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COMO VIVER A

ESPIRITUALIDADE NOS DIAS


DE HOJE
NOTÍCIAS
4 DE MARÇO DE 2016
O teólogo jesuíta Pedro Trigo explica que ser cristão não é algo
fundamentalmente religioso, mas uma experiência vivida nas
relações, saindo para o mundo e não 'ensimesmando-se'.
Por Cristina Fontenele

Como viver a espiritualidade nos dias de hoje, diante de um contexto de


intolerância religiosa? Em entrevista exclusiva à Adital, o teólogo jesuíta Pedro
Trigo explica que ser cristão não é algo fundamentalmente religioso, mas uma
experiência vivida nas relações, saindo para o mundo e não "ensimesmando-se”.
Ele defende que a paz está associada a nos definirmos primeiramente como
humanos, antes de qualquer outra categoria. Trigo, que é espanhol naturalizado
venezuelano, destaca a "urgência do essencial”, que, para ele, significa viver
como irmãos de todos, a partir de baixo.

O teólogo é também autor de livros, professor de Teologia e um dos


coordenadores do Centro Gumilla, organização de pesquisa e ação social que
acompanha setores populares na Venezuela. Trigo comenta ainda sobre a vida
na Venezuela, a atuação do governo bolivariano e os desafios para a população,
que enfrenta longas filas diárias para comprar alimentos. Segundo o jesuíta, o
país enfrenta um "empobrecimento espantoso”, com a evasão de profissionais
para outros países.

Pedro Trigo é teólogo


jesuíta espanhol, naturalizado venezuelano e um dos coordenadores do Centro
Gumilla.

Adital: O que é a urgência do essencial?


Pedro Trigo: É importante, primeiro, observar que, para os cristãos, o essencial
não é o estático, aquilo que é sempre igual a si mesmo. Para os cristãos,
diferente dos gregos, o que tem mais realidade não é a substância, mas o atuar.
Deus diz que é o ato puro. O Deus cristão é relação, ou seja, para nós, a relação
é o que tem mais realidade. A relação faz a diferença, para que o pai seja pai, o
filho seja filho e se mantenha a unidade. Então, para nós, o essencial sempre tem
que ter esse elemento dinâmico e relacional. Por isso o essencial não pode ser
dito de uma vez por todas, tem que ser dito novamente, em cada situação,
porque, se não é dito na situação, é uma ortodoxia que resulta insignificante.

‘O que está falando esse senhor? Uma coisa arcaica que não tem nada a ver com
o que estamos vivendo?’. É muito arriscado dizer o que é o essencial em cada
situação. Eu parto da novidade do [Concílio] Vaticano II e estamos nos 50 anos
de sua realização. Para mim, o mais essencial que precisa ser dito é que, a
respeito do Cristianismo, no qual nasci, a instituição eclesiástica dizia que era
necessário salvar-se do mundo, que o mundo moderno estava perdido, e que
teria que ser feita uma institucionalização paralela, sindicatos cristãos, por
exemplo, havia um cinema para cristãos, um bar para cristãos. O primeiro
concílio pleno latino-americano, além de dizer isto, disse também, por exemplo,
que uma mulher que vai dar à luz tem que ser atendida sempre e somente por
uma parteira que seja cristã. Isto é totalmente inacreditável, não?

A respeito, o que disse o Concílio? Disse que, se eu, para encontrar Deus, me
aparto do mundo, cruzo com a direção de Deus que entra no mundo. Se o
fundamental do Deus cristão é a encarnação, como vou sair do mundo? Estou
fazendo o contrário de Deus. Então, o que é o mais fundamental de tudo?
Encarnar-me na situação que tenho que viver. Poderíamos dizer ‘não, como
Jesus era filho de Deus, ele teve que ser um ser humano, mas, se você é um ser
humano, não tem que encarnar?’ Sim, porque na encarnação de Jesus se fez não
apenas um ser humano, mas também nosso irmão. Então, o que se pede a mim?
Que não seja um entre tantos de uma espécie, de uma cultura, de uma classe
social, de um país, mas que seja um irmão de todos.

