Você está na página 1de 9

REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

LATINO-AMERICANA / RIBLA

N ° 11 — 1992/1

BÍBLIA: 500 ANOS


Conquista ou Evangelização?

êJ^Ê Ê E d ito ra
J S in o d a !

Petrópolis São Leopoldo


1992
de o próprio povo índio ler diretamente a Bíblia, para si mesmos e para todos nós. Este
processo de leitura da Bíblia a partir dos indígenas já se iniciou desde o próprio momento
da conquista, mas agora deve tomar-se público, enérgico, com autoridade e legitimidade. Pablo Richard V
Os indígenas deAbya Yala (nome índio da América Latina) estão lendo a Bíblia
a partir da experiência de Deus em sua própria cultura e religião. Também a partir da
Bíblia estão jazendo um discernimento de suas próprias tradições religiosas. Em muitos
lugares de nosso continente escutamos o testemunho de indígenas que dizem entender
melhor a Bíblia quando a lêem a partir de suas próprias tradições religiosas; e vice-versa,
dizem entender melhor sua própria religião e cultura quando fazem uma leitura e
interpretação libertadora da Bíblia. Assim se estabelece um diálogo fecundo entre a Hermenêutica Bíblica índia
Revelação de Deus nas religiões índias e a Revelação de Deus nas tradições bíblicas. E Revelação de Deus nas religiões indígenas e na
neste diálogo são os próprios indígenas que evangelizam os indígenas e evangelizam
também a nós todos que não somos índios. Urge criar, em teoria e em exemplos concretos, Bíblia (depois de 500 anos de dom inação)
uma hermenêutica bíblica índia, feita pelos próprios teólogos índios e a partir de sua
perspectiva. Este número de RIBLA que agora apresentamos quer ser uma contribuição
e colaboração neste sentido. Neste número de RIBLA ainda escrevem exegetas não-úidios;
esperamos que num futuro não distante irrompam em nossos trabalhos e publicações
teólogos e exegetas indígenas, criando diretamente uma hermenêutica bíblica índia.
Gostaríamos de terminar citando outro parágrafo do documento que citávamos
no começo deste editorial. Diz assim:
“Os povos indígenas somos profundamente religiosos, muito mais do que os
mestiços e os modernos; porque entendemos a globalidade da existência em relação
harmônica com a natureza e em radical vinculação com a divindade. Por isso em nós RESUMO: O artigo procura elaborar alguns elementos teóricos para construir uma
encontraram maior ressonância as proposições evangãicas transmitidas pelos missio­ hermenêutica bíblica índia que rompa com os esquemas colonizadores e nos permita
descobrir toda a riqueza da Revelação de Deus nas religiões índias. Nosso quadro teórico
nários e que nós inculturamos, no meio de não poucas contrariedades com os membros será a própria teologia índia, desenvolvida pelos teólogos índios de nosso continente No
não indígenas das igrejas. No futuro próximo talvez os indígenas sejamos o único espaço final fazemos um esboço prático do que poderia ser esta nova hermenêutica.
onde as igrejas continuarão tendo ressonância, pois, no passo em que as coisas andam,
as sociedades pós-modemas, por seu ateísmo teórico e prático, seguramente em pouco
tempo, terão eliminado de seu seio a religião e o próprio Deus”. 1. O traum a indígena frente à B íblia
“Com isto não queremos idealizar ou mitificar os povos indígenas; pois também
A primeira experiência dos indígenas com a Bíblia foi traumática. Na
em nós existem muitos defeitos humanos, uns produtos de nossos erros pessoais e
conquista e colonização de América a Bíblia foi normalmente utilizada como instru­
coletivos, outros interiorização dos pecados da sociedade. Também nós precisamos de
mento de dominação e de morte. Um ditado popular da Guatemala diz o seguinte:
conversão para nos aproximarmos mais plenamente do ideal de vida semeado por Deus
“Quando os espanhóis chegaram disseram a nós, os indígenas, que fechássemos os
em nossas culturas e proposto explicitamente pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus
olhos para orar. Quando abrimos os olhos, nós tínhamos sua Bíblia e eles tinham
Cristo. Por isso estamos atentos às interpelações que vêm de dentro de nossas culturas e
nossa Terra”. Este trauma histórico dos indígenas com a Bíblia se expressa também
ao chamado de plenificação que nos vem do Evangelho” (n. 6 e 8).
naquela famosa carta aberta que vários movimentos indígenas escreveram a João
O próximo número de RIBLA (RIBLA n. 12, segundo número de 1992) conti­ Paulo II quando este visitou o Peru:
nuará e aprofundará os esforços deste n. 11 que aqui apresentamos.
Nós, índios dos Andes e da América, decidimos aproveitar a visita de João Paulo
II para lhe devolver sua Bíblia, porque em cinco séculos não nos tem dado nem
Milton Schwantes
amor, nem paz, nem justiça.
Pablo Richard
Por favor, tome de novo sua Bíblia e a devolva a nossos opressores, porque eles
precisam de seus preceitos morais mais do que nós. Porque desde a chegada de
Cristóvão Colombo foi imposta à América, com a força, uma cultura, uma
língua, uma religião e alguns valores próprios da Europa.
A Bíblia chegou a nós como parte da mudança colonial imposta. Ela fo i a arma
ideológica desse assalto colonialista. A espada espanhola, que de dia atacava e

