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7FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DE MINAS GERAIS

PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

DESPERTAR NAS PAIXÕES


Contribuição aos Estudos das Klínicas do Esquizodrama de Gregorio Baremblitt

LIDISTON PEREIRA DA SILVA

2011
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FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DE MINAS GERAIS
PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

DESPERTAR NAS PAIXÕES


Contribuição aos Estudos das Klínicas do Esquizodrama de Gregorio Baremblitt

Trabalho de Monografia apresentado como quesito parcial a


formação no Curso de Lato Sensu Análise Institucional,
Esquizoanálise e Esquizodrama: Clínica de Indivíduos, Grupos,
Organizações e Redes Sociais, ministrado pela Fundação
Gregorio Baremblitt de Minas Gerais, em parceria com a
Fundação Educacional Lucas Machado - Faculdade de
Ciências Médicas de Minas Gerais – 2009 -2011.

2011
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FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DE MINAS GERAIS
PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

FICHA DE APROVAÇÃO

AUTOR: LIDISTON PEREIRA DA SILVA

PÓS-GRADUAÇÃO EM: Curso de Lato Sensu Análise Institucional, Esquizoanálise

e Esquizodrama: Clínica de Indivíduos, Grupos, Organizações e Redes Sociais,

ministrado pela Fundação Gregorio Baremblitt de Minas Gerais, em parceria com a

Fundação Educacional Lucas Machado - Faculdade de Ciências Médicas de Minas

Gerais – 2009 -2011.

Trabalho de Conclusão de Curso sob forma de MONOGRAFIA, apresentado como

quesito para obtenção do certificado de conclusão da Pós-Graduação em Julho de

2011.

___________________________________________
PROF. Dr. GREGORIO BAREMBLITT
Professor Orientador

____________________________________________
MARGARETE A. AMORIM
Coordenadora do Curso

_____________________________________________
........
Coordenador da Pós-graduação Lato Sensu

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AGRADECIMENTOS

O tempo ensina que os sentimentos sentidos são lembranças da força de


uma vivência e sua conseqüente experimentação. Bons encontros.
Nestes processos continuum de busca e composição de sentido, de
alegrias vividas, somos tutorados, permitidos, reprimidos, empurrados,
somos mais que assistidos, somos orientados, indicados, aceitos e
esperados. Assim, são nossos professores, orientadores, colegas,
parceiros, amigos, são aqueles que nos garantem as relações atuais,
mas, com eles, compomos um mundo virtual, onde se revela nosso fluir
infinito de afetos experimentados. São esses que possibilitaram esse
acontecimento, essa monografia, onde esse aluno pós-graduando é só
um destes pontos de atenção. Assim, se é grato por reconhecer que sem
tais personagens, esse acontecimento não se daria.

Agradeço a:

Gregorio Baremblitt

Margarete Amorin

Silvia Chagas

Magda Heloisa Costa

Patrícia Ayer

Milton Bicalho

Jorge Bichuetti

Cermen Lícia Macedo de Almeida

E a todos os meus colegas do Também. Grupo, turma, amigos, amores,


sem os quais essa trajetória não teria a beleza dos encontros e a alegria
da produção.

Muito Obrigado!

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De que serve afirmar a legitimidade das aspirações das massas se o desejo
é negado em todo lugar onde tenta vir à tona na realidade cotidiana?... “A
introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não
cai do céu, ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura
cientificidade da teoria. Ela é determinada pela transformação de uma
energia biológica – a libido – em objetivos de luta social”... “Pois na
ausência de desejo a energia se autoconsome sob a forma de sintoma, de
inibição e de angústia..” “Os enunciados continuarão a flutuar no vazio,
indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de
explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum
meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele,
que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para
as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos
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sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.” .
(Guattari, Félix, 1985: p.15)

“A subjetividade não é fabricada apenas através das fases psicogenéticas


da psicanálise ou dos „matemas do Inconsciente‟, mas também nas grandes
máquinas sociais, mass-midiáticas, lingüísticas, que não podem ser
qualificadas de humanas. Assim, um certo equilíbrio deve ser encontrado
entre as descobertas estruturalistas, que certamente não são
negligenciáveis, e sua gestão pragmática, de maneira a não naufragar no
abandonismo social pós-moderno.”
(Guattari, Félix. 1992, p.20)

1
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações política do desejo, 1985, p15.
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RESUMO

Nosso desejo é compor um cenário que contenha elementos mínimos para


uma prática de Klínica do Despertar nas Paixões. Partiremos do complexo
realidade/realteridade tratado por Gregorio Baremblitt, no qual coexistem três
superfícies entrelaçadas, segundo a lógica de produção, que são responsáveis pela
formação de pontos e contrapontos de intervenção em realidades.

Mas, o que se quer dizer com Despertar nas Paixões? Partimos de uma
questão muito simples: como as relações entre paixões (corpos e ideias) podem
dispor de ocasião em que algo afirmativo aconteça? Essa mudança não será só pela
reunião entre corpos e ideias, mas porque se trata de paixões que resultam em um
aumento da capacidade de expressar e agir dos envolvidos, no acontecimento em
questão. A esse aumento de capacidade, Spinoza/Deleuze chama de alegria. As
alegrias se tornam afetos ativos e nos conduzem melhor para o conhecimento; que a
tristeza, que são afetos passivos e tendem a nos aprisionar na desrazão ou no
conhecimento inadequado. Essa passagem dos afetos passivos aos afetos ativos,
do conhecimento inadequado para um adequado, da tristeza às alegrias: chamamos
Despertar nas Paixões.

Assim, o problema afirmativo aparece: como a klínica do Despertar nas


Paixões, na estratégia esquizodramática, pode contribuir como dispositivo de
produção de sentido? Concluiremos, apresentando dois anexos: um se refere a
projeto de intervenção; outro, um diagrama para ilustrar os diferentes momentos da
formação de noções comuns, que pode ser compreendido como platôs que se
repetem, diferenciando os movimentos dentro de um esquizodrama.

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SUMÁRIO

1) INTRODUÇÃO.......................................................................................................08

2) REALIDADE/REALTERIDADE E COTIDIANIDADE..............................................11

3) DESPERTAR NAS PAIXÕES: pontos de uma cartografia spinozista ..................18

3.1) Realidade e Ideias ...............................................................................18

3.2) Afetos e Variação Continua..................................................................21

3.3) MENTE E CORPO: a natureza das Paixões .......................................24

3.4) MODOS DE CONHECIMENTO: das paixões às noções comuns.......29

4) AS KLÍNICAS COM K: um horizonte para a prática do Despertar nas Paixões..39


5) NOÇÕES ELEMENTARES PARA PENSAR O ESQUIZODRAMA.......................47

6) BIBLIOGRAFIA......................................................................................................56

7) ANEXO I: KLÍNICA DO DESPERTAR NAS PAIXÕES...........................................58

8) ANEXO II: DIAGRAMA DE MOVIMENTOS POSSÍVEIS NO ESQUIZODRAMA.65

9) ANEXO III: CALIFICACIÓN Y COMENTARIOS Prof. Gregorio Baremblitt..........71

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DESPERTAR NAS PAIXÕES

Contribuição aos Estudos das Klínicas do Esquizodrama de Gregorio Baremblitt

“Será que não dá a pensar que devir um klínico esquizoanalista não passa
pelos títulos que legitimam ou autorizam essa condição, mas muito mais por
um modo de klinicar, por um modo de viver desejante, produtivo,
revolucionário?”

Gregorio Baremblitt (2010:105)

1) INTRODUÇÃO

Nosso desejo é compor um cenário que contenha elementos mínimos para


uma prática de Klínica esquizodramática. Então: há uma relação entre realidade e
realteridade que é imanente, formando um co-processamento inerente, implicado,
intrínseco e co-insistentes. São como dois poli-versos, mas que não se compõe de
dos mesmos “enementos”, nem efetuam as mesmas sínteses, nem os mesmos
espaços, nem formam iguais tempos, nem realizam semelhantes processos, nem
formam a mesma dimensões (latitudes, longitudes), nem densidades, nem
dispersões, nem distribuições, nem velocidades, enfim, não engendram as mesmas
composições. Cada uma destas mutações são sempre fugazes e a cada instante
expressam um modo de efetuação. O complejo realidade-realteridade, em cada
efetuacão, supõe essa relação imanente para a produção de producão, de
reprodução e de antiprodução de atualizações, eventos, individuacões por
hecceidad. Neles, a realteridade se atualiza, a realidade se realiza. Na perspectiva
sinozista: A substância se expressa resultante dos encontros de seus inumeráveis
existentes com seus respectivos atributos e conatus.

Nesse complexo realidade/realteridade coexistem três superfícies


entrelaçadas, compondo platôs de “natura sui” em inseparável consubstancialidade
materialidade, dinâmica, cinética e segmentariedade, em singular atravesamento e
transversalidade. Nessa “co-perficie2” poderá ocorrer predominância de uma lógica
em relação as outras, definindo, assim, um modo de funcionamento, seja de

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Termo criado por Prof. Gregorio Baremblitt, em função da orientação desse monografia.

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atualização, seja de realização. Tendemos, assim, a um aspecto de tonalidades em
que se expressão as predominâncias: A de superfície de produção de produção
desejante, sempre inventiva, revolucionária, ativa e afirmativa. A superfície de
registro-controle, sempre repetitiva, especialmente perceptível na realidade de uma
cotidianeidade prevalentemente alienada, em a que prevalece em regime da
produção de reprodução e anti-produção. E, por fim, há a terceira superfície, de
produção de consumo e consumação, que diz de um modo de uso-fluição dos bens
produzidos e destaca o apogeu de um processo de atualização. Tais distinções
serão referencias esquizoanalíticas e esquizodramáticas (segundo trabalhos de Prof.
Gregorio Baremblitt), onde pretendemos nos introduzir ao que seja o Despertar nas
Paixões, a partir d e uma leitura de Spinoza e de Deleuze.

Mas, o que se diz com Despertar nas Paixões? Partimos de uma questão
muito simples: como as relações entre paixões (corpos e ideias) podem dispor de
ocasião em que algo afirmativo aconteça? Nesse momento, estamos no regime da
produção de produção, onde algo muda. Essa mutação não será só pela reunião
entre corpos e ideias, mas porque se trata de paixões que resultam em um aumento
da capacidade de expressar e agir dos envolvidos, no acontecimento em questão. A
esse aumento de capacidade, Spinoza chama de alegria. As alegrias se tornam
afetos ativos e nos conduzem melhor para o conhecimento, que a tristeza, que são
afetos passivos e tendem a nos aprisionar na desrazão ou no conhecimento
inadequado. Essa passagem dos afetos passivos aos afetos ativos, do
conhecimento inadequado para um adequado, da tristeza às alegrias: chamamos
Despertar nas Paixões.

No ponto seguinte, retomaremos textos de Gregorio Baremblitt, no qual


propõe a Klínica com K, como um dispositivo, um efeito, um agenciamento que
remete a um desvio criativo, inventivo, a ser intensificado pelo esquizodrama. O
esquizodrama será esboçado, como estratégia de intensificação afetiva. Veremos
que as Klínicas já existem, mas sua existência ganha sentido se for sempre
reinventada. Neste horizonte, essa monografia buscará pensar a Klínica do
Despertar nas Paixões como mais uma contribuição aos estudos das Klínicas do
esquizodrama.

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Assim, o problema afirmativo aparece: como a klínica do Despertar nas
Paixões, na estratégia esquizodramática, pode vir a ser um dispositivo de produção
de sentido? Para trabalhar essa questão apresentaremos dois anexos, um projeto
de intervenção, outro, um diagrama para ilustrar os diferentes momentos da
formação de noções comuns, que pode ser compreendido como platôs que se
repetem, diferenciando os movimentos dentro de um esquizodrama.

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2) REALIDADE/REALTERIDADE E COTIDIANIDADE

Realidade e cotidianidade não podem estar separadas. Porque qualquer


cotidianidade se faz sob realidades. Como qualquer realidade persiste em todas as
formas de cotidianidades. A cotidianidade estaria mais para os hábitos, os costumes,
as fixações entre imagens e entre corpos, e a realidade para uma realização, o que
está sempre mudando, que está em contínua diferenciação. Há, ainda, o virtual da
realidade, sua realteridade. Aqui muda a direção. De um lado, a relação entre
realidade e cotidianidade, o enquadramento, a reprodução e anti-produção. De
outro, a relação entre realidade e realteridade, a criação e a atualização.

Gregorio Baremblitt, em seu livro “Introdução à Esquizoanálise” (2010) tratará


de modo intenso dessas diferenciações conceituais na obra de Deleuze e Guattari.
No Anti-Édipo, buscará os conceitos que formam uma ontologia do complexo que
chama realidade/realteridade, seja em seu paralelismo entre atual e virtual, como na
perspectiva de diferentes superfícies imanentes: produção de produção, produção
de reprodução e anti-produção e, por fim, produção de consumo/consumação.

Há dois movimentos de pensamento para captar o que seja o complexo


realidade/realteridade:

 Um, seria notar que realidade e realteridade diferem por natureza. Coexistem.
São como duas linhas paralelas, mas que não possuem os mesmos atributos,
nem os mesmos enementos (“n” de elementos ao infinito. Baremblitt, 2010). A
realidade é formal, é extensa e atual, é causal, tem efeitos, se realiza em
quantidades e qualidades, diz-se das afecções, das relações entre corpos, de
forças, dos graus de potência, das ideias de ideias. Essa é uma linha, que
fixada, enquadra e forma a cotidianidade que resulta em consciência alienada
ou limitada. A outra, enquanto realteridade é virtual, se compõe de
singularidades, intensidades, diferenças puras que individuam, dramatizam,
diferenciam e, assim, atualizam. Aqui não se trata da consciência, mas do
inconsciente onde se dá a mudança, surge o novo, o revolucionário, a

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produção desejante. O que implicará na formação de outra consciência ou
regime de conscientização.

 Outro, é perceber que o complexo realidade/realteridade se compõe de três


linhas imanentes entre si: produção de produção (singularidade e
individuação), produção de reprodução e anti-produção que são modos de
produção também, mas sob outras condições onde ocorrem fixações,
limitações ou captura das produções (função, representação, significantes e
significâncias) e, por fim, produção de consumo/consumação (escoamento e
realização da produção capturada).

Notemos que na superfície de produção de produção, a realteridade virtual se


atualiza, enquanto a realidade atual, por causa e efeito, se realiza. Na realteridade,
ou produção de produção, “é o processo de incessante geração do novo, diferenças
singulares absolutas ou relativas, respectivamente, de toda e qualquer realidade”
(Baremblitt 2010: p. 50). Já a produção de reprodução é a multiplicação do mesmo, na
lógica industrial, onde se compõe uma identidade que tende a “selecionar, adequar e
reprimir as produções, a serviço da manutenção relativa de um estoque e uma
ordem já produzida e recuperada para a ordem vigente” (Baremblitt 2010: p.50). A
reprodução é produção porque diz do movimento de tomar uma singularidade
produzida e torná-la modelo para infinitas cópias. Quanto à produção de consumo,
“compreende os processos de uso, usufruto e gozo das realidades produzidas”
enquanto que a produção de consumação é o final, “a consagração gerada por um
encontro em que os componentes produtivos se reúnem e na extinção da trajetória
das realidades produzidas e atualizadas”(Baremblitt 2010: p.51). Por fim, a produção de
anti-produção, no qual se nota a instauração de serviços “para a destruição das
realidades produzidas ou atualizadas ou para o impedimento da sua atualização ou
realização. ”(Baremblitt 2010: p.51)

Aqui, Baremblitt apresenta a diferença da superfície produção reprodutiva,


que mostra a realização de um estoque e a produção da anti-produção, como
estratégia de opressão, repressão, coerção, para a sujeição e alienação. Assim, a
cotidianidade alienada vive na dor e no ressentimento, sob a reprodução, e é sujeita

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a anti-produção, que instaura o medo e a reatividade, formando, segundo Nietzsche,
a má consciência ou as relações de tristeza, na perspectiva de Spinoza.

As superfícies são imanentes, inerentes, intrínsecas, interiores umas as


outras, no qual se pode detectar sob certas condições, a predominância de um ou
de outra linha. Perceber essa predominância, nos dá condições de pensar nas duas
tarefas da esquizoanálise: a negativa, que consiste em realizar uma raspagem, uma
demolição das linhas de reprodução e anti-produção em proveito de uma
desalienação, uma perda das identidades, em prol de um devir. Aqui poderíamos
situar as relações entre realidade e cotidianidade, onde a tarefa seria quebrar as
fixações, os hábitos, as rotinas, para aparecer outra relação entre realidade e
realteridade, que se encontra amortecida, fechada, bloqueada. A segunda tarefa
difere, pois parte da relação entre realidade e realteridade, buscando a atualização,
a inovação, a criatividade, a produção de acontecimentos-sentidos, inusitados,
inéditos, revolucionários.

A realidade é uma ideia formal, mas tem sua circunstância virtual. A realidade
é como uma cena que tem seu cenário virtual. Toda realidade se produz e se mostra
em sua realteridade. Porém, o que muda são as formas de preponderância ou
dominância nas relações entre realidade e realteridade. Nesse sentido, a relação
entre realidade e cotidianidade alienada é um recorte psicológico da relação
ontológica de realidade e realteridade. Por isso, dizemos que a cotidianidade
limitante, restritiva, representativa, tende a impedir a produção desejante, a
atualização. Isso se faz, seja para criar estoques, seja para imprimir sujeições.
Mentalidades ou consciências alienadas são resultantes desses tipos de montagens.
Problematizar as relações entre realidade e realteridade e realidade e cotidianidade,
nos remetem a um tipo de intervenção Klínica, que vamos chamar de Despertar nas
Paixões. Veremos isso mais adiante.

