra dos Papagaios” (COSTA, 2007, p. 87; OLIVEIRA, 2014, p. 206).
42
em estudo, a Arqueologia Histórica contribui na pesquisa sobre culturas ágrafas, no caso de
sociedades indígenas e que tiveram contato com outras sociedades letradas – europeus. Podemos,
assim, conseguir as nossas respostas sobre a ocupação do espaço no litoral, a partir do cruzamento
de dados cartográficos, relatórios e artigos arqueológicos e fontes escritas.
Como nos descreve André Prous, essas cerâmicas são numerosas e são grandes vasilhas
abertas, acreditando serem denominadas de “tenhãe”, termo usado em certos vocabulários
jesuíticos. Como se averigua na Figura 5, o vaso contém a boca e o contorno circular, elíptico
ou quadrangular. “Possivelmente eram utilizadas na preparação da farinha de mandioca, e todas
estão pintadas internamente. As gravuras dos cronistas dos séculos XVI-XVII mostram-nas
recebendo os órgãos internos dos sacrificados durante as festas canibais” (PROUS, 2009, p. 12).
11
Segundo Rafael Abreu de Souza, faiança é um termo de uso bastante corrente na Arqueologia, utilizado para
classificar louças distintas das faianças ibéricas e das porcelanas chinesas, europeias, e mesmo brasileiras, no
período mais recente (SOUZA, 2013, p. 164).
43
Na parte interna e inferior do artefato que apresentamos a seguir, na Figura 5, apresenta-se
a pintura na cor vermelha já desaparecendo devido ao tempo. Na borda dessa vasilha, na parte
superior, ocorreu a utilização da pintura da cor branca sobreposta com bastões desenhados
numa cor escura, característica comum a todos os artefatos encontrados nos cinco sítios ar-
queológicos. Esses desenhos são excepcionalmente característicos nas regiões litorâneas entre
os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Fonte: Artefato cerâmico do sítio Zumbi (Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos – CNSA: RN00050), Cx.
03, Etiquetas 40 e 41. Custódia do acervo: IPHAN/RN, em Natal-RN. Foto: Pedro Pinheiro, 27 jun. 2018.
44
poderio posteriormente na região com o estabelecimento do Governo-Geral, a partir da fundação
da cidade de Salvador em 1549.
Como foi observado no Mapa 1, Gabriel Soares de Sousa teceu um comentário sobre o
que ele denominou de “Costa de São Roque”, quase um século depois de Américo Vespúcio.
Descreveu no capítulo IX da sua obra o seguinte título: “Em que se declara a costa do Cabo de
S. Roque até o porto dos Búzios”, fazendo uma descrição desse espaço:
O relato de Gabriel Soares é oposto ao de Américo Vespúcio ao descrever que o espaço era
despovoado de índios devido à terra ser estéril e fraca. Na análise desse documento, percebem-se que
os topônimos de algumas localidades diferem dos atuais. São descritos os nomes anteriores das
praias de Pititinga [Itapitanga] e Cajueiro [Goaripari]. Observam-se, também, duas informações
importantes no texto. Primeiramente, são citados os “arrecifes”, indicando os parrachos nos
litorais que correspondem no presente aos municípios de Touros, Rio do Fogo e Maxaranguape,
como é observado na iconografia cartográfica nas Figura 4, sobre os baixios de São Roque.
O cronista identifica essa costa como o local onde passavam as rotas de navios de corsários
franceses que traficavam pau-brasil com os Potiguara. Esses agentes externos mantinham uma
política de alianças com os Potiguara, mediante escambo.
Rocha Pombo revelou que todo o litoral no norte da capitania ficou desde 1538 até fins
do século completamente abandonado pelos portugueses (POMBO, 1922, p. 27). Mas como
são verificados na historiografia, cartografia e fontes escritas, esse espaço era de contato entre
franceses e Potiguara desde o início do século XVI. Não respeitando o Tratado de Tordesilhas
de 1494, a Coroa Francesa incumbiu de corsários e agentes a explorar a costa recém-descoberta
do atual Brasil e iniciaram o tráfico de pau-brasil com os indígenas desse litoral.
45
Segundo Tristão de Alencar Araripe, a primeira viagem feita por franceses à costa de
Vera Cruz foi comandada por um oficial chamado Binot Paumier de Gonneville, que levou a
bordo do navio Espoir dois pilotos portugueses, Sebastião de Mouta e Diogo do Couto, contratados
em Lisboa. A viagem saiu do porto francês de Honfleur em 24 de junho de 1503 e chegou no
litoral do atual estado de Santa Catarina em 5 de janeiro de 1504. Depois seguiu por 90 dias a
percorrer a costa em direção ao atual Nordeste do Brasil (BAIÃO; DIAS, 1924, p. 62; ARARIPE,
1886, p. 315-331).
Como se observa na Figura 6, essa é uma carta náutica que corresponde na atualidade
ao Nordeste da América do Sul. Faz parte do Atlas de Nicolas Vallard de 1547 que produziu 15
cartas náuticas, ricamente ilustradas demonstrando toda arte da escola de Dieppe no Quinhentos. Ao
46
todo, o projeto do cartógrafo francês mostra os limites ainda indefinidos do continente americano e
das atuais regiões da Ásia e Oceania.
Figura 6 – Detalhe do Atlas de Nicolas Vallard (1547): atual Nordeste da América do Sul
Fonte: BIBLIOTECA DE HUNTINGTON. Portolan Atlas, anonymous Dieppe, 1547. World atlas containing 15
nautical charts, tables of declinations, etc. 1547. Catálogo de imagens Huntington. Códice: HM29. Disponível em:
http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29&Description=&page=1. Acesso em: 15
jul. 2018.
47
para obtermos os nomes dos topônimos, que são: “S. Domingo”., “Potiiou”, “Pracel”, “Baía
da Tartarn” e “Rio de Sa Miguel”. A baía de “S. Domingo” refere-se ao atual rio Paraíba, que
na época era local de contato constante entre os dois grupos. A região do rio Paraíba tinha
os melhores pau-brasil da costa. Os franceses cortejavam os Potiguara com botes repletos de
mercadorias. As alianças com os franceses tornaram esses indígenas inimigos dos portugue-
ses, que ficaram frustrados diante de seu número e coesão. Eles não eram tão fragmentados
como as demais nações indígenas e não podiam ser provocados para entrar em guerras internas
(HEMMING, 2007, p. 128-129).
Figura 7– Detalhe do Atlas de Nicolas Vallard (1547): Costa das Capitanias da Paraíba e Rio Grande
Fonte: BIBLIOTECA DE HUNTINGTON. Portolan Atlas, anonymous Dieppe, 1547. World atlas containing 15
nautical charts, tables of declinations, etc. 1547. Catálogo de imagens Huntington. Códice: HM29. Disponível
em: http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29&Description=&page=1. Acesso
em: 16 jul. 2018.
48
Toda essa costa do Rio Grande é encimada pela iconografia dos baixios de São Roque,
em formato de um triângulo pontilhado, indicado pela seta preta, tal como ocorre nos mapas
portugueses. Como também são representadas as ilhas próximas a esse litoral, como a ilha
de “Fernão de Loronha” e o Atol das Rocas. Como não existia um reconhecimento da Coroa
Francesa pela repartição do continente americano entre Portugal e Espanha, pois esses últimos,
praticamente, assumiam o domínio da região (LOPES, 2003, p. 68). Não são visualizadas a
localidade de Olinda, principal núcleo português na Capitania de Pernambuco, e nem as divisões
e referências toponímicas das Capitanias Hereditárias estabelecidas pela Coroa Portuguesa em 1534.
Figura 8– Detalhe do Atlas de Nicolas Vallard (1547): encontro colonial entre indígenas e franceses
Fonte: BIBLIOTECA DE HUNTINGTON. Portolan Atlas, anonymous Dieppe, 1547. World atlas containing 15
nautical charts, tables of declinations, etc. 1547. Catálogo de imagens Huntington. Códice: HM29. Disponível
em: http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29&Description=&page=1. Acesso
em: 16 jul. 2018.
Nessa iconografia de Vallard, os indígenas são vistos como aliados dos franceses. Alguns
deles foram desenhados com uma fisionomia europeia, com pinturas corporais tribais. Os
artistas-cartógrafos de Dieppe podem ter se utilizado de informações dos pioneiros franceses
testemunhos desse encontro colonial nas Américas para manterem essa estética nas pinturas.
49
Os conflitos só ocorrem, na grande cena da Carta, entre grupos indígenas rivais. Estão contidas
também a convivência de grupos nas aldeias do litoral. Na imagem da Figura 7, os indígenas
estão reunidos em torno de fogueiras cozinhando seus alimentos em pequenas vasilhas. A
imagem também é mais um testemunho da exploração de pau-brasil – percebe-se os troncos
de árvores cortados – e os usos de utensílios europeus por parte dos indígenas para auxiliar
os corsários nas atividades extrativistas, como se verifica na imagem à esquerda da Figura 8.
Nas imagens, os franceses indicam aos indígenas como proceder nas atividades, onde cortar os
troncos de árvores e onde encontrar as jazidas minerais.
Três décadas após o trabalho de Nicolas Vallard, foi produzido um Mapa em Dieppe
com um desenho iconográfico um pouco rudimentar que o de Vallard, mas com indicação da
penetração de franceses nos sertões. Com uma riqueza de detalhes, com legendas explicativas
demonstrando um conhecimento sobre o espaço, que, naquele momento, era desconhecido pelos
portugueses. O Mapa de Jacques de Vaulx de Claye, conforme indicado na Figura 9, de 1579,
é um retrato da consolidação das relações comerciais entre os grupos indígenas Potiguara e
de militares e corsários franceses, indicando possíveis aldeias e feitorias pela costa do atual
Nordeste do Brasil. O autor do mapa era cartógrafo e militar natural da cidade de Sainte-Maure-
de-Touraine e, como esteve presente nas tentativas da colonização francesa na costa norte do
Brasil, entre as décadas de 1570 e 1610, foi um dos principais articuladores na produção cartográfica
sobre o Brasil para a Coroa Francesa.
50
Figura 9 – Detalhe do Mapa de Jacques de Vaulx de Claye (1579): Costas das Capitanias da Paraíba e Rio Grande
Fonte: Carte de la côte du Brésil de Vau de Claye m’a faict en Dieppe l’an 1579. Acervo da Biblioteca Nacional
da França. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550026193/f1.item.zoom. Acesso em: 1 jul. 2018.
Jacques de Vaulx de Claye era, segundo os relatos dos cronistas, o principal elo de
comunicação entre indígenas e franceses. Foi um dos principais promotores, junto aos reis da
França do período, para a criação de uma nova colônia na costa norte do Brasil, falava a língua
do gentio, auxiliava os indígenas aliados nas guerras contra as tribos inimigas, era conhecedor
dos costumes nativos, convivia nessas comunidades costeiras, indicou os topônimos do litoral e
auxiliava os padres franceses na conversão dos indígenas, principalmente quando os franceses
fundaram a França Equinocial em 1611 (D’ABBEVILLE, 1945 [1614], p. 22-23; DAHER, 2007,
p. 48; CARVALHO, 2014, p. 36-38).
51
é uma territorialização semelhante ao estabelecido por Gabriel Soares de Sousa em 1587, em
relação aos domínios dos Potiguara, consoante o que se pode ver no Mapa 1.
Figura 10– Detalhes do Mapa de Jacques de Vaulx de Claye (1579): Aldeia Potiguara
Fonte: Carte de la côte du Brésil de Vau de Claye m’a faict en Dieppe l’an 1579. Acervo da Biblioteca Nacional
da França. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b550026193/f1.item.zoom. Acesso em: 1 jul. 2018
(a aldeia está indicada com a letra “A”).
52
coroas europeias. Mas como no período os franceses tentavam consolidar a sua influência na
costa norte do Brasil e foram recentemente expulsos da Baía de Guanabara, preferiu-se exibir
apenas o emblema do general a serviço da Coroa.
Alguns nomes dos lugares permaneceram como no mapa anterior de Nicolas Vallard,
na Figura 10, página 52. Verifica-se, por exemplo, “Potiiou” (seta preta) com riqueza em
detalhes dos acidentes geográficos. Jacques de Vaulx apropriou-se e intitulou os topônimos da
cartografia portuguesa, como “Saint Roc” – São Roque (seta preta), dando novos sentidos na
língua francesa. Pode-se inferir, talvez, que era uma mudança no estilo da escrita cartográfica
de Dieppe. Na descrição do mapa, existe um detalhamento das atividades econômicas ligadas
ao escambo com os grupos indígenas aliados, indicando os locais específicos onde deveriam
comercializar e como esses produtos poderiam oferecer riquezas à Coroa Francesa ou aos
marinheiros e corsários que almejassem investir nessas atividades no litoral.
Por exemplo, foi descrito no mapa que o tráfico de pau-brasil era inexistente a oeste
do rio Ouyatacas – atual rio de Touros –, pois “não existe nada de brasil, mas há peles de
papagaios e outros bichos”, provavelmente por ser uma região de transição de Mata Atlântica
para um misto de cerrado e dunas típicas da paisagem do litoral norte, nesse caso, com quan-
tidade insuficiente de árvores para a extração do pau-brasil. Novamente vemos a iconografia
dos baixios de São Roque de forma pontilhada (ver no círculo em preto da Figura 10, página
52) e a indicação que era um espaço “com água baixa que se estendem por 21 léguas”, sendo
perigosa para a navegação costeira. Nesses baixios e nas praias adjacentes encontravam muito
âmbar cinza para extrair e comercializar. Esse produto, também conhecido como âmbar gris,
aparecia boiando na costa e são restos dos excrementos da baleia cachalote. Eram utilizados na
época como afrodisíacos, como especiaria aromatizante de vinhos e outras bebidas alcoólicas
e perfumes.
A costa de São Roque era intitulada de “Coste de Merengastes” (ver seta preta), conforme
se vê na Figura 10. Para Olavo de Medeiros Filho seria uma tradução literal de “Costa de
Maxaranguape”, referência ao rio ao sul do Cabo de São Roque. Nessa faixa de terra estaria
uma aldeia Potiguara intitulada de “Souasoutin”, que, para o autor, pelo idioma tupi, pode-se
interpretar de “Çuaçu Tin, isto é, Focinho de Veado, provavelmente o nome de um chefe indígena
aliado dos franceses” neste litoral (MEDEIROS FILHO, 1996, p. 33), reforçando, assim, que
existiam alianças entre franceses e Potiguara no litoral norte da Capitania do Rio Grande.
53
formado pela junção de quatro malocas retangulares da aldeia Souasoutin. Segundo Florestan
Fernandes, utilizando-se dos textos de cronistas como Hans Staden e Gabriel Soares de Sousa,
descreveu que esse local era utilizado para reuniões de lideranças indígenas, sendo ela, a principal
unidade da organização social desses povos. Segundo ainda o autor, “o terreiro, quer em um
local abrigado, a reunião dos chefes constituía uma condição indispensável à determinação da
guerra” (FERNANDES, 2006, p.62) com outros grupos rivais. Essa forma da construção da
aldeia era bastante comum entre os povos nativos da costa do Brasil, tal como foi descrito pelo
cronista, o padre capuchinho Claude D’Abbeville sobre os indígenas que moravam no litoral
do Maranhão. No texto publicado em 1614, o padre informou que os tupinambás eram povos
litorâneos, pescadores, limpavam a mata para o local da construção da aldeia e erguiam quatro
grandes habitações em forma de claustro. Elas eram feitas de madeiras e recobertas com galhos
de pindó (D’ABBEVILLE, 1945, p. 222), tal como se observa nas cinco aldeias inseridas no
semicírculo do mapa de 1579 (ver na Figura 9 em círculos azuis, na página 61). Nelas, mostram
a organização social desses grupos, como também indicam uma relação mais amistosa com os
corsários franceses. Nos mapas da primeira metade do século XVI, a descrição e iconografia
das moradias indígenas eram praticamente inexistentes. No Mapa de Lopo Homem, que se
encontra na Figura 4, os indígenas são representados, mas suas moradias não existem no desenho
no centro do continente. As aldeias indígenas da tradição cartográfica portuguesa têm uma
representação das moradias vazias ou como cabanas militares europeias do século XVI. As
representações desses personagens, na cartografia portuguesa, rareiam ao longo dos séculos
XVI e XVII, como se fossem uma metáfora do “desaparecimento” dos indígenas, patrocinado
pela Coroa Portuguesa para se apropriar das terras desses nativos.
