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Hilário Dick
Considerando o relacionamento entre juventude, sociedade e igreja e, até, a situação atual que a
Pastoral Juvenil do Brasil vive no momento, fiquei um pouco atarantado com o convite que
desejava que eu falasse, num encontro de final de semana, sobre “Análise de Conjuntura,
Profetismo e Protagonismo Juvenil referendado em Dom Hélder Câmara”. Fiquei atarantado
porque não me considero especialista em nenhum dos temas sugeridos. Depois de remoer por
mais tempo o assunto, concluí que um assunto sobre o qual pouco se escreveu e que
responderia, em parte, ao tema proposto, resolvi organizar algumas idéias pensando na vocação
profética da juventude.
1. A vocação de profeta
Todo cristão aprende que, pelo batismo, onde assumimos o seguimento de Jesus, todo cristão é,
por vocação batismal, segundo a terminologia mais ortodoxa, sacerdote, profeta e rei. Em
palavras concretas isso significa que, pelo batismo, moram no coração de cada batizado três
vocações: a vocação de celebrantes do mundo, a vocação do profetismo e a vocação política.
Seremos coerentes e felizes se vivenciarmos a celebração, a profecia e a política. Vamos ater-
nos à vivência da profecia.
2. Juventude e profecia
“Jovem” é a pessoa dos 18 aos 30 anos. Antes de sermos “jovens”, somos “adolescentes”. A
adolescência segundo a UNICEF vai dos 12 aos 17 anos, mas a juventude e a adolescência se
“encontram” e se misturam dos 14 aos 18 anos. A “juventude” é profetiza do jeito dela, no
pensamento dela mas, especialmente, no corpo dela. A fala do corpo do jovem não deixa de ser
profética porque o corpo jovem, na sua concretitude biológica e na maneira como se apresenta,
anuncia e denuncia. Anuncia, mesmo de forma inconsciente, novidades no sentido mais
profundo e denuncia velhices para as quais a humanidade não foi feita. O jovem, como tal, é
uma realidade emergente que é preciso aprender a perceber e compreender. A maior novidade
que se apresenta, neste sentido, e na qual deveríamos ser especialistas é a novidade da juventude
encarada como realidade teológica2. Tentemos olhar, por isso, esta questão sob vários aspectos.
1
BROUCKER DE, José. As noites de um profeta – Dom Hélder Câmara no Vaticano II. São Paulo:
Paulus, 2008.
2
Veja-se Evangelização da Juventude: Desafios e Perspectivas Pastorais, da CNBB, nº. 80 81.
juvenil3. Estou convencido que, até hoje, a sociedade não entendeu o que a juventude – do jeito
dela – gritou em todos os cantos. Não se tratava somente de superar tabus sexuais, como alguns
costumam teimam em dizer. O Maio de 1968 não foi somente Woodstock, não foi somente
Nanterre, não foi somente Praça de Tatlelolco, não foi somente xingação do ensino
universitário. Foi um todo que leva anos a ser digerido.
Trinta anos antes de 1968 havia tido a juventude nazista, a juventude fascista, a juventude
falangista e outras juventudes das quais nem sabemos o nome. Uma juventude manipulada,
oprimida, encarada, por interesse, como salvação da sociedade e ela se vinga... 4 É a moratória
social em conflito visceral com a moratória vital. Algo semelhante aconteceu em 1989, no
tempo da queda do Muro de Berlim. Numa perspectiva juvenil, 1989 representou a mudança de
paradigma, passando-se de uma visão de mundo apolínea para uma visão de mundo dionisíaca,
também na Pastoral da Juventude. É a juventude vivenciando na carne e na rua a profecia.
Podemos dizer que a profecia emerge na realidade juvenil, mesmo que a percepção muitas vezes
fique abafada. O que sucedeu poucos anos atrás com os jovens queimando milhares de carros na
Europa? O que significa o “carro” na sociedade atual? Será que a juventude só pensa em
badernice e não quer dizer algo de fundamental para o mundo tonto dos adultos? “A felicidade
não anda sobre rodas”, grita de repente uma periferia de milhões, arrastando outros milhões para
as ruas de Paris, sem matar ninguém. É a profecia da juventude.