Esbocemos uma imagem: Saímos de casa, vamos ao trabalho, a escola, aos


bares, nas ruas, nos transportes, nos parques, nas famílias, entre amigos.
Vamos...estamos sempre indo, mesmo voltando, estamos indo. Sempre em
movimento, seja do corpo (mesmo dormindo), seja no pensamento, variando a cada
instante de ideia e de estados. Ora, estamos assim, ora sentimos que algo mudou.
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Estamos diferentes. No momento seguinte, podemos até não perceber, mas já não
estamos nas mesmas condições. A cada lugar que chegamos ou passamos, por
instantes que sejam, o que ali está nos afeta. Afetamos, também, ao chegar ou
passar pelos lugares e pelas ideias. De qualquer forma, estamos sempre em
movimento ou repouso de sentidos, que envolve tanto o corpo como o pensamento.
Enfim, traçamos linhas que ao percorrermos, forma-se em nós um estado
psicológico: cotidianidade. Cotidianidade se define enquanto consciência de certas
formações de realidades. Mais ou menos alienada, fixada, limitada, depende da
dominância das relações de forças, de predominância de uma das superfícies sobre
a outra. Mas, há a realidade que não tem cotidianidade. Embora toda cotidianidade
formam-se de fixações de realidades, através de representação. Há, também,
acontecimentos de realidade que se dão e produzem algo que muda. Ao invés de
limitar, abre-se para o novo. Essas não são tomadas em uma cotidianidade
estanque. Fechada e negativa. Sair da cotidianidade, realizar novas
experimentações, deixar-se sentir no que ocorre, intervir ativamente nos
acontecimentos, criar positividades, são caminhos pensáveis de uma intervenção do
tipo Despertar nas Paixões.

Realteridade/realidade e cotidianidade3. Isso acontece aos indivíduos em


suas singularidades, como em grupos, instituições e lugares. Isso esta nos livros,
nas fotos, nas pinturas e esculturas. Na televisão, em revistas e jornais. Enquanto a
realteridade é incorpórea, virtual, intensiva. A realidade supõe um corpo, é formal e
atual, qualitativa e quantitativa. Já a cotidianidade revela o fático, estabilizando as
relações formais e fixando suas intensidades virtuais. É predominantemente
reprodutiva e sempre a mercê de ações anti-produtivas de fechamento de
produtividade. A realteridade pode ser bloqueada pela cotidianidade alienante!

Notemos que a cotidianidade é atual. Mas, uma atualidade fixada, limitada


enquanto representação. Imaginemos caminhando em um lugar que até a pouco nos

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Estamos realizando um paralelo que mostraremos a seguir entre ideia objetiva, representação, ideia
formal, as coisas em si mesmas, de modo que as misturas entre corpos e ideias formam um
movimento de passagem de um estado a outro, onde surgem os afetos intensivos. Assim, a
realteridade corresponde ao afeto ou fenômenos de passagens, a ideia formal a realidade e a ideia
objetiva, a cotidianidade.

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era desconhecido. Nunca tínhamos experimentado passar por ali. Como nosso
corpo é afetado? Que relações de pensamento nos ocorre? Entre tantas
possibilidades, duas coisas, ao menos, podem acontecer: Ou, nos colocamos
assustados e passamos a enquadrar tudo. Buscar o cotidiano em tudo. Nos situando
a partir das semelhanças, das igualdades que se mostram e nos estabilizam
afetivamente, reduzindo o medo, acalentando a insegurança. Assim, estamos
imprimindo a cotidianidade como modelo de exploração, de entendimento, de
relação. Aqui, nossa consciência está formada no modo de reprodução ou anti-
produção, procedimentos limitantes e repulsivos de tudo que não pode ser
enquadrado ou capturado.

Ou, nos colocamos a sentir as diferenças. Notar o novo, as singularidades


que fazem daquele ali algo diferentes do que estamos habituados a ver e pensar.
Mudamos o regime de relação. Não buscamos o cotidiano, mas a realidade. O ali,
por onde andamos, no que pensamos, se mostra como é em si mesmo. Não fizemos
metáforas, nem interpretamos por representação. As coisas, as cores, os cheiros, os
gostos, os contornos, as luzes, as imagens e corpos, as sonoridades, formam suas
relações em seu modo de composição própria. São as condições de existir daquele
ali. Em seu como, em seu onde, em seus meios, a realidade expressa a
realteridade, afeta e é afetada. Aqui, o regime de relação entre realidade e
realteridade coloca a produção ativa como modo de composição criativa.

Andamos por entre coisas, corpos e ideias. Se coisas e ideias puderem ser
compreendidas como corpos, poderíamos dizer: nos movemos ou repousamos entre
corpos. Se as relações entre coisas, corpos e ideias são decodificadas por
esquemas habituais, por semelhanças, analogias, representações, vivemos pouco o
encontro, o passeio. Teremos falsas alegrias, já que só sentiremos prazer quando
encontrarmos algo igual, esperado, previsto, enquadrado, fixado, modelado a uma
forma padrão de coisas, corpos e ideias. Diferente se andarmos curiosos. Atento as
pequenas mudanças. As formas mais particulares. Os esquemas menos
conhecidos. Estaremos mais abertos para aprender e sentir o novo nos atualizando.
Não se trata de erudição. De inteligência. De sofisticação. Mas, da simplicidade de
acolher o imprevisto, o improvável, o revolucionário.

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Dizíamos que enquanto a realidade se atualiza nas suas relações com a
realteridade, a realidade se realiza com suas relações com a cotidianidade.
Suponhamos que agora aquele lugar ali nos seja familiar, já vivemos tempos
diversos e repetidamente, que nos sentimos habituados com esse ali. O que
aconteceu? Duas coisas ao menos: ou conseguimos eliminar tudo que seja novo e
traçamos uma única linha (molar) pelo qual apreendemos e conhecemos a vida que
ali acontece. Fixando-as, limitando-as. O que quer dizer que não conhecemos o
lugar, mas que tornamos o ali num lugar já conhecido. Enquadramos. Regime da
reprodução e anti-produção. Ou, formaremos uma nova cotidianidade. Mas, nesse
caso nós também não seremos os mesmos. Pois, essa cotidianidade se deu pelas
composições de relações em que nós fomos ativos em buscar compreender o como
nos afetam as coisas, os corpos e as ideias que ali se expressam. Observamos que
não se trata da mesma cotidianidade. Nem formam a mesma consciência. Outra
consciência, agora implicada por escolhas, por opção participativa. Por composição
ativa. Por atualizações criativas.

A realteridade como virtual atualiza-se na realidade atual. Cada coisa, corpo


ou ideia se compõe de intensidades afetivas virtuais e atualidades formais. Por que?
Porque tudo é produção. Embora possamos distinguir realidade de realteridade,
como duas linhas diferentes uma da outra, são paralelas, coexistentes. São
imanentes e compõe a ontologia da realidade. Mas, uma coisa é lidarmos com a
realidade nela mesma. Outra é lidarmos com a realidade enquanto objeto de uma
representação. A realidade tomada desde seu primeiro contato, a partir das formas
representacionais, define o cotidiano imaginário, fantasioso ou fetichista. Já as
realidades tomadas em si mesmas, suas intensidades, em suas relações de
composição, temos acesso a realteridade, que se expressa em cada movimento, em
cada passagem de um estado a outro, em cada modo de experiência, de vivências.
É outro modo de afetação, que compõe outras forças de existir ou outras potências
de agir.

Há uma passagem da realteridade à realidade e há uma modelação da


realidade por fixação de cotidianidades. São dois modos de viver, de se colocar
entre as coisas, corpos e ideias. A diferença é que numa há a fixação da realidade

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por hábitos, bom senso, senso comum, no qual se perde o acesso a realteridade e
com isso ignoramos ou resistimos aos processos de atualização. Realizamos o
enquadramento e perdemos as singularidades de produção. Disso resulta a
consciência alienada, reativa, ressentida. Diferente é quando a vida se renova ao
abrirmo-nos para a realidade, levando em conta as singularidades, as individuações,
as dramatizações e as diferenciações, dando abertura para o devir atualização.

Tendo esses dois movimentos, podemos nos perguntar diante de indivíduos,


grupos e instituições, projetos e programas, ações e eventos, como esse se
compõe? Quais seus regimes de relações? Onde acontecem? Por que meio se
expressam? O procedimento básico é buscar as relações entre
realidades/realteridades, a ontologia. Sabemos que nesse complexo
realidade/realteridade se tramam as três superfícies. Nas tramas, interrogamos:
como essas se produzem ou enquadram; como são criativas ou são submetidas a
formatação de uma cotidianidade alienante ou se, ao contrário, se abrem para a
produção do novo? Realiza-se um modelo representacional, significante ou atualiza-
se acontecimentos-sentido, entre singularidades e individuações? Onde? Quando?
Como? Por que meios práticos, isso se mostra, isso se expressa, isso se compõe?
Tais procedimentos tratam de uma klínica onde a estratégia esquizodramática pode
ser um dos recursos de uma intervenção que vise o Despertar nas Paixões.

Temos, assim, um dispositivo de intervenção. Agora nos falta uma estratégia


e colocar a questão, formular o problema e disponibilizar caminhos para a produção
desejante. Primeiro, tomaremos tais procedimentos de intervenção como um modo
de Despertar nas Paixões, já que partiremos dos conceitos de afeto e potência em
Spinoza, em que se detecta a possibilidade à passagem de uma consciência
alienante para uma aberta à atualização e, depois, mostrar que o dispositivo
Despertar nas Paixões, pode ser compreendido como uma contribuição aos estudos
das Klínicas esquizodramáticas.

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3) DESPERTAR NAS PAIXÕES: pontos de uma cartografia spinozista

Partiremos das seguintes questões: O que são ideias? O que são paixões? O
que é afeto? O que diferencia a ideia do afeto? O que diferencia ideia-paixão de
ideia-noção comum? Como tais conceitos podem nos ajudar a pensar a Klínica do
Despertar nas Paixões?

Na aula de 24/01/19784, Deleuze inicia informando que deixará de falar sobre


variação contínua, para discorrer, a pedido de seus ouvintes, sobre a diferença entre
ideia e afeto em Spinoza. Há um cuidado na construção dos conceitos. Trata-se de
aulas em Vincennes, sua narrativa é pedagógica. Apresenta movimentos que vão de
um ponto ideia ao contraponto afeto, buscando dar visibilidade às intensidades
conceituais em debate.

No que segue, iniciaremos por diferenciar realidade e ideias. Depois


estudaremos realidade e variação contínua, para pensar os dois níveis de
conhecimento ou formação de consciência.

2.1) Realidade e Ideias

Para falar da noção de ideias em Spinoza, Deleuze realizará advertências


terminológicas, no qual difere affectio como afecção e affectus como afeto. Isso se
torna importante, já que em várias aulas posteriores retomará essa distinção5.
Afecção é diferente em natureza de afeto. A afecção (affectio) resulta de uma
mistura, “é um estado de um corpo enquanto sofre a ação de outro corpo” (1978: p.10).

Já o afeto (affectus) é algo que se dá em uma passagem, fazendo as afecções


variarem. O afeto remete a variação contínua, onde o que muda é o grau de
intensidade, o aumento ou diminuição de potências entre corpos e ideias envolvida
no encontro (occursus). Cada encontro resulta em relações entre afecções que se
4
Para esse artigo, tomaremos as aulas de Gilles Deleuze sobre Spinoza em Vincennes. Trata-se de
textos resultado de degravações de fitas cassetes (o documento refere-se a algumas aulas no
período de janeiro de 1978 à março de 1981 constituindo-se em uma versão parcial digital em
português, tendo como referência “Curso de Gilles Deleuze. Tradução Emanuel Angelo da Rocha
Fragosoe Hélio Ribeiro Cardoso Jr.”) disponibilizado por movimentos que buscam possibilitar acesso
ao pensamento deleuziano. Também nos remeteremos a uma versão escrita em Espanhol dessas
aulas de Deleuze. Deleuze. G “Em Medio de Spinoza” da editora Cactus, Buenos Aires, 2° edição,
(2008).
5
Essa diferença de natureza entre affectio e affectus, retoma o paralelismo que forma o complexo
realidade/realteridade, que se compõe das três superfícies comentadas no ponto anterior.
18
compõe ou se decompõe. A passagem de um estado a outro, Spinoza chama de
afeto.

Inicialmente, Deleuze, apresenta a ideia como realidade objetiva. A realidade


objetiva resulta da noção de que a ideia é uma representação de alguma coisa. É
um modo de pensamento representacional. Toda representação é uma ideia, e
forma a realidade objetiva. Acima chamamos de cotidianidade alienada. A ideia
enquanto representa difere do afeto, que é um pensamento não representativo.
Então, a definição nominal que diferencia a realidade da ideia e a realidade do afeto
no pensamento, é simples. A realidade da ideia é representativa. Algo é capturado
na coisa e tornado uma imagem representativa. Essa é a realidade objetiva. Já o
afeto, um amor, um medo, uma tristeza ou alegrias, isso não representa nada. Afeta,
se sente, se vive, mas não representa.

Deleuze nota que não dá para sentir sem uma ideia. Mesmo confusa,
obscura, é necessário uma ideia para fazer surgir o afeto. Com isso mostra que há
uma anterioridade da ideia em relação ao pensamento não representativo, que é o
afeto. Mas, “que o afeto pressupõe a ideia, isto, sobretudo, não quer dizer que ele se
reduz à ideia ou a combinações de ideias” (1978: p.6). Mesmo para querer, amar,
desejar temos que ter uma ideia, vaga pelo menos, mas a representação do objeto
que se quer não se reduz a condição de querer, de amar e desejar, que são afetos,
incorpóreos, intensivos. Veremos que se trata de duas formas de pensamento que
diferem por natureza, embora a ideia seja primeira em relação ao afeto, ela não a
determina. Em outras palavras, a realidade objetiva é anterior a realteridade afetiva,
mas não a determina.

Há uma diferenciação na ideia. Há a ideia da coisa como representação no


pensamento e há a coisa em si mesma, como realidade formal. Aqui surge uma
aprofundamento que possibilitará pensar o afeto para além da condição de
pensamento não representacional. A ideia, sem representação, nela mesma, define
a realidade formal. São dois modos de abordar a ideia: uma dita objetiva, realidade
representativa, outra, a ideia em si mesma, como realidade formal. Assim, toda ideia
objetiva é representativa e é ideia de uma ideia. Mas, a ideia da ideia difere da coisa
a qual ela representa. A representação não e o mesmo que o representado. A
19
representação substitui, vem ao pensamento no lugar da coisa em si, no qual pode-
se perceber pela representação que dela se faz. Seria dizer: a percepção e o
percebido são diferentes por natureza. Daí, a realidade objetiva é conhecida como
ideias inadequadas. Já a realidade formal, os corpos em si mesmos, esses
possibilitam acesso a ideia adequada6. A distinção entre ideia adequado e ideia
inadequado será uma noção importante para compreender a lógicas das paixões.

Em Bérgson se percebe algo semelhante. No ponto em que fala da percepção


da matéria. O cérebro percebe a partir do intervalo que mantém com a medula. Há
um intervalo entre cérebro e medula, onde vai se encarnar as imagens ideias. Mas,
na lógica da percepção, a coisa percebida é sempre maior que a percepção que
dela fazemos. Isso é devido as próprias condições do funcionamento cerebral, que
capta dos objetos percebidos só o que lhe interessa. A percepção é sempre menor
que a realidade da coisa em si. Ou, de outro modo, a realidade formal é maior que a
representação que a ideia objetiva faz dela. Em Bérgson, o cérebro só capta da
realidade formal aquilo que lhe interessa. Daí, a realidade formal ser sempre maior
que a representação que se faz dela.

Voltando a Spinoza. Essa ideia em si mesma, é o que Spinoza chama de grau


de realidade ou de perfeição. Logo, a realidade, enquanto não representada, é um
grau de perfeição. Com isso chega-se a duas imagens: uma que diz do lodo
extrínseco da ideia (a ideia da ideia), que se revela ao pensamento representativo,
que é sempre ideia inadequada, porque parcial em relação a coisa de que se faz
uma ideia. E o lodo intrínseco7 da ideia, enquanto realidade formal, a coisa em si
mesma, sem representação, que revela a Ideia adequada. Mas, o importante é não
confundir as duas dimensões da ideia. Isso porque será da realidade formal, da
coisa em si, do lado intrínseco da ideia, que se verá as composições ou as misturas,
bem como, uma noção mais profunda de afeto.
6
Spinoza, Baruch. ÉTICA. Coleção Universidade de bolso. Tradução: Lívio Xavier. Ediouro. Sem data
de publicação. Livro II Sobre a Natureza e a Origem da Mente dirá, na Definição III. “Por ideia
entendo um conceito que a mente forma por que é coisa pensante”. E na definição IV. Por ideia
adequada entendo uma ideia que, enquanto considerada em si e sem relação com um objeto, tem
todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira. (Spinoza: p. 18)
7
Na Explicação do livro II, Spinoza refere: “Digo intrínsecas para excluir o que é extrínseco, isto é, a
conveniência da ideia com seu ideado”. P.21.

20
O exemplo dado por Deleuze ilustra bem. A ideia da ideia de Deus é diferente
da ideia da ideia de rã. Uma rã se representa extrinsecamente de modo diferente da
representação de Deus. Da mesma forma se pode dizer da ideia como realidade
formal intrínseca de Deus, não tem a mesma ideia intrínseca de rã. Vemos que tanto
extrínseca como intrinsecamente, a ideia de Deus tem um grau de realidade objetiva
e formal mais perfeita, que a ideia de rã. Isso mostra que há diferentes graus de
realidade ou cada realidade é um grau de perfeição.

A ideia formal nos remete ao grau de realidade ou de perfeição. Está sempre


em ato. Trata-se de um afecção instantânea. A vida cotidiana, em todos seus
momentos, acontecimentos e eventos, não é representativa, mas em si mesmo é um
grau de realidade ou de perfeição, que nos afeta. Somos afetados pelas
intensidades da vida. A cada momento nos deparamos, na existência mesma, com
realidade formais. Elas nos afetam. São essas realidades ou grau de perfeição que
estarão nos encontros, que comporão as relações entre nosso corpo e nossas ideias
com outros corpos e outras ideias. Isso resulta em prática, é a vida que nasce das
misturas em que vivemos juntos, nessa ou naquela realidade. Mas, qual a diferença
entre essa ideia formal, essa realidade não representativa, em relação ao conceito
de afeto?