6 7
assassinava o corpo dos índios, de noite se convertia na cruz que atacava a alma do gênero humano poderem ser conhecidas por todos facümente com sólida certeza
índia. e sem mistura de erro nenhum aquelas coisas que em matéria divina não são de per
si inacessíveis à razão humana’” (Dei Verbum, 6; cf. Gaudium et Spes, 58 sobre a
Este é um texto duro, mas expressa bem esse trauma que os indígenas relação entre evangelho e cultura). Nesta mesma linha Paulo VI dizia, referindo-se às
experimentam frente à Bíblia. Este trauma se aprofunda hoje em dia com a experiência religiões não-cristãs, texto que também poderíamos aplicar a nossas religiões indíge­
das seitas fundamentalistas e das manipulações que muitas igrejas ainda fazem da nas milenares: “Um tal anúncio destina-se também a porções imensas da humanidade
Bíblia contra a religião e a fé dos indígenas. Freqüentemente também o trabalho que praticam religiões não-cristãs que a Igreja respeita e estima, porque elas são a
bíblico melhor intencionado ignora ou subvaloriza as tradições religiosas indígenas expressão vida da alma de vastos grupos humanos. Elas levam em si mesmas o eco
e a própria Bíblia chega a ser a causa desta ignorância ou falta de interesse pela de milênios de procura de Deus, procura incompleta, mas muitas vezes efetuada com
Revelação nas tradições indígenas. Um indígena panamenho me disse uma vez: sinceridade e retidão de coração. Elas possuem um patrimônio impressionante de
“Vocês com sua Bíblia fizeram mal a nossa alma”. E triste escutar isto, mas é muito textos profundamente religiosos; ensinaram gerações de pessoas a orar; e, ainda,
real. acham-se permeadas de inumeráveis ‘sementes do Verbo’ e podem constituir uma
Também nós, biblistas ou agentes de pastoral não-indígenas, vivemos um autêntica “preparação evangélica”’ {Evangelii Nuntiandi, 53). Escutei também alguns
trauma com a Bíblia quando tivemos a possibilidade de uma inserção profunda na agentes de pastoral, em sua busca por valorizar as religiões índias, dizerem que elas
cultura e religião índias. Ficamos tão maravilhados com a tradição religiosa indígena, representam na América Latina o que significou o Antigo Testamento para o Novo
com a experiência de Deus em tal tradição e com a força religiosa indígena que os Testamento.
fez sobreviver 500 anos apesar do cristianismo, que nos parece inadequado falar de Tudo isto significa um avanço enorme sobre as posições colonizadoras e
nossa Bíblia, tão distante no tempo e no espaço e tão alheada culturalmente pela fundamentalistas anteriores das igrejas. São referências úteis e necessárias, mas nossa
interpretação colonial ocidental. experiência e reflexão atual nos leva além delas, sem negar absolutamente o valor
Tudo isto exige dè nós conversão e o compromisso de elaborar uma herme­ que elas têm em si mesmas.
nêutica libertadora no contexto destes 500 anos de evangelização, colonização e Hoje, depois de 500 anos de diversas tentativas de evangelização, descobri­
conquista espiritual. mos que a experiência de Deus dos povos índios é uma experiência milenar (os
testemunhos remontam a pelo menos 10 mil anos atrás, embora seja nos últimos três
2. A Revelação de Deus na tradição religiosa índia milênios que ocorre já uma teologia expressa e elaborada), cujo desenvolvimento e
profundidade hoje nos enche de admiração e respeito. As religiões indígenas, além
de vivificar durante milênios a vida dos povos indígenas, sobreviveram a 500 anos de
a) Insuficiência dos instrumentos teológicos e magisteriais tradicionais de
agressão política, cultural e teológica. Mais ainda: foram as religiões índias que
discernimento
permitiram aos povos índios resistir e sobreviver, muitas vezes apesar e contra a
No começo a opinião dominante dos missionários foi considerar a religião evangelização cristã. A tradição religiosa indígena mostrou também uma imensa
indígena como pagã, idolátrica e inclusive demoníaca. Ainda hoje a atitude para com vitalidade para assumir o melhor da tradição cristã, incorporando-a e interpretando-a
as religiões indígenas é de ignorância, suspeita ou menosprezo. Contudo, estas em suas próprias estruturas religiosas e culturais. A fé indígena foi criadora e
opiniões estão pelo menos oficialmente superadas. O Concílio Vaticano II exorta: portadora das melhores tradições da religiosidade popular e conseguiu sínteses
“Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito teológicas próprias (das quais falaremos mais adiante). Por isso a designação da
descubram as sementes do Verbo aí ocultas” (Ad Gentes, 11). Pede igualmente “um tradição religiosa indígena como “preparação evangélica” ou como portadora de
diálogo sincero e paciente para descobrir as riquezas que Deus, generoso, prodigalizou “sementes da Palavra” é correta, mas insuficiente. Creio que nas religiões indígenas
aos povos” (ibidem). “A Igreja trabalha de maneira tal que tudo o que de bom se não só encontramos “sementes” da Palavra, mas que a Revelação se desenvolveu nelas
encontra semeado no coração e na mente dos homens ou nos próprios ritos e culturas como uma árvore inteira, com raiz, tronco e ampla ramagem. Também é insuficiente
dos povos não só não desapareça, mas seja sanado, elevado e aperfeiçoado para a falar de “preparação evangélica”, pois os sábios e teólogos indígenas tiveram maior
glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem” (Lumen Gentium, 17). capacidade do que os missionários para re-conhecer e identificar o Evangelho quando
O Concílio reconhece uma preparação da revelação evangélica: “Criando pelo Verbo este chegou confundido e misturado na conquista e colonização da América. Não só
o universo (cf. Jo 1,3) e conservando-o, Deus proporciona aos homens, nas coisas foram capazes de se apropriarem corretamente do Evangelho, mas foram capazes de
criadas, um permanente testemunho de si (cf. Rm 1,19-20)... e velou permanente­ resgatá-lo e de salvá-lo contra todas as manipulações que a Conquista e a “evangeli­
mente pelo gênero humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, pela zação” fizeram dele. Com isto não estamos canonizando nem sacralizando as religiões
perseverança na prática do bem, procuram a salvação... E assim preparou, ao longo indígenas, mas só questionando os critérios com os quais as discernimos e julgamos.
dos séculos, o caminho para o Evangelho” ( Dei Verbum 3; cf. também Lumen Gentium,
16). Fala também da Revelação em forma universal e otimista: “Professa o Santo b) Alguns elementos teóricos para uma Hermenêutica Bíblica índia
Sínodo que T)eus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza
pela luz natural da razão humana partindo das coisas criadas’ (cf. Rm 1,20); mas É necessário construir um instrumento hermenêutico diferente para inter­
ensina que se deve atribuir à sua revelação o fato de ‘mesmo na presente condição pretar as tradições religiosas indígenas. Um primeiro elemento para isso é a distinção

