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ISBN 978-65-980511-5-0

9 786598 051150

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ISBN 978-65-980511-5-0

9 786598 051150

Licensed to marcelo ferreira quirino - quirinopsi


Tiago Ferreira

São Paulo-SP - 2023

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© 2023 Tiago Ferreira

1ª edição – Setembro de 2023

A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio,


somente será permitida com a autorização por escrito da editora.
(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)

Impresso no Brasil

Capa
Edy Lawson
Projeto gráfico de miolo
AugeBooks
Chico Montenegro
Joyce Ferreira
Revisão:
Talima Haidosliat

Apoio
Jeferson Bruno

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ferreira, Tiago
Construindo flexibilidade psicológica : o método
das narrativas funcionais / Tiago Ferreira. --
São Paulo : NDD Media, 2023.

ISBN 978-65-980511-5-0

1. Psicologia 2. Psicologia comportamental


3. Terapia alternativa I. Título.

23-166906 CDD-150
Índices para catálogo sistemático:

1. Psicologia 150

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 3

SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................. 5

CAPÍTULO 1
Abertura e Significado......................................................................... 15

1.1. Aceitação.................................................................................... 18

1.2. Desfusão cognitiva.................................................................. 26

CAPÍTULO 2
Presença Intencional........................................................................... 37

2.1. Self............................................................................................40

2.2. Atenção...................................................................................48

CAPÍTULO 3
Ação Significativa................................................................................ 59

3.1. Valores......................................................................................64

3.2. Ampliando a clareza sobre Valores.......................................68

3.3. Flexibilidade Psicológica: o desafio...................................... 74

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4 TIAGO FERREIRA

CAPÍTULO 4
Narrativas para uma vida significativa:
uma perspectiva da Flexibilidade Psicológica.................................. 83

4.1. Narrativas e organização subjetiva........................................89

4.2. Narrativa e identidade............................................................ 93

4.3. Narrativas e Pertencimento................................................... 95

CAPÍTULO 5
Narrativas Funcionais: um método para
mobilização de Flexibilidade Psicológica..........................................99

5.1. Identificando os personagens...............................................107

5.2. Construindo um enredo para os personagens....................110

5.3. (Re)encontrando os personagens hoje............................... 117

5.4. Contextos para utilização das Narrativas Funcionais......... 126

5.5. Humanidade compartilhada e


histórias compartilhadas..............................................................130

5.6. Alguns riscos para a utilização


das Narrativas Funcionais............................................................. 137

Concluindo um livro para iniciar um diálogo…................................... 141

Bibliografia..........................................................................................145

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INTRODUÇÃO

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6 TIAGO FERREIRA

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 7

E
ste livro não faria sentido há 50 anos. Embora o
sofrimento e a busca por sentido seja uma mar-
ca inexorável da experiência humana, é relativa-
mente recente o modo como nos relacionamos com o
sofrimento e como empreendemos esforços para tor-
nar a vida significativa. As clínicas psicológicas estão
repletas de pessoas que lutam contra a sua própria
dor e se enredam, de tal forma, nesta luta que perdem
qualquer perspectiva sobre como construir uma vida
com significado. Em um certo sentido, desaprende-
mos a sofrer e, com isto, desaprendemos a dar um
sentido para nossa trajetória de vida.

Quando um terapeuta recebe um paciente imerso


na luta para cessar a sua ansiedade, depressão, memó-
rias difíceis, bem como quaisquer dores emocionais,
é necessário um exercício de hesitação para perguntar
ao paciente: “Se algo acontecesse hoje e todo este sofri-
mento fosse embora (neste caso você não precisaria mais
lutar), qual seria a direção diferente que você daria para
sua própria vida?”.

A resposta honesta que ouvi, repetidamente, ao


longo dos anos, de diversos pacientes, foi: “Eu não
sei”. A luta contra a própria subjetividade ocupou um
espaço tão central para estes pacientes que tornou ne-
bulosa qualquer perspectiva de engajamento com a

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8 TIAGO FERREIRA

vida de uma forma mais ampla. Paradoxalmente, a


luta pelo bem-estar e felicidade tornaram-se fontes de
uma vida restrita e destituída de sentido.

A geração dos meus pais e avós lidava com o sofri-


mento e o sentido de uma forma sutilmente diferen-
te. É óbvio que eles não gostavam de sofrer. No en-
tanto, sofrimento e sentido não estavam dissociados e
antagonizados, mas, pelo contrário, existia uma con-
cepção clara de que jornadas significativas atribuíam
valor para a integralidade da subjetividade humana,
incluindo o sofrimento. Para esta geração passada, a
forma de acomodar e dar sentido ao sofrimento sem-
pre ocorreu a partir de narrativas. Incontáveis vezes
eu estive na calçada que ficava em frente à minha
casa, ouvindo as histórias dos mais velhos. Inevitavel-
mente, as histórias envolviam jornadas de privação e
dificuldades que os levaram a construir o significado
de suas próprias famílias.

Eram narrativas sobre comunidades (mais do que


sobre indivíduos), dores, realizações, arrependimen-
tos, convicções, honra, dentre tantos outros temas
que se tornaram anátema em narrativas contempo-
râneas. As novas narrativas que se desenvolveram em
minha geração, e se fortalecem, a cada dia, na geração
dos meus filhos, não comportam as marcas ou cica-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 9

trizes, mas apenas o sucesso decorrente da autorrea-


lização e do bem-estar perenes. Como consequência
destas novas práticas culturais, encontramos diver-
sos sujeitos que não conseguem lidar com a própria
subjetividade. Nós e os nossos pacientes sofremos de
uma forma inédita que foi muito bem descrita pela
jornalista Eliane Brum:

E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi en-


sinada a acreditar que nasceu com o patrimônio
da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir
da dor.1

Ao longo dos últimos quarenta anos, a Terapia


de Aceitação e Compromisso (ACT) tem estudado,
pesquisado e construído intervenções para ajudar
pessoas a (re)aprenderem a lidar com o sofrimento
de uma forma que lhes permita viver uma vida sig-
nificativa. Como resultado destas décadas de inves-
tigação, a ACT desenvolveu o modelo de Flexibili-
dade Psicológica que nos orienta a considerar seis
dimensões psicológicas essenciais para a construção
de uma vida significativa. Em cada uma destas seis
dimensões, processos de Inflexibilidade Psicológi-
ca compõem um diagnóstico acurado do desafio

1 Eliane Brum, “Meu Filho, Você Não Merece Nada,” in A Menina Que-
brada (Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013).

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10 TIAGO FERREIRA

que enfrentamos na vida e na clínica, assim como


processos de Flexibilidade Psicológica descrevem o
objetivo último de uma clínica psicoterápica com-
prometida com a promoção de saúde integral para
os nossos pacientes.

A figura 01 é uma representação das seis dimen-


sões psicológicas e dos processos a serem identifica-
dos em cada uma delas. Com uma estética simples,
este modelo tem sido essencial para a vida e trabalho
de milhares de pessoas ao redor do mundo. Não se
trata apenas de algo recomendado por psicólogos,
mas, pelo contrário, o modelo de Flexibilidade Psi-
cológica tem sido um guia seguro para diversas pro-
fissões de saúde, assim como para o grande público.
Não é à toa que a Organização Mundial de Saúde
disponibilizou gratuitamente, para mais de 30 dife-
rentes idiomas, um programa autoaplicável baseado
na ACT para quaisquer pessoas que lidam com o
stress e traumas.2

2 Trata-se do guia “Faça o que importa em tempos de Stress". Disponível


em https://www.who.int/publications/i/item/9789240003927.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 11

No entanto, por mais que o modelo de Flexibili-


dade Psicológica seja um recurso transformador para
quem lida com saúde, as estratégias de intervenção
para mobilizar os seis processos precisam de adapta-
ções para cada contexto em que são desenvolvidos.
Eu senti “na pele” a frustração de reproduzir os pro-
cedimentos descritos nos manuais ACT com meus
pacientes, apenas para notar que os meus pacientes
não respondiam como os pacientes dos livros. Pouco
tempo foi necessário para perceber que o problema

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12 TIAGO FERREIRA

não estava com os livros, mas com a falta de um mé-


todo para mobilização de Flexibilidade Psicológica
que retomasse uma característica praticamente uni-
versal da experiência humana: aprendemos a nos re-
lacionar com nossa própria subjetividade a partir das
narrativas que construímos sobre o mundo, sobre nós
mesmos e sobre os outros.

Durante quase vinte anos tenho construído e sis-


tematizado um método para mobilizar Flexibilidade
Psicológica que seja consistente com o modelo da
ACT, com as evidências acerca do papel da linguagem
na transformação da nossa relação com a subjetivida-
de, e com a prática clínica cotidiana. Este é o método
das Narrativas Funcionais que tem sido transforma-
dor para minha prática clínica e para as milhares de
alunas e alunos que tem participado dos nossos cur-
sos e formações. Este livro apresenta, de forma clara
e direta, como as Narrativas Funcionais podem trazer
clareza e segurança para uma prática clínica baseada
na Terapia de Aceitação e Compromisso.

Para tanto, eu vou primeiro apresentar os três


pilares essenciais da ACT (i.e., Abertura, Presença
e Compromisso) para, em seguida, mostrar como
as Narrativas Funcionais são essenciais para mobili-
zar cada um deles. Na elaboração dos capítulos, eu

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não parti do pressuposto de que o leitor tenha um


conhecimento prévio aprofundado de psicologia.
Sempre que possível, eu tentei aproximar os con-
ceitos técnicos da realidade que todos enfrentamos
no dia a dia. Neste sentido, embora os meus prin-
cipais interlocutores sejam terapeutas, eu creio que
este livro pode ser útil para qualquer pessoa que se
interessa por questões relativas à saúde mental e de-
senvolvimento pessoal. Se, de alguma forma, o que
está aqui escrito neste livro contribuir com uma
nova forma de honrar a sua própria história pessoal
e orientar sua busca por uma vida significativa, ele
já terá cumprido o seu papel.

Tiago Ferreira
26 de julho de 2023
St. Thomas, Canadá

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CAPÍTULO 1

ABERTURA E SIGNIFICADO

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A
bertura para as próprias experiências subjeti-
vas não é passividade, mas uma condição para
exercer atitudes proativas em relação à vida. No
entanto, o termo “aceitação” que compõe o título da
ACT é frequentemente confundido com uma atitude
passiva em relação à vida ou com a mera tolerância
dos sentimentos e pensamentos. Será que a ACT de-
fende que precisamos aceitar, resignadamente, o que
a vida nos oferece? Devemos aceitar os abusos de um
cônjuge violento ou os desmandos de um chefe auto-
centrado? A resposta é, obviamente, negativa. Então,
sobre o que se trata o pilar Abertura na ACT?

O primeiro pilar da Terapia de Aceitação e


Compromisso é direcionado para duas dimensões
psicológicas: afetos e cognições. Isto implica dizer
que Abertura não é para todos os aspectos da vida,
mas para como nos relacionamos com os nossos
sentimentos e pensamentos. A pergunta central é:
a maneira como nos relacionamos com nossos senti-
mentos e pensamentos limita ou potencializa a nos-
sa capacidade de agir proativamente sobre a vida?
Vamos trabalhar esta pergunta a partir de cada uma
das dimensões psicológicas.

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18 TIAGO FERREIRA

1.1. Aceitação

Em outubro de 2021, eu e minha família nos des-


pedimos de nossa casa em Salvador, Bahia, em di-
reção ao Aeroporto de Toronto, Canadá, para uma
jornada cheia de significado e de experiências subje-
tivas difíceis. Eu tinha uma vida bastante confortável
em Salvador. Como professor efetivo da Universidade
Federal da Bahia, eu estava em um emprego público
que me garantiria estabilidade financeira até o final
da vida. Além disso, nossos amigos, familiares, a igre-
ja que fazíamos parte, toda nossa rede social estava
segura e estável. No entanto, nós escolhemos renun-
ciar à estabilidade em função de viver uma jornada
significativa para toda a família.

Durante os meses seguintes, o nosso sustento finan-


ceiro viria do trabalho online (pacientes e cursos) e eu
me dedicaria a um novo mestrado em uma universida-
de canadense. Depois de um período de encantamento
inicial com o país e os novos desafios, ficou claro para
nós que seria uma jornada plena de significados, mas
com um custo emocional bastante acentuado. Se, no
Brasil, eu era um professor universitário conhecido e
respeitado, nesta nova fase voltei a ser um aluno des-
conhecido. Mais do que isso, eu fui privado da minha
maior “arma” para lidar com a vida: a palavra.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 19

O aprendizado da língua e da nova área de estu-


do me fizeram sentir um nível de ansiedade enorme,
com picos que beiravam um ataque de pânico. Falta
de ar, dificuldade de concentração, falta de vonta-
de de fazer as atividades e, para piorar, uma culpa
imensa por me encontrar neste estado se tornaram
o meu “pão de cada dia”. Ninguém gosta de sentir
emoções difíceis, mas a maneira como nos relacio-
namos com elas (as emoções) diz muito sobre como
a nossa vida será construída.

Eu me percebi fugindo diariamente desses senti-


mentos. Cozinhar se tornou um alívio da sensação
de culpa. Afinal, eu não estava estudando, mas pelo
menos estava cuidando da alimentação da minha fa-
mília. Em outros momentos, cochilos durante o dia
ou assistir filmes também me afastavam da ansieda-
de e da culpa — ao menos por um período. Com a
tensão corporal, minhas dores de cabeça aumentaram
e os analgésicos se tornaram quase diários. Eu ainda
fazia os trabalhos obrigatórios do mestrado, mas a um
custo de ansiedade e dores constantes.

Associado à ansiedade e às dores, eu comecei a sen-


tir muita vergonha por estar neste estado. Afinal, a es-
colha de sair do Brasil foi muito criticada por várias
pessoas e eu defendi, arduamente, o valor dessa escolha

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20 TIAGO FERREIRA

durante meses. Para evitar o sentimento de vergonha,


eu não estava compartilhando as minhas dores com
pessoas significativas ao meu redor. Eu não me expu-
nha à vergonha de falar com as pessoas, mas me tor-
nava cada vez mais isolado daqueles a quem amava. O
nome deste processo de evitação persistente das emo-
ções difíceis é Evitação Experiencial. Este é o processo
de Inflexibilidade Psicológica na dimensão dos afetos.

Aceitação, para mim, não foi um passeio no par-


que, mas uma viagem turbulenta guiada pela bússola
dos valores. Penso que a viagem de Amyr Klink ao
atravessar o Oceano Atlântico em um barco a remo
pode ser uma excelente metáfora para descrever este
meu processo de aceitação:

Não pretendia desafiar o Atlântico — a natureza


é infinitamente mais forte do que o homem —,
mas sim conhecer seus segredos, de um lado ao ou-
tro. Para isso era preciso conviver com os caprichos
do mar e deles saber tirar proveito. (…) Um tem-
po em que aprendi a entender as coisas do mar, a
conversar com as grandes ondas e não discutir com
o mau tempo. A transformar o medo em respeito,
o respeito em confiança.3

3 Amyr Klink, Cem Dias Entre Céu e Mar (São Paulo: Editora Schwarcz
LTDA, 1995).

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 21

Quanto mais eu lutava para fugir ou esconder as


minhas emoções, mais elas assumiam o protagonis-
mo da minha vida. Para não me sentir ansioso, não
falava em sala de aula com meu inglês cheio de so-
taque. Consequentemente, eu me envolvia menos
com o mestrado e atrasava ainda mais o aprendi-
zado da língua. Para não vivenciar o sentimento de
vergonha, me isolava das pessoas que amava e não
conseguia viver os relacionamentos que atribuem
significado à vida. Eu precisava transformar o medo
das minhas emoções em respeito, e o respeito em
confiança para viver essa nova fase.

Respeitar as emoções envolve ouvir o que elas têm


a dizer sobre, ao menos, três coisas: a vida, o corpo
e os valores. O que a minha ansiedade falava sobre a
minha vida? Ela me contava sobre o quanto eu esta-
va em um novo país, conhecendo novas pessoas (vale
lembrar que eu sou bastante introvertido), com ativi-
dades que iam, desde tirar uma carteira de motorista
canadense, até aprender grego em inglês (sim, uma
das minhas disciplinas no mestrado foi Introdução ao
grego e o professor, obviamente, dava a aula em in-
glês). Minha ansiedade estava sinalizando o quanto a
vida estava exigindo bastante e eu, sem me dar conta,
estava incluindo diversas outras atividades no pacote.
As nossas emoções não estão distantes da nossa vida!

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22 TIAGO FERREIRA

Por que eu estava brigando com a minha ansie-


dade? Ela estava me contando sobre a necessidade de
rever a rotina e as exigências que eu mesmo me ou-
torguei. Foi difícil, mas necessário, aceitar que “está
tudo bem” não dar conta de todas estas atividades
em um momento como este. Eu só posso dizer que o
meu medo da ansiedade se tornou respeito por aquilo
que ela estava tentando me dizer. Mas ela também me
contou sobre o meu corpo.

Desnecessário dizer que o clima do Canada é


bem diferente do clima brasileiro. Em meio a esta
jornada exaustiva, o clima seco e frio estava pro-
duzindo sangramentos no nariz e lesões na pele.
Com o clima frio, eu estava saindo muito pouco
de casa e me exercitando menos ainda. Ao tentar
“equilibrar todos os pratinhos”, além dos cochilos
em partes do dia, o meu sono estava desregulado
e sem qualidade. Eu precisava cuidar do meu cor-
po, especialmente conseguindo uma rotina de sono
restaurador. Aproveitar a natureza exuberante do
lugar para movimentar e alongar um corpo ten-
sionado pelas atividades, era o óbvio que eu não
conseguia ver, afinal, eu estava muito ocupado bri-
gando contra minha ansiedade para ouvir o que ela
tinha a dizer sobre o meu corpo.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 23

Ainda restava ouvir as minhas emoções (i.e., ansie-


dade, vergonha, etc.) em seus relatos eloquentes sobre
os meus valores. Sobre isso, Steven Hayes escreveu:

É uma das grandes ironias da vida que propósito


e dor tendem a andar juntos. Não podemos ter o
primeiro sem o segundo. (…) Quanto mais nos im-
portamos, mais intensamente sentimos essas perdas.
Uma vez que a vida nos revela essa ironia, quanto
mais nos importamos, mais vulneráveis nos senti-
mos. A única maneira de convidar o propósito em
sua vida é permitindo que a dor também apareça.4

Uma vida com significado, para mim, é uma vida


em que posso fazer diferença na vida de outras pes-
soas a partir do que tenho estudado. Durante toda
minha vida, eu exerci este valor em minha carreira
(professor e terapeuta), em meus relacionamentos de
amizade (e.g., relacionamentos de suporte mútuo) e
em minha família (e.g., com meus filhos). Mas a ver-
gonha e a ansiedade estavam me contando o quanto
eu estava longe de viver plenamente este valor em mi-
nha nova fase de vida. Afinal, eu estava reaprendendo
a viver e precisando da ajuda de amigos canadenses,

4 Hayes, Steven (2022). The subtle art of doing what matters. Disponível
em https://stevenchayes.com/the-subtle-art-of-doing-what-matters/.
(Tradução Livre)

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24 TIAGO FERREIRA

até para saber quais os itens de mercado que eu po-


deria comprar para fazer comida brasileira com ingre-
dientes canadenses.

Em uma certa medida, cursar este mestrado e


estar com minha família nesta nova fase também,
por si só, evocava uma grande intensidade de emo-
ções. Todo terapeuta deve saber que algo difícil de
acessar com os nossos pacientes é a sua abertura
para sentir esperança. Quanto maior a esperança,
maior a vulnerabilidade para intensidade afetiva.
Neste sentido, decisões como mudar de carreira,
aceitar novos desafios, iniciar um novo relaciona-
mento, dentre tantas outras, podem ser significa-
tivas e, exatamente por isso, evocar uma grande
intensidade de emoções. Há pessoas que vivem
apenas um nível basal de emoções, mas, em geral,
também são pessoas que não se permitem viver a
esperança de uma vida plena.