2.2) Afetos e Variação Continua

O cotidiano, a realidade de um individuo, de um grupo, de uma instituição, se


compõe ou se decompõe de acordo com os encontros que vivemos ou das ideias
formais, intrínsecas8, que possuímos. Nossa vida está sempre variando em
conformidade com a realidade com que estamos lidando. Num mesmo espaço
olhamos para uma lado, depois olhamos para outro, não se trata da mesma
realidade, da mesma ideia, da mesma perfeição. Uma comida, uma bebida, um
lugar, um cheiro, um gosto, encontrar pessoas, uma imagem, uma cena, são
relações entre estados diferentes, promovendo transições tanto no pensamento
como no corpo. Algo muda. Tais mudanças acontecem constantemente, em todos
os instantes, de tal sorte que podemos notar uma sucessão continua, por menor que
seja, em ato, em nossa vida cotidiana. Mas, essa sucessão de ideias nos ensina
8
Não se trata da cotidianidade alienada, mas da realidade que coexiste com a realteridade.
21
algo mais. Há uma variação que nos caracteriza. Essa mudanças das relações entre
corpos e ideias como realidade formal, não resulta só da pluralidade de encontros
das ideias e dos corpos no cotidiano, mas delata uma mudança de estado. Essa
transição de intensidade de um estado a outro, revela uma passagem. Passagem
que não mais fala do extenso, mas dá testemunho da duração. Aqui surge o afeto.

Se as ideias são o que compõe nossa mente num dado momento, o são
porque estão sempre se sucedendo. Em movimento ou repouso, estamos sempre
alterando a realidade seja do corpo ou no pensamento. É dizer, em nós e nas
coisas, as ideias se sucedem continuamente no extenso9, no espaço. Quer dizer, se
estamos a todo tempo passando de uma ideia a outra, de uma realidade a outra, de
um grau de perfeição a outro, nossa atualidade se revela pelas ideias que se põe.
Isso é importante: para Spinoza, não somos nós que possuímos as ideias, mas as
ideias que em nos se afirmam. Somos “automaton”. Estamos expostos ao extenso,
ao espaço, ao encontro com outros corpos e outras ideias que com o nosso corpo e
nossas ideias se misturam, nos afetam e, assim, podem vir a nos compor, trazendo-
nos a alegria ou pode nos decompor, legando-nos a tristeza.

Mas, de um lado, temos que ter em conta que essas mudanças de estado, de
uma ideia formal a outra, de um modo de afetação a outro, aparece a variação. É
toda nossa vida, nossa existência, que é uma variação continua. De outro, essa
variação continua revela outra superfície que difere em natureza da ideia formal.
Trata-se de uma passagem. Há uma passagem de um estado a outro. Essa
passagem revela a mudança de grau de perfeição ou de realidade. Essa passagem
é temporal, essa passagem é o que define o afeto. O afeto é um acontecer da
duração10. Não se trata mais de forma, mas de intensidade. Daí, Deleuze mostrará,
para Spinoza, nosso corpo, nossa realidade, está sob variação continua11, porque
estamos sempre em movimento ou repouso. Variação de quê? Da força de existir
(vis existendi) ou da potência de agir (potentia agendi).

9
Spinoza Livro II PROPOSIÇÃO VII - A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a
conexão das coisas. P. 20 ou na PROPOSIÇÃO XIII O objeto da ideia que constitui a Mente humana
é o Corpo, ou, um certo modo da extensão existente em ato, e nada mais. P. 23
10
Spinoza Livro II Explicação V. Duração é a continuação indefinida do existir. P.18.
11
Essa variação contínua que a cotidianidade alienada perde ou nos faz perder. Daí, não
compreendermos o que de fato nos afeta, somo efeitos, sem percepção de causas. Mas, causa em
Spinoza, são as intensidades afetivas e não as ideias formais.
22
Notemos que o afeto ganha uma definição real12 e não mais nominal.
Enquanto definição nominal, afeto dizia ser o modo de pensamento não
representacional. Agora, isso se aprofunda: o afeto é o que efetua a afecções. Que
são os graus de potência de um corpo sobre outro. As afecções são graus de
potências em ato, instantâneo13. Desde então, há uma aumento ou diminuição da
força de existir, da potência de agir, de acordo com os estado pelo quais se passa.
Voltando ao fenômeno de passagem. Vimos que a transição vivida definia o afeto. O
afeto não é de passagem, mas se dá na passagem de um estado a outro. Essa
passagem pode ser favorável ou não. Pode vir a compor ou decompor relações.
Pode aumentar ou diminuir a potência. Serão, igualmente, afetos o que ocorre nas
passagens, seja da diminuição ao aumento ou do aumento à diminuição do grau de
perfeição, de realidade, de potência de agir ou força de existir. Nossas afecções, a
força de um corpo ou de uma ideia sobre nosso corpo e nossas ideias, são sempre
instantâneas. Trata-se de relações diretas com o vivido, com a circunstância, com o
aqui e agora, de cada momento. Daí, para Spinoza no livro II – PROPOSIÇÃO VIII
“O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser envolve, não
um tempo finito, mas um tempo indefinido.” Isso porque a todo instante estamos
expostos ao acaso dos encontros, onde um novo acontecimento pode fundar uma
nova duração. Segue na PROPOSIÇÃO IX “A Mente se esforça em perseverar no
seu ser por uma duração indefinida, tanto enquanto tem ideias claras e distintas,
como enquanto tem ideias confusas, e ela tem consciência deste esforço.”(p.42). Isso
significa que a cada momento, em cada instante, as afecções instantâneas estão em
ato, são efetivada plenamente, seja com maior ou menor grau de realidade. Isso
caracteriza a condição de variação contínua14.

Notemos que não se trata de uma comparação entre essa ideia que dispomos
no agora e outra que vem depois. Não é uma simples relação do espírito, mas um

12
Deleuze dirá: “chamo a definição real à definição que mostra, ao mesmo tempo que ela define a
coisa, a possibilidade dessa coisa” (Deleuze: 1978: p. 9).
13
Spinoza Livro II - PROPOSIÇÃO XI -A primeira coisa que constitui o ser atual da mente humana é
a ideia de uma coisa singular existindo em ato. P. 23 e no Corolário -Disso se segue que o homem é
constituído de Mente e Corpo e que ele existe tal qual o sentimos. p.24
14
Podemos dizer que a ideia enquanto representa forma a cotidianidade alienada, por se compor de
um menor grau de perfeição, logo, tendem a separar as forças de existir ou a potência de agir, do que
elas podem.

23
acontecer direto em ato. É sempre algo do vivido que muda na realidade formal, que
deixa a condição do que era para ser outra coisa. Nessa mudança, opera-se uma
passagem. Nessa transição entre ideias e corpos, de um estado a outro, aparece o
afeto.

Mais um ponto, como que fechando esse pequena reflexão. Em relação a


passagem resultante dos encontros, no qual as relações entre ideias mudam sua
realidade ou sua perfeição, Spinoza proporá dois afetos de base: alegria e tristeza.
Os afetos como conceito respondem pela presença da duração na extensão, quer
dizer, os afetos atualizam as ideias. São responsáveis pelo aumento ou diminuição
dos graus de potências, pelas forças de afetação, uma vez que são os afetos que
efetua as potências, seja compondo ou decompondo relações. Assim, dirá Deleuze,
na sua leitura de Spinoza: “A los afectos que son aumento de potencia les
llamaremos alegria. A los afetos que son diminuiciones de potencia les llamaremos
tristeza”.(Deleuze 2008: 231).

A realidade é formal. Vivida a cada instante. Mas, nossa vida, nosso corpo
está sob uma variação continua. Mudamos, mas não mudamos só de grau de
afecção, senão de afetos ou de natureza afetiva, a cada momento, em cada estados
pelos quais passamos. Em movimento ou repouso, nossa vida muda, nosso poder
de afetar se atualiza, a força de existir se transforma. Quando no encontro as
relações entre realidade de ideias e de corpos, ocorre o aumento de nossa
capacidade de existir ou nossa potencia de agir, estamos em alegria. Ao contrário,
quando no encontro nossa perfeição ou nossa realidade diminui, estamos em estado
de tristeza. Com isso podemos inferir que a cotidianidade alienada é um estado de
tristeza, já que as potência de agir estão separadas do que podem, por fixação,
limitação.

2.3) MENTE E CORPO: a natureza das Paixões

Ate aqui vimos que afeto se diz pela variação da potencia de agir, pela
passagem que muda as relações de forças de existir. Para tanto, notamos que a
noção de ideia, corresponde a um modo de realidade. A ideia objetiva, extrínseca,
se diz inadequado porque resulta de um modo de pensar por representação. E a

24
ideia formal, intrínseca é adequada, já que fala da coisa em si. É o real não
representado, mas vivido, no qual revela-se os graus de perfeição. Por fim, a
passagem, própria a esse segunda realidade composta por ideias formais, mostraria
duas coisas: uma, que as ideias se sucedem, outra, que entre uma ideia e outra algo
muda, há uma variação, onde surge a passagem no qual se nota o aumento ou
diminuição de potências, de realidades ou grau de perfeição. Esse é o afeto.
Finalmente, a composição pode produzir alegrias ou tristezas. Será alegria quando o
encontro de corpos e ideias se tornarem mais potentes, e será tristeza quando um
dos corpos sofrer redução de suas capacidades. O que quer dizer que toda alegria
da testemunho de uma composição feliz e toda tristeza revela uma decomposição
triste.

Agora Deleuze quer nos conduzir a pensar que existem três tipos de ideias
que caracterizariam três tipo de conhecimento, que revelará três tipos de
consciência: as ideias paixões, as ideias noções e as ideias essências. Para esse
monografia, tomaremos mais a passagem das ideias paixões para ideias noções,
como condição para introduzir a Klínica do Despertar nas Paixões.

O Despertar nas Paixões não é a paixão como afeto, mas que das peixões
em certas condições se pode chegar a formar um terceiro: as noções comuns. Como
não se chega as noções comuns sem passar pelas paixões passivas, temos que
supor que há um modo em que as paixões deixam de ser passivas e se tornam
ativas. Esse movimento ativo, alegre, entendemos como um despertar. Despertar,
mas não das paixões, já que não são as paixões que despertam, mas a partir de
paixões alegre é que algo se desperta. Esse despertar é chamado como segundo
nível de conhecimento porque os afetos afetam a si mesmo, dando condições de
apropriação, de aprendizado. Da formação de um outra consciência. Ou, a saída da
cotidianidade alienada e retomada da relação entre realidade e realteridade, na
formação de uma ontologia de vida. Isso não é um caminho, mais uma direção, um
endereçamento seja do corpo, como do pensamento.

Mas, o que é afecção (affectio)? Dirá Deleuze: afecção é o efeito da ação de


um corpo sobre o outro. É um estado de um corpo enquanto sofre a ação de outro. A
afecção é uma mistura no qual um corpo age sobre o outro. “toda mistura de corpos
25
será chamada de afecção” (1978:p.10). Mas, toda a afecção envolve um afeto. Isso
quer dizer que uma corpo, uma ideia, envolve, contém um afeto. O que significa que
são os afetos que realizam os corpos em seus encontros, em seus movimentos e
repousos, que nada mais são que o poder do corpo e das ideias de serem afetadas
e de afetarem. Em síntese: é o afeto que efetua a afecção. Mas, lembremos: há
diferença entre os corpos afetados e os corpos afetantes, sendo que as afecção ou
affecctio, dizem dos corpos afetados. E qual será a natureza dos corpos afetantes?
Como vimos: são os afetos que surgem nas passagens e, assim, atualizam as
afecções ou os graus de potência.

O corpo (também o humano) é um grau de potência. No livro III da Ética de


Spinoza “Sobre a Origem e a Natureza dos Afetos” dirá na PROPOSIÇÃO XIX -“A
Mente humana só conhece o próprio corpo humano e só sabe que ele existe pelas
ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado.” (Spinoza: p.28). Isso mostra que não
podemos nos conhecer nem conhecer outros corpos, senão pelas afecções que
sofremos. O que equivale a dizer que no corpo, as relações que o constituem, surge
de um fora, numa exterioridade, onde se encontra em constante estado de
movimento ou repouso15. Isso não quer dizer determinismo do corpo sobre as
ideias, nem das ideias sobre o corpo, mas um paralelismo corpo e ideia, extensão e
pensamento. Spinoza16 na PROPOSIÇÃO II diz “ Nem o Corpo pode determinar a
Mente a pensar, nem a Mente pode determinar o Corpo ao movimento ou ao
repouso.” Segue abaixo no Axioma IV. “Sentimos que um certo corpo é afetado de
muitos modos”. E o seguinte V. “Não sentimos nem percebemos coisas singulares
além dos corpos e dos modos do pensamento.” Por fim, “PROPOSIÇÃO XII – “Tudo
que acontece com o objeto da ideia que constitui a Mente humana deve ser
percebido pela Mente humana, ou, dito de outro modo, deve necessariamente haver
uma ideia de tal coisa na Mente. Ou seja, se o objeto da ideia que constitui a Mente
humana é um corpo, nada poderá acontecer a este corpo que a Mente não
perceba.” (p.28)

15
Vemos isso no AXIOMA I “Todos os corpos ou se movem ou estão em repouso.” E no AXIOMA II
“Cada corpo se move, ora mais lentamente, ora mais rapidamente.” Daí o lema I “Os corpos se
distinguem em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão e não em relação à
substância. P.24
16
Spinoza, Baruch. ÉTICA. Coleção Universidade de bolso. Tradução: Lívio Xavier. Ediouro. Sem
data de publicação. p. 28
26
Poderíamos apresentar uma imagem a título de ilustração: o corpo sente que
a mente pensa, tanto quanto a mente pensa o que o corpo sente, mas não há
determinismo, mas coexistência de duas linhas ao infinito. Seja a linha dos corpos
como extensão, seja a linha do pensamento como duração. Assim, podemos definir,
com Deleuze, que um corpo, segundo Spinoza, se compõe de um conjunto
complexo de relações de movimento e repouso que se estendem ao infinito, sendo
um modo, uma maneira de ser, que possui, por isso, seu poder de afetar e ser
afetado. Como os afetos efetuam as afecções, no movimento de transição vivida, os
corpos se prolongam tanto na extensão onde se realizam, como na duração onde se
atualizam. Entendendo que as relações constitutivas de um corpo, sua composição
singular, se mantém apesar de todas as mudanças acorridas em seus graus ou
níveis de afetação, ao acaso dos encontros. Mudamos, mas não de grau de
potência, mas de intensidade em que se efetuam nossas potência. Daí, alegrias
para os aumentos e tristezas para a redução de intensidade nas composições entre
corpos e ideias.
Como vimos. Os afetos são intensidades que efetuam as potências na
passagem de um estado a outro, seja no nível das ideias ou das relações entre
corpos. Esses conceitos fazem parte da ética para Spinoza, que a defina como uma
ontologia pura, diferente da moral que sempre supõe valores oriundos de ideias
inadequadas de transcendência17. O Uno superior ao ser. Ao contrário. Na ética,
não há nada superior ao Ser, não há hierarquia no plano de imanência. Deleuze
expõe que o Ser, para Spinoza, é a substância infinita18 de Deus. Já nós existentes
somos finitos e mortais, logo nós “no seremos seres, seremos maneira de ser de esa
sustância.19” Um grau de potência, uma relação, um existente, é um modo ou
maneira de ser. Não se trata de essência, mas de grau de potência o que nos
constitui. Enquanto tal, estamos expostos aos acasos dos encontros. Isso se justifica

17
A cotidianidade alienada é compostas por valores transcendentais, de modo que segue a princípios
de competências de sábios ou sacerdotes, que ditam o que é o dever que cada um deve seguir para
realizar suas potências, de acordo com suas essências, numa representação ideal e objetivo de
melhor sociedade possível.
18
Spinosa, Ética, livro I Sobre Deus – Definições: III. Por substância entendo o que é em si e se
concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa para se formar. P.2
segue-se da definição VI. Por Deus entendo o ser absolutamente infinito, isto é, uma substância
composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita.
19
Deleuze. G “Em Medio de Spinoza” editora Cactus, Buenos Aires, 2° edição, (2008). p.70
27
porque nosso corpo mantém relações ao acaso dos encontros com outros corpos e
ideias que vem de fora. É o lado extrínseco de nossa vida. Nossas relações com o
fora20 relativo, essas que formam em nós essa cotidianidade alienante. Objeto de
nossa intervenção.
E essa maneira de ser se faz em duas linhas, corpo e ideia, extenso e
duração, atual e virtual. De um lado, os diferentes graus de potência dos existentes
atuais e, de outro, a oposição de afetos nos modos de existência virtuais. Há um
paralelismo, um existente que se define por um grau de potência, um corpo, não
aparece sem que o modo de existência, a intensidade, que são as maneiras de
afetar e ser afetado, já estejam aí. Coexistência de duas superfície. Dirá Deleuze:
“Los existentes o los entes son em el desde dos puntos de vista simultáneos, desde
el punto de vista de una oposición cualitativa de los modos de existencia e y desde
el punto de vista de una escala cuantitativa de los existentes. Es enteiramente el
mundo de la inmanencia21”.
Até aqui vemos que a natureza das paixões surge da coexistência de duas
superfícies que são condições de qualquer realidade, seja na forma de extensão
atual, seja no modo de duração virtual22. Mas, a realidade objetiva encontra-se
limitada de acesso a dimensão das intensidades, isso porque se compõe de
representação ou de ideias de ideias. Assim, as natureza das paixões se mostra nas
relações diretas entre os corpos formando realidades. O que nos ensina que
estamos expostos aos acasos dos encontros, já que conhecemos (mesmo que
inadequadamente) as coisas pelas misturas de corpos e de ideias.

20
Baremblitt nos alerta da importância de diferenciarmos o fora relativo, que diz da realidade objetiva,
representacional, extrínseca, do fora absoluto, que se entende ao infinito, sendo mais distante que
todas as distancia e mais próximo que toda a interioridade. É o complexo realidade/realteridade com
suas três superfícies. Nos diz: “ todo dispositivo tem um fora relativo, que é simplesmente seu
exterior, e um fora absoluto (que pode ser-lhe interno e/ ou externo) que nada mais é que sua
realteridade, seu diagrama de forças, sua porção de superfície produtiva desejante” (Baremblitt 2010: p. 44)
21
Deleuze, Gilles Em Medio de Spinosa. Cactus. Série Clases. Buenos Aires 2008. 2° edición.
Classe III Las distinción ética de los existentes. Potencia y afecto. P.72
22
Baremblitt, G. Introdução à Esquizoanálise: coleção esquizoanális e esquizodrama – FGB/IFG –
2010: diz, ao se referir à produção desejante na pragmática universal da esquizoanálise que
“sintetizei suas ideias acerca do que poderíamos chamar de ontologia da realidade (assim, como de
uma realidade outra, a realteridade)”. Remetendo-nos a pensar que a totalidade da realidade se
compõe do complexo realidade/realteriade que se refere a existência de três e não duas, superfícies
imanentes entre si: a superfície produção de produção, a superfície produção de reprodução e anti-
produção e a superfície de produção de consumo/consumação. Isso foi objeto de dialogo no ponto
anterior. p.43
28
Aqui vemos um tipo de consciência, a mais simples, que se definirá por esse
tipo de relação entre corpos e ideias que se chamará, em Spinoza, de paixão. A
paixão é o efeito de um corpo sobre outro corpo. Um corpo apaixonado só conhece
a realidade que lhe sobrevém através das afecções pelos quais passa. Mas, essas
afecções, por serem remetidas a modelos representacionais, não lhe lega as
verdadeiras causas, trazendo ao corpo apaixonado uma consciência alienada. A
consciência alienada conhece a realidade nos limites dos efeitos que outros corpos
ou outras ideias, operam sobre o seu. É um conhecimento primário ou rudimentar.