8 9
constroem, a dão à luz, a partir de sua própria experiência religiosa. Não é somente
tradicional e muito ortodoxa entre Bíblia e Palavra de Deus. A Bíblia é um instrumento
a leitura da Bíblia que os leva a penetrar no sentido das palavras, mas também a
para a revelação da Palavra de Deus. Esta Palavra de Deus é uma realidade muito
experiência religiosa índia anterior à Bíblia e à leitura da Bíblia. Na interpretação
mais ampla do que a Bíblia: está na Bíblia mas também antes e depois dela. Deus é
índia da Bíblia há uma produção de sentido que vem da experiência religiosa anterior,
um Deus vivo, que se comunica conosco desde a criação do mundo e continua se
que os índios desenvolveram durante milhares e milhares de anos.
comunicando hoje. A Bíblia nos transmite de uma maneira plena, inspirada e com
autoridade a Palavra de Deus, mas a Bíblia não esgota toda a Palavra de Deus. A Bíblia A hermenêutica clássica nos fala da Bíblia como Cânon. Isto pode ser
certamente nos revela a Palavra de Deus, mas também nos revela onde e como Deus entendido num sentido ativo e passivo. Num sentido passivo a Bíblia é Cânon porque
se revelou em toda a humanidade e onde e como se revela hoje em nossa história. contém todos os livros aceitos pela Igreja como livros inspirados. Quando terminou
Esta força do texto bíblico era chamada pelos Santos padres de “sentido espiritual”.1 o período apostólico encerrou-se o cânon dos livros inspirados.
Citemos os textos patrísticos que nos podem iluminar nesta busca. O primeiro, de Mas a Bíblia é Cânon também num sentido ativo. Cânon significa medida.
Santo Agostinho, diz assim: Um metro, um litro, um quilo são medidas ou cânones estabelecidos para medir ou
A Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrita para nos ajudar a decifrar o mundo, pesar as coisas. De maneira semelhante, a Bíblia é também um cânon, quer dizer,
para nos devolver o olhar da fé e da contemplação e para transformar toda a u m a “medida”, para “medir” a Palavra de Deus. A Bíblia é o critério estabelecido para
realidade numa grande revelação de Deus.2 discernir a Palavra de Deus na história: na humanidade e no cosmos. Não podemos
discernir a revelação de Deus de qualquer maneira ou de forma arbitrária. Devemos
O segundo texto é de Cassiano: fazê-lo de uma maneira canônica, isto é, de acordo com a Bíblia como cânon
estabelecido. Portanto, falar da Bíblia como Cânon não é reduzir toda a Revelação da
Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não percebemos o texto como Palavra de Deus ao texto da Bíblia (como faz o fundamentalismo), mas utilizar a
Revelação que está contida na Bíblia, como critério de discernimento e de inter­
algo que só ouvimos, mas como algo que experimentamos e tocamos com nossas
pretação da Palavra de Deus em toda a história humana, desde a criação até o fim do
mãos; não como uma história estranha e inaudita, mas como algo que damos mundo. Se aplicarmos o que foi dito ao mundo religioso indígena, podemos afirmar
à luz a partir do mais profundo de nosso coração, como se fossem sentimentos que a leitura da Bíblia não substitui ou anula a tradição religiosa indígena, mas é um
que fazem parte de nosso próprio ser. instrumento para discernir a presença e a revelação de Deus nessa tradição religiosa
Insistimos: não é a leitura que nos faz penetrar no sentido das palavras, mas a indígena. A Bíblia recupera assim a autoridade espiritual que lhe é própria e deixa de
nossa própria experiência adquirida anteriormente na vida de cada dia.3 ser o instrumento autoritário de repressão religiosa e cultural, tal como foi utilizada
na conquista e destruição espiritual da América.
Apliquemos agora o que foi dito às tradições religiosas indígenas. À luz do
texto de Santo Agostinho poderíamos dizer que o cosmos, a cultura e a religião índia O princípio hermenêutico que expusemos (sentido espiritual da Bíblia, a
é o primeiro “livro” de Deus. Ali os índios descobrem a Revelação de Deus e se Bíblia como livro segundo de Deus, a Bíblia como Cânon ativo de discernimento) é
comunicam com ele. A Bíblia é o segundo livro de Deus, para nos ajudar a decifrar um principio Hermenêutico libertador para atradiçãorelrgiosa indígena,~sõfrã
esse primeiro “livro” índio da Revelação de Deus. A leitura da Bíblia nos devolve o condição de ser combinado com outro princípio hermenêutico igualmente importan­
olhar da fé e da contemplação (que perdemos pela conquista e pela ideologia te: o princípio da apropriação do texto e da interpretação bíblica por parte do
dominante ocidental) para captar essa realidade cósmica, cultural e religiosa índia evangelizado, que o transforma simultaneamente em sujeito evangelizador. É o
como uma grande Revelação de Deus. Esta leitura espiritual da Bíblia não subvaloriza, princípio que reconhece no indígena a possibilidade e a capacidade de ser sujeito da
nem muito menos destrói a Revelação de Deus no mundo religioso indígena, mas, leitura e da interpretação bíblica. A Bíblia nos permite descobrir na tradição indígena
muito pelo contrário, a considera o primeiro livro de Deus e a descobre como uma a Revelação de Deus, sob a condição de a Bíblia ser lida e interpretada pelos próprios
grande epifania de Deus. Este tipo de leitura é antagônica à leitura fundamentalista indígenas e nas estruturas culturais e religiosas índias que são próprias deles. A Bíblia
e colonizadora da Bíblia, que ignora ou destrói a Revelação de Deus no livro da vida é Cânon ou critério de discernimento da Palavra de Deus na tradição religiosa
e finalmente também na própria Bíblia. indígena, sob a condição de a Bíblia ser apropriada pela própria comunidade indígena.
As condições ou mediações desta apropriação são várias. Em primeiro lugar, esta
O texto de Cassiano nos leva mais longe ainda e corresponde melhor à apropriação índia da Bíblia é feita na comunidade eclesial, o que supõe a construção
experiência religiosa dos indígenas. O mundo religioso indígena é tão rico e profundo
e existência de uma Igreja local indígena. Em segundo lugar, a apropriação índia da
que, quando os índios lêem a Bíblia, não somente a lêem e a ouvem, mas também a
Bíblia supõè uma apropriação adequada por parte dos indígenas dos instrumentos
teóricos (históricos, lingüísticos, culturais) necessários para os indígenas mesmos
1. Este é o tema central de meu artigo Leitura Popular da Bíblia na América Latina. Hermenêutica poderem se'apropriar do texto (sentido literal) e da história por trás do texto (sentido
da libertação, publicado em RIBLA (Revista de Interpretação bíblica latino-americana), n. 1 (1988): 8-25. histórico), para resgatar assim diretamente a Bíblia de todas as suas interpretações
2. Citado por Carlos Mesters em Florsin Defensa. Ediciones CLAR n. 16, Bogotá, 1984, p. 28. perversas. Em terceiro lugar, a apropriação índia da Bíblia supõe que a leitura e
3. Collationes X, 11.
interpretação da Bíblia seja feita dentro do processo histórico de libertação índia
4. Usamos a palavra “livro” num sentido analógico, comparativo, simbólico. As tradições religiosas
indígenas se expressam às vezes em textos, mas sobretudo em ritos, símbolos, mitos e na tradição oral.
(processo político, cultural e religioso). Estas três condições ou mediações (a eclesial,
a teórica e a histórica) tomam possível que o índio seja sujeito ativo e criador da

