Você está na página 1de 60

WBA0953_V1.

INTRODUÇÃO À TEORIA
PSICANALÍTICA: GÊNESE E
ESTRUTURA DA PSICANÁLISE
2

Isadora Di Natale Nobre

INTRODUÇÃO À TEORIA PSICANALÍTICA:


GÊNESE E ESTRUTURA DA PSICANÁLISE
1ª edição

São Paulo
Platos Soluções Educacionais S.A
2021
3

© 2021 por Platos Soluções Educacionais S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser


reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio,
eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de
sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização,
por escrito, da Platos Soluções Educacionais S.A.

Diretor Presidente Platos Soluções Educacionais S.A


Paulo de Tarso Pires de Moraes

Conselho Acadêmico
Carlos Roberto Pagani Junior
Camila Turchetti Bacan Gabiatti
Camila Braga de Oliveira Higa
Giani Vendramel de Oliveira
Gislaine Denisale Ferreira
Henrique Salustiano Silva
Mariana Gerardi Mello
Nirse Ruscheinsky Breternitz
Priscila Pereira Silva
Tayra Carolina Nascimento Aleixo

Coordenador
Camila Turchetti Bacan Gabiatti

Revisor
Karla Cristina Gaspar

Editorial
Alessandra Cristina Fahl
Beatriz Meloni Montefusco
Carolina Yaly
Mariana de Campos Barroso
Paola Andressa Machado Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


_________________________________________________________________________________________
Nobre, Isadora Di Natale
N754i Introdução à teoria psicanalítica: gênese e estrutura da
psicanálise / Isadora Di Natale Nobre, – São Paulo:
Platos Soluções Educacionais S.A., 2021.
41 p.

ISBN 978-65-89965-20-6

1. Compreender. 2. Problematização. 3. Apresentação.


I. Título.

CDD 150
____________________________________________________________________________________________
Evelyn Moraes – CRB-8 SP-010289/O

2021
Platos Soluções Educacionais S.A
Alameda Santos, n° 960 – Cerqueira César
CEP: 01418-002— São Paulo — SP
Homepage: https://www.platosedu.com.br/
4

INTRODUÇÃO À TEORIA PSICANALÍTICA:


GÊNESE E ESTRUTURA DA PSICANÁLISE

SUMÁRIO

O desenvolvimento da teoria psicanalítica____________________ 05

O modelo topográfico do aparelho psíquico: Primeira Tópica


_______________________________________________________________ 18

O sonho na teoria psicanalítica _______________________________ 31

O trabalho do sonho__________________________________________ 45
5

O desenvolvimento da teoria
psicanalítica.
Autoria: Isadora Di Natale Nobre
Leitura crítica: Karla Cristina Gaspar

Objetivos
• Contextualizar os fundamentos da teoria
psicanalítica.

• Explicar o desenvolvimento da psicanálise a partir


dos primeiros estudos e experiências clínicas de
Freud.

• Explicar a formação da Primeira Tópica e a


descoberta do inconsciente.
6

1. O surgimento da Psicanálise: contextos e


estudos iniciais

Neste tópico, iremos contextualizar Freud e seus primeiros estudos


que contribuíram com as observações e desenvolvimento de conceitos
baseados em suas experiências de atendimentos e discussões clínicas.

Sigmund Freud (1856-1939) nasce em 06 de maio de 1856 em


Freiberg, Morávia (Império Austríaco), atualmente República Tcheca.
De família judaica, muda-se com sua família para Viena em 1860. Um
tempo depois, Freud cursou a faculdade de Medicina na renomada
Universidade de Viena (Áustria), forma-se em 1881, dedicando-se à
Neurologia, com interesse pelo estudo das enfermidades mentais.

Figura 1 – Universidade de Viena século XIX

Fonte: clu/iStock.com.

Entre 1885 e 1886 ganhou uma bolsa de estudos para realizar um


estágio no Hospital de Salpêtrière em Paris (França), com Jean-Martin
Charcot, onde teve contato com a técnica da hipnose. Na época, se
investigava a origem das doenças dos nervos. Dentre as diferentes
7

hipóteses desenvolvidas, Charcot estudava a influência das ideias no


surgimento dos sintomas histéricos.

Ele utilizava a hipnose como técnica de rebaixamento da consciência,


durante a qual ocorria a remissão ou o surgimento de sintomas por
sugestão do médico, o que apontava a importância das ideias no
surgimento dos sintomas, contrariando o pensamento hegemônico da
época que considerava a origem das doenças nervosas na imaginação
dos pacientes ou mesmo em inflamações ou lesões da estrutura dos
órgãos específicos, no caso da histeria do útero.

Freud, então, encantou-se com a técnica da hipnose e suas


repercussões. Voltando à Viena passa a utilizá-la em seus atendimentos
clínicos. Em seguida, aproxima-se de seu colega Josef Breuer, e juntos
dedicam-se ao estudo da hipnose e seus efeitos terapêuticos na histeria.

Breuer compartilha com Freud suas impressões sobre um caso


específico chamado de Anna O, atendido em 1880. A partir do estudo
desse caso, considerado o caso fundador da Psicanálise, levantam
importantes considerações. Suas hipóteses e experiências clínicas darão
origem, posteriormente, aos escritos de Comunicação Preliminar (1893) e
Estudos sobre a Histeria (1893-1895), ambos escritos em conjunto.

Freud (1910) explica de forma resumida o caso de Anna O em uma de


suas conferências.

Uma garota de 21 anos, de elevados dotes intelectuais, no curso de


sua enfermidade, que se estendeu por mais de dois anos, desenvolveu
uma série de distúrbios corporais e anímicos, a que bem se fazia
necessário levar a sério. Apresentava uma paralisia com rigidez de
ambas as extremidades do lado direito, que também foram tomadas de
insensibilidade, e, por vezes, essa mesma afecção atingia os membros do
lado esquerdo do corpo; tinha perturbações nos movimentos oculares e
variados comprometimentos na capacidade da visão, dificuldades para
sustentar a cabeça, uma intensa tussis nervosa, asco diante dos alimentos
8

e, em uma ocasião, durante várias semanas, incapacidade de ingerir


líquidos, não obstante a sede que a atormentava, uma diminuição na
capacidade da fala, que progrediu até a perda da capacidade de falar ou
entender sua língua materna, e, por fim, estados de ausência, irritabilidade,
delírios, alteração da personalidade como um todo. (FREUD, 2019 [1910],
p.30-31)

Breuer acompanhou esse caso por aproximadamente dois anos. Ele


anotou as palavras que a paciente murmura em seus episódios de
ausência (auto-hipnose), em seguida a hipnotiza e repete essas palavras
a ela, incitando-lhe a associar ideias. A paciente passa então a reproduzir
suas criações psíquicas que a haviam dominado nos estados de
ausência. São fantasias profundamente tristes relacionadas ao período
que cuidou de seu pai enfermo. O sintoma desaparece pela recordação
e exteriorização afetiva da ocasião e motivo de seu aparecimento.

Breuer afirma que a reprodução e expressão da angústia e pavor de


suas vivências passadas permitiam uma libertação de sua psique.

O essencial do fenômeno descrito – a acumulação e intensificação de suas


ausências até a auto-hipnose noturna, a eficácia dos produtos da fantasia
como estímulo psíquico e o alívio e remoção do estado de estimulação
quando ela os expressava na hipnose – permaneceu constante por todo o
ano e meio de observação. (BREUER, 2016 [1893-1895], p. 52)

Por vezes, não era somente um único acontecimento por trás do


sintoma, mas inúmeros acontecimentos que se uniam constituindo o
trauma, formado por resíduos de experiências emocionais. Quando este
era o caso, o tratamento por meio da hipnose consistia em recordar
cada um dos acontecimentos, em ordem inversamente cronológica,
iniciando das últimas até chegar às primeiras lembranças. Percebia-se,
segundo Breuer (2016 [1893-1895]), a libertação de sua psique depois de
ter conseguido reproduzir e expressar em palavras os traumas.
9

O trauma, para Breuer e Freud, consistiria em toda vivência que suscita


penosos afetos como vergonha, pavor, angústia ou qualquer dor
psíquica que não pôde ser expressa, justamente por seu conteúdo
conflitante. A lembrança do trauma age como corpo estranho mesmo
muito tempo depois de sua ocorrência, atuando no presente do doente.

Freud conclui que “os histéricos sofrem sobretudo de reminiscências”


(FREUD, 2016 [1893-1895], p. 25), o que significa que os sintomas
consistem em resíduos e símbolos mnêmicos de experiências
traumáticas. Os histéricos se prendem a acontecimentos dolorosos
fixando a vida psíquica nos traumas patogênicos do passado. Tal
fenômeno é chamado de fixação.

Ao reproduzir essas cenas na presença do médico, durante o


rebaixamento da consciência e o acesso à essas lembranças, a energia
afetiva, até então represada, se manifesta e o sintoma, como resíduo
desta cena, atinge sua máxima intensidade quando o tratamento
chega à sua causa, exteriorizando seu conteúdo até desaparecer
completamente.