Mas espere um pouco, se eu não estava vivendo este


valor específico, que outros valores eu poderia viver no
momento em que estava? Afinal, o mestrado e as no-
vas experiências estavam me preparando para ser um
professor ainda melhor, para ser ainda mais relevante
em minhas relações. A verdade é que aquela era uma
fase de preparação e não de colocar em prática. Come-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 25

cei, então, a trazer à memória outros valores que, desde


muito tempo, eu não vivia: contemplação da nature-
za, descobrir o novo, ser cuidado, etc. Estes são valores
importantes para mim, mas que estavam esquecidos.
Obrigado, ansiedade e vergonha, por me lembrarem
que um valor monolítico dificilmente sustenta uma
vida com Flexibilidade Psicológica.

Enquanto eu fugia da ansiedade e da vergonha


(i.e., Evitação Experiencial), eu não conseguia ou-
vir o que meus sentimentos e sensações diziam sobre
a minha vida, o meu corpo e os meus valores. Para
mim, se tornou real a máxima que diz: aceitação não
é passividade, mas uma condição para agir proativa-
mente em relação à vida. Se precisarmos, então, defi-
nir aceitação na perspectiva da Terapia de Aceitação e
Compromisso, podemos dizer que:

Aceitação envolve o acolhimento das emoções sem


evitação ou apego desvinculados de valores.

Em resumo: aceitar a presença das emoções difí-


ceis é o único modo de recusar ser governado pelas
emoções difíceis. Ouvimos as emoções e somos infor-
mados por elas, mas construímos a nossa vida guia-
dos pelos valores que amamos.

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26 TIAGO FERREIRA

1.2. Desfusão cognitiva

Se é verdade que “pensamentos não quebram os-


sos”5, também é verdade que a maneira com a qual
nos relacionamos com os nossos pensamentos, pode
nos levar a uma vida significativa ou a uma “morte em
vida”. Os conteúdos da dimensão cognitiva humana
(i.e., pensamentos) são palavras, frases, imagens, ar-
gumentos, etc. Cada um desses conteúdos, a rigor,
não consegue guiar mecanicamente a nossa vida. Ao
contrário, nós somos ensinados a responder aos nos-
sos pensamentos de diversas formas e, algumas delas,
nos afastam de uma vida significativa.

Por exemplo, no período da Pandemia COVID-19


a maioria de nós desenvolveu um estranhamento em
relação aos próprios pensamentos. Toda a pressa, ruí-
do e multidão que nos cercava, de uma hora para ou-
tra, foi transformada em uma rotina completamente
nova. Após horas sozinho em frente a uma tela de
computador, muitos de nós começamos a perceber
conteúdos de pensamentos estranhos (e.g., lembran-
ças de pessoas que estavam fora de nossas vidas há
muito tempo, pensamentos de medo com imagens

5 Burrhus Skinner, Verbal Behavior (New York: Appleton-Century-Crofts,


1957), 2.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 27

assustadoras, etc.). A hora de dormir, para muitos, se


tornou um pesadelo: tornou-se um fardo lidar com os
pensamentos estranhos no silêncio da noite.

Além de conteúdos estranhos, o período da pan-


demia também confrontou muitos de nós com um
fluxo de pensamento alterado. Sem outros estímulos,
precisávamos lidar todo o dia com nossa própria mente
inquieta e repleta de encadeamentos de ideias. A fuga
para as redes sociais e outros distratores tecnológicos se
tornou ainda mais acentuada. Estranhávamos a nossa
própria mente. No entanto, isto já deveria ser esperado
porque um mundo estranho produz pensamentos es-
tranhos. Uma nova realidade produz novas formas de
pensar. Em suma, nossos pensamentos não estão dis-
tantes da nossa vida, mas são construídos nela.

Uma estratégia que é comum tanto para algumas


psicologias quanto para a mídia em geral é a classi-
ficação de pensamentos em racionais ou irracionais,
certos ou errados. Para diversos contextos, verificar
quais pensamentos estão mais próximos ou distantes
da realidade é realmente uma estratégia importante:
pense em um teste de matemática e a utilização de
um modo de pensar X ou Y certamente será uma
decisão importante. No entanto, para a maioria das
atividades humanas complexas, esta é uma forma li-
mitada de lidar com os pensamentos.

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28 TIAGO FERREIRA

Para quem já lida com pessoas há muito tempo, algo


parece claro: as melhores justificativas para não viver são
as verdadeiras, e não as falsas. Quando pressionada por
conflitos no casamento, uma paciente pode levantar di-
versas razões verdadeiras para se separar: o parceiro não
tem sido afetuoso, não tem demonstrado interesse em
dar suporte ao desenvolvimento profissional da esposa,
tem sido desleixado em relação ao cuidado com o pró-
prio corpo. Considere serem todas razões verdadeiras.
Mas, após uma semana particularmente bem-sucedida,
a mesma paciente pode começar a levantar diversas ra-
zões, igualmente verdadeiras, para não se separar: eles já
estão juntos por anos e já passaram muitas dificuldades
juntos, ele sempre foi muito estável em relação à sua ad-
miração por ela, ele é muito afetuoso com os filhos.

Ao fim e ao cabo, a ilusão é de que os pensamen-


tos serão suficientes para saber qual a melhor escolha
em situações complexas. Eles não são. Quanto mais
inteligentes formos, também seremos mais capazes de
levantar boas razões (verdadeiras) para ambos os lados
de um dilema. Quando se trata de situações dilemá-
ticas (e estas são a regra e não a exceção na prática
clínica) a escolha envolve notar os pensamentos, ser
informado por eles, mas assumir as dores e as alegrias
de um caminho na ausência de certeza cognitiva. Para
escolhas, não precisamos de certezas, mas de coragem.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 29

No entanto, boa parte de nós gasta bastante tempo


e energia lutando contra os próprios pensamentos ao
invés de enfrentar a vida. Por exemplo, José Saramago
conta que certo homem, insistiu com o rei de um cer-
to país, para que este lhe desse um barco. Tratava-se
de um barco para poder descobrir uma ilha desco-
nhecida. Quando o rei lhe questionou sobre que ilha
seria essa, o seguinte diálogo ocorreu6:

Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida,


A quem ouviste falar dela, perguntou o rei, agora
mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas
em dizer que ela existe, Simplesmente por que é im-
possível que não exista uma ilha desconhecida7.

Guiado pelos seus pensamentos, o homem que queria


o barco convenceu o rei, e passou toda a história lutan-
do para conseguir embarcar em sua aventura sem sequer
perceber que uma mulher o acompanhava todo o tem-
po, cuidando dele em meio às suas desventuras. Quanto
todos já o haviam abandonado e a busca pela ilha des-
conhecida (que aparentemente só existia em seus pensa-
mentos), se mostrava desesperançosa, ele percebeu a pre-
sença de quem sempre estivera ao seu lado. Depois disso:

6 Para facilitar a leitura: Na obra de Saramago, quando uma letra maiúscula


ocorre logo após uma vírgula, trata-se da fala de outro personagem.
7 José Saramago, O Conto Da Ilha Desconhecida (São Paulo: Companhia
das Letras, 1998), 3.

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30 TIAGO FERREIRA

Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele,


confundidos os corpos, confundidos os beliches, que
não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo.
Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a
mulher foram pintar na proa do barco, de um lado
e do outro, em letras brancas, o nome que ainda
faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com
a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à
procura de si mesma8.

Enquanto estamos emaranhados em nossos pen-


samentos, perdemos a possibilidade de um contato
mais amplo com o mundo interior e com o nosso en-
torno. Não é incomum que passemos uma boa parte
do dia tão imersos em pensamentos difíceis que, ao
final, estamos emocionalmente exaustos e com uma
disposição imensa a nos distrair com qualquer outra
coisa que nos impeça de voltar ao diálogo interno
(e.g., maratonas de séries, redes sociais, etc.).

Mas será que não é possível mudar ou controlar


os nossos pensamentos? A resposta é: sim, de certa
forma é possível. Mas será que é desejável? Memórias
difíceis são conteúdos de pensamentos que assustam
a muitos de nós. E com razão! Violência sexual ou
moral, ridicularizações e erros passados, são todas

8 Saramago, 14.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 31

memórias para as quais desenvolvemos diversas for-


mas de controle. Por exemplo, para evitar a memória
de ter sido ridicularizado por um aspecto franzino e
para tentar mudar os pensamentos ruminativos que
vêm como variações de “você é um fraco”, um pacien-
te (vamos chamá-lo de Fernando), pode gastar boa
parte do seu tempo e energia exercendo poder sobre
os outros e demonstrando como está no controle.

Quando os pensamentos sobre sua fraqueza chegam,


Fernando rapidamente mostra para si como estes pensa-
mentos são irracionais. Ele se convence, mais uma vez,
que é forte o bastante para subjugar todos ao seu redor.
Quando a sua esposa o critica por não cuidar do próprio
corpo, o nosso paciente passa a criticá-la ostensivamente
e se volta para os seus subordinados que repetidamente
o elogiam. Fernando tem obtido certo êxito em manter
as memórias afastadas, com raras ocorrências e, ao mes-
mo tempo, tem sido relativamente bem-sucedido em
convencer-se de que os pensamentos sobre sua própria
fraqueza são irracionais e inverossímeis.

No entanto, não seria absurdo pensar que tais


pensamentos são, na vida de Fernando, uma eminên-
cia parda. Se você nunca ouviu esta expressão, uma
“eminência parda” é alguém que está nos bastidores,
mas exerce secretamente o poder. Por não saber lidar

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32 TIAGO FERREIRA

com a presença dos pensamentos e memórias difíceis,


Fernando lida com a dor da ausência de relações que
não sejam mediadas pelas próprias tentativas de con-
trolar os pensamentos. Quando não sabemos como
lidar com a presença dos nossos pensamentos, damos
a eles o poder de nos controlar como uma iminência
parda que, dos bastidores invisíveis, guia nossa atua-
ção no palco da vida.

Para este tipo de relação em que somos contro-


lados pelo conteúdo dos nossos pensamentos e não
conseguimos observá-los como são em sua nature-
za primária (i.e., pensamentos), nós chamamos de
Fusão Cognitiva. A alternativa para sermos contro-
lados pelo conteúdo literal dos nossos pensamen-
tos é a capacidade de observá-los e estabelecermos
uma relação de perspectiva diferente com a sua
presença: ao invés de enxergarmos o mundo atra-
vés dos pensamentos, buscamos enxergar o mundo
dos nossos pensamentos.

Brené Brown deu um exemplo maravilhoso de Des-


fusão Cognitiva em relacionamentos amorosos que,
penso, pode nos fornecer um framework para mobi-
lizarmos Desfusão Cognitiva em nosso cotidiano. Ela
conta um episódio em que finalmente conseguiu um
tempo de férias com o seu marido em uma casa no

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 33

lago9. Como ambos amavam nadar, decidiram nadar


juntos. Em um certo momento, ela decidiu expressar
sua alegria em estar ali com ele e disse algo como “este é
um momento muito especial para nós, eu estou muito
feliz em estar aqui com você”, ao que ele respondeu
“a água está boa” e retornou a nadar. Lidando com a
própria frustração e com pensamentos difíceis, Brené
voltou a alcançá-lo e repetiu o comentário, obtendo a
mesma resposta fria, distante e perturbadora.

Quando já estava em um nível de ira devastador, ela


pôde se lembrar das diversas vezes em que seus pensa-
mentos assumiram o controle imediato da situação (em
geral, com efeitos terríveis) e de como a Fusão Cognitiva
iria fazê-la criar cenários e mais cenários de discussões
com seu marido (dentro da sua própria cabeça) até o
ponto em que iria “descarregar” toda a raiva acumulada
pelas ações (reais!) dele e por todos os cenários criados
no palco mental. Nós brigamos internamente, mas a
explosão resultante da luta mental é descarregada em
quem está fora. Como alguém que já conhece centenas
de situações em que a Fusão Cognitiva assumiu o con-
trole, ela decidiu uma estratégia diferente.

Se lembrando dos anos de pesquisa em sua carreira

9 Brown, B. (2019). The Call to Courage. Especial para Netflix. Dis-


ponível em www.netflix.com.

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34 TIAGO FERREIRA

acadêmica, ela se lembrou que nossa mente sempre cria


histórias a partir das informações disponíveis. A partir
dessa interação desastrosa com o marido, ela sabia que
histórias seriam contadas dentro de sua cabeça e que ela
seria controlada, em algum momento, por estas histó-
rias. Então ela decidiu contar as “histórias da sua cabeça”
para o marido. Ela disse algo como “a história que eu
estou construindo agora é de que uma de duas coisas
acabou de acontecer: ou você olhou para mim enquanto
nós estávamos nadando e pensou ‘onde está a mulher
com quem eu me casei há 25 anos? Ela está velha e nem
sabe como nadar mais’ ou ‘você não pode mais usar um
maiô como antes de ter 3 filhos’. Quando ela contou
as histórias que a sua cabeça contava, deu ao marido a
chance de dizer que não estava conseguindo ouvi-la por-
que estava tendo um ataque de pânico.

“Contar as histórias da nossa cabeça” é uma exce-


lente estratégia para “ver as histórias da nossa cabeça”.
É por isso que uma boa relação terapêutica consegue
produzir Desfusão Cognitiva, quando está menos inte-
ressada em mudar os pensamentos do paciente do que
em ajudá-lo a ver os pensamentos de uma perspectiva
observadora e, então, decidir como quer agir na pre-
sença desses pensamentos. Na presença da observação
dos pensamentos, Brené poderia se vingar do marido
ou tentar entender mais sobre o que estava acontecen-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 35

do. Ela escolheu não controlar os pensamentos, mas


também não ser controlada por eles.

Sejamos realistas: os pensamentos mais difíceis que


nos acompanham nos perseguem há muito tempo.
Uma mulher de 35 anos que passou a infância ouvin-
do que era “inadequada” não pode se dar ao luxo de
esperar que estes pensamentos desapareçam antes de
começar a viver a vida que deseja viver. Um homem de
45 anos que, desde o começo da juventude, é persegui-
do por pensamentos sobre “ser uma farsa”, não pode
contar com a expectativa de uma “mudança de pensa-
mento” para então se posicionar com autoridade em
seus negócios. Um paciente que possui pensamentos
ruminativos sobre higienização não pode esperar que
os pensamentos vão embora para, só então, começar
a sair de casa para fazer o que precisa fazer. Todos nós
precisamos aprender a responder com Flexibilidade
Psicológica aos pensamentos difíceis que nos acompa-
nham durante toda uma vida. Desfusão Cognitiva é
uma decisão madura de ver os pensamentos difíceis,
mas ser guiado pelos valores.

Eu vou piorar as coisas um pouco: quanto mais en-


gendramos esforços para viver uma vida significativa,
mais pensamentos difíceis vão aparecer. Se você deci-
diu que os anos de aprendizado na faculdade vão ser

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36 TIAGO FERREIRA

usados para fazer diferença no mundo através da sua


comunicação, por exemplo, pode apostar que os seus
pensamentos mais difíceis vão aparecer quando você
estiver caminhando na direção de fazer o que impor-
ta. Se você é uma psicóloga e decidiu fazer aquela in-
tervenção difícil, mas necessária, com aquele paciente
complicado, pode esperar: os pensamentos que sempre
te dizem o quanto você não é boa o bastante vão apare-
cer no seu consultório, no caminho para ele, e enquan-
to você estiver tomando um banho antes de sair de
casa. Eles (os pensamentos) não vão embora, mas não
precisam te impedir de viver algo valoroso.

Como Clarice Lispector disse em seu livro “Perto


do Coração Selvagem”10: “Seus pensamentos eram, de-
pois de erguidos, estátuas no jardim e ela passava pelo
jardim olhando e seguindo o seu caminho”. Gastar o
tempo e a energia tentando controlar a ocorrência dos
pensamentos é como tornar-se uma estátua em seu
próprio jardim ao invés de continuar caminhando en-
quanto observa as estátuas que, inevitavelmente, con-
tinuarão por ali. O foco da Desfusão Cognitiva não é
a alteração dos pensamentos difíceis, mas em mudar a
forma como nos relacionamos com eles.

10 Clarice Lispector, Perto Do Coração Selvagem (Rio de Janeiro: Nova Fron-


teira, 1980).

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CAPÍTULO 2

PRESENÇA INTENCIONAL

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 39

T
odos nós temos um anseio profundo por saber
quem somos e onde estamos em nossa jornada
de vida11. Ninguém gosta de estar perdido em
relação à sua própria identidade ou ao caminho que
está trilhando. Como vimos anteriormente, o ho-
mem que buscava uma ilha desconhecida podia acal-
mar seu coração ao saber que tinha uma orientação
na vida, mesmo que esta orientação fosse algo tão
irreal quanto uma ilha que só existia em sua própria
imaginação. Não é à toa que tantas pessoas têm pro-
curado psicólogos ao se sentirem desconectados com
a sua jornada atual e com o seu próprio “eu” que se
esconde em meio ao caminho.

O segundo pilar do modelo de Flexibilidade Psi-


cológica contempla a dimensão da Atenção e a di-
mensão do Self. Penso que este pilar não poderia estar
em uma posição melhor na representação diagramá-
tica do hexágono de Flexibilidade Psicológica: trata-
-se do centro que traz gravidade para ancorar todos
os outros processos. Vou explicar por que considero
a Presença como sendo a âncora para os outros dois
pilares, enquanto falaremos sobre Flexibilidade e In-
flexibilidade nestas duas dimensões.

11 Steven C. Hayes, A Liberated Mind: How to Pivot toward What Matters


(New York: Avery, 2019), 144.

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40 TIAGO FERREIRA

2.1. Self

O Self é a dimensão psicológica que envolve como


nos sentimos, pensamos e agimos em relação a nós
mesmos. Nós não construímos histórias apenas sobre
o mundo que nos cerca, mas também somos contro-
lados pelos conceitos que temos sobre nós mesmos.
Por exemplo, a história bíblica de Moisés conta que
ele foi chamado por Deus para libertar o povo ju-
deu da escravidão e que sua primeira reação foi uma
pergunta retórica: “mas quem sou eu para ir a Faraó
e tirar do Egito os filhos de Israel?12”. Tratava-se de
uma pergunta retórica que escondia uma afirmação
peremptória sobre o self: eu não sou bom o bastante
para isso.

Assim como na história bíblica, os nossos pacien-


tes também desejam viver uma vida significativa, mas
são limitados pelo controle de um conceito de si (ou
de conceitos sobre si) que restringem as suas escolhas.
Para este processo psicológico de apego a um conjun-
to de conceitos sobre si limitando uma vida significa-
tiva, chamamos “Self Conceitual”. Este é o processo
de Inflexibilidade Psicológica na dimensão do Self.
Por exemplo, uma paciente que ouviu desde cedo que

12 Êxodo 3:11.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 41

“você é inadequada e estraga tudo” não se permite


terminar um relacionamento iníquo porque não se
considera capaz de ter outro relacionamento. Um
paciente que aprendeu a se ver como “introvertido”
percebe a sua ansiedade social como a prova de que
ele nunca poderá ascender na carreira de professor.
Todos nós temos conceitos sobre nós mesmos que são
dolorosos ao acessar.