10 11
interpretação da Bíblia. Esta apropriação índia da Bíblia transforma o indígena, de a) Definição da Teologia índia
objeto evangelizado em sujeito evangelizador, e cria um método próprio índio de
leitura e interpretação da Bíblia. Os teólogos índios distinguem entre uma teologia índia-índia e uma teologia
índia-cristã. A primeira é a que fazem os povos índios para resgatar seu próprio
pensamento teológico, cuja existência remonta às origens destes povos, pelo menos
3. Teologia índia: quadro teórico para uma hermenêutica bíblica há dez mil anos atrás, a segunda é a que fazem os teólogos índios dentro da Igreja
índia e em diálogo com o cristianismo. Há uma identidade e continuidade essencial entre
as duas, mas para a finalidade deste artigo nos interessa sobretudo a teologia
A presença e revelação de Deus na cultura e religião indígenas é a raiz de índia-cristã, que se desenvolve desde a conquista até nossos dias.
uma Teologia índia que é tão antiga como os próprios povos indígenas.5 Comecemos E. López, teólogo índio, define a Teologia índia como um “dar razão de nossa
dizendo muito claramente que o sujeito desta Teologia índia é a própria comunidade esperança milenar”. Mais precisamente: “é o discurso reflexivo que acompanha^
indígena: explica e guia o caminhar de nossos povos índios através de toda a sua história”.
O sujeito da Teologia índia é a comunidade indígena, enraizada na terra de Depois enumera as características desta teologia; é uma teologia concreta, pois é a
onde surgem e crescem seus ritos e mitos. companheira inseparável do projeto de vida dos indígenas. É uma teologia integral,
Esta comunidade vive a experiência de Deus Pai-Mãe em seu caminhar, reflete pois reflete globalmente sobre a vida do povo, onde Deus está radicalmente compro­
sobre ela com seus sábios e sábias - intérpretes legítimos de suas crenças - e a metido. É uma teologia com uma linguagem marcadamente religiosa, que é feita
expressa e celebra em sua vida cotidiana e em seus ritos. sobretudo com símbolos, mitos e ritos, que expressam de forma radical e total o
A orientação desta experiência teológica compete aos membros da própria sentido que se dá à vida. Por último, é uma teologia que tem como sujeito o próprio
comunidade e àquelas pessoas que, inseridas nela, sintonizam com seus proje­ povo, que elabora seu pensamento de forma coletiva.
tos. O nome “índio” não é o nome dos povos aborígenes. Estes se chamam náhuas,
zapotecas, maias, bribis, etc. São índios desde 1492, pois foram os conquistadores
A criação de uma Hermenêutica bíblica índia, que nos permita ler e inter­ que os fizeram índios ao submetê-los e oprimi-los. A Teologia índia assume cons­
pretar a Bíblia a partir da cultura e religião índias, deve ter esta Teologia índia como cientemente esse adjetivo de “índio”, não como um nome, mas como indicação da
quadro teórico de referência. A Teologia índia nos deve dar a teoria, o método, o condição de oprimido:
objetivo e as formas de expressão desta Hermenêutica índia. A hermenêutica índia
A condição de índios, embora ofensiva, nos faz estar perto dos outros pobres da
não é senão um capítulo da Teologia índia. Vejamos agora alguns traços gerais da
América e do mundo. Nós não escolhemos ser índios, como também os outros
teologia índia, especialmente os elementos específicos para construir uma hermenêu­
tica índia. Aqui tratarei unicamente de refletir sobre os textos dos teólogos índios e explorados não escolheram sê-lo. Foi a maldade de alguns homens que nos fez
a partir dali fazer, como exegeta não-índio, algumas reflexões hermenêuticas. Estou índios, efez os negros escravos, e todos os pobres explorados. Por isso, enquanto
muito consciente do que diz o texto citado acima sobre a comunidade indígena como índios, temos de lutar por nossa libertação e a de todos os pobres da terra. Neste
sujeito da Teologia índia. O mesmo texto citado, contudo, me permite entrar no final sentido a Teologia índia faz parte da teologia latino-americana, que é teologia
do processo no ordenamento da experiência teológica indígena, na medida em que de libertação. Mais ainda, a teologia latino-americana atual é a continuação
me sinto realmente inserido na comunidade indígena e em sintonia profunda e da teologia da resistência iniciada há 500 anos por nossos antepassados,9
solidária com todos os seus projetos.
Vejamos agora as diferentes atitudes e respostas diante da conquista e
colonização, tanto por parte dos indígenas como por parte da Igreja, e especialmente
5. Literatura recente sobre a Teologia índia: aquela resposta que tomou possível o surgimento de uma teologia índia-cristã.
Teologia índia. Primer Encuentro taller latinoamericano. México. México (CENAMI), Equador
(ABYA YALA), 1991, 329 p. Por parte dos indígenas foram dadas as seguintes respostas à conquista:
El Dios de nuestros padres. Christus, n. 7 (set. 1991). Número da revista dedicado ao tema da 1) luta frontal, sobretudo militar, contra os exércitos invasores;
Teologia índia.
Eleazar López H. La Teologia en eí Istmo de Tehuantepec. Mimeo. Julho 1991. 2) resistência passiva: agüentar em silêncio para não morrer (o que não significou
Eleazar López H. 500 anos de resistência y de lucha de los pueblos de América contra la opresión. claudicar, mas sim mergulhar na clandestinidade);
Mimeografado, 1991.
3) Aliança com o dominador, para resolver conflitos interétnicos entre povos índios
M. Marzal, Robles, Maurer, Albó e Meliá. Rostros indios de Dios. Los ameríndios cristianos.
Equador, Abya-Yala, 1991, 322 p. dominadores e outros dominados;
Clodomiro L. Siller, Religión indígena en Mesoamérica. Esquila Misional (out. 1991).
Elsa Tamez. Quetzalcóatl y el Dios cristiano: alianza y lucha de Dioses. Pasos, n. 35 (maio-iunho 7. Sobre a Teologia índia antes da Conquista ver os dois artigos citados de E. López.
1991). 8. E. López, Teologia índia hoy. Christus, n. 7, p. 22.
Diego Irarrázaval. Teologia aymara. Implicâncias para otras teologías. Mimeografado, 1991. 9. IbicL, p. 24.
6. Conclusiones y consensos. Teologia índia. Primeira obra citada na nota 5, p. 315. Destaque no 10. Pata o que segue ver o artigo já citado de E. López: 500 anos de resistência.
texto original.

