Você está na página 1de 12

Curso de Mestrado Integrado em Medicina

Módulo III.I
Medicina Clínica: O Médico, a Pessoa e o Doente
Área disciplinar de Introdução à Medicina

RELATÓRIO DO TRABALHO DE CAMPO/ENTREVISTA

A construção de uma relação. A construção de um futuro

Instituição a que pertence a pessoa entrevistada:

Nome da Instituição: Abrigo da Graça – AMI Fundação de Assistência Médica


Internacional

Pessoa entrevistada:
Utente/Associado
Técnico
Cuidador
Familiar
Outro
Gonçalo Manuel Coitos Coelho
Aluno nº 37246
2021 - 2022

1
Introdução

Todos nós, como futuros médicos, vamos conviver com várias pessoas, várias

personalidades, várias formas de lidar com a alegria, com a tristeza, com a

vulnerabilidade. É exatamente por essa razão que é extremamente importante termos

a disciplina de Módulo III.I – Medicina Clínica: O Médico, a Pessoa e o Doente, já que

nos relembra que todos nós, seres humanos, devemos ser vistos como um todo,

através da compreensão das nossas dimensões do ser pessoa, da nossa

vulnerabilidade e do nosso sofrimento aos vários níveis. Foi exatamente para

conseguirmos presenciar uma realidade de vulnerabilidade, e, sobretudo, aprender a

colocar em prática as competências das quais precisamos na construção de uma

relação, que nos foi proporcionada uma visita a uma de várias instituições que

diariamente tentam melhorar as vidas de quem realmente precisa de ajuda. Assim, tive

o prazer de visitar o Abrigo da Graça, o qual é responsável por dar alojamento de

forma temporária a pessoas do sexo masculino, que estão numa situação de sem-

abrigo, e que tenham perspetivas de emprego, ou que facilmente se consigam inserir

quer na sociedade, quer no mundo do trabalho, para que assim possam estabilizar a

sua vida segundo as suas várias dimensões através de apoio psicológico, social e na

procura ativa de emprego, além de aprenderem como ter sucesso em entrevistas de

emprego, por exemplo.

Tive, como tal, o prazer de entrevistar um elemento extremamente importante desta

instituição: a socióloga Maria. Esta senhora, que já há vários anos se encontra a servir

este abrigo, desempenha, sobretudo, o papel de reintegrar socialmente os utentes,

através de várias sessões de uma enorme riqueza, na medida em que permitem que

os utentes encontrem um lugar no mundo, lugar esse que, em momentos de

vulnerabilidade mais acentuada, parece desaparecer. É, portanto, com base numa

hora e meia de uma conversa extremamente esclarecedora e fascinante que escrevo

2
este relatório com o objetivo de transmitir as competências comunicativas que a

socióloga Maria usa, e que facilmente se extendem ao mundo da medicina.

Reflexão

“Vulnerabilidade”… uma palavra que sozinha não parece querer dizer nada, mas

que, quando a juntamos à palavra “Pessoa” e formamos “Pessoa vulnerável”, nos

pode até mesmo assustar. Todavia, por todo o mundo, não há falta de pessoas em

situações de vulnerabilidade, e que precisam de ajuda. Em Portugal, nomeadamente

nas grandes cidades, como Lisboa, a realidade dos indivíduos em situação de sem-

abrigo é um problema crescente, e que é atenuado por instituições como o Abrigo da

Graça.

À conversa com a socióloga Maria, vários foram os temas que passaram por cima da

mesa, mas destaca-se a importância que esta atribuiu à construção de uma relação de

confiança com os utentes. Só assim consegue fazer com que estes se encontrem na

sociedade e se reencontrem (mental e psicologicamente). Ora, tal como ela, também

nós, futuros médicos temos que adquirir essa capacidade.

“Todos nós temos o nosso mundo. Cada pessoa é única e deve ser considerada

segundo todas as suas dimensões.”, foi uma excelente afirmação dita pela socióloga

Maria, e que resume tudo o que devemos fazer ao tentar estabelecer uma relação.

Cada um dos utentes do abrigo apresentava, de facto, vulnerabilidade ao nível social,

que depois se expandia a outros níveis (nomeadamente existencial e psicológico).

Essa expansão depende também das dimensões de cada um destes, nomeadamente

do seu carácter, do seu passado e da experiência de vida que os levou até à situação

em que se encontra naquele momento. Como tal, uma relação deve ser personalizada,

tal como eram as sessões que estes senhores tinham com a socióloga.

