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A Indústria do Sofrimento é uma Poderosa Força Econômica

Entrevista com o psicanalista Christian Dunker disponível em


http://www.freudiana.com.br/textos-interessantes/a-industria-sofrimento-e-uma-poderosa-forca-
economica-entrevista-christian-dunker.html

Confira também o vídeo “A invenção da intimidade”


https://www.youtube.com/watch?v=0bbG5leMbK8

VICE: A transformação da vida em condomínio deixa clara a invasão do espaço


público pelo privado. Quais os perigos disso e as implicações em nosso sofrimento?
Christian Dunker: A tese do livro é que a gente pode entender o condomínio mais além
da forma concreta de vida entre muros, como uma espécie de patologia das nossas
relações com o outro e com o espaço social, no sentido de que os condomínios [físicos]
proliferam no Brasil num momento em que o Estado se demite da função de organizar o
espaço público. Ele entrega isso para iniciativas independentes que vão ter muita
autonomia para definir quais são as regras e a maneira de habitar aquele espaço que não
é mais exatamente público. É uma espécie de concessão. Do outro lado, a gente tem
uma certa alteração desse modo de vida dentro do condomínio, na medida em que se
força e se cria artificialmente uma vida entre iguais. É uma vida em que você
desaprende a lidar com as diferenças. É um berçário para modos muito empobrecedores
de estar com o outro, nos deixando vulneráveis ao consumo de álcool e drogas de forma
superexagerada, à agressividade e à violência de uma forma disruptiva – como eu não
sei lidar com a diferença, ela acaba sendo uma espécie de ofensa à minha existência.
Fica-se vulnerável ao tédio, à apatia, ao excesso da relação com o trabalho, a uma
espécie de hiperinflação da produtividade. Quando você cria essa vida em condomínio,
a vida privada passa a ser um pouco mais gerida por regras do espaço público. Então, a
gente tem os clássicos sintomas do sentimento de inautenticidade, do sentimento de
esvaziamento, de que você está permanentemente representando uma espécie de papel.

É um ataque à subjetividade, que é justamente o que nos diferencia?


É um ataque, mas sempre justificado como defesa. Eu preciso fazer isso porque o outro,
o mundo lá fora é perigoso. Para que eu tenha uma vida viável, funcional e protegida, eu
preciso fazer isso. Sobreviver passa a ser um grande ideal. Mas isso é muito pouco. O
tipo de encrenca que isso traz não é do tipo da psicopatologia clássica, como uma
depressão ou um pânico, mas é o empobrecimento da experiência. E a partir disso você
tem a potencialização dos sintomas mais clássicos.

Qual o papel do sofrimento na vida de um sujeito e por que ele ganhou a conotação
de algo a ser combatido ou eliminado?
Há uma história das nossas formas de sofrer. Até o século 19, o sofrimento tinha uma
conotação moral muito definida pela experiência religiosa. No nosso caso, judaico-
cristã, que prescrevia uma maneira de estar no mundo mais ou menos hegemônica e que
passava pelo sofrimento, por uma associação entre amar e sofrer: “Cristo se sacrificou
por nós na cruz”. Esse é um modelo de ato de amor, e inclui santos martirizados, heróis
que se doam. A partir do século 20, e principalmente depois da Segunda Guerra
Mundial, há uma desconexão dessas coisas e o sofrimento passa a ser entendido como
uma espécie de incontingência indesejável. Uma vida pode ser vivida com zero
sofrimento. Isso mudou muito nossa relação com a morte, que passou a ser mais e mais
intolerável e impronunciável. Isso mudou nossa relação com perdas, desencontros, com
a infelicidade… a infelicidade passa a ser signo de fracasso. Isso é constranger o
sofrimento para uma dimensão implausível. O sofrimento acontece e a gente tem que
enfrentá-lo, e ao mesmo tempo, você tem que lidar com o fato de estar sofrendo, porque
os verdadeiros winners não sofrem. Esses winners, pra nós, têm uma vida em contínuo
conforto, proteção e felicidade. Isso virou uma política de estado. Há um certo
reconhecimento de que o sofrimento é um fator político. Existe uma espécie de política,
não ligada a partidos, que define qual tipo de sofrimento é o legítimo, qual deve ser
silenciado, qual merece a atenção do Estado.