Para avançar sobre essas noções finais de níveis de conhecimentos e


chegarmos a pensar o Despertar nas Paixões, temos que compreender o que são as
misturas nas paixões. Veremos que o conhecimento passa por diferentes modos de
encontro. Se terá os encontros nos quais os afetos, que resultam das passagens,
aumentam ou diminuem os graus de potência de agir e, assim, interferem nas forças
de existir. Mas, o que chamamos de Despertar nas Paixões só comparecerá sob
certas condições de encontros nos quais as relações entre corpos ou ideias, tendem
a aumentar as capacidades ativas dos envolvidos. São paixões alegres, mas trazem
a possibilidade de um salto, ou a formação de um terceiro ativo, que passa a afetar a
si mesmo, uma noção comum. É o que veremos como parte final desse ponto.

2.4) MODOS DE CONHECIMENTO: das paixões às noções comuns.

São três tipos de conhecimento que Deleuze irá depurar da Ética em Spinoza.
No texto, “Spinoza e os Signos” comporá um glossário a respeito dos conceitos da
obra, onde trata do verbete conhecimento, ao qual inicia afirmando que “O
conhecimento não é a operação de um sujeito, mas a afirmação da ideia na alma. –
não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em
nós afirma ou nega algo de si mesma.23” Não há distinção entre entendimento e
vontade, porque o conhecimento é auto afirmação da ideia que se coloca à
consistência como causa ou como efeito. O espantoso é que o conhecimento assim
posto, não é o que se adquire, não é o que se domina ou conquista, mas o que nos

23
Deleuze, G. Spinoza e os Signos. RÉS Editora Limitada. Coleção substância. Tradução Abílio
Ferreira. 1970. P.61

29
envolve, o que nos possui. Isso quer dizer que aprender não é algo da ordem de um
exercício intelectual, mas de um esforço (conatus), uma vivência. Implica
experimentações, onde os corpos e ideias se afetam, onde somos atravessados por
movimentos ou forças que nos mudam nosso modo de existir. As ideias, mais que
dizer nos dizem, nos mostram, nos compõe ou decompõe, nos favorecem ou
desfavorecem.

Nesse sentido, conhecimento diz de um modo de existência que “prolonga-se


nos tipos de consciência e afetos que correspondem, de maneira que todo o poder
de ser afetado seja necessariamente preenchido” (Deleuze1970: p.61). Nossa consciência
resulta das ideias e dos corpos pelos quais nos relacionamos, nos envolvemos, nos
afetamos. Há três níveis de conhecimentos que devem compor iguais níveis de
consciência. A consciência ou conhecimento a partir das paixões externas, que
diferem do consciência ou conhecimento a partir das noções comuns, internas às
relações que, por suas vez, pode, não necessariamente, nos legar a consciência ou
conhecimento das essência primeiras, que se trata de uma interioridade mais
profunda ainda.

Para compreender o conhecimento de primeiro nível temos que retomar a


lógica dos encontros de corpos e de ideias. Vimos que nosso corpo tem relações
com o fora relativo, o extenso, onde estabelecemos relações de misturas. Os corpos
estão expostos aos acasos junto a outros corpos e outras ideias, seja objetiva, como
representação, seja formal, como coisas em si mesmo. Tudo coexistindo, mas em
dada circunstância, vem ao nosso encontro e as relações entre corpo e ideias se
fazem.

Os corpos se misturam. Isso quer dizer que cada individuo ou grupo,


estabelecem relações externas e extensas. Vimos que nas relações entre corpos se
realizavam as potências, que definia seu poder de afetar e ser afetado, compondo
as diferentes velocidades de movimento ou repouso. Com isso aprendemos que as
misturas de corpos, como das ideias, se sucedem.

Há um conjunto complexo de afecções que nos caracterizam e com elas


entramos nos encontros. A princípio nosso corpo é nossa paixão. Nosso corpo

30
assim formado, estabelece relações num movimento de sucessão de imagens
afecções que nos afetam, que nos conduzem, que nos freiam, de tal sorte que
percebemos uma passagem de um estado a outro, tanto nas misturas entre corpos,
como entre ideias. Ainda, compreendemos que o afeto surge nessa transição, nessa
relação entre um estado e outro. Essa passagem que define o afeto, efetua as
afecções paixões. Por isso toda afecção paixão envolve um afeto, mas lembremos
que afeto e afecção são de natureza diferentes. Um diz do espaço outro do tempo,
um fala da extensão outro da duração, um é objetiva outro possibilita a subjetivação,
uma é atual outra virtual.

Por fim, notamos que quando um corpo ou uma ideia, encontra outro corpo ou
outra ideia vinda de fora, do exterior, resulta em relações apaixonadas. Essas
relações apaixonadas são sempre inadequadas, porque não sabemos as causas,
mas só nos ligamos a elas por seus efeitos. Sentimos, mas não conhecemos o que
nos faz sentir, por isso estamos sempre exposto ao acaso dos encontros. Conforme
nos mostra Spinoza no Livro II na PROPOSIÇÃO IV “Uma coisa só pode ser
destruída por uma causa externa.” Ou na PROPOSIÇÃO V “Coisas são de natureza
contrária, isto é, não podem estar no mesmo sujeito, enquanto uma possa destruir a
outra.” Essas relações entre forças contrárias defini a paixão. Como mostra o Escólio
“Vemos que as paixões se referem à Mente enquanto ela tem algo que envolve
negação, ou enquanto é considerada como uma parte da natureza que, por si e sem
as outras, não pode ser percebida de forma clara e distinta.” (Spinoza: p.41).
Do exposto, podemos concluir que as paixões surgem dos encontros entre
corpos, no qual só podemos conhecer ou tomar consciência de seus efeitos. Assim,
destaca-se dois efeitos das misturas de corpos. Duas paixões de base: a alegria e a
tristeza24. Quando nas relações entre corpos, as mistura se fazem de modo que
diminua a capacidade de agir e de expressar, de uma ou do todo de nossas partes
constitutivas, estamos nas paixões tristes. É o regime das tristezas. Ao contrário:

24
Spinoza Livro II – “Vemos que a Mente pode padecer de grandes mudanças e passar ora a uma
perfeição maior, ora a uma perfeição menor. Estas paixões correspondem aos afetos de Alegria e
Tristeza. Por Alegria (Laetitiae) entenderei, no que se segue, uma paixão pela qual a Mente passa a
uma perfeição maior. Por Tristeza (Tristitiae) [entenderei] uma paixão pela qual ela passa a uma
perfeição menor.
31
quando nas misturas ou encontros, as relações aumentam25 a capacidade de agir e
de expressar, estamos nas paixões alegres. É o regime da alegria. Lembremos que
se trata dos afetos, das passagens que envolve as misturas que nos conduzem a
aumentar ou diminuir nossas relações características de ser. Elas podem nos convir
ou não. Isso fará a diferença para compreendermos as condições em que se pode
pensar o Despertar nas Paixões.
Da mesma forma que das paixões alegres, que envolvem nossa mente e
nosso corpo, passamos para o prazer ou contentamento, nas paixões triste que
envolve igualmente a mente e o corpo, podemos evoluímos para a dor ou a
melancolia. Mas, Spinoza faz uma especificação importante ainda nos escólios:
“deve-se notar que o Prazer e a Dor se referem ao homem quando uma de suas
partes é mais afetada do que as demais, ao passo que o Contentamento e a
Melancolia [se referem a ele] quando todas as partes são igualmente
afetadas”(Spinoza: p.43). Mantemos o prazer da alegria mesmo quando temos pequenos
maus estar, ou que estamos com certos constrangimentos que não nos afetam por
inteiro. Nosso corpo se encontra em um estado em que as alegrias preponderam
sobre as partes em que se mostram tristes. Porém, só evoluiremos para algo mais
intenso, quando todas as parte de nosso corpo são tomadas por afetos onde a
alegria nos remete ao contentamento e a dor evolui à melancolia. Mais do que bons
ou maus encontros, a qualidade e sua intensidade positiva fazem a diferença.
Vivemos ativos e alegres ou sucumbimos na dor da tristeza.
Seja como for, se afecções são os estados pelos quais nosso corpo passa
pela ação de outros corpos ou ideias, no qual surge as paixões como efeitos de
afetos que sentimos, quando nos relacionamos com o que vem de fora (relativo).
Nessas condições, sabemos mais dos corpos afetados, do que dos corpos
afetantes. Percebemos as paixões, mas não compreendemos o que sentimos, nem
por que sentimos. Por isso formam, em todos os casos, ideias inadequadas, porque
resultam de misturas, no qual não sabemos as causas26, só sentimos os efeitos de

25
Spinoza, Livro II - PROPOSIÇÃO XI – “A ideia de qualquer coisa que aumenta ou diminui, ajuda
ou limita a potência de agir de nosso Corpo, também aumenta ou diminui, ajuda ou limita a potência
de pensar de nossa Mente.” P. 43
26
Lembremos que Baremblitt nos ensinará que a realidade realiza em torna de relações entre causa
e efeito. Sim! Mas, em Spinoza, nos parece, implica o afeto, as passagens de um estado a outro, o
32
prazer e de dor. Deleuze se reporta aos exemplos de Spinoza a respeito da ação do
sol sobre a argila e a cera. Num caso, a argila endurece com a ação do sol, no outro,
a cera se liquefaz. Duas afecções diferentes de corpos diferentes. Percebemos essa
mudança de estado, essas reações dos corpos, mas não sabemos como, onde, por
quê isso se dá assim, aqui, agora. Sob tais condições se formam nosso primeiro
nível de conhecimento. Por isso nossa consciência inicial é alienada, limitada,
inadequada, porque resultado dos encontros das paixões. Tristes ou alegres as
paixões, como misturas dos corpos, formam conhecimento inadequado por
ignoramos as causas reais do que nos afeta.
Aqui vemos a positividade de Spinoza com sua filosofia prática,
compreendendo a potência de existir e de agir, de pensar e de conhecer, como
caminhos que devem ser trilhados via experimentação. Mas, na prática, o corpo
supera a ideia que se tem dele, daí a questão central em Spinoza “O que pode um
corpo?” Da mesma forma o pensamento, esse vai muito além da consciência que
dele se tem. No dizer de Deleuze:

“Numa palavra, o modelo do corpo, segundo Spinoza, não implica qualquer


desvalorização do pensamento em relação a extensão, mas o que é mais
importante, uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento: uma
descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não menos
profundo que o desconhecimento do corpo. Tudo isso porque a consciência é
naturalmente o lugar de uma ilusão”. (Deleuze 1970: p. 27)

Inicialmente a consciência como reflexão é uma ilusão, porque surge como


efeito das afetações de um corpo ou ideia que sobrevém ao nosso corpo, de fora
(relativo). Alegres ou tristes, os encontros com o que vem de fora são paixões.
Estamos, desde que nascemos expostos a decomposição, a maus encontros.
Misturas inadequadas, confusas, mutiladas, já que não nos fazem conhecer as
coisas em si e, portanto, não possibilitam tomarmos consciência de nós próprios.
Trata-se de conhecer por efeitos, sem ter noção de suas causas intensivas. Ou, que
dá no mesmo, ocorre uma confusão na consciência no qual se converte os efeitos
de corpos exteriores sobre o nosso, em causa final, como verdades primeiras. Nesse
sentido, a consciência tende a duplicar a ideia, “a consciência é sempre secundária

que dá luz a dimensão outra que não a realidade formal, mas, sim, de uma realteridade intensiva.
Daí, a diferença ser possível de compreensão, se levada em conta essas pequenas reformulações.

33
à ideia de que é consciência”. (Deleuze 1970: p. 64). A consciência tende a se formar no
nível da representação, por isso a consciência é, inicialmente, compostas de ideia
da ideia. Isso forma a cotidianidade alienada que referimos a cima.

As ideias das ideias aparecem como signos, tendendo a se encadear umas


nas outras de acordo com a memória ou hábito. Não são explicadas por nossa
essência, nem por suas característica internas, a realidade em si, formal, “por isso,
enquanto as nossas afecções misturam corpos diversos e variáveis, a imaginação
forma puras ficções” (Deleuze 1970: p. 87). Daí, a tomada de consciência não ter o poder
de mudar. Isso porque “aún no soy dueño de esa potencia de atuar”27. Esse será o
primeiro nível de conhecimento. O mais baixo dos conhecimentos: conhecer por
seus efeitos.

Dizíamos que as paixões podem nos conduzir tanta as alegrias como as


tristezas. Quando nos conduzem as alegrias é porque as relações entre corpos se
fazem de tal maneira que o resultado promove um aumento de nossas capacidades
de agir e expressar. As forças de existir aparecem na forma de prazer. Nessas
condições, algo acontece que favorece o surgimento de um terceiro, um outro corpo
no qual nossas relações e as relações de outros corpos ou ideias, deixam de ser
efeitos e aparecem junto as suas causas. Compreendemos o que acontece.
Fazemos dessa experiência algo positivo, tornamo-nos ativos. Desde então,
estamos em condições para pensar o segundo nível de conhecimento, onde surge
as noções comuns.

Essa outra experiência com o que vem de fora possibilita bons encontros,
alegrias, mesmo alienadas, mas que desvela um núcleo positivo nas ideias
inadequadas da consciência que sofríamos até então, no qual se pensa poder
buscar as experiência das noções comuns. Daí, a consciência se torna um lugar de
passagem de um grau menor a um grau maior de potência. Aumenta nossas forças
de existir. Esse núcleo pode “servir de principio regulador para um conhecimento do
.
inconsciente”(Deleuze 1970: p. 66) Nessa passagem ativa, situamos o movimento que
pode ser lido como Despertar nas Paixões. O terceiro, o ontológico se expressa.
27
Deleuze, Gilles. Em Medio de Spinosa. Cactus. Série CLases. Buenos Aires 2008. 2° edición.
Classe VII - Las pertenencias de la essência. p.244.

34
Avancemos um pouco mais. Deleuze se interroga: como chegarmos as ideias
adequadas se nós, naturalmente, somos determinados pelas ideias inadequadas?
Aqui se forma outro tipo de conhecimento, de segundo nível, por isso essa “forma da
ideia não se procura do lado duma consciência psicológica, mas do lado de uma
potência lógica que ultrapassa a consciência.” (Deleuze 1970: p. 87) . Desde então, a ideia
deixa de representar para se tornar em conteúdo expressivo, no qual a ideia reenvia
a outra ideias, no modo formal e material, no qual reúnem-se “na autonomia do
atributo pensamento e no automatismo da mente que pensa”. Isso mostra que se as
ideias adequadas resultam da potência de compreender, algo se torna ativo, no qual
somos a própria causa dessa ideia e dos afetos que daí resultam. “Ou melhor, ela
substitui os afetos passivos por afetos ativos que se desprendem da noção
comum...É esse o objetivo do segundo gênero de conhecimento” (Deleuze 1970: p. 66).

No segundo nível de conhecimento aparecem os afetos ativos ou noções


gerais que nos possibilitaram ter certo domínio nos modos de compor e evitar
relações entre de decomposição, e participar, assim, da construção de
conhecimentos. Diz-nos Deleuze: “hay entonces um solo tipo de tristeza-disminución
de la potencia, pero hay dos tipos de afectos de alegria: las alegrias-paisión e las
alegrias-acción”. Mas, no segundo nível de conhecimento “los afectos activos son
los afectos por los cuales me afecto a mi mismo 28”. Aqui, notamos a possibilidade de
uma passagem. Realizar meios de possibilitar essa passagem, o esquizodrama, é o
que definimos como um intervenção que visaria o Despertar nas Paixões.
Há o segundo nível de conhecimento no qual não se trata de estarmos
inocentes diante do que nos afeta, do que simplesmente pode vir e aumentar ou
diminuir nossa potência de agir e de expressar. Esse segundo nível se define pelas
noções comuns, atributos ou ideias gerais, aplicáveis aos modos existentes, mas por
sermos agentes efetuadores nesse processo, estabelecemos relações ativas.
Diferente das paixões passivas, no segundo nível de conhecimento os afetos são
ativos. São ações na medida em que esses afetos, em que cada um passa, passa a
afetar a si mesmo.

28
Deleuze, Gilles. Em Medio de Spinosa. Cactus. Série CLases. Buenos Aires 2008. 2° edición.
Classe VII - Las pertenencias de la essência. p.245
35
Os afetos ativos do segundo nível de conhecimento são os que possibilitam a
duplicação ou a substituição de afetos passivos, correspondentes ao primeiro nível
de conhecimento, o que nos remete a pensar essa passagem como um Despertar
nas Paixões. Diz Deleuze, (1970, p. 63):
“quando encontramos corpos que convêm com o nosso, não temos ainda a ideia
adequada desses outros corpos, nem mesmo de nós mesmo, mas sentimos
paixões alegres (aumento de nossa potência de agir) que pertencem ainda ao
primeiro gênero, mas que nos induzem a ter a ideia adequada do que é comum
entre tais corpos e o nosso. Por outro lado, a noção comum, em si mesma,
estabelece harmonias complexas com as imagens confusas do primeiro nível, e
29
apóia-se em certos traços da imaginação. ”.