Não basta somente lembrar da cena, mas se faz necessária a


exteriorização dos afetos atribuídos a ela, que ficaram inibidos na
ocasião, sua expressão de forma mais viva possível. Assim, Freud afirma:

[...] eles (afetos) persistiam em parte como duradouros lastros da vida


anímica e fontes de contínua estimulação para ela própria; em parte
experimentavam uma transposição para inervações e inibições corpóreas
inabituais, que se apresentavam como sintomas corporais do caso.
Para esse último processo, cunhamos o nome de ‘conversão histérica’.
Normalmente, uma determinada parte de nossa excitação anímica é
aleatoriamente conduzida pela via da inervação corporal, e disso resulta
que a conheçamos como “expressão das emoções”. Ora, a conversão
histérica exagera essa parte do transcurso de um processo anímico
investido de um afeto; ela corresponde a uma expressão da emoção muito
mais intensa, guiada por novas vias. (FREUD, 2019 [1910], p. 41-42)
10

Uma das grandes considerações realizadas a partir do estudo desse


caso é a concepção de que em um mesmo indivíduo são possíveis “mais
agrupamentos anímicos, que realmente se mantêm independentes uns
dos outros, mas ‘nada sabem’ uns dos outros, e de modo alternante
atraem para si a consciência” (FREUD, 2019 [1910], p. 43).

Anna O apresenta nitidamente dois estados de consciência que


coexistem. Em um deles, a paciente apresentava-se totalmente normal,
triste e angustiada, reconhecia seu ambiente; e, no outro alucinava,
ficava agressiva, não reconhecia o ambiente e as pessoas, era como
se possuísse dois “Eus”, uma “double conscience” (BREUER, (2016 [1893-
1895]).

Os sintomas histéricos permitiram a Freud e Breuer desenvolverem a


hipótese de que a vida psíquica é formada por uma divisão, não sendo
uma unidade. “A definição do psíquico, para a psicanálise, é de que ele
se compõe de processos tais como sentir, pensar e querer, e ela tem
de postular a existência de um pensar inconsciente e de um querer
insciente” (FREUD, 2014 [1916-1917], p. 28). Essas reflexões darão
origem ao conceito de inconsciente para Freud.

No estado consciente, as pacientes não se recordam dos eventos


traumáticos, porém, durante a hipnose conseguem revelá-los. O que os
torna eventos traumáticos, na hipótese que formulam, é o fato de que
lhes foi negada a descarga emocional adequada à situação vivida. Isso
porque ou o evento tornaria essa reação penosa, em que o indivíduo
se sente ameaçado, ou ela teria se produzido em um estado psíquico
peculiar, chamado por Breuer de “estados hipnoides”, considerados
impeditivos da elaboração associativa dos conteúdos psíquicos com os
demais conteúdos da consciência por sua intensidade afetiva. Estados,
portanto, em que há amnésia para a consciência desperta. Alguns
desses estados ocorrem por auto-hipnose, capacidade que muitos
pacientes histéricos parecem apresentar facilidade em desenvolver,
como defesa que resulta em cisão psíquica.
11

Há a tendência da consciência por uma divisão, produzindo os estados


hipnoides que fazem surgir e organizar as ideias hipnoides em uma
segunda consciência. O sintoma histérico permanente corresponderia
à atuação desse segundo estado de consciência na referência corporal
consciente da paciente, o que Freud chama de “conversão”. Não é a
referência anatômica propriamente dita, mas as noções leigas que a
paciente tem do corpo, reforçando mais uma vez a importância do fator
psicológico na histeria.

Já no ataque histérico, o que ocorre é a tomada de controle


momentânea da consciência hipnoide, e que mais organizada se
manifesta brevemente no indivíduo.

Portanto, a hipótese é de que toda ideia é acompanhada de uma reação


afetiva particular. Quando há o impedimento dessa reação, ou seja,
da descarga afetiva adequada, surge o sintoma, tornando o evento
patogênico.

Quando os afetos são intensos, a associação fica prejudicada, somente


o grupo de ideias que provocou o afeto se mantém na consciência
e a excitação intracerebral se compensa por uma descarga motora,
por exemplo, gritar, andar de um lado para outro. Mas, quando
essa descarga é impedida de acontecer, ou seja, quando a excitação
intracerebral não é consumida em atividade motora ou associativa
(ideias), nos quadros histéricos, ocorre a conversão.

Nesse processo, a ideia que originou o afeto não mais provoca o


mesmo, mas passa a provocar o reflexo anormal, apresentando-se
como fenômeno puramente somático, sem correlação psicológica
aparente. “Se o afeto original não foi descarregado no reflexo normal,
mas sim num “reflexo anormal”, também este volta a ser desencadeado
pela lembrança; a excitação proveniente da ideia afetiva é “convertida”
(Freud) num fenômeno corporal” (BREUER; FREUD, 2016 [1893-1895], p.
292).
12

Durante a hipnose, a partir das perguntas do médico, o paciente


consegue rememorar o trauma, inaugura-se, assim, o método catártico
de Breuer e Freud.

Ao rememorar verbalmente o acontecimento ou a série de acontecimentos


que provocaram o sintoma, o histérico o liberta daquela quantidade de
afeto, tornando-o “inofensivo” e reintegrando-o na consciência normal.
A linguagem é o veículo da ab-reação, no método catártico, porque é um
substituto para o ato adequado. (MEZAN, 2013, p. 7)

Freud passa a refletir sobre o poder da palavra, pois, na hipnose os


sintomas são tratados pela palavra, inferindo que também poderiam
ser formados pela própria palavra. Os sintomas desaparecem quando
o afeto é colocado em palavras, principalmente quando se consegue
chegar com maior clareza à lembrança do acontecimento motivador e
seu afeto correspondente.

O método catártico que Freud e Breuer desenvolvem para o tratamento


da histeria consiste em hipnotizar a paciente e interrogá-la sobre a
origem do sintoma, sendo este provocado por um ou uma série de
traumas psíquicos.

Dessa forma, a cura se dá pela palavra, como talking cure (cura pela fala)
por meio de chimney sweeping (limpeza de chaminé), termos utilizados
pela própria paciente Anna O, no período em que ela só falava em inglês,
referindo-se ao fato dos sintomas serem eliminados pela narração.

A hipnose põe à disposição da paciente um “campo psíquico mais amplo”,


permitindo-lhe recordar os eventos que contribuíram para a formação
do sintoma. Ao despertar do estado hipnótico, o sintoma em questão
desaparecia. Assim, explorando sistematicamente sintoma após sintoma,
tornava-se possível a desaparição completa dos fenômenos histéricos.
(MEZAN, 2013, p. 5)
13

A partir da histeria, Freud consegue estudar o funcionamento


dessa outra via psíquica chamada de inconsciente. Teríamos, então,
uma consciência que consistiria em todas as ideias de que temos
conhecimento e outras que estão presentes. Porém, que não temos
conhecimento, chamadas inconscientes, que atuam “abaixo do limiar da
consciência” (BREUER, FREUD, 2016 [1893-1895], p. 315), que exercem
grande influência no humor e no agir cotidiano, e que permanecem vivas
independentemente do passar do tempo.

Essas ideias só permanecem inconscientes quando sua intensidade é


reduzida; caso sua intensidade aumente, elas tornam-se conscientes.
Entretanto, Freud e Breuer descobrem em suas pacientes ideias que
parecem ser insuscetíveis a se tornarem conscientes.

A existência dessas ideias insuscetíveis de consciência é patológica. No


indivíduo são, todas as ideias que podem se tornar presentes também
penetram no inconsciente quando sua intensidade é suficiente. Em nossos
doentes, encontramos lado a lado o grande complexo menor de ideias
suscetíveis de consciência e um complexo menor de ideias insuscetíveis
de consciência. Neles, portanto, o campo da atividade psíquica ideativa
não coincide com a consciência potencial; esta é mais restrita que
aquele. A atividade psíquica ideativa se decompõe aqui em consciente e
inconsciente; as ideias, em suscetíveis de consciência e não insuscetíveis
de consciência. Portanto, não podemos falar de uma cisão de consciência,
mas sim de uma cisão da psique. (BREUER; FREUD, 2016 [1893-1895], p.
319)

Os sintomas seriam, então, a tentativa de união da psique. Nada


acontece ao acaso na vida psíquica, há sempre um sentido oculto
(inconsciente) que necessita ser revelado; o médico tem a função de
exercer esse papel – auxiliar na revelação desse sentido – junto ao
paciente.

Portanto, os sintomas são processos simbólicos que operam no


inconsciente e que precisam ser decifrados. A vida psíquica é governada,
14

principalmente, por determinantes inconscientes. Podemos entender e


decifrar esses conteúdos inconscientes a partir do método terapêutico
desenvolvido.

Ao longo do tempo, ao atender seus pacientes, Freud observa que os


impulsos instintuais revelados, causadores das doenças dos nervos e
da mente, são caracterizados como sexuais, fazendo-o concluir que
a sexualidade exerce papel fundamental na patogênese da histeria,
pois o que faz com que as ideais sejam rejeitadas pela consciência é
justamente o conflito que elas criam, uma vez que divergem das ideais e
valores moralmente aceitos por ela. Assim:

Este é sempre o caso, porém, quando o conflito se verifica entre o firme


complexo de ideais morais, adquirido com a educação, e a lembrança de
atos ou mesmo apenas pensamentos incompatíveis com ele: é o tormento
de consciência. O interesse da vontade, de aprazer-se com a própria
personalidade, de estar satisfeito com ela, entra então em ação e aumenta
ao máximo a excitação decorrente da inibição das associações. É fato da
experiência diária que tal conflito de ideias incompatíveis exerce ação
patogênica. Trata-se, na maioria das vezes, de ideias e ocorrências da vida
sexual. (BREUER; FREUD, 2016 [1893-1895], p. 297)

Freud chega a algumas conclusões em seus estudos a partir dos


atendimentos clínicos, desenvolvendo conceitos para explicação dos
fenômenos observados que revelavam não só a formação dos sintomas
neuróticos, mas o funcionamento do inconsciente em si.