Jesus encarnou a partir de baixo, nasceu pobre, viveu pobre e morreu como
havia nascido. Se não teve uma casa para morrer, tampouco teve uma cama para
morrer, morreu em uma cruz, sangrando. Então, a encarnação cristã solidária tem
que ser feita a partir de abaixo, porque somente de baixo pode se chegar a
todos. O que esteve dizendo esse sistema, é que se a sociedade fosse como um
recipiente, o recipiente se enche, se enche, até que transborda. E, quando
transborda, atinge todos. Isto é o que o Banco Mundial e o Fundo Monetário
tiveram que dizer, que não é uma teoria científica, porque aumentou muito a
riqueza, nas últimas décadas, e, no entanto, a desigualdade é cada vez maior.
Quer dizer que o aumento da riqueza não se traduz em que esta riqueza seja
distribuída.

Para os cristãos, os pobres são o único lugar de universalidade real. Isto é o mais
elementar de tudo, mas o que parece é que o mais elementar é o menos
praticado. Não é isso o que se costuma ouvir nas missas, nem nas dissertações
de teólogos. O que se costuma definir por algo mais específico - eu sou jesuíta e
me defino como jesuíta, ou sou cristão e me defino como cristão, ou sou
empresário e me defino como empresário, ou sou deste partido e me defino
como deste partido. Ou sou eu e me defino por mim e tudo o mais vem depois, o
que importa sou eu, e as pessoas com quem quero me relacionar, enquanto
quero me relacionar.

Em todos esses casos, não acontece a encarnação como a entende o


Cristianismo, como a praticou Jesus. Quer dizer que eu, se me identifico como a
instituição eclesiástica, não sou cristão. Jesus não foi da instituição eclesiástica.
Então, o que isto significa? Que eu tenho que me identificar como um ser
humano e que ser cristão é uma especificação de ser um ser humano. Se não é
uma especificação do ser humano, ou mesmo um veículo para ser mais humano,
então, essa encarnação já não será solidária.

Isso que pode parecer óbvio de óbvio não tem nada. Por exemplo, todas as
pessoas falam sobre os direitos humanos, mas, para mim, parece que é um falar
vazio, porque o problema não é salvar ou não os direitos humanos, o problema é
o quanto são humanos. Este é um problema que se vê claramente. Há muitas
pessoas que, em seu âmbito, respeitam completamente os direitos humanos,
mas fora do seu âmbito não. Significa dizer que eu considero que são humanos
somente os meus e que os demais poderão ser candidatos a seres humanos, ou
meio humanos. Mas todos deveriam ser humanos, para mim, todos têm
dignidade. No comportamento, parece que não, porque muitas pessoas eu
desconheço e já outras tenho versão, de maneira absoluta.

Para Trigo, a encarnação cristã solidária tem que fazer-se a partir de baixo,
porque somente de baixo pode-se chegar a todos. "Os pobres são o único lugar
de universalidade real”.
Esta época em que vivemos poderia ser a primeira época da história mundial,
mas não é, porque, embora seu âmbito seja mundial e todos possamos ver todos,
embora todos possamos assistir ao que se passa em qualquer local do mundo,
em tempo real, no entanto, nem todo somos sujeitos, alguns poucos. Qual é a
prova mais clara disto? Que as mercadorias são jogadas em todos os locais
livremente, que os capitais não têm nenhuma fronteira, que os gerentes, os
grandes empresários ou os grandes financistas não têm nenhuma fronteira, mas,
para a gente de baixo as fronteiras são absolutamente drásticas. Cada vez mais,
estão colocando muros e, se as coisas não mudarem substancialmente, dentro de
pouco tempo, assistiremos ao assassinato massivo de centenas de milhares de
pessoas, porque já não há outro modo de conter isto. Se não reconheço como
pessoas, se não ajudo a desenvolver os lugares de origem, em vez de
empobrecê-los, não tem remédio.

A falta de consideração de que todos somos seres humanos, de que todos somos
irmãos, está nos levando a ver que já é impossível viver assim. Ou isto muda, ou
se torna cada vez mais inviável. Isto que poderia parecer algo muito elementar
não é.