54
Os quatro sítios estão nas imediações do rio Punaú, em locais de altitude um pouco
elevada, em solo dunar e pouco afastados da praia, com distâncias que variam entre 1,4 a 0,9
quilômetros do Oceano Atlântico. Possivelmente, devido aos efeitos dos ventos, a configuração
geográfica das dunas nas imediações da Enseada de Pititinga era outra nesse período. As
características geográficas desses sítios corroboram com as descrições de aldeias indígenas
Potiguara feitas por Fátima Martins Lopes, ao descrever que estas ficavam localizadas em um
“lugar alto, ventilado, próximo a água e adequado às plantações que se faziam ao seu redor”
(LOPES, 2003, p. 50). Assim, essa enseada foi um local de intensa atividade de oficinas ceramistas,
em vista da quantidade de artefatos cerâmicos encontrados nos sítios.
Mapa elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, com auxílio do Google Earth. A partir dos dados cartográficos
do Mapa de Jacques de Vaulx de Claye de 1579 e dos escritos de José Moreira Brandão Castelo Branco (1950),
Olavo de Medeiros Filho (1996), Fátima Martins Lopes (1998) e Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2007).
55
Além dos relatórios dos sítios arqueológicos identificados pelo Projeto Dunas e organizados em quadros, com as
respectivas coordenadas geográficas, na Tese de Doutorado de Iago Henrique Medeiros (2016).
Esse discurso de desaparecimento dos povos indígenas continuou nos idos do século
XVII, nas crônicas de militares portugueses e holandeses. Em 20 de março de 1628, cinco indígenas
Potiguara prestaram informações sobre esse litoral às autoridades holandesas e citaram a localidade
de “Pecutinga”14. Vinte anos após essa descrição, o militar da Companhia das Índias Ocidentais,
13
No círculo da Letra A, estão as lagoas que fazem parte da bacia do rio Punaú, dentre elas estão a Lagoa da
Mutuca e a Lagoa das Cutias. No círculo da Letra B, estão as lagoas que fazem parte da bacia do Rio do Fogo,
entre elas estão a Lagoa do Fogo e a Lagoa do Gravatá. Fonte: CPRM – SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL.
Carta do Projeto Cadastro de Fontes e de abastecimento por água subterrânea do Estado do Rio Grande do Norte,
município: Rio do Fogo. Disponível em: http://rigeo.cprm.gov.br/xmlui/bitstream/handle/doc/17070/mapa_rio_
fogo.pdf?sequence=2. Acesso em: 3 jun. 2019.
14
“Uma praia com água doce, bom ancoradouro, sem portugueses”. Essa descrição do espaço corresponde à atual
Praia de Pititinga e ao rio Punaú, ambos localizados no município de Rio do Fogo (ARAÚJO JÚNIOR, 2013, p. 13).
56
Jacob Rabbi, fez um relatório, em 1648, sobre o litoral norte, descrevendo a riqueza pesqueira
da região, além da abundância da fauna com cabras e emas, mas nula em gentios e colonos
(MEDEIROS FILHO, 2010, p. 77). Como se observa no texto dos cronistas e na cartografia,
os indígenas Potiguara prestavam informações desse litoral aos europeus desde o princípio do
século XVI, assim, eram indivíduos portadores de um saber necessário construído a partir de
uma rede de relações concebidas por outros indivíduos que vieram antes deles. Em vista disso,
esses nativos eram conhecedores da fauna, da flora, dos acidentes geográficos e dos caminhos
dos rios e riachos existentes naquela época, conhecimento que os franceses, portugueses e
flamengos traduziram, organizaram e sistematizaram em seus relatórios de acordo com o seu
conhecimento de mundo.
Esses novos elementos observados por esses agentes externos foram inseridos nessa
cartografia lusa, não mais preocupada em elaborar novos atlas, mas, buscando inserir nesses
mapas limites, até então desconhecidos, aprimorando o conhecimento sobre interior da América
Portuguesa. Essa produção cartográfica teve como principal expoente as produções da família
de cosmógrafos Teixeira Albernaz, que elaboraram entre 1574 e 1666 nove documentos entre
livros, atlas e mapas sobre o Estado do Brasil.
57
3 As Terras sem préstimos: dos
~
sertões do cabo de São Roque
ao porto do touro (século xvii)
As definições da categoria sertão mudaram ao longo dos séculos e, até hoje, continuam
a provocar discussões. Ora foi definida como um local desconhecido, ermo e distante dos centros
de poder, ora era contígua, próxima e até litorânea. Para a historiadora Janaína Amado, o termo
foi utilizado em Portugal desde o período medieval. Os portugueses empregavam a palavra,
grafando-a “sertão” ou “certão”, para referir-se a áreas situadas dentro de Portugal, porém
distantes de Lisboa. A partir do século XV, usaram-na também para nomear espaços vastos,
interiores, situados nas possessões recém-conquistadas ou contíguas a elas, sobre os quais pouco
ou nada sabiam (AMADO, 1995, p.147). Através da perspectiva da autora, observou-se nas
fontes sesmarias os termos “sertão” e “certão” utilizados com frequência em cartas concedidas
no litoral do Cabo de São Roque. Esse termo foi largamente utilizado, até o final do século
XVIII, pela Coroa Portuguesa e pelas autoridades lusas nas colônias. No Brasil, são numerosos
os exemplos na documentação oficial (AMADO, 1995, p. 147).
58
A amplificação dessa categoria foi norteada por Antônio Carlos Robert de Moraes, ao
estabelecer que o “sertão” são lugares que atraíram o interesse de agentes sociais que visavam
estabelecer novas formas de ocupação e exploração daquelas paragens nos tempos modernos.
Nessa perspectiva, o “sertão” seria uma conquista territorial perpetrada pelos agentes da Coroa
Portuguesa, ou seja, um espaço a ser dominado. Esses “olhares externos”, que ambicionavam
esses espaços, nomeavam e qualificavam caatingas, cerrados, florestas e campos (MORAES,
2003, p. 1-5). Para o autor, esse processo de territorialização ou de conquista dos sertões só
poderia ser viável se houvesse uma vantagem econômica para a Metrópole. Ele descreveu que
o projeto colonial tinha que ser viável, porém nem toda colônia possuía viabilidade para efetivar-se.
Enfim, o processo colonial demandava uma retroalimentação, que só podia ser suprimida pela
apropriação de riquezas entesouradas ou pela exploração dos recursos naturais da terra
(MORAES, 2008, p. 65).
A categoria de sertão foi, também, analisada pela ensaísta Jerusa Pires Ferreira,
ao descrever que era difícil estabelecer uma direção conceitual do termo, pois existe uma
graduação de significações que formam “verdadeiros blocos opostos, pares positivos, como
uma constante que vai unir dois polos” (FERREIRA, 2004, p. 29). Desse modo, a pesquisadora se
aproxima das ideias de Janaína Amado ao informar que sertão não tem uma definição estan-
que, fechada, e sim aberta a muitas significações que podem variar de acordo com o momento da
escrita dos documentos coloniais. A autora analisou textos de dicionaristas, cronistas e fontes
coloniais e percebeu essas oscilações no significado da palavra “sertão”. Se por um lado, há o
sentido de interior, de distanciamento da costa de profundidade ao alcance, existe a contrapor-se
o sentido de um “sertão litorâneo, visível exterior, fácil de atingir” (FERREIRA, 2004, p. 29-32).
59
Assim, utilizando-se o referencial da autora, podemos considerar que o litoral norte,
contíguo ao principal núcleo de ocupação da Capitania do Rio Grande, a Cidade do Natal, seria
um sertão litorâneo, ou, como os sertões do Cabo de São Roque. Em vista da análise documental
realizada, à luz da discussão teórica sobre o conceito de sertão, pesquisamos as cartas de
sesmarias concedidas nas adjacências do Cabo de São Roque, entre os anos de 1605 e 1819,
onde foram concedidas vinte e quatro, entres elas, foram encontradas quatro que descreviam o
sertão perto da praia como sendo contíguo e próximo da cabeça da capitania, e escritas com os
termos “sertão” e “certão”.
Segundo Carmem Oliveira Alveal, o sistema sesmarial foi utilizado em larga escala
pela Coroa lusa para expansão da interiorização da América portuguesa. A concessão de terras
devolutas aos colonos interessados em dominar novos espaços foi a principal característica
dessa política da metrópole (ALVEAL, 2015, p. 249). Tal sistema já era utilizado por Portugal
desde o século XIV e foi aperfeiçoado no decorrer da colonização no Atlântico. Compreende-se,
assim, o princípio de uma apropriação territorial das terras que, até então, eram pertencentes
60
aos Potiguara espalhados pelo litoral da capitania. Esse território foi, ao longo do processo
colonizador, dominado por pioneiros portugueses que iniciaram a migração para a Capitania
do Rio Grande, a partir da fundação da Cidade do Natal e, provavelmente, se utilizaram de
suas influências para garantir sesmarias sob as bênçãos da Coroa portuguesa. Essas primeiras
sesmarias foram registradas no documento chamado Auto de Repartição das Terras da
Capitania do Rio Grande, produzido em 1614. Nele, foram registradas 186 cartas de doações de
terra, na capitania, nos primeiros anos do século XVII, e foram realizadas pelo capitão-mor de
Pernambuco Alexandre de Moura, pelo desembargador Manoel Pinto da Rocha e o documento
foi registrado pelo escrivão Thomé Domingues15. Elas apresentam indícios dos conhecimentos
adquiridos dos colonos portugueses em relação aos topônimos indígenas desses espaços da
capitania ao caracterizarem como locais de explorações econômicas que poderiam trazer
rendimentos tanto para o sesmeiro como para Fazenda Real.
Logo abaixo, como se observa no Mapa 3, podemos supor que os sertões do Cabo de
São Roque começaram a ser devassados pelos colonos portugueses nas duas primeiras doações
de terras concedidas nesse espaço costeiro. A primeira concessão foi realizada pelo capitão-mor
Jerônimo de Albuquerque a Nicolau Vazalim, em 2 de fevereiro de 1605, na foz do rio
Boixumunguape – atual rio Maxaranguape. A sesmaria media 1.000 braças quadradas, ficando
500 braças para cada margem do rio. Três anos depois, em 26 de agosto de 1608, o mesmo
capitão-mor doou a Manuel de Abreu a sesmaria Pequitinga – atual praia de Pititinga e foz do
rio Punaú –, com dimensões de duas léguas por costa e uma légua para o sertão. Ambas as
sesmarias tinham seu território cortado ao meio pelos vales sinuosos desses principais rios do
litoral norte, indicando possíveis locais de expansão agrícola ou de criação de gado. Porém,
no ano em que foi realizado o Traslado, em 1614, os terrenos já estavam abandonados pelos
sesmeiros. Somente o sítio de Nicolau Vazalim indicava uma tentativa de colonização e uso
das praias em atividades pesqueiras, pois a sesmaria teve casa e redes de pesca segundo o
documento.
15
Segundo Elenize Trindade Pereira, o documento foi produzido sob a ordem do rei Felipe II (1598-1621) por
meio da provisão real de 12 de setembro de 1612, pois constavam reclamações do rei, que havia sido informado,
por meio de denúncia de não se sabe quem, que alguns moradores da capitania não estavam cumprindo com o
dever de cultivar a terra recebida por doação, ocasionando assim prejuízos para a fazenda real, tendo em vista o
pagamento do dízimo sobre a terra (PEREIRA, 2014, p. 172).
61
Mapa 3 – Primeiras sesmarias concedidas nos sertões do Cabo de São Roque (1605 – 1608)
Fonte: Mapa elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior com auxílio do Google Earth, a partir dos dados
da Plataforma SILB, utilizando-se das descrições dos limites estabelecidos pelas cartas sesmariais. Trabalho
técnico com o programa Qgis 3.4 realizado pela geóloga Janaína Medeiros da Silva, a partir dos dados do
mapeamento dos parrachos conforme Amaral (2003).
16
Câmara Cascudo traduziu o topônimo antigo de Maxaranguape, Boixumunguape, e observou que tinha um
outro sentido no seu significado, sem ser ligado a atividades pesqueiras. Para o autor, o termo significava “no vale
ou na baixa da cascavel” (CASCUDO, 1968, p. 71). Sobre Maxaranguape e outros topônimos indígenas do litoral,
ver em Moura Júnior (apud MORAIS, 2014, p. 198).
62
pescados para o sustento das comunidades costeiras. Com a chegada dos primeiros sesmeiros,
solicitando terras para as autoridades portuguesas na Cidade do Natal, esses espaços são
apropriados por eles e conquistados não apenas o seu chão, ou a atividade econômica exercida
na época, mas principalmente a identidade do lugar, o seu topônimo, que permaneceu em
língua nativa até o tempo presente.
63
Portanto, esses cronistas revelaram apenas o que era visto por eles dos navios,
possivelmente, visualizavam apenas as dunas costeiras que se espalhavam por todas as zonas
adjacências do Cabo de São Roque e teceram opiniões para as autoridades ibéricas, revelando
que essas terras eram impróprias para a expansão açucareira. Daí reportarem nos seus escritos
que a única função que essas terras poderiam oferecer eram em atividades extrativistas como
as pescarias, a extração do sal e a coleta de âmbar. Até a primeira metade do século XVII,
segundo os textos coloniais pesquisados, esses sertões continuaram inabitados por colonos
portugueses e militares da Companhia das Índias Ocidentais. Assim, os vales dos rios dos
sertões de São Roque só foram ocupados nas sesmarias concedidas no início do século XVIII
em uma segunda leva de ocupação, quando seis sesmeiros solicitaram novas datas de terra na
região entre 1706 e 1719, cuja análise será feita no próximo capítulo.
Podemos considerar o século XVI como o período do conhecimento dos limites continentais
da América e Ásia sobre o globo terrestre, feito perpetrado pelos cosmógrafos europeus em
diversas escolas cartográficas desse continente. No século XVII, já estabelecidos esses limites
continentais na cartografia dos reinos ibéricos, as autoridades de então investiram no processo
de conquista da costa leste-oeste do Estado do Brasil. Para Sérgio Buarque de Holanda, essa
costa correspondia ao litoral das capitanias da Paraíba, Rio Grande, Ceará e Maranhão que,
entre 1580 e 1614, estavam em suscetíveis conflitos entre militares ibéricos contra grupos
franceses que almejavam conquistar essas paragens (HOLANDA, 2007, p. 213-226). Os mapas
desse período apresentavam-se com mais detalhes e informações sobre esses espaços, já nos
mapas quinhentistas, um topônimo correspondia a quase toda costa de uma capitania. Com
o advento das conquistas portuguesas ao norte de Pernambuco, o conhecimento sobre esses
sertões litorâneos foram exponenciados, apresentando a diversidade dos acidentes geográficos,
rios, lagoas e aldeias indígenas, porém, as representações cartográficas de até meados do século
XVII apresentavam um Brasil ainda costeiro, como se fosse da visão do cosmógrafo de dentro
do navio olhando para a praia, excluindo os sertões de dentro ainda misteriosos e esquecidos
nessas publicações. Foi uma época que surgiram novas produções cartográficas sobre essa costa,
tendo como principal expoente as produções cartográficas da família Teixeira Albernaz em Portugal.