Não é verdade que todos, hoje em dia, querem ser jovens? Não querem ser nem adolescentes
nem crianças nem velhos; querem ser jovens. Todos querem ser jovens por aquilo que o jovem é
e representa. Tem muito peso, nesse sentido, quando falamos que a juventude é o sacramento da
novidade. O que agrada ao coração da pessoa humana não é o estabelecido. Não mora no
coração da humanidade a vocação de água estagnada. Vive em todos nós a dinamicidade da
vida. Quem encarna e visualiza isso, em todo o seu jeito de ser, é o segmento da sociedade que
apelidamos de “juventude”. Por isso, mesmo que a novidade não deixe de assustar – porque o
imprevisto sempre assusta – todos sonham ser jovens, também os adolescentes, também os
adultos. Ser jovem é ser novo. E não nos esqueçamos que até o Reino de Deus é da novidade.
Uma afirmação muito forte, neste sentido, é aquela que diz que o/a jovem é a figura da
desordem. “Desordem” porque aquilo que vemos não é “ordem”.5 Onde há manipulação,
injustiça, consumismo, uma minoria que tem tudo e a maioria que não tem quase nada etc. isso
não é “ordem”. Mesmo que a juventude não saiba dize-lo como a sociedade quer que diga ou
como ela não quer compreender, a juventude é a primeira a reclamar, mesmo sem ser ouvida,
isto é, mesmo sendo silenciada, assim como foi através dos séculos. Quem sabe ver, contudo,
enxerga que a juventude não esteve omissa. No mesmo sentido podemos dizer que o profeta é
da desordem.
Relacionada com a “figura da desordem” está a figura do/a “desviante” em sentido sociológico
e, também, teológico6. Assim como a nossa vocação é a vida, o mesmo vale para as instituições.
Contudo, para manter-se viva, fiel à sua vocação primeira, fiel ao que se chama nas
Congregações Religiosas de “carisma”, fiel aos objetivos definidos, são necessárias as figuras
dos “desviantes”, aqueles que – sem afastar-se da utopia encontram trilhas que garantem a
fidelidade à utopia. Qualquer instituição que não tiver “desviantes” está fadada a desaparecer.
3
GROPPO, Luís Antonio. Uma Onda Mundial de Revoltas – Movimentos Estudantis de 1968. São Paulo:
Editora UNIMEP, 2005.
4
DICK, Hilário. Gritos silenciados, mas evidentes – Jovens construindo juventude na história. São
Paulo: Loyola, 2003.
5
ZUCCHETTI, Dinora Tereza. Jovens: a educação, o cuidado e o trabalho como éticas de ser e estar no
mundo. Novo Hamburgo: Feevale, 2003; KEHL, Maria Rita. “A juventude como sintoma da cultura” in
NOVAES, Regina e VANNUCHI, Paulo (org.). Juventude e Sociedade – Trabalho, Educação, Cultura e
Participação. São Paulo: Edit. Fundação Perseu Abramos e Instituto Cidadania, 2004, p. 89-114.
6
CALIMAN, Geraldo. Desvio social e Delinqüência Juvenil – Teorias e Fundamentos da Exclusão
Social. Brasília: Editora Universa, 2006.
Podemos dizer, até, que a sociedade – como um todo – que não tiver “desviantes” se afasta
progressivamente da felicidade de todos. É neste contexto que surgem “desviantes” de muitos
tipos. Os profetas do passado e do presente, mesmo os profetas da Bíblia, inscrevem-se no
caminho dos desviantes. O destino de muitos deles é a morte porque a “ordem” não tolera
“desordens”, porque – assim como o novo – o “desviante” incomoda, assusta, questiona,
denuncia. A profecia caminha no desvio porque, muitas vezes, a fidelidade está na aparente
infidelidade; o carisma está no que é olhado como não-carisma; a utopia está no que não se
aceita como utopia. E tudo isso se relaciona intimamente com a juventude enquanto profecia.
a) a profecia juvenil veste-se de novidade como anúncio. Não se trata somente de ser
“diferente” ou “novo”, mas de uma novidade que tenha fundamento7. Talvez o anúncio
não seja evidente; talvez seja o que se chama de “intuição”; talvez vá envolto na forma
de poesia, de símbolo, de expressão corpórea, de discurso não falado, mas é anúncio
que exige percepção ou, até, recepção.