Há, então, algo como um núcleo positivo nas ideias inadequadas do


conhecimento de primeiro nível, quando o encontro se faz pela alegria, que pode vir
a servir como estratégia no trabalho de Despertar nas Paixões, buscando as
determinações ou as causas para a formação de um terceiro, um plano, onde
podemos atingir a consciência, superando suas ilusões iniciais, através de afecções
e afetos ativos. É um horizonte inicial.
De um lado, o que se passa nas relações tristes que reduzem minha potência
de agir? O que constitui a tristeza, nas relações triste? Como se pode pensar isso?
De outro lado, o que ocorre nas relações de alegria que aumentam minha
capacidade de existir e, desde então, possibilita a formação desse terceiro?
Na aula de 20 de janeiro de 1980, Deleuze dará algumas dicas. Retoma a
questão de que quando nos deparamos com alguém ou alguma coisa (corpo ou
ideia) que não nos convém, isso nos decompõe. Nos traz tristezas. Lembremos o
que nos disse Spinoza: quando a tristeza se faz em parte de nossas relações,
encontramos a dor, mas se toma todas as nossas partes, envolvendo todas as
relações que nos constitui, evoluímos para a melancolia. Quando somos tomados
pela tristeza, reagimos em relação aos objetos que não nos convém, e isso se
chamará ódio. Essa reação mediada pelo ódio, implica que busquemos forças para
conjurá-la, para expulsá-la aquilo que nos não faz bem. Ou, nós faz mal. Essa
quantidade de forças usadas para lutar ou lidar com o que nos decompõe, com o
que não nos convém em nossas relações, é o quanto da potência que é reduzida ou
subtraída de nós mesmo. Nos diz Spinoza no Livro III - PROPOSIÇÃO XIII –

29
Deleuze, Gilles. Espinosa e os signos. RÈS editota limitada. Coleção substância. 1970. P.63
36
“Quando a Mente imagina coisas que diminuem ou limitam a potência de agir do
Corpo, ela se esforça, na medida em que pode, em recordar coisas que lhes
excluam a existência”. Seguida do escólio: “Disso entendemos claramente o que são
o Amor (Amor) e o Ódio (Odium)”. Pois “o Amor é a Alegria concomitante à ideia de
uma causa externa e o Ódio é uma tristeza concomitante à ideia de uma causa
externa”. Ainda “Vemos que quem ama se esforça necessariamente por ter presente
e conservar aquilo que ama e, ao contrário, quem odeia se esforça por se afastar ou
destruir aquilo que odeia.” (p.44).
Assim, compreendemos como nossa potência é reduzida pelas relações que
não nós convém. Algo em nós se endurece, petrifica, como um estado de tensão, e
nos mobiliza para que passemos a investir nas forças negativas que nos decompõe
para buscar sobrepô-la, reduzir a dor ou impedir que nos destrua por completo, nos
jogando na melancolia. Deleuze lembrará que a tristeza é arma dos impotentes,
esses que tomam o poder. Daí a cotidianidade alienada, ser o exercício de poder
sobre corpos e ideias. Como o homem do ressentimento e da má consciência de
Nietzsche, os senhores do poder precisam injetar a tristeza para reinar sobre
escravos e os escravos, por suas vez, precisa do regime de diminuição de potência:
“arrependa-se, odeie alguém, se não tiver ninguém para odiar, odeie-se a si
mesmo”(Deleuze: 1980: 64)
Já na alegria tudo é diferente. Dirá “porque quando as relações se compõem,
as duas coisas cujas as relações se compõem, formam um individuo superior, um
terceiro individuo que engloba e as toma como partes.”(Deleuze: 1980: 63). Mais adiante
ele fala de que Nietzsche é spinozista nesse ponto, já que para ambos o que importa
é o aumento da potência: “aumentar sua potência é precisamente compor as
relações tais que a coisa e eu, que compomos as relações, não somos mais que
duas subindividualidades de um novo individuo, um novo individuo formidável”
(Deleuze: 1980: 63).

Não confundir as alegrias das relações diretas, que são os verdadeiros


aumentos de potência, com as alegrias de compensação. No ódio, tende-se a
buscar a vingança, como que ferindo o outro que nos perturba, conquistássemos a
alegria real. Isso é um engano. Pois, nunca sairemos da base das tristezas, da
mediocridade do ressentimento. Sempre buscaremos alegrias compensatórias, que

37
são ainda tristezas, dores, senão caminho para a melancolia. Isso é o
compensatório do vivente medíocre, a vingança, a correção, a doutrina, a
adequação, o condicionamento, a adaptação.
Há, ainda, um terceiro nível da captação das essências, um conhecimento
mais profundo, que fala da beatitude, “lo definirá como la coexistência – pero interior
– de três ideas: la ideia de mi, la ideia del mundo e la ideia de Dios30”, mas agora já
implica outra paisagem, muito mais complexa. Penso que o Despertar nas Paixões
pode se comprometer com as passagens do primeiro nível de conhecimento para
um segundo, das paixões para as noções comuns, das misturas inadequadas à
formação do individuo terceiro, onde não se trata mais das misturas entre corpos e
ideias que vem de fora, de afetos paixões, mas das potências implicadas nas
relações entre forças que se compõe, que se convém, que se acrescentam, que
constituem uma abertura ou oportunidade, para compor uma nova consciência. As
noções comuns. Experimentar o devir, mas num nível ainda de desconstrução,
demolição, raspagem das tristezas e das dores, antes que essas tomem todo um
individuo ou grupo, levando a decomposição geral, na melancolia.
Claro que é possível pensar a imersão nas relações ativas das noções
comuns, de modo a avançar até as essências, as cousas sui, em si mesmo, dando
espaço para a criação, a inovação, mas isso já é outra pesquisa que aguarda nova
oportunidade.
Para o momento, fiquemos nesse contexto. Cabe agora pensar como o
Despertar nas Paixões pode ser tratado como uma Klínica com K. Depois intuir, sem
aprofundar, como o dispositivo do esquizodrama se mostra adequado para essa
prática.

30
Deleuze, Gilles. Em Medio de Spinosa. Cactus. Série CLases. Buenos Aires 2008. 2° edición.
Classe VII - Las pertenencias de la essência. p.245
38
4) AS KLÍNICAS COM K: Um Horizonte para a Prática do Despertar nas Paixões.

Ate aqui buscamos mostrar que é possível pensar uma prática com o contexto
Despertar nas Paixões. Sabendo que Despertar nas Paixões se refere a dois
movimentos de passagem: um que é diferenciar as paixões e nessas as alegrias e
tristezas, afirmando o encontro alegre, de composição, que aumenta a capacidade
de agir e expressar dos envolvidos; outro, partir das paixões alegres, ainda
compostas por encontros inadequados, porque limitados aos efeitos, avançar com
estratégias interventivas, no caso o esquizodrama, para a formação do terceiro, que
é a noção comum. Como isso se supõe não só a passagem de um primeiro a um
segundo nível de conhecimento, mas aposta-se na mudança de uma consciência
alienada para uma relação mais construtiva e afirmativa, na relação entre realidade
e novos modos de vida.
Disso decorre que devemos trabalhar a noção de Despertar nas Paixões
como uma Klínica com K, entendendo que não são as paixões o alvo do trabalho,
mas a intensificação afetiva dos corpos e ideias, que possibilita o dispositivo
esquizodrama, onde surge as passagens do devir e da atualização. Cabe nos inserir
dentro do que o prof. Gregorio Baremblitt chama de Klínica com K, depois descrever
traços do que seja o esquizodrama, buscando apresentar um diagrama de uma
prática possível, dentro da intervenção que chamamos de Despertar nas Paixões.
No livro “ Introdução a Esquizoanálise”, prof. Gregorio Baremblitt dispõe um
capitulo que vai tratar “As klínicas Esquizoanalíticas”. O texto afeta. Apresenta uma
posição ético-político-estética de pensar as Klínicas e nelas, surge algo do que
seriam as práxis da esquizoanálise. Sempre multiplicitárias, complexas e singulares.
Iniciaremos por esse texto e depois saltaremos para artigos inéditos, que fazem
parte do livro em construção sobre Esquizodrama, como material de circulação
interna da Fundação Gregório Baremblitt31.

31
Curso de Lato Sensu Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama: Clínica de Indivíduos,
Grupos, Organizações e Redes Sociais, ministrado pela Fundação Gregório Baremblitt de Minas
Gerais, em parceria com a Fundação Educacional Lucas Machado - Faculdade de Ciências Médicas
de Minas Gerais – 2009 -2011.

39
O artigo “As klínicas Esquizoanalíticas”, inicia por colocar um problema antigo
a psicanálise, porém, redirecionado. Agora, fala das condições em que se coloca o
transmissibilidade de saberes e modos de fazeres, em relação a esquizoanálise. É
possível transmitir a esquizoanálise? É possível ensinar um saber fazer? A
esquizoanálise não estaria mais próxima de uma prática com relação aos diferentes
modos de vida? Como a esquizoanálise, aberta a diferença e a repetição da
diferença como atualização, pode entregar toda sua condição multiciplitária, seu
funcionamento rizomático, aos limites de uma visão específica? Como separar a
obra de Deleuze e Guattari de suas infinitas possibilidades de construção e
composição, que são as condição da própria apreensão e da compreensão da obra?
Seja como for, o prof. Gregorio Baremblitt opta por vislumbrar um horizonte
surpreendente, que seria o de perceber como uma obra rizomática, passaria a vir a
ter a necessidade de que indique um certo passo-a-passo. Desses que informam um
início, seguido de uma continuidade, que recobriria toda a obra, com apenas uma
linha. Vamos por aqui, depois ali, assim chegamos lá e depois acolá, e assim até um
suposto fim. Será que tal procedimento não poderia vir a se tornar uma
generalização, como se um modo de apreensão sobrepusesse as outras leituras
possíveis? Com isso será que não romper-se-ia com a realidade da obra, seu
funcionamento cartográfico? A autonomia de cada platô? A multiplicidades que
reúne cada capitulo? A indiferença de início ou de um fim? O que aparece é a
insistência em mostrar que as relações na diferença são sempre diferenciais,
positivas e afirmativas, por isso a criação, o novo, a atualização, são condições que
fazem o texto funcionar como uma máquina de produção desejante. Não uma, mas
“n” leituras. Composições, acessos e criações livres!
Baremblitt partirá do fato de que diversos formas de pesquisas, em diferentes
campos, como na filosofia, na ciências, na sociológica, na psicologia, na história, etc.
vamos encontrar fortes segmentos que dialogam com os textos de Deleuze/Guattari,
para pensar sua disciplina ou compor suas pesquisas. Mas, o risco é que uma leitura
muito especializada pode querer se outorgar definitiva, sobre toda a complexidade
da proposta da esquizoanálise. Nessa hipótese, Baremblitt busca nos mostrar que o
risco de uma tal tentativa - captar a esquizoanálise através de um ponto de vista
muito especifico -, ligados a uma forma de produção de pensamento - por mais

40
sistematizada que venha a ser - , não deve vir a autorizar a ninguém a dizer que
disse tudo da obra de Deleuze e Guattari. Por quê? simplesmente porque não tem
um tudo para ser dito, mas máquinas e mais máquinas, ferramentas e mais
ferramentas, para intervir em formas de dominação, em condições reprodutivas e
anti-produtivas, que caracterizam a subjetividade preponderante num mundo
globalizado pela lógica do capitalismo mundial integrado, que, por sua vez, opera um
rebatimento das produções sociais sobre as produções desejantes, a ponto de fazer
das produções desejantes separarem-se do que podem. A cotidianidade alienada é
um exemplo. Essa separação das forças que compõe uma singularidade ou
coletividade (individual, de grupo ou institucionais), são objetos de klínicas, no qual a
esquizoanálise propõe duas tarefas: um negativa de raspagem, de destruição, outra,
positiva, de agenciamento de criação e inovações.
De fato, cada leitura é uma aventura que acontece de atualizar no momento
em que se realiza. São recursos que “que podem ser utilizadas sem sistematicidade
alguma, por partes ou por totalizações, aleatórias, por quem queira e possa fazê-las”
(Baremblitt 2010: p. 45). Sempre impar e aberta. Mas, do ponto de vista em que o prof.
Baremblitt se coloca, em relação aos diferentes propostas de diálogos (de diversos
segmentos de pesquisa), de um lado, dão provas de que o saber e o fazer em
esquizoanálise, revela-se como uma obra rizomática, mas, de outro, o que se torna
inconveniente, são certas insistências em “leituras feitas desde um ponto de vista
muito específico” (2010:p.103) levadas ao imaginário mercadológico de que é
definitiva ou melhor ou mais adequada. Ao contrário, instiga, que cada um, em sua
incursão sobre a esquizoanálise “dê à sua cartografia o nome que lhe pareça mais
original e expressivo, já que terão percorrido sempre itinerários únicos e não
repetíveis” (2010:p.103). Dessa afirmação nos aventuramos a pensar o Despertar
nas Paixões.
Para captar essa condição rizomática da esquizoanálise, que conecta com
tudo, há como que uma exigência de que se atenha a ela por ela mesma “Não sair
da esquizoanálise mesma”. (2010: p.103). Mas, isso não é algo próprio da
esquizoanálise, mas de todo seu modo de colocar os problemas que lhe concernem,
da leitura das linhas cartográficas de forças atuantes na realidade/realteridade, no
movimento ativo de captar os micros acontecimentos, de viver as forças e as

41
intensidades do que nos afeta e de como afetamos. De toda a sorte, o professor nos
lembra que na viagem a esquizoanálise, na obra de Deleuze e Guattari, é inevitável
a passagem pelos dois tomos da obra “Capitalismo e Esquizofrenia”, Anti-Édipo e
Mil Platô. Nesses textos platôs, teremos a materialidade do que se constituirá em
klínicas cruciais.
Mas, como pensar em klínicas cruciais, dando alguma preferência ou
propondo predominâncias, num contexto esquizoanalítico em que o funcionamento é
rizomático, em que não há limites externos, onde os enementos são intensidades,
afetos, que não aparecem sem que a natureza dos corpos e ideias envolvidas,
mudem de natureza? Responde Baremblitt32:
“denominamos Klínicas cruciais, apenas porque, afins perseguido pelo
esquizodrama, elas configuram uma espécie de área de concretação móveis.
Passar por elas, escolhendo uma cartografia que transite, não é em absoluto uma
obrigatoriedade, mas nossa experiência nos tem mostrado que elas são, na nossa
maneira de encarar o esquizodrama, especialmente permeáveis, transitáveis e
conectivas com outras.” (Baremblitt 2011: p. 6).

Então, trata-se de entender a noção crucial, como parte do pensamento de


Deleuze e Guattari, em que remetem a movimentos imanentes, operado por
conceitos, preceitos e afetos, que podem ser mobilizados na intensificação
dramática, numa vivência sensitiva com as matérias virtuais que se abrem ao
movimento de devir atualização. Mas, insiste Baremblitt, a passagem pelas klínicas
cruciais não é necessária, muito menos permanecer nelas, devemos nos abrir para a
criação, pela inventividade que é a condição própria a continuação da
esquizoanálise e dessa forma de intervenção, chamada esquizodrama.
Bem, até aqui o que podemos apreender, dessa posição inicial do Prof.
Gregório Baremblitt, sobre nosso problema de pensar o que seja as Klínicas
Esquizoanalíticas? Primeiro ponto que aparece é que se trata do plural. Não há uma
clínica, mas Klínicas Esquizoanalíticas ou esquizodramáticas. Isso se deve ao fato
de que a esquizoanálise se coloca como um saber e um afazer que se constrói com
multiplicidades. Nessa construção, passa por um processo de composição de
ferramentas, dispositivos, efeitos que são e serviram, para um modo de intervenção.

32
Texto inédito do livro em construção sobre o esquizodrama, disponível aos alunos do curso de pós
da Fundação Gregorio Baremblitt.

42
Exemplos das Klínicas cruciais, essas que nos remetem diretamente ao complexo
realidade/realteridade, são: Klínica do Caos, Caosmo e Cosmo, Klínica da Ordem e
Desordem, Klínica da Diferença e Repetição, Klínica do Corpo sem Orgão, Klínica
do Acontecimento-devir e klínica da rostidade. Se notarmos, por cima, observamos
que o entrelaçamento dessas Klínicas nos remetem a uma máquina de
intensificação ontológica, onde a imanência ou a variação continua, no qual brota os
afetos, encontram a oportunidade de atualizar os acontecimentos-sentidos,
colocando os corpos e ideias em puro devir.
Isso quer dizer: uma Klínica é algo que se constrói, se monta com
ferramentas que devem servir para realizar um modo de intervenção. Nunca
repetível, mesmo que certas ferramentas sejam novamente usadas, o dinamismo e
a dramatização, nunca serão os mesmos. Cada acontecimento conserva sua
especificidade, sua originalidade, sua condição de ser não repetível. Por isso, o texto
fala no plural: klínicas esquizoanalíticas ou esquizodramáticas.
Detalhando mais. No texto encontramos as diversas nomenclaturas que
aparecem referindo a esquizoanálise ou a pragmática universal. O autor nos relata
a existência de outros nomes como, “ecosofia, ecopráxis, micropolítica, uma cura,
uma vida”(2010: p. 107), que aparecem com a mesma intensidade designativa de
esquizoanálise. Frente a diversidade e pluralidade de modos de expressão que esse
“esquizoema33” esquizoanálise assume, no decorrer dos textos de Deleuze Guattari,
Baremblitt propõe que se leia esquizoanálise como acontecimento, na condição de
nome próprio, uma hecceidade, que pode ser expresso no sentido plural: “Os efeitos
Deleuze Guattari, esquizoanálise, 1968, Paris.”
Notamos aqui, que cada platô, na obra que expõe a esquizoanálise, pode se
tornar uma Klínica. Não é necessário outro platô para compreender e operar a
Klínica em questão. Embora possamos usar mais de uma Klínica, como quem usa
mais de uma ferramenta para efetuar uma intervenção, cada klínica deve ser um
acontecimento que promova relações de forças num processo de intensificação que

33
Em seu texto em memória a Gilles Deleuze, Baremblitt (2010: p. 41) comenta: “Em absoluta
coerência com a ontologia, a gnosiologia, a ética e a estética de Deleuze, tem como valor supremo a
Invenção, tanto de conceitos filosóficos, como e funções científicas, como de variações artísticas e de
saberes espontâneos e da transmutação de uns em outros...denomino a todos esses termos de
esquizoemas.”
43
produz um dinamismo dramatizável, que faz de uma individuação diferenciar-se por
atualização. Sempre uma experiência única, singular e não repetível.
Chega o momento em que nos leva a perguntar, mas porque escrever klínica
com K? Baremblitt34 dirá que Klinica com K está relacionada com dois vocábulos
gregos, que segundo os atomistas, os epicúreos e os estóicos, diz da realidade focal
ou geral, que se constitui de átomos. Esses:
“que caem no vazio segundo trajetória retas. Quando um deles se “desvia” e
entra em colisão com outro, num mínimo de tempo pensável, cria-se um
novo elemento do real, inexistente até o momento, que constitui uma
35
invensão. A esse “desvio” se lhe denomina Klinamen. (Baremblitt: 2011)

Se a Klínica com k encontra seus referencias na ideia de klinamen – que é um


esquizoema composto em paralelo ao dispositivo esquizodrama, que funciona como
um modo de intensificação afetiva -, como contraponto, Baremblitt reportar-se-á a
noção tradicional de clínica, “klinos36 – que significa posição horizontal”. Com isso
lembra a condição deitada e passiva em que o paciente é colocado na relação de
atendimento, que serviu como paradigma, ou “melhor, ilustração, de uma clínica
mais ou menos convencional”(Baremblitt, inédito, 2011).
Dentro desse quadro distinguível entre Klínica e clínica, klinamen e klinos,
Baremblitt assume que “optamos por designar Klínica a todo dispositivo inventado
por e para a prática do esquizodrama, muito mais inspirado no alternativo, desviante
e original, que no convencional, consagrado, difundido, ou seja, aspirante ao ser de
uma diferença.”(Baremblitt, As Klínicas do Esquizodrama, inédito, 2011).
Aqui vemos que Baremblitt denomina klínica a modos de intervenção singular,
mais adiante dirá que pode ser considerado sobre outros nomes, como fizeram
Deleuze Guattari, ao se referir ao dispositivo Kafka, dispositivo Beckett, dispositivo
Proust etc. ou ainda, inspirado na análise institucional, efeito Muhlman, efeito centro-
periférico, efeito frio-quente.