Mas não são apenas os conceitos difíceis sobre


nós mesmos (e.g., “eu sou inadequado”) que limitam
uma vida significativa. Por exemplo, um paciente que
aprendeu desde cedo a olhar para si como “criativo
e cheio de ideias” ao se perceber sem conseguir de-
senvolver uma carreira ou amizades consistentes, diz
ao terapeuta que o problema é que as pessoas ao seu
redor têm a “mente pequena” e ainda não perceberam
o seu valor. Conceitos agradáveis ou difíceis não são
o problema, mas como nos relacionamos com estes
conceitos é que indica se temos Inflexibilidade ou
Flexibilidade Psicológica.

Preciso enfatizar isto: realmente não é um proble-


ma ter conceitos sobre si. Pelo contrário, trata-se de
uma necessidade social. David Le Breton resumiu,
claramente, a questão quando disse:

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42 TIAGO FERREIRA

A existência social só é possível através da capacida-


de que o indivíduo tem de endossar uma sucessão de
papéis diferentes segundo os públicos e os movimen-
tos, mas sempre preservando uma unidade13.

Esta “unidade” sobre como nos construímos so-


cialmente, é ensinada desde que somos crianças.
Para a pergunta “quem é você?”, a criança já precisa
esboçar respostas que indicam seu pertencimento a
certos grupos. Por exemplo: sou filho de Alfredo e
Raimunda, assim como irmão de Lara, Hiram e Al-
fredo Jr (pertenço a uma família); sou psicólogo e
professor (pertenço a categorias profissionais); sou
músico e amo ouvir música (pertenço a um grupo
de artistas e amantes da arte); sou cristão (pertenço
a um grupo que partilha certas crenças religiosas). O
nosso self é construído a partir do anseio que temos
por pertencimento14. Neste sentido, o que temos de
mais pessoal é também a nossa forma de fazer parte
de algo que é maior do que nós mesmos. Todos an-
siamos por pertencer.

O anseio por pertencimento não é um problema,


mas as maneiras pelas quais tentamos suprir este an-

13 David Le Breton, Desaparecer de Si: Uma Tentação Contemporânea,


trans. Francisco Morás (Rio de Janeiro: Vozes, 2018), 196.
14 Hayes, A Liberated Mind, 119.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 43

seio podem nos levar a uma vida com pouco signifi-


cado. Quando o nosso paciente “criativo e cheio de
ideias” é confrontado por sua esposa como sendo al-
guém preguiçoso e não muito dado ao trabalho duro,
o apego ao self conceitual mobiliza raiva e vitimização
como formas de afastar o “ataque ao eu”. A angústia
de ter um conceito estável sobre si ameaçado é tão
aversiva que o sujeito não consegue mais ter conta-
to com o momento presente ou clareza sobre quais
são seus valores para uma relação conjugal. Tudo que
importa é livrar-se da dor de ter a estabilidade do self
conceitual ameaçada.

Quando o terapeuta confronta a paciente que se


vê como a “inadequada que estraga tudo” com a pos-
sibilidade de se abrir para novos relacionamentos, ela
só pode pensar que o terapeuta “não sabe como é a
realidade!” e está tentando convencê-la de uma fanta-
sia. Preferimos o “mal conhecido” do que o risco de
ter esperança e nos frustrarmos novamente. Como o
self conceitual tem uma função de sobrevivência so-
cial (como disse Le Breton), ele se torna tão presente
e invisível quanto a água para o peixe que nada no
oceano. Aliás, frequentemente a terapia só é buscada
quando, de alguma forma, o self está ameaçado.

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44 TIAGO FERREIRA

A preocupação com o nosso self desaparece na


vida cotidiana quando o contexto continua con-
firmando que somos exatamente quem sempre
achamos que somos15. Mas as mudanças ameaçam
esta estabilidade. Logo quando eu e minha família
chegamos ao Canadá, eu me vi destituído de tudo
que reforçava o meu Self Conceitual. No novo país,
eu não era um professor conhecido, um psicólogo
bem-sucedido ou um orador competente. Eu nem
conseguia comprar um carro, uma vez que não ti-
nha um histórico de crédito nessa nova comunida-
de. Pior do que isso, como meu nível de inglês não
era fluente, eu fui privado do que sempre me ajudou
a confirmar os conceitos que tenho sobre mim: a
minha capacidade de argumentar e explicar.

Rapidamente me peguei “vendo a água em que na-


dava” porque precisava repetir para mim diversas ve-
zes: “eu sei quem eu sou”. E este retorno intencional
ao Self Conceitual estava funcionando, até que não
funcionou mais. Aceitar ajuda de amigos se tornava
difícil, afinal “quem eles pensam que eu sou? Será que
não lembram que eu sou capaz de me virar?”, assim
como a decisão de trancar uma disciplina do mestra-
do que estava demasiado intensa para o meu momen-

15 Le Breton, Desaparecer de Si: Uma Tentação Contemporânea, 204.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 45

to atual se tornou uma ameaça muito pesada para o


meu (já tão ameaçado) self.

A Flexibilidade Psicológica na dimensão do Self é


a mobilização de uma perspectiva de observador de
si. Um Self Observador. Eu sabia a teoria disso, mas
como colocar em prática? Com o suporte sempre pre-
sente da minha esposa, eu comecei a fazer mais inten-
cionalmente comigo mesmo, o que sempre ensinei
os pacientes a fazerem quando precisam de um Self
Observador: contar a história dos diversos conceitos
sobre mim.

Em longas (ao menos para os meus parâmetros)


conversas, eu e a Gisele pudemos relembrar como
precisei aprender a me ver como “aquele que tem as
respostas” para me diferenciar de meus irmãos e me
conectar com meus pais. Como aprendi a pensar que
o meu valor pessoal está diretamente ligado à per-
formance intelectual, uma vez que eu não pertencia
ao grupo dos esportistas/extrovertidos, mas ao grupo
dos “nerds” que se conectavam pela timidez. Na se-
gurança de uma relação estável (com a Gisele) pude
observar a gênese, o desenvolvimento e o momento
atual do meu Self Conceitual. Naqueles momentos,
eu pude ver, com serenidade, como meu self ainda
hoje é uma tentativa de proteção e conexão.

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46 TIAGO FERREIRA

Penso que este é o mesmo princípio de uma rela-


ção terapêutica saudável: um lugar seguro para que o
paciente possa ver e ganhar intimidade com os con-
ceitos sobre si a tal ponto que possa reconhecê-los
quando exercem controle na vida cotidiana. O “cria-
tivo e cheio de ideias” pode “ver” como este conceito
positivo sobre si está tentando afastá-lo de encarar
uma realidade dura: ele não consegue se manter tem-
po suficiente em uma atividade para colher frutos de
um investimento estável. A “inadequada que estraga
tudo” pode ver como este Self Conceitual tenta prote-
gê-la de estar sozinha e, com isso, limita sua conexão
com outras pessoas ao seu entorno. Reconhecer o Self
Conceitual agindo hoje é uma necessidade, mas só
podemos (re)conhecer a quem dantes conhecemos.
Precisamos de um Self que observa.

O resultado do processo de Flexibilidade Psicoló-


gica na dimensão do Self não é o desaparecimento
dos conceitos sobre si, mas a capacidade de observar
estes “eus” enquanto se dirige para o que é significa-
tivo no momento. Um terapeuta experiente sabe que
os pacientes não podem esperar que conceitos difí-
ceis como “eu sou inadequada” vão embora para, só
então, começar a viver. Pelo contrário, uma postura
madura em terapia envolve a capacidade de observar
os autoconceitos de uma perspectiva segura e enga-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 47

jada com os valores a serem vividos no aqui e agora.


Vou compartilhar contigo algumas perguntas que me
ajudam a construir um Self Observador junto aos pa-
cientes. Não entenda como um protocolo a ser segui-
do ponto-a-ponto, mas como sugestões do que tem
me ajudado enquanto terapeuta:

• Quando algo desafiador aconteceu, a sua mente con-


tou histórias sobre você mesmo? Como você agiu na
presença destas histórias?

• O que te disseram, em sua infância, sobre sua per-


sonalidade, sobre suas tendências, sobre seu caráter?
O que ficou dessas falas e como isso te controlou e te
controla?

• Como isso afetou a maneira como você interpretou as


experiências que vieram depois, em sua adolescência,
juventude, em sua formação como psicóloga?

• Quando estas memórias, pensamentos e julgamentos


sobre o seu “eu” são evocados? Quais são os contextos
em que eles aparecem e machucam?

• Quantas vezes esta narrativa te protegeu? Você con-


segue se perceber quando está ouvindo as histórias?

• Ao final da sua vida, quando você olhar para trás,


como você gostaria de se ver? Que histórias vão apa-

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48 TIAGO FERREIRA

recer quando você começar a se mover em direção a


este caminho?

2.2. Atenção
Eu já perdi as contas da quantidade de vezes que
errei o caminho enquanto estava dirigindo meu car-
ro. Provavelmente, centenas de ocorrências como esta
já mostraram para minha esposa como eu, costumei-
ramente, estou com a mão no volante do carro, mas
com a mente divagando, pensando em outros mo-
mentos, às vezes passados e às vezes futuros. Eu gosta-
ria de dizer que a minha dificuldade de estar conecta-
do com o momento presente ocorre apenas enquanto
estou dirigindo, mas a verdade é bem diferente e bem
mais perturbadora.

Depois de anos como supervisor clínico, eu


pude perceber que diversos colegas psicólogos en-
frentavam as mesmas dificuldades que eu enfrento.
Frequentemente, me percebo desconectado de um
paciente porque estou controlado por algo que, su-
ponho, vai acontecer no futuro ou que aconteceu
no passado. Penso que boa parte dos terapeutas já
pôde experimentar a difícil sensação de estar frente
a frente com um paciente sob controle do futuro
temido em seus pensamentos: “Este paciente não vai

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 49

voltar. Se fosse o meu supervisor aqui, ele saberia o


que fazer”. Outros são bastante controlados por um
passado conceitualizado: “Eu deveria ter me prepa-
rado melhor. O que devo dizer agora?”. Terapeutas e
pacientes possuem a mesma humanidade compar-
tilhada: temos dificuldade para nos conectar com o
momento presente.

O resultado de um controle atencional inflexível


pelo passado ou futuro, geralmente envolve uma tría-
de perturbadora: ruminação, ressentimento e preo-
cupação. Ruminamos fatos passados quando estamos
revendo eventos que ocorreram e nos trouxeram dor.
Uma vez presos nas memórias difíceis, nós sentimos
novamente algo semelhante ao que sentimos no passa-
do. Em uma palavra, nós enfrentamos o (res)sentimen-
to. Por outro lado, quando o futuro temido está con-
trolando a atenção, nos ocupamos de algo que suposta-
mente ainda não aconteceu. Nós nos (pre)ocupamos.
Embora sejam três experiências distintas, ruminação,
ressentimento e preocupação têm o mesmo efeito de-
sastroso: nos desconecta do único lugar em que pode-
mos realmente agir, que é o momento presente.

Na contramão dessa experiência de desconexão,


todos nós já pudemos experimentar aquele momen-
to em que estamos inteiramente conectados com o

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50 TIAGO FERREIRA

presente. Esta atenção plena ao eu-aqui-agora amplia


nossa Flexibilidade Psicológica e as nossas possibilida-
des: as dicas que o contexto nos oferece são percebi-
das e utilizadas, nós conseguimos ter mais intimidade
com nosso próprio corpo e temos redução de impul-
sividade. Isto ocorre porque impulsividade não é “agir
sem pensar”. Pelo contrário, impulsividade é pensar e
reagir ao pensamento sem sequer dar-se conta de que
havia um pensamento acontecendo.

Eu não sou um grande fã de artes marciais. Mas,


por outro lado, fico impressionado com a capaci-
dade de contato com o momento presente que um
lutador precisa adquirir quando está enfrentando
um oponente. Cada mínimo movimento do outro
precisa ser percebido, cada reação do próprio corpo
precisa ser conscientemente experimentada para que
exista uma conexão única entre o próprio corpo e o
corpo do outro. Assim também é na dança quando
os parceiros têm atenção plena ao próprio corpo e ao
corpo do outro de tal forma que parecem unir-se em
uma totalidade digna de toda apreciação. Nos dois
casos (i.e., na luta ou na dança), de diferentes ma-
neiras e com diferentes propósitos, há uma conexão
ímpar que deveria ser modelo para o encontro tera-
pêutico. Neste caso, menos como uma luta e mais
como uma dança onde os movimentos do terapeuta

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 51

e do paciente transcendem a soma de dois repertó-


rios individuais.

No entanto, o apelo estético da metáfora que uti-


lizamos é confrontado pelo que a ciência tem alerta-
do: nossas mentes divagam muito mais do que gosta-
ríamos e o contato com o momento presente tem se
tornada cada vez mais raro. É certo que a capacidade
de pensar sobre o que não está acontecendo ao nosso
redor é única para os seres humanos e é responsável
por boa parte do nosso sucesso enquanto espécie.
No entanto, Killingsworth e Gilbert afirmaram com
grande clareza que “a habilidade para pensar sobre o
que não está acontecendo é uma conquista cognitiva
que vem com um custo emocional16”. Estes dois pes-
quisadores publicaram na prestigiosa revista Science
uma pesquisa perturbadora.

Estes pesquisadores desenvolveram um aplicati-


vo de celular que podia coletar relatos, em tempo
real, de milhares de pessoas acerca de seus sentimen-
tos, pensamentos e ações enquanto estavam imersos
em suas atividades diárias. O aplicativo contactava
randomicamente os participantes da pesquisa e fa-

16 Matthew A. Killingsworth and Daniel T. Gilbert, “A Wandering Mind


Is an Unhappy Mind,” Science 330, no. 6006 (November 12, 2010):
932–932, https://doi.org/10.1126/science.1192439.

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52 TIAGO FERREIRA

zia algumas perguntas rápidas e diretas sobre o que


estavam fazendo naquele exato momento. Com esta
tecnologia, eles conseguiram uma amostra de 2.250
adultos que responderam em momentos diversos a
três perguntas:

— Como você está se sentindo agora?

— O que você está fazendo agora?

— Você está pensando em alguma outra coisa além


do que está fazendo agora?

Para a terceira pergunta, o sujeito poderia escolher


entre 4 opções: “não”, “Sim, alguma coisa agradável”,
“Sim, alguma coisa neutra” ou “Sim, alguma coisa
desagradável”. O resultado da pesquisa foi realmente
perturbador. Em 46.9% do tempo, as pessoas esta-
vam divagando (i.e., fazendo algo, mas com a aten-
ção em um momento diferente do momento presen-
te). Surpreendentemente, a natureza da atividade no
momento ou a qualidade do pensamento (i.e., se o
sujeito pensava em algo prazeroso, desagradável ou
neutro) teve pouco impacto no bem-estar dos parti-
cipantes. Por outro lado, a presença da divagação foi
o preditor mais forte para infelicidade. Neste sentido,
os pesquisadores concluem:

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Uma mente humana é uma mente que divaga, e


uma mente que divaga é uma mente infeliz17.

Considerando a relevância do tópico, existem


centenas de estratégias desenvolvidas para aumen-
tar o Contato com o Momento Presente. Práticas de
meditação, metáforas para orientar a atenção, ativi-
dades em grupo, práticas esportivas, dentre tantas ou-
tras possibilidades, são realmente promissoras e são
largamente ensinadas em cursos sobre mindfulness.
No entanto, a minha experiência no consultório tem
mostrado que não precisamos de uma “caixa de fer-
ramentas” para mobilizar Contato com o Momento
Presente, mas precisamos de coragem.

Eu me lembro da sensação de ansiedade e irritação


que me visitavam nos minutos imediatamente ante-
riores à chegada daquele paciente das tardes quentes,
no consultório da Avenida Tancredo Neves em Salva-
dor. Ele era um jovem universitário com um nível de
ansiedade muito alto e, ao mesmo tempo, uma falta
de empatia enorme pelas pessoas que estavam em seu
entorno. A sua forma de evitar a própria insegurança e
ansiedade era “exigir” de todos ao redor que cuidassem
dele e que lhe fornecessem garantias. Estas garantias
eram financeiras (quando se referia aos pais), amorosas

17 Killingsworth and Gilbert, 932.

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54 TIAGO FERREIRA

(quando exigia que a namorada demonstrasse osten-


sivamente que não o deixaria) e terapêuticas (quando
exigia que o terapeuta lhe desse respostas sobre como
agir). Eu não me sentia ouvido por ele e, frequente-
mente, me sentia como mais uma das ferramentas que
ele usava para se sentir menos ansioso.

Tendo desenvolvido uma habilidade de mobilizar


as pessoas ao seu redor para que suprissem as suas
demandas, ele, realmente, havia conseguido muitas
coisas: a namorada vivia “pisando em ovos” para não
dizer algo que o contrariasse e a família o sustentava,
financeiramente, mesmo quando ele já havia passado
mais anos do que os previstos no curso universitário
que cursava. Além disso, sempre havia uma equipe de
saúde para atendê-lo. Terapia era parte de seu cotidia-
no desde a infância. No entanto, os seus relatos eram
de alguém que nunca conseguia desfrutar do que es-
tava à sua disposição, sempre ruminando memórias
de quando as pessoas o frustraram e antecipando ca-
tástrofes por meio de pensamentos sobre um futuro
temido e solitário.

Por outro lado, eu também não conseguia me co-


nectar com ele. Quando a ansiedade estava muito alta,
ele exigia (às vezes gritando) que o terapeuta “fizesse
alguma coisa” para resolver a sua angústia. Qualquer

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 55

coisa que eu tentasse falar e que não fosse coerente com


as suas expectativas, era rapidamente descartado com
um “você não entendeu o que eu estou falando” e, ato
contínuo, voltava a exigir que o terapeuta o atendes-
se mais vezes na semana. Depois de algumas sessões
eu me percebia divagando durante o atendimento. Às
vezes perdia vários segundos (ou seriam minutos?) de
sua fala porque estava pensando em quanto tempo de
sessão ainda restava ou se eu não deveria encaminhá-lo
para algum colega com mais disposição para atendê-lo.
Eram duas pessoas fisicamente na sala, mas nenhuma
delas estava realmente ali presente.

Com a falta de conexão, eu me percebi cada vez


mais frustrado e desinteressado em suas falas. O sono
durante o atendimento vinha como um alerta do meu
corpo de que eu não estava realmente ali presente. Até
um dia em que precisei de toda coragem para fazer a
pergunta mais simples que um terapeuta pode fazer
para mobilizar o Contato com o Momento Presente:
“O que está acontecendo aqui e agora entre nós?”

Ele hesitou por um momento ao ouvir a pergunta


e, rapidamente, voltou para o seu discurso sobre o
quanto ele não estava melhorando em sua vida psico-
lógica. Mas eu estava determinado a insistir, porque
não podia me permitir mais uma sessão sem realmen-

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56 TIAGO FERREIRA

te fazer o necessário para ajudar aquele jovem. Fiz um


sinal com a mão para que ele parasse de falar e repeti
a pergunta. Quando ele respondeu me perguntando
o que eu queria dizer com aquilo, eu percebi que algo
raro acontecera: ele estava realmente interessado em
me ouvir e eu estava completamente atento a ele. Nós
dois estávamos em contato com o momento presente,
mas ainda como uma luta e não como uma dança.

As sessões seguintes foram dirigidas para ajudá-lo


a perceber as suas emoções e pensamentos enquanto
eu falava, ao passo em que eu não perdia nenhuma
oportunidade de dizer como eu estava me sentindo
quando ele parecia me exigir a responsabilidade por
sua própria vida. Obviamente, minha mente ainda
divagava, mas eu me permitia gentis retornos para o
momento presente e o interrompia com muita ho-
nestidade: “me desculpe, eu não estava inteiramente
aqui com você, e eu quero estar aqui. Você pode re-
petir o que falou?”. Algumas vezes a reação era agra-
dável, algumas vezes ele demonstrava sua irritação.
Mas em ambos os momentos, nós dois começamos a
construir algo juntos e não em solilóquios.