A descoberta de que os sintomas desaparecem quando seu conteúdo,


sentido e origem inconscientes tornam-se conscientes pela associação
por meio do tratamento com palavras, constitui a base para a terapia
psicanalítica. Esta teria a função de tornar consciente os conteúdos
inconscientes.

Após algum tempo praticando o método catártico, Freud começa a


encontrar barreiras. Nem todos os pacientes eram hipnotizáveis. Ao
15

mesmo tempo, Freud começa a diferenciar os sintomas, desenvolvendo


uma separação dos quadros neuróticos, dos quais a histeria faz parte,
mas não é a única. Conclui que muitos casos de histeria seriam na
verdade neuroses mistas, com sintomas histéricos e outros tipos de
neurose.

Devido às barreiras encontradas, principalmente o fato de alguns


pacientes não conseguirem ser hipnotizados, Freud passa a refletir
sobre a possibilidade de outra via de acesso ao inconsciente, além da
hipnose. Após tentativas clínicas, ele encontra uma nova técnica.

O paciente não precisa estar sob o efeito da hipnose para conseguir


associar as ideias, o médico pode exercer um papel investigativo a partir
de perguntas que consigam, com o mesmo objetivo da hipnose, chegar
às lembranças patogênicas.

Freud começou a perguntar para os pacientes despertos, ou seja,


sem nenhum rebaixamento de consciência, sobre tais lembranças, ao
passo que eles não se recordavam. Então, ele insistia, ordenando que
os pacientes fechassem os olhos, concentrando-se. Assim, algumas
lembranças começavam a surgir, mas não sem um esforço por parte do
médico, que encontrava resistências.

Freud chama de resistência esse movimento do desejo de não saber.


Ele afirma, “através do meu trabalho psíquico tinha de vencer uma força
psíquica que se opunha, no paciente, a que as ideias patogênicas se
tornassem conscientes (fossem lembradas)” (FREUD, 2016 [1893-1895],
p. 377).

Então, infere que essa mesma força estava também na origem do


próprio sintoma, impedindo que a ideia patogênica se tornasse
consciente. Isso ocorreria como uma defesa do “Eu”, uma vez que
tal ideia causa desprazer, é intolerável e insustentável pela própria
consciência. O “Eu” não pode admitir tal ideia e, portanto, para defender-
16

se, esquece a partir de uma força psíquica de repulsão. Freud chama de


repressão esse mecanismo.

Para vencer essa resistência, Freud trabalhava com insistência e


desenvolve uma nova maneira de ajudar na associação do paciente,
pedindo que este fechasse os olhos. Ele falava que pressionaria
sua testa e, no momento seguinte, assegurava que uma lembrança,
pensamento ou imagem viria a mente do paciente.

O objetivo de Freud era desviar a atenção do paciente de sua busca


consciente da lembrança, contribuindo, assim, para o seu surgimento
mais “espontâneo”. O que, de fato, acontecia, era que os pacientes
conseguiam rememorar acontecimentos, imagens ou pensamentos.

Freud percebe que algumas ideias parecem estar prontas para serem
associadas, como que em uma superfície, uma vez vencida a resistência,
elas emergem. Porém, elas não são propriamente as verdadeiras ideias
patogênicas, mas ideias que formam um elo, um caminho para elas,
indicando a direção do tratamento.

Segundo Freud, essa nova forma de tratamento exige mais do médico e


do próprio paciente. O médico tem que desenvolver uma preocupação
e estima pela figura do doente, pois precisa também ganhar sua
confiança. O paciente, neste momento, também se esforça mais, uma
vez que necessita investigar, de forma consciente, seus conteúdos e
revelar ao médico seus pensamentos e afetos mais íntimos, por vezes,
mais sombrios, aqueles que estão secretamente guardados. Isso faz com
que a confiança esteja na base de sua relação terapêutica.

Assim, inicia-se o caminho para o método psicanalítico, ou seja, a análise


psíquica, prescindindo da hipnose.
17

Referências
BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 2: estudos sobre a
histeria (1893-1895). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise (1910). São Paulo: Cienbook, 2019.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 13: conferências introdutórias à
psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MEZAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
18

O modelo topográfico do aparelho


psíquico: Primeira Tópica.
Autoria: Isadora Di Natale Nobre
Leitura crítica: Karla Cristina Gaspar

Objetivos
• Contextualizar o desenvolvimento da primeira
concepção de aparelho psíquico na teoria freudiana.

• Apresentar os elementos da Primeira Tópica.

• Explicar o funcionamento dos sistemas inconsciente,


pré-consciente e consciente.
19

1. A primeira teoria freudiana do aparelho


psíquico: Primeira Tópica

Após o abandono da técnica da hipnose, Freud continua a atender seus


pacientes e a estudar o funcionamento do inconsciente. O atendimento
dos pacientes histéricos permitiu a descoberta de conceitos importantes
que continuaram a instigar seu interesse.

A partir do novo método analítico, em que a paciente não mais está


sob o efeito da hipnose, mas é solicitada pelo médico a comunicar
tudo o que vier à mente, Freud se depara com um novo fenômeno: a
resistência. Esta impede a passagem do conteúdo reprimido para o
consciente, como uma forma de defesa do “Eu”.

Muitas vezes, os pacientes comunicavam pensamentos que pareciam


sem sentido aparente, sem importância. Se a resistência fosse
insignificante, o conteúdo se tornaria consciente sem deformação.

Freud percebe que as ideias inconscientes para serem lembradas sem


ameaça à consciência, eram deformadas pela resistência, ocultando,
assim, seu conteúdo. Afirma ele, “o pensamento devia comportar-
se em relação ao elemento reprimido com uma alusão, como uma
representação do mesmo por meio de palavras indiretas” (FREUD, 2019
[1910], p. 58).

Essas palavras indiretas que substituíam o reprimido, apontavam o


caminho para sua descoberta. O médico necessitava, então, estar atento
a tudo o que o paciente comunicava, principalmente às palavras que
ele próprio não atribuía tanto sentido, assim como os esquecimentos e
outros fenômenos em seu discurso.

Com isso, Freud percebe que as ideias inconscientes estão presentes,


sob diferentes aspectos, em outros fenômenos além da formação de
sintomas. Eles substituiriam os conteúdos inconscientes.
20

Pela análise, o médico passa a descobrir os elementos reprimidos na


própria associação consciente do paciente, a partir de suas palavras.

O médico solicita ao paciente que exponha tudo o que vier em seu


pensamento, sem nenhuma seleção, mesmo que lhe pareça absurdo,
despropositado ou desagradável. São justamente esses conteúdos que
conduzirão ao complexo de ideias reprimidas, apontando o caminho da
análise.

Freud começa a estudar outros fenômenos que, assim como os


sintomas, para ele, também são formações do inconsciente como os
lapsos, esquecimentos, por exemplo, de nomes próprios, atos falhos e
os sonhos.

Entre eles, Freud irá se debruçar, primeiramente, após o estudo


dos sintomas histéricos, na análise dos sonhos e estudar todo o
mecanismo de formação dos sonhos, o que o levará à compreensão do
funcionamento do próprio aparelho psíquico.

Em 1900, Freud publicou o livro A interpretação dos sonhos


com importantes considerações que serviram de base para o
desenvolvimento de sua teoria do aparelho psíquico. Os outros
fenômenos apontados serão estudados e aprofundados por Freud
posteriormente.

A partir de suas novas descobertas, Freud formula a primeira concepção


do aparelho psíquico, considerada a primeira tópica da teoria
psicanalítica. O termo topografia se refere aos locais subjetivos da
mente, e não em sentido anatômico.

Nessa primeira concepção, estará em pauta as noções de inconsciente,


pré-consciente e consciente. Conforme Garcia-Roza (1985), o aparelho
psíquico é formado por esses três sistemas e orientado no sentido
21

progressivo-regressivo, marcado por conflito entre esses sistemas, o que


ilustra o caráter dinâmico do aparelho psíquico.

Afirmar que há um sentido progressivo-regressivo significa que o


conjunto de sistemas comporta um sentido, uma direção que inicia com
estímulos internos ou externos e termina com uma descarga motora, na
motilidade.

Portanto, Freud conclui que há uma ordem fixa, na qual, em alguns


processos psíquicos, os sistemas percorrem uma sequência temporal
determinada. Já, em outros, essa sequência pode sofrer alterações.

Assim, toda atividade psíquica partirá de estímulos, sejam eles internos


ou externos, e terminará em inervações.

Compreendendo que o aparelho psíquico comporta uma extremidade


sensível (perceptual) e outra, motora, geralmente, o processo psíquico
caminha da extremidade sensível para a motora (direção progressiva).

As percepções advindas dos estímulos são recebidas pela extremidade


sensível, deixando traços de memória. Porém, aqui já se diferenciam os
sistemas, pois, aquele que recebe os estímulos (perceptivo) só tem como
função receber, ou seja, estar aberto e receptivo a novos estímulos e
nada conservar.