34
O texto em que nos referenciamos para essa e outras citações, reporta-se a artigos ou capítulos do
livro Esquizodrama, inédito, que foi gentilmente cedidos pelo prof. Gregório Baremblitt para seus
alunos de pós-graduação no ano de 2011.
35
Baremblitt. G : As Klínicas do Esquizodrama. Texto de circulação interna da Fundação Gregorio
Baremblitt e do Instituto Félix Guattari, capitulo inédito2011).
36
Também encontramos esse modo de referência a Klínica com K, em vários outros capitulo de
Introdução a Esquizoanálise, entre elas Klinamen seria um “desvio produtivos num queda do átomo,
que segundo os atomistas, os epicúreos e os estóicos, gerava um encontro de trajetória que criava o
novo.” E mais adiante, enfatiza que “ Tais Klínicas, que pouco e nada tem a ver como clinos (o
paciente deitado, reclinado, passivo)”, (Baremblitt, 2010: p. 105 e 115).
44
Efeito, dispositivos, são outros modos de referir-se a klinica com K, mas
temos que levar em conta duas coisas importantes:
a) O dinamizador, o esquizoanalista, o esquizodramatista, deve usar-se de
qualquer uma das klínicas já inventadas, como dispositivo ou para produzir
efeitos, podendo e devendo inventar outras tantas que achar necessário ou
que vierem a se formular na singularidade de um encontro; seguindo essa
dica é que estamos propondo a Klínica do Despertar nas Paixões. Ainda:
b) Não é necessário prescindir do verbal, lembrando a lógica psicanalítica que
trabalha a partir do significante; reforça dizendo que o corpo e os artefatos
não lingüísticos são de enorme importância para as efetuações de uma
klínica, a linguagem verbal pode aparecer e deve ser considerada sempre
como um discurso menor, não condicionado, seja para a expressão, como
para possibilitar a produção de sentido, na compreensão de qualquer
acontecimento inusitado da prática klínica.
Para fechar esse ponto, partiremos da ideia de que as klínicas são como
dispositivos que visam promover efeitos de diferenciação, com a produção de
subjetivações inusitadas, aberto ao novo e a criatividade, no qual evoca, para sua
prática, a composição de uma caixa de ferramenta que revela um modo de
intervenção, sempre singular e renovável, com abertura para promover o devir
atualização.
Vimos que as klínicas podem ser encontradas e compreendidas como sendo
presente em cada platô da obra “capitalismo e esquizofrenia”, no qual o prof.
Gregório Baremblitt nos alerta que em cada capitulo é um modo de intervenção,
onde Deleuze e Guattari cumprem com as tarefas ao qual se propõe a
esquizoanálise: as negativas de raspagem, questionamento, demolição das
superfícies de registro e controle, protagonizada, entre outros, pelo Estado e pelo
modelo do capital mundial integrado. Mas, também, as tarefas positivas, que
buscam promover as atualizações, os devires, as singularizações, a emergência do
novo, no qual aponta que não basta só fazer acontecer, devemos reconhecer e
assumir tais acontecimentos como meio de manter a continua passagem do devir
esquizoanalista, nas práticas esquizodramáticas. Daí, se podermos aceitar uma
sugestão do prof. Gregório Baremblitt (2010; p. 107) em relação a prática ético-estético-

45
política, nos diz, “que outra coisa podemos fazer, os klínicos esquizoanalíticos, que
continuar reinventando esse trabalho?”
Conclui esse ponto nos lembrando da beleza e da força agenciadora,
presente em cada platôs e em todas as cartografias proposta pela pragmática
universal. São inúmeras klínicas realizadas por Deleuze e Guattari, em sua
monumental obra “Capitalismo e Esquizofrenia”. Diante delas, nos alerta Baremblitt:
“são capítulos maravilhosos que narram “o que se passou”, mas não o que “está se
passando”, nem o que “está por vir”.(Baremblitt, 2010: p. 107). Há que seguir, pois, como diz
Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”.
Assim exposto, sentimos que há um espaço para uma prática em que a
Klínica Despertar nas Paixões encontra a oportunidade de expressão, buscando
trabalhar os afetos nas passagens propiciada pelas intensificações afetivas do
esquizodrama. Mas, ainda não temos nada que nos ajude a ligar o Despertar nas
Paixões, ao dispositivo dramático proposto por Baremblitt. Tentaremos traçar
algumas noções que marquem esse projeto de intervenção, sem a pretensão
conclusiva ou mesmo definitiva.

46
5) NOÇÕES ELEMENTARES PARA PENSAR O ESQUIZODRAMA

O esquizodrama é um agenciamento coletivo de enunciação. As Klínicas seus


operadora de intervenção. Nelas se quer incluir o Despertar nas Paixões, como mais
uma contribuição.

Hipótese de base: o Esquizodrama como ação, como modo de convivência


em que o tom, o calor, a atmosfera, é assumida como uma prática exercitada de
dramatizar os afetos. O Esquizodrama não dramatiza imagens, mas intensidades.
Intensifica o afeto para sua produção. Sua realização. Sua efetivação. Sua
atualização. Daí, nos soar possível a ideia de que o esquizodrama funciona como
um dispositivo complexo de intensificação dos afetos.

O esquizodrama trabalha com o corpo e o pensamento simultaneamente,


através das produções de afetações que intensificam os afetos, resultantes das
passagens de um estado a outro. Que afetos? É próprio das formas de afetação
formar cenários no qual faz uso de certa intensificação, promovendo um agitar-se,
ritualizando afetos para que algo apareça e incorpore nas palavras e nas ações em
movimento de expressão. É essa incorporação afetiva que será objeto de
intensificação.

Busca-se o lugar de passagem ou o lugar em que as relações entre realidade


e realteridade, possibilitam a emergência do afeto. Isso porque o esquizodrama,
nessa leitura que foca os conceitos de Spinoza, não produz o afeto, só a afetação.
Essa afirmação é delicada. Tentaremos acompanhar as lições do professor
Gregório. O esquizodrama pode ser lido como um dispositivo que funciona através
de diversos dispositivos, como diz Baremblitt “o esquizodrama funciona como um
conjunto difuso de estratégias, táticas e técnicas...” tendo como objetivo principal
“atuar sobre os aspectos físicos, químicos, biológicos etológicos, sociais,
econômicos, políticos, semióticos, subjetivos e tecnológicos de seus dispositivos de
intervenção”37. Mas, nada disso é o afeto em si mesmo ou por si mesmo.
Lembremos que as ideias e os corpos são afecção, graus de potência, que formam

37
Baremblitt, Gregório, DEZ PROPOSIÇÕES DESCARTÁVEIS ACERCA DO ESQUIZODRAMA.
Publicação interna da Fundação Gregório Baremblitt, p.1.
47
realidades que se sucedem no extenso. Mas, nessa sucessão há os encontros entre
corpos e ideias. Nesses encontros, se dá a passagem de um estado a outro: aqui
vemos surgir os afetos. Tais afetos, são resultado da relação direta com a máquina
abstrata de cada participante, seu modo de pensamento, suas relações com os
corpo. Respondendo as suas misturas, suas composições, remete a sua consciência
à circunstância da intervenção, que são as relações em ato dentro da Klínica
proposta. A realidade em plenos movimentos e repousos, compondo a variação
continua, por onde se faz o afeto como intensidade que muda. De fato, as afecções
ou modos de afetação, proposto visam:

“Decodificar, desestratificar e desterritorializar seus agenciamentos coletivos de


enunciação e seus agenciamentos maquínicos de corpos, propiciando a eclosão
de um espaço liso, caosmótico, que gere condições para a emissão de linhas de
fuga, quantas, vibrações e outros enementos (neologismo proveniente de n =
38
infinito) inventivos, mutativos”.

Um encontro. De um lado o esquizodrama como um modo de afetação, uma


estratégia, um tema, uma cena e um cenário. Uma Klínica. De outro lado, os
indivíduos, grupos ou integrantes de uma instituição, projeto ou programa.
Chamemos a esses que compõe o evento, de esquizodramatistas ou aquele que
coloca ativamente e coletivamente, os graus de potência em ação. A vivência
esquizodramática possibilitaria o movimento entre modos de afetação, abrindo um
campo de passagens, de afecção a outra, no qual se supõe surja os afetos como
enementos de atualização. Até aqui ta muito teórico, mas...são limites.

Cada um dos esquizodramatistas envolvidos entra com seus modos de


afetação, suas singularidades. Suas características. Suas potências que os
caracterizam. Essas singularidades afetam a si mesmos e no grupo afetam-se entre
si e, assim, todos se afetam com as afetações vividas no esquizodrama. Entre a
afetação do esquizodrama como um dispositivo de intensificação afetiva e as
afetações próprias ao grupo, há um entre. Supomos que as relações entre, no
esquizodrama - como um modo de produzir afetação - e os diferentes modos de
afetação que se reúnem (grupo aberto) passa a criar uma paisagem, na qual ocorre
a emergência do afeto que é um modo aberto a atualização.
38
Idem, p.1 - Queremos supor que isso que possibilita decodificar, desterritorializar, emitir enementos
é o afeto que surge das relações entre modos de afetação.

48
Parece-nos ser o que o professor Gregório nos ensina, “Favorecer a
atualização de máquinas abstratas virtuais imanentes a tais dispositivos”. Essa
máquina abstrata são os conceitos que são afetos ou melhor, as afecções que
envolve um afeto, numa realidade dada. Com isso passa a “ativar seu diagrama de
forças e constituir o corpo sem órgãos de seu plano de consistência”39. A
esquizodramatização, em seu funcionamento, aparece como abertura ao corpo sem
órgão, ao terceiro, que pode ganhar consistência produtiva, produzindo
realteridades. No dizer do autor, “Denominamos cada uma dessas realteridades
(neologismo proveniente de alter: outra) um inconsciente produtivo, desejante,
revolucionário, bricoleur, cujos componentes têm como nota em comum o fato de
não terem nada em comum40. Os graus de potências como singularidades se
mostram em condições de se compor. Essa composição pode vir a aumentar a
capacidade de agir e de expressar, segundo movimentos de implicação. Esse é um
caminho prático.

Grosso modo, o esquizodrama expressa e age, age expressando, expressa


agindo. Mas, entre uma expressão ou ato, há outros atos e expressões. Entre um é
outro, algo passa. O que passa, segundo Spinoza, na leitura de Deleuze, é o afeto.
O afeto surge nessa passagem. O afeto, afeta nas relações entre.

O esquizodrama envolve-se com a construção de situações de afetação


vivas, abertas ao contato com potências disponíveis para a produção. Produção de
que? De afetos que são possibilitados na construção coletiva de uma
esquizodramatização; são como vivências de produção ativa de afetividade que
buscam favorecer as capacidades de agir e de expressar, o afeto pelo qual passa.
Afetos que acontecem nos movimentos de afetação do esquizodrama, que visam:

“Propiciar que tais efetuações se atualizem por variação contínua, heterogêneses,


autopoieses, transversalidades e funcionamentos maquínicos como
acontecimentos, devires e invenções de novos regimes de signos, novas
estratificações, novas territorializações rizomáticas existenciais, novos universos
de valor, em suma, novos estilos de vida produtivo-revolucuinário-desejantes,
41
novas utopias ativas, uma nova Terra.”

39
Idem, p.1
40
Idem, p.1
41
Idem, p.1
49
O esquizodrama pode e deve se propor a produzir a afetação (affectio), não o
afeto. O esquizodrama não é o devir, mas abre-se para o encontro com esse. O
afeto é o que deve aparecer na relação entre, nessa passagem entre um estado e
outro das relações dos corpos que o esquizodrama dispõe. Dramar não é só tramar
nem costurar, nem amarrar. É, também! Porém, antes de tudo, Dramar como
construir uma imagem coletiva e transversal, em que ocorre a evocação de afeto.
Seja ele qual for. Isso porque o esquizodrama não é um todo fechado, mas uma
parte ao lado, junto com outras partes abertas a compor e/ou decompor segundo
modos de afetação. Mas, isso não diz nada da forma ou do modo de ser que esse
afeto vai usar para aparecer. Há uma abertura, algo como um campo de
possibilidades, de revivencência, no qual pode, não necessariamente, surgir o devir
como afeto não representado, mas vivido. Isso, em nossa leitura, é algo do que
pode o esquizodrama. É algo que se espera conquistar, também, com a Klínica do
Despertar nas Paixões.

O esquizodrama poderia ser lido como modo de compor contextos,


ambientes, cenários, paisagens de acolher devir. Para isso, movimentam
subjetividades como blocos que fazem um cenário com varias cenas e movimentos.
O esquizodrama cria espaços entre um momento e outro na cena/cenário que
promove. Essas mudanças não são mais só as formas de afetação. Estão tomadas
pelo que ocorre nas passagens por onde o afeto nasce. Percebem-se os
movimentos: diferentes estados de uma mesma ou diferente realidade, de uma
mesma ou diferente expressão, ai nasce o afeto. Afeto como aquilo que surge nos
movimentos de passagem das afetação do esquizodramar. Importante lembrar: Não
está definido qual afeto deverá incorporar a cena/cenário, não há hierarquia ou
cronologia na imanência. Não se busca doutrinar, condicionar ou direcionar ninguém
a um afeto padrão ou modelo generalizado.

O esquizodrama está ligado com a proposta de promover ações de afetação.


Como? Pela intensificação dos afetos que surge no movimento de afetação que o
esquizodramatizar possibilita. O esquizodrama não define ou parte de afetos a priori,
mas da afetação como meio de criação de cenários e cenas de intensificação
afetiva. Uma Klínica, como dispositivo, efeito ou agenciamento, não é a priori um

50
afeto, mas um maneira de promover afetação que contém afeto aberto a passagens.
Criar cenário é criar condições de afetação das cenas. Compor paisagem é pintar
afetos. Apresentar ambientes é fazer vibrar a afetação num movimento em que algo
acontece. O que acontece? O que se dá? é a emergência do afeto. Esse durará seu
tempo, mas uma vez acontecendo, sempre será algo disponível para a memória
evocar através das lembranças. Talvez o esquizodrama não se efetue em função do
imediato, embora seja imediato o que ele possibilita a cada vez que intensifica um
afeto. O dramar é viver e não representar.

Ao nos colocarmos a produzir tendo o esquizodrama como dispositivo, nos


envolvemos nos movimentos ativos de se afetar. Cada participante possui uma
caminhada de vida em que pode acontecer encontros parciais, fragmentados,
difusos, soltos. Mas, na caminhada o movimento reúne, junta encontros com
encontros, no qual passamos a compor ou a se decompor, abrindo para cada um de
nós o afeto que vivemos, no momento do acontecimento do esquizodrama.

Por isso insistimos em dizer que cabe ao esquizodrama contribuir com a


realização do movimento não com o direcionamento do movimento. Daí, o
esquizodrama estar mais próximo de um dispositivo ético e menos moral. Como
vimos à cima. O esquizodrama não desconhece a imanência, se implica nele e,
assim, não supõe uma transcendência de um Uno para suas efetuação. Algo que
seria superior ao Ser, e do qual o Ser emanaria. Cada indivíduo-grupo são graus de
potências que por princípio de vida quer realizar-se: viver do melhor modo possível.
O que Spinoza chama de “esforços para preservar em seu ser”.

Aqui diferem a perspectiva moral e a ética. O melhor modo possível de viver


para a moral é seguindo os deveres que ela apregoa segundo o principio de
competência dos sábios. Nessa lógica, o dever moral é superior ao direito, pois, é
através da moral que se pode conduzir a coletividade. Já, para a ética, o direito é
anterior ao dever. Pelo principio do consentimento coletivo.

Por um lado, vimos que a moral se mostra como um sistema de valor. Para
julgar precisamos de elementos valorativos. Sendo assim, a moral é um sistema de
julgamento, no qual o dever é um valor. Julgamos, valoramos pelo dever. Se o

51
dever é um valor, quem define o que é dever e qual seu valor? Os moralistas, os
sábios... É com esse valor que julgam e que passam a dispor para que cada um de
nós faça seus julgamentos de si e do próximo e do todo. Oh! Impotência de vida!
Injetar a dor e a melancolia como modo de dominação. oh! Tristeza de existir!