Este e outros casos me ensinaram o essencial para


mobilizar Contato com o Momento Presente. Não se
trata de quais técnicas de meditação, relaxamento ou

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 57

metáforas você aprendeu, mas da coragem para es-


tar genuinamente ancorado no momento presente da
relação terapêutica. Mesmo que se inicie como uma
luta, o Momento Presente é a âncora para que uma
dança possa ser construída. E, a partir dela, esta ha-
bilidade de Flexibilidade Psicológica pode fazer parte
do repertório do paciente também fora da sessão.

Isto me leva para nossa questão inicial sobre o ca-


ráter central da Presença enquanto pilar da Flexibili-
dade Psicológica. Como um terapeuta pode mobilizar
flexibilidade no outro se ele mesmo não consegue ter
Presença suficiente para se perceber e perceber o ou-
tro na relação terapêutica? Em relação à Flexibilidade
Psicológica, o terapeuta não pode levar o paciente a
um lugar em que nunca esteve. Uma perspectiva de
si (i.e., Self Observador) no aqui e agora da relação
terapêutica (i.e., Contato com o Momento Presente)
não é suficiente para mobilizar Flexibilidade Psicoló-
gica, mas certamente é necessário para que ela ocorra.

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CAPÍTULO 3

AÇÃO SIGNIFICATIVA

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Eu não posso ser como meu pai!”. Foi com este
grito de raiva que Marcos, um paciente de 27
anos, iniciou aquela sessão. Ele me procurou com
uma queixa e objetivos muito claros: ele se percebia
como alguém que tinha “problemas com a raiva” e
que tinha o objetivo de manter seu casamento que
estava bastante abalado. No entanto, os problemas
eram ainda maiores.

Marcos estava prestes a perder um emprego por-


que já havia discutido acirradamente com todos os
colegas e com os chefes. Ele amava a música, mas ha-
via brigado com o vocalista da banda em que tocava
por conta de uma mudança no repertório. Sua esposa
já dava sinais claros de que não suportaria outro rom-
pante de agressividade verbal e que já estava conver-
sando com os pais sobre seu retorno para a família de
origem. Toda a habilidade de vendedor que Marcos
possuía não conseguia mais apresentar razões para
que as pessoas ao seu redor se mantivessem por perto.

Como Marcos possuía uma mente muito ágil, as


primeiras sessões rapidamente identificaram funcio-
nalmente o modo como ele aprendeu a lidar com
o mundo. Seu pai era um alcoólatra, extremamente
crítico e sempre pronto a mostrar como Marcos, o
irmão e a mãe eram incompetentes para lidar com a

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62 TIAGO FERREIRA

vida. A mãe, por sua vez, recebeu diversos diagnósti-


cos psiquiátricos ao longo da vida e justificava a falta
de carinho e proteção para com os filhos, a partir de
um estado contínuo de autocomiseração. Marcos, ra-
pidamente, aprendeu que ele precisava “se virar sozi-
nho” para conseguir sobreviver.

Ele realmente se tornou muito bom em “se virar so-


zinho”. Todos os vizinhos gostavam de sua proativida-
de e capacidade comunicativa. Os professores sabiam
que Marcos não estudava muito, mas que era sempre o
melhor líder de turma que poderiam desejar: resoluti-
vo e com uma capacidade de liderança notável. Desde
a adolescência, Marcos começou a desenvolver suas ha-
bilidades de vendas, primeiro informalmente e depois
construindo uma carreira vendendo artigos esportivos
de luxo. Mesmo sem concluir uma graduação em Mar-
keting — que iniciou a contragosto só para conseguir
se manter como trainee em uma multinacional — ele
se tornara um vendedor-modelo.

Marcos sempre teve objetivos claros: ter uma car-


reira meteórica em vendas, casar-se e ter filhos. Tudo
indicava que seus objetivos seriam alcançados rapida-
mente: desde muito jovem foi valorizado na empresa,
assim como não teve problemas para iniciar um na-
moro e, rapidamente, casar-se com uma mulher que

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 63

o admirava. Os problemas começaram quando a as-


censão na empresa exigiu que trabalhasse em equipe e
os primeiros meses de casamento sinalizavam que ele
não estava no controle da própria rotina.

Quando Marcos percebeu que colegas de trabalho


eram menos competentes do que ele, e recebiam um
salário maior, seu sarcasmo nas reuniões de equipe
começou a ser diário. Ele criticava a falta de proa-
tividade dos seus superiores e tentava, a todo custo,
mostrar como ele conseguiu melhor resultado do
que todos os que já trabalhavam há anos na empresa.
Quando o primeiro “bate-boca” aconteceu em meio
a uma reunião de planejamento, o seu chefe já deixou
claro que ele se tornara um problema para a equipe,
a despeito de sua produtividade nas vendas. Seu pri-
meiro objetivo estava ameaçado.

Por outro lado, seus argumentos acerca da escolha


de novos móveis para a casa encontraram por parte da
esposa um simples: “eu te entendo, mas eu não quero
esses móveis”. Sem conseguir usar suas estratégias de
convencimento, a ira tomou conta e ele começou a
agredir verbalmente a esposa, dizendo o quanto ela
era irracional. Discussões como esta se tornaram fre-
quentes, e a esposa começou a dar sinais claros de
que o casamento estava prestes a ser encerrado. Seu

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64 TIAGO FERREIRA

segundo objetivo estava naufragando e, com isso, a


possibilidade de filhos sequer era mencionada.

Após dois meses de terapia, os processos relativos


à Aceitação e Presença pareciam bastante avançados
no tratamento do Marcos. Ele já conseguia perceber
suas emoções e pensamentos, inclusive “em tempo
real”. Estava bem menos impulsivo e conseguia “estar
com a raiva” ao passo em que agia de uma maneira
mais produtiva. No entanto, algo parecia fora do lu-
gar porque ele se sentia com uma angústia crescente e
não conseguia identificar o porquê. Até aquela sessão
iniciada pelo seu grito de raiva. Então, tudo mudou.

Quando Marcos, em um tom bastante exaltado,


disse que não podia ser como o seu próprio pai, eu
sabia que era o momento de trabalhar valores.

3.1. Valores
Valores estão no coração da ACT não apenas como
mais um processo, mas como a razão de ser de todos
os processos. Por que deveríamos aceitar emoções e
pensamentos difíceis? Por que deveríamos ter contato
com o momento presente? A resposta mais honesta
é: não deveríamos. A não ser que a Evitação Expe-
riencial e a atenção voltada para o futuro ou passado

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 65

estejam nos impedindo de viver uma vida significa-


tiva. Flexibilidade Psicológica só importa porque é
necessária para o engajamento em uma vida valorosa.

Se Marcos, depois de uma briga com a esposa, to-


mar um ansiolítico para dormir e evitar o sentimento
de raiva, não há nada de fundamentalmente errado
nesta Evitação Experiencial. A não ser que (1) o seu
padrão de esquiva constante o impeça de fortalecer
sua relação com a sua esposa e (2) que a sua relação
com a esposa seja importante para ele. De igual for-
ma, tomar analgésicos todo final de tarde para evitar
uma dor de cabeça não é, a rigor, um problema, a
não ser que (1) esta evitação da dor nos impeça de
investigar o que está gerando esta dor de cabeça diária
e (2) que cuidar do corpo seja importante para nós.
Valores são o guia último das intervenções baseadas
em Flexibilidade Psicológica.

Quando Marcos, exaltadamente, me disse que não


podia ser como o pai, minha resposta foi algo como
“mas, por que não? O seu pai conseguiu viver toda a
vida dele dessa forma”. A minha expectativa era iden-
tificar os valores por trás desse objetivo (“ser diferente
do pai”). Um diálogo mais ou menos como o seguin-
te aconteceu:

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66 TIAGO FERREIRA

Marcos: o meu pai morreu sozinho, sem amigos,


sem família, isolado do mundo!

Terapeuta: Então você está me dizendo que para


você, ter conexões íntimas com pessoas é importante?

Marcos: Claro! De que adianta ser o melhor ven-


dedor se meu dinheiro só me compra uma casa vazia?

A partir daí, com mais clareza sobre os seus valores,


todo o processo de Aceitação e Presença que já havia
sido iniciado com o Marcos, começa a ter direção.
Aceitar a própria subjetividade para quê? Ter contato
com o momento presente para quê? A resposta, no
caso do Marcos, foi: para me aproximar das pessoas
que importam. Por exemplo, ao se perceber cortejando
uma colega de trabalho e, para fugir da própria culpa,
se distanciando de sua esposa, Marcos fez uma escolha
de contar para a esposa o que estava acontecendo no
trabalho. Será que aquela era a escolha “certa”? Esta
não é uma boa pergunta, porque a questão central é
que Marcos foi capaz de lidar com a vergonha a ponto
de se aproximar ainda mais de sua esposa. Em outros
termos, ele agiu em compromisso com seus valores,
mesmo na presença da vergonha e da culpa.

A angústia do Marcos finalmente se tornou cla-


ra. Ele conseguia ter, em parte, Abertura e Presen-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 67

ça, mas estava cada vez mais se afastando de pessoas,


incluindo sua própria esposa. Ele não brigava mais
no trabalho, mesmo quando sentia muita raiva. Ele
percebia os sentimentos e pensamentos difíceis, mas
fazia a escolha de não discutir e apenas mostrava os
resultados do que havia feito — que eram, em geral,
ótimos. Alguém poderia dizer que ele alcançou o ob-
jetivo da terapia (i.e., a raiva não o controlava mais),
no entanto, ele estava se afastando dos valores de re-
lacionamento com as pessoas do trabalho. Marcos se
percebia sozinho.

Ele não mais agredia verbalmente a esposa. Mar-


cos a ouvia, conseguia estar no momento presente,
mas logo depois voltava a atividades que envolviam a
vida fora da casa. Novamente, ele não era mais con-
trolado pela raiva, mas havia perdido o interesse na
vida comum com a esposa e se percebia desconectado
dela. Os valores de família e intimidade estavam aba-
lados. Quando conseguimos, a partir da comparação
em oposição à vida do pai, identificar os valores do
Marcos, então conseguimos uma maior Flexibilida-
de Psicológica: Abertura para a própria subjetividade,
com uma Presença intencional, enquanto se dirigia
para uma vida que é significativa. Clareza sobre Valo-
res e Compromisso com Valores mudam tudo.

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68 TIAGO FERREIRA

3.2. Ampliando a clareza


sobre Valores

Preciso te trazer clareza sobre, ao menos, quatro


conceitos importantes que permeiam as dimensões
psicológicas da Motivação e do Comportamento:
Objetivos, Valores, Domínios de valor e Ecologia de
Valores. Farei isso a partir da história do Marcos.

Em primeiro lugar, objetivos são conquistas que


podemos almejar alcançar em um tempo e espaço de-
finidos. Por exemplo, Marcos tinha o objetivo de ter
filhos. Um filho pode nascer no dia 27 de março de
2024 (tempo) na Maternidade do Hospital Português
em Salvador, Bahia (espaço). Objetivos são produtos
das ações de pessoas, mas não só. Para que Marcos
seja um pai no dia e local definidos, ele precisava que
a sua esposa também desejasse o mesmo (i.e., o com-
portamento das outras pessoas), que ambos tivessem
condições de fertilidade (i.e., condições biológicas e
ambientais), além de tantas outras variáveis que não
necessariamente dependiam diretamente do compor-
tamento de Marcos.

O controle dos sentimentos também é um obje-


tivo para muitos pacientes. Marcos desejava não sen-
tir raiva e ressentimento. No entanto, assim como os

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 69

outros objetivos, o controle da subjetividade não de-


pende diretamente de algo que o Marcos possa fazer.
Neste sentido, objetivos não estão na área de influên-
cia direta de um terapeuta. A influência direta da te-
rapia está na ação dos sujeitos, enquanto os objetivos
são produtos dessas ações que dependem de muitas
outras coisas. Portanto, uma terapia baseada em obje-
tivos está fadada ao fracasso.

Quero ser claro: toda terapia precisa de objetivos,


mas não pode basear o seu sucesso na consecução
deles. Uma vez que o escopo da terapia está na ação
dos sujeitos, mas não garante o resultado extrínseco
a estas ações, o nosso critério precisa ser coerente
com a área de impacto real da terapia: a ação hu-
mana. O campo das ações significativas se relaciona
diretamente com o conceito de Valores.

Este é nosso segundo conceito. Valores são qua-


lidades da ação do sujeito que ele mesmo considera
como significativas. Em outras palavras, valores não
são sobre o final da jornada, mas sobre quem o su-
jeito se torna enquanto caminha para lá. Seguindo
esta lógica, Clareza sobre Valores envolve identificar
porque é importante para o Marcos que a esposa o
ouça, que a raiva não o controle, que os colegas de
trabalho o reconheçam, etc. Viver (ação) buscando

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70 TIAGO FERREIRA

conexão íntima (qualidade) com pessoas significa-


tivas descreve um valor importante para Marcos e
depende de Flexibilidade Psicológica.

Quando os valores são identificados, não precisa-


mos mais estar vinculados apenas ao futuro, mas há
uma abrangência maior de ação. Por exemplo, se “agir
cultivando o suporte mútuo” é o valor em questão, ele
não depende do casamento para acontecer. Hoje mes-
mo ele pode ser vivenciado com as pessoas (amigos,
colegas, etc.) ao meu redor. Neste sentido, objetivos
são pontuais e voltados para o futuro, mas valores são
abrangentes e vivenciados no aqui e agora. Podemos
utilizar a mesma lógica para outros objetivos. Se “in-
teragir intimamente” é o valor buscado, Marcos pode
se vulnerabilizar frente a pessoas significativas como
parte do caminho, mesmo quando, eventualmente,
não tiver um feedback gentil para esta interação. Não
se trata do objetivo conseguido, mas do compromisso
com os valores que tornam a jornada significativa.

Em linhas gerais, os pacientes trazem objetivos


para a terapia ao passo em que terapeutas investigam
quais valores são subjacentes a tais objetivos. Diversos
exercícios terapêuticos para identificação de valores,
estimulam os pacientes a se imaginarem no final de
suas vidas, em uma idade bastante avançada, olhando

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 71

para sua trajetória pregressa e trazendo à tona: “O que


seria insuportável perceber ao examinar como viveu
a sua vida? Por outro lado, o que seria um modo de
viver que, ao fim e ao cabo, te faria atestar que a sua
vida foi significativa e relevante?”. Olhar para o modo
como nos engajamos na vida é uma porta aberta para
dar sentido ao que temos vivido.

Para além de objetivos e valores, dois outros con-


ceitos são absolutamente necessários para nos trazer
clareza à jornada vivida. Todos temos diversos valores
que podem gerar certa tensão em nossas escolhas. Por
exemplo, se em relação à carreira tenho como valor
“Ser relevante para as pessoas através do que aprendi es-
tudando” e, em relação à parentalidade, “Ser um pai
presente, que gasta tempo com os filhos”, então contex-
tos de escolhas vão evocar certa tensão. Pode ser que o
final de semana seja um gatilho para escolher entre ir
a um parque com os filhos ou fazer um curso online.

Empreguemos os termos corretos: as diferentes


áreas da vida, para as quais podemos mobilizar va-
lores diversos, são chamadas de Domínios de Valor.
Como exemplos, temos a carreira, a parentalidade,
os relacionamentos conjugais, a espiritualidade, o la-
zer, as amizades, etc. Por sua vez, em cada um destes
domínios, valores diferentes podem estar em tensão

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72 TIAGO FERREIRA

entre si (e.g., “ser um pai presente” e “ser relevante


na carreira”). Esta tensão não é, teoricamente, algo
patológico. Pelo contrário, a tensão entre diversos
valores faz parte do tecido da vida que mobiliza a
necessidade de escolhas.

Chamo o sistema de interação entre os valores


de um mesmo sujeito de Ecologia de Valores. Neste
sistema, assim como qualquer sistema ecológico, é a
tensão que mantém a condição vital. Da mesma for-
ma que uma floresta tem constante tensão e compe-
tição entre os seus partícipes, assim também a tensão
entre os nossos valores mantém a nossa vitalidade.
Por exemplo, se eu decidir encerrar a tensão entre
“pai presente” e “carreira relevante”, assumindo ape-
nas um destes valores, serei ou um pai frustrado, ou
um profissional desmotivado. Se, pelo contrário, eu
puder contemplar a minha própria ecologia de valo-
res, saberei que escolhas não dependem de certezas,
mas de coragem.

É por isso que as escolhas diferem de decisões. De-


cidir é optar pelo mais lógico entre dois caminhos
alternativos. Apresentamos as razões, percebemos
qual a razão mais forte e decidimos (e.g., um teste de
matemática). Escolhas envolvem razões, mas não se
limitam a elas. Quando temos razões para ambos os

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 73

caminhos (e.g., ir ao parque ou fazer o curso online),


escolhemos com nossa subjetividade integral: razões,
sentimentos, valores, etc. (e.g., a escolha de manter
ou encerrar um relacionamento afetivo).

Boa parte das pessoas gasta tempo e energia levan-


tando razões para delinear a resposta certa. A verdade
é que, quanto mais inteligentes elas forem, mais ra-
zões elas conseguirão elencar para ambos os lados. As
escolhas possuem, em sua essência, a integralidade do
sujeito e a aceitação dos riscos. Neste sentido, toda
escolha pressupõe uma apreciação da Ecologia de Va-
lores envolvida, aceitação dos sentimentos de incerte-
za e um compromisso com os valores assumidos para
aquela situação específica.

Como terapeutas, somos frequentemente convo-


cados a auxiliar os nossos pacientes a descobrirem a
“resposta certa”. Como vivemos na mesma cultura
que os nossos pacientes, nossa “máquina resolvedo-
ra de problemas” (isto é, nossa mente) também nos
conta a história de que deveríamos saber quais as
respostas. É preciso Flexibilidade Psicológica para
lidar com a angústia de não saber qual o caminho
“certo” e, ao mesmo tempo, bancar as próprias es-
colhas. Em um certo sentido, terapeutas precisam
devolver ao sujeito a sua condição de ser responsável

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74 TIAGO FERREIRA

no mundo e não os isentar dessa difícil tarefa do


ser humano: deliberar. Foi assim com o Marcos e é
assim com todos nós.

3.3. Flexibilidade Psicológica:


o desafio

Flexibilidade Psicológica é condição para uma vida


significativa e o principal desafio da prática clínica. Os
três pilares (i.e., Abertura, Presença e Compromisso)
são habilidades para podermos nos relacionar com a
nossa própria subjetividade com uma percepção in-
tencional para as oportunidades que o entorno nos
oferece a fim de viver o que vale a pena. Se é assim,
por que diversos terapeutas ainda não conseguem ser
relevantes para os pacientes que os procuram? Embo-
ra as respostas possam ser diversas, seguramente uma
parcela significativa dos nossos colegas não consegue
“sair da própria mente” para conseguir estar na sessão
“para o paciente”.

É neste sentido que o desafio da Flexibilidade


Psicológica é o desafio de amar. Para que eu consiga
amar o outro (seja um filho, amigo ou paciente) é
necessário que, no mínimo, eu possa estar conectado
a quem o outro é e às suas necessidades. Como fazer

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 75

isso se continuo controlado pela necessidade de fugir


do desconforto e com uma atenção voltada para meus
autoconceitos, ruminações ou preocupações futuras?
Para amar, eu preciso ter abertura, presença e com-
promisso com valores que envolvam o outro.

Um pai que não possui Flexibilidade Psicológica


não se relaciona com o filho, mas com seus próprios
pensamentos sobre como o filho deveria ser. Um
terapeuta que não possui Flexibilidade Psicológica
não se conecta com o paciente, mas com suas pró-
prias crenças acerca do que “um terapeuta deveria
fazer”. Se os valores envolvem ser relevante para o
outro, os seis processos de Flexibilidade Psicológica
precisam ser a marca de qualquer relação intersub-
jetiva amorosa.