64
Essa família de cartógrafos estava ligada à administração da Coroa Portuguesa desde
1558, quando Pero Fernandes foi nomeado “mestre de fazer cartas ao navegar”. Um pouco
tempo depois, foi acompanhado no ofício por um de seus filhos, Luís Teixeira, sendo esse o
responsável pelo primeiro atlas do Brasil, com o título de Atlas-Roteiro de Luís Teixeira,
produzido em 1574, onde foram apresentadas no mapa as divisões das capitanias hereditárias
e as dimensões territoriais da América portuguesa. Na escola cartográfica de Luís Teixeira se
formou ainda seu filho, João Teixeira Albernaz I, que, em 1602, já tinha carta de ofício para a
confecção de mapas e cartas, sendo o último representante da dinastia de cartógrafos, João Teixeira
Albernaz II, cujas obras são conhecidas até o ano de 1681 (CORTESÃO, 1965, p. 386-387).
65
povoamento ou de indícios de pequenas fazendas nas margens do rio Potengi, onde se concen-
trava a maior parte desse povoamento português. Os ícones em formato de casas dão indícios
de uma expansão territorial. Como se vê no círculo na Letra A, a cidade do Natal, intitulada de
Cidade “dos Reis”, era o principal centro urbano dessa capitania e a marcha desse povoamento aglo-
merava-se na região ao sul do Natal, não existindo nenhum indício de povoamento português
nos sertões do Cabo de São Roque, porém, apresenta-se nessa ilustração o primeiro topônimo
desse litoral depois do termo São Roque: Pequitinga.
66
Fonte: Rio Grande capitania de Sua Magestade. In: Livro que da Razão ao Estado do Brasil, 1612, p. 249. Acervo
da Biblioteca Pública Municipal do Porto. Disponível em: http://arquivodigital.cm-porto.pt/Conteudos/Conteu-
dos_BPMP/MS-126/MS-126_item1/P252.html. Acesso em: 18 fev. 2019.
67
A segunda hipótese pode ser considerada observando os relatos do padre capuchinho
Claude d’Abbeville sobre a possibilidade de parte dos indígenas Potiguara terem migrado para
a região do Maranhão, na segunda metade do século XVI. O cronista francês, que era partícipe
da tentativa de estabelecer uma colônia francesa na atual capital maranhense, a França Equinocial,
revelou a partir de um diálogo com o cacique Mamboré-Uaçu, em 1612, que muitos indígenas
Potiguara migraram devido às guerras com os portugueses. O mesmo cacique afirmou que
essas fugas sucessivas desses povos tinham como destino a região norte do Brasil:
Entrementes, pode-se inferir que essas fugas podem explicar, em parte, o “desapare-
cimento” desses povos do litoral norte tanto nos relatos dos cronistas como nas informações
apresentadas nos mapas do século XVII. Esses “silêncios” podem ser observados também nas
68
generalizações territoriais criadas pelos cartógrafos portugueses sobre esses povos originais. Se
antes, no Quinhentos, eram representados apenas os ícones que estavam associados às aldeias
indígenas, no Seiscentos, essas gravuras somem e apenas surgem superficialmente os nomes
das “nações” indígenas espalhadas por onde os europeus almejavam conquistar o território. As
últimas produções que os citam foram realizadas até meados desse século pelos cosmógrafos
da escola cartográfica de Portugal.
Figura 12– Detalhe das representações territoriais dos Potiguaras na cartografia portuguesa no século XVII
69
Fonte: Mostraçe na prezente carta a descripçao de todo o estado do Brasil que polla parte de Norte comesa no
grande Rio Para... e acaba... na boca do rio da Prata. Feitas em Lisboa. 1627. Departamento de Mapas e Planos,
Códice: GE D-8024. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8458442n/f1.item.r=albernaz.zoom.
Acesso em: 11 mar. 2019; Atlas do Brasil de João Teixeira Albernaz II. 1666. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart1079075/cart1079075.htm. Acesso em: 26 jun. 2019.
A Letra B da Figura 12, no Atlas do Brasil de 1666, de João Teixeira Albernaz II, pode
ser considerada a última menção cartográfica portuguesa conhecida sobre esses povos. O
documento indica a inclusão dos Potiguara no sertão de São Roque com o termo “costa
70
de Pitiguares”. Tal como foi observado no capítulo anterior, no Mapa de Jacques de Vaulx de
Claye de 1579, no relato de Gabriel Soares de Sousa de 1587, e nas evidências dos relatórios
arqueológicos, indicaram que esse espaço em estudo foi um local de intenso escambo de pau-brasil
e outros produtos entre franceses e Potiguara até o período da conquista da Capitania do Rio
Grande por forças da União Ibérica no encerrar do século XVI. A menção “Pitiguares” feita
pelo cosmógrafo pode indicar através desse topônimo que a costa de São Roque continuou a ser
habitada por esse povo. Ao mesmo tempo, nos relatos dos cronistas do seiscentos e em outras
fontes coloniais, manteve-se o discurso da inexistência dos indígenas nesses sertões.
Essa incoerência entre o que a cartografia mostra e o que as fontes escritas omitem pode
ser percebida numa fonte sesmarial contemporânea do Atlas do Brasil, onde foi descrito uma
concessão de terras ao Governador João Fernandes Vieira. No documento, descreve-se que o
personagem recebeu uma sesmaria após este contribuir nas vitórias das tropas portuguesas
contra as neerlandesas em Pernambuco. Dessa forma, a colossal terra tinha de comprimento a
costa entre o rio Ceará-Mirim e o Porto do Touro (ver Mapa 3), a mesma costa de Pitiguares
citada por João Teixeira Albernaz II era vista pelo escrivão da carta como terras “desertas e que
nunca foram povoadas”. Novamente, percebemos na fonte colonial o discurso de que o sertão
de São Roque eram terras “desertas”, “vazias” e “sem préstimos”. Segundo o Dicionário da língua
Portuguesa de Raphael Bluteau, o termo deserto tanto pode designar “local ermo, solitário,
despovoado” ou “nas desertas praias” (BLUETEAU, 1789, p. 410). Desse modo, ao nomear essa
região de deserto, pode-se levar a sentidos diferentes. Se for no sentido de despovoado, seria
então despovoado de quê? De colonos portugueses ou de indígenas? Essa incerteza persiste
quando observamos outras produções cartográficas realizadas na Europa, sobretudo na escola
cartográfica francesa que produziu mapas descrevendo esses povos indígenas até meados do
século XVIII, como se observa a seguir na Figura 13.
71
Fonte: Le Brésil divisé en ses capitaineries suivant les relations les plus nouvelles / par P. Duval d’Abbeville.
1650. Departamento de Mapas e Planos, Códice: GE D-13899. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
btv1b84919051/f1.item.r=Carte%20Du%20Bresil.zoom. Acesso em: 11 mar. 2019; Carte de la Terre Ferme du
Perou, du Bresil et du Pays des Amazones. 1703. William Delisle. Biblioteca Nacional, Códice: cart484879.
Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart484879/cart484879.html. Acesso em: 11
mar. 2019.
Essa cartografia francesa pode ter se utilizado de elementos das produções portuguesas e
holandesas do período, sobretudo nas apropriações dos topônimos. Como se averigua na Letra
B da Figura 13, no mapa de 1650 e produzido por Duval d’Abbeville, ele delimitou o território
da Capitania do Rio Grande e intitulou a costa de São Roque com o termo “Petiguare”, um
topônimo semelhante aos estabelecidos pela escola dos Teixeira Albernaz. O termo se aproxima
muito do nome Pititinga, já bastante utilizado pela cartografia europeia, no entanto, aparece
inscrito “Picquetingue” próximo aos baixios de São Roque. Assim, Petiguare representa a
população indígena e Picquetingue o ancoradouro ou o canal da passagem dos navios por esses
baixios de São Roque.
Meio século depois, a Carte de la Terre Ferme du Perou, du Bresil et du Pays des
Amazones, produzida em 1703 por William Delisle, uma produção ricamente composta de
informações sobre parte da atual América do Sul, apresenta pequenos fragmentos textuais
descrevendo a fauna, os povos indígenas de cada região, o relevo, as divisões territoriais e os
conflitos entre povos locais e europeus. O mapa é umas das produções que finalizam o ciclo
de informações cartográficas sobre a localização dos povos indígenas na costa leste-oeste
do Estado do Brasil. Na Letra A da Figura 13, sublinhados e selecionados em pretos, estão os
dados sobre os Potiguara no Rio Grande. A costa leste-oeste da capitania foi territorializada
de “país dos Potiguara: uma terra de muitas riquezas”. Seria uma constatação do autor francês
sobre a localização desse povo nas cercanias do sertão de São Roque, ao norte da Cidade do
72
Natal. O cartógrafo ainda complementou que “o país dos Potiguara não é para os portugueses
que estão encravados na capitania do Ceará”.
Primeira questão que temos que observar nos textos e nas imagens do mapa é a experiência
colonial dos franceses no Brasil e o conhecimento que estes adquiriram sobre os povos e territórios
pelos quais entraram em contato no Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII. A quantidade
hiperbólica de descrições sobre cada grupo indígena que existia nas capitanias do Estado do
Brasil é um retrato desse acúmulo de informações preciosas sobre essas populações. Ao mesmo
tempo, na leitura dos textos do autor do mapa, nos parece uma defesa dessas populações diante
da colonização portuguesa no Brasil. Podemos supor que as produções cartográficas francesas,
ao representarem a América Portuguesa, estariam em franca oposição ao domínio lusitano.
Assim, quais os motivos dessa representação fortemente indígena? Precisa-se de novos elementos
com estudos em outras fontes escritas de arquivos franceses para conseguir novas respostas.
73
atual município de Touros. Tem uma profundidade que varia na baixa-mar entre 4 e 9 metros,
dependendo da aproximação da embarcação nos baixios, e com largura média de 5 milhas náuticas,
em torno de 8 quilômetros. Gabriel Soares de Sousa descreveu, em 1587, que era possível
atravessar esse canal com os navios pela costa leste-oeste, assim, nos examina que a navegação
era possível devido à profundidade do canal e “por onde entram os navios da costa à vontade”
(SOUSA, 1851, p. 24). Como se observa no Mapa 3, esses baixios se dividem em três partes,
como se fossem ilhas submersas. A quantidade de mapas e relatos sobres esses baixios foram
exponenciada no princípio do século XVII devido à expansão colonial da Coroa Portuguesa
para a região norte do Brasil, e, para conseguir esses objetivos, era necessário transpor o Canal
de São de Roque, conhecê-lo e divulgar com mais detalhes possíveis para que novos pilotos e
marinheiros portugueses o transladassem sem dificuldades.
Devido aos baixios, o canal concentra o maior número dos naufrágios da costa leste
do Rio Grande do Norte. Nas pesquisas de Olavo de Medeiros Filho, conseguiu-se identificar,
entre os anos de 1678 e 1823, nove naufrágios de embarcações dos tipos, patacho, sumaca e nau
(MEDEIROS FILHO, 1988, p. 15-55). Pelo menos um terço desses naufrágios se concentrou
nos baixios de São Roque e o maior número de acidentes ocorreu no último quartel do século
XVII. Pelos menos dois naufrágios de embarcações oriundas de Portugal e dos Açores foram
registrados nessa costa, o primeiro deles foi com o patacho “São João e Almas”, que naufragou
nos baixios próximo a Touros em 1678, e o segundo acidente aconteceu na enseada de Pititinga,
em 1694, com o patacho “Nossa Senhora dos Remédios e Almas, e Santo Antônio”. Com esses
dados, percebemos a importância, na época, da concepção de mapas para criar a representação
do Canal de São Roque, que evitaria acidentes náuticos e prejuízos aos proprietários das
embarcações nessa região e reforçaria um contínuo contato marítimo entre as capitanias.
Esse caminho marítimo era importante, pois ligava no sentido de sul ao norte um dos
principais núcleos urbanos da costa do Brasil, a cidade de Salvador, com as regiões das capitanias
da costa leste-oeste, porém, na rota oposta, no sentido entre o Grão-Pará e Salvador, devido às
correntes marítimas, era quase impossível realizar essa viagem. Sebastião da Rocha Pita, em
História da América Portuguesa, obra de 1730, descreveu os perigos ao se navegar próximo
desses baixios e pontuou as dificuldades dos navegadores em viajar do norte do Brasil em
direção ao sul, informando que “nenhuma embarcação redonda pode navegar as costas das seis
províncias Maranhão, Ceará, Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco, por ocorrerem
violentas as águas pela costa abaixo ao oeste, e cursarem por ela impetuosos os ventos suestes
e lés-suestes” (PITA, 2011 [1730], p. 34-35).
74
O mapa de João Teixeira Albernaz I, conforme podemos ver na Figura 11, reforça, desse
modo, a importância da navegação em direção ao norte do Brasil, por isso esse conhecimento
mais profundo dos caminhos por via marítima do canal serem bem mais explorados no desenho
da carta, em detrimento da representação dos sertões do Cabo de São Roque. Por questões que
ainda não obtivemos resposta, não se sabe a incompletude do mapa em relação ao desenho total
do canal. Na imagem, o canal termina nas imediações de Pequitinga e não existe um segundo
mapa dando continuidade ao primeiro, haja vista que encontramos vários exemplares completos das
capitanias vizinhas, porém existe na obra um hiato na montagem da representação do litoral
setentrional que vai do Rio Grande até as imediações do litoral do Maranhão.
Outra análise importante é que esses mapas são uma construção coletiva, envolvendo
dimensões, experiências, agentes, técnicas e interesses diferentes, reforçando, assim, a ideia
de disputa, mas também uma ferramenta e resultado do processo colonizador. No entanto, ao
nosso ver, a Figura 11 tem a representação do canal incorreta, pois a entrada dessa passagem
marítima no mapa foi desenhada na margem esquerda do rio Potengi, próximo à cidade do Na-
tal, quando o canal tem início nas proximidades dos arrecifes do atual município de Maxaranguape.
Essas incoerências na representação do mapa podem indicar que o cosmógrafo não participou
da viagem realizada pelo sargento-mor Diogo de Campos Moreno pelas costas dessas capitanias
e talvez tenha incorporado os dados cartográficos com o autor do livro ou com outros partícipes
do roteiro.
Os interesses da União Ibérica se acentuaram sobre essa costa leste-oeste quando a partir
de 1612 foi instalada na ilha de São Luís do Maranhão a chamada França Equinocial, colônia
francesa criada nos limites territoriais de Portugal, no continente americano, de acordo com o
Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494. Segundo Andrea Daher, os militares e os padres
capuchinhos dessa missão colonizadora patrocinada pela Coroa Francesa, dentre os quais estavam o
padre Claude d’Abbeville e o militar, e cosmógrafo Jacques de Vaulx de Claye, iniciaram em
5 de agosto o reconhecimento do local onde seria erguida a urbe, com a construção do forte
de São Luís, capela e convento dos Capuchinhos, feita com o auxílio de indígenas locais. Em
oito de setembro, os franceses plantam uma cruz na “ilha do Maranhão”, e em resposta a essa
expansão francesa na região norte do Brasil, o governador-geral Gaspar de Sousa nomeou
Jerônimo de Albuquerque para o posto de capitão-mor da Conquista do Maranhão, acompanhado
pelo sargento-mor Diogo de Campo Moreno, entre outros militares e indígenas distribuídos em
uma caravela, dois patachos e cinco caravelões que rumaram para a França Equinocial em 24
de agosto de 1614 (DAHER, 2007, p. 56; SALVADOR, 2013, p. 330-334).