A fraternidade é uma magnitude absolutamente transcendente. Os seres


humanos, nos momentos melhores, por exemplo, no momento dos estoicos,
chegaram a dizer: ‘eu sou um cosmopolita’, ou seja, não sou um cidadão de
Atenas ou de Tebas, e sim do cosmos e de todo o mundo. Isto foi uma coisa
maravilhosa e totalmente inassimilável para a ordem estabelecida. O mesmo
fizeram Kant e outros [filósofos] e voltaram a falar de cosmopolitismo, dizendo
que, de alguma maneira, a paz tinha a ver com isso e como definimos como seres
humanos.

Encarnar-se como irmão neste mundo é ser cristão. Ser cristão não é algo
fundamentalmente religioso, não é fazer práticas religiosas, não. É, como filho de
Deus, viver como irmão de todos a partir de baixo. Isto é o essencial.

Adital: Como viver a espiritualidade, hoje, diante da intolerância religiosa?

Trigo: A minha percepção é que, se nós não temos mais densidade humana do
que as corporações mundiais, temos que nos resignar ao que elas nos dizem. A
proposta é que temos que adensar o sujeito, de tal maneira que podem me
afetar o que fazem, mas não me influenciam em absoluto, porque minha vida
nasce de mim.

Como se faz isto de forma cristã? Não se faz ensimesmando-se. Cristianamente,


isto só se faz por meio das relações, pondo-me nas mãos de Deus, sabendo que
o amor é a origem da vida e, portanto, nada pode me separar da vida, porque
nada pode me separar do amor. Poderão, em todo caso, matar, mas não vão me
separar do amor.

Em que se manifesta essa confiança de fundo? No que me dedico a ser


fraternidade a partir dos de baixo. Quando eu atuo densamente, em ambas as
dimensões, libero minha liberdade e essa liberdade liberada se aplica na
capacidade de fazer fraternidade.

Qual a prova de que há confraternidade a partir de abaixo e que incluo os meus


inimigos? O sinal de que é a verdadeira fraternidade, como humanos, é que logo
de baixo incluo meus inimigos. Por exemplo, na Venezuela, o que eu disse todos
esses anos? Se você é anti-chavista, não é cristão se você não pede, com toda a
sinceridade, com toda a alma a Deus, a cada dia, que Chávez acerte. Se você é
chavista, não é cristão se você não pede, com toda a sinceridade, que os não
chavistas acertem. Isto é um teste e não significa que me faça bem ou mal, não
tem a ver com sentir, tem a ver com querer, com o que sai mais fundo de mim.
Eu quero o seu bem, mesmo que você me considere seu inimigo.

Essa perspectiva é a única que pode nos salvar, porque essas diferenças se
fazem absolutas e não podem ser. No caso de Chávez, por pouco marxista que
fosse, teria que reconhecer que a política é uma superestrutura. E uma
superestrutura não pode definir minha vida, isto seria totalmente irracional. Há
coisas muito mais profundas do que esta, não posso me definir por isso. Para
poder pensar, tenho que tomar decisões mais profundas, senão, como me
identifico com isso, não posso pensar. Em todo caso, posso pensar
ideologicamente como uma declaração de princípios, mas não como uma
realidade atuante em minha vida.
Adital: Como avalia a relação entre a Venezuela e a Colômbia tendo em vista os
problemas ocorridos na fronteira e os casos dos migrantes expulsos?

Trigo: Este não é o problema. Eu sempre uso o transporte público, caminho e


vivo numa zona popular. E 80% das conversas são sobre se você obtém um
alimento ou não obtém, se tem ou não dinheiro para comprá-lo, quantas horas
de fila são necessárias. As pessoas estão tão sobrecarregadas disso que precisam
se distrair. A prova maior de que o que se diz não é o problema é que,
certamente, foram detidos o comércio e o contrabando regular, mas não
contiveram o grande contrabando.

Adital: Isto é o que se chama "bachaqueo”?

Trigo: Sim. Os varejistas são os ‘bachaquitos’, que vão como formigas


[caminhando e levando mercadorias]. Por exemplo, a gasolina continua passando
[pela fronteira] e são detidos os que vão com um recipiente, mas não os outros.
O que fez o governo? Concentrar o contrabando de forma que seja o único
beneficiado, mas o mais importante não é isto e sim distrair, porque a situação
está tão mal, tão mal, que o governo vê que, para as eleições, não há outras
coisas e as pessoas querem acabar com essa situação.