Uma vez que a Flexibilidade é tão relevante, ao


longo do desenvolvimento da Terapia de Aceitação e
Compromisso, diversas estratégias foram elaboradas
para mobilizá-la. No entanto, embora os processos de
mudança clínica sejam relativamente livres de barrei-
ras culturais, os procedimentos de intervenção pre-
cisam ter uma adaptação direta para a realidade dos
pacientes. Por desconhecerem este fato, uma expe-
riência comum a muitos terapeutas é a utilização de
procedimentos descritos em manuais clínicos apenas

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76 TIAGO FERREIRA

para notar que “o meu paciente não respondeu como


o paciente do livro”.

Isto implica dizer que os procedimentos dos ma-


nuais estão equivocados? Certamente que não. A
questão central é o papel que procedimentos, proto-
colos, exercícios deveriam ter em nossa prática clíni-
ca. Por exemplo, imagine um procedimento de Des-
fusão Cognitiva como o seguinte18:

Terapeuta: Estamos constantemente contando a


nós mesmos uma história sobre nossas vidas. No fun-
do, há uma voz que está sempre narrando as coisas
— nos dizendo quem somos, do que gostamos, como
as coisas estão indo e assim por diante. Está cons-
tantemente acontecendo e está narrando uma história
para você. A questão é: essa história é necessariamente
verdadeira? De onde veio isso? Por exemplo, se eu lhe
perguntar o que aconteceu três dias depois de seu dé-
cimo primeiro aniversário e quiser saber em detalhes
sobre esse dia, você poderia me dizer?

Cliente: Hmm. Não.

Terapeuta: [de brincadeira] Que tal quatro dias

18 Extraído e adaptado de Luoma, J., Hayes, S. & Walser, R. (2007). Learn-


ing ACT: an acceptance and commitment therapy skills training manual
for therapists. Oakland, CA: New Harbinger Publications.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 77

depois ou cinco dias depois? [pausa] Podemos tentar


até cem dias, e você pode pegar um ou dois detalhes.
Sabemos muito pouco sobre o que aconteceu em
nossas vidas. Nós nos lembramos de apenas alguns
fragmentos e juntamos essas pequenas peças em uma
história. Você vê isso? Temos esses pequenos fragmen-
tos de coisas que lembramos, e grandes porções do
que aconteceu estão faltando. Em seguida, tentamos
amarrar tudo junto e criar histórias para dar sentido
às peças que ainda lembramos. Contamos essas his-
tórias para nós mesmos com frequência. Concluímos
coisas sobre nós mesmos — do que somos capazes,
quem somos — e então, vivemos disso.

Cliente: Entendo.

Terapeuta: Curiosamente, essas histórias aumen-


tam. Nossas mentes continuam absorvendo coisas
novas. E isso não é algo que simplesmente aconte-
ceu no nosso passado; está acontecendo agora. Va-
mos fazer um exercício sobre o novo conteúdo sendo
adicionado o tempo todo e, sobre como geralmente
nem o reconhecemos. Vou falar sobre uma criatura
imaginária chamada Gub-Gub. Se você se lembra do
que o Gub-Gub diz, então temos um milhão de dóla-
res reservados para dar a você. Você está pronto? Aqui
está. Gub-Gubs fazem “Wooo”. Você pode dizer isso?

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78 TIAGO FERREIRA

Cliente: Wooo.

Terapeuta: Agora, não se esqueça disso. Por-


que se eu perguntar a você amanhã e você receber
aqueles milhões de dólares, vale a pena. O que os
Gub-Gubs dizem?

Cliente: Wooo.

Terapeuta: Ok, agora tenho que deixar você saber


que não há um milhão de dólares. Então você pode
simplesmente esquecer. O que os Gub-Gubs dizem?

Cliente: [risos] Uau.

Terapeuta: Suponha que eu voltasse em um mês.


Você sabe o que os Gub-Gubs dizem?

Cliente: Certo.

Terapeuta: Que tal dois meses? Um ano? O que os


Gub-Gubs dizem?

Considere que esta intervenção (que não se encerra


na citação acima) possui o objetivo de auxiliar o pa-
ciente a experimentar os pensamentos como um pro-
cesso comportamental contínuo, longe do significado
literal do conteúdo da mente. Embora os princípios
utilizados para construção da intervenção estejam ade-
quados, dificilmente utilizaríamos este exato forma-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 79

to bem-humorado com pacientes que, por exemplo,


estão lidando com memórias e pensamentos difíceis
sobre traumas relacionados a abuso sexual. Assim tam-
bém, você pode pensar que esta mesma intervenção
não seria bem recebida por boa parte dos pacientes
adultos brasileiros. Então, para que serve a descrição
de tal procedimento em um manual clínico?

As intervenções dos protocolos devem ensinar a


lógica presente nas intervenções que mobilizam Fle-
xibilidade e não apenas a sua forma. Cabe à comuni-
dade brasileira (ou de qualquer outra cultura) adaptar
as estratégias para a sua realidade clínica, mantendo
os princípios da intervenção (i.e., a mobilização dos
processos) enquanto utiliza uma linguagem que seja
relevante para os seus pacientes. Para o terapeuta in-
dividual, cabe uma segunda adaptação: aquela que
corresponde ao seu estilo terapêutico pessoal e às
características do paciente específico que está aten-
dendo. Em suma, os manuais oferecem intervenções
que ensinam os princípios que devem ser adaptados
para diferentes comunidades verbais e, mais especifi-
camente, para o caso clínico individual.

A mera reprodução dos procedimentos de inter-


venção dos livros não honra a história de vida do tera-
peuta que imprime nele um estilo terapêutico único.

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80 TIAGO FERREIRA

A responsabilidade do terapeuta, então, envolve ter


clareza sobre os processos de Flexibilidade Psicológica
a tal ponto em que possa ter uma criatividade respon-
sável: utilizar o seu estilo pessoal e terapêutico único
para mobilizar os processos clínicos que já são valida-
dos pela pesquisa científica nacional e internacional.

Por exemplo, eu me lembro de um jovem terapeu-


ta que, através da utilização de fotografias, conseguia
ajudar pacientes a mobilizarem um Self Observador.
Quando as pessoas se viam em fotografias, conse-
guiam ter uma perspectiva de si ampliada e notar as-
pectos de suas próprias ações que não reconheciam
anteriormente. Outra terapeuta admirável utilizava a
construção lúdica de histórias fictícias para aumentar
a percepção e acolhimento de pensamentos difíceis.
Eu não preciso utilizar as mesmas estratégias (aliás,
sou um fotógrafo bem ruim!), mas tenho a missão de
perceber quais aspectos do meu repertório mobilizam
os seis processos de Flexibilidade.

Tais exemplos tratam de “criatividade” porque


envolvem o repertório pessoal do terapeuta, baseado
em sua história de vida, e “responsabilidade” porque
dependem de uma percepção acurada dos princí-
pios ensinados pelo modelo clínico. Não é um “tudo
vale”, mas uma avaliação responsável dos processos e

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 81

de quais procedimentos são efetivos em sua mobiliza-


ção na prática clínica real.

A multiplicidade de intervenções presente na lite-


ratura também apresenta outro desafio para a forma-
ção de novos terapeutas: É muito fácil tornar-se um
terapeuta “caixa de ferramentas”. Quando o terapeu-
ta não se apropriou do modelo de Flexibilidade, mas
apenas dos procedimentos de intervenção, ele pode
ser tentado a utilizar múltiplas técnicas (e.g., diversas
metáforas, exercícios experienciais, etc.) de maneira
pouco coerente entre si. O desafio da clínica, então, é
buscar estratégias que sejam integradoras dos seis pro-
cessos de Flexibilidade Psicológica e, ao mesmo tem-
po, significativas para a realidade cultural de pacien-
tes e terapeutas. É necessário lembrar que o processo
terapêutico é também um ambiente de aprendizagem
para o paciente. Neste sentido, consistência é impor-
tante para que um novo repertório seja adquirido.

Em relação à formação de novos terapeutas, a


constatação da necessidade de honrar a história de
vida dos terapeutas e pacientes, ajudando terapeu-
tas a desenvolverem formas de intervir integrando
os seis processos de Flexibilidade tem sido o meu
desafio pessoal. As Narrativas Funcionais têm sido a
minha resposta para este desafio. Ao longo de quase

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82 TIAGO FERREIRA

duas décadas, tenho encontrado nesse método nar-


rativo a melhor forma de integrar diferentes estilos
terapêuticos a uma prática responsavelmente funda-
mentada nas evidências científicas sobre Flexibilida-
de Psicológica.

O que vou expor agora é o produto de uma in-


cansável investigação da teoria e da prática clínica
da Terapia de Aceitação e Compromisso aplicada ao
contexto clínico brasileiro.

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CAPÍTULO 4

NARRATIVAS PARA UMA


VIDA SIGNIFICATIVA:
UMA PERSPECTIVA DA
FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 85

C
ontar histórias é tanto essencial quanto ine-
vitável. Por um lado, contamos histórias para
sabermos quem somos e qual nosso lugar no
mundo. Por outro lado, aprendemos a contar his-
tórias para sobreviver nos grupos que participamos,
começando pela nossa família. Não é sem propó-
sito que Harari19 defende que uma das principais
características da espécie Sapiens, que nos levou a
prevalecer sobre as demais espécies, colocando-nos
no topo da cadeia alimentar, é a nossa capacidade de
construir narrativas ficcionais.

Outros animais podem comunicar-se e organizar


atividades, mas apenas em grupos relativamente pe-
quenos. É a capacidade de organização social em tor-
no de mitos, símbolos e ficções (i.e., narrativas) que
habilita os humanos a conseguirem coordenar ativi-
dades entre grupos tão grandes quanto corporações,
países e religiões. Estamos no topo da cadeia alimen-
tar porque narramos.

Desconfio que a maioria de nós não tem proble-


mas em admitir que as narrativas são essenciais para
entendermos a nós mesmos e ao mundo, assim como
em admitir que são inevitáveis quando vivemos em

19 Yuval N. Harari, Sapiens: A Brief History of Humankind, Signal paperback


edition (Toronto, Ontario: Signal, McClelland & Stewart, 2016).

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86 TIAGO FERREIRA

grupo. No entanto, esta não é a faceta mais descon-


certante acerca das narrativas. Quando narramos
algo sobre nós mesmos e sobre o mundo, não apenas
descrevemos, mas transformamos a nós mesmos e ao
mundo. As Ciências Comportamentais Contextuais20
já possuem um vultuoso corpo de evidências que
atesta este poder transformador das narrativas, mas
a nossa vida cotidiana pode nos suprir com exemplos
ainda mais convincentes.

Me lembro quando senti muita raiva por ter que,


praticamente todos os dias, colocar limites em meu
filho adolescente. Como ele podia fazer isso comigo?
Eu estava me sentindo a própria imagem do carrasco,
mas ele todos os dias parecia me oferecer um novo
desafio. Estava desanimado e realmente achando que
eu estava errando muito como pai. Até que, em uma
das conversas com minha esposa, inserimos esta etapa
em outra narrativa: já que ele estava entrando na ado-
lescência e este é o período em que ele precisa afirmar
sua identidade como diferenciada dos pais, o desafio
constante é saudável para o seu desenvolvimento. O
papel dele é desafiar e o nosso papel (meu e de minha
esposa) é de continuarmos colocando os limites ne-

20 Programa de investigação científica no qual a Terapia de Aceitação e Com-


promisso está diretamente engajada.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 87

cessários. Está tudo bem sentir raiva dos desafios, mas


eles são parte do que deve ocorrer.

Antes dessa nova “moldura” para a situação que


estávamos vivenciando enquanto família, eu sentia
raiva das ações do meu filho adolescente, acrescida de
angústia e desesperança, mas depois dessa narrativa
acerca da “etapa do desenvolvimento”, minha rela-
ção com os desafios e com os sentimentos que eles
produzem em mim, foram transformados. Uma nova
narrativa, uma nova experiência subjetiva.

Narrativas são poderosas para atribuir sentido às


trajetórias de vida. Em uma palestra no Mounmouth
College, Dan McAdams (que é um importante pes-
quisador sobre identidade e narrativa), introduziu
o tema citando um trecho do livro “Harry Potter e
o Enigma do Príncipe”, escrito por J. K. Rowling.
Nesse trecho, Harry começa a entender um pouco
mais sobre Lord Voldemort (seu principal algoz).
Voldemort havia se tornado tão obsessivo por con-
seguir a imortalidade, que havia decidido usar um
feitiço que lhe daria esse prêmio em troca de algo
terrível: ele teria que dividir a sua própria alma em
diversos objetos mágicos.

O velho mago que contava esta história para


Harry estava horrorizado porque todos sabiam que

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88 TIAGO FERREIRA

a alma precisa ser íntegra, ser um todo — e não frag-


mentada. Como alguém poderia ter um pensamento
tão terrível como o de dividir a própria alma? Essa
narrativa fantástica esconde uma realidade presente
em todos nós: a necessidade de que a nossa alma seja
integrada em um todo coerente. Fazemos essa inte-
gração através das narrativas que construímos sobre
a nossa história de vida.

Desde muito cedo, aprendemos a tecer narrativas.


Quando crianças, somos ensinados a dar sentido a
coisas que aconteceram: “por que você bateu no seu
irmão?”, “me conte o que aconteceu na escola hoje” ou
“o que aconteceu para você estar tão irritado?”. Estas
são perguntas que estabelecem um reconhecimento
social quando atribuímos um sentido ao que acon-
teceu e uma cobrança ou punição quando não te-
mos uma história para contar. Vivendo entre outras
pessoas, mesmo se não tivermos uma narrativa para
contar, precisaremos construir uma. Como produto
dessas interações sociais, nasce algo que considera-
mos extremamente individual e intrínseco: a neces-
sidade de entender o mundo e, em especial, o nosso
mundo pessoal.

Nós, basicamente, tentamos, através da nossa lin-


guagem, buscar ordem em meio a sucessão de eventos

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 89

que se desenrolam em um passado remoto ou próxi-


mo. São as nossas narrativas que possibilitam o senso
de unidade em nossa vida e, dificilmente, consegui-
ríamos viver sem esta percepção de unidade e integri-
dade. Essa história de construção faz com que todos
tenhamos um anseio por coerência e não descanse-
mos enquanto este anseio não tiver sido minimamen-
te suprido. O nosso self é produto de narrativas.

4.1. Narrativas e
organização subjetiva

O meu pai tem 80 anos. Tenho notado que, a me-


dida em que os anos passam, parece que ele desenvol-
ve uma progressiva necessidade de contar e recontar
suas histórias — mesmo que já as tenha contado di-
versas vezes. Ele até adquiriu uma estratégia: antes de
começar a história, ele diz “se eu já te contei, me avise
para que eu pare!”. Claro que, na maioria das vezes,
não avisamos mesmo se a história já tiver se repetido
diversas vezes. Quando adolescente ou recém ingres-
so na juventude, essa repetição me incomodava, mas
hoje entendo que há um processo vital nessa contação
de histórias. Quanto mais nos aproximamos cons-
cientemente de uma etapa tardia em nossa jornada,
mais precisamos atribuir sentido a quem somos hoje.

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90 TIAGO FERREIRA

Isso implica dizer que a nossa narrativa não fala ape-


nas do passado, mas organiza o nosso self atual com
propósito e sentido.

Essa “organização” é um elemento muito impor-


tante das narrativas sobre histórias de vida. Os even-
tos da vida, não necessariamente apresentam ordem
e controle. Pelo contrário, em um primeiro olhar,
a vida de muitas pessoas parece extremamente caó-
tica e arbitrária. Mas nós precisamos criar ordem e
sentido em meio aos eventos da vida e em sua in-
fluência sobre quem somos hoje. Nesta construção
de ordem, as narrativas envolvem esquecer alguns
eventos e evidenciar, fortemente, alguns outros para
gerar coerência e direção (sentido) na construção de
nossa individualidade.

Por exemplo, Steve Jobs (criador da Apple) narrou


em um discurso de formatura que ele fez um curso de
caligrafia na faculdade e que, na época, não conseguia
encontrar motivos para estar ali. Mas, anos depois,
fazendo uma narrativa de sua própria vida, perce-
beu o quanto aquele curso marcou sua identidade,
revelando e fortalecendo um senso de estética que se
tornou parte de sua marca pessoal em todas as suas
empreitadas. Certamente, Jobs fez várias outras coisas
em seu tempo de faculdade, mas para que a sua alma

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 91

não fosse dividida, para que existisse uma unidade no


processo, ele precisava ressaltar eventos (bem como
esquecer tantos outros), construindo uma narrativa
coerente sobre sua subjetividade atual. Isto quer dizer
que o sentido da história depende dos fatos objetivos,
mas não se limita a eles.

Uma característica importante das narrativas que


fazemos sobre nossa história é a de que elas não são
apenas uma sucessão de eventos, mas normalmente
estão organizadas em torno de algum tema: “o caos
da minha família e a minha tentativa de controle”,
“como meus pais me protegiam e me impediam de vi-
ver”, “meu esforço pessoal para ajudar meus irmãos a
terem um futuro na vida”. Estes temas, por sua vez,
costumam ser organizados sob a forma de rótulos
como Resiliência, Frustração ou Conexão. Smith21,
McAdams22 e outros pesquisadores já perceberam
que os temas não apenas descrevem os fatos, mas
também influenciam (regulam) parte do nosso
modo de agir no presente.

21 Emily Esfahani Smith, The Power of Meaning: Crafting a Life That


Matters, First Edition (New York: Crown, 2017).
22 Dan P. McAdams, “The Psychology of Life Stories,” Review of General
Psychology 5, no. 2 (June 2001): 100–122, https://doi.org/10.1037/1089-
2680.5.2.100.

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92 TIAGO FERREIRA

Estes pesquisadores notaram, por exemplo, que


pessoas altamente engajadas em contribuir com as vi-
das de outras pessoas são mais propensas a contar his-
tórias de vida em um sentido redentor — em outras
palavras, histórias que vão do mal ao bem. Por outro
lado, pessoas que narram suas vidas como se fossem
do bom ao ruim (McAdams chama essas histórias de
“contaminadas”) são menos dispostas a contribuir
com a sociedade e com as outras pessoas em geral.
Em linhas gerais, narramos nossa história e somos
altamente influenciados pela narrativa que criamos.
Tenho convicção de que meus pacientes não apenas
contam suas histórias, mas são frequentemente in-
fluenciados pelas histórias que contam.

No setting clínico, nos defrontamos diariamente


com este fenômeno. Um paciente diz que se perce-
be controlador e inflexível e que reconhece como
sua história familiar, de imprevisibilidade e caos, tem
uma influência grande em sua necessidade de contro-
le. Uma paciente diz que sua mãe sempre lhe dizia ser
“inadequada” e que hoje esse é o principal nome da
sua experiência subjetiva, tanto no trabalho quanto
nas relações amorosas. Um idoso procura o psicólogo
porque sente que a vida lhe marcou muito com de-
cepções e sofrimentos e que hoje ele se percebe “que-
brado”. Os nossos pacientes nos procuram com vidas

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 93

repletas da influência dessas histórias contadas por


eles mesmos, para eles mesmos.

Há, aqui, algo que é frequentemente encoberto


para os leigos que se interessam pela psicologia. Há
uma imagem de que, no setting clínico, contamos as
nossas histórias para resolver algo do passado; algo
como chegar a um núcleo armazenado em nós mes-
mos e que possui um “nó” que precisa ser desatado.
Pois bem, o que a psicologia clínica atual estuda não
é um “núcleo de experiências passadas” que está em
algum lugar inconsciente, mas o poder que uma nar-
rativa acerca da história de vida pode exercer sobre a
nossa trajetória psicológica atual. Construímos histó-
rias e, depois disso, as nossas histórias também nos
constroem.