75
Diogo de Campos Moreno, integrante da Conquista do Maranhão e um dos principais
cronistas desse conflito entre as tropas da União Ibérica contra os franceses no Maranhão,
relatou na sua segunda obra de 1614, Jornada do Maranhão, a transposição dessa esquadra pela
costa da capitania do Rio Grande. A expedição fundeou na barra do rio Potengi para angariar
mais mantimentos e água, além de recrutar mais indígenas aliados para engrossar as fileiras
contra os franceses e seguir viagem rumo ao norte do Brasil. Segundo o cronista, foi a partir
dessa jornada que os pilotos e marinheiros tiveram um maior conhecimento do Canal de São
Roque. Visto anteriormente como um perigo aos navegantes, tornou-se a partir da jornada um
caminho seguro e conhecido dos marinheiros portugueses:
Antes, com esta navegação tirou esta Jornada o medo que os caravelões da costa
publicavam daqueles baixios, fazendo que nas cartas se desse de resguardo 25
léguas, fazendo a serventia daquela costa por um canal que fica a uma légua de terra,
pelo qual precisamente queriam que houvesse de ser o caminho certo, como dito é,
o de fora, bom para quaisquer navios (MORENO, 2011, p. 46).
Primeiro dado importante sobre o relato é que o canal passou a ser uma rota usual para
embarcações que rumavam de sul para o norte do Brasil. Somente a partir de 1614, provavelmente,
passou a ser mais utilizado por embarcações de pequeno calado, como os patachos e sumacas.
Os outros navios de grande porte ou se arriscariam a passar por esse caminho ou utilizariam a
rota um pouco mais distante dos baixios. O primeiro registro dessa continuidade de navegação
pelo dito canal foi relatado no Roteiro de Manoel Gonçalves Regeifeiro, documento escrito pelo
piloto-mor da Armada do Maranhão, Manoel Gonçalves, que acompanhou o capitão-mor
Alexandre de Moura em 1615 nessa conquista. A frota seguiu os caminhos das jornadas enviadas
no ano anterior, aportando em sete de outubro de 1615 na ponta de “Petingua”[Petitinga], de
onde continuaram rumo ao norte. O cronista teve todo o esmero em identificar, no seu relato,
em cada grau de latitude e longitude os locais que poderiam levar as embarcações ao encalhe.
Ainda em relação ao detalhe do mapa de João Teixeira Albernaz I (Figura 11), podemos
entender, em parte, a dúvida que observamos na pesquisa sobre a incompletude do litoral mais
ao norte do topônimo Pequitinga, justamente porque nessas paragens existia, segundo os cronistas, o
temor de ataques de naus francesas entre a Ponta do Calcanhar, no atual município de Touros,
e o litoral do Maranhão. Em vista disso, até a data de confecção do mapa, em 1612, seria
dificultoso construir um mapa com informações dessa costa.
76
O texto de Diogo de Campos corrobora com os mapas do período devido a estes
descreverem a completude do Canal de São Roque somente depois da conquista do Maranhão.
Assim, o conhecimento cartográfico sobre esse canal fica mais evidente a partir das produções
feitas pela escola cartográfica portuguesa, por volta de 1627, quando ocorreram as confecções
de mapas descrevendo tanto o canal como a costa setentrional do Rio Grande, Ceará e Maranhão.
A família de cartógrafos, os Teixeira Albernaz, produziram somente entre 1627 e 1666, entre
cartas, mapas e atlas sobre esse espaço, em torno de oito trabalhos que já incluíam um novo ícone
em formato de triângulo obtuso, indicando o canal e os baixios de São Roque, bem diferente do
ícone utilizado nos mapas do século XVI (Figura 4), e inspiradas nas produções dos cartógrafos
portugueses. Esse novo ícone foi utilizado maciçamente por outras escolas cartográficas da
Europa no decorrer dos séculos XVII e XVIII.
O mapa da Figura 14, encartado adiante, faz parte do Atlas do Brasil de João Teixeira
Albernaz, confeccionado no ano de 1640, formado por 32 cartas acompanhadas com a descrição
da costa do Brasil. Pode-se supor que a obra é a conjunção dos trabalhos da família Teixeira
Albernaz ao longo de 50 anos de produções cartográficas em Portugal. Esse exemplar, concebido
26 anos depois do mapa de 1612 (Figura 11), expandiu as informações do litoral norte da capitania
do Rio Grande após a conquista do Maranhão, apresentando os topônimos omitidos ao norte de
Pititinga, com a respectiva consolidação da iconografia dos baixios de São Roque em formato
de triângulo obtuso, que foi utilizada em outras escolas da cartografia europeia.
77
Figura 14 – O ícone em forma de triângulo obtuso: a representação dos baixios
Fonte: Albernaz, João Teixeira: [Atlas] DESCRIPÇÃO DE TODO O MARITIMO DA TERRA DE S. CRVS,
CHAMADO VULGARMENTE, O BRAZIL, [manuscrito colorido], 1640. Instituto dos Arquivos Nacionais/
Torre do Tombo, inv. nº CF 162, fl. 4, [Cota: Coleção Cartográfica, nº 162. TT-CRT-162], Lisboa, Portugal.
Nos sertões do Cabo de São Roque, isto é, nos sertões perto da praia, próximos e
contíguos à Cidade do Natal, destacam-se apenas dois topônimos: o primeiro, “Paranduba”,
correspondendo na atualidade à Ponta Santo Cristo, no município de São Miguel do Gostoso;
os outros são “Rio da Agoadoce” e “Valus Monte”, correspondentes ao rio do Porto de Touro e
monte que deu origem ao mesmo topônimo, Touro.
78
3.5 Os topônimos em transformação: o surgimento do Porto do Touro
79
Topônimos utilizados pelos
Dados cartográficos cartógrafos para designar as Localidades ou regiões atuais que
(referência) adjacências dos sertões do Cabo podem corresponder a esses antigos
Ano/Autor de São Roque topônimos no Rio Grande do Norte
Sainct Roc
Cabo de São Roque, topônimo atual.
1579 – Jacques de
Vaulx de Claye. Coste des Merengaste Litoral entre o Cabo de São Roque e a
(Biblioteca Nacional cidade de Touros.
da França)
Rio Maceió, que corta a cidade de
R. de Ouytacas
Touros.
80
Topônimos utilizados pelos
Dados cartográficos cartógrafos para designar as Localidades ou regiões atuais que
(referência) adjacências dos sertões do Cabo podem corresponder a esses antigos
Ano/Autor de São Roque topônimos no Rio Grande do Norte
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Topônimos utilizados pelos
Dados cartográficos cartógrafos para designar as Localidades ou regiões atuais que
(referência) adjacências dos sertões do Cabo podem corresponder a esses antigos
Ano/Autor de São Roque topônimos no Rio Grande do Norte
Fonte: Produzido por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior e inspirado no “Quadro 1” elaborado na dissertação de
Lucas Montalvão Rabelo (2015).
82
contemporâneo da primeira menção escrita desse lugar, feita por Gabriel Soares de Sousa, que
o chamou de “Enseada de Itapitanga”. Desde então, surgiram novo nomes como “Picquetinge”,
“Petetinga” e “Pequetinoa”. A partir desses dados, percebemos no quadro as diversas escritas
desse nome, demostrando as variabilidades de escolas cartográficas europeias que se utilizaram
desse termo toponímico para identificar esse litoral do Rio Grande. Como já observamos, a
palavra remete à pesca de pequenos peixes nessa costa, mas não explica sua constante repetição
nos mapas.
O segundo nome mais frequente nesse litoral é “Vasu”, “Vassus” e “Vassus Montes”,
topônimos referentes à atual praia de Touros. O termo foi estabelecido nas produções cartográficas
da família Teixeira Albernaz a partir de 1627 e persistiu nos trabalhos subsequentes até o último
quartel do século XVII. Dicionário da língua Portuguesa de Raphael Bluteau, descreveu esse
termo como “navio, barco [...] Vasos (na antiga construção Náutica) peças, em que se sostinha[?]
o casco do navio, a envasadura” (BLUTEAU, 1789, p. 512). Com essa informação, podemos
avaliar que esse nome pode indicar atividades ligadas ao transporte marítimo nesse local. A
praia de Touros está na ponta do atual continente, na divisão da costa leste-oeste, e seu litoral
fica no final da rota marítima do canal de São Roque. Desse modo, podemos supor que, devido
aos constantes riscos ao se navegar entre a praia e os baixios, algumas embarcações aportavam
nesse porto para fazer manutenções nos cascos e conseguir mantimentos e lenha.
Entre 1624 e 1654, a historiografia estabeleceu essas três décadas como o período da
dominação neerlandesa em partes do atual Nordeste brasileiro. Segundo Charles Boxer, com a
união das Coroas Ibéricas, a partir de 1580, a Coroa Lusa estava subjugada ao poderio da dinastia
dos Habsburgo da Espanha e, consequentemente, o reino lusitano foi levado a envolver-se nas
guerras ultramarinas em favor de seu novo monarca, com o título de Felipe I de Portugal. Como
consequência, a América Portuguesa sofreu ataques e dominações dos rivais desse monarca e
de seus sucessores (BOXER, 1969, p. 117-119). Na mesma perspectiva, o historiador José Antônio
Gonsalves de Mello descreveu que no decorrer da União Ibérica, os navios neerlandeses
de Rio do Fogo (ANJOS, Edinor Rodrigues dos. Entrevista sobre a navegação sobre os baixios de São Roque.
[julho2019]. Entrevistador: Pedro Pinheiro de Araújo Júnior. Rio do Fogo, 2019).
84
sofreram embargos intermitentes do governo ibérico, com proibições de aportarem e fazerem
comércio nos portos de Portugal e do Estado do Brasil. Muitos neerlandeses se sentiram
prejudicados, pois tinham negócios em Pernambuco, que era a região de maior produção de
açúcar do mundo, com mais de 120 engenhos, chegando a produzir, nas melhores safras, mais
de mil toneladas do produto. Desse modo, em 1621, fundou-se na Holanda a Companhia das
Índias Ocidentais, ou WIC, West-Indie Compagnie, com objetivos de comercializar e conquistar
as terras dos atuais continentes americano e africano, sendo que seu primeiro ataque ocorreu
na cidade de Salvador, em 1624, porém não conseguiram conquistar a região, só conseguindo
dominar esse espaço com a conquista de Pernambuco e das capitanias vizinhas a partir de 1630
(MELLO, 2007, p. 20; 262).
Nesse contexto, a Capitania do Rio Grande foi tomada por tropas neerlandesas em 1633.
Segundo Câmara Cascudo, a expedição saiu em 5 de dezembro de 1633 do Recife com 11
navios e 808 soldados da WIC, que dominaram Natal e a Fortaleza dos Reis Magos. Com a
conquista da cabeça da capitania e dos seus arredores, mudaram o nome da fortaleza para
Castelo de Keulen e a cidade tornou-se “Amsterdã”, mas, segundo o autor, o nome não logrou
popularidade entre os próprios flamengos (CASCUDO, 1984, p. 63-66). Desse modo, a capitania
esteve sob domínio neerlandês entre 1633 e 1654. Destaque nessa época para o governo do Conde
João Maurício de Nassau em Pernambuco, que trouxe da Europa diversos cientistas, artista e
cartógrafos para retratar e pesquisar os espaços conquistados, mas, a escola cartográfica
holandesa pouco contribuiu na representação das imediações dos sertões do Cabo de São Roque.
Provavelmente, o foco das representações das capitanias conquistadas fossem as regiões de
produção açucareira, entre Alagoas e o sul do Rio Grande. Isso é perceptível quando visualizamos o
Mapa de Jorge Marcgrave de 1647, pois percebemos essa carência quando o limite ao norte do
mapa vai até às imediações da foz do rio Ceará-Mirim.
No final da década de 1630, uma contraofensiva foi articulada entre as forças militares
e navais das Coroas Ibéricas com o objetivo de retomar os territórios dominados pelas tropas
neerlandeses no Brasil e repelir essas frotas no Atlântico Sul. A investida foi articulada quando,
em abril de 1638, Maurício de Nassau ordenadou um ataque à cidade de Salvador. O cerco durou
em torno de um mês, finalizando sem a conquista da cidade, mas com assaltos e destruições
nos arrabaldes da Bahia e retorno das tropas da WIC para o Recife. A liderança da grande
esquadra luso-espanhola ficou a cargo de D. Fernandes Mascarenhas, o conde da Torre. Segundo
o pesquisador Armando Saturnino Monteiro, ocorreram quatro batalhas navais entre a costa de
Pernambuco e Rio Grande, e o último conflito entre essas forças navais ocorreu nas imediações
do mar de Baía Formosa, em 17 de janeiro de 1640. A batalha naval não teve vencedores. Com
85
a preocupação das embarcações sofrerem acidentes nos arrecifes submersos, o Conde da Torre
tentou reunir a esquadra sob seu comando, nas imediações do Cabo de São Roque, próximo da
foz do rio Ceará-Mirim. Parte das embarcações espanholas e portuguesas, que estavam mais
ao norte, seguiu outros rumos para os Açores e Caraíbas devido ao fim da batalha (MONTEIRO,
1995, p. 202). Nesse ínterim, segundo nos informa Ignácio da Costa Quintella, o Conde da
Torre, antes de regressar, deixou parte das tropas lusas desembarcar no Porto do Touro, que
ficava a 14 léguas ao norte do Rio Grande, e essas seguiram em marcha para sul, a caminho
de Salvador, sob a liderança do mestre de campo Luís Barbalho (QUINTELLA, 1840, p. 334).
Desse modo, podemos estabelecer que, a partir dos escritos sobre a Batalha Naval de
1640, levou-se ao surgimento do topônimo “Porto do Touro” e esse termo foi utilizado pela
historiografia clássica do Rio Grande do Norte como a principal referência toponímica
no processo de territorialização dos sertões do Cabo de São Roque, em fins do século XVII20.
Porém, existe uma contestação quanto ao local, Porto do Touro, ser no litoral ao norte da
cidade do Natal. Em palestra intitulada “O Porto do Touro, local do desembarque das tropas de
Luiz Barbalho em 1640”, proferida pelo pesquisador Levy Pereira, este descreveu, utilizando-
se da Cartografia Histórica, que quase todos os mapas coloniais até o início do século XVIII
inseriam o topônimo ao sul da cidade do Natal e não nas imediações do Cabo de São Roque
ao norte. O autor se valeu dos mapas das várias escolas da cartografia europeia, informando
também cronistas e textos que descrevem essa informação. O pesquisador concluiu que, entre
1624 e 1738, o termo Porto do Touro denominava o porto ao norte da barra do rio Pirangi, e a
atual cidade de Touros tinha a denominação “Vassu”, somente em 1738 surgiu esse topônimo
no litoral norte, assim, o autor defende que o desembarque das tropas do mestre de campo Luís
Barbalho foi ao sul do Rio Grande. Desse modo, existem outros indícios documentais onde
poderemos refutar a visão de Levy Pereira?
86
XVII. Em relação à posição do topônimo do mapa, lembremos que as produções cartográficas
eram realizadas em locais de produção específicos em cada nação europeia, seus autores, no
geral, produziam a partir das informações coletadas dessa costa e os mapas eram reproduzidos
para um público específico, ou seja, os topônimos na cartografia serviam para leitura dos
navegadores e de alguns funcionários da Coroa. Em vista disso, alguns topônimos escritos
nos mapas poderiam diferir em relação aos nomeados pelos colonos e indígenas que moravam
nesses sertões representados.