É um segundo sistema que será responsável pelo armazenamento


e associação, transformando a excitação momentânea em traços
duradouros. Segundo Freud, “das percepções que nos chegam
permanece um traço em nosso aparelho psíquico, que podemos chamar
de “traço mnêmico”. Denominamos de “memória” a função ligada a esse
traço mnêmico” (FREUD, 2019 [1900], p.588).

A associação seria o processo de ligação entre as percepções,


principalmente entre aquelas que ocorreram simultaneamente. Os
sistemas mnênicos formam a base para associação, que ocorre ou
22

por diminuição da resistência ou por estabelecimento de caminhos


facilitadores. Assim, a excitação se propaga de um dos elementos
mnêmicos para outro.

Freud, a partir de seu estudo da formação dos sonhos, concluiu que há


duas instâncias psíquicas, uma delas que critica e a outra que é criticada.
A chamada por ele de pré-consciente (Pcs) funciona como uma censura,
um filtro, e está mais próxima da consciência do que a criticada (FREUD,
2019 [1900]). Tal instância (Pcs) também é o que orienta nossa vigília,
decidindo sobre os nossos atos voluntários, conscientes.

Pensando em nível de sistemas, o pré-consciente estaria localizado na


extremidade motora, indicando que os processos de excitação ocorridos
nele podem chegar à consciência sem impedimento, caso atinjam certo
grau de intensidade e chamem para si a atenção.

Portanto, o sistema pré-consciente tem “as chaves para a motilidade


voluntária” (FREUD, 2019 [1900], p. 591). O sistema por trás desse é
chamado inconsciente, que só tem acesso à consciência pelo pré-
consciente.

A figura a seguir ilustra tal explicação de forma mais clara, desenvolvida


pelo próprio Freud.
23

Figura 1 – Ilustração utilizada por Freud para representar o


aparelho psíquico

Fonte: Freud (2019 [1900]).

Sob essa perspectiva, a consciência seria o sistema que viria logo após
o pré-consciente. Enquanto o inconsciente quer garantir a descarga
livre da excitação acumulada, o pré-consciente transforma essa carga
de afeto (soma de excitação), desviando-a para, assim, possibilitar uma
satisfação parcial e indireta, que seja tolerada pela consciência. O pré-
consciente trabalha, portanto, na inibição da descarga.

O inconsciente só pode ter acesso ao consciente por meio do sistema


pré-consciente, sendo esse o responsável pela função de passagem dos
conteúdos para a consciência, sem que esses possam ser reconhecidos,
modificando e distorcendo, portanto, os mesmos.

A consciência “nada mais é do que um órgão sensorial para a


percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 2019 [1900], p. 669), com
características semelhantes ao sistema perceptual, que não preserva
memória. O material de excitação que caminha para o órgão sensorial
24

da consciência, explica Freud, tem duas origens: do sistema perceptual e


do interior do próprio aparelho.

Freud afirma que existem, também, pensamentos sem a participação


da consciência. Pois, para se tornarem conscientes é necessário o
direcionamento da função psíquica da atenção, que pode ser desviada
do curso de pensamento por outras metas.

Ao mesmo tempo, ao focar a atenção, segue-se um caminho


determinado e, durante esse caminho, se uma representação não resiste
à crítica, tal atenção é interrompida. O curso desse pensamento parece
continuar mesmo que a atenção não se volte mais a ele.

Portanto, pode ser que o processo de pensamento prossiga sem que a


consciência perceba. Pré-consciente também é o nome dado para esse
curso de pensamento que pode ter sido negligenciado ou interrompido,
suprimido (FREUD, 2019 [1900]). Quando adormecemos, eles podem
surgir como pensamentos oníricos. Tais pensamentos podem, então, se
apagar ou se manter, achando investimento pelo desejo inconsciente.

Compreendendo a dinâmica apresentada pelos diferentes sistemas


e a direção progressiva do aparelho psíquico, entende-se claramente
o fenômeno que Freud chamou de regressão. É justamente esse
caminho inverso da extremidade sensória até o sistema pré-consciente,
produzindo reinvestimento de imagens mnêmicas.

O caráter regressivo significa o caminho para “trás”, no sentido da


extremidade motora para a extremidade sensorial, ou seja, dos
pensamentos até a vivacidade sensorial do aparelho psíquico.

A regressão está presente tanto nos sonhos quanto no estado de vigília,


sob a forma de imagens mnêmicas. Nos sonhos, Freud explica que “essa
regressão, sempre que ocorre, é um efeito da resistência em que se
opõe ao avanço de um pensamento em direção à consciência pela via
25

normal, e da atração simultânea que sobre ele exercem lembranças de


grande vividez sensorial” (FREUD, 2019 [1900], p. 598-99).

Assim, é possível explicar os pensamentos transformados em imagens


nas alucinações da histeria, nos sonhos ou mesmo visões de pessoas
normais. Esses pensamentos estão sempre ligados às lembranças
reprimidas ou que permaneceram inconscientes, geralmente
provenientes de impulsos instintuais de cenas infantis.

O inconsciente tem um funcionamento próprio, segue suas próprias


leis. Nele, o passado se conserva integralmente. Por isso, quando tais
conteúdos emergem trazem em si a intensidade de sua descarga. Freud
se ocupa de explicar o desenvolvimento do aparelho psíquico desde a
infância.

Dessa forma, o recém-nascido vive uma experiência de desamparo por


ser totalmente dependente de cuidados para sua sobrevivência. Nele, há
uma certa organização psíquica que se esforça no sentido de manter-se
o mais livre possível de estímulos.

De forma mais primitiva, o aparelho psíquico será regido pelo princípio


de inércia neurônica, que Freud explica como sendo a descarga motora
de qualquer excitação sensorial. Depois, tal princípio é acompanhado
pelo princípio de constância, em que, ao invés de uma descarga total da
excitação, há uma regulação por um nível ótimo (o mais baixo possível)
de energia acumulada.

O recém-nascido depende de outro para eliminar a tensão decorrente


de uma estimulação interna, por exemplo, a fome, não conseguindo
eliminá-la sozinho. E é por meio desse auxílio que o bebê atinge, nos
termos de Freud, a experiência de satisfação, pondo fim ao estímulo
interno. Tal experiência é acompanhada de uma percepção.

Daí por diante o traço de memória produzido pela imagem perceptiva


permanece associado à satisfação. Quando surge novamente o mesmo
26

estado de tensão produzido pela mesma necessidade, surge um impulso


psíquico que procurará reinvestir a imagem do objeto e reevocar a
própria percepção, isto é, uma tendência a reproduzir alucinatoriamente a
experiência de satisfação. (GARCIA-ROZA, 1985, p. 87)

O impulso que busca novamente a experiência de satisfação é chamado


por Freud de desejo, que partindo do desprazer, visa o prazer. Para ele,
os sintomas neuróticos, a loucura e o sonho seriam formas modificadas,
distorcidas, de realizações de desejos inconscientes, obedecendo às
mesmas formas de produção.

A função do pré-consciente é inibir o avanço dessa carga mnemônica,


impedindo-a de reproduzir alucinatoriamente a percepção do objeto,
uma vez que essa regressão necessariamente produz decepção, não
sendo possível tal satisfação (que já ocorreu no passado, mas que agora
permanece somente enquanto memória). E, como o aparelho psíquico
quer evitar o desprazer, o pré-consciente irá inibir o avanço dessa carga.

De forma geral, pode-se afirmar que o trabalho do aparelho psíquico é


“regulado pelo esforço de evitar acúmulo de excitação e manter-se livre
de excitações o máximo possível” (FREUD, 2019 [1900], p. 652).

Sob essa perspectiva, o acúmulo de excitação é sentido como desprazer,


fazendo o aparelho psíquico se ativar novamente em busca da satisfação
na qual a diminuição da excitação é sentida como prazer. O que coloca o
aparelho psíquico em movimento é o desejo, essa corrente que sempre
visa o prazer.

Enquanto o inconsciente é dirigido para a livre descarga das excitações,


o pré-consciente as inibe. Freud denomina processo primário aquele
que apenas o inconsciente admite, e ao que resulta da inibição, ele
chamará de processo secundário. Tais nomes indicam uma cronologia
de processos, assim como uma hierarquia.
27

Os processos primários se encontram no aparelho psíquico desde o


início da vida. Já os processos secundários, se desenvolvem de forma
gradual, no curso posterior da vida, sendo que ele inibirá o processo
primário somente na fase adulta e, por isso, os impulsos de desejos
inconscientes que tiveram origem quando o processo secundário ainda
não existia, permanecem inacessíveis ao pré-consciente. Freud afirma
que:

Devido a essa ocorrência tardia dos processos secundários, o núcleo do


nosso ser, que consiste em impulsos de desejos inconscientes, permanece
inacessível à apreensão e inibição por parte do pré-consciente, cujo
papel se limita, de uma vez por todas, a indicar aos impulsos de desejo
provenientes do inconsciente caminhos mais adequados. Esses desejos
inconscientes representam, para todos os esforços psíquicos posteriores,
uma coerção a que têm de se submeter e que podem tentar desviar e
dirigir para metas mais elevadas. Também devido a essa ocorrência tardia,
grande parte do material mnêmico permanece refratária ao investimento
pré-consciente. (FREUD, 2019 [1900], p. 657)

Aqui, Freud aprofundará o conceito de repressão, compreendendo que


entre os impulsos que permanecem inacessíveis ao pré-consciente,
existem alguns que causam desprazer uma vez que entram em
contradição com as intenções dos processos secundários.

