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A VOCAÇÃO PROFÉTICA DA JUVENTUDE

Hilário Dick
Considerando o relacionamento entre juventude, sociedade e igreja e, até, a situação atual que a
Pastoral Juvenil do Brasil vive no momento, fiquei um pouco atarantado com o convite que
desejava que eu falasse, num encontro de final de semana, sobre “Análise de Conjuntura,
Profetismo e Protagonismo Juvenil referendado em Dom Hélder Câmara”. Fiquei atarantado
porque não me considero especialista em nenhum dos temas sugeridos. Depois de remoer por
mais tempo o assunto, concluí que um assunto sobre o qual pouco se escreveu e que
responderia, em parte, ao tema proposto, resolvi organizar algumas idéias pensando na vocação
profética da juventude.

1. A vocação de profeta
Todo cristão aprende que, pelo batismo, onde assumimos o seguimento de Jesus, todo cristão é,
por vocação batismal, segundo a terminologia mais ortodoxa, sacerdote, profeta e rei. Em
palavras concretas isso significa que, pelo batismo, moram no coração de cada batizado três
vocações: a vocação de celebrantes do mundo, a vocação do profetismo e a vocação política.
Seremos coerentes e felizes se vivenciarmos a celebração, a profecia e a política. Vamos ater-
nos à vivência da profecia.

Não é o momento de aprofundarmos o que seja profetismo. Optamos em remeter-nos a uma


figura que todos aceitamos como “profeta”: Dom Hélder Câmara. Numa obra que recorda
aspectos deste arcebispo1, Dom Hélder dizia: “Nós, os bispos, não esqueçamos que somos os
sucessores dos apóstolos. E quem são os sucessores dos profetas? E dos doutores?” Dizia ele,
também, que “eu pertenço mais à família dos profetas que à dos doutores” (BROUCKER, 127).
Respondendo ao barão de Rosen, presidente da União Internacional dos Patrões Católicos, Dom
Hélder perguntou: “Para ser fiel à minha missão profética deveria eu, sem prejuízo para meu
trabalho essencial em minha diocese, partir, como bispo do mundo inteiro e ajudar irmãos a
reencontrar o caminho perdido do amor de Deus e dos homens?” (BROUCKER, 128). Enfim,
todos entendemos algo quando se fala de profecia. O que importa, no momento, é relacionar
juventude e profecia.

2. Juventude e profecia
“Jovem” é a pessoa dos 18 aos 30 anos. Antes de sermos “jovens”, somos “adolescentes”. A
adolescência segundo a UNICEF vai dos 12 aos 17 anos, mas a juventude e a adolescência se
“encontram” e se misturam dos 14 aos 18 anos. A “juventude” é profetiza do jeito dela, no
pensamento dela mas, especialmente, no corpo dela. A fala do corpo do jovem não deixa de ser
profética porque o corpo jovem, na sua concretitude biológica e na maneira como se apresenta,
anuncia e denuncia. Anuncia, mesmo de forma inconsciente, novidades no sentido mais
profundo e denuncia velhices para as quais a humanidade não foi feita. O jovem, como tal, é
uma realidade emergente que é preciso aprender a perceber e compreender. A maior novidade
que se apresenta, neste sentido, e na qual deveríamos ser especialistas é a novidade da juventude
encarada como realidade teológica2. Tentemos olhar, por isso, esta questão sob vários aspectos.

a) Pensemos, primeiramente, no “Maio de 1968”, quarenta anos atrás. Naquela loucura


internacional, naquela explosão mundial que se deu em 1968, não estaria escondido um discurso

1
BROUCKER DE, José. As noites de um profeta – Dom Hélder Câmara no Vaticano II. São Paulo:
Paulus, 2008.
2
Veja-se Evangelização da Juventude: Desafios e Perspectivas Pastorais, da CNBB, nº. 80 81.
juvenil3. Estou convencido que, até hoje, a sociedade não entendeu o que a juventude – do jeito
dela – gritou em todos os cantos. Não se tratava somente de superar tabus sexuais, como alguns
costumam teimam em dizer. O Maio de 1968 não foi somente Woodstock, não foi somente
Nanterre, não foi somente Praça de Tatlelolco, não foi somente xingação do ensino
universitário. Foi um todo que leva anos a ser digerido.