4.2. Narrativa e identidade


Provavelmente, o exemplo mais dramático do po-
der organizador e transformador das narrativas é a
construção da identidade pessoal. A construção da sua
identidade inicia muito antes do seu nascimento. Isto
ocorre porque a identidade não é apenas algo subjetiva-
mente construído, mas diz respeito a quem nós somos
em relação às circunstâncias ao nosso redor, incluindo
nossos pares significativos. O que isso quer dizer?

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94 TIAGO FERREIRA

Se você nasceu mulher e negra, por exemplo,


uma série de circunstâncias se apresentam na cons-
trução de quem você é e de como você se sentirá
sobre você mesma e sobre os outros. Se você é um
homem branco que nasceu na década de 1960, as
suas circunstâncias vão dizer muito de como você
poderá falar, de como aprenderá a pensar, do que
vai valorizar ou repudiar. Será muito diferente da
identidade que você desenvolveria se tivesse nascido
nos anos 2000. Muito diferente! Acho que está bem
claro que quando te perguntarem “quem é você?” as
suas respostas não vão escapar de fazer referências a
sua relação com as suas circunstâncias — algumas
delas construídas em uma história anterior ao seu
próprio nascimento.

É claro que a construção da identidade não é de-


terminada pelo ambiente, mas acontece imersa em
nossa relação com esse ambiente. Tente responder
à fatídica pergunta: “Quem sou eu?”. Eu sou um
homem adulto, casado, pai de dois filhos, que ama
entender como as pessoas pensam/sentem e como
isso influencia na construção de suas vidas. Esse
pedacinho de minha identidade fala de gênero, de
papel social, de valores construídos em minha tra-
jetória e, sempre, fala de relacionamentos atuais e
passados. Fala também de como a minha cultura

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 95

estabeleceu regras e valores que já estavam vigentes


quando nasci e que se desenham desde antes dos
meus pais nascerem.

Conhecer a sua identidade implica em conhecer


a sua narrativa histórica. Narramos, em última ins-
tância, porque precisamos da estabilidade de uma
identidade reconhecida para seguirmos em frente
com segurança. Uma psicoterapia não pode se furtar
a proporcionar um contexto seguro para que narrati-
vas sejam construídas, visitadas e revisitadas, gerando
um self mais estável e uma identidade reconhecida.
Quem sou eu? “Eu sou eu e minha circunstância, e se
não salvo a ela, não me salvo a mim” (José Ortega y
Gasset em Meditações do Quixote).

4.3. Narrativas e Pertencimento


As nossas narrativas não apenas são formadas a par-
tir dos grupos que pertencemos, mas também permi-
tem o nosso pertencimento a estes grupos. Nos conec-
tamos com pessoas a partir das narrativas ficcionais e
reais. Você sabe que as grandes cidades são palcos de
histórias individuais e frequentemente solitárias. No
entanto, uma forma de conexão comum se dá por
meio de narrativas contemporâneas organizadas em sé-
ries de TV ou em livros. Dois estranhos se encontram

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96 TIAGO FERREIRA

e, ao iniciar uma conversa embaraçosa para “quebrar o


gelo”, descobrem que acompanham uma mesma série
de TV: a conexão magicamente acontece com risos e
exclamações que conectam os antes estranhos, agora
ligados por uma narrativa ficcional.

Essa experiência é elevada a outro nível quando


a narrativa que conecta essas pessoas é uma narrati-
va da história de vida pessoal. É verdade para a vida
em comum, é verdade para o consultório de psico-
logia. No espaço clínico, logo depois de ouvir uma
narrativa dolorosa, eu sempre fui tomado por um
sentimento de muita reverência e admiração e, não
raro, usava alguma sentença como “muito obrigado
por me confiar esta história e por me permitir fazer
parte desse momento de conexão”. A reverência por
uma história de vida narrada pelo seu protagonista
é uma característica necessária para qualquer tera-
peuta que compreende a gravidade do seu papel
em fazer parte de uma conexão que visa crescimen-
to bilateral.

Por sua vez, a literatura científica é pródiga em re-


conhecer o poder que a experiência de pertencimento
possui na construção de uma vida saudável e signifi-
cativa23. Na verdade, pertencimento é um dos anseios

23 Smith, The Power of Meaning.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 97

psicológicos que as Ciências Comportamentais Con-


textuais têm estudado como relevante para que obje-
tivos terapêuticos sejam alcançados. Pois bem, narra-
tivas conectam pessoas e produzem a experiência de
pertencimento que tantos de nós ansiamos e busca-
mos, quer seja de modo consciente ou inconsciente.

Antes de continuarmos, é importante que você


possa se dar conta de quais narrativas você tem cons-
truído sobre a sua história pessoal e do impacto que
elas têm sobre a sua vida atual. Tente um pequeno
exercício comigo:

1. Traga à memória alguma situação em que você


precisou contar para alguém um pouco da sua
história. Alguns de nós podemos ter feito isso
em terapia, mas, certamente, a maioria de nós já
contou um pouco de si em algumas situações di-
ferentes. Se você puder lembrar de mais de uma
situação, será ótimo.

2. Olhando para as narrativas que você construiu ao


longo do seu caminho, você poderia pensar em
um tema predominante? Talvez ajude se você pu-
der pensar como um enredo de um filme ou de
uma série. Em geral, o tema envolve sair de um
ponto A para um ponto B.

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98 TIAGO FERREIRA

3. Se a sua vida fosse dividida em capítulos, quais


seriam eles? O que permaneceu estável em você
durante os capítulos? O que evoluiu? O que ama-
dureceu, mas permaneceu presente?

4. Como você se sente quando relembra essa narra-


tiva? Ela te traz bons sentimentos e pensamentos
sobre si mesmo? Ou ela faz com que você queira
rapidamente parar de contar a história para que
ela não te machuque muito?

5. Essa é uma pergunta muito importante para o


nosso próximo capítulo: em sua narrativa, o pro-
tagonismo é assumido pelo que as pessoas fizeram
com você ou o protagonismo é seu, com o impac-
to das suas ações sobre outras pessoas?

Algumas destas perguntas podem tocar em pon-


tos sensíveis. Seja gentil com você mesmo ao longo
deste processo. Se perceber que algo foi tocado de
forma especial e que precisa ser melhor elaborado,
procure ajuda. Por vezes um terapeuta ou supervisor
é a melhor opção, mas, em geral, uma pessoa queri-
da disposta a ouvir e acolher é essencial.

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CAPÍTULO 5

NARRATIVAS FUNCIONAIS:
UM MÉTODO PARA
MOBILIZAÇÃO DE
FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 101

O
que acontece quando um paciente conta a sua
história de vida? Em primeiro lugar, ele escolhe
personagens. Ele pode falar de parentes (e.g.,
mãe, pai, tios), de amigos (e.g., da escola, do bairro,
da igreja, etc.) ou de outras pessoas relevantes (e.g.,
funcionários da casa, amigos da família, etc.), assim
como pode falar de si próprio como um personagem
principal ou secundário. Concomitantemente, o pa-
ciente constrói um enredo que versa sobre como os
personagens se relacionaram entre si, frequentemen-
te avaliando estas relações como boas ou ruins, ade-
quadas ou inadequadas, violentas ou pacíficas, bem
como alguns produtos destas relações.

Por exemplo, eu me lembro de uma paciente que


narrou o fato de ter sido a filha caçula como algo que
levou os pais a tratarem-na como especial e detento-
ra de um futuro promissor, ao passo que os irmãos
a rejeitavam como sendo a preferida dos pais. Ela,
então, se aproximara ainda mais dos pais e se afas-
tara progressivamente destes irmãos, tornando-se
(em suas palavras) tímida e isolada. Esta narrativa a
ajudava a ofertar razões para sua timidez atual e sua
dificuldade de fazer novas amizades. Neste sentido,
esta narrativa era frequentemente utilizada para se
defender quando o terapeuta a convocava a se vul-
nerabilizar e aumentar a confiança na relação tera-

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102 TIAGO FERREIRA

pêutica. Há aqui algo sutil, mas importante: o que


aconteceu no passado certamente teve influência na
construção dos relacionamentos atuais da paciente,
mas a narrativa que ela constrói hoje também possui
uma influência direta na maneira como ela se com-
porta hoje. São dois elementos diferentes: (1) o que
aconteceu no passado e (2) a narrativa atual sobre o
que aconteceu no passado.

É neste sentido que a narrativa é performativa.


Sendo mais do que uma história, ela reorganiza a
experiência atual enquanto é contada24. A mobiliza-
ção de Flexibilidade Psicológica, por sua vez, é uma
reorganização da maneira pela qual nos relacionamos
com nossa subjetividade e com os desafios do coti-
diano. Neste sentido, Narrativas Funcionais são for-
mas de construções narrativas que auxiliam o sujeito
a desenvolver mais Flexibilidade Psicológica nas seis
dimensões psicológicas.

Tornando o conceito mais claro, Narrativas Fun-


cionais são histórias que apresentam as relações en-
tre os componentes da subjetividade (pensamentos,
sentimentos e comportamentos), como protagonistas
e o desenvolvimento de sua função nos diversos sis-

24 Eva Illouz, Cold Intimacies: The Making of Emotional Capitalism (Cam-


bridge, UK ; Malden, MA: Polity Press, 2007), 123.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 103

temas de relacionamento de um sujeito como prin-


cipal enredo. As Narrativas Funcionais, no contexto
da Terapia de Aceitação e Compromisso, não são um
método de avaliação, mas um método de intervenção
para mobilização de Flexibilidade Psicológica. Vamos
para um exemplo prático.

Este é um caso fictício que tenho usado com meus


alunos e, frequentemente, auxilia na compreensão
das Narrativas Funcionais. Espero que também seja
útil para você. Bruno é um jovem de 27 anos que
procurou terapia online com a seguinte queixa:

Sempre tive pensamentos e imagens que apareciam


“do nada” durante o dia. A noite era pior, com vá-
rios pesadelos muito reais que me deixavam com
medo de dormir. Tanto que, desde muito novo, eu
ficava acordado toda a noite e dormia (pouco) du-
rante o dia. Como eu fazia home schooling, conse-
guia ajustar os horários para estudar no final da
tarde e a noite. Mas agora, estou sentindo uma
fadiga constante, os pensamentos estão mais fortes
e eu já não consigo falar com ninguém porque a
irritação e agressividade ficaram muito fortes. Co-
nheci uma pessoa e quero chegar mais perto dela,
mas sinto muita ansiedade todas às vezes que a vejo
e não quero estar com ela desse jeito.

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104 TIAGO FERREIRA

O que segue agora é um relato do Bruno sobre a


sua própria história de vida. Note que a narrativa não
é, em um primeiro momento, funcional. Isto é, os
personagens não são os pensamentos, sentimentos e
comportamentos contextualmente situados, mas são
as pessoas e os acontecimentos. No entanto, este pri-
meiro relato vai nos ajudar a construir a Narrativa
Funcional com o Bruno. Um alerta: qualquer seme-
lhança do caso com um personagem de quadrinhos
ou filmes de heróis não é mera coincidência. Fica
para você descobrir qual a referência!

Quando estava com 7 anos, eu estava correndo pelo


quintal da casa (era uma casa bem grande, com
uma área de fazenda) e caí em um buraco que, na
verdade, era uma gruta. Machuquei a perna e fi-
quei sozinho, no escuro, com vários bichos aparecen-
do (até mesmo morcegos) até que o caseiro (Alfredo)
apareceu com o meu pai (Tomás) e me resgataram.

Depois disso, eu fiquei com muito medo de ficar


sozinho, de dormir sozinho. Tive muitos pesadelos.
Minha mãe (Marta) me dizia que homens não
tinham medo e que eu precisava vencer isso para
ser forte como meu pai. Mas eu já não conseguia
ir para a escola, porque todos os colegas e professo-
res ficaram sabendo do ocorrido e me perguntavam

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 105

sobre o que tinha acontecido. Quando eu começava


a falar, a respiração faltava, eu tinha uma sensação
de morte, tudo ficava “embaçado”. Hoje acho que
eram ataques de pânico.

Meu pai achou que eu estava muito estressado e


resolveu me levar, com a minha mãe, para o cine-
ma. Eu até hoje lembro que o filme era “A Marca
do Zorro”. Quando as cenas com o Zorro (de capa
preta, em um cavalo preto, à noite) começaram a
acontecer, eu comecei a ter o ataque de pânico nova-
mente, comecei a pensar que meu pai iria ficar tris-
te comigo porque eu tinha medo e era fraco. Tentei
disfarçar, mas o meu pai notou e nos chamou para
sair pela porta de emergência do cinema (que ficava
no centro da cidade).

A porta de emergência dava para um beco escuro ao


lado do cinema. Quando estávamos saindo (eu esta-
va morrendo de medo de levar uma bronca do meu
pai), um ladrão apareceu e tentou roubar o colar da
minha mãe. Meu pai reagiu e o ladrão atirou nele e
na minha mãe. Eu não lembro de muita coisa depois
disso… só lembro do meu pai me dizendo que esta-
va tudo bem, que eu não precisava sentir medo. Eles
morreram ali mesmo. Depois disso, eu lembro do Al-
fredo chegando com a polícia e me levando para casa.

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106 TIAGO FERREIRA

Eu tinha cada vez mais pesadelos (dormindo e acor-


dado) e não conseguia ver mais ninguém além do
Alfredo. Foi ele que cuidou de mim, fazia o home
schooling, me protegia. Sei que a culpa da morte dos
meus pais foi minha: meu medo fez o meu pai nos
tirar do cinema. Fiquei cada vez mais recluso e até
hoje não consigo me relacionar com muitas pessoas.
Como o meu pai tinha muitos bens, eu nunca pre-
cisei trabalhar para me sustentar.

Dormindo pouco, sem muitas pessoas para atrapa-


lhar a minha rotina, eu não tenho tantos ataques de
pânico ou flashbacks. O problema é que no último
curso online que estava fazendo (um curso do FBI
sobre como fazer perfis de criminosos), eu conheci
a Raquel. Ela é uma brasileira que também está
fazendo o curso e nós começamos a conversar. Ela
topou vir até minha cidade e foi ótimo conversar
com ela na minha fazenda.

Mas, quando ela insistiu para irmos a um restau-


rante na cidade, eu comecei a ficar nervoso… pensei
que ela ia perceber que eu era um maluco, que ela
iria rir de mim. Depois disso eu só lembro que come-
cei a falar como ela era invasiva, tentando mandar
na minha rotina… ela ficou assustada (eu acho) e
eu comecei a ficar mais nervoso ainda… não sabia

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 107

o que dizer, mas ficava pensando que ela ia me ver


como um fracasso, como um medroso… meu ouvido
disparou com um zumbido alto e eu não conseguia
mais entender o que ela estava falando. Ainda bem
que Alfredo chegou na hora e nos levou para dentro.
Foi aí que decidi fazer a terapia online.

Agora vamos partir para a construção da Narrativa


Funcional (NF).

5.1. Identificando os personagens


Os personagens da NF não são Bruno, Raquel, Al-
fredo ou quaisquer outras pessoas, mas os sentimen-
tos, pensamentos e comportamentos do Bruno (que
é o nosso paciente). As perguntas do terapeuta, então,
precisam ajudar o paciente a assumir uma perspectiva
de observador em relação a estes personagens. Vou te
mostrar como seria um diálogo típico utilizando o
método das NF e explicar o que está acontecendo em
cada momento em relação aos processos de Flexibili-
dade Psicológica.

T25: Eu acho que comecei a entender melhor


quando você me disse que conheceu alguém impor-
tante, mas que está afastando-a cada vez mais. Pare-

25 Terapeuta.

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108 TIAGO FERREIRA

ce que o seu corpo “grita” para você que algo ruim


vai acontecer se você se aproximar. Qual o nome
que você dá para este “grito” do seu corpo?

(A nomeação pretende ajudar o paciente a ter uma


perspectiva de observador sobre a experiência subjetiva.
Neste caso, gerando uma curiosidade sobre as emoções e
reduzindo a evitação experiencial.)

B26: Eu não sei… ansiedade talvez…

T: Entendi. Na história que você me contou, você


consegue ver quando seu corpo precisou aprender a
dar este alerta para você? Você já sentiu esse tipo de
ansiedade antes?

(Perceba que o terapeuta utiliza sempre uma lin-


guagem em terceira pessoa: “o seu corpo”, “a ansieda-
de”. Além disso, ao inserir o “precisou aprender”, o te-
rapeuta inicia uma narrativa tornando a ansiedade o
personagem principal e construindo um enredo para
sua história.)

B: Mas claro! Você imagina o que é ser o filho


rico dos pais assassinados em uma cidade pequena?
Todas as pessoas da escola queriam saber mais sobre
como foi. Quando eu chegava na porta da escola,

26 Bruno.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 109

meu corpo parecia que ia explodir de tanta ansie-


dade. Ainda bem que o Alfredo decidiu que eu iria
estudar em casa.

T: Eu nem consigo imaginar o quanto deve ter


sido uma experiência dolorosa para aquela crian-
ça. É possível dizer, então, que essa ansiedade veio
como uma forma de proteger aquela criança dessa
experiência difícil?

(Para redução de evitação experiencial, o terapeuta


tenta aumentar o interesse do paciente na história do
sentimento. Lembre-se: Aceitação é, frequentemente,
uma atitude de curiosidade em relação aos próprios
sentimentos.)

B: Eu acho que posso dizer isso. É óbvio que eu


não “chamava” a ansiedade… mas entendo que ela
vinha para me defender.

T: Sim, não era algo que você tinha consciência à


época. Nesses momentos, quais as histórias que a sua
cabeça te contava?

(Além da dimensão dos afetos, o terapeuta começa


a investigar a dimensão da Cognição. Neste caso, uti-
lizando uma linguagem claramente de Desfusão Cog-
nitiva: “as histórias que a sua cabeça te contava”. Você
lembra do exemplo da Brené Brown?)

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110 TIAGO FERREIRA

B: Ah, que eu não era como os outros… que eles


eram burros e não entendiam o que estava aconte-
cendo comigo. Mas não eram só histórias, eram
verdades! Eles realmente não conseguiam entender.

T: Eu entendo. Mas independente de serem his-


tórias verdadeiras ou falsas, eu gostaria de notar que
a sua cabeça te contava estas histórias (que podem ter
sido bem verdadeiras) e quanto mais você as “compra-
va”, mais afastado das pessoas você ficava. A ansiedade
e as histórias parecem ter te protegido, mas também te
afastado das pessoas.

(O terapeuta não discute o conteúdo dos pensamen-


tos. A questão não é mudar os pensamentos do pacien-
te, mas alterar a forma como ele se relaciona com tais
pensamentos. Neste ponto, o terapeuta ajuda o paciente
a identificar como ele tem reagido à presença dos pensa-
mentos.)

5.2. Construindo um enredo para


os personagens

A história dos nossos sentimentos, pensamentos


e comportamentos é sempre uma história funcional.
Isto é, o papel que estes elementos da nossa subjeti-
vidade ocuparam nos diversos sistemas que fizemos

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 111

parte (e.g., família, amigos, etc.) constituem a sua


função nestes sistemas. Neste sentido, considerando
a história de vida, não há “pensamento disfuncional”.
Se os sentimentos, pensamentos e comportamentos
estão presentes, então eles tiveram alguma função em
nossa história.

A Narrativa Funcional mobiliza a tomada de pers-


pectiva do sujeito em relação aos seus eventos sub-
jetivos, ensinando-o a se relacionar com eles como
personagens significativos de sua história de vida.