c) a profecia juvenil exige leitura dos “sinais dos tempos”.8 Isso tem relação visceral com
a análise de conjuntura. Não bastam informações; são necessárias análises dessas
informações. Podemos dizer que o coração profético está sempre alerta não só em
receber notícias, mas em crescer na leitura delas. Muito difícil haver profecia se não
houver boas análises de conjuntura, também da Igreja.
d) a profecia juvenil é o eterno grito da humanidade pela coerência. Não é por pouco que
o jovem exige de todos, também deles, a coerência. No mais profundo, trata-se de amor
à verdade e rejeição da falsidade. A coerência a gente sente; poucas vezes ela se
explica, assim como o amor9. O amor se vive; não se justifica. O grito pela coerência
exige visibilidade (= testemunho).
f) a profecia juvenil só viceja em corações que carregam uma mística porque o linguajar
da beleza é o silêncio. A contemplação é o espaço onde sobra toda palavra. O jovem
começa a viver isso no namoro mais sincero; embora seja fundamental a palavra, o
silêncio fala mais alto. É a raiz da importância de uma vida sacramental que supere
7
DICK, Hilário. O Divino no Jovem. Elementos teologais para a evangelização da cultura juvenil. São
Paulo: CCJ, 2009, p. 29-33.
8
VATICANO II. Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, nº. 11.
9
O artigo da psicanalista Rita Kehl, no artigo citado, tem constatações e afirmações muito interessantes.
participações extraordinárias e da presença bíblica. Não custa recorda Karl Rahner
afirmando que o cristão do século XXI ou será místico ou não será nada.
b) assumirmos em nossa prática total o sermos lutadores valentes das opções pedagógicas
afirmadas pelo episcopado brasileiro, convencidos de que é nestas opções que se esconde a
felicidade do jovem. Todas elas, desde o valor do grupo até a importância em termos um bom
acompanhamento e uma assessoria cada vez mais formada e articulada que reside a beleza da
evangelização na qual acreditamos. Trata-se de um credo pedagógico que encaramos com a
seriedade das coisas de fé. No fundo está em jogo a causa pela qual nos empenhamos.
10
De grande inspiração é o artigo de ORTEGA, Francisco. “Das utopias sociais às utopias corpóreas:
identidades somáticas e marcas corporais” in MENDES DE ALMEIDA, Maria Isabel e EUGENIO,
Fernanda (org.). Culturas Jovens – Novos Mapas do Afeto.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006,
p.42-58.
gritos das juventudes. Não estar nas lutas sociais não deixa de ser um sintoma da falta de
mística, de oração, de vivência litúrgica e bíblica. Se a Igreja, como um todo, está temendo em
vivenciar o profetismo, cabe à juventude recordar isso para a nossa Mãe pelo testemunho e pela
prática.
e) uma outra forma de a juventude viver sua vocação profética é vivenciar, ao mesmo tempo, as
diferenças e a elaboração convicta e metódica do projeto de vida. Um profeta é do vigor de seu
projeto de vida. Jesus Cristo preparou seu projeto de vida durante quase 30 anos e se quisermos
ser seus seguidores não podemos achar que a elaboração corrida de um “projeto de vida” num
final de semana. Isso é trabalho de meses e anos, sujeito a avaliações diante da profundidade de
nossas consciências.
Conclusão
Não há dúvida que não só a Igreja, mas também a juventude da Igreja, está tendo dificuldades
na encarnação do profetismo. Dentro e fora da Igreja há uma tendência para o imediatismo, para
a descrença num outro mundo possível, para o medo, para a incerteza ante novos paradigmas,
mas ninguém tem direito a querer convencer-nos que o coletivo não vale, que a vivência
comunitária já era, que não adianta fazer projetos de vida etc. Trata-se de uma dimensão sem a
qual todos perdemos nossa razão de ser e é, talvez, por aí que se enraíza uma das maiores
tentações sistêmicas e eclesiásticas. O profetismo, contudo, não é discurso; é prática do dia-a-
dia.