Trinta anos antes de 1968 havia tido a juventude nazista, a juventude fascista, a juventude
falangista e outras juventudes das quais nem sabemos o nome. Uma juventude manipulada,
oprimida, encarada, por interesse, como salvação da sociedade e ela se vinga... 4 É a moratória
social em conflito visceral com a moratória vital. Algo semelhante aconteceu em 1989, no
tempo da queda do Muro de Berlim. Numa perspectiva juvenil, 1989 representou a mudança de
paradigma, passando-se de uma visão de mundo apolínea para uma visão de mundo dionisíaca,
também na Pastoral da Juventude. É a juventude vivenciando na carne e na rua a profecia.
Podemos dizer que a profecia emerge na realidade juvenil, mesmo que a percepção muitas vezes
fique abafada. O que sucedeu poucos anos atrás com os jovens queimando milhares de carros na
Europa? O que significa o “carro” na sociedade atual? Será que a juventude só pensa em
badernice e não quer dizer algo de fundamental para o mundo tonto dos adultos? “A felicidade
não anda sobre rodas”, grita de repente uma periferia de milhões, arrastando outros milhões para
as ruas de Paris, sem matar ninguém. É a profecia da juventude.

Não é verdade que todos, hoje em dia, querem ser jovens? Não querem ser nem adolescentes
nem crianças nem velhos; querem ser jovens. Todos querem ser jovens por aquilo que o jovem é
e representa. Tem muito peso, nesse sentido, quando falamos que a juventude é o sacramento da
novidade. O que agrada ao coração da pessoa humana não é o estabelecido. Não mora no
coração da humanidade a vocação de água estagnada. Vive em todos nós a dinamicidade da
vida. Quem encarna e visualiza isso, em todo o seu jeito de ser, é o segmento da sociedade que
apelidamos de “juventude”. Por isso, mesmo que a novidade não deixe de assustar – porque o
imprevisto sempre assusta – todos sonham ser jovens, também os adolescentes, também os
adultos. Ser jovem é ser novo. E não nos esqueçamos que até o Reino de Deus é da novidade.

Uma afirmação muito forte, neste sentido, é aquela que diz que o/a jovem é a figura da
desordem. “Desordem” porque aquilo que vemos não é “ordem”.5 Onde há manipulação,
injustiça, consumismo, uma minoria que tem tudo e a maioria que não tem quase nada etc. isso
não é “ordem”. Mesmo que a juventude não saiba dize-lo como a sociedade quer que diga ou
como ela não quer compreender, a juventude é a primeira a reclamar, mesmo sem ser ouvida,
isto é, mesmo sendo silenciada, assim como foi através dos séculos. Quem sabe ver, contudo,
enxerga que a juventude não esteve omissa. No mesmo sentido podemos dizer que o profeta é
da desordem.

Relacionada com a “figura da desordem” está a figura do/a “desviante” em sentido sociológico
e, também, teológico6. Assim como a nossa vocação é a vida, o mesmo vale para as instituições.
Contudo, para manter-se viva, fiel à sua vocação primeira, fiel ao que se chama nas
Congregações Religiosas de “carisma”, fiel aos objetivos definidos, são necessárias as figuras
dos “desviantes”, aqueles que – sem afastar-se da utopia encontram trilhas que garantem a
fidelidade à utopia. Qualquer instituição que não tiver “desviantes” está fadada a desaparecer.

3
GROPPO, Luís Antonio. Uma Onda Mundial de Revoltas – Movimentos Estudantis de 1968. São Paulo:
Editora UNIMEP, 2005.
4
DICK, Hilário. Gritos silenciados, mas evidentes – Jovens construindo juventude na história. São
Paulo: Loyola, 2003.
5
ZUCCHETTI, Dinora Tereza. Jovens: a educação, o cuidado e o trabalho como éticas de ser e estar no
mundo. Novo Hamburgo: Feevale, 2003; KEHL, Maria Rita. “A juventude como sintoma da cultura” in
NOVAES, Regina e VANNUCHI, Paulo (org.). Juventude e Sociedade – Trabalho, Educação, Cultura e
Participação. São Paulo: Edit. Fundação Perseu Abramos e Instituto Cidadania, 2004, p. 89-114.
6
CALIMAN, Geraldo. Desvio social e Delinqüência Juvenil – Teorias e Fundamentos da Exclusão
Social. Brasília: Editora Universa, 2006.
Podemos dizer, até, que a sociedade – como um todo – que não tiver “desviantes” se afasta
progressivamente da felicidade de todos. É neste contexto que surgem “desviantes” de muitos
tipos. Os profetas do passado e do presente, mesmo os profetas da Bíblia, inscrevem-se no
caminho dos desviantes. O destino de muitos deles é a morte porque a “ordem” não tolera
“desordens”, porque – assim como o novo – o “desviante” incomoda, assusta, questiona,
denuncia. A profecia caminha no desvio porque, muitas vezes, a fidelidade está na aparente
infidelidade; o carisma está no que é olhado como não-carisma; a utopia está no que não se
aceita como utopia. E tudo isso se relaciona intimamente com a juventude enquanto profecia.