Por exemplo, não encontramos em nossas pesquisas o termo “Vassus Montes” nos
documentos sesmariais e paroquiais, ele só aparece na cartografia, mas o topônimo Porto do
Touro apresenta-se nos documentos sesmariais desde 1666 e indica que esse local ficava no
litoral ao norte da cidade do Natal. Historiadores como Câmara Cascudo já questionavam que o
dito topônimo ao sul “não deixou rastro na memória popular” (CASCUDO, 1956, p. 243), José
Moreira Brandão Castelo Branco esclarece também esse dado ao questionar as produções
cartográficas da primeira metade do século XVII sobre a colocação do Porto do Touro “ao norte
dos Búzios, numa enseada com pedra, esquecendo o de Ponta Negra, completamente deslocado do
seu verdadeiro posto, que é próximo ao cabo Calcanhar, cerca de cinquenta milhas ao norte”
(CASTELO BRANCO, 1952, p. 34-35). Historiadores um pouco mais contemporâneos, como
Evaldo Cabral de Melo, ratificaram essa ideia do desembarque nas adjacências do Cabo de São
Roque ao informar que o Conde da Torre pôde desembarcar parte de suas tropas na “baía de
Touros” (MELLO, 2007, p. 47). Concordando com esses autores, existem oscilações na carto-
grafia que indiciam a inserção desses topônimos litorâneos em espaços não correspondentes.
As evidências documentais que corroboram com esses pesquisadores, ao informar que o Porto
do Touro é atribuído ao nosso espaço de estudo e não no litoral ao sul, demonstram que não
podemos encerrar essa questão apenas com análise cartográfica e dos textos dos cronistas
seiscentistas, e sim que precisamos utilizar de outras tipologias de fontes, cruzar esses dados e
que eles possam esclarecer melhor essa dúvida.
87
modo, o dito Porto do Touro, através da análise de documentos sesmariais, foi averiguado pelo
pesquisador com a localização ao norte do Rio Grande, pois existe um documento em que foi
lavrado auto de posse das ditas terras em 4 de setembro 1670, em cerimônia realizada na barra
do “rio Maxaranguape com a presença do padre Leonardo Tavares de Melo (procurador de
João Fernandes Vieira), Diogo Fragoso Sotomaior (provedor da fazenda do Rio Grande) e duas
testemunhas: Francisco de Oliveira Banhos e Manuel de Oliveira Soares”. Esse documento
reafirma que as terras de João Fernandes Viera, ficavam no litoral norte, nos sertões do Cabo de
São Roque, e estabelece o Porto do Touro como principal topônimo nesses espaços coloniais,
pois a cerimônia descrita foi feita nas proximidades do Cabo de São Roque e não na região ao
sul da Cidade do Natal. As sesmarias doadas posteriormente reafirmam em seus textos que o
Porto do Touro se refere à atual praia de Touros.
As evidências dos textos dos cronistas do período colonial podem ser consideras também,
na medida em que indicam que topônimo já existia ao norte desde meados do século XVII.
Uma das primeiras publicações que descrevem esse topônimo foi lançada no ano de 1679, em
Portugal, pelo Frei Raphael de Jesus. Ao descrever os conflitos entre luso-brasileiros e neerlandeses
durante os anos de 1640 e 1654, indicou a toponímia “Porto do Touro”:
O historiador José Antônio Gonsalves de Mello supõe que o Frei Rafael de Jesus se
utilizou de informações do livro História da Guerra de Pernambuco, de Diogo Lopes Santiago,
para criação da obra Castrioto Lusitano. O frei era pregador beneditino e Dom Abade do
Monastério de São Bento de Lisboa e nunca esteve no Brasil (MELLO, 1986, p. 124-126). Essa
é uma das principais críticas de Levy Pereira sobre a obra de Rafael de Jesus, pois Diogo L. de
Santiago se refere ao desembarque do Porto do Touro ao sul da cidade do Natal, ao contrário
do que foi descrito pelo frei. Porém, nos estudos de José A. Gonsalves de Mello, são elencados
as comparações e erros entre as duas obras dos cronistas coloniais, onde não se encontram
nenhuma informação de crítica ao topônimo “Porto do Touro”.
88
Ao analisar essa fonte, o cronista beneditino apresenta os sertões do Porto do Touro
como um deserto, entendemos como sendo um local despovoado, mas seria um deserto de
colonos ou de indígenas? Podemos supor, através das fontes e da historiografia, que esse
desembarque pode ter acontecido no Porto do Touro por ser o melhor de ancoradouro das
imediações do Canal de São Roque, como já observamos anteriormente. Levy Pereira
não utilizou as fontes sesmarias como referência na sua pesquisa, todavia, elas deveriam ter
sido utilizadas, pois, são importantes no auxílio aos pesquisadores que buscam informações
sobre os topônimos na Capitania do Rio Grande. Desse modo, divergimos do autor, pois o
cruzamento de informações, tanto dos documentos sesmariais quanto dos relatos dos cronistas
seiscentistas, dos dados historiográficos e cartográficos, indica que o Porto de Touros ficava
ao norte da cidade do Natal, na intitulada “terra sem préstimos” dos sertões do Cabo de São
Roque, tornando-se a principal referência geográfica para a demarcação das sesmarias nesse
litoral, como também foi topônimo estratégico para a cartografia e navegação entre o sul e o
norte do Brasil e um dos principais ancoradouros do período colonial da costa do Rio Grande.
89
4 Os sertões do Porto do Touro:
a apropriacão do Espaco (1628-1719)
~
Em meados do século XVII, o Porto do Touro tornou-se um dos principais topônimos
da costa da Capitania do Rio Grande, tanto mencionado em documentos sesmariais como em
mapas do período. Desse modo, essas fontes podem sugerir que esse local poderia ser utilizado como
referência na navegação costeira pelo Canal de São Roque, já analisado no capítulo anterior. A
partir desse capítulo final, iremos analisar o início da efetivação da ocupação do território pelos
agentes da colonização lusa nesse espaço.
Um dos primeiros registros foi realizado em 20 de março de 1628 pelo notário Kilian
de Renselaer ao contatar indígenas Potiguara na costa. Ele recebeu informações sobre a
presença de portugueses nesses espaços, os dados prestados pelos nativos revelam o conhecimento
90
adquirido por esses povos e mostram as marchas que provavelmente realizavam pelas praias
do Rio Grande e de como se articulavam entre as aldeias espalhadas pela capitania. Esses indígenas
tinham conhecimento das grandes distâncias dos seus territórios devido aos históricos de
conflitos com os grupos nativos rivais, como nos descreveu Fátima Martins Lopes, ao informar que
os Potiguara marchavam ou navegavam por grandes distâncias em grande número de guerreiros
de modo a encontrar os inimigos, que eram pegos, na maioria, de surpresa (LOPES, 2003, p.
58-59). No texto do relatório, aparecem os topônimos dos portos do litoral em estudo: Pecutinga e
Uguasu [Porto do Touro], ambas as localidades sem portugueses, com bom ancoradouro e com
água doce (GERRITZ, 1907 [1629], p. 171-173), possivelmente, as informações foram prestadas
para os emissários da WIC, para estes conhecerem melhor as áreas costeiras, com melhor
desembarque de tropas nos futuros ataques à costa do Estado do Brasil nesse contexto de
tentativa de apropriação do território.
Desde o início da expansão portuguesa para o norte do Brasil que essas rotas terrestres
eram realizadas. Segundo João Renôr F. de Carvalho, o então soldado Martim Soares Moreno,
em 1614, verificou que era possível ir da povoação de Nova Lisboa, na capitania do Ceará, enviar
mensageiros por terra para Pernambuco, em viagens que se faziam em 30 dias de caminhada
(CARVALHO, 2014, p. 50). As descrições desses cronistas demonstram que, anteriormente,
esse espaço em estudo era atravessado em embarcações pelo mar, era desenhado cartograficamente
para os pilotos e conhecido de longe durante a passagem dos navegadores pela costa, a partir do
contexto da conquista do Maranhão e da dominação holandesa. Na primeira metade do século
91
XVII, esse espaço teve seus solos atravessados pelos europeus, através dos caminhos utilizados
e ensinados pelos indígenas, por rotas feitas a pé e em caravanas, como nos quatro exemplos
que discutiremos a seguir.
Ainda nos primórdios da colonização, o Capitão-mor Pero Coelho de Sousa, nas tentativas
de conquistar o litoral da Capitania do Ceará, protagonizou umas das primeiras marchas pela
costa entre o rio Jaguaribe e a Fortaleza dos Reis Magos, entre 1605 e 1606, após perder parte
de suas tropas e dos indígenas aliados contra os franceses. Seguiu para o Rio Grande com a
sua família e mais 18 soldados enfrentando dificuldade, perdeu parte de seus homens e dois
dos seus filhos sob o sol escaldante das praias, fez travessias das salinas e dos ribeiros de
manguezais, onde encontraram dois poços chamados “Água Amargosa” e “Água Maré” [atual
Guamaré], com água insalubre. Nas proximidades das praias adjacentes ao Cabo de São Roque,
foram encontrados pelo padre vigário do Rio Grande, que veio com tropas e índios aliados para
resgatá-los.
A Batalha Naval de 1640, que teve entre seus resultados o desembarque do mestre de
campo Luís Barbalho Bezerra nas imediações do Porto do Touro, pode ser considerada o último
conflito envolvendo a união de forças militares de Portugal e Espanha na América Portuguesa. A
marcha realizada pelo militar português ocorreu, segundo os cronistas, entre o Porto do Touro
e a cidade de Salvador, perfazendo a distância de 300 léguas, com um efetivo de mais de 1.300
homens, incluindo os terços do Camarão e de Henrique Dias. Na descrição, a região do Porto
92
do Touro era um deserto, sem alimentos disponíveis para a tropa, que seguiu rumo ao rio Potengi,
onde teve o primeiro confronto entre as tropas neerlandesas e os aliados tapuias. O Comandante do
Forte Ceulen, George Garstman, foi preso após o conflito, perdeu ante a ofensiva das tropas
ibéricas 60 homens e seus aliados indígenas fugiram para outras paragens (NASSAU, 1895
[1640]). Luís Barbalho seguiu com suas tropas pelos caminhos do sertão até atravessar o rio
São Francisco e chegar ao destino, em Salvador21. Segundo Evaldo Cabral de Mello, a marcha
de infantaria luso-brasileira, armada de piques [lanças pontiagudas], fazia esses caminhos em
fileiras separadas por espaços de 20 a 24 pés, enquanto entre cada soldado da mesma fileira
devia-se manter distância de quatro a seis pés, para que os militares conseguissem manejar os
armamentos com mais comodidade (MELLO, 2007 apud VASCONCELOS [1608], p. 272).
Pela mobilidade das tropas da marcha de Luís Barbalho, que andou pelos sertões do Estado do
Brasil entre janeiro e março de 1640, podemos entender como foram organizados esses grupos
militares, como também podemos perceber as dificuldades encontradas para fornecimentos de
alimentos para uma tropa tão numerosa. Se utilizarmos a percepção de Luís Mendes de
Vasconcelos, teremos a visualização da marcha do referido mestre de campo, organizada com
seus mais de 1.300 soldados, perfazendo duas grandes fileiras com em torno de 650 soldados,
sendo cada uma delas com aproximadamente 3,5 quilômetros de extensão, formando grandes
colunas militares que experienciaram esses sertões litorâneos.
Por fim, o funcionário da WIC e aliado dos Tarairiú no Rio Grande, Jacob Rabbi, fez
um relatório sobre o litoral da capitania, a partir dos dados coletados por esse agente europeu
em suas marchas com esses grupos indígenas pelos sertões, sendo seu relato publicado no
capítulo quatro da obra História Natural do Brasil de Guilherme Piso, em 1648 (MEDEIROS
FILHO, 2010, p. 81). O personagem, polemizado por historiadores do século passado, estava
envolvido com as mortes de colonos luso-brasileiros em episódios violentos e estabelecidos
pela historiografia clássica como “os massacres de Cunhaú e Uruaçu” no ano de 1645. Possivelmente, ele
caminhou pelos sertões litorâneos do Porto do Touro. Partindo das adjacências do rio Potengi em
direção à foz do rio Mossoró, a viagem foi realizada com intuito de informar para as autoridades
da WIC em Recife sobre possíveis presenças de portugueses nesses espaços. Ao comentar sobre
o litoral, informou que do Rio Grande [Potengi] para o norte, o mar era notável, em seguida
relatou que o rio Mapreucauch [Maxaranguape] era repleto de peixes e nas suas margens
vagavam cabras e avestruzes; citou ainda um terceiro rio ao norte, o Ypotinge [Punaú], que
21
No relato de Luís Barbalho Bezerra, descreve-se que aportou no Porto do Touro com 1.430 homens, destes, 300
eram das ilhas da Madeira e dos Açores, marcharam na volta do Rio Grande [Potengi] onde estavam os moradores
recolhidos em casas fortes. Segundo ele, as tropas ibéricas atacaram 70 holandeses e 500 tapuias, aprisionaram o
capitão [George Garstman] e um alferes. Em seguida, marcharam para o engenho Cunhaú, saqueando as cargas
de açúcar, carne e farinha para a suas tropas e seguiram para as cabeceiras do rio Para (BEZERRA, 2001[1640],
p.488).
93
ficava a 12 milhas do Rio Grande; o quarto rio citado por Jacob Rabbi foi o Uguasu [rio do Porto
do Touro], que fica à dezessete horas de caminhada do Rio Grande; e em um dia de viagem do
Uguasu, encontra-se o Yponi, onde se encontram muitas salinas (RABBI apud MEDEIROS
FILHO, 2010, p. 81).
Fonte: Mapa elaborado com auxílio do Google Earth, a partir dos dados da Plataforma (SILB, RABBI
apud MEDEIROS FILHO, 2010; CARVALHO, 1906) e do mapeamento dos parrachos conforme: AMARAL,
R. F. Mapeamento dos recifes de corais do Baixo de Maracajaú. Pesquisas em Geociências (UFRGS), 2003.
Trabalho técnico com o programa Qgis 3.4 realizado por Janaína Medeiros da Silva, a partir da análise de Pedro
Pinheiro de Araújo Júnior.
Nesses referidos casos das marchas, são demonstradas as dificuldades encontradas pelos
cronistas europeus em percorrer grandes distâncias pelas praias da costa leste-oeste do Estado
do Brasil. Para a realização de tal empreitada, eram necessários recursos e alianças com os grupos
indígenas locais, esses que, pelas suas experiências nesses espaços, indicavam e ensinavam os
melhores caminhos e denominavam os topônimos que eram mantidos, na maioria das vezes,
pelos colonos europeus. Com isso, a experiência do caminhar pelas costas do Rio Grande pode
ter contribuído para a construção do conhecimento desses europeus, tanto neerlandeses como
94
portugueses, sobre esses espaços que ambicionavam expandir as suas conquistas ao norte da
Cidade do Natal, caso que ocorreu com a concessão de novas sesmarias a partir do último quartel
do século XVII, como veremos mais adiante.
Assim, como se observa no Mapa 4, onde se apresentam os exemplos das quatro marchas
descritas, ocorreu um conhecimento melhor dos europeus sobre os espaços dos sertões do
Porto do Touro ao longo do século XVII. Podemos, assim, supor que essas marchas feitas pelo
litoral norte eram um dos principais caminhos utilizados pelos colonos, militares e indígenas
que faziam a rota entre a Cidade do Natal e a Capitania do Ceará. Claramente, essas rotas foram
utilizadas pelas bordas da capitania talvez por serem mais seguras que as regiões interioranas,
como bem observou Tavares de Lira, segundo o qual “esses litorais eram mais seguros, pois
podiam-se atravessá-los em dezenas de léguas do forte dos Reis para o norte, com relativa segurança.