12 13
4) suicídio coletivo; e b) Nican Mopohua: exemplo privilegiado de teologia índia11
5) reformulação da cultura e religião índia no contexto do sistema colonial O
método empregado nesse tipo de resposta foi o diálogo, para conseguir uma O evento guadalupano é do ano 1531. A aparição e a mensagem da Virgem
síntese vital, onde a tradição cultural e religiosa indígena pudesse continuar Maria no monte do Tepeyac é uma história indígena, que faz uma crítica à conquista
sendo ela mesma, sem trair sua identidade, assumindo os valores culturais e espiritual e que propõe ao mesmo tempo um projeto indígena de evangelização. A
religiosos do cristianismo dominante. Não só se oculta o próprio com uma história é uma tradição que primeiro era contada, dançada, transmitida de boca em
coberta ocidental e cristã, mas também se arrebata do conquistador suas armas boca, de povoado em povoado. Teve vida autônoma antes de ser escrita e antes de
ideológicas e suas armas culturais e religiosas para demonstrar que são os ser aceita pela Igreja. A passagem da tradição oral para a tradição escrita está muito
índios, com suas tradições próprias, os que vivem e pensam os valores do ligada à fundação do Colégio da Santa Cruz de Tlatelolco em 1536. Neste colégio se
evangelho com mais coerência do que os próprios cristãos europeus. Com esta formará toda uma geração de teólogos índios da mais alta qualidade intelectual. De
metodologia os índios se apropriarão da própria Bíblia, para lê-la e interpretá-la 1546 a 1566 o Colégio foi dirigido por reitores índios. O texto original do relato
a partir de sua própria experiência de Deus e de suas tradições religiosas. guadalupano está escrito em náhuatl clássico, numa linguagem simbólica. O escrito
se chama Nican Mopohua, que são as duas primeiras palavras (“em ordem e harmo­
Por parte da Igreja européia se constatam as seguintes propostas:
nia”) com as quais começa o livro. A criação deste relato escrito e sua transmissão é
1) identificação total da Igreja com a conquista e a dominação colonial (foi a certamente uma obra coletiva, mas C. Siller propõe como tese bastante aceita que o
atitude majoritária); autor seria Dom Antônio Valeriano, índio, aluno e depois professor do Colégio da
2) colaboração da Igreja com o sistema colonial, para obrigar este a se pôr ao Santa Cruz de Tlatelolco, que foi tradutor e informante de Sahagún. O Nican Mopohua
serviço da evangelização (a evangelização é concebida como a razão de ser da é uma obra de síntese da cultura e religião índia com o evangelho cristão, realizada
conquista, por isso a Igreja luta para que a conquista seja feita segundo os por intelectuais índios cristãos, que contém um projeto de evangelização dos índios
valores do evangelho); esta atitude termina legitimando a conquista e continua para os mesmos índios. No Nican Mopohua o índio chega a ser evangelizador e teólogo
considerando os índios como pagãos e idólatras; na sociedade colonial e na Igreja.
3) marginalização da Igreja em relação à estrutura colonial Ca Igreja atua à O evento guadalupano é uma experiência nova. O que é narrado aí não fazia
margem do sistema, aceitando com resignação suas brutalidades como parte da pregação cristã. Sua mensagem nasce da experiência religiosa do povo
inevitáveis); esta atitude levou à construção de obras de caridade para os índios indígena que, conservando sua tradição cultural e religiosa, aceita a fé cristã. O texto
e a formação de reduções indígenas; se dirige fundamentalmente aos índios, mas também de uma forma crítica aos
4) denúncia profética do sistema colonial como contrário à evangelização (linha pregadores cristãos. Todo o discurso guadalupano se realiza dentro da lógica e do
lascasiana que foi muito significativa, mas que não teve grandes êxitos e foi pensamento índio. C. Siller diz: “O que se diz no Nican Mopohua não é simplesmente
silenciada bem cedo); e, finalmente, uma tradução do anúncio evangélico para o idioma e para a idiossincrasia do
indígena. Também não é a versão índia do que os evangelizadores estavam fazendo.
5) inculturação do evangelho no mundo indígena ou apropriação indígena do Este discurso é a compreensão índia de sua própria tradição religiosa vivida nas novas
evangelho (através da formação de intelectuais indígenas, que tomaram circunstâncias de colonização e evangelização. O Nican Mopohua é definitivamente
possível o re-encontro do povo com seu passado e a re-formulação do Evangelho a compreensão índia da evangelização” .12 O texto está em náhuatl, o idioma dos
a partir das tradições índias).
astecas e a língua dominante em toda a Meso-américa. Mais importante, porém, é
A proposta indígena do diálogo (cf. n. 5 acima) e a proposta eclesial da que a estrutura do texto, seu ambiente mítico e sua linguagem simbólica é náhuatl.
inculturação e apropriação (também n. 5 acima) se complementaram e tomaram A fé cristã será vivida e pensada em náhuatl. “Mais ainda - diz C. Siller -, nosso texto
possível o surgimento de uma teologia índia-cristã. O fundamental nesta proposta, traz e faz contemporânea uma teologia que era a mesma que usavam os teólogos
tanto indígena como eclesial, era a transformação do índio em evangelizador. O índio mexicas e, em geral, a maioria daqueles que, durante milênios, tinham espreitado o
evangeliza o índio. Pouco a pouco o índio deixa de ser objeto de evangelização para fundo de seus corações e de sua história para descobrir a presença e a ação de Deus.
se transformar em sujeito de evangelização. O melhor e mais antigo exemplo desta Por isso a maneira de falar das coisas, das pessoas, da transcendência, do que nos
proposta é o relato conhecido como Nican Mopohua, relato indígena das aparições de ultrapassa, é a mesma que encontramos na maioria dos textos religioso^que chegaram
Nossa Senhora de Guadalupe, que analisaremos a seguir. Mas há muitas outras a nossos dias procedentes da cultura e das religiões pré-hispânicas” .
expressões desta proposta: relatos indígenas da conquista, criação de mitos, símbolos
e ritos com existência própria e muitos outros disseminados na tradição cristã
latino-americana, criação de uma religiosidade popular de raiz indígena e todo o
desenvolvimento da teologia índia até o dia de hoje. 11. Para o que segue ver Clodomiro L. Siller (ed.). Flor y Canto dei Tepeyac. Historia de las
Apariciones de Santa Maria de Guadalupe. Versión al castellano de Don Primo Feliciano Velázquez.
Introducción y comentário sobre el texto náhuatl de Clodomiro L. Siller. México, CENAMI e Servir, 1981,
110 p. Clodomiro L. Siller. El método teológico guadalupano. Christus, n. 7 (set. 1991): 37-41.
12. C. Siller. El método teológico, p. 38.
13. Ibid., p. 39.