A ética difere. Se há um ser, esse é do devir. Nosso corpo, sendo definido por
um grau de potência, numa relação que o caracteriza como um modo de ser, que
existe em si e por si mesmo, como resultado da reunião de muitos outros. As
relações que constituem um corpo são sempre complexas. O corpo se compõem,
interna e externamente, a partir das relações que estabelece, tendo como horizonte
de fundo as relações entre realidade e realteridade. E diferenciando, das relações
entre realidade e cotidianidade alienada. Em relação a relação sob imanência não
há hierarquia. Somos múltiplos de uma substancia única. Somos coletivos,
complexos, plurais e não Uno e Individual. Não somos essência. Somos graus de
potência que pode sofrer aumento ou diminuição da capacidade de expressar e de
agir. Somos maneiras de afetar. Relações de forças. Somos o melhor que podemos
quando estamos sendo, mas podemos ser sempre mais ou menos do que estamos
sendo. Podemos mudar, se atualizar, devir. Na ética, o esquizodrama não julga, não
interpreta, não porque não tenha valores, mas por valorizar todos os valores. Cada
valor no seu grau de potência, sua real importância, sua consistência de ser do
devir.

Lembrando que o acontecimento afeto não é o esquizodrama. O


esquizodrama envolve um afeto. É no encontro que o esquizodrama, como espaço
de intensificação afetiva, que se produz das afetação com outras afetações, que
passa a criar tonalidades, movimentos, ritmos, situações de onde surgem, como
elemento de passagem, os afeto. O afeto surge no entre e, assim, atualiza. Surge
algo como uma pertença no acontecimento, um sentido que se expressa ou age no
afeto.

Entre um estado e outro de afetação do cenário e da cena, o esquizodrama


dispõe o meio em que espera o emergir do afeto. Daí, as duas imagens conceituais
Spinozistas: de um lado, quando o afeto se compõe em relações de aumento do
graus da potencialidade de agir e expressar, temos as paixões alegres, os bons
52
encontros. A produção. De outro lado, quando o afeto se compõe em relações que
diminuem a capacidade de agir e de se expressar, estamos na anti-produção ou
reprodução, encontramos a tristeza, os maus encontros ou os desencontros.

Como vimos acima. Há dois níveis de afetos. Os afetos-paixões e os afetos-


noções. As paixões passivas e as paixões ativas. A passagem é objeto de
intervenção da Klínica Despertar nas Paixões. As paixões revelam um primeiro nível
de conhecimento. São afetos passivos. Não se compreende em que se origina ou de
onde vem isso que afeta. Aprendemos pelos efeitos. São paixões inadequadas.
Nelas, tendemos a responder automaticamente conforme somos afetados. Está frio,
colocamos roupa. Sentimos fome, comemos. Calor, nos ventilamos. Não dominamos
essas afetações. Deleuze dirá que para Spinoza, esses afetos-paixões são primários
ou do mais baixo nível. Isso porque nos lembra que a vida cotidiana tende a
alienação, esta conduzida por maus encontros, por tristezas e dores. Estamos
expostos aos acasos dos encontros. São relações que existem através de
decomposições de forças que vem de fora, que operam na diminuição das
capacidades de expressar e de agir. Daí, o esquizodrama não pode ser limitado a
um espaço de produção de falsas alegrias, de encontros divertidos, hilários,
descontraídos, sedutores. Tudo isso deve aparecer e se realizar, mas não porque o
esquizodrama seja um dispositivo de divertimento, de entretenimento, mas de
vivência e compreensão das intensificações dos afetos. Isso entre a afetação
proposta pelo esquizodrama e os demais afetações presentes como grupo de
trabalho, dentro de uma Klínica proposta.

Quando Deleuze fala de um segundo nível de conhecimento em Spinoza, as


coisas mudam. Não se trata de afetos-paixões passivas, que vem de fora, mas
afetos ativos, no qual surgem a ideias comuns, aquelas que possibilitam o
discernimento e se realizam num afetar a si mesmo. Aqui pode surgir o terceiro, o
devir, o ontológico, como aquilo em que cada corpo se torna parte de um corpo
maior, superior, pois que resulta de encontros onde as atividades são afirmações, se
efetuam, onde as relações se formam e se compõe numa interioridade, formando
circunstâncias, ambientes, platôs, em que a produção é sua dimensão de criação.
Inventiva. Revolucionária.

53
Penso que o esquizodrama tem a possibilidade de promover, através das
intensificações dos afetos, a passagem de um primeiro nível ao segundo nível de
conhecimento. É o que chamamos de Despertar nas Paixões. Propiciar encontros
em que surjam linhas de fugas, enementos de composição de sentido, no dizer do
prof. Baremblitt (2010: p. 7) “Denominamos encontros às sínteses conectivas que
operam, entre os “participantes” de um esquizodrama, processos de afetar e ser
afetado, às “entreações” (neologismo que provém do advérbio entre) e
transmutações ante os efeitos favoráveis que assim se geram”.

Em síntese: o conhecimento de segundo nível afeta a si mesmo e, assim,


produz um conhecimento ativo, aos corpos e ideias envolvidos. O esquizodrama
busca dramar afetações para promover movimentos em que estados diferentes,
produzam um entre no qual emerge o afeto que pode atualizar. O esquizodrama
intensifica os afetos através do jogo de afetações entre cenário e a cena, juntamente
com as singularidades dos diversos modos de afetações presentes no grupo. Por
isso, o esquizodrama não parte da ideia de que tem um afeto a chegar, ou mesmo
de onde partir. Embora o esquizodrama esteja aberto a qualquer afeto que se
produzir no processo de esquizodramatizar. Queremos dizer que o esquizodrama é
pouco adequado para reproduzir modelações, formar fechadas de afetação. Ser o
afeto que ratifique a afetação instituída e, assim, submeta o afeto a forma de
afetação que o determinaria. Alienação reprodutiva ou anti-produtiva. Seria proceder
o inverso, como que trazer indivíduos que se colocam num segundo nível de
conhecimento para o primeiro, como a transformação pela fé, onde se ignora as
causas e se vive na esperança dos efeitos que se acredita virão em dias melhores,
pelo simples fato de acreditar.

De modo geral, Despertar nas Paixões busca contribuir para que as


condições da passagem possam ser vividas e não só sofridas na reprodução ou na
anti-produção. Isso implicará na construção de uma caixa de ferramentas que
disponibilize agenciamentos de intensifica afetiva, um esquizodrama, para que o
Desperta nas Paixões possa ser um dispositivo de intervenção.

Uma coisa é sofrer as transições afetivas, sempre como dor, angustia, medos,
faltas, ansiedades, imposições, sujeições, coerções. Uma passagem que se faz
54
passiva, que significa, redução de potência, de sujeição, de alienação, de
reatividade e de ressentimento, até sua efetiva interiorização, como má consciência
(Nietzsche) ou melancolia (Spinoza).

Quando a passagem se faz em condições em que os corpos envolvidos se


compõem no modo ativo, produtivo, criativo, poderemos dizer que aqui o amor é
tecido desde um terceiro, que aparece quando se põe. Surgem como aprendizado
pelas causas intensivas emergente das transições vividas. Como um outro plano de
conhecimento, agora que afeta a si mesmo. Nos afetamos ativamente, participamos
das relações tendo um certo conhecimentos do que se passa entre nós e o que nos
afeta. Buscamos aprimorar essa experiência, na busca de aumentar a capacidade
de agir, e reduzir, se afastar, das relações que nos diminuem. Esse é o terceiro,
algo que se dá na realteridade de uma realidade, que não é um ou o outro, mas o
devir de um e devir de outro, um devir comum. Uma noção comum pode, também,
expressar isso.

A noção comum foi o ponto por onde se buscou pensar o Despertar nas
Paixões, que a partir de agora se quer como parte de uma das klínicas do
Esquizodrama. Sendo essa nossa contribuição que responder a tarefa de
monografia, como quesito parcial da formação no pós-graduação do Curso de Lato
Sensu Análise Institucional, esquizoanálise e Esquizodrama: Clínica de Indivíduos,
Grupos, Organizações e Redes Sociais, ministrado pela Fundação Gregório
Baremblitt de Minas Gerais, em parceria com a Fundação Educacional Lucas
Machado - Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – 2009 -2011.

55
6.) BIBLIOGRAFIA
6.1) Baremblitt, G. Introdução à Esquizoanálise: coleção esquizoanális e
esquizodrama – FGB/IFG – 2010
6.2) Baremblitt, Gregório, DEZ PROPOSIÇÕES DESCARTÁVEIS ACERCA
DO ESQUIZODRAMA. Publicação interna da Fundação Gregório
Baremblitt,
6.3) Baremblitt. G : As Klínicas do Esquizodrama. Texto de circulação interna
da Fundação Gregorio Baremblitt e do Instituto Félix Guattari, capitulo
inédito2011).
6.4) Deleuze, Gilles. Espinosa e os signos. RÈS editora limitada. Coleção
substância. 1970.
6.5) Deleuze. G “Em Medio de Spinoza da editora Cactus, Buenos Aires, 2°
edição, (2008).
6.6) Curso de Gilles Deleuze. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragosoe
Hélio Ribeiro Cardoso Jr.”
6.7) GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações política do desejo,
1985
6.8) Spinoza, Baruch. ÉTICA. Coleção Universidade de bolso. Tradução: Lívio
Xavier. Ediouro.
6.9) Spinoza, Baruch. ÉTICA. Coleção Universidade de bolso. Tradução: Lívio
Xavier. Ediouro. Sem data de publicação.

56
ANEXOS

Mas, como seria possível pensar um esquizodrama a partir da Klínica do


Despertar nas Paixões?

No que segue, apresentaremos dois anexos:

1) Uma proposta-projeto de trabalho no qual a Klínica do Despertar nas


Paixões será abordado pelo tema: Amor´Tecido na Vida Comunitária.
Entendendo que colocar um tema como parte de uma Klínica do Despertar nas
Paixões é provocar uma circunstância, compor um cenário de evocação do
tempo, onde os acontecimentos resultantes das intensificações afetivas, venham
a possibilitar agenciamentos ao esquizodrama, como abertura para atualização
insólitas, sempre criacionistas, inovadoras, inventivas, que pode vir a possibilitar
a experiência de passagens de um estado a outro, onde o afeto compõe algo que
surge de relações que formam um terceiro, um platô, uma interioridade de
acontecência;

2) Um diagrama no qual se busca situar os momento possíveis de um


trabalho esquizodramático, bem como seus movimentos de atualização ou de
repetição da formação do terceiro. O objetivo é ser ilustrativo. Não exaustivo.

57
Anexo I: KLÍNICA DO DESPERTAR NAS PAIXÕES

1) Tema ao Esquizodrama

O Amor´Tecido na Vida Comunitária

1.1) Proposta:

Realizar um esquizodrama a partir de encontro com duração de 4 horas, com


grupo formado na comunidade da Paróquia de São Pedro com vistas a promover
diálogos e vivências a respeito “O Amor´Tecido na Vida Comunitária”, tendo como
dispositivo Klínico o Despertar nas Paixões.

2. Contextualização da Proposta

A temática. O problema. A reunião de forças. O encontro. Os analisadores. A


preparação. O acontecimento. A vivência. Os sentidos. As sensações. A realidade.
As motivações. As expectativas. As alegrias. Mas, também, os medos. As tristezas.
As inibições. As resistências. Tudo reunido no estar junto com um propósito:
construir um espaço de diálogo e experimentações onde o tema O Amor´Tecido na
Vida Comunitária possa ser dramatizada, vivida e expressada, como uma prática
Klínica do Despertar nas Paixões.

3. Problematização

As pessoas42 em si são unidades. Cada uma com sua identidade. Sua


realidade. Seus saberes. Seus afazeres. Suas questões e problemas. Fechado em
si e em torno de outras pessoas, com maior ou menor intimidade. Mas, cada pessoa
é uma vida e varias vidas uma comunidade.

A vida de uma pessoa é muito mais que uma unidade. É uma multiplicidade
que sente, que fala, que age, que reprime, que ataca e que se defende. A vida se
mistura com tudo que a atravessa. A vida é interação, é relação, é composição com

42
Não se trata de um intervenção teórica, mas de colocação de um problema prático. Daí a linguagem
responder as condições mais simples de entendimento.

58
outras vidas, com outras forças, com outras intensidades. Ativa ou passiva, a vida é
sempre apaixonada. Seja como for, de amante ou amado, a vida transborda por
todos os lados. Em um indivíduo, em um grupo, com outros ou mesmo consigo
fechado. A vida extravasa, irrompe, atravessa, flui, afeta. Assim, na vida comunitária
o amor tece ou se amortece. Experimentar a diferença do Amor´Tecido na Vida
comunidade é um problema questão da Klínica esquizodramática do Despertar nas
Paixões.

A vida cotidiana não é a rotina. Rotina é o cotidiano sem vida. São os efeitos
das obrigações, das necessidades, das opressões, das repressões, das limitações
reais e imaginárias, que tornam nossa vida amortecida. Mas, a vida cotidiana pode
ser tecida. Essa diz de outra realidade.

Tecer é compor. Compor é criar. Criar é estar ativo. É participar. É construir. É


contribuir. É Realizar. Isso tudo é amar. Amar vivendo, buscando, inventando. Amar
produzindo. Amar querendo é amar tecendo. Mas, há muitas armadilhas na visão do
amor: essas precisam ser dialogadas. Há ilusões no amor: essas precisam ser
expressadas.

O amor tem sua história. Surge, inicialmente, como um tipo de deus: Eros.
Segue desdobrando-se como amor amigo: Filos. Por fim, como amor à vida: Ágape.
Tais pontos e contrapontos nos ajudaram a compor um cenário em que se poderá
intensificar modos de afetação do Amor`tecido na vida comunitária, como
agenciamento de uma Klínica do Despertar nas Paixões.

 Enquanto Eros, o amor é levado pela busca da metade perdida. Como se


houvesse uma parte de cada um, rompida num mundo de sonhos onde tudo
era comum, inteiro, pleno, que, por acidente ou rebelião, viria aqui em baixo,
na zona da mortalidade, recompor e completar minha falta e, assim, dar a
plenitude ao amor, fechando o encontro entre amante e a amada. Amor que
se inspira na falta. Na ausência. Na espera. Na busca. Na eterna procura, já
que essa metade não existe, não vem, não aparece. O Eros é o deus que nos
indica, por forte emoção, a presença da metade querida. Mas, como essa
metade também busca sua parte, que responde a sua espera, a sua procura,

59
nunca dois mortais poderão ser a parte faltosa da outra. A resposta aparece
na ideia de que o amor sexual é falho, por realizar-se entre duas partes que
não são complementares, mas que vem um ao encontro do outro, para
apaziguar, diminuir a dor da espera. Do verdadeiro amor que não vem, do
Eros como falta, aprendemos que nascemos como parte separadas, numa
vida marcada para dor e sofrimento pela ausência do amor, tanto ao amante
como a amada. Os filhos aparecem como resposta. Se amor entre o amante e
a amada não se faz perfeito, isso não pode ocorrer com a realidade familiar.
“O amor de mãe, o amor de algo que é parte do seu corpo, do seu sangue, da
sua vida, esse sim, pode ser pleno e verdadeiro como Eros”. E vemos que a
ilusão do amor familiar, no sentido de plenitude, acaba por direcionar a perda
ou morte da vida do amor. A mulher se apaga, a criança não cresce, a vida se
mostra enfeitiçada pela angústia, pelo medo da perda, pelo controle, pelo
domínio, pela ausência de autonomia, pela falta de singularidade, pela
tristeza de querer outra coisa que não ser amortecido pela vida aprisionada, a
um amor ilusão de plenitude acabada.

Como nos mostra André Comte-Sponville em o “Pequeno Tratado das


Grandes Virtudes” (1999), quanto ao amor Eros:

“é o amor ciumento, ávido, possessivo, que longe de sempre se


regozijar com a felicidade daquele a quem ama (como faria um amor
generoso) sofre atrozmente com ela, mal essa felicidade se afasta
dele ou ameaça a sua… Importuno e ciumento, enquanto ama, infiel
e mentiroso, assim que deixa de amar, “o amante, longe de lhe
querer bem, ama o filho [ou a mulher, ou o homem…] como um
prato de que quer se fartar”. Os amantes amam o amado “como o
lobo ama o cordeiro”. Amor de concupiscência, pois, muito
exatamente: estar apaixonado é amar o outro para seu próprio bem.
Esse amor não é o contrário do egoísmo, é sua forma passional,
relacional, transitiva. É como uma transferência de egoísmo, ou um
egoísmo transferencial… Nada a ver com uma virtude, mas muito,
às vezes, com o ódio.”

60
(André Comte-Sponville, 1999:175)

 Eis que surge o amigo. O filos. Esse não parte da falta. Não responde a uma
ausência. Não completa uma carência. Não inteira nenhuma metade. Filos é
aquele que se aproxima. Que vive em volta. Que contorna, mas nunca se
fecha ou se prende. Está pela composição, não é parte nem todo, mas
inclusão. Não é razão, mas sensação. Não é unidade, mas consentimento.
Amigos são sempre mais de um, dois, três...vários. O amigo não sou eu, nem
é tu, sempre um ele. Quando falamos, falamos em nós. O amigo é mortal. O
amigo é outro, semelhante e diferente, igual e díspare. Próximo e distante. O
amigo é amor, não é amada e nem amante. É criado a cada instante, em
cada momento, com vários elementos, onde o acontecimento resulta de
composição. O amigo é uma construção, uma conjunção e uma manutenção.
Tudo junto, mas cada um como vários, já que ninguém é amigo só de si
mesmo, mas junto a outros. O que seria da vida quando fria, cruel e com dor,
se não fosse o amor do amigo acolhedor? A amizade é o que reuni. Na
família e os estranhos, os conhecidos e os desconhecidos. O amigo sempre é
uma ponte entre aqui e ali, entre você e outros, e nós e eles, entre, no meio,
por caminhos, juntos, eis mais que o amigo, um espaço da amizade. Diferente
de Eros, o filos, o amigo é uma amor tecido em comunidade. Mas, ainda é
humano, só entre humanos e, por vezes, demasiado humano.