3. Características da profecia juvenil


Além do que já conseguimos vislumbrar, é bom tentarmos ver algumas características da
profecia em vestes de juventude:

a) a profecia juvenil veste-se de novidade como anúncio. Não se trata somente de ser
“diferente” ou “novo”, mas de uma novidade que tenha fundamento7. Talvez o anúncio
não seja evidente; talvez seja o que se chama de “intuição”; talvez vá envolto na forma
de poesia, de símbolo, de expressão corpórea, de discurso não falado, mas é anúncio
que exige percepção ou, até, recepção.

b) a profecia juvenil vai acompanhada por um compromisso frente a toda e qualquer


injustiça. Ela não tem sentido se o lugar do excluído e do pobre for inexistente. Uma
vestimenta fundamental da profecia é a causa do oprimido. Podemos dizer que, sem ela,
não existe profecia assim como não existe cristianismo nem igreja. A profecia está na
raiz... Alguém é mais profeta quanto mais dentro do pobre. Alguém é mais feliz quanto
mais vestido de pobre. Não haverá profecia juvenil sem essa vivência.

c) a profecia juvenil exige leitura dos “sinais dos tempos”.8 Isso tem relação visceral com
a análise de conjuntura. Não bastam informações; são necessárias análises dessas
informações. Podemos dizer que o coração profético está sempre alerta não só em
receber notícias, mas em crescer na leitura delas. Muito difícil haver profecia se não
houver boas análises de conjuntura, também da Igreja.
d) a profecia juvenil é o eterno grito da humanidade pela coerência. Não é por pouco que
o jovem exige de todos, também deles, a coerência. No mais profundo, trata-se de amor
à verdade e rejeição da falsidade. A coerência a gente sente; poucas vezes ela se
explica, assim como o amor9. O amor se vive; não se justifica. O grito pela coerência
exige visibilidade (= testemunho).

e) a profecia juvenil situa-se, como já se disse, no campo da desordem, no campo da


rejeição da acomodação. É na verdadeira desordem que habita a ordem. É como afirmar
que é na morte que se encontra o verdadeiro sentido da vida. Na morte é a vida que
desarranja tudo para ser vida, mesmo que isso signifique dor. A profecia jovem vai
aprendendo que a realização não está no “caminho da vaca”, mas nas trilhas variadas e
novas que a vida exige.

f) a profecia juvenil só viceja em corações que carregam uma mística porque o linguajar
da beleza é o silêncio. A contemplação é o espaço onde sobra toda palavra. O jovem
começa a viver isso no namoro mais sincero; embora seja fundamental a palavra, o
silêncio fala mais alto. É a raiz da importância de uma vida sacramental que supere

7
DICK, Hilário. O Divino no Jovem. Elementos teologais para a evangelização da cultura juvenil. São
Paulo: CCJ, 2009, p. 29-33.
8
VATICANO II. Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, nº. 11.
9
O artigo da psicanalista Rita Kehl, no artigo citado, tem constatações e afirmações muito interessantes.
participações extraordinárias e da presença bíblica. Não custa recorda Karl Rahner
afirmando que o cristão do século XXI ou será místico ou não será nada.

g) a profecia juvenil relaciona-se com o espírito missionário. A juventude é o tempo do


êxodo, do sair de si mesmo, de sair da dependência para progressivamente auto-afirmar-
se. Neste sair de si fundamenta-se o que com certa ingenuidade chamamos de
missionariedade. Até o namoro se situa neste campo de saída do “egoísmo” infantil e
adolescente. O profeta é alguém que sai de si e abraça a felicidade do todo. Não há
profeta que não seja missionário, mesmo que esteja trancado nalguma cela.

h) a profecia juvenil se caracteriza, também, pela importância que dá à utopia social, em


oposição a um sistema que promove com muita insistência a utopia corpórea10. Numa
idade em que o corpo é tão importante, o profeta ou a profetiza jovem vai aprendendo e
afirmando que o/a outro/a é o lugar da felicidade dele/a e que esta não se resume ao
umbigo. A “veneração” do corpo arrasta ou é arrastada para a não existência do/a outro.
O outro só interessa quando pode ser útil, isto é, quando pode ser usado como objeto.