Algumas vezes, nós identificamos personagens


(sentimentos, pensamentos e comportamentos) que
acompanham o paciente de uma maneira mais es-
tável ao longo de sua vida. Trata-se da identificação
dos Padrões Matriciais do paciente. Para o conceito
ficar claro, Contingências Matriciais são relações en-
tre eventos ambientais e psicológicos que produzem
padrões subjetivos (comportamentos, sentimentos e
pensamentos) fortes (frequentes ou intensos), está-
veis (ao longo da história), abrangentes (que ocor-
rem em múltiplos contextos) e que se mantém rela-
tivamente insensíveis a novas contingências27 a que
a pessoa é exposta.

27 Contingências são as relações entre o que o sujeito faz, pensa e sente (os
elementos da sua subjetividade) e o contexto em que ele vive.

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112 TIAGO FERREIRA

A primeira vez que ouvi a expressão “Padrão Ma-


tricial” eu era um aluno de graduação e estava em
uma palestra do professor Helio Guilhardi. Embora
o conceito que utilizo não seja exatamente o mes-
mo, penso que os textos de Guilhardi28 sobre o tema
são um trabalho pioneiro sobre a explicação funcio-
nal acerca dos componentes mais estáveis da nossa
subjetividade. Trata-se de uma perspectiva que foge
de explicações estruturalistas acerca dos componen-
tes da personalidade e, ao mesmo tempo, fornecem
um caminho útil para o desenvolvimento de uma
clínica que aborda tais componentes.

Considerando o papel funcional dos Padrões


Matriciais, uma Narrativa Funcional precisa sempre
mostrar os dois lados dos padrões: os contextos em
que eles ajudam o paciente e os contextos em que eles
têm trazido problemas para a vida do paciente. Uma
investigação dessa natureza pode ser feita a partir de
um diálogo como o seguinte:

T: Bruno, estou aqui pensando sobre outros con-


textos em que a sua cabeça te contava histórias sobre a
incapacidade das pessoas para te entender. Era apenas
em relação aos colegas de escola?

28 E.g., Guilhardi, H. (2015). Contingências de Reforçamento Matriciais.


Disponível em https://itcrcampinas.com.br/guilhardi/.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 113

(Terapeuta explorando a abrangência dos padrões


do Bruno.)

B: Eu sempre me senti diferente. Eu me lembro


que o Alfredo ainda insistiu para que eu me relacio-
nasse com alguns parentes distantes. Até um dia em
que ele insistiu muito e eu disse que ele não tinha
como me entender porque ele não era o meu pai. Eu
senti um conjunto de raiva, medo, tudo junto. E pas-
sei o dia trancado no quarto.

T: Entendi… eu não posso deixar de notar a se-


melhança com o que você me contou sobre a Raquel.
Parece que ela também insistiu para que você saísse
da sua “área de segurança” e a sua reação também foi
de afastá-la. Os sentimentos e pensamentos também
foram parecidos?

(Com esta pergunta, o terapeuta investiga tanto a


abrangência quanto a estabilidade do padrão. Aparen-
temente, em diversos contextos, ao longo de toda a vida
de Bruno, ele reage a contextos de potencial vulnera-
bilidade social com pensamentos, sentimentos e ações
semelhantes.)

B: Raiva, medo… e também pensando que ela


nunca iria me entender…, sim, eu não havia notado
que era um padrão.

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114 TIAGO FERREIRA

T: Parece que sua mente aprendeu desde cedo que,


quando há um sinal iminente de que você será ex-
posto socialmente, imediatamente os pensamentos e
sentimentos vem para te defender. Não são sempre
os mesmos, claro, mas parecem ser do mesmo “tipo”.

(A utilização do “precisou aprender” mais uma vez


serve para evitar que o paciente inicie uma luta contra o
padrão identificado. Queremos aumentar a Aceitação e
o Self Observador, e não a evitação experiencial.)

B: E o que faço para que eles parem? Alfredo já


está idoso e eu preciso viver…

T: Entendo, mas parece que este modo de pensar e


sentir já te ajudou em muitas situações, ou não?

(Ao invés de combater o conteúdo do pedido de Bru-


no, o que poderia levar para mais Inflexibilidade Psico-
lógica, o terapeuta orienta a atenção do paciente para o
caráter funcional do padrão.)

B: Claro! Eu sempre aprendi a dar limites claros


para as pessoas. Se não fosse assim, alguém já teria
roubado a herança da família. Desde criança, aprendi
a me proteger.

T: Excelente! Esse modo, então, te ajudou a sobre-


viver. Qual o nome que podemos dar para esse modo
sobrevivência?

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 115

(O terapeuta confirma o papel funcional do repertó-


rio e tenta uma nomeação para aumentar ainda mais a
tomada de perspectiva do paciente.)

B: Eu acho que dá para chamá-lo de Vigilante.


(rindo)

T: (também rindo) Eu concordo. Então, se estou


entendendo bem, o Vigilante precisou estar presente
para te proteger, mas hoje ele também aparece quan-
do você não quer ser protegido. É isso?

(O nome “Vigilante” possui duas características ex-


celentes para um Padrão Matricial: foi uma nomea-
ção dada pelo próprio paciente e possui componentes
de humor. A utilização de humor nas Narrativas pode
ajudar o paciente a não ficar sob controle do conteúdo
literal dos seus pensamentos.)

B: Com certeza.

T: Então talvez tenhamos que, primeiro, reconhe-


cer quando o Vigilante aparecer. Se conseguirmos
notá-lo na sala quando, por exemplo, ele estiver aqui
entre nós, podemos aprender a lidar melhor com ele.

(O Terapeuta começa a orientar a atenção do pa-


ciente para a ocorrência do Padrão Matricial no mo-
mento presente.)

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116 TIAGO FERREIRA

A identificação do Padrão Matricial é fundamen-


tal para entender como os processos de Inflexibilida-
de Psicológica ocorrem para um paciente específico.
A queixa do Bruno envolvia:

· Pensamentos e sentimentos difíceis, vinculados à an-


siedade e raiva.

· Dificuldade de relacionamento com novas pessoas.

Uma vez que o “Vigilante” foi identificado, a pre-


sença destes sentimentos, pensamentos e comporta-
mentos faz todo o sentido — para o terapeuta e para
o paciente. A narrativa da própria história de vida faz
com que o paciente não “patologize” a sua própria
subjetividade, mas consiga dar um novo significado
para sua ocorrência atual. Em outras palavras, com a
história que o paciente teve, não é anormal que estes
pensamentos e sentimentos estejam presentes hoje. O
desafio não é mandá-los embora (afinal eles possuem
uma função em sua vida ainda hoje), mas aprender a
lidar com a presença deles sem desistir de viver uma
vida significativa.

A terceira etapa de uma Narrativa Funcional é o


reencontro do paciente com os personagens no mo-
mento presente.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 117

5.3. (Re)encontrando os
personagens hoje

Para que precisamos narrar a história do Padrão


Matricial dos nossos pacientes? Trata-se de uma estra-
tégia clínica para alterar a relação que estes pacientes
estabelecem com os componentes da sua subjetivida-
de hoje. Tanto a formulação de caso clínico quanto
as intervenções, seguem um movimento pendular:
o terapeuta ajuda o paciente a visitar a sua história
passada a fim de, logo em seguida, voltar ao presen-
te e reconhecer a ocorrência dos padrões matriciais.
A partir deste movimento pendular, os sentimentos,
pensamentos e comportamentos difíceis deixam de
ser uma “anormalidade” na vida cotidiana e ganham
sentido a partir da história de vida do paciente. Com
tal estratégia, o paciente nos procura para vencer a
luta contra a sua própria subjetividade, mas nós o
ajudamos a dar sentido a esta subjetividade.

Narrativas são, a rigor, novas molduras verbais


para o paciente ver sua subjetividade a partir de uma
nova perspectiva. Assim como a moldura de um qua-
dro nos ajuda a ter uma perspectiva diferente sobre o
conteúdo de uma pintura, diferentes contextos ver-
bais alteram a maneira como nos relacionamos com
os componentes do mundo público e privado. Por

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118 TIAGO FERREIRA

exemplo, imagine que, antes da pandemia, uma pes-


soa se percebe com tosse recorrente ao longo do dia,
associada com certa sensação de fraqueza. Estes sinto-
mas podem evocar certos pensamentos por parte da
pessoa (e.g., “tomara que essa tosse chata passe logo”),
alguns sentimentos (e.g., chateação pela persistência
da tosse) e comportamentos (e.g., tomar um xarope).
Agora imagine a mesma pessoa, com os mesmos sin-
tomas, no contexto da pandemia COVID-19. Imagi-
ne também que esta pessoa não teve contato pessoal
com ninguém que, efetivamente, teve a doença, mas
foi massivamente inserida em um contexto verbal
que alertava sobre os perigos dessa nova doença. So-
bre ela, ninguém sabia exatamente o que era, mas to-
dos promoviam a notícia de que era mortal. Mesmos
sintomas da doença… sentimentos, pensamentos e
comportamentos totalmente diferentes.

O nome técnico para esta mudança da função de


eventos do mundo e do nosso próprio corpo a partir
das narrativas que estamos inseridos é Recontextua-
lização Verbal. De uma forma simples, Recontex-
tualização Verbal é a inserção de eventos em novos
contextos verbais. Trata-se de estabelecer novas rela-
ções entre eventos, transformando a função que tais
eventos exercem nas contingências a que o indivíduo
é exposto.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 119

Novos contextos verbais transformam a forma


como lidamos com o mundo externo (e.g., lembre-
-se como uma nova informação pode mudar a sua
reação a uma pessoa amiga). Também transformam
a forma como lidamos com o nosso corpo (e.g., veja
o exemplo acima sobre os sintomas no contexto da
pandemia). No entanto, a transformação mais dra-
mática ocorre quando o alvo do contexto verbal é o
nosso mundo interior. Vivendo em um mundo que
prega um ideal de bem-estar e felicidade como sendo
o normal a ser vivido, qualquer estado de mal-estar se
torna um inimigo em potencial.

No entanto, assim como a recontextualização


verbal é, em grande medida, a responsável pela luta
contra nossos sentimentos e pensamentos, ela tam-
bém pode ser a melhor estratégia para transformar
a nossa relação com a subjetividade em algo pro-
veitoso. “Fogo contra fogo” — a recontextualização
verbal é a estratégia clínica por trás das Narrativas
Funcionais e encontra em sua essência o método por
excelência da Terapia de Aceitação e Compromisso.
Por definição, a ACT consiste em:

Ensinar o cliente a ver pensamentos e sentimentos


pelo que eles são (i.e., um processo mental emara-
nhado verbalmente) ao invés do que eles anunciam

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120 TIAGO FERREIRA

que são (e.g., o mundo compreendido; estrutura da


realidade). O terapeuta deve, com palavras, mudar
como as palavras funcionam para o cliente. O tera-
peuta deve lutar fogo contra fogo — e se manter sem
ser queimado. Esse é o paradoxo inerente no centro
de quase todos os aspectos da ACT29.

Para uma compreensão prática do potencial para


Recontextualização Verbal das Narrativas Funcionais,
retornemos ao Caso Bruno. Considere esta sessão
ocorrida após a identificação do Padrão Matricial
(i.e., o Vigilante):

Bruno inicia a sessão, sem dizer muito. Afirma que


está “tudo bem”.

T: Você tem falado com a Raquel?

(Como o paciente não inicia um tema específico, o


Terapeuta retoma o tema da sessão anterior.)

B: Não… ela era só uma distração. Essa relação


não tinha como funcionar. (Com um sorriso irônico)
Eu só vou conseguir namorar alguém quando o Alfre-
do morrer e a casa tiver mais espaço (rindo).

29 Steven C. Hayes, Kirk Strosahl, and Kelly G. Wilson, Acceptance and


Commitment Therapy: An Experiential Approach to Behavior Change (New
York: Guilford Press, 1999), 151. (Tradução Livre)

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 121

T: Mas, a Raquel te procurou? Te ligou?

(O terapeuta nota que a ironia pode ser uma esquiva


experiencial e retoma o tema.)

B: Ela mandou uma ou duas mensagens, mas eu


não respondi.

T: Entendi… como você se sentiu com essa ruptura?

B: Foi melhor assim. Tenho que me dedicar


para estudar criminologia. (logo em seguida, Bruno
começa a falar que tem achado interessante que em
sua cidade a criminalidade começou a reduzir depois
que notícias sobre um grupo (ou um indivíduo) come-
çou a entregar bandidos, amarrados e amedrontados,
na porta da delegacia).

T: Notei que você não respondeu minha pergun-


ta sobre os seus sentimentos com o afastamento da
Raquel…

(O terapeuta nota que a mudança de assunto é outra


forma de evitação experiencial e tenta trazer a atenção
de Bruno para o Contato com o Momento Presente da
relação terapêutica.)

B: Talvez sentimentos sejam supervalorizados…


eu acho que a Raquel está melhor sem mim e sem a
minha esquisitice.

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122 TIAGO FERREIRA

T: Então você não acha que seria capaz de fazer


bem a ela?

(Notando a persistência da evitação experiencial ao


falar dos sentimentos, o terapeuta investiga a dimen-
são do Self, buscando identificar componentes do Self
Conceitual.)

B: (Bruno muda o semblante para algo mais auste-


ro) Eu sou quebrado. Minha vida é só dor. Qualquer
pessoa que chegar perto vai se machucar.

(O Self Conceitual emerge na relação terapêutica.)

T: Entendi… Desde quando estes pensamentos


sobre você mesmo te acompanham?

(Utilizando uma linguagem de Desfusão Cognitiva,


o terapeuta tenta aumentar o contato do Bruno com
uma perspectiva sobre os pensamentos e sentimentos que
compõem o Self Conceitual.)

B: Desde sempre.

T: E o que você faz quando esses pensamentos co-


meçam a vir?

(Identificando a regulação do Self nas ações do paciente.)

B: Sei o que fazer. Estudo para evitar que pessoas


sejam quebradas como eu fui.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 123

T: São palavras bem pesadas sobre você mesmo…


eu nem consigo imaginar a dor que você sente quan-
do a sua cabeça te conta estas histórias.

(Terapeuta sendo empático enquanto usa linguagem


de Desfusão Cognitiva.)

B: (visivelmente desconcertado e esboçando um sorri-


so) Posso estar exagerando. Eu tenho meus bons mo-
mentos também. Às vezes o quintal fica mais verde.

T: Qual a última vez em que o quintal ficou mais


verde?

B: Lembro que o quintal ficou mais verde quando


Raquel chegou lá… porque ela tinha um vestido ver-
de. (Bruno sorriu um pouco mais e disse que precisava
terminar a sessão mais cedo porque um especialista em
vigilantes iria dar uma palestra em seu curso online).

T: Entendo, mas eu gostaria de ainda te perguntar:


o Vigilante apareceu aqui entre nós hoje? Faria todo
sentido que ele aparecesse, porque eu te perguntei so-
bre coisas íntimas…

(Terapeuta utilizando as Narrativas Funcionais para


mobilizar Self Observador e Contato com o Momento
Presente na relação terapêutica.)

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124 TIAGO FERREIRA

B: Talvez… eu não vou negar que senti uma pontada


de raiva quando você me tratou como um rejeitado…

(A utilização do personagem “Vigilante”, construí-


do na Narrativa Funcional, reduz o caráter aversivo
do relato sobre sentimentos para o terapeuta. Bruno
consegue falar de sentimentos e pensamentos.)

T: Te vieram estes pensamentos? De que eu o esta-


va tratando como um rejeitado?

B: Talvez eu tenha entendido assim… ou o vigi-


lante me contou essa história para terminar a sessão
mais cedo… (rindo)

(Bruno consegue identificar a ação do “Vigilante” em


outro momento da sessão.)

T: Boa! Você conseguiu ver o vigilante te prote-


gendo aqui hoje… realmente “o vigilante” é um bom
nome para a sua mente te protegendo… do que ele te
defendeu hoje?

B: De falar sobre a Raquel… não é fácil falar


sobre ela…

Neste exemplo, a narrativa do Padrão Matricial


(“o Vigilante”) mobilizou processos clínicos em, ao
menos, quatro dimensões psicológicas:

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 125

Afeto: A evitação experiencial foi reduzida por-


quanto falar “do Vigilante” foi menos aversivo do que
falar diretamente sobre os sentimentos que Bruno teve
em relação ao terapeuta. Componentes da Aceitação
ocorreram quando ele citou a função do Vigilante no
momento presente (i.e., “o vigilante me contou essa
história para terminar a sessão mais cedo”).

Cognição: Bruno conseguiu identificar os pensa-


mentos de que o terapeuta o tratava como um rejeita-
do. Além disso, não precisou tratar o conteúdo destes
pensamentos como “a verdade” porque se tratava “de
uma das histórias do Vigilante”.

Self: Perceber-se enquanto estava afastando o


terapeuta faz parte da mobilização do Self Obser-
vador. Tanto este processo de Flexibilidade Psicoló-
gica, quanto a identificação do Self Conceitual “Eu
sou quebrado e ninguém pode ficar ao meu lado”,
foram inseridos na observação do Padrão Matricial.

Atenção: Quando a atenção do Bruno se voltou


para o que teria que fazer logo em seguida (i.e., a pa-
lestra depois da sessão), a pergunta do terapeuta uti-
lizando a Narrativa Funcional do Vigilante o trouxe
para o momento presente da sessão.

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126 TIAGO FERREIRA

Em cada dimensão psicológica, é possível desen-


volver interações clínicas que utilizem a Narrativa
Funcional para mobilizar Flexibilidade Psicológica.
Veja alguns exemplos de perguntas possíveis em cada
dimensão descrita no hexágono:

5.4. Contextos para utilização das


Narrativas Funcionais

As Narrativas Funcionais podem mobilizar Fle-


xibilidade em, ao menos, dois contextos distintos: a
relação terapêutica e o ambiente natural do pacien-
te. Com relação a intervenções baseadas na relação
terapêutica, a identificação e nomeação do Padrão
Matricial atribui sentido ao que acontece na intera-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 127

ção terapeuta-paciente. O exemplo do Caso Bruno é


claro: terapeuta e paciente puderam notar a Evitação
Experiencial e a Fusão Cognitiva, assim como mobi-
lizar Aceitação e Desfusão utilizando a estratégia das
Narrativas Funcionais.

Quando terapeuta e paciente estão atentos à pre-


sença do Padrão Matricial durante a sessão, uma
aliança terapêutica se forma para utilizar Narrativas
a fim de transformar a maneira como o paciente lida
com a ocorrência do Padrão Matricial. Ademais, não
se trata de uma metáfora arbitrária para representar
pensamentos e sentimentos difíceis. Trata-se de hon-
rar a história de vida do paciente trazendo-a para o
centro da relação terapêutica. Uma relação que honra
e concede validação à história de vida tem o poder
de conectar duas pessoas de uma maneira muito es-
pecial. Isto é verdadeiro para a clínica e é verdadeiro
para quaisquer outras relações íntimas. De forma di-
reta: Narrativas conectam pessoas.

A relação terapêutica também pode ser o contexto


para a autorrevelação por parte do terapeuta. Eu me
lembro de uma sessão com uma paciente que estava
especialmente machucada por uma série de relações
amorosas frustradas e que me pedia para dizer-lhe
como deveria agir. Eu sabia que atender ao seu pe-

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128 TIAGO FERREIRA

dido seria contra produtivo em seu processo clínico,


uma vez que estávamos tentando mobilizar a capa-
cidade de lidar com a própria insegurança, estabele-
cendo escolhas valorosas autônomas. Mas, ao mesmo
tempo, percebi o meu próprio Padrão Matricial tra-
zendo uma grande ansiedade ao atendê-la. Minha in-
tervenção foi algo como:

T: Preciso te dizer que o meu “modo sobrevivência”


é um resolvedor de problemas. Eu aprendi, desde
cedo, a ver problemas e resolvê-los, principalmente
no que diz respeito a pessoas com quem me importo.
Enquanto eu te ouço me pedir para te dizer o que
fazer, eu tenho o impulso e a ansiedade de simples-
mente aliviar a sua tensão (e a minha) com uma
resposta pronta. Mas preciso lidar com o meu “re-
solvedor” e a ansiedade que ele me gera para ser o
terapeuta que você precisa. Eu tenho uma proposta:
nós dois podemos dar espaço para os nossos “modos
sobrevivência” ficarem aqui nesta sala? Para nós
dois, vai acontecer alguma ansiedade, mas eu te res-
peito demais para pretender ter a resposta certa para
sua vida. Estou contigo para pensarmos juntos, mas
nunca para fingir que sei o que é melhor para você.