14 15
O sujeito da teologia índia é o próprio índio, é o empobrecido, é o oprimido, 4. Ponto de partida e prim eiros passos de um a Hermenêutica Bíblica
o que foi psicologicamente destruído. Este sujeito, já evangelizado e crente, não tem índia
credibilidade dentro do sistema colonial cristão e por isso fracassa inicialmente em
sua missão dentro da Igreja. Todo o relato guadalupano é a reconstituição, feita pelo O Vaticano II nos diz que “a Escritura deve ser lida e interpretada com o
próprio índio, deste sujeito oprimido, humilhado e fracassado e de sua transformação mesmo Espírito com que foi escrita” (Dei Verbum, 12). O problema é que a Bíblia
em sujeito livre, digno e criador. Este é o sujeito criador de uma nova evangelização cristã durante 20 séculos foi fundamentalmente lida e interpretada com outro espírito,
e de uma nova teologia, criador também de um novo modelo de Igreja, coerente ao com um espírito alheio: com o espírito da filosofia abstrata helenística, com o espírito
mesmo tempo com a tradição índia e com a tradição cristã.14 imperial de Constantino, com o espírito europeu da conquista e da colonização, com
O Nican Mopohua permitiu que os povos indígenas da América Central o espírito ocidental patriarcal e ilustrado, com o espírito individualista do liberalismo
iniciassem a reconstrução de sua cultura, de sua religião e de sua fé, depois da moderno. É preciso resgatar a Bíblia deste cativeiro para poder outra vez lê-la e
destruição total provocada pela conquista e “evangelização”. O Nican Mopohua é a interpretá-la com o Espírito com a qual foi escrita. Para isto necessitamos um ponto
reconstrução da consciência índia, quando o mundo econômico, político, cultural e de referência NÃO-ocidental (não-helenista, não-imperial, não-colonial, não-ilustrado,
religioso indígena estava quase completamente destruído. A partir desta reconstrução não-patriarcal, não-liberal, não-modemo). Devemos resgatar a Bíblia a partir do
da consciência índia no Nican Mopohua os povos índios irão reconquistando suas reverso desta história ocidental de dominação. Nossa opinião é que os povos indígenas,
terras, sua cultura, sua identidade e sua religião, dentro da qual irão integrando o com sua cultura e religião, nos podem dar este ponto de referência não-ocidental ou
Evangelho e a fé cristã. Com o Nican Mopohua inicia-se a evangelização do índio para esse reverso da história a partir do qual possamos ler e interpretar a Bíblia com olhos
o índio, a criação de uma Teologia índia e a possibilidade de uma Hermenêutica novos e limpos, e re-encontrar o Espírito com que foi escrita.
bíblica índia. O teólogo índio Eleazar López nos diz: “Os anseios mais profundos de nossa
Gostaria de terminar esta seção citando um texto de teologia índia atual e do gente são também de Cristo. As diferenças são superficiais, de forma; não de conteúdo.
mundo indígena do sul andino. É uma síntese profunda e poética de tudo o que Mais ainda, muitos destes conteúdos estão melhor conservados em nossos povos, pela
tentamos dizer até agora. O texto diz assim: pureza de coração dos pobres, do que em muitos recipientes contaminados da
Igreja”.16 Os povos indígenas, com sua história milenar, com sua tradição cultural e
Entre nós foi semeada
religiosa, e recentemente com seu próprio método índio de evangelização e com sua
- j á são quinhentos anos -
Teologia índia, estão muito melhor capacitados a ler e interpretar a Bíblia do que o
a ambição junto com a doutrina, ocidente europeu cristão, com sua história milenar de violência e de conquista,
a destruição junto com o batismo. impregnada do espírito ilustrado, liberal e moderno. Pessoalmente cheguei a esta
E nós soubemos resistir sem impaciência, mesma conclusão depois de trabalhar já há seis anos em experiências bíblicas com
suportando as guerras, as mentiras, os índios Kunas, de Kuna-Yala (Panamá), aplicando rigorosamente os princípios
as geadas, os despojos, as chuvas e secas, hermenêuticos teóricos enunciados neste artigo. Os indígenas foram se apropriando
as mil pragas de insetos e inimigos. da Bíblia, inculturando-a em sua própria tradição cultural e religiosa. Com a Bíblia
Semeamos vida em nossa terra, na mão, em sua mente e em seu coração, também fizeram um discernimento crítico
escolhendo e cuidando dos grãos de evangelho da Revelação de Deus em sua própria tradição religiosa. Como dizíamos mais acima,
no meio dos torrões duros do saque os indígenas leram e interpretaram a Bíblia (segundo livro de Deus) para discernir
e do desprezo que sofremos. na tradição religiosa indígena (primeiro ‘livro” de Deus) a grande epifania da
Fizemos germinar nossas idéias Revelação de Deus.
para saber sobreviver em meio a tanta fome, Há um princípio teológico na Teologia índia que é fundamental para a criação
para defender-nos de tanto escândalo e ataque, desta Hermenêutica índia. O teólogo Kuna Aiban Wagua o expressa assim: “Paba é
para organizar-nos no meio de tanta confusão, muito grande, é imenso; Nana é muito grande, é imensa. Não se deixa prender por
para alegrar-nos apesar de tantíssimas tristezas um só povo, um só povo não pode conhecer todos os seus caminhos, não pode
e sonhar para além de tanto desespero. entender tudo. Por isso Paba criou muitos povos sobre a terra. Paba não criou um só
Não sonhamos com abundâncias para acumular: povo, Nana não criou um só povo sobre esta terra. Por isso mesmo, quando um povo
nossa única abundância será a vida do Reino de Deus. diz ‘o que eu sei de Paba é melhor e mais exato’, esse povo não conhece Paba; está
Sonhamos com o suficiente para repartir, longe de entender sua mensagem; está acreditando que Paba é pouca coisa, que Nana
porque somos irmãos graças ao amor de Deus.15
14. Tudo o que dissemos sobre o Nican Mopohua prova-o de uma maneira brilhante e convincente
16. Eleazar López. Teologia india hoy. Christus, n. 7, já citado, p. 25.
Clodomiro Siller em seu comentário lingüístico e teológico do texto publicado com o título Flory canto dei
Tepeyac (já citado). 17. Os Kunas sempre designam a Deus como Paba e Nana, que analogicamente poderíamos
traduzir como Deus Pai e Mãe.
15. Tomado da Proclama final dei Congreso Teológico-Eucarístico y Mariano en el sur andino.
Publicado em Pastoral Andina, n. 63, outubro de 1987.