4. O lugar da profecia na Pastoral da Juventude


Para sermos profetas, neste momento, na evangelização da juventude, apresentam-se algumas
exigências específicas. Tentaremos vislumbrar algumas:

a) assumirmos com vigor, conhecimento, testemunho, coerência, estratégia a proposta


evangelizadora do documento “Evangelização da Juventude: Desafios e Perspectivas
Pastorais”. É uma proposta muito feliz e aberta como de magistério eclesial, além de atualizar o
que se vinha propondo por mais de 20 anos para a Evangelização da Juventude na América
Latina. Se não formos nós que tomamos em mãos esta proposta, ninguém a vai tomar. Trata-se
de darmos conteúdo e vivência para a nossa vocação política e profética. Basta querermos ser
Igreja e acreditarmos, ainda, numa pastoral orgânica que a Igreja da América Latina já vem
propondo desde Puebla. Isso vale, até, para a maneira como encararmos o Setor Juventude não
só como uma articulação mais ampla, mas também mais eficaz.

b) assumirmos em nossa prática total o sermos lutadores valentes das opções pedagógicas
afirmadas pelo episcopado brasileiro, convencidos de que é nestas opções que se esconde a
felicidade do jovem. Todas elas, desde o valor do grupo até a importância em termos um bom
acompanhamento e uma assessoria cada vez mais formada e articulada que reside a beleza da
evangelização na qual acreditamos. Trata-se de um credo pedagógico que encaramos com a
seriedade das coisas de fé. No fundo está em jogo a causa pela qual nos empenhamos.

c) sermos capazes de discutir em profundidade e com ciência a questão da organização. É com


uma boa organização que vamos por em prática o princípio norteador que tanto apreciamos: o
protagonismo juvenil. O protagonismo não é só questão dos jovens; também o é para os adultos,
sejam eles leigos, religiosos, sacerdotes ou bispos. Precisamos caminhar muito na questão da
organização, todos. Está na hora de reaprendermos a sermos políticos/as do Reino. Não é mais
suportável ver o que vem acontecendo, nas nossas pastorais. Ao mesmo que está em jogo uma
visão política, está em jogo também uma visão teológica onde é central a forma como
encaramos, compreendemos e vivemos o ser igreja.

d) para sermos profetas pensamos crescer em mística, em oração, em vivência litúrgica e


bíblica. Vivendo isso não faltará o compromisso com a realidade social, as lutas do povo, os

10
De grande inspiração é o artigo de ORTEGA, Francisco. “Das utopias sociais às utopias corpóreas:
identidades somáticas e marcas corporais” in MENDES DE ALMEIDA, Maria Isabel e EUGENIO,
Fernanda (org.). Culturas Jovens – Novos Mapas do Afeto.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006,
p.42-58.
gritos das juventudes. Não estar nas lutas sociais não deixa de ser um sintoma da falta de
mística, de oração, de vivência litúrgica e bíblica. Se a Igreja, como um todo, está temendo em
vivenciar o profetismo, cabe à juventude recordar isso para a nossa Mãe pelo testemunho e pela
prática.

e) uma outra forma de a juventude viver sua vocação profética é vivenciar, ao mesmo tempo, as
diferenças e a elaboração convicta e metódica do projeto de vida. Um profeta é do vigor de seu
projeto de vida. Jesus Cristo preparou seu projeto de vida durante quase 30 anos e se quisermos
ser seus seguidores não podemos achar que a elaboração corrida de um “projeto de vida” num
final de semana. Isso é trabalho de meses e anos, sujeito a avaliações diante da profundidade de
nossas consciências.

Conclusão
Não há dúvida que não só a Igreja, mas também a juventude da Igreja, está tendo dificuldades
na encarnação do profetismo. Dentro e fora da Igreja há uma tendência para o imediatismo, para
a descrença num outro mundo possível, para o medo, para a incerteza ante novos paradigmas,
mas ninguém tem direito a querer convencer-nos que o coletivo não vale, que a vivência
comunitária já era, que não adianta fazer projetos de vida etc. Trata-se de uma dimensão sem a
qual todos perdemos nossa razão de ser e é, talvez, por aí que se enraíza uma das maiores
tentações sistêmicas e eclesiásticas. O profetismo, contudo, não é discurso; é prática do dia-a-
dia.

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