Retomando o pequeno tratado das virtudes de André Comte-Sponville,


no amor amigo, é notável:

“Como estão vivos! Como estão presentes! Como estão saciados


um pelo outro, aqui e agora saciados! A verdade é que não lhes falta
nada; é por isso aliás que se sentem tão bem, que estão tão felizes,
é o que há de tão forte no amor que se faz, quando se faz com
amor, quando se faz com prazer: eles gozam por si mesmos, um
com o outro, um pelo outro, gozam com seu desejo, gozam com seu
amor, mas é um outro desejo, pois não lhe falta nada, mas é um
outro amor, pois é feliz. Ou, se esses dois amores podem se
mesclar, como todos já experimentamos, isso confirma que são
61
diferentes. Há o amor que sofremos, é paixão; há o amor que
fazemos ou damos, é ação... Onde já se viu todo amor ser um
sofrimento? Contra a angústia? O real. Contra a falta? A alegria.
Ainda é amor, mas já não é Eros. É o que, então? E com nossos
amigos? Que tristeza, se fosse necessário só amá-los ausentes ou
faltando! É exatamente o contrário que é verdade, por isso, a
amizade se distingue em muito da paixão: aqui não há falta, não há
angústia, não há ciúme, não há sofrimento. Amamos os amigos que
temos, como são, como não faltam.”

(André Comte-Sponville, 1999:189)

 Ágape. O coletivo. O que é público. O que é pelo comum. O político. Eis o


amor que não é como Eros, porque nada falta. Não é como Filos, porque não
se dá entre seres humanos. É o amor pela vida como um bem maior. Como a
beleza, a natureza, as espécies. Ágape é o amor pelo mundo. É o respeito,
não por isso ou aquilo, nem por esse ou aquele, mas por tudo que é vida,
pela vida e com vida. Ágape é o que pode ser tecido aos coletivos. Ágape é o
amor tecido em comunidade, pela comunidade na comunidade. Ágape é
solidariedade, é o querer bem sem interesse. Sem retorno. Sem paga. É o
amor pela vida, com graça.

Porque o amor nos falta (Eros), porque o amor nos regozija (Filos): ágape
também é um objeto ou um horizonte para Eros e Filos, que proíbe que um e outro
permaneça prisioneiro de si, satisfeito de si, que sempre os obriga.

“Haveria, pois, para resumir, para simplificar, três maneiras de amar,


ou três tipos de amor, ou três gradações no amor: a carência (Eros),
o regozijo (philia), a caridade (ágape). Pode ser que esta última seja,
em verdade, apenas um halo de doçura, de compaixão e de justiça,
que venha temperar a violência da falta ou do regozijo, que venha
moderar ou aprofundar o que nossos outros amores possam ter de
demasiado brutal ou de demasiado pleno.”

(André Comte-Sponville, 1999:235)


62
Vemos que o amor pode aparecer de diferentes formas, nem por isso é por si
só construtivo, criativo, inovador. Pode ser mortífero, alienante, arrogante, possuidor.
Mas, o amor também pode assumir formas humanas, de troca, aproximação,
inclusão, participação, envolvimento, comunhão entre diferentes com sentidos de
produção. O amigo. Mas, o que o filos ama? O que filos busca? O que quer um
amigo? Certamente não é minha posse, ser meu dono, nem minha metade ausente,
mas que juntos façamos algo maior pelo melhor, um todo fraterno e forte de
composição de forças afetivas, em torno da vida como algo maior e comum a todos,
sejam amantes e amados. O amigo se dirige não para Eros: a falta, mas para ágape:
o comum, a comunidade. Eis um modo de pensar os afetos na vida cotidiana e o
amor tecido em comunidades.

Dentro desse quadro de compreensão, o encontros temático deverá compor


condições para esses três momentos do amor serem vividos e experimentados, para
estarem em condições de se expressar as potências das relações, dos encontros e
da construção de um espaço onde o amor alienante seja desconstruído em prol de
um amor amigo. Mas, um amor amigo em direção ao amor pela vida. A vida como
coletivos.

3) Cronograma

 8H30m – acolhimento dos participantes;

 9h. – inicio dos trabalhos com apresentação e levantamento de expectativas –

 9h.30 – dinâmica 01 – Aquecimento: o corpo e música

 9h.45m – dinâmica 02 – Violão e voz entoando uma cantiga envolvendo todos


participantes na sonoridade que poderão expressar com o corpo, dançando
em duplas ou pequenos grupos, a medida que forem se sensibilizando com a
canção;

 10H – colocação do problema do encontro: Amor´Tecido na Vida comunitária.


Busca-se compor um plano de composição de sentido. Como cada
participante compreende esse enunciado? Listar as falas, reflexões, posições,

63
dicas, sugestões. Promover um debate sobre o tema e colher o material para
o momento seguinte. (Platô ou terceiro coletivo;

 10h30m – sugerir a formação de pequenos grupos (de 3 a 5 pessoas) e pedir


que componham uma expressão de um sentimento que mais tocou o
pequeno grupo em forma de expressão não verbal. Corpo, gestos, mímica
sussurros, gritos, etc... (Platô ou terceiro em subgrupos);

 10h50m – abertura para comentários e manifestações sobre as sensações e


vivencias com o acontecimento produzido. (2° Platô ou terceiro coletivo.
Repetição diferenciante);

 11h – retorno aos subgrupos para compor uma raspagem. (2° Platô ou
terceiro subgrupo. Repetição diferenciante); expressar essa produção;

 11h15m – novas dramatizações trazendo elementos de raspagem; (3° Platô


ou terceiro coletivo – 2° Repetição diferenciante)

 11h30m - Intensificação de elementos que emergiram no trabalho efetuado


até então, com o envolvimento de acoplação de gestos, posturas,
movimentos, sons, agregando intensidades para a expressão de um sentido
produtivo, ativo, criativo. (Repetição diferenciante em subgrupos ao grande
grupo);

 11h.50m – abertura para manifestações dos presentes. (Repetição


diferenciante coletivo)

 12h - Encerramento.

64
Anexo II: DIAGRAMA DE MOVIMENTOS POSSÍVEIS NO ESQUIZODRAMA

A Klínica do Despertar nas Paixões pode ser pensada como um dispositivo


que vai trabalhar a partir das misturas inadequadas, dos conhecimentos por seus
efeitos, à formação de um terceiro, que Spinoza chama de noções comuns. Nesse
sentido, não partimos de nenhum tema problematizador. Fica a cargo de
esquizodramatista inventar o seu e colocá-lo como motivo, cena, ponto e
contraponto.

Para o momento, buscaremos destacar movimentos entre falas e expressões


corpóreas, tentando traçar passos, não obrigatórios, mas que de um modo ou de
outro estão presentes, nos diferentes momentos em que um laboratório de
esquizodrama pode passar.

O objetivo é despertar a atenção para a composição de um encontro de


experimentação esquizodramática, no qual proporemos, a título de ilustração, um
tema: O Amor´Tecido na Vida Comunitária. Concluindo, assim, com essa proposta
de monografia como quesito parcial a conclusão do Curso de Lato Sensu Análise
Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama: Clínica de Indivíduos, Grupos,
Organizações e Redes Sociais, ministrado pela Fundação Gregório Baremblitt de
Minas Gerais em parceria com a Fundação Educacional Lucas Machado -
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

a) O tema “Amor´tecido na vida comunitária” é um modo de colocar a Klínica do


Despertar nas Paixões, que pode ser instaurado por agenciamentos diversos
como uma poesia, um caso, uma música, imagens, circunstancias, situações,
em fim, algo que coloque o problema. No caso, usaremos as três faces do
amor: Eros, Filia e ágape. Como mostramos no ponto anterior.

b) Passo seguinte: pedir para que os participantes do encontro formem grupos.


Cada grupo deverá incorporar o tema Amor´tecido na vida comunitária, como
campo de afetação – idéias e jogos de corpos.

c) Em cada subgrupo, abre-se o debate a respeito de como tal tema afeta. Cada
um entra com suas singularidades e passam a formar um platô, com as
65
singularidades dos participante no subgrupo. Esse platô pode se compor com
misturas ou com noções comuns. Ainda não é o caso de intervir, mas deixar
expressar como acontece.

d) Dado um tempo, sugere-se que cada grupelho passe a compor um modo de


dramatizar sua produção como subgrupo; aqui notamos que o subgrupo já
esta trabalhando com seu terceiro. Seja como ele for. O empenho é que
produzam algo e expressem. O que coloca em jogo corpos e ideias; mesmo
sem e expressão verbal, um corpo pode manifestar ideias.

e) Cada grupelho é convidado a esquizodramatizar seu modo de afetação para


os demais participantes. Havendo tempo e espaço para que todos os
grupelhos se manifestem. O que se verá é a expressão de um terceiro, ainda
confuso ou não, ainda não é relevante. A vivência se desdobra em outros
movimentos.

f) Uma compreensão: a esquizodramatização realizada por cada subgrupo se


torna matéria intensiva que expressa e age diferentes modos de afetação,
surgindo outro plano de composição, não mais do grupelho, mas resultado
das manifestações entre grupelhos, em relação ao tema em questão. No
primeiro momento, os subgrupos compõe o terceiro que se expressa em sua
dramatização. Mas, na medida em que as dramatizações vão acontecendo,
outro terceiro se forma, agora, trazendo algo do grupo como um todo. Já é
outro platô de composição – agora coletivo.

g) Da esquizodramatização dos subgrupos, onde o corpo se estende, pode


surgir um tempo para uma narrativa, o dialogo sobre como cada um foi
afetado em relação ao tema explorado, mas embora as expressões possam
ser relacionadas a cada subgrupo, elas passam a compor (como
agenciamento de enunciação) um outro corpo que se organiza como imagem
da relação entre subgrupos; isso é uma intensificação narrativa, onde surgem
sensações, sentidos, choques, espantos, que compõe outro platô. Na prática
das manifestações, o platô coletiva se forma sem narrativa, mas pela vivência

66
da expressão de cada grupo, agora, há uma parada para realizar uma
compreensão. Isso é uma forma de intensificação.

h) Das narrativas, se pinça pontos, enunciados, gestos, tiques, ritmos, que


devem ser retornados a esquizodramatização, buscando intensificar. A
intensificação não é mais do tema inicial, mas das afecções que ele provocou
nos participantes. Pode-se vir a trabalhar o conteúdo emergente, com outro
esquizodrama como meio de realizar a intervenção, no sentido de produzir
uma raspagem, desconstrução de misturas inadequadas, ou mimetismos ou
cópias, para a abertura a novas imagens, outras formas de colocar a questão
do tema trabalhado até então;

i) Nessa fase, já final, a esquizodramatização tem dois movimentos: cada


grupelho busca compor uma alternativa de raspagem em relação as
negatividades que apareceram e expressaram. Na seqüência, num mesmo
movimento, a abertura para relação entre subgrupos, acoplamentos ou a
inserção livre de cada um na cena acontecendo. Percebemos a formação de
um terceiro novamente, não é mais de subgrupo, mas da relação da temático
(Amor´tecido na vida comunitária) e os participantes que manifestam;

j) Com essa prática se convida a construção de outras experimentações com


outros pontos resultante da vivencia realizada até então.

k) Dramatiza-se em conformidade com o que estiver em questão, podendo


convocar os participantes e intensificarem algo que consideram importante,
do trabalho realizado

l) Assim, o Despertar nas Paixões aparece como um modo de afetação


esquizodramática.

De modo mais enxuto, poderíamos dizer que para esquizodramatizar a Klínica


do Despertar nas Paixões, vivemos diferentes movimentos:

a) Apresentação do tema: Amor´tecido na vida comunitária. Aqui se forma um


terceiro, ainda obscuro, mas que resulta do trabalho de colocação do
problema do encontro em questão- platô ou terceiro que envolve todos.
67
b) A primeira narrativa. Essa narrativa resulta dessa primeira afetação onde
cada um do grupo experimenta e expressa suas marcas em relação à
experiência vivida pelo tema: Amor´tecido na vida comunitária - dentro do seu
subgrupo; aqui se forma um segundo platô ou o terceiro, mesmo que seja
ainda confuso, obscuro, mas há movimento de produção - platô ou terceiro
que envolve cada subgrupo;

c) O primeiro movimento de corpos e ideias – os subgrupos se expressão


esquizodramaticamente resultado da primeira produção (o que aparece é o
terceiro ou o platô composto no momento anterior. Ponto a). Notemos que no
subgrupo se produziu modos de afetação (relações entre corpos e ideias) que
servirão de materialidade para compor uma intensificação esquizodramática;
no transcorrer do vivido pela expressão dos subgrupos. Vai se formando outro
terceiro, não é mais o de cada subgrupo (como antes), mas um outro platô
que envolve a expressão de corpo e ideias de todos os participantes - Platô
composto de expressão de corpos e ideias não verbais;

d) Surge a segunda narrativa – Essa desvela como os subgrupos afetaram-se a


partir de suas manifestações de corpo e ideias. Esse momento envolve todos.
Cada um e todos passam a expressar suas vivências em relação à
esquizodramatização dos subgrupos. Agora já não é mais algo de um
subgrupo, mas de como a Klínica do Despertar nas Paixões, refere o
Amor´Tecido na vida comunitária, que ganhou vida através das subjetividades
vividas entre os participantes. Aqui já se tem material para pensar em uma
leitura ou cartografia, de como é vivida o tema o Amor´Tecido na vida
comunitária pelos participantes. Aqui se deve estar atendo as negatividades,
as ilusões, aos falsos problemas, que podem ser objeto de outra
intensificação afetiva. Notemos que nessa narrativa, o que ocorre é a
intensificação do terceiro, surgido pelas relações de corpos expressa no
esquizodrama dos subgrupos – repetição diferenciante do platô narrativo -
coletivo;

e) Retorno aos subgrupos. Dentro de cada grupelho, propõem-se que


componham uma raspagem em relação ao que apareceu como negativo na
68
segunda narrativa. O subgrupo tem a tarefa de trabalhar aquilo que
incomoda. Algo deve ser sentido em relação à negatividade que prevaleceu
na relação entre o Amor´Tecido na vida comunitária e as matérias expressas
pelos participantes. Experimentadas em pequenos grupos, isso se expressa
ao grande grupo, onde a tarefa é produzir um modo de afetação que positive
ou faça contraponto as negatividades pressentidas. Vejam que vai se formar
outro platô ou outro terceiro, resultado do trabalho de raspagem. Repetição
diferenciante do platô nos subgrupos;

f) Surge à segundo movimento de corpos e ideias - Essa resulta da terceira


narrativa. Cada grupelho passa a esquizodramatizar os afetos negativos
experimentados e se implicam em tentar compor algo novo, um desvio, uma
atualização que venha a recolocar o problema proposto pelo tema noutro
modo de composição e assim de afetação. Só que agora, nesse segundo
momento de esquizodramatização, há uma ampliação no qual cada grupelho
vai se acoplando junto aos demais grupelhos produzindo, assim, outra
composição que sai do subgrupo e envolvem, como podem, todos os
participantes. Repetição diferenciante do platô entre corpos e ideias no
coletivo;

g) Surge à quarta narrativa. O que se formou nesse movimento


esquizodramático de raspagem. Essa é uma outra intensificação do vivido,
formando uma nova vivência onde o terceiro re-surge, embora nunca seja
igual, se repete com suas diferenças diferenciantes, onde se supõe opera-se
o devir atualização. Repetição diferenciante do platô coletivo;

h) ...pode-se realizar esses movimento tantas vezes forem possíveis, voltado a


subgrupos para produção de narrativas e retornando ao grande grupo em
expressão de corpos e ideias;

i) Fechamento com trabalho coletivo segundo as intensidades emergentes;

69
Diagrama dos momentos em que ocorre a formação e diferenciação dos platôs ou do
terceiro.

Tempos Platô narrativo Platô corpo e ideias


A Coletivo - Apresentação geral do tema
B Formação de Subgrupos – intensificação do
tema. Narrativa.
C Subgrupos – expressão de corpo e
ideias não verbal
D Narrativa Coletivo – repetição diferenciante de
A
E Volta aos subgrupos- Raspagem em
Subgrupos – repetição diferenciante de B
F Raspagem em Subgrupos – expressão
de corpos e ideias não verbais -
Acoplamento de corpos e ideias.
Repetição diferenciante do C
g Narrativa - Repetição diferenciante de D
H Pode-se continuar ou reiniciar o ciclo
I Fechamento - repetição diferenciante de A

Notemos, como síntese geral, que em cada momento de trabalho da Klínica


Despertar nas Paixões, ocorreu a formação de um terceiro, resultante das
intensificações dos corpo e ideias. Isso é só um exemplo. O mais simples e até
formatado demais, mas foi uma tentativa didática de expressar (inadequadamente)
algo que só a prática pode ensinar.

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Anexo III: CALIFICACIÓN Y COMENTARIOS

Prof. Lidiston Pereira da Silva:

Apreciado Profesor:

Pido su licencia para escribir este comentário en español porque sé que para
Ud. eso no será inconveniente, dado que buena parte de la bibliografía citada en
éste trabajo suyo esta inédita y escrita en esa lengua.

Desearía comenzar este breve comentario expresándole mi agrado y


admiración por la forma y el contenido de esta monografía la cual, a mi manera de
ver, excede con mucho lo que se espera de un estudiante de un Curso de Post
Grado de Especialización.

Es un placer decirle que su texto me ha parecido excelente en todos los


aspectos, académicos o no, que Ud. ha tratado con originalidad, clareza, erudición e
inventividad. Algunos pasajes en que se correlaciona Espinoza con Capitalismo y
Esquizofrenia, que considero de difícil articulación, me impresionaron como muy
acertadas e indispensables.

Por otra parte, creo que la contribución de conceptos de la filosofía


espinoziana a la teoría del esquizodrama que Ud. propone son valiosas, y el esmero
en la presentación klínica esforzado y útil. Tal vez tendría algún interés situar esta
klinica con respecto a las principales o regulares del Esquizodrama.

Apenas como una recomendación, que queda exclusivamente a su criterio


considerar o no, le sugeriría que en futuras presentaciones (que mucho le deseo
sean reiteradas veces elaboradas), intente focalizar un poco más la exposición de la
teoría espinoziana sobre el tema para el cual Ud. la ha evocado tan apropiadamente.

La amplitud y profundidad con la que Ud. aborda a esa espléndida filosofía,


pueden llegar a ser algo difíciles de acompañar para los interesados en tema
principal del escrito.

Lo felicito sinceramente por su trabajo y le deseo muchos sucesos como éste,


así como muchas futuras publicaciones.
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(Nota aparte).En recientes semanas atrás recibí una versión impresa de un
símil de su monografía y otro digital. Hice para los mismos algunas observaciones
que, en una mudanza de bibliotecas no encuentro, por el momento. Así los localice
se los haré llegar sin falta. Muchas gracias y cordialmente

Gregorio Baremblitt

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