Dessa forma, o pré-consciente tenta se afastar tanto dos desejos


inconscientes quanto das ideias pré-conscientes associadas a eles.

Caso o desejo inconsciente reprimido receba um reforço orgânico,


que capacite as ideias pré-conscientes vinculadas a ele a aumentar sua
intensidade e tentar forçar a barreira do pré-consciente, haverá um aluta
defensiva: o pré-consciente reforça as ideias opostas através de um contra
investimento, e o resultado é que se cria um compromisso entre os dois
grupos de ideias: um sintoma neurótico. Uma vez intensamente investidos
pelo desejo inconsciente, os conteúdos reprimidos sucumbem ao processo
primário e procuram uma via motora para a descarga de sua energia;
ou, se esta estiver bloqueada, tomam o caminho mais curto da regressão
28

alucinatória, formando delírios, visões, ou, na melhor das hipóteses,


apenas um sonho. (MEZAN, 2013, p. 96-97)

Os dois sistemas, inconsciente e pré-consciente, assim como os


processos primário e secundário, podem ser compreendidos como
modos diferentes de descarga das excitações. Segundo Garcia-Roza
(1985), eles correspondem a “dois modos de circulação da energia
psíquica: a energia livre e a energia ligada, assim como corresponde
também à oposição entre o princípio de prazer e o princípio de
realidade” (GARCIA-ROZA, 1985, p. 57).

Podemos entender que a energia livre corresponde ao processo


primário, ao funcionamento do inconsciente, enquanto a energia
ligada corresponderia ao pré-consciente e seus processos secundários,
nos quais a energia está controlada ou retardada. Exemplos desses
processos seriam a atenção, o raciocínio e a linguagem. Já, dos
processos primários, os sonhos e os sintomas.

Os desejos do inconsciente e do sistema consciente/pré-consciente


também se diferem; suas exigências não são as mesmas e suas
necessidades tampouco.

Freud faz essa descoberta a partir dos estudos dos sonhos, em


que constata que em um sonho pode haver ao mesmo tempo uma
realização de um desejo inconsciente e recalcado, produzindo assim,
prazer. E também pode produzir ansiedade e desprazer ao ego do
paciente, uma vez que eles estarão sempre em conflito (o desejo
inconsciente e o consciente).

De forma resumida, podemos concluir que o inconsciente se refere


a um sistema que está sujeito a leis próprias, em que associações
são baseadas no retorno a traços mnêmicos de satisfação, que visam
sempre o prazer, a partir da descarga livre das excitações.
29

O inconsciente funciona a partir de simbolizações de desejos que não


são admitidos na consciência devido ao conteúdo de repúdio que
causam na mesma, negados, portanto, e desconectados, reprimidos.

Tal função inibidora é realizada por outro sistema, que Freud denomina
pré-consciente, impedindo que a atividade do primeiro sistema,
inconsciente, resulte em desprazer, trabalhando como um filtro na
passagem de conteúdo para a consciência.

A repressão consiste justamente nesse processo de não deixar passar


os conteúdos do inconsciente para o pré-consciente, que contará com o
trabalho da resistência para manter tal censura.

Freud se pergunta: por que tais conteúdos (impulsos) foram reprimidos?


O que é tão intensamente recusado pela consciência? A partir de seus
atendimentos e estudos clínicos, Freud conclui que os conteúdos
reprimidos consistem em desejos sexuais. Então, se debruçará sobre
a temática da sexualidade infantil, atraindo para si e para sua teoria
grandes críticas da comunidade médica e científica da época.

Apesar de Freud não ter sido o primeiro a discorrer sobre a temática,


ele foi alvo de duras críticas, refletindo a dificuldade cultural em aceitar
a existência da vida sexual na infância. Mesmo considerando que, para
sua teoria, o sexual se refere a “tudo que guarda relação com a diferença
entre os sexos” (FREUD, 2014 [1916-1917], p. 402) e não restringindo-se
à reprodução.

A partir do desenvolvimento da primeira tópica do aparelho psíquico e a


explanação do funcionamento dos sistemas inconsciente, pré-consciente
e consciente que Freud desenvolve a partir, principalmente, de seus
estudos com os sonhos, ele chega a importantes conclusões, conforme
Mezan (2013): o papel preponderante do desejo na vida psíquica, a
ocorrências de processos de pensamento inconscientes em indivíduos
normais e o alcance do fenômeno da repressão.
30

Freud chega a afirmar que a interpretação dos sonhos é a base mais


segura da psicanálise, sendo a “estrada real para o conhecimento do
inconsciente” (FREUD, 2019 [1910) p. 63).

Além dos sintomas e os sonhos, Freud, posteriormente, irá estudar


outros fenômenos que se depara em seus atendimentos clínicos, que
revelam também o funcionamento do inconsciente, como os atos falhos,
lapsos, chistes.

Mesmo que o paciente não compreenda e não os realize de forma


intencional, há sempre um sentido oculto, inconsciente que produz
esses fenômenos. “Neles, o sujeito sente-se como que atropelado por
um outro sujeito que ele desconhece, mas que se impõe a sua fala
produzindo trocas de nomes e esquecimentos cujo sentido lhe escapa”
(GARCIA-ROZA, 1985, p. 171).

Para Freud, não há arbitrariedade no funcionamento do aparelho


psíquico.

Referências
FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise (1910). São Paulo: Cienbook, 2019.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 4: a interpretação dos sonhos (1900).
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 13: conferências introdutórias à
psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
GARCIA-ROZA, Luiz A. Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MEZAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
31

O sonho na teoria psicanalítica.


Autoria: Isadora Di Natale Nobre
Leitura crítica: Karla Cristina Gaspar

Objetivos
• Apresentar a teoria dos sonhos na Psicanálise.

• Compreender a formação dos sonhos para Freud.

• Desenvolver o conceito de inconsciente a partir do


estudo dos sonhos.
32

1. A formação dos sonhos e o inconsciente

O estudo dos sonhos ganhou destaque na obra de Freud, permitindo


que ele descobrisse fenômenos importantes sobre o funcionamento do
inconsciente e, de forma geral, do próprio aparelho psíquico.

A primeira concepção que Freud desenvolve sobre o aparelho psíquico,


chamada de Primeira Tópica, se baseia nesses estudos do sonho. Em
1900, publica o livro A Interpretação dos Sonhos, no qual explicita, a
partir de inúmeros relatos de sonhos, conceitos fundamentais para o
desenvolvimento da Psicanálise.

A primeira afirmação é de que os sonhos podem ser interpretados,


contradizendo as teorias dominantes da época, que não consideravam
o sonho como um ato psíquico, mas um processo somático, ou seja,
orgânico.

Freud afirma que o sonho tem um sentido, que está oculto, e que
pode ser desvendado por sua interpretação em análise. Tal descoberta
ocorreu a partir de seus próprios atendimentos, nos quais os pacientes,
ao serem orientados a comunicar quaisquer pensamentos e associações
que lhe viessem à mente, começaram a contar seus sonhos.

Então, Freud começa a tratar os sonhos como sintomas e aplica seu


método de interpretação que desenvolveu para eles. Assim, percebeu
que os sonhos também possuem significados.
33

Figura 1 – Sonho

Fonte: Choreograph/iStock.com.

Entretanto, para que a interpretação ocorra, o paciente necessita


renunciar as críticas de pensamentos, observar e comunicar tudo o
que lhe passa à mente, sem suprimir um pensamento que lhe pareça
inadequado ou sem importância.

Freud diferencia aqui a reflexão da auto-observação atenta. Pois, na


reflexão, ele conclui que há uma atividade psíquica mais ativa, que
envolve uma crítica, fazendo-o rejeitar uma parte dos pensamentos, que
percebe e interrompe seu caminho, sendo suprimido antes mesmo de
chegar à consciência.

Já na auto-observação atenta não há essa crítica, somente uma


concentração em observar o fluxo dos pensamentos, podendo vir à
mente pensamentos que em outras circunstâncias não viriam.
34

Somente a partir dessa autopercepção, a interpretação das ideias


patológicas e das formações oníricas – do sonho – pode ser realizada. Ao
adormecer, emergem representações involuntárias, transformadas em
imagens visuais e acústicas, devido à diminuição de determinada ação
crítica da vigília (FREUD, 2019 [1900]).

Para a interpretação, o sonho precisa ser pensado de forma dividida,


por meio dos elementos de seu conteúdo. E para cada parte do sonho, o
paciente é solicitado a fornecer suas associações. O sonho é entendido
como algo composto, como um “conglomerado de formações psíquicas”,
como afirma Freud (2019 [1900], p. 135).

Ao analisar os sonhos, Freud (2019 [1900], p. 152) descobriu que eles


parecem realizar desejos que foram despertados por eventos do dia
anterior. E concluiu que “seu conteúdo é, portanto, uma realização
de desejo; sua motivação é um desejo”. Então, ele passa a realizar
questionamentos, que serão a base para o seu estudo da formação
onírica e desenvolvimento de sua teoria dos sonhos.