Para esta estratégia, o terapeuta precisou mobi-


lizar Flexibilidade Psicológica em si mesmo (e.g.,

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 129

Aceitação, Self Observador) através da utilização


da Narrativa acerca do seu próprio Padrão Matri-
cial (i.e., “ele é um resolvedor de problemas”). Des-
sa forma, a autorrevelação do terapeuta pôde cons-
truir um lugar seguro e de não-julgamento para
que a paciente também percebesse o seu próprio
Padrão e pudesse ter Flexibilidade ao lidar com ele
na relação terapêutica. É certo que a autorrevelação
não é, necessariamente, a melhor intervenção para
todos os casos. No entanto, para os casos em que a
autorrevelação é desejável, a utilização das Narra-
tivas Funcionais é potencializadora da efetividade
terapêutica do procedimento.

É imperativo dizer que a mobilização de Flexibi-


lidade Psicológica na relação terapêutica possui uma
intencionalidade clara: possibilitar a ocorrência de tais
processos no ambiente natural do paciente. Gosto da
metáfora que ouvi em uma aula do Mateus Souza30
que comparava a relação terapêutica com uma estufa
de flores. O papel da estufa é proporcionar condições
para que, em situação ideal, a planta seja preparada
para um mundo não-ideal. Assim também, o papel
da relação terapêutica é proporcionar um contexto
ideal para mobilização de Flexibilidade Psicológica a

30 Psicólogo especialista em Terapias Contextuais em adultos e casais.

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130 TIAGO FERREIRA

fim de que ela possa ser generalizada para outros con-


textos não-ideais.

Uma intervenção bem-sucedida com a utilização


de Narrativas Funcionais capacita o paciente para
que, no dia a dia, consiga reconhecer o seu próprio
Padrão Matricial em ação. Uma vez que o reconhe-
cimento do Padrão ocorre, acolhê-lo como parte
importante da própria história é condição para que
escolhas valorosas sejam assumidas. É neste sentido
que aceitar a presença de emoções e pensamentos
difíceis é o único modo de recusar ser governado
pelas emoções e pensamentos difíceis.

5.5. Humanidade compartilhada e


histórias compartilhadas

A história de vida do paciente é única, mas não


completamente. Há uma dimensão social das Narra-
tivas Funcionais que precisa se tornar clara na prática
clínica: nossas histórias pessoais não são necessaria-
mente individuais. Esta constatação vai ao encontro
de uma série de perguntas que precisei responder ao
longo dos meus anos ensinando psicologia:

Como podemos utilizar a experiência comparti-


lhada de racismo, violência de gênero, dentre tan-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 131

tos outros fenômenos sociais relevantes na psicolo-


gia clínica?

Qual o lugar das análises de questões grupais na


intervenção clínica individual?

Qual a interface entre uma Psicologia Social e a


Psicologia Clínica?

Desconfio que a dificuldade que alguns psicólo-


gos têm para responder tais questões é um produto
da estrutura da maioria dos cursos de graduação em
Psicologia. Em geral, os cursos começam com disci-
plinas introdutórias “panorâmicas”, associadas com
disciplinas sobre os processos psicológicos básicos.
Quando as disciplinas que envolvem alguma prática
clínica começam a acontecer nos cursos (e.g., psico-
terapia, avaliação psicológica, intervenções em gru-
po, etc.) são ministradas em total desconexão com
os princípios básicos e com outras áreas da psicologia
(e.g., psicologia social e psicologia clínica).

Eu sempre me recusei a separar teoria e prática.


Ao longo dos anos, dentro e fora da universidade,
aprendi que a melhor forma de ensinar não é “de
baixo para cima”, mas “de cima para baixo”. Eu vou
explicar. Abordagens educacionais Bottom-up (i.e.,
“de baixo para cima”) em psicologia trazem o aluno

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132 TIAGO FERREIRA

para aprender primeiro os conceitos básicos, as teo-


rias, os fundamentos, para só então começar a pensar
na prática. Por sua vez, abordagens Top-Down (i.e.,
“de cima para baixo”) apresentam situações práticas,
próximas da realidade cotidiana do aluno, para que
ele perceba a necessidade de encontrar os conceitos
fundamentais que podem ajudá-lo a compreender a
realidade. É uma abordagem completamente dife-
rente. Neste sentido, eu sempre pensei: “por que não
começar dos fenômenos clínicos e então orientar o
aluno na aprendizagem dos fundamentos que o aju-
darão a compreender tais fenômenos?”. A motiva-
ção para aprender é completamente diferente.

Colocando uma abordagem Top-Down em prá-


tica, a partir do método das Narrativas Funcionais,
propus o seguinte caso para alunos de Psicologia que
ainda estavam na primeira metade do curso:

Marta é aluna do segundo semestre do curso de Psi-


cologia da Universidade Federal da Bahia e pro-
curou o Serviço de Psicologia para saber se poderia
ter atendimento psicológico, pois estava passando
por “alguns problemas”. Quando procurou o Ser-
viço, Marta estava muito mobilizada, chorando e
tremendo, dizendo estar com “falta de ar”. Tendo
recebido um acolhimento inicial, Marta relata que

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 133

está com muito medo de abandonar o curso e ter


que voltar para sua cidade, porque está se sentindo
quase “surtando”. A estagiária que fez o acolhimen-
to perguntou o que ela estava sentindo e ela disse
que não conseguia dormir, que fica com um “bolo
na garganta” o dia inteiro, que não consegue ter
atenção nas aulas e que, frequentemente, tem que
sair no meio das atividades em classe porque tem
uma sensação de “morte” e vontade de sair gritando.
Marta, então, começa a falar que “não quer ficar
louca”, que “todo mundo de Tijuaçu apostou em
mim e eu enganei todo mundo!” até não conseguir
mais falar e continuar com alguns soluços de choro.

A estagiária perguntou que lugar é Tijuaçu e Marta


respondeu que é o povoado em que nasceu, perto de
Senhor do Bonfim-BA. Que ela é a única da fa-
mília que os pais conseguiram mandar para Salva-
dor para estudar, porque viam que ela tinha “gosto
para os estudos”. Quando começa a falar dos pais,
o choro aumenta. Ela diz que ainda se lembra do
dia em que saiu de casa e que o pai disse: “Minha
filha, essa vitória [ter passado para Psicologia na
UFBA] não é só sua, é de Tijuaçu inteira; você sabe
que preta e pobre tem que ser melhor! Estude mui-
to porque ninguém vai fazer a sua vida fácil por
lá!”. Sua mãe também a incentivava muito e dizia

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134 TIAGO FERREIRA

que ela precisava estudar para “Ser independente e


não depender de homem nenhum”. Marta disse que
quando lembra disso tem muita vontade de mor-
rer, porque não tem conseguido ser forte. Diz que
as colegas já sugeriram que ela pode ter um TDAH
(Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperativi-
dade) e que precisa de um tratamento para resolver
as “suas questões”.

A estagiária perguntou quando estas experiên-


cias ruins começaram, ao que Marta respondeu
que desde a metade do primeiro semestre quando
percebeu que sempre que estava no ônibus para a
universidade, o coração começava “a disparar” e a
sensação de falta de ar também aumentava. Nessa
hora, ela tentava se distrair olhando para as ruas,
mas o bolo na garganta aumentava muito, dando
enjoo e vontade de vomitar. Não foram poucas ve-
zes que Marta deixou de assistir as primeiras aulas
para se esconder no Campus, sentindo uma sensa-
ção de morte, fraqueza nas pernas, “vendo tudo
borrado”, dentre outras coisas. Nesses momentos,
disse Marta, as imagens do pai dizendo que ela
tinha que ser forte e da mãe dizendo que ela preci-
sava ser independente apareciam e ela ficava cheia
de angústia e vontade de morrer.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 135

A procura de Marta pelo Serviço de Psicologia, em


suas próprias palavras, era sua última tentativa.
“Se eu conseguir consertar a minha cabeça, eu
continuo! Mas se não der jeito, também não volto
para Tijuaçu, porque será muita vergonha para
minha família”.

Marta foi encaminhada para um Programa de


Atendimento da própria Universidade e a primeira
sessão com o estagiário de psicologia clínica será na
próxima semana.

Como construir uma Narrativa Funcional do


Padrão Matricial de Marta sem considerar as diver-
sas questões sociais envolvidas? Mais do que isso,
perceba que se utilizarmos conceitos da psicologia
social ao construir com Marta o nascimento do seu
sentimento de ser uma “vergonha para a família”,
por exemplo, conseguiremos ajudá-la a perceber
estes sentimentos como parte de uma humanidade
compartilhada. Trata-se de uma maneira incrível de
mobilizar aceitação de tais sentimentos e uma dife-
renciação entre os pensamentos e o self: a vergonha
que a acomete não está fusionada a ela, mas faz parte
de uma construção social que diversas outras pessoas
também vivenciam.

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136 TIAGO FERREIRA

Ao perceber que seus sentimentos e pensamentos


difíceis também visitam outras pessoas e o fazem por
condições sociais discerníveis, Marta está ainda mais
próxima da capacidade de estar na presença dos senti-
mentos e pensamentos, recusando-se a ser governada
por eles. Narrativas Funcionais são pessoais, mas não
são individuais. Intervenções clínicas são extrema-
mente beneficiadas por análises de situações sociais
complexas que envolvem o caráter social do abuso se-
xual, violência doméstica, relacionamentos abusivos,
racismo, iniquidade econômica, dentre tantos outros.

Se o ensino de psicologia partisse da realidade dos


alunos para, só então, mobilizar conteúdos técnicos
relevantes, teríamos um aprendizado muito mais sig-
nificativo da prática clínica. É por isso que desde as
primeiras turmas do curso ACT na Prática Clínica,
que depois evoluiu para a Formação ACT na Prática
Clínica, a metodologia que utilizei segue o método
das Narrativas Funcionais. Começamos da análise
dos fenômenos clínicos que envolvem a história de
vida de pacientes para, só então, falar de processos de
Flexibilidade e Inflexibilidade Psicológica. Uma boa
formulação de caso na ACT, portanto, não inicia com
o Hexágono de Flexibilidade Psicológica, mas chega
até ele a partir da compreensão ampla da narrativa da
história de vida dos pacientes.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 137

5.6. Alguns riscos para a utilização das


Narrativas Funcionais

Preciso encerrar este capítulo falando de alguns


riscos inerentes à utilização do método das Narrativas
Funcionais. Considero que todos eles são riscos que
não desencorajam a utilização do método, mas que,
pelo contrário, aumentam a responsabilidade do te-
rapeuta que se dispõe a ajudar pessoas em sofrimento.
Ao mesmo tempo, há duas habilidades clínicas essen-
ciais que capacitam o terapeuta a minimizar quais-
quer destes riscos. Iniciarei listando os riscos e depois
falarei sobre estas duas habilidades essenciais.

Em primeiro lugar, há um risco de aumento da


Fusão Cognitiva com a própria narrativa. Quantas
vezes eu já ouvi um paciente me dizer: “Mas eu não
consigo ser diferente porque minha história me fez
assim”. Quase como a letra de Dorival Caymmi:

“Eu nasci assim, eu cresci assim

Eu sou mesmo assim

Vou ser sempre assim

Gabriela, sempre Gabriela”

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138 TIAGO FERREIRA

Neste caso, o paciente pode entrar em Fusão Cog-


nitiva com a narrativa da própria história, tornando-
-se mais inflexível para mudanças significativas.

Em segundo lugar, a Evitação Experiencial na re-


lação terapêutica pode valer-se da narrativa. Quan-
do atendemos outros psicólogos esta é uma realida-
de bastante presente. Qual terapeuta, ao atender um
colega de profissão, já não percebeu que ao confron-
tar o paciente com algo difícil obteve uma reação
como “Mas isso não é valoroso para mim, afinal eu
sempre aprendi a ser alguém que faz tudo certo. Hoje
eu escolho fazer diferente”. Se uma resposta como esta
tiver função de Evitação Experiencial, se constitui
em um desafio para o terapeuta. Principalmente
porque utiliza tanto conceitos da ACT (i.e., valo-
res), quanto elementos da narrativa para afastar o
confronto do terapeuta.

Para lidar com estes desafios, duas habilidades são


essenciais: (1) Notar os processos clínicos e (2) notar
o impacto do próprio repertório do terapeuta no pa-
ciente. A primeira habilidade exige que o terapeuta
não esteja apenas sob controle da forma da interven-
ção, mas que consiga notar “em tempo real” quando
o paciente está exibindo repertórios de Flexibilidade
ou Inflexibilidade Psicológica. Neste sentido, o pro-

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 139

cedimento utilizado (e.g., metáfora, pergunta refle-


xiva, exercício experiencial), importa menos do que
a habilidade de perceber se o paciente está com mais
ou menos Aceitação, mais ou menos Contato com o
Momento Presente, e assim por diante.

A segunda habilidade depende que o terapeuta


tenha contato com o Momento Presente e Self Ob-
servador durante a sessão. As perguntas que você faz,
com este paciente específico, tem mobilizado mais
ou menos Flexibilidade Psicológica? A forma como
você está identificando o Padrão Matricial está au-
mentando ou reduzindo a Flexibilidade Psicológica?
Perceber-se e perceber o impacto do seu repertório
sobre o paciente é basilar para qualquer prática clíni-
ca. O critério último para qualquer intervenção não é
a qualidade com a qual você a executa, mas o impacto
que ela tem para mobilizar Flexibilidade Psicológica.
Isto implica dizer que a mesma estratégia que funcio-
nou muito bem para centenas de pacientes pode não
funcionar para este paciente específico. O problema
não é a técnica, mas a pouca capacidade do terapeuta
para ter as habilidades (1) e (2).

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CONCLUINDO UM
LIVRO PARA INICIAR
UM DIÁLOGO…

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142 TIAGO FERREIRA

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 143

C
om uma atenção consciente aos riscos, me cabe
te dizer que o método das Narrativas Funcionais
é uma excelente abordagem para mobilizar ob-
jetivos clínicos na ACT. No entanto, é apenas isto:
um método. Todo terapeuta precisa ter uma atenção
maior à finalidade da clínica do que as descrições de
procedimentos utilizados para este fim. Isto é verdade
para as Narrativas Funcionais e para quaisquer outros
métodos clínicos. É por conta disso que este livro se
iniciou com uma descrição abrangente do objetivo
último da ACT: Flexibilidade Psicológica. Ao passo
em que se encerra com um alerta retirado de uma
alegoria muito utilizada no ensino de ciências. Nesta
alegoria, uma pessoa andava por uma rua escura, até
que viu um único poste iluminando uma pequena
área. Nesta área, havia outra pessoa procurando algo.
Neste contexto, surgiu o seguinte diálogo:

O que você está procurando?

Eu perdi a minha chave e estou procurando-a há


horas!

Você perdeu a sua chave por aqui?

Não. Mas só aqui há luz!

Diversos terapeutas continuam utilizando méto-


dos que não produzem os resultados esperados, por-

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144 TIAGO FERREIRA

que estes são os únicos que conheceram. Espero que


este livro tenha te mostrado que há outros métodos
possíveis, mas que todos eles dependem da sua capa-
cidade de mobilizar Flexibilidade Psicológica em sua
própria vida para, só então, ajudar outras pessoas a
desenvolverem tal processo em suas vidas. Para ajudar
nessa jornada, o método das Narrativas Funcionais
pode ser uma ampliação da área em que você via luz.
Ao fim e ao cabo, trabalhar neste sentido é uma ação
compromissada com os meus valores.

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BIBLIOGRAFIA

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[1] Eliane Brum, “Meu Filho, Você Não Merece


Nada,” in A Menina Quebrada (Porto Alegre: Arqui-
pélago Editorial, 2013).
[2] Trata-se do guia “Faça o que importa em tempos
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blications/i/item/9789240003927.
[3] Amyr Klink, Cem Dias Entre Céu e Mar (São Pau-
lo: Editora Schwarcz LTDA, 1995).
[4] Hayes, Steven (2022). The subtle art of doing
what matters. Disponível em https://stevenchayes.
com/the-subtle-art-of-doing-what-matters/. (Tradu-
ção Livre)
[5] Burrhus Skinner, Verbal Behavior (New York:
Appleton-Century-Crofts, 1957), 2.
[6] Para facilitar a leitura: Na obra de Saramago,
quando uma letra maiúscula ocorre logo após uma
vírgula, trata-se da fala de um outro personagem.
[7] José Saramago, O Conto Da Ilha Desconhecida
(São Paulo: Companhia das Letras, 1998), 3.
[8] Saramago, 14.
[9] Brown, B. (2019). The Call to Courage. Especial
para Netflix. Disponível em www.netflix.com.
[10] Clarice Lispector, Perto Do Coração Selvagem
(Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980).

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150 TIAGO FERREIRA

[11] Steven C. Hayes, A Liberated Mind: How to Pivot


toward What Matters (New York: Avery, 2019), 144.
[12] Êxodo 3:11.
[13] David Le Breton, Desaparecer de Si: Uma Tenta-
ção Contemporânea, trans. Francisco Morás (Rio de
Janeiro: Vozes, 2018), 196.
[14] Hayes, A Liberated Mind, 119.
[15] Le Breton, Desaparecer de Si: Uma Tentação Con-
temporânea, 204.
[16] Matthew A. Killingsworth and Daniel T. Gil-
bert, “A Wandering Mind Is an Unhappy Mind,”
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932, https://doi.org/10.1126/science.1192439.
[17] Killingsworth and Gilbert, 932.
[18] Extraído e adaptado de Luoma, J., Hayes, S. &
Walser, R. (2007). Learning ACT: an acceptance and
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[19] Yuval N. Harari, Sapiens: A Brief History of Hu-
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[20] Programa de investigação científico no qual a
Terapia de Aceitação e Compromisso está diretamen-
te engajada.

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CONSTRUINDO FLEXIBILIDADE PSICOLÓGICA: O MÉTODO DAS NARRATIVAS FUNCIONAIS 151

[21] Emily Esfahani Smith, The Power of Meaning:


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Crown, 2017).
[22] Dan P. McAdams, “The Psychology of Life Sto-
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[23] Smith, The Power of Meaning.
[24] Eva Illouz, Cold Intimacies: The Making of Emo-
tional Capitalism (Cambridge, UK ; Malden, MA:
Polity Press, 2007), 123.
[25] Terapeuta.
[26] Bruno.
[27] Contingências são as relações entre o que o su-
jeito faz, pensa e sente (os elementos da sua subjetivi-
dade) e o contexto em que ele vive.
[28] E.g., Guilhardi, H. (2015). Contingências de
Reforçamento Matriciais. Disponível em https://itcr-
campinas.com.br/guilhardi/.
[29] Steven C. Hayes, Kirk Strosahl, and Kelly G.
Wilson, Acceptance and Commitment Therapy: An Ex-
periential Approach to Behavior Change (New York:
Guilford Press, 1999), 151. (Tradução Livre)
[30] Psicólogo especialista em Terapias Contextuais
em adultos e casais.

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152 TIAGO FERREIRA

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