Primeiro que tudo, para se construir uma boa relação, tem que prevalecer o

sentimento de confiança que, para alguns utentes ocorria mais facilmente, e que, para

outros não (o que considero ser uma forma de proteção). Todos nós, seres humanos,

3
somos igualmente vulneráveis aos mais diversos níveis. “Nem todas as pessoas foram

cuidadas humanamente(…), mas tentaram superar a sua vulnerabilidade(…). Esse

esforço (às vezes titânico ou sísifico) tem de ser reconhecido e respeitado para que se

possa compreender a motivação do seu comportamento” [1]. Como tal, há que

respeitar as decisões e atitudes destas pessoas, que apenas tentam sair do estado de

vulnerabilidade em que se encontram. E todas estas tentativas criam sofrimento,

nomeadamente ao nível espiritual, emocional e mental. Daqui surge uma necessidade

de desabafo: “Há sessões em que eles só querem desabafar. E eu ouço, e respeito. É

importante na construção de uma relação de confiança”, refere a socióloga. É, por

isso, importante ver este desabafo como uma busca de aprovação e compreensão.

Nestes senhores reside a dúvida da sua importância para esta sociedade como

cidadãos, uma busca incessante por uma possível explicação que justifique a situação

de sem-abrigo em que se encontram, que muitas vezes leva a uma total falta de

confiança na transcendência, e que pode culminar num enorme sofrimento espiritual e

levar à angústia e, sobretudo, a um extremo sentimento de frustração. E foi nesta

altura que questionei, e deixo também aqui a pergunta. “É possível compreendermos

plenamente algo pelo qual nunca passámos? É correto referirmos “Eu compreendo…”,

mesmo referindo, depois, por palavras, os sentimentos que a pessoa que está à nossa

frente poderá sentir?”. Em resposta a isto, a socióloga referiu que a compreensão em

pleno é impossível, e que há mesmo situações inimagináveis para nós, que queremos

apoiar um ser humano em sofrimento. Todavia, por vezes, o mais importante não é só

a compreensão, mas sim o nosso apoio. É, pois, neste contexto, e ao se sentirem

apoiados (apesar de não completamente, muitas vezes, por falta da família e amigos),

que começa a contrução da resiliência. Esta surge da vulnerabilidade, e fortalece

qualquer ser humano para um futuro acontecimento da vida. O “ser humano abre-se a

múltiplos níveis de vulnerabilidade mas, ao mesmo tempo, tem consciência dela e

desenvolve formas de se proteger, quer no plano intelectual quer na praxis, criando

4
resiliência” [1], a qual é aproveitada pela socióloga para motivar os utentes a uma

reintegração profissional e social. E é quando esta resiliência começa a ser criada que

a socióloga toma um papel ainda mais importante, através da procura ativa de

emprego, por exemplo e até ensinando como se deve agir, e o que se pode ou não

dizer numa entrevista. Tudo isto é uma forma de os utentes verem uma evolução no

estado em que a sua vida se encontra e se sentirem motivados para fazer mais, para

mudar a sua vida, para se aproximarem da felicidade.

Analisando toda esta situação, podemos chegar à conclusão que todos nós

podemos ficar numa situação de sem-abrigo, e que a resiliência que estes utentes

apresentam é simplesmente incrível. Apesar de, ao longo de toda a sua vida terem

sido abatidos por insucessos e perdas aterradoras que a vida lhes trouxe, têm sempre

forças para se levantar e conseguirem ter uma vida que lhes traz alguma felicidade.

Apesar de todos os pensamentos negativos, de todas as tristezas, de todas as

frustações, nomeadamente em épocas de reflexão, como é o caso do Natal, eles vão

buscar forças para se levantarem e serem para o mundo o que o mundo não foi para

eles. Isto porque todos nós sabemos que a sociedade olha para a população em

situação de sem-abrigo como sendo um conjunto de pessoas parasitas da sociedade,

toxicodependentes. A realidade não é esta, e este abrigo consegue, com um modo de

atuação que se diferencia dos restantes, contrariar essa realidade. São pessoas como

a socióloga Maria que todos os dias se levantam com uma enorme vontade de

melhorar o mundo de cada um, aquele que só o próprio conhece, mas que pode ser

melhorado de tantas maneiras pelas outras pessoas…

Esta entrevista foi extremamente educativa e esclarecedora. Apesar de toda a

timidez que eu possa ter apresentado, a socióloga Maria foi uma pessoa

extremamente prestável, que, preocupada com o futuro da sociedade, sempre

destacou a importância de haver médicos que, como ela, escutassem o paciente,

tentando empatizar com ele e vendo-o como um todo, segundo todas as dimensões

5
que o representam. A cada pergunta que fiz, mostrou um entusiasmo invejável a

explicar toda e qualquer competência que ela utiliza ao comunicar com os seus

utentes para que eles a possam ver como a grande amiga e a excelente pessoa que

realmente é!

Conclusão

. Concluindo, não há como sair desta entrevista sem se ser um melhor cidadão: um

cidadão que compreende que todas as pessoas, em situação de vulnerabilidade e

sofrimento acrescidos, precisam (tal como todos nós) que alguém os veja como um

todo, como o ser humano que são, com sentimentos, feridas e cicatrizes que jamais

irão desaparecer, com uma história, com qualidades e defeitos. Ser humano é ser tudo

isto. Ser humano não é ser doente ou ser sem-abrigo.