De onde vem a forma estranha e notável em que se expressa essa


realização de desejo? Que alteração ocorreu nos pensamentos oníricos até
surgir deles o sonho manifesto, tal como o recordamos ao despertar? Por
quais vias se deu essa alteração? Qual a origem do material transformado
em sonho? De onde provêm algumas das particularidades que observamos
nos pensamentos oníricos, por exemplo, o fato de eles poderem ser
contraditórios? O sonho pode nos ensinar algo novo sobre nossos
processos psíquicos internos, seu conteúdo pode corrigir opiniões que
defendemos durante o dia? (FREUD, 2019 [1900], p. 155)

Todo sonho tem seu conteúdo manifesto e latente. O primeiro diz


respeito ao que está apresentado, o conteúdo que o sonho exibe com
todos os seus enigmas, ambiguidades, contradições. Já o segundo,
refere-se ao conteúdo de pensamento que descobrimos por trás do
sonho, após o trabalho interpretativo.
35

Essa conclusão explica os sonhos penosos e de angústia, em que o


seu conteúdo manifesto gera desprazer, porém, após interpretação,
revelam-se também realizações de desejos. Esses desejos estão
disfarçados no conteúdo manifesto, pelo fenômeno que Freud nomeia
deformação onírica.

Mas que desejos são esses? O que provoca essa deformação? Freud se
questiona. São desejos reprimidos, desagradáveis, os quais muitas vezes
a pessoa não quer ter conhecimento. A deformação funciona como uma
dissimulação para que eles não sejam reconhecidos ou percebidos pelo
sonhador. Conforme Garcia-Roza (1985, p. 63) “O objetivo é proteger o
sujeito do caráter ameaçador dos seus desejos”.

Freud afirma (2019 [1900], p.175-76): “Quando a realização de desejos é


irreconhecível e disfarçada, deve existir uma tendência à defesa contra
esse desejo e, devido a essa defesa, o desejo não consegue se expressar
senão como deformação”. Quanto mais rigorosa for a censura, mais
elaborado será o disfarce.

A partir dessa descoberta, Freud desenvolveu os princípios em que sua


Primeira Tópica se baseará, no fato de que há duas instâncias psíquicas
que se diferem em sua existência e funcionamento.

Então é lícito supor dois poderes (correntes, sistemas) psíquicos como


autores da configuração onírica no indivíduo, um dos quais forma o
desejo expresso pelo sonho, enquanto o outro exerce uma censura sobre
esse desejo onírico e, por meio dela, o obriga a deformar sua expressão.
Resta perguntar em que consiste o poder dessa segunda instância, que
a autoriza a exercer sua censura. Se lembrarmos que os pensamentos
latentes do sonho permanecem inconscientes antes da análise, mas que
o conteúdo manifesto deles oriundo é lembrado de forma consciente, é
plausível supor que o privilégio da segunda instância consiste justamente
em permitir o acesso à consciência. Nada do primeiro sistema poderia
chegar à consciência sem antes passar pela segunda instância, e esta nada
deixaria passar sem exercer seus direitos e efetuar as alterações aceitáveis
36

no candidato à consciência. Nisso revelamos uma concepção bem


específica da “natureza” da consciência; tornar-se consciente é, para nós,
um ato psíquico especial, diferente e independente do processo de ser
colocado ou representado, e a consciência se apresenta para nós como um
órgão sensorial que se apercebe de um conteúdo de outra proveniência.
(FREUD, 2019 [1900], p. 178)

Aqui estão apresentados o que posteriormente serão nomeados


sistemas inconsciente, pré-consciente e consciente. É por meio
da interpretação dos sonhos que Freud desenvolveu sua primeira
concepção do aparelho psíquico.

Os sonhos penosos, então, nos mostram que é penoso para a segunda


instância (pré-consciente), mas que, ao mesmo tempo, realiza um desejo
da primeira instância (inconsciente). Igualmente são sonhos de desejo,
uma vez que todos os sonhos partem da primeira instância, e a segunda
se comporta apenas de forma defensiva a eles, e não criativa, como
Freud explica.

É pela análise dos sonhos que ele chega à conclusão de que o sonho
possui um sentido oculto, secreto, que constitui a realização de um
desejo. É comum que o sonho relatado ocorra de forma incompleta e,
durante a análise, ressurge a lembrança de partes excluídas do sonho.
Tais partes constituem elementos essenciais à sua interpretação.

O estímulo para a formação dos sonhos sempre parte dos eventos


anteriores, que ocorreram durante o dia anterior ao sonho. Freud
classifica os diferentes tipos de sonhos, e com eles consegue
desenvolver de forma mais minuciosa seus conceitos.

Há os sonhos de comodidade, nos quais o sonho substitui o ato da


necessidade do organismo, do estímulo somático, por exemplo, de
beber água, que se refere ao desejo de beber resultante da sensação
– a sede –, gerando o sonho em que a pessoa toma água antes de
despertar. São chamados de comodidade, pois, ao realizar o desejo em
37

sonho, o sonhador não precisa despertar, ou seja, serve-se ao propósito


de continuar dormindo.

Esses sonhos se apresentam sem nenhum disfarce, na maioria das


vezes, de forma simples e suscinta. Os sonhos das crianças apresentam-
se dessa forma, suas produções psíquicas são mais simples do que as do
adulto.

Figura 2 – Sonhos de criança

Fonte: Choreograph/iStock.com.

Sonhos de contradesejo serão os sonhos chamados por Freud em que


seus pacientes, em atitude de resistência durante o tratamento, desejam
que ele – Freud – esteja errado em relação à sua teoria dos sonhos,
portanto, a força motriz seria o desejo de ele estar errado, uma vez
que não concordam com a afirmação do médico de que os sonhos são
realizações de desejo.
38

Freud afirma outro motivo para a formação desse tipo de sonhos, os


que contêm satisfação de tendências masoquistas, ou seja, o prazer na
humilhação e tortura psicológica, componentes agressivos e sádicos que
são convertidos, pela deformação onírica, em sonhos de contradesejo.

Como exemplo desse tipo de sonho, Freud cita um de seus pacientes


que, quando jovem, torturava seu irmão mais velho, pelo qual sentia
uma atração homossexual. Ele sonha com seu irmão mais velho que
o “espicaça” (FREUD, 2019 [1900], p. 194), depois com os dois adultos
se acariciando com intenções homossexuais e uma terceira parte em
que o irmão vende a empresa cuja direção ele reservava para o futuro.
O paciente então acorda com um sentimento penoso. Freud fornece
a seguinte interpretação: de que o paciente mereceria se seu irmão
realizasse a venda de sua empresa como castigo por todas as torturas
que aguentou dele.

Existem desejos que todos possuem, mas que prefeririam que não
existissem, que não são admitidos pela consciência. Em sonhos com
tais conteúdos, por exemplo, de tendências masoquistas, a realização
do desejo está tão deformada e disfarçada que são irreconhecíveis,
justamente por conterem uma aversão, uma intenção de reprimir o
tema do sonho ou o desejo revelado.

A deformação onírica, portanto, funciona como um ato de censura. Para


Freud, “o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido,
reprimido)” (2019 [1900], p. 195).

Muitos desejos ainda existem, mesmo que exista também uma inibição
que se contrapõe a eles. Há, mais uma vez, a constatação de sistemas
psíquicos diferentes que mantêm relação e conflito constantes entre si.

Se os desejos reprimidos são realizados, a inibição superada do segundo


sistema – suscetível de consciência – manifesta-se como desprazer.
39

A memória do sonho possui particularidades. Há uma preferência pelas


impressões dos últimos dias, mais especificamente, do dia anterior ao
sonho. Ao selecionar o seu material, o sonho obedece a princípios que
diferem do estado de vigília, lembrando-se de elementos tidos como
irrelevantes e não notados, e não o que foi importante ou essencial no
estado de vigília. O sonho acessa impressões da nossa primeira infância,
recuperando detalhes dessa fase de vida que pareciam terem sido
esquecidos.

O sonho pode recuperar impressões de qualquer fase da vida, porém,


tais impressões têm que apresentar um vínculo, uma relação, com as
vivências do dia do sonho. Mesmo que a impressão excitante e relevante
do dia forme o sonho, quando este ocorre, contém a impressão de que
não teve tanto valor na vigília. A utilização de elementos que não foram
relevantes no estado de vigília também é uma ação da censura, da
deformação onírica, que desloca a ênfase para a lembrança irrelevante.

O sonho trabalha a partir de associações, de elos de grupos de


representações que possuem um nexo. Ele pode unir dois grupos de
representações em um só, sendo que um elemento da primeira vivência
pode ser utilizado como alusão à segunda.

Ao estudar os sonhos, Freud, consegue compreender melhor o


funcionamento desse sistema primário, chamado inconsciente. Sobre a
origem dos sonhos, ele conclui que há quatro possíveis fontes.

Uma vivência recente e psiquicamente significativa, representada


diretamente no sonho; várias vivências recentes e significativas,
reunidas pelo sonho numa unidade; uma ou várias vivências recentes e
significativas, que são representadas no conteúdo do sonho pela menção
de uma vivência simultânea, mas indiferente; uma vivência interna
significativa (lembrança, raciocínio) que então é representada no sonho,
regularmente, pela menção de uma impressão recente, porém indiferente.
(FREUD, 2019 [1900], p. 216)
40

Mesmo que a origem seja interna, algum elemento do conteúdo do


sonho precisa repetir uma impressão recente do dia anterior, seja ela
relevante ou irrelevante. Durante a noite, sem que nossa consciência
perceba, podem ocorrer mudanças com o material da representação e
da lembrança do dia. Por isso, o conselho e a expressão de “dormir uma
noite sobre o assunto”, antes de decidir sobre ele, mostra-se satisfatório.