E era advinha principalmente da amizade dos índios potiguares” (LIRA, 2012, p. 42).
Concordando com o autor, os relatos dos cronistas sobre as marchas militares realizadas
por esses sertões litorâneos são característicos do desconhecimento e temor em caminhadas
por regiões mais interioranas da capitania na primeira metade do século XVII. Contemporâneo
dessas marchas, Frei Vicente de Salvador questionou a prática dos portugueses em não adentrarem
os sertões do Brasil, informando que
da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não
houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquista-
dores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando
ao longo do mar como caranguejos (SALVADOR, 2013, p. 13).
A comparação que Frei Vicente de Salvador fez em relação aos colonos lusos com os
“caranguejos”, que teimavam em arranhar o litoral, demostram os interesses da Coroa lusa
nesse período com o foco ainda em suas expansões territoriais pelo litoral. Os registros de des-
bravamento nos espaços mais interiores da capitania, pelo menos até meados do século XVII,
foram descritos em relatos dos agentes da WIC que caminharam por esses sertões, em busca
de metais preciosos. Em fins do mesmo século, as marchas militares serão mais frequentes em
outros espaços da capitania, mais precisamente entre a cabeça da capitania para os sertões das
bacias hidrográficas dos rios Seridó, Piranhas-Açu e o Apodi-Mossoró, nos contextos da expansão
das doações de sesmarias nesses espaços, na expansão das criações de gado e na Guerra dos
Bárbaros. Por fim, essas experiências adquiridas no caminhar desses indivíduos podem ter
95
influenciado nas escolhas dos principais locais com possibilidade de plantio e criação nessas
paragens, quando foram retomadas as doações de sesmarias pela Coroa portuguesa no Rio
Grande, na segunda metade do século XVII.
Com a Restauração da Coroa Portuguesa, em 1640, pondo fim à união das coroas ibéricas,
Portugal e seu novo rei, D. João IV, incentivou a retomada das capitanias dominadas pela WIC,
além do comércio, do tráfico atlântico e da produção açucareira nesses espaços coloniais. Para
tanto, uniu diversos grupos militares encabeçados por luso-brasileiros, com apoio de forças de
origem africana e indígena. Exemplo disso, na Capitania do Rio Grande, as autoridades
neerlandesas em defensiva no Forte Ceulen se articularam para combater os incisivos ataques
desses grupos guerrilheiros vindos ao sul do Rio Grande e que tinham o apoio do governo
português na Bahia. Segundo Benjamin N. Teensma, essa guerrilha tinha como principal
objetivo causar prejuízo aos neerlandeses, como roubar escravos, extorquir os indígenas aliados,
saquear as colheitas e gado, queimar vilarejos e ganhar posições, tal como ocorreu em 26 de
maio de 1647, quando “a fortificação de Cunhaú, guarnecida por apenas 16 homens, foi
assaltada por uma força de 300 homens. Após uma hora de luta, o inimigo retirou-se deixando
para trás 30 mortos” (TEESMA, 2016, p. 31). Esse relato demonstra a derrocada dos grupos
militares da WIC nas Capitanias do Norte diante dos ataques constantes desses soldados
luso-brasileiros, a partir da queda do poder dos neerlandeses sobre os espaços conquistados do
Estado do Brasil2221. Essas sucessivas lutas desses grupos nas Capitanias do Norte culminariam
na capitulação e partida dos neerlandeses em 1654 e na retomada da colonização portuguesa
nesses espaços no decorrer dos séculos XVII e XVIII.
96
está imbuído de pesquisar. Desse modo, numa análise micro, se consegue ver os detalhes das
informações daquela sociedade, que de uma visão macro não se poderia analisar com mais
atenção, assim, para o autor, o historiador poderá analisar outros contextos em que esses personagens
viveram (FRAGOSO, 2006, p. 30-31).
97
4.3 As sesmarias dos Sertões do Porto do Touro (1666-1719)
Entre os séculos XVII e XVIII, após o domínio dos neerlandeses (1630-1654) em parte
dos territórios do Estado do Brasil, recomeçaram as doações de terras e uma tímida colonização
surgiu nos espaços da Capitania do Rio Grande. Nos relatos após a conquista dos portugueses,
em 1654, a capitania estava abandonada e “deserta”. Nas dissertações do PPGH/UFRN, foram
realizadas algumas pesquisas sobre o período pós-dominação neerlandesa, que são importantes
para compreender esse processo de interiorização e colonização patrocinados pela Coroa lusa
na capitania em estudo.
Nesse mesmo viés, na sua dissertação, Francisca Matias da Silva considerou o rio Assu
como um dos elementos importantes na territorialização dessa ribeira e também motivador
das discórdias e lutas fundiárias ali ocorridas, pois, para a autora, os rios foram de grande
importância no processo da colonização das terras semiáridas do sertão norte-rio-grandense
(SILVA, 2015, p. 22). Concordando com a ideia de interiorização do território desses autores,
pode-se avaliar que esse processo foi contínuo em todas as direções da capitania, provocando
atritos entre os sesmeiros e os grupos indígenas pela posse da terra. Diferentemente da ribeira
do Assu, a região dos sertões do Porto do Touro foi palco dos primeiros contatos dos europeus
nessas paragens, no princípio do século XVI, e foi local de passagem das marchas militares
pela costa. Por ser um espaço litorâneo formado por pequenos rios perenes em solos dunares,
possivelmente foi um local com pouco atrativo para garantir, para os colonos portugueses, o
desenvolvimento de grandes lavouras canavieiras e criação extensiva de gado, tal como ocorreu
em outros espaços da capitania, como em Cunhaú e nas adjacências da Cidade do Natal e do
rio Potengi.
98
nas concessões de sesmarias, em um maior fluxo migratório, devido ao crescimento dos lucros
adivinhos da descoberta de metais preciosos nas Minas Gerais, na retomada da produção açucareira
e de outros produtos nas Capitanias do Norte.
Desse modo, na última década do século XVII, ocorreu uma melhor regulação e organização
da colonização portuguesa sobre os solos da Capitania do Rio Grande, provocou-se assim uma
maior fiscalização das doações das sesmarias, como bem nos assegurou a historiadora Carmen
M. Oliveira Alveal (2015, p. 250):
O personagem Almeida Vena surgiu nos documentos coloniais quando foi indicado pelo
Capitão-mor dos índios, D. Diogo Pinheiro Camarão, para ocupar o seu lugar de Administrador das
aldeias dos índios no Rio Grande. A provisão ocorreu através de uma Carta Régia datada de 28
99
de julho de 1669, que o príncipe regente de Portugal, D. Pedro, encaminhou ao governador-geral
do Estado do Brasil, Alexandre de Sousa Freire, para investigar tal substituição do cargo e se
isso traria conflitos em relação aos “índios e os tapuias rebeldes” com os colonos da capitania.
Já empossado como administrador, Almeida Vena e o seu grupo solicitaram ainda um vasto
território, na costa de Touros, que seguia por 10 léguas de litoral, entre as mediações das atuais
praias dos municípios de Guamaré e São Bento do Norte, com 4 léguas de fundo para o sertão.
A grandiosidade do tamanho desse lote pedido por esses suplicantes foi devido às atividades
pesqueiras e à extração do sal, que eram abundantes nessa região. No entanto, ocorreu um conflito
entre os sesmeiros, os habitantes locais e os colonos de outras capitanias, pois os proprietários
proibiam o acesso desses indivíduos a essas praias. Porém, após um pedido do Senado da
Câmara de Natal ao Governador Geral Roque da Costa Barreto (1678-1682) para intervir no
conflito, resolveu-se pelo Alvará de 10 de dezembro de 1680 que as praias fossem realengas,
que as medidas das sesmarias fossem revistas e que as atividades extrativistas ficassem liberadas
para uso de outros colonos, assim, a Câmara de Natal, no termo de vereação de 1682, divulgou
o edital de liberação dessa região salineira (LEMOS, 1912; MORAIS, 2014).
Ademais, em fins do século XVII, ocorreu um crescente fluxo migratório para o norte
da capitania, com sesmeiros vinculados nas atividades pesqueiras e salineiras, na criação de
gado e na agricultura. Porém, devido a esse mesmo processo de expansão territorial patrocinado pela
Coroa, eclodiu nas capitanias anexas de Pernambuco, sobretudo no Rio Grande, um conflito
sem precedentes no período colonial, a chamada “Guerra dos Bárbaros”. Pedro Carrilho de Andra-
de, que foi um dos militares que participaram da repressão aos indígenas que se conflagraram
contra o processo de expansão portuguesa nos sertões dessa capitania, nos descreveu que os
indígenas Janduí se levantaram nas ribeiras do Assu, Mossoró e Apodi, nos anos de 1687 para
100
1688, “matando a toda coisa viva e depois queimando e abrasando tudo, não deixando pau nem
pedra sobre pedra de que ainda hoje aparecem ruínas”. O autor complementou no mesmo texto
a situação de violência em que se encontrava a capitania, ao informar que “diversas nações de
alarves e fizeram grandes fúrias, e juntas em grande multidão vieram até os arrabaldes do Rio
Grande” (PUNTONI, 2002, p. 148-149).
Esse conflito, que perdurou até o início do século XVIII, provocou uma ruptura nas
concessões de terras pela Coroa, sobretudo no nosso espaço em estudo, pois ocorreu um hiato
de mais de 30 anos entre a duas primeiras fases de concessão de sesmarias nos sertões do Porto
do Touro. Esse intervalo nas concessões de terra pode ser entendido devido à insegurança
provocada pelo conflito nessas paragens, a exemplo dos indígenas Janduí, em guerra contra as
tropas luso-brasileiras nessas adjacências, chegaram a assaltar as propriedades de colonos na
ribeira do rio Ceará-Mirim, região distante apenas 5 léguas ao norte da cabeça da capitania,
demonstrando o poder de mobilização desses povos ante a dominação lusa.
No decorrer desses conflitos, as terras próximas ao mar do Rio Grande foram descritas
nesse período como sendo “os sertões de baixo”, já os sertões mais distantes e interiores da
cabeça da capitania foram nomeados como “os sertões de cima”. As denominações sertão de
baixo e sertão de cima foram descritas quando os moradores da Capitania do Rio Grande,
através dos seus representantes no Senado da Câmara, enviaram um registro de petição ao
rei, em 1695, recomendando que a dita capitania “era uma das melhores do Brasil”. No texto,
informaram todas as qualidades desse espaço colonial descrevendo as potencialidades advin-
das das atividades extrativistas, agrícolas e de criação, demostrando também as tentativas de
apropriação dos corpos dos indígenas “bárbaros”, que foram aldeados e pacificados para outros
espaços, impedindo que descessem dos sertões de cima para o litoral. O documento pode ser
entendido como uma tentativa dos moradores de angariar recursos para garantir o projeto
colonizador português, assim, com essa divulgação junto ao rei, os colonos demonstravam que
a capitania estava em vias de uma pacificação e poderia com isso expandir a apropriação dos
espaços sertanejos.
101
posse de sesmarias (ALVEAL, 2016, p. 135-140). Entrementes, as autoridades coloniais
continuaram a legislar sobre uma melhor utilização e repartição dos solos das capitanias, visando à
manutenção da oferta de alimentos, priorizando assim as atividades agrícolas com uma maior
rentabilidade, no caso, as produções açucareiras. Desse modo, segundo Fátima Martins Lopes,
foi estabelecido pelo Alvará de 27 de fevereiro de 1701, pelo rei de Portugal, Dom Pedro II
(1648-1706), que a criação de gado só pudesse ser praticada a partir de 10 léguas do litoral,
atendendo às reivindicações dos proprietários de engenhos. Segundo a autora, essa proibição
ocorreu também nas margens dos rios, de modo a garantir não somente a produção açucareira,
mas também de alimentos, obrigando os proprietários que morassem próximo ao mar a ter
pastos fechados (LOPES, 2003, p. 259; p. 313). Ademais, essa proibição inibiu as solicitações
de grandes criadores de gado que almejassem as terras adjacentes do Porto do Touro, haja vista,
por ser um espaço litorâneo, a quase totalidade dessa região estava livre das fazendas de gado
devido ao dito alvará. Entrementes, dos cinco solicitantes dessa segunda fase de concessões das
sesmarias nesse espaço, quatro deles justificaram a suas solicitações de terras por possuírem
gados muares, vacuns e cavalares e não tinham pastos suficientes para poder criá-los, provavelmente
de forma intensiva em currais. Assim, essa região teve uma tendência a estabelecer em seus
solos, atividades pesqueiras, salineiras e de agricultura nos vales dos seus principais rios.
Em vista disso, esses solos dos sertões do Porto do Touro, definidos pelos colonos como
os sertões de baixo, foram conquistados no decorrer desse processo de pacificação dos grupos
indígenas e no estabelecimento de novas missões jesuíticas no espaço da Capitania do Rio
Grande. Desse modo, foi retomada pelos agentes da coroa a política de concessões de sesmarias
no início do setecentos. Em nossas análises, nos debruçamos nas primeiras cartas de sesmarias
solicitadas por colonos aos capitães-mores, nas adjacências das bacias hidrográficas dos atuais
rios Punaú, Maceió e Maxaranguape no litoral ao norte da cidade do Natal, como vemos no
quadro e no mapa a seguir.
102
Quadro 2 – Sesmeiros que solicitaram terras nos sertões do Porto do Touro no segundo
ciclo de concessões nesse espaço (1706-1719)
Distrito de Boa-Cica e
Pretendia reaver prejuízos so-
Coronel Antônio Lagoa de regiões dos afluentes
04/05/1717 fridos devido a guerras e tinha
Dias Pereira Assu-Mirim da Lagoa do Boqueirão,
criação de gado vacum e cavalar.
município de Touros.
Fonte: Quadro elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, a partir dos dados da Plataforma SILB.
103
Fonte: Mapa elaborado com auxílio do Google Earth, a partir dos dados da Plataforma SILB e do mapeamento
dos parrachos conforme: AMARAL, R. F. Mapeamento dos recifes de corais do Baixo de Maracajaú. Pesquisas
em Geociências (UFRGS), 2003. Trabalho técnico com o programa Qgis 3.4 realizado por Janaína Medeiros da
Silva. A sesmaria Rio do Fogo foi doada a Antônio Lopes de Lisboa e a Domingos da Silveira; O Porto do Touros
foi adquirido por Domingos Carvalho da Silva; Pititinga foi concedido ao alferes Francisco da Costa
Barbosa; Assu-Mirim foi doado ao Coronel Antônio Dias Pereira; Maxaranguape foi concedido a Estevão Alves
Bezerra.
104
capitanias estava distribuída entre o capitão-mor, figura responsável pela governança e defesa,
e a Câmara, formadas por dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador, além dos
almotacés que eram eleitos pelos oficiais como cargos temporários, variando de acordo com
as necessidades do Senado, onde cada Câmara tinha também um escrivão encarregado
do assentamento da documentação administrativa, sendo este um oficial remunerado e a sua
nomeação podia ser vitalícia ou hereditária (GOUVÊA, 2000, p.194).