Em um mundo com leis temos que aprender a nos divertir. Tem como aprender a
sofrer?
Existe esse aprendizado, sim, porque sofrer não é sentir dor. O sofrimento é uma
experiência que implica em você narrativizar algo, que pode ser tanto da ordem do mal-
estar quanto da dor. Tem gente que cria histórias intermináveis em torno daquela dor no
joelho direito e que, no fundo, lembra a dor que a tia tinha. Na verdade, os médicos não
sabem o que fazer com isso, mas dá uma boa história. Nosso sofrimento muda se eu
tenho alguém que me reconhece e que me escuta. A natureza da experiência se
transforma conforme a gente fala dela ou não.Outro ponto importante é que o
sofrimento é uma espécie de enlaçador social. O sofrimento aproxima as pessoas. Veja
o discurso tão trivial no funeral de que “a gente só se encontra nessa hora”. É nessa hora
que a história da família é reatualizada, as lembranças são feitas, novas ideias surgem.
Numa civilização em que encontrar se tornou quase um sinônimo de esbarrar com os
outros, o sofrimento é um lugar que ainda tem força simbólica para justificar que a
gente precisa contar uma história juntos. Assim como o funeral, isso funciona no
desemprego, no fim do relacionamento. Além disso, o sofrimento tem sentido político
porque ele coloca, quase que espontaneamente, uma alternativa. “Diante disso, o que
vou fazer? Vou me transformar, ou transformar o mundo?”. O mundo, o outro, faz
sofrer também.

Quais são as estratégias de vida criadas pra fugir do desprazer da vida


condominial?
Acho que a gente ainda está no momento em que não se dá conta de que essa forma de
vida cria problemas. Ela ainda é, pra muita gente, um ideal de consumo e de vida. Mas
você vai ter que lidar com alguns problemas, principalmente, com algumas formas de
tratamento prêt-à-porter do seu sofrimento. Uma coisa que a gente vê muito na clínica é
uma certa atitude dos pais de terem uma expectativa escolar condominial em relação aos
filhos. Eles querem pôr câmeras dentro das salas e dizem “sou consumidor, quero que
meu filho tenha um tratamento x e que não tenha mais pau no gato”. Isso é caso real.
Não tem mais lobo, não tem mais copo de veneno em cima do piano, não tem mais
sofrimento que vem de fora. O sofrimento não vem das nossas fantasias, dos nossos
demônios internos… O sofrimento vem quando se conta uma história ruim e a criança
não consegue dormir mais à noite. É o exagero do máximo do sintoma condominial
dentro da escola. Porque é a crença de que, se você constrói muros e não tem contato
com a coisa, a coisa não acontece. Se eu puser um muro entre eu e a morte, não tem
morte. Se eu puser um muro entre eu e a bruxa, eu e o lobo mau, não tem bruxa nem
lobo mau.

É como se o inimigo fosse sempre externo, jamais a pessoa ao seu lado…


Exatamente. Nunca é um como você. O problema é que você nunca acha um como
você. Mesmo aquele que parece tanto, no fundo, naquela hora H se revelou outro. Ele
tem uma coisa que eu num consigo admitir, eu não tenho esse traço.

Como o ato de diagnosticar tem pautado nossas vidas?


O diagnóstico é um procedimento médico. Pelo diagnóstico, eu digo “você merece
tratamento, tem direito a cidadania e a saúde”. Eu estou abrindo a catraca e dizendo
“você entra, você não”. O diagnóstico passou a ter uma função um pouquinho diferente
da sua originária, que era coordenar procedimentos clínicos, e passou a ser fator de
inclusão na cidadania, de acesso ao plano de saúde. Hoje, a racionalidade diagnóstica
que nasceu na clínica se expandiu para as empresas, por meio dos processos de
mentoring, coaching, acompanhamento continuado. Você fechou seu balanço? Não?
Então vamos diagnosticar e agir sobre o problema. Dá pra ver isso nas escolas também,
com os professores se perguntando “eu dou um tempo extra para esse aluno com
dislexia? Quanto tempo devo dar?”. Você pode pensar isso no universo jurídico, no das
relações humanas. Há 20 anos, você ter um diagnóstico era uma coisa vergonhosa, pois
era percebido como alguém deficiente. Hoje é banal você dizer “olha, não vou poder
sair com você hoje porque sou deprimido”. “Aquela vez que eu te xinguei é porque eu
tenho transtorno bipolar”. As justificativas com diagnóstico passaram a ser parte da
nossa conversa comum.

Por que a psicanálise costuma não nomear o sofrimento do paciente?


Ela nomeia também, mas de uma maneira mais atenta ao fato de que essa pessoa tem
uma maneira singular de sofrer.

Mas ela não comunica isso ao paciente, comunica?


Às vezes, sim, mas o diagnóstico não é feito tomando por base uma espécie de
vocabulário ou de dicionário constituído para todo mundo. A psicanálise usa uma
espécie de código que o paciente traz. “A minha tia me chamava de torto.” Torto é um
diagnóstico. Então, a gente extrai isso dos pacientes e leva em conta o autodiagnóstico.