Nenhum sonho mostra-se trivial. Seu conteúdo sempre é psiquicamente


significativo, esteja ele deformado ou não. Mesmo os elementos que
parecem ser irrelevantes contêm significados.

Um ponto de importante destaque para Freud é sobre as impressões da


infância que compõem o sonho, ou seja, o material infantil como fonte
do sonho.

Sonho recorrente seriam os sonhos que ocorreram primeiramente na


infância e seguem se apresentando de tempos em tempos no adulto.
Entretanto, mesmo os sonhos que não apresentam conteúdo manifesto
infantil, após a interpretação, constata-se também a colaboração das
vivências infantis na sua formação, como fonte onírica de seu conteúdo
latente. Freud chega a afirmar que “a criança prossegue vivendo com
seus impulsos no sonho” (2019 [1900], p. 227).

Mesmo quando o desejo que provoca o sonho é atual, ele retira um


poderoso reforço de lembranças da infância. Porém, essa cena infantil
é representada, normalmente, por uma alusão no conteúdo manifesto,
que demandará uma interpretação.

Freud chega à conclusão de que os sonhos parecem ter vários


significados. Consequentemente, surgem os conceitos de
sobredeterminação e superinterpretação.

O sentido de um sonho nunca se esgota numa única interpretação, e isso


porque todo sonho é sobredeterminado, isto é, um mesmo elemento do
sonho manifesto pode nos remeter a séries de pensamentos latentes
41

inteiramente diferentes. A sobredeterminação não é uma característica


apenas dos sonhos, mas de qualquer formação do inconsciente. Estas nos
remetem sempre a uma pluralidade de fatores determinantes, tornando
impossível esgotarmos o sentido de um sonho ou de um sintoma numa
única explicação. (GARCIA-ROZA, 1985, p. 69)

Portanto, uma segunda interpretação se sobrepõe a primeira,


fornecendo um outro significado ao sonho, distinto do que foi
inicialmente revelado pela primeira interpretação. Isso ocorre não
porque ela estava incompleta, mas porque constitui-se de uma
incompletude que lhe é própria, essencial, devido à sobredeterminação
do sonho. Assim sendo, não há interpretação completa.

Há sempre novas associações que podem surgir tornando o trabalho


interpretativo sem fim. Garcia-Roza (1985, p. 71) afirma que “esse
caráter de inacabamento essencial da interpretação não decorre de uma
deficiência do método, mas é constitutivo dele”.

Quanto às fontes de estímulos somáticos (do organismo), Freud explica


que o sonho só se utilizará deles quando poderem ser associados ao
conteúdo representacional das fontes psíquicas do sonho. Segundo
Freud, eles funcionariam como os elementos irrelevantes das
impressões do estado de vigília do dia anterior ao sonho, que são
usados somente quando assimilados a conteúdos psíquicos relevantes.

Freud também classifica os sonhos típicos. São eles os sonhos que


se fazem recorrentes em muitas pessoas, de forma bem semelhante.
Parecem ter o mesmo significado para todos. Freud afirma que para
esse tipo de sonho, o método da interpretação não se mostra eficaz.

Ele dá exemplos desses sonhos. Um deles são os sonhos de embaraço


causado pela nudez, também chamados de sonhos de exibição. Freud
conclui que neles podemos observar claramente o fenômeno da
repressão.
42

A sensação de embaraço no sonho é a reação do segundo sistema


psíquico ao fato de que o conteúdo da cena de exibição por ele rejeitado
achou representação mesmo assim. Para evitá-la, a cena não deveria ter
sido reavivada. [...]. Segundo a intenção inconsciente, a exibição deve
ser continuada; segundo a exigência da censura, deve ser interrompida.
(FREUD, 2019 [1900], p. 285)

Mais uma vez Freud se depara com cenas infantis, em que o material
censurado consiste em conteúdo de ordem sexual.

Outro sonho típico é o sonho de mortes de pessoas queridas, que


são acompanhados por afetos dolorosos. Uma reflexão que se faz
importante frisar neste momento é que temos que ter em mente que
os desejos latentes do sonho nem sempre são atuais, podendo ser
desejos passados, encobertos, reprimidos, descartados e que, por meio
do sonho, atribuímo-los alguma sobrevivência. Importante também
compreender sobre esses sonhos, que a morte para a criança tem uma
representação diferente que para o adulto.

Portanto, quando no sonho alguma pessoa querida morre, pode estar


relacionado ao desejo infantil que a criança nutria em sua infância,
muitas vezes com o significado de ausência e não propriamente de
falecimento.

Analisando esses sonhos, Freud percebe que parece haver uma


tendência sexual manifestada precocemente, a preferência do garoto
pela mãe e da garota pelo pai. Portanto, o garoto reconheceria o pai
como um rival frente ao amor da mãe. Já a garota, teria a mãe como rival
frente ao amor do pai. Esse sentimento pode gerar, por exemplo, um
sonho de morte.

Desejos afetuosos ou hostis em relação aos pais demonstram estar


presentes na psique da maioria das crianças.
43

Outros sonhos típicos apresentados por Freud são os sonhos de voar


com sentimento de prazer ou de cair com sentimento de angústia, e os
sonhos de exames, com sentimento de medo da prova.

Em todos eles, há subjacente uma lembrança e impressões da primeira


infância, período que se refere, aproximadamente, até o final dos três
anos da criança. Tais sonhos são realizações de desejos reprimidos
da infância, de cunho sexual, e de impulsos egoístas, uma vez que os
sonhos preservam características da psique infantil. E como Freud
afirma, raramente o material associativo que os sonhadores desses
sonhos oferecem é suficiente para interpretação.

Freud (2019 [1900]) também conclui que cada sonho tem também uma
parte que não consegue ser interpretada, como que um umbigo, que
se vincula a um desconhecido, um ponto em que ele é insondável, que
deve ser deixado na obscuridade.

Portanto, é a partir do estudo, análise e interpretação dos sonhos que


Freud descobre particularidades do funcionamento inconsciente e, deste
modo, do funcionamento do próprio aparelho psíquico, desenvolvendo
a partir de então conceitos-chaves para a teoria psicanalítica.

Mais uma vez demonstra a importância da linguagem, uma vez que a


interpretação do sonho se dá pelo sonho relatado e não pelo sonho em
si, esse só é acessado a partir do relato do paciente, ou seja, por suas
associações de palavras é que a interpretação pode ocorrer.

Com o estudo dos sonhos, Freud sai do contexto patológico e se insere


na esfera chamada “normalidade”. Assim:

Ao concluir A Interpretação dos Sonhos, Freud demonstrara três pontos


essenciais para a teoria da psicanálise: a ocorrência de processos de
pensamento inconscientes em indivíduos normais, o papel preponderante
do desejo na vida psíquica, e o imenso alcance do fenômeno da repressão.
(MEZAN, 2013, p. 99)
44

Referências
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 4: A interpretação dos sonhos (1900).
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
GARCIA-ROZA, Luiz A. Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MEZAN, Renato. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
45

O trabalho do sonho.
Autoria: Isadora Di Natale Nobre
Leitura crítica: Karla Cristina Gaspar

Objetivos
• Apresentar as particularidades do trabalho do
sonho.

• Explicitar os conceitos de condensação,


deslocamento, figurabilidade e elaboração
secundária.

• Facilitar, a partir do estudo dos sonhos, a


compreensão do aparelho psíquico à luz da Primeira
Tópica.
46

1. O trabalho onírico e o funcionamento do


aparelho psíquico

Freud, ao estudar os sonhos, observou particularidades de sua


formação. No livro A Interpretação dos Sonhos (1900), por meio da
apresentação de diversos sonhos de pacientes, seus próprios e também
da literatura, Freud desenvolveu a teoria dos sonhos e explicita os
fenômenos presentes no trabalho do sonho, ou seja, em sua formação.
São eles a condensação, o deslocamento, a figurabilidade e a elaboração
secundária.

O interesse de Freud foi investigar as relações entre os conteúdos


manifestos e os conteúdos latentes dos sonhos, os processos pelos
quais esses últimos se transformam nos primeiros.

A partir da interpretação dos sonhos, que ocorre no tratamento


psicanalítico, revelam-se os pensamentos oníricos por trás dos sonhos.
Freud percebe que os conteúdos e pensamentos oníricos se apresentam
como duas versões de um mesmo conteúdo, em uma nova linguagem.
Os pensamentos oníricos são compreensíveis, ao passo que os
conteúdos oníricos se utilizam de signos, representados por imagens
que requerem interpretações.

Ao investigar os processos pelos quais o conteúdo latente se transforma


em conteúdo manifesto, Freud se depara, primeiramente, com o
trabalho de condensação, e afirma:

O sonho é conciso, pobre e lacônico quando comparado ao volume e à


riqueza dos pensamentos oníricos [...] em geral, se subestima a medida
da compressão realizada, tomando os pensamentos oníricos trazidos
à luz como o material completo, mas o prosseguimento do trabalho
de interpretação pode revelar novos pensamentos escondidos por
trás do sonho. [...] no fundo, nunca podemos ter certeza de que nossa
interpretação do sonho é completa; mesmo quando a resolução parece ser
47

satisfatória e não apresentar lacunas, é sempre possível que mais outro


sentido se manifeste no mesmo sonho. Estritamente falando, a cota de
condensação é, portanto, indeterminável. (FREUD, 2019 [1900], p. 319-20)

O sonho é melhor reproduzido logo após o despertar, é habitual


que apresente lacunas cada vez maiores ao decorrer do dia e ao se
aproximar da noite.