Destaco, assim, que apesar de se encontrarem numa situação de sem-abrigo, os

utentes do Abrigo da Graça apresentam uma resiliência que, certamente, muito

poucas pessoas na situação em que estes se encontram teriam. Estes provam, pois,

que o ser humano não é definido por uma má situação em que se encontre, mas sim,

pela atitude que apresenta e pela vontade que tem em sair dela. Essa força sim, deve

ser respeitada. Todos estes senhores são uma fonte de inspiração para uma

sociedade que dá uma grande importância ao que, na verdade, nada de importante

tem. Precisamos todos desta força, precisamos todos desta vontade, porque a

indiferença ao sofrimento é uma “doença grave”, e nós, futuros médicos, nunca nos

poderemos deixar afetar por ela.

Por fim, realço a importância que pessoas como a socióloga Maria têm, todos os

dias, na vida de dezenas de pessoas, e como são cada vez mais as pessoas que, na

sociedade atual, simplesmente se deixam contagiar pela “epidemia da indiferença”.

Diariamente, há seres humanos (como nós!) que caem numa situação de enorme

sofrimento devido às mais variadas razões, sendo os utentes do Abrigo da Graça

apenas um exemplo disso. Reforço, como tal, a importância de termos uma sociedade

6
cuja principal missão seja garantir que o mundo que todos partilhamos se torne num

lugar melhor, e não apenas o seu mundo, aquele que só essa pessoa tem, retomando

a expressão tão sábia da socióloga Maria, que mostra que o simples (mas tão

complicado) ato de construir uma relação é sinónimo de proporcionar um melhor

futuro, uma maior esperança, enfim, uma melhor vida àqueles que nos rodeiam.

Referências Bibliográficas:

[1] Barbosa, A. (2016). Ser pessoa, vulnerabilidade e sofrimento. In A. Barbosa, P.

Reis Pina, F. Tavares, & I. Galriça Neto, I. (Eds.), Manual de cuidados paliativos (pp.

665-679). 3ª ed. rev. aum. Lisboa: Núcleo de Cuidados Paliativos/Centro de

Bioética/Faculdade de Medicina de Lisboa.

7
Anexos

Anexo 1 – Narrativa da entrevistada

Anexo 2 – Competências de

relação/comunicação

8
Que competências de Que competências de
relação/comunicação facilitaram a relação/comunicação poderia ter
entrevista? utilizado para melhorar a entrevista?
O entusiasmo e a clareza mostrados Poderia ser menos tímido e estar mais à
pela socióloga a fornecer todas as vontade, tendo em conta toda a
informações; recetividade da socióloga Maria;
O facto de ter feito perguntas abertas e Fazer perguntas que surgiam na
de a deixar desenvolver imenso as suas cadência do raciocínio da entrevistada;
ideias;
Valorização da função da socióloga na Maior clareza por parte das perguntas
sociedade dos dias de hoje. realizadas, para que a entrevistada
pudesse entender realmente sobre o que
falar.

Anexo 3 – Dois exemplos de respostas empáticas

1º exemplo:

Socióloga Maria: “Poucas são as pessoas que entendem isto. Todos nós temos o

nosso mundo. Cada pessoa é única e deve ser considerada segundo todas as suas

dimensões. O ser humano deve ser tratado como um todo. Vocês, futuros médicos,

que têm um percurso marcado pela resiliência têm o dever de o saber melhor que

ninguém.”

Eu: “Sim, é verdade. Infelizmente, há muitos médicos que continuam a ver a pessoa

que têm à frente como a doença, e esquecem-se do resto. Imagino que se sinta triste

ao lidar com pessoas assim, tendo em conta que se esforça constantemente por

contrariar esse hábito na sua função de socióloga.”

2º exemplo:

9
Socióloga Maria: “Já sabemos que o Natal é uma chatice. Eles começam a refletir

sobre o estado em que se econtram, sabe? Mas continuamos a celebrá-lo como se

fosse um Natal normal, com prendas, com ceia, com tudo a que eles têm direito.”

Eu: “Nem quero imaginar como será passar o Natal sem uma família, sem alguém que

nos ame incondicionalmente. Às vezes não temos a noção da sorte que temos…

Estamos numa sociedade em que encontramos problemas nas coisas mais

insignificantes, mas quando vemos uma situação destas, parece que ficamos

anestesiados, não sei. A senhora resiste a isso, e realmente faz a diferença na vida

destes senhores.”

Anexo 4 - As três características que a entrevistada considera mais importantes

num médico (ordenar de acordo com a sua importância).

1ª Ver a pessoa como um todo

2ª Audição Ativa

3ª Compaixão

10
Anexo 5 – Consentimento informado

11

Você também pode gostar