Dentre os colonos que não foi possível perfilhar sua trajetória de vida, citamos Estevão
Alves Bezerra. Até o momento, não identificamos o cargo ou a atividade que exercia na capitania,
sabe-se apenas que era morador da Aldeia Velha, termo da Cidade do Natal, e solicitou apenas
uma sesmaria no rio Maxaranguape para criação de gados vacuns e cavalares. Para tanto,
requereu terras para apropriar-se das margens do Riacho d’água em 1719, sendo três léguas de
frente e uma légua de fundo [ver Mapa 5]. Esse afluente fica ao norte do rio Maxaranguape,
divisa dos atuais municípios de Maxaranguape e Rio do Fogo. No documento ainda cita que
essas terras eram pertencentes ao Governador Joao Fernandes Vieira e que estavam devolutas,
sendo autorizadas pela Coroa a sua ocupação. No entanto, mesmo não sendo possível organizar
mais informações sobre Estevão Alves Bezerra, no documento sesmarial, descreve-se que na
confrontação ao sul da dita sesmaria, estavam as terras de Francisco Pinheiro Teixeira, sendo
este último personagem não encontrado nos dados da Plataforma SILB. Desse modo, supomos
que ele solicitou as terras do vale do rio Maxaranguape em direção à costa, confrontando a leste
com as terras do Alferes Francisco da Costa Barbosa, na sesmaria Pititinga, e ao norte, com a
sesmaria de Estevão Alves Bezerra no Riacho d’água. Essas lacunas deixadas precisam de mais
informações fidedignas, podendo ser solucionadas a partir de uma análise sobre a trajetória de
Francisco Pinheiro Teixeira e seus descendentes, que se apropriaram do Maxaranguape e seus
afluentes em meados do século XVIII.
105
Entrementes, outro solicitante, o Alferes Francisco da Costa Barbosa, morador da
Capitania do Rio Grande, requereu ao Capitão-mor Salvador Álvares da Silva, em 22 de maio
de 1713, uma grande porção da costa entre a foz do rio Punaú e Maxaranguape, intitulado de
Pititinga, medindo, segundo o documento, três léguas de litoral com uma légua de fundo para o
sertão, justificando que necessitava de terras para criação de gados vacuns e cavalares. Porém,
as distâncias reais das localidades estão acima das normas estabelecidas pelas ordens régias de
1697 e 1699, que padronizaram as concessões em três léguas de frente e uma de fundo. Se formos
realizar o cálculo da distância, de acordo com o texto dito pelo sesmeiro, então temos quatro
léguas de terras litorâneas, e não três, como foi estabelecido pela Coroa e que constam no
documento. Percebe-se que o sesmeiro tinha interesses ligados à pescaria nessa costa, mesmo
não descrevendo essas atividades na solicitação. Quando analisamos essas sesmarias costeiras,
nos parece que esses indivíduos buscavam averiguar nesses sertões a presença de prováveis salinas
ou áreas propícias para a pesca de arrastão. Por isso, solicitavam vastas porções costeiras para
pesquisar e investir nessas atividades, buscando regiões litorâneas que tivessem a desembocadura
de rios, lagoas costeiras e restingas.
Lembremos que esse espaço foi doado no século anterior a Nicolau Vazalim com a
sesmaria Pequitinga [Mapa 3, página 82], sendo que esta não foi ocupada na época nem pelos
outros sesmeiros no século XVII. Retornando nas análises cartográficas, percebemos que Pi-
titinga foi um dos portos e topônimo de maior descrição nesse sertão, demonstrando ser um
local de passagem dos marítimos, região pesqueira dos indígenas, e portanto, nesse período de
apaziguamento da Guerra dos Bárbaros, tornou-se uma costa ambicionada pelos moradores da
capitania. Não se conseguiu no cruzamento de diversas fontes militares, paroquiais e camarárias
analisadas no período encontrar outras informações sobre Francisco da Costa Barbosa que
pudessem contribuir para montar a sua trajetória. Sabe-se somente que em 28 de novembro de
1747 ascendeu na hierarquia militar com a patente de capitão, e que pediu um requerimento,
solicitando a confirmação da sua carta de sesmaria, que foi enviado ao rei de Portugal, D. João
V, descrevendo essas terras como os “sítios de pescarias Petitinga ou Maracajaú”. Provavelmente,
o sesmeiro fez o requerimento, pois outros colonos adentraram nesses espaços e também
almejaram essas praias comprando de outros sesmeiros ou confirmando que eram devolutas
às autoridades da capitania. Com a confirmação dessa sesmaria, foi a garantia do reconheci-
mento da Coroa e de que o Capitão Francisco da Costa Barbosa e de seus descendentes eram
os proprietários legítimos de parte desses sertões. Desse modo, percebe-se que esses locais
eram utilizados desde os primórdios da colonização em atividades pesqueiras, mesmo sendo
essa “terra sem préstimos”, suas praias e rios piscosos serviam para dilatar os rendimentos dos
proprietários nessas indústrias.
106
No decorrer desse processo de interiorização nos sertões em estudo, um dos sesmeiros
que buscou terras próximas da linha de demarcação estabelecida pelo Alvará de 27 de fevereiro
de 1701 [ver Mapa 5], que proibia a criação de grandes rebanhos até 10 léguas da costa,
foi realizado pelo Coronel Antônio Dias Pereira ao solicitar a região das nascentes da Lagoa
de “Emboasica” [atual Lagoa do Boqueirão], que faz parte dos mananciais do rio do Porto do
Touro. Em vista disso, quais os motivos que levaram o proprietário a solicitar terras na fronteira que
proibia a criação de gado extensivo? Pois, faltavam apenas cinco léguas para o limite imposto
pelo alvará, assim, conjecturamos que o personagem fez esse pedido primeiro para expandir
suas fronteiras de criação de gado nesse espaço limítrofe e talvez distante de possíveis fiscalizações
de agentes da coroa portuguesa e, além disso, as terras da fronteira do alvará, segundo as nossas
análises em mapas hidrográficos atuais, não são propensas para a criação, em vista de serem
escassas de água e córregos. Esse pode ser, provavelmente, um dos motivos que levaram o
Coronel Antônio Dias a recuar as suas terras para uma região mais rica em pastos nas nascentes
do rio do Porto do Touro.
[...] nas cabeceiras da lagoa chamada Emboasica onde nasce o rio chamado o Porto
do Touro, de um carrasco para dentro está um serrote cujo nome não lhe sabe suplicante
de cuja parte ou paragem nasce um olho d’água que corre para uma lagoa grande
107
a que os gentios chamam de Assu-mirim a qual quando enche deságua para outra
acima declarada Emboasica na qual parte a terras capazes de criar gados [...].
Desse modo, o topônimo revela que desde os tempos dos domínios dos indígenas nesses
sertões, antes da chegada dos europeus, essa era uma das rotas que ligavam o sertão de cima
com o sertão de baixo, como foi observado no Mapa 4 e, na sesmaria do Coronel Antônio Dias
Pereira, presente no Mapa 5, a região da bacia hidrográfica do Boqueirão/Boa Cica/Touros,
além de ser um espaço apropriado e cobiçado por sesmeiros desde o século XVIII, foi também
um dos espaços de construção contínua de caminhos mais curtos que ligavam o interior da
capitania ao principal centro marítimo do litoral norte, o Porto do Touro.
Outros sesmeiros que iniciaram a ocupação da costa do Porto do Touro, na segunda fase
de concessões nesse espaço, entre 1706 e 1719, foram os Capitães Antônio Lopes de Lisboa e
Domingos da Silveira. Ambos solicitaram ao Capitão-mor do Rio Grande, Sebastião Nunes
23
Realizamos a entrevista com o professor da rede pública e líder da comunidade de Boqueirão em Touros, Milton
César Apolinário, que nos fez esse relato oral com a contribuição de seu tio-avô, João Apolinário, de 107 anos, que
nos descreveu que essa região sempre foi um espaço de alagadiços e propícia para a criação de gado e de vastas
lavouras (APOLINÁRIO, Milton César. Entrevista sobre a lagoa do Boqueirão e Boa Cica com Milton César e
João Apolinário. [maio 2019]. Entrevistador: Pedro Pinheiro de Araújo Júnior. Touros, 2019).
108
Colares, as terras na passagem de Rio do Fogo em 1706, sendo essa uma sesmaria ainda não es-
tabelecida pelos padrões das ordens régias de 1697 e 1699, que uniformizaram essas concessões. No
entanto, o lote tinha uma légua de costa, começando na desembocadura do atual Rio do Fogo
em direção ao sul e duas léguas de comprimento para o sertão. Ao denominarem esse local de
“passagem” no documento, pode indicar que nessa costa era comum ocorrerem as marchas e
caminhos entre a Cidade do Natal e o Porto do Touro, com seus sertões adjacentes, corroboran-
do assim com as nossas pesquisas (de acordo com o Mapa 4), que descrevem que essa costa era
uma das rotas utilizadas pelos colonos para alcançarem as regiões mais ao norte da capitania
e do Ceará por terra e pelo mar. Entretanto, os solicitantes não informaram as justificativas
pelas quais pediram esses solos, apenas descreveram que adquiriram à terra através da compra,
e que esta, anteriormente, pertencia ao governador João Fernandes Vieira. Possivelmente esses
sesmeiros de Rio do Fogo tinham interesses na pesca, sobretudo nas imediações da Lagoa do
Fogo e do rio que deu origem a esse topônimo [ver Mapa 5], já que esse espaço é composto por
solos dunares e de falésias, pouco propícios para a pequena criação e agricultura, no entanto,
suas lagoas e riachos que seguem para o mar, historicamente, foram utilizados na cultura da
pesca de arrastão ou na piscicultura. Ademais, a capitania foi relatada como uma região piscosa,
como foi descrita no relato de Domingos da Veiga, em referência ao rio Potengi e regiões adjacentes.
Descreveu que era a mais fértil de peixes do Brasil, onde se faziam grandes pescarias e pela
sua costa, nos períodos de verão, a produção de peixes salgados seguia para os mercados da
Paraíba e Pernambuco (STUDART, 1920 apud VEIGA, 1627, p. 261). Nos tempos da dominação
neerlandesa, o cronista Joan Nieuhof descreveu que os peixes eram largamente consumidos
pela população, que “nem mesmo os doentes atacados de febre dispensam” o consumo.
Segundo ainda o autor, os rios e lagoas são ricos em todas as variedades de pescados, lagostas,
tartarugas, camarões, etc. No período chuvoso, os peixes marítimos ficam retidos nos rios e não
mais voltam para o mar (NIEUHOF, 1682, p. 44).
109
Em vista dessas articulações, Antônio Lopes de Lisboa pode ter se utilizado da sua
influência e experiência nos períodos que ocupou os espaços camarários para adquirir mais
terras, quando ocupou o cargo de escrivão por dez anos, de procurador no ano de 1675,
assumiu como almotacé em 1676 e foi vereador entre 1693 e 1696. Já Domingos da Silveira foi
também contemporâneo de Lopes de Lisboa na assunção de cargos camarários na Câmara do
Natal, quando ocupou a função de procurador em 1711, almotacé em 1713, vereador em 1717
e de juiz ordinário em 1727. Quando ocorreu a solicitação da sesmaria na passagem de Rio do
Fogo, ambos os capitães estavam sem ocupar o cargo camarário naquele intervalo de tempo.
Conjecturamos que eles usaram de suas articulações com as autoridades da Coroa na capitania
para conseguir um lote nas adjacências do Porto do Touro para expandir seus negócios em
atividades pesqueiras e salineiras nesse espaço. As vinculações sociais que ligavam ambos es-
tavam mais estreitas desde 2 de novembro de 1704, quando Antônio Lopes de Lisboa tornou-se
padrinho da filha de Domingos da Silveira, a criança Catarina do Amorim Freire.
Dentre os compadres, o que tinha o maior cabedal era Lopes de Lisboa por ser um dos
poucos moradores da capitania que possuía um barco com tamanho considerável e que fazia
o transporte do sal das praias das salinas para o porto de Natal. Sendo este um dos indícios
que levaram esse sesmeiro a ter conhecimento costeiro das adjacências do Porto do Touro e ter
interesses sobre eles, com a sua experiência em navegação pelos baixios de São Roque,
possivelmente teve o aprendizado dos melhores pontos para pescarias nessas paragens, o que
levou a associar-se com o compadre, Domingos da Silveira, para se apropriarem da região. Essa
prática de associar-se com parentes e amigos com laços de compadrio era uma prática bas-
tante comum nessa ascensão social nas práticas da sociedade do Antigo Regime nos trópicos.
Por exemplo, os três últimos personagens relatados tinham vinculações de parentescos entre
si e puderam expandir seus patrimônios sobre os sertões da Capitania do Rio Grande. Esses
colonos citados não foram exemplos únicos nesses espaços, o retalhamento territorial desses
sertões do Porto do Touro foi expandido com o exemplo do sesmeiro a seguir.
Um dos primeiros solicitantes de terras no litoral norte da Capitania do Rio Grande foi
o sesmeiro Domingos Carvalho da Silva, que requereu terras ao capitão-mor André Nogueira
da Costa, sendo estas com dimensões de 3 léguas de comprimento de costa, iniciando do rio
do Porto do Touro para o sul, passando por Carnaúbas e Rio do Fogo, tendo essa sesmaria 1,5
légua de fundo para o sertão [ver Mapa 5]. Domingos Carvalho fez a solicitação pois, possuía
110
criação de gado vacum e cavalar e almejava expandir seus domínios, ter acesso a outras lagoas
e rios para manter o seu pequeno rebanho permitido pelo Alvará de 1701. Segundo o documento
sesmarial, o solicitante morava no Porto do Touro há pelo menos 15 anos e comprou essas terras
a Domingos da Silva [ou Silveira] Valcasar, tendo este último solicitado o Porto do Touro por
volta de 1691, todavia, o sesmeiro nunca as povoou. Ademais, Domingos Carvalho da Silva
comprou à terra, provavelmente em 1696, mas como não tinha o seu título legal, possivelmente
as autoridades coloniais concederam essa região costeira ao padre Antônio Rodrigues Fontes
e a Maurício Bocarro Ribeiro, porém ambos também não as povoaram e o desembargador
Cristóvão Soares Reimão as considerou como devolutas, confirmando as terras para Domingos
Carvalho em 25 de maio de 1711.
Domingos Carvalho da Silva não pode ser analisado isoladamente como mais um colono
a fazer uma solicitação de uma sesmaria junto ao capitão-mor do Rio Grande. Com o cruzamento
das fontes coloniais, percebeu-se que ele fazia parte de uma rede complexa de relações que se
construíram nesse processo colonizador sobre a capitania em estudo. Não se tem, até o
momento, registros de suas origens, sendo este um dos poucos sesmeiros da capitania que não
tinha patente militar. Destarte, era um dos membros do Senado da Câmara do Natal no início
do século XVIII e seu nome consta entre os vereadores que deram posse ao Capitão-mor
Antônio Carvalho de Almeida, em 14 de agosto de 1701. O vereador fazia parte de um grupo
de indivíduos que estavam no centro do poder da capitania e se articulavam com os seus pares
a concessão de novas cartas de sesmarias nesse espaço colonial.
Segundo Thiago Alves Dias, em Natal, os “homens bons” da cidade se reuniam no dia
21 de novembro, data da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Apresentação, para escolher
cinco ou seis eleitores que elegiam os vereadores da Câmara em três listas, o juiz ordinário que
ocupava o cargo por três anos, além dos procuradores e juiz de órfãos (DIAS, 2009, p. 121).
Segundo Vicente Lemos, essas câmaras coloniais eram também, totalmente ou em parte,
responsáveis pela manutenção, alimentação e vestuário das suas guarnições e pela construção
e manutenção das suas fortificações, tal como pelo equipamento de frotas costeiras. Além disso,
regulavam a polícia nas feiras, nos mercados e no trânsito e supervisionavam a distribuição e
arrendamento das terras de seu termo (LEMOS; MEDEIROS,1980, p. 17).