Há nos sonhos pontos nodais, para onde convergem inúmeros


pensamentos a partir da associação de seus conteúdos. Dessa forma,
podem ter diferentes sentidos, cada elemento do sonho se revela,
portanto, como sobredeterminado, sendo representado várias vezes
nos pensamentos oníricos. Assim como os elementos dos sonhos são
determinados inúmeras vezes pelos pensamentos oníricos, também
cada pensamento pode ser representado por inúmeros elementos.
Portanto, há como que um emaranhado de laços entre eles.

Freud explica que “os elementos dos sonhos são formados a partir de
toda a massa de pensamentos oníricos e cada um deles parece ser
multiplamente determinado em relação aos pensamentos oníricos”
(2019 [1900], p. 325).

Assim sendo, a condensação refere-se à sobredeterminação do


conteúdo do sonho. O trabalho de condensação lança mão de vários
meios para a formação do sonho.

Por exemplo, em um sonho, uma mesma pessoa pode conter traços


contraditórios pertencentes a várias pessoas, transformando-se, pela
condensação, em uma imagem genérica que representa várias pessoas.
Freud afirma que “a produção de pessoas coletivas e mistas é uma das
ferramentas principais da condensação do sonho” (2019 [1900], p. 335).

Outra via do trabalho de condensação é por meio das palavras,


em que cria palavras que podem conter inúmeras combinações de
representações, muitas vezes formando palavras divertidas e incomuns.
48

A segunda particularidade da formação dos sonhos é referente ao


trabalho de deslocamento. Os elementos que se destacam no conteúdo
manifesto do sonho, não possuem o mesmo papel essencial nos
pensamentos oníricos. Tal descoberta faz Freud estudar o fenômeno
de deslocamento, ou seja, a mudança do conteúdo essencial dos
pensamentos oníricos, que no sonho pode ser ordenado de outra
maneira, em torno de outros elementos como centro.

Na formação do sonho, esses elementos essenciais, destacados com


interesse intenso, podem ser tratados como se fossem de valor inferior, e
seu lugar no sonho passa a ser ocupado por outros elementos que eram
certamente de valor inferior nos pensamentos oníricos. (FREUD, 2019
[1900], p. 348)

Entraria no sonho os elementos que aparecem muitas vezes nos


pensamentos oníricos e não necessariamente o que lhe é relevante. Ou
seja, as representações que retornam com maior frequência.

Dessa forma, a consequência do deslocamento é que o conteúdo


do sonho não mais se parece com o núcleo dos pensamentos
oníricos, uma vez que o sonho reproduz uma deformação do desejo
onírico no inconsciente. Portanto, a deformação do sonho ocorre,
principalmente, pelo deslocamento, influenciado pela censura, como
defesa intrapsíquica do indivíduo visando protegê-lo contra conteúdos
desagradáveis.

Freud chega à seguinte conclusão sobre o trabalho da condensação e do


deslocamento.

Então é plausível pensar que no trabalho do sonho se manifesta um poder


psíquico que, de um lado, despoja de sua intensidade os elementos de
alto valor psíquico, e de outro, por meio da sobredeterminação, a partir de
elementos inferiores cria novos valores que depois conseguem chegar
ao conteúdo do sonho. Se for assim, houve na formação do sonho uma
transferência e deslocamento das intensidades psíquicas dos elementos, de
49

que decorre a diferença textual entre conteúdo do sonho e pensamentos


oníricos. O processo que assim supomos é justamente a parte essencial
do trabalho do sonho: ele merece o nome de deslocamento do sonho. O
deslocamento e a condensação do sonho são os dois mestres artesãos a cuja
atividade podemos atribuir essencialmente a forma do sonho. (FREUD,
2019 [1900], p. 350)

O terceiro fator do trabalho dos sonhos, também responsável pela


transformação dos conteúdos latentes em conteúdo manifesto, é a
figurabilidade. No sonho, não há relações lógicas entre os pensamentos
oníricos; na maioria das vezes, ele “ignora todas essas conjunções e
toma apenas o conteúdo substantivo dos pensamentos oníricos para
elaborar. Cabe à interpretação do sonho restaurar os laços destruídos
pelo trabalho do sonho” (FREUD, 2019 [1900], p. 354).

O sonho parece não ter coerência, sua incompreensibilidade é resultado


da atuação da censura, que funciona como defesa contra o desprazer
causado pelos conteúdos reprimidos. Dessa forma, os disfarça em uma
aparência de absurdo fantástico.

O disfarce e a distorção são, às vezes, de tal monta, que o aspecto de


satisfação do desejo do sonho manifesto é, por assim dizer, irreconhecível.
O sonho manifesto é, por vezes, uma miscelânea de fragmentos sem
relação aparente que parece não ter qualquer sentido e muito menos
representar a realização de um desejo. (BRENNER, 1987, p. 168-69)
50

Figura 1 – Símbolos nos sonhos

Fonte: mustafaipek34/iStock.com.

Os pensamentos oníricos estão presentes no material dos sonhos


mediante uma modificação, variando de forma, por meio de uma
relação de simultaneidade, na qual fragmentos dos pensamentos
oníricos são unidos em uma única situação ou evento. Assim, formam-
se grupos de representações, consistindo principalmente em imagens,
em representabilidade visual. Portanto, os pensamentos oníricos se
transformam em linguagem figurativa, tornando-os “concretos”. Tais
combinações não são aleatórias, mas formadas por componentes que
também nos pensamentos oníricos possuem relação.

As falas que aparecem nos sonhos são sempre reproduções inalteradas


ou somente um pouco modificadas de falas que ocorreram no estado
de vigília (ouvidas ou faladas), que o trabalho do sonho utiliza em sua
formação, apenas como alusão a um evento presente nos pensamentos
oníricos.
51

As palavras que aparecem nos sonhos possuem também grande valor,


como ponto nodal de representações múltiplas. Podem aparecer
expressões de duplo sentido ou mesmo jogos de palavras.

Também os números e cálculos podem ser usados pelo trabalho


do sonho, que se utiliza de inúmeros meios de representação para
transformar o conteúdo latente em conteúdo manifesto.

O sonho pode apresentar-se na forma de cálculos, números que estão


presentes nos pensamentos oníricos. Por exemplo, um sonho em que
uma mulher é acompanhada por duas garotas pequenas, que possuem
um ano e três meses de diferença de idade entre elas. Na análise, é
possível chegar à interpretação de que o sonho remete a dois eventos
traumáticos da infância da sonhadora que ocorreram com esse mesmo
intervalo de tempo entre eles.

Os símbolos exercem aqui grande papel, pois são usados pelo trabalho
do sonho para disfarçar seus conteúdos latentes. Como os símbolos
são coletivos, comuns, com frequência podem ser interpretados não
simbolicamente, mas em seu sentido próprio. Porém, o sonhador pode,
também, associar a esse sentido relações com o seu pensamento,
recorrendo a um material especial de suas próprias lembranças.

Sobre o papel da sexualidade na origem dos conteúdos reprimidos


representados pelos símbolos, Freud (2019 [1900], p. 390) afirma que “o
simbolismo sexual pode se ocultar de melhor maneira por trás do que é
cotidiano e ordinário”.

Quando da utilização dos símbolos, a interpretação dos sonhos recorre


tanto às associações do sonhador, quanto ao conhecimento simbólico
do analista. Aqui, cabe reconhecer o papel da sobreinterpretação, ou
seja, da possibilidade de diferentes interpretações para um mesmo
conteúdo – uma vez que esse conteúdo contém diversos pensamentos e
desejos de natureza distintas.
52

Freud também descobre que muitas vezes os sonhos dispõem de


duas partes, em que o sujeito lembra como se fossem dois sonhos
distintos. Nesses casos, pelas suas interpretações, ele explica que não
necessariamente eles possuem uma relação causal (o primeiro com o
segundo), mas podem consistir em duas formas distintas de representar
o mesmo material onírico. Em alguns casos, entretanto, parecem ter
uma relação causal.

O sonho parece funcionar sob uma lógica de adição e não de


contradição, pois elementos que poderiam ser opostos, nos sonhos são
unidos e tratados como equivalentes. Dessa forma:

O modo como os sonhos lidam com a categoria da oposição e contradição


é bastante notável. Ela é simplesmente ignorada, o “não” parece não existir
para os sonhos. Há uma preferência especial por reunir ou representar
numa unidade as contradições. Os sonhos também tomam a liberdade
de representar um elemento qualquer pelo contrário desejado, de modo
que inicialmente não há como sabermos se um elemento que admite
seu oposto está contido nos pensamentos oníricos de forma positiva ou
negativa (FREUD, 2019 [1900], p. 360)

Nos sonhos, os casos de semelhança são representados pela junção


em uma unidade, que pode já existir no material do sonho ou que pode
ser criada. No primeiro caso é chamada de identificação, e no segundo,
de formação mista. Por exemplo, uma pessoa pode representar outras
pessoas no sonho, que estão “escondidas” ou “suprimidas” por essa
pessoa que encobre as outras. Esse é um caso de identificação. Já na
formação mista, ao invés de uma pessoