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Quem tem medo da fragilidade humana?

Nos últimos meses os noticiários apresentaram notícias de problemas de saúde de vários


líderes de nossa sociedade. Nada de novo nisso. Líderes políticos e religiosos, como
todos nós, são pessoas que vivem os percalços e as vicissitudes de nossa condição
humana. Mas, o que chama a atenção é a forma como essas notícias são anunciadas.
Primeiro, tenta-se esconder e depois negar. Em seguida, dizem que é um procedimento
de rotina. Finalmente, admite-se o problema de saúde quando a internação é inevitável.
Apresenta-se o quadro, sempre fazendo questão de dizer que a pessoa descansou bem, e
que em breve deverá retomar o trabalho, que o problema foi resolvido e que tudo está
em sua mais completa normalidade. A mesma dinâmica, invariavelmente, acontece em
nossas vidas.
Ora, essa dinâmica de esconder, escamotear ou minimizar nossos percalços, é só isso
mesmo? Não tem, como pano de fundo, um ideal sobre-humano que, mais do que nos
ajudar em nosso processo de humanização, acaba nos desumanizando e nos cegando
para nossas dores e as dores alheias? Um ideal de perfeição, fortaleza, beleza e
brilhantismo; tão exigidos por nossa cultura contemporânea e tão almejado por cada um
de nós, não nos torna menos sensíveis à vulnerabilidade humana e a incapacidade que
caracteriza nossas vidas, especialmente, na infância, na velhice e em momentos de
enfermidade física e psíquica?
Poucos filósofos e antropólogos se preocupam com os questionamentos anteriores. Mas,
um deles, Alasdair MacIntyre, colocou essas questões no centro de sua reflexão
antropológica ao escrever Animais Racionais Dependentes – Por que os seres humanos
precisam das virtudes? Para nosso filósofo, a vida humana é marcada pela dependência
mútua. Dependência em momentos de fragilidade e vulnerabilidade, dependência nos
processos de autoconhecimento e crescimento humano. Somos animais racionais
dependentes.
Quem abriu os olhos de MacIntyre para essa realidade foi São Tomás de Aquino que
numa oração rezou: Peço a Deus que me conceda a possibilidade de compartilhar, com
alegria, o que tenho com aqueles que necessitam, e a de pedir, humildemente, aquilo
que preciso a quem puder me ajudar. Pedir humildemente, reconhecer nossa
dependência, fragilidade e vulnerabilidade é sinal de virtude para esses filósofos. Ao
experimentarmos, conscientemente, nossa fragilidade, nos apropriamos do que existe de
mais humano em nossas vidas, nossa total dependência uns dos outros. Nossa própria
vida frágil, esse dom fundamental, é nosso princípio e fundamento dado a cada um de
nós pelos nossos pais. Somos um presente, um dom, dado a nós mesmos, na fragilidade
de um recém-nascido. Nada mais humano, nada mais maravilhoso, nada mais frágil.
Mas, mais ainda: mesmo como adultos, saudáveis e conscientes, tomamos posse de nós
mesmos, nossos dons, virtudes, habilidades e personalidade, na dependência dos outros.
Nas palavras de MacIntyre: O conhecimento que temos de nós mesmos depende
também de quanto aprendemos com os outros a propósito de nós mesmos, e mais ainda
da confirmação da parte dos outros que nos conhecem bem. Os juízos que formulamos
sobre nós mesmos precisam de uma confirmação que apenas os outros podem nos dar.
Portanto, crescer humanamente é crescer, também, no reconhecimento de nossa
dependência, nossa vulnerabilidade e nossa fragilidade.
Acolher essa dimensão fundamental de nossa humanidade, em nós mesmos e nos
outros, olhá-la com carinho e compreensão, agir em prol da construção de uma
sociedade onde nossas fragilidades sejam cuidadas, é profundamente humano. Eu
acredito que esse é o único caminho para construirmos uma sociedade da solidariedade,
da fraternidade e do cuidado recíproco. Talvez, esse seja um caminho muito difícil para
nossos líderes e para nós mesmos, em nossa constante e arrogante, autojubilação. Mas,
por outro lado, talvez esse seja um caminho filosófico para compreendermos nossa vida
naquilo que ele é: total dependência. Na minha opinião, um bom caminho para iluminar
esse debate são as paradoxais palavras, e a vida, de São Paulo, que escreveu: “Pois,
quando sou fraco é que sou forte” (2 Cor 12.10). Mas, isso já é uma outra história.

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