Sim, há o desabastecimento de produtos e, quando chegam, onde chegam,


fazem-se filas enormes. Mas quem pode fazer filas? As filas que chegam até
quatro horas ou mais. Se eu sou um médico e me pagam menos de U$ 100 por
mês, não posso fazer nenhuma fila, necessito trabalhar mais do que o normal
para sobreviver. Por isso a Venezuela, que tem sido sempre um país que acolheu
imigrantes, pela primeira vez, há 1,5 milhão de profissionais que querem sair, um
empobrecimento espantoso do país, professores universitários, médicos muito
bem formados na Venezuela, ficamos sem eles. Muitos foram para o Equador,
porque na política de [Rafael] Correa o mais importante é a educação, os mais
bem pagos têm que ser os educadores. Se uma pessoa está ganhando U$ 100 e
lhe oferecem U$ 4.000, é quase impossível que diga não quando com issso não
se pode viver.

Adital: Como a população avalia o governo?

Trigo: Os que estão, como se diz, em ‘apoio duro a Chávez’ são cerca de 20%.
Muita gente que vive do governo, o governo ameaça e diz que, ‘se você não
votar em mim, você fica sem esse sustento, sem esse emprego’. Naturalmente,
que o governo não pode saber quem votou, mas há uma chantagem muito forte.
Então, se a coisa não muda muito como está, é claro que o governo perderá por
mais de 10 pontos.

Adital: Quais os desafios para a Igreja na Venezuela?

Trigo: O que precisa fazer a Igreja, hoje, e em qualquer outro local, por causas
distintas, no nosso caso, é o governo, em outros casos é o que Papa tanto disse:
‘esse sistema que é fetichista e que mata’, é transmitir com tal profundidade a
relação de Deus conosco através de Jesus, que eu viva como filho e daí viva
como irmão, e que possa viver assim nas boas, nas más e nas péssimas e aja com
alegria, apesar de qualquer dor, não como um dever. O Cristianismo não
conhece deveres, conhece a entrega do coração, como agradecimento, como
resposta à entrega de Deus em Jesus.

A partir daqui tem que se pensar tudo isso, de maneira que possa haver
comunidades, fraternidades e que possa haver outra lógica completamente
distinta da lógica atual, que é sempre adversativa – eu te dou para que você me
dá. Essa outra lógica nossa não pode ser feita como um dever, nem para fazer
méritos, somente quando é uma boa nova. Quando eu percebo que a relação de
Deus comigo e Jesus é o maior bem que pode haver, então, eu vou querer ser
irmão de todos. E ter muitos irmãos e irmãs, como cantava Mercedes Sosa, é a
coisa maior que pode haver.

Eu leio o Evangelho em sete comunidades, uma é a Universidade Central, que


não é gente rica, mas tampouco pobre, as outras são em bairros. Através disto
tenho muitos irmãos e muitas irmãs.

Sobre isso é o que nos fala constantemente o Papa, e diz que não se trata de
proselitismo. Por que falar em ‘Igreja em saída’? Porque, se estou encerrado em
mim, tenho que sair ao mundo, e foi o que Deus fez ao enviar seu filho. Por meio
da leitura do Evangelho, se vê claramente que Deus fala para os simples.

Segundo o jesuíta, a Venezuela vive um empobrecimento espantoso, com a saída


de vários profissionais em busca de salários melhores no Equador.

Adital: Sobre a história da evangelização na América Latina, que herança ela


tem, hoje?

Trigo: A América Latina nasce com uma contradição constituída. A contradição é


que eu te batizo e você é meu irmão, saindo do templo eu sou senhor e você é
servo. Os melhores momentos da história da América Latina são os que
quiseram superar esta contradição, de maneira que pensa a fraternidade sobre a
opressão.

Eu escrevi um longo artigo, com a leitura da história da América Latina, que diz
que os momentos que dizemos que são bons, são os que triunfou a fraternidade
sobre a opressão do homem pelo homem. Os melhores evangelizadores se
colocaram em favor dos indígenas e contra os que haviam chegado. E os
indígenas captaram essa contradição.

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