16 17
é pouca coisa. Os Kunas dizemos que Paba está no alto, que Nana está no alto”.
18 profetas. Também dentro das tradições indígenas ocorrem contradições sociais e
espirituais que precisam de um discernimento crítico e profético. Existem longas
Eleazar López diz algo semelhante. Depois de constatar a diversidade de povos e
histórias sobre profetas índios e lideres espirituais famosos. Toda a literatura sapien-
teologias índias pré-hispânicas, acrescenta: “nenhum povo se considerava dono
cial bíblica também está em sintonia direta com a tradição sapiencial índia. A função
absoluto de Deus, mas só participante na visão de uma realidade transcendente que
dos sábios é semelhante em ambas as tradições. Mas o que mais apaixona a tradição
era igualmente partilhada por outros povos. Por isso com admirável facilidade podiam
religiosa índia é a literatura apocalíptica, por sua interpretação da história através de
entrar em contato com a fé de outros povos e somar suas crenças e símbolos religiosos símbolos e mitos.
aos de seus vizinhos” .19 Este princípio índio permite um contato direto dos povos
indígenas de hoje com os povos e culturas históricas que estão por trás dos textos da Não concordo quando se diz que a tradição indígena é como o Antigo
Bíblia. Estabelece-se um diálogo dos indígenas com a Bíblia que é no fundo um diálogo Testamento para a compreensão do Novo Testamento. Em primeiro lugar o Antigo
interétnico e inter-religioso, como ponto de partida para ler e interpretar juntos toda Testamento não é “antigo” no sentido de arcaico ou passado, que deve ser superado
a Bíblia. por outro “novo”. O AT não é superado nunca e nunca pode ser abandonado para
entender o NT. É melhor falar da Bíblia Hebraica ou das tradições do povo de Israel.
Podemos descobrir a estrutura profunda da História da Salvação tanto nas
A tradição religiosa indígena também não pode ser considerada como “antiga”, como
tradições religiosas indígenas como na Bíblia. É surpreendente o estudo das coinci­
algo que deve ser superado pelo NT cristão. Exatamente pelo contrário, a tradição
dências, das convergências, da sintonia e do espírito comum que anima ambas as
cultural e religiosa indígena deve ser a matriz de leitura e compreensão do Antigo e
tradições. Não podemos esgotar aqui o tema, mas podemos traçar algumas linhas
do Novo Testamento. O diálogo da Bíblia com a religião indígena vai do Gênesis ao
para orientar um trabalho futuro.2 Em primeiro lugar temos o tema do Êxodo, que
Apocalipse. Não podemos relegar a tradição indígena unicamente ao AT, embora aí
é o eixo para entender toda a Bíblia e a chave para interpretar a situação do povo
indígena, especialmente em sua oposição durante 500 anos ao sistema colonial de se encontre mais à vontade, suijam menos contradições e aí seja mais fácil encontrar
um ponto de partida comum. O diálogo religião índia-Bíblia deve chegar ao próprio
dominação. A luta do Povo de Deus com o Faraó e depois sua oposição constante à
coração do Novo Testamento.
Monarquia é fundamentalmente o mesmo ambiente histórico da vivência religiosa
dos povos índios nestes 500 anos. Os indígenas reconhecem em Javé o seu próprio No Novo Testamento o ponto de partida da leitura índia cristã é sempre o
Deus, como o Deus das tribos, como o Deus dos antepassados, que escuta o clamor Jesus da História, o Jesusjudeu, o Jesus “antes do Cristianismo”.21 Impressiona muito
do Povo e decide libertá-los. Deus é reconhecido definitivamente como o Deus da na Teologia índia o mistério da Encarnação: “O Verbo se fez índio e habitou entre
Vida, como o Deus do Povo de Deus, e não como o Deus da lei ou das estruturas, nem nós e nós vimos sua glória” . A compreensão índia dos atos e ditos de Jesus, e
sequer das estruturas religiosas. Os povos índios reconhecem no esforço bíblico do sobretudo de seu projeto do Reino de Deus, é direta e quase co-natural à tradição
povo de Deus, por manter suas tradições, sua identidade e sua consciência histórica índia. Em todos os povos indígenas existe alguma tradição análoga à de Jesus profeta
contra as instituições da cidade e da monarquia, seu próprio esforço em manter suas e mestre, como Quetzalcóatl em toda a América Central ou Ibeorgun entre os Kunas.
tradições indígenas contra as estruturas da dominação colonial. O povo de Deus na A compreensão da cruz de Jesus é feita a partir dos índios que são os crucificados da
Bíblia mantém sua identidade e fidelidade a Javé, recordando as histórias de seus história. A história da missão cristã, como história fundada na Ressurreição do
antepassados (Gênesis 12-50) e os mitos primigênios da criação (Gn 1-11). De Messias e na experiência do Espírito, é apropriada a partir da experiência profunda­
maneira muito semelhante procedem os povos índios, que continuamente estão mente religiosa e espiritual de todos os povos indígenas. A experiência religiosa
lembrando as histórias de seus antepassados e os mitos fundantes para afiançar sua indígena é uma experiência Espiritual, uma ‘Vida segundo o Espírito”. Finalmente, o
identidade e consciência histórica frente aos mitos das instituições opressoras. Apocalipse apaixona, como já dissemos, por sua visão da história e pelo uso de
Tanto na tradição bíblica como na tradição religiosa indígena é fundamental símbolos e mitos, o que permite uma reconstrução da consciência dos oprimidos em
tempos de crise, opressão e perseguição.23
a luta pela terra. A terra é um ponto de encontro das duas tradições. Também o caráter
histórico e narrativo da Teologia é comum à Bíblia e às tradições indígenas. Nas duas Os indígenas têm muito interesse em conhecer o Novo Testamento para
temos fundamentalmente Teologia narrativa. Em ambas também a tradição ou o texto entender como nasceu o cristianismo e poder julgá-lo criticamente em sua evolução
é a “memória histórica dos pobres” . Os métodos de tradição oral e escrita são também posterior. Interessa saber como era o movimento de Jesus antes do cristianismo; como
muito semelhantes na Bíblia e nas tradições indígenas. As histórias e os oráculos dos era a missão apostólica e a força do Espírito antes da organização institucional da
profetas, sua função na história de Israel, especialmente sua mensagem social, tudo Igreja; e como finalmente se organizaram as igrejas que os apóstolos nos deixaram
é libertador e iluminador para entender a função profética dentro mesmo de uma antes da constituição da cristandade ocidental e colonial. Esta lembrança das origens
tradição religiosa. Chama sempre a atenção a distinção entre verdadeiros e falsos
21. Como diz o título do livro de Albert Noland: Quién es este hombre? Jesús antes dei Cristianismo.
Santander, Sal Terrae, 1981.
18. Aiban Wagua. Las Teologias índias ante la globalidad de la teologia cristiana. Christus, n. 7, 22. Um indígena kuna parafraseava assim a Joâo 1,14.
p. 34. 23.0 já citado texto náhuad chamado Nican Mopohua é um texto em grande parte apocalíptico,
19. Eleazar López. Teologia índia hoy, p. 25. que desempenha na história índia a mesma função do Apocalipse: reconstruir a consciência de um povo
20. O que segue é um resumo quase simbólico de muitos anos de estudos bíblicos com os índios oprimido, através de símbolos e mitos, em tempos de caos e crise.
Kunas do Panamá aos quais me referi mais acima.