111
exemplos analisados na seção anterior. Nessa conjuntura, Domingos Carvalho poderia ser eleito
aos cargos camarários pelas pessoas ligadas a ele, devido aos laços de poder e aos interesses
que os uniam. Os indivíduos que participavam da Câmara ditavam as regras da capitania e,
logicamente, estavam imbuídos de apropriarem-se dos espaços que anteriormente eram dos
grupos indígenas originais que, nesse processo de expansão colonial portuguesa, uma parte foi
migrada, dizimada nos conflitos com os colonizadores ou aldeada em missões.
Tanto Domingos Carvalho como Antônio Lopes de Lisboa podem ter se beneficiado dos
negócios da pesca no litoral norte quando solicitaram as sesmarias do Porto do Touro e Rio do
Fogo [ver Mapa 5], respectivamente, após o Senado da Câmara estabelecer sobre o abastecimento de
pescados na sede da Capitania, em 1º de junho de 1693. Os oficiais, incluindo o próprio Antônio
Lopes de Lisboa, do Senado da Câmara liberaram em edital a pesca na costa, do Porto do Touro
até o Ceará, pagando-se 2$000 por rede e 10 tostões por tresmalho como constava o alvará do
Governador-geral. Estaria Domingos Carvalho da Silva, nessa época, na articulação com os
oficiais da Câmara para se beneficiar do novo negócio da pesca? Já que ainda não tinha cargo
camarário, podemos conjecturar que o personagem pode ter se utilizado das uniões com os
grupos sociais importantes na época, através dos laços de compadrio, e com isso ter almejado
o privilégio comercial na costa do Rio Grande.
Como se observa no geneagrama a seguir, Domingos Carvalho era casado com Catarina
de Barros, e tiveram desse matrimônio seis filhos. Os locais de batismos dessas crianças
demonstram a mobilidade da família, a partir da cidade do Natal para o litoral norte, entre o
final do século XVII e o princípio do século XVIII. Seus dois primeiros filhos, Inês e Júlio da
Costa Barros, foram batizados na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação e os outros
quatro foram batizados na igreja de São Miguel do Guajiru. Possivelmente, a família se estabeleceu
no Porto do Touro ou nas mediações, pois participava somente das cerimônias religiosas na
igreja de São Miguel do Guajiru, a partir de 1700, sendo este o único templo religioso da
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, nas proximidades dos sertões do Porto do Touro,
no início do século XVIII.
Por volta de 1700, a família conseguiu se expandir em redes de compadrio nos espaços
da capitania, haja vista o patriarca da família ser vereador no Senado da Câmara do Natal nesse
ano, portanto, era membro da elite que ocupava os cargos camarários no Rio Grande. Como se
observa no Quadro 3, logo mais a seguir, verifica-se que os primeiros filhos do casal Domingos
Carvalho e Catarina de Barros tinham como padrinhos indivíduos com influência nos espaços
112
da capitania no final do século XVII, a família do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo24. Os
Vieira de Melo eram uma das famílias mais importantes da chamada açucarocracia de Pernambuco e
disseminaram seus raios de influência no Rio Grande quando Bernardo Vieira de Melo ocupou
o cargo de capitão-mor dessa capitania entre julho de 1695 e agosto de 1701.
Fonte: Elaboração do autor Pedro Pinheiro de Araújo Júnior no software Genopro, com base no Livro de Batizados da
Freguesia de N. S. da Apresentação (1681-1714).
113
Possivelmente, esses vínculos estabelecidos entre às duas famílias fizeram com que,
de alguma forma, Domingos Carvalho da Silva conseguisse expandir seu cabedal, adquirindo
sua única sesmaria por compra, o Porto do Touro, em 1696. No mesmo ano, morava com a sua
família numa casa ao sul do lote do então Alferes Antônio Dias Pereira na cidade do Natal, e
assumiu um cargo camarário ainda no período da segunda governança de Bernardo Vieira sob
o Rio Grande. Conjecturamos, assim, que o dito personagem só ocupou cargo no Senado da
Câmara nos períodos em que seus compadres foram influentes nesses espaços de poder na capitania.
Como se observa no Quadro 2 a seguir, a maioria dos padrinhos dos filhos de Domingos
Carvalho ocuparam cargos camarários ou foram nomeados para o cargo de capitão-mor, entre
anos de 1695 e 1712, ou eram parentes em primeiro grau de um dos membros do Senado da
Câmara nesse período.
Capitão-mor Bernardo
Matriz de Nossa Senhora
31/01/1696 Inês Vieira de Melo e sua
da Apresentação
mulher, Catarina Leitão
Capitão Teodósio da
Igreja de São Miguel da
01/01/1707 Clemente de Barros Rocha e Maria Carvalho
Aldeia do Guajirú
(viúva)
Manoel de Andrade e
Igreja de São Miguel da
11/06/1709 Domingos Felizarda Figueira da
Aldeia do Guajirú
Rocha
Fonte: Quadro elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, a partir dos dados do Livro de Batizados da
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714)
114
cipação das discussões camarárias e em mais pedidos de solicitações de terras nessa região
entre os anos de 1701 e 1711. Sua articulação em redes clientelares pode ter se estreitado com
o seu concunhado, o Tenente-Coronel Manoel Rodrigues Coelho, possivelmente para tentar
a confirmação da posse da sua sesmaria, o que conseguiu, em 1711, como também para
assumir novamente um cargo camarário depois de uma pausa de 10 anos. Em vista disso, em
21 de novembro de 1711, na abertura do pelouro com os nomes dos novos oficiais do Senado
da Câmara, apareceu na lista o nome de Domingos Carvalho da Silva como eleito para ocupar
o cargo de vereador no ano de 1712. Meses depois, na sessão da Câmara de 26 de fevereiro de
1712, ele foi impedido de assumir o cargo devido ao regulamento, que proibia a assunção do
cargo camarário por dois parentes, pois o seu concunhado, o tenente-coronel Manoel Rodrigues
Coelho, foi também eleito ao posto de Juiz Ordinário da Câmara.
Essas situações, nas quais os parentes se utilizam dos espaços de poder para angariar
aumento de seu cabedal, foram vistas por Cristina Mazzeo Vivó como uma das estratégias
utilizadas pelas famílias no período colonial nas Américas, criando assim um grupo que foi
descrito pela autora como “elite”. Essas pessoas compartilhavam desses interesses comuns e
desfrutavam de prestígio social, bem como obtinham poder político nas instituições coloniais,
possuíam “uma riqueza composta não só de capital líquido, ou seja, fazendas e propriedades
urbanas, mas também expressa na capacidade de estabelecer importantes relações sociais”
(VIVÓ, 2009, p. 268). Essa articulação em redes familiares entre Domingos Carvalho e Rodrigues
Coelho pode ter garantido aos concunhados a posse de suas terras na capitania, algumas delas
confirmadas pelo desembargador Cristóvão Soares Reimão entre os anos de 1706 e 1713, quando
este vinha realizando o processo de demarcação das sesmarias do Rio Grande. Dessa forma,
foram alargados os domínios dessas duas famílias nos espaços da Capitania do Rio Grande
nesse período.
115
Quadro 4 – Relações de compadrio da família de Dona Catarina de Barros e Domingos de Carvalho
Nomes dos
Data Local do batismo afilhados Pais da criança Padrinhos
(as)
Matriz de Nossa
João Ribeiro de Provedor Duarte de Siquera
28/09/1694 Senhora da Apresen- Narciso
Sá e Ana Correia e Catarina de Barros
tação
Maria, escrava
Igreja de São Miguel Belchior e Mariana Pretos
18/05/1703 Mônica de Domingos de
da Aldeia do Guajirú forros
Carvalho
Tenente-Coronel
Igreja de São Miguel Manoel Rodri- Capitão José Machado de
23/04/1705 Manoel
da Aldeia do Guajirú gues Coelho e Souza e Catarina de Barros
Isabel de Barros
Antônio de An-
Igreja de São Miguel drada de Araújo Antônio Teixeira Coelho e
04/02/1709 José
da Aldeia do Guajirú e Maria de Abreu Dona Catariana de Barros
Pereira
Sebastião Tei- Júlio da Costa Barros e Maria
Igreja de São Miguel
03/09/1710 Maria xeira e Maria da da Conceição (filhos do casal
da Aldeia do Guajirú
Conceição Domingos e Catarina)
Igreja de São Miguel Ana Crioula, Capitão João Antunes e
10/07/1712 Lino
da Aldeia do Guajirú escrava de Luiz Catarina de Barros
Fonte: Quadro elaborado por Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, a partir dos dados do Livro de Batizados da
Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714)
Possivelmente, Domingos Carvalho da Silva aumentou seu cabedal e iniciou sua trajetória
entre os membros da elite da capitania a partir do casamento com Catarina de Barros, provavelmente
em 1695, no início da governança de Bernardo Vieira de Melo. Com esse casamento, foi possível
ao sesmeiro adquirir um certo patrimônio e adquirir o status para almejar um cargo militar ou
camarário no Rio Grande. Seu projeto foi alcançado ao unir-se com a família Barros, ligada à
116
matriarca Mariana da Costa, que tinha um cabedal considerável, conquistado possivelmente
quando ficou viúva do seu marido, do qual ainda não foi possível identificarmos o nome nos
documentos coloniais. A viúva Mariana da Costa foi mãe de três filhas e de um filho adotivo,
exposto em sua casa em Natal, em 1699, e nomeado como Antônio. Dos casamentos das suas
filhas, Isabel de Barros, Catarina de Barros e Bernarda de Barros, a matriarca teve, pelo menos,
treze netos batizados na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Uma das netas, filha de
Bernarda de Barros [Oliveira] e do Capitão José de Oliveira Velho, foi batizada com o nome em
homenagem à avó, Mariana, na matriz, em 3 de dezembro de 1704. Com a exceção de Catarina
Barros, suas duas filhas, Isabel de Barros e Bernarda de Barros, casaram-se com homens que
de alguma forma também tinham certo cabedal entre os moradores da capitania e ocupavam
cargos importantes no âmbito militar e camarário nesse período, como foi o caso do casamento
entre o Tenente-Coronel Manoel Rodrigues Coelho e Isabel de Barros, que tiveram quatro
filhos, Ana, Maria, Francisco e Manoel, entre os anos de 1691 e 1705, batizados na igreja de
São Miguel do Guajiru.
Com a análise dos estudos sobre as relações familiares, foi possível compreender como
esses moradores da capitania em estudo se articularam através das redes clientelares para se
apropriarem dos vales dos rios e das praias dos sertões do Porto do Touro, processo esse que se
acentuou no princípio do século XVIII. Entendemos que o conhecimento sobre esses sertões
foi realizado pelos luso-brasileiros num processo contínuo e, possivelmente, com auxílio de
indígenas que possuíam uma experiência obtida dos seus ancestrais sobre esses espaços, indicando
para os colonos os nomes dos lugares, os melhores solos para o plantio e as melhores praias
piscosas. Por fim, nesse mesmo processo de dominação, o encontro colonial fomentou o
“desaparecimento” desses povos, não no sentido que eles tivessem sumido desses espaços, mas
sim no sentido de invisibilidade a partir dos olhares dos cronistas, nos relatos dos sesmeiros ou
nos mapas dos séculos posteriores a essa análise.
117
5 C onsideracões Finais
~
O objetivo principal deste livro foi o de perceber como se desenvolveu o processo de
apropriação territorial do litoral norte da Capitania do Rio Grande no decorrer de um pouco
mais de dois séculos (1500-1719). O estudo teve como meta investigar esse processo de expansão
realizado por europeus no litoral que no século XIX era parte da Freguesia do Senhor Bom
Jesus dos Navegantes do Porto do Touro. Utilizamos esse recorte temporal amplo, pois, identificamos
que nesses dois primeiros séculos do encontro colonial ocorreu uma multiplicação de produções
de mapas sobre o litoral da costa do Brasil, fruto das navegações e das produções das escolas
cartográficas europeias. Entre as fontes cartográficas que averiguamos para o recorte temporal
estabelecido estão as produções de quatro nações europeias, que são Portugal, Espanha, França
e Holanda.
Para tanto, realizamos uma análise através da Cartografia Histórica para compreender
como a designação desse espaço foi construída com a denominação de topônimos e nos relatos dos
cronistas que contribuíram em informações preciosas sobre os povos originais, como também,
sobre seus territórios que eram ambicionados pelas coroas europeias. Ademais, buscamos nesse
processo de pesquisa a utilização de diversas tipologias de fontes que estavam disponíveis e
que nos auxiliarem nessa investigação, tais como nos relatórios e artigos sobre as prospecções
arqueológicas feitas no litoral norte, que se utilizaram da Arqueologia Histórica, que lançaram
novas interpretações sobre os primeiros contatos entre os europeus e indígenas na costa do
Brasil. Além destes, utilizamos as fontes sesmariais, camarárias e paroquiais da Capitania do
Rio Grande, utilizando-se do método onomástico para identificar as trajetórias de vida
dos primeiros colonos que se apropriaram desses espaços no princípio do século XVIII.
118
pesquisadores, Tavares de Lira e Cavalcanti de Morais, de que esse espaço não era povoado e
só foi ocupado no século XIX, indicam que essas ideias estão equivocadas. Analisamos
as evidências do encontro colonial nesses sertões do Cabo de São Roque ao averiguarmos os
dados escritos, imagéticos e iconográficos realizados, principalmente, pelos cartógrafos das
escolas portuguesa e francesa e, assim, aplicamos o conceito de espaço concebido para compreender
esse processo de construção do espaço a partir da confecção de mapas.
No segundo capítulo, buscamos investigar como o topônimo Cabo de São Roque foi
utilizado como uma das principais referências na navegação do litoral do Rio Grande pelos
navegadores e cartógrafos do século XVII. Identificamos que a região foi exaustivamente
representada em mapas por ser uma “ponte” que ligava Salvador/Pernambuco para as Capitanias
do Norte do Brasil, Ceará/Maranhão. Encontramos também que os baixios de São Roque, que
eram pedras e corais submersos no mar, foram constantemente representados em iconografias
nos mapas indicando que, nessa passagem, os navegadores deveriam ter mais cuidado devido
aos naufrágios. Desvendamos que, com a Conquista do Maranhão em 1614, foi que a navegação
por essa costa se tornou mais promissora para a Coroa portuguesa e, desse modo, exponenciou
o conhecimento dos militares e colonos lusos sobre os sertões de baixo, ao norte da Cidade do
Natal.
119
desse modo, “apagar” a presença dessas comunidades originais sobre as novas conquistas
territoriais portuguesas do período. Assim, podemos entender o porquê de historiadores como
Tavares de Lira e outros mais recentes renegarem os Potiguara e evidenciar que essas praias
foram ocupadas por sertanejos em meados do século XIX. Entendemos que pesquisar sobre a
História Indígena pode nos levar a compreender os processos de dominação, utilizadas pelos
colonizadores, nas tentativas de construção do “esquecimento” sobre os povos originais em
outros espaços do Estado do Brasil.
No entanto, não conseguimos fechar algumas lacunas deixadas por esta pesquisa. Em
relação aos estudos cartográficos, é necessária uma investigação sobre as produções das escolas
europeias do final do século XVII e do século XVIII, pois, são importantes para os estudos
sobre os topônimos do litoral das capitanias do Ceará e do Rio Grande do Norte. Em relação
aos estudos sobre a trajetória dos sujeitos, ainda resta a investigação sobre o sesmeiro Estevão
Alves Bezerra, personagem não mencionado nos registros paroquiais analisados. Além disso,
precisa-se averiguar também a ocupação do espaço nas ribeiras dos rios Punaú e Maxaranguape
na primeira metade do século XVIII, pois, como vimos no terceiro capítulo, existem outros
ciclos de ocupação por sesmeiros, ocorridos no decorrer do século XVIII e no início do XIX.
Essas futuras análises podem contribuir para a historiografia sobre o período colonial no Rio Grande.
120
Fontes
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