De que maneira o diagnóstico se revela fundamental para as relações de produção


e consumo?
Isso foi um mercado descoberto a partir dos anos 60 com as famosas donas de casa
norte-americanas ansiosas e que de repente descobriram que isso tinha cura. Chamava-
se Vallium. É uma indústria bastante recente, e cada novo antidepressivo toma bilhões
em desenvolvimento, experimentação, marketing. Você pega o manual estatístico e
diagnóstico publicado pela Associação Psiquiátrica Americana. Desde 1962 ele vai
evoluindo e absorvendo demandas e favorescências dessa indústria. O último, o DSM-5,
publicado em 2014, gerou uma reação mundial de repúdio porque 72% das pessoas que
participaram da elaboração desse código são funcionários da indústria farmacêutica. A
chance de o cara pensar que existe um medicamento para depressão, mas não existe
medicamento para uma histeria é grande, então por que não escolher depressão e dizer
que a histeria acabou? Ah, incrível! Tem doenças que não têm mais, e outras foram
criadas. A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica. Você tem que
produzir sofrimento, tem que dizer para as pessoas que aquilo é um problema, tem que
produzir uma epidemia de depressão e aí você diz “agora eu tenho a cura”.

De que maneira o cinema brasileiro da Retomada (pós 1994) pode nos mostrar que
a nomeação do mal-estar é uma estratégia política?
Uma peculiaridade do cinema brasileiro desse momento é que ele tomou para si a
responsabilidade de refazer discursivamente as nossas formas de sofrimento na pós-
ditadura. Havia o Cinema Novo, que era um projeto de repensar o Brasil a partir desse
discurso e era uma forte inspiração para o reconhecimento de formas de sofrimento.
Terra em Transe, ao mostrar o povo sendo assassinado pelas costas, deu visibilidade
para isso, e é um ato sumamente político e estético e psicológico, pois está ensinando às
pessoas que essa é uma forma de sofrimento que merece ser reconhecida. A estética da
fome acabou sendo violentamente interrompida. Então, o que temos no Cinema da
Retomada é uma tentativa de recontar a história. Quais são os ambientes? O
condomínio, as prisões, o morro (Cidade de Deus, Carandiru). Temos as narrativas de
vingança porque você entende que a história recente teve um hiato, uma sacanagem em
que você não conseguiu se exprimir, então foi preciso inventar formas de captar ou
traduzir o mal-estar. Na Retomada, as pessoas que vinham de um outro universo, do
cinema publicitário. É um pessoal que viveu a globalização na pele, viveu outras regras
do processo produtivo e está pensando no sofrimento de uma outra forma. Não é mais
campo e cidade, num é mais o trabalho alienado. É um cinema onde a violência tem um
outro sentido. Não é mais efeito da luta de classes. É uma violência hobbesiana, de
todos contra todos, errática. É uma violência que vai conversar com essa hipótese
consensual de que a defesa é ir pra essa sua cidade interna, pro seu condomínio.

Lembro que, por volta de 2002, 2003, época de lançamento de O Invasor, Cidade
de Deus e Carandiru, mesmo com o sucesso de público, havia certa rejeição das
pessoas em admitir aquilo como o país em que elas viviam. Como se fosse um
Brasil distante delas.
Um dos sentidos da Retomada é colocar o Brasil em pauta de novo. Porque o que o
hiato da ditadura fez? Criou uma espécie de cegueira para o tamanho da encrenca. Tanto
que havia uma discussão sobre o que é o Brasil no seu conjunto de contradições, e que
desapareceu. E justamente no momento desse desaparecimento, as pessoas começaram a
ir para condomínios e a criar essa mentalidade de Maria Antonieta. “Como assim tem
pobreza?” “Eles fazem isso? Porque na minha casa não acontece.” É um egocentrismo
que foi favorecido por políticas de estado e que começa a ser revisto com esses filmes
que devolvem pra gente uma imagem insólita, diferente. Mas também, se pensar por
outro lado, é o momento em que começam os programas televisivos de exploração da
violência. Ratinho, Datena, em que você saca que a violência é um produto. Porque o
sofrimento é um produto. O outro está sofrendo, eu não, então eu posso gozar dele
desde que eu esteja à distância. Não sou eu.

Depois do ideal de vida murada dos anos 70, 80, 90 e 2000, observamos um desejo
de retorno aos espaços públicos, pelo menos para entretenimento (fluxos, parques
etc). Por que isso ocorre?
Quermesse, carnaval, Virada Cultural, mesmo o Minhocão. Obviamente, a asfixia e o
empobrecimento de uma vida condominial são percebidos pelas gerações mais jovens.
Eles olham pra isso e falam “é isso que eu tenho que sonhar? Ter um carrinho parado
numa graminha e o vizinho enchendo a paciência? É muito pouco”. Onde é a saída? É o
mundo, a rua.

E essa percepção é típica dos jovens?


É, os jovens estão sempre nesta posição admirável de inventar o mundo que ainda não
está. Eles estão dois capítulos à frente. A sensibilidade do adolescente e do jovem para a
dimensão política do sofrimento é muito mais aguda que a do adulto. Porque a gente
chama de tornar-se adulto, no fundo, resignar-se com sofrimentos. “A vida é assim”. A
garotada ainda não compra isso, felizmente, sem alguma insubmissão e revolta.

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