18 19
tem muita força na tradição indígena para a recuperação de sua própria identidade,
mas também a recuperação das origens do cristianismo tem muita força para
reconstruir de forma crítica uma identidade índia-cristã autentica.
Jorge Luis Rodríguez ______________________________
O diálogo da tradição cultural e religiosa índia com a Bíblia é feito respeitando
profundamente as distâncias e as diferenças. Não tem nada de concordismo ou de
fúndamentalismo. É um diálogo onde o povo índio se apropria da Bíblia, onde a Bíblia
é entendida a partir da tradição índia e dentro de suas categorias, e onde a Bíblia é
lida para entender e discernir melhor as próprias tradições índias. Esta leitura da
Bíblia é uma prática constante hoje em muitos lugares da América Latina. Apresen­
tamos aqui alguns traços desta prática simplesmente para fazer sentir sua realidade. A Bíblia, a Reforma e os índios
Será preciso esperar ainda muitos anos mais para que esta prática produza todos os
seus frutos. Por enquanto escutamos cada vez mais nitidamente o testemunho dos
indígenas que dizem: “A partir de nossas tradições indígenas entendemos melhor a
Bíblia; a partir de uma leitura e interpretação índia da Bíblia entendemos melhor nossas
próprias tradições indígenas”. Enquanto escutarmos este testemunho, é sinal de que
estamos c a m in h a n d o bem e que na prática estamos construindo uma Hermenêutica
índia. É um diálogo com respeito mútuo, de mútua apropriação e inculturação, onde
ninguém destrói ninguém e todos se enriquecem na busca da Palavra de Deus. O
processo de apropriação da Bíblia por parte dos indígenas está superando o trauma
RESUMO: A conquista da América e a Reforma Jbram eventos contemporâneos. Dois
indígena com a Bíblia que comentávamos no começo deste artigo. Os indígenas já
intelectuais sobressaíram: Mortinho Lutero e Bartolomé de Las Casas. O primeiro repre­
não falam em devolver a Bíblia ao Papa, mas exatamente o contrário: apropriar-se da sentou o pensamento reformado, o segundo o dos conquistadores sensíveis ao sofrimento
Bíblia para trabalhar com ela na evangelização libertadora dos indígenas, mas dos índios. O que chegou primeiramente à América foi o pensamento católico escolástico:
também na evangelização dos cristãos ainda colonizados e na evangelização da Igreja As ações tinham que estar de acordo com a lei natural e com a ortodoxia cristã. Nas
conquistas, levadas a efeito pelos descendentes das Reformas, prevaleceu o pensamento
ainda demasiadamente cativa de todas as idolatrias e perversões coloniais. O encontro
burguês moderno: A razão econômica foi suficiente. A Bíblia ocupou um lugar central na
da Teologia índia com a Bíblia e o surgimento de uma Hermenêutica índia libertadora reflexão tanto dos teóricos católicos quanto dos protestantes. No caso de Las Casas, o
é certamente um sinal de esperança, finalmente, depois de 500 anos. pensamento bíblico fez frente aos argumentos aristotélicos dominantes, até mesmo para
utilizá-los ou cristianizá-los. Lutero inaugurou nova abordagem bíblica, crítica à tradição
aristotélica.
Pablo Richard
Apartado 389
Sabanilla 1. Conquista e Reforma: Eventos Contem porâneos
2070 San José
Costa Rica Em 1492 Colombo avistou a América. Este fato, que teria conseqüências
importantíssimas para a história da humanidade, é contemporâneo com o começo de
um outro: a Reforma Protestante. Assim, por exemplo, quando Colombo desem­
barcava no “Novo Mundo” Martinho Lutero já estava com quase 10 anos de idade.
Enquanto Bartolomé de Las Casas apresentava ante a Corte espanhola seus memoriais
de “denúncias e remédios”, nos quais delatava com veemência os crimes cometidos
pelos conquistadores, Martinho Lutero se encontrava divulgando suas 95 teses
(1517), separados por uma distância geográfica menor que a que separa São Paulo
de Salvador na Bahia. Ambos tinham críticas radicais contra a prática da Igreja
Católica e ambos queriam reformas profundas. E a interpretação de Martinho Lutero
de Rm 1,17 aconteceu no mesmo ano em que Bartolomé de Las Casas interpretava
Ecl 34,18-22 (1512). A Dieta de Wórmia (1521) - excomunhão de Martinho Lutero
- aconteceu quase simultaneamente com a “segunda conversão” de Bartolomé de Las
Casas - assumiu o hábito de monge dominicano (1522). Por esses mesmos anos o
terrível conquistador Hemán Cortés se encontrava submetendo o Império dos Astecas
(1519-1521). Bartolomé de Las Casas era mais velho que Martinho Lutero somente
9 anos. Quando morreu Martinho Lutero em 1546, Bartolomé de Las Casas estava
dando início a sua maior luta teórica: a Controvérsia de Valladolid. Seu oponente era

20 21

Você também pode gostar