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Qual o papel do sofrimento na vida de um sujeito e por que ele ganhou a conotação
de algo a ser combatido ou eliminado?
Há uma história das nossas formas de sofrer. Até o século 19, o sofrimento tinha uma
conotação moral muito definida pela experiência religiosa. No nosso caso, judaico-
cristã, que prescrevia uma maneira de estar no mundo mais ou menos hegemônica e que
passava pelo sofrimento, por uma associação entre amar e sofrer: “Cristo se sacrificou
por nós na cruz”. Esse é um modelo de ato de amor, e inclui santos martirizados, heróis
que se doam. A partir do século 20, e principalmente depois da Segunda Guerra
Mundial, há uma desconexão dessas coisas e o sofrimento passa a ser entendido como
uma espécie de incontingência indesejável. Uma vida pode ser vivida com zero
sofrimento. Isso mudou muito nossa relação com a morte, que passou a ser mais e mais
intolerável e impronunciável. Isso mudou nossa relação com perdas, desencontros, com
a infelicidade… a infelicidade passa a ser signo de fracasso. Isso é constranger o
sofrimento para uma dimensão implausível. O sofrimento acontece e a gente tem que
enfrentá-lo, e ao mesmo tempo, você tem que lidar com o fato de estar sofrendo, porque
os verdadeiros winners não sofrem. Esses winners, pra nós, têm uma vida em contínuo
conforto, proteção e felicidade. Isso virou uma política de estado. Há um certo
reconhecimento de que o sofrimento é um fator político. Existe uma espécie de política,
não ligada a partidos, que define qual tipo de sofrimento é o legítimo, qual deve ser
silenciado, qual merece a atenção do Estado.
Em um mundo com leis temos que aprender a nos divertir. Tem como aprender a
sofrer?
Existe esse aprendizado, sim, porque sofrer não é sentir dor. O sofrimento é uma
experiência que implica em você narrativizar algo, que pode ser tanto da ordem do mal-
estar quanto da dor. Tem gente que cria histórias intermináveis em torno daquela dor no
joelho direito e que, no fundo, lembra a dor que a tia tinha. Na verdade, os médicos não
sabem o que fazer com isso, mas dá uma boa história. Nosso sofrimento muda se eu
tenho alguém que me reconhece e que me escuta. A natureza da experiência se
transforma conforme a gente fala dela ou não.Outro ponto importante é que o
sofrimento é uma espécie de enlaçador social. O sofrimento aproxima as pessoas. Veja
o discurso tão trivial no funeral de que “a gente só se encontra nessa hora”. É nessa hora
que a história da família é reatualizada, as lembranças são feitas, novas ideias surgem.
Numa civilização em que encontrar se tornou quase um sinônimo de esbarrar com os
outros, o sofrimento é um lugar que ainda tem força simbólica para justificar que a
gente precisa contar uma história juntos. Assim como o funeral, isso funciona no
desemprego, no fim do relacionamento. Além disso, o sofrimento tem sentido político
porque ele coloca, quase que espontaneamente, uma alternativa. “Diante disso, o que
vou fazer? Vou me transformar, ou transformar o mundo?”. O mundo, o outro, faz
sofrer também.
De que maneira o cinema brasileiro da Retomada (pós 1994) pode nos mostrar que
a nomeação do mal-estar é uma estratégia política?
Uma peculiaridade do cinema brasileiro desse momento é que ele tomou para si a
responsabilidade de refazer discursivamente as nossas formas de sofrimento na pós-
ditadura. Havia o Cinema Novo, que era um projeto de repensar o Brasil a partir desse
discurso e era uma forte inspiração para o reconhecimento de formas de sofrimento.
Terra em Transe, ao mostrar o povo sendo assassinado pelas costas, deu visibilidade
para isso, e é um ato sumamente político e estético e psicológico, pois está ensinando às
pessoas que essa é uma forma de sofrimento que merece ser reconhecida. A estética da
fome acabou sendo violentamente interrompida. Então, o que temos no Cinema da
Retomada é uma tentativa de recontar a história. Quais são os ambientes? O
condomínio, as prisões, o morro (Cidade de Deus, Carandiru). Temos as narrativas de
vingança porque você entende que a história recente teve um hiato, uma sacanagem em
que você não conseguiu se exprimir, então foi preciso inventar formas de captar ou
traduzir o mal-estar. Na Retomada, as pessoas que vinham de um outro universo, do
cinema publicitário. É um pessoal que viveu a globalização na pele, viveu outras regras
do processo produtivo e está pensando no sofrimento de uma outra forma. Não é mais
campo e cidade, num é mais o trabalho alienado. É um cinema onde a violência tem um
outro sentido. Não é mais efeito da luta de classes. É uma violência hobbesiana, de
todos contra todos, errática. É uma violência que vai conversar com essa hipótese
consensual de que a defesa é ir pra essa sua cidade interna, pro seu condomínio.
Lembro que, por volta de 2002, 2003, época de lançamento de O Invasor, Cidade
de Deus e Carandiru, mesmo com o sucesso de público, havia certa rejeição das
pessoas em admitir aquilo como o país em que elas viviam. Como se fosse um
Brasil distante delas.
Um dos sentidos da Retomada é colocar o Brasil em pauta de novo. Porque o que o
hiato da ditadura fez? Criou uma espécie de cegueira para o tamanho da encrenca. Tanto
que havia uma discussão sobre o que é o Brasil no seu conjunto de contradições, e que
desapareceu. E justamente no momento desse desaparecimento, as pessoas começaram a
ir para condomínios e a criar essa mentalidade de Maria Antonieta. “Como assim tem
pobreza?” “Eles fazem isso? Porque na minha casa não acontece.” É um egocentrismo
que foi favorecido por políticas de estado e que começa a ser revisto com esses filmes
que devolvem pra gente uma imagem insólita, diferente. Mas também, se pensar por
outro lado, é o momento em que começam os programas televisivos de exploração da
violência. Ratinho, Datena, em que você saca que a violência é um produto. Porque o
sofrimento é um produto. O outro está sofrendo, eu não, então eu posso gozar dele
desde que eu esteja à distância. Não sou eu.
Depois do ideal de vida murada dos anos 70, 80, 90 e 2000, observamos um desejo
de retorno aos espaços públicos, pelo menos para entretenimento (fluxos, parques
etc). Por que isso ocorre?
Quermesse, carnaval, Virada Cultural, mesmo o Minhocão. Obviamente, a asfixia e o
empobrecimento de uma vida condominial são percebidos pelas gerações mais jovens.
Eles olham pra isso e falam “é isso que eu tenho que sonhar? Ter um carrinho parado
numa graminha e o vizinho enchendo a paciência? É muito pouco”. Onde é a saída? É o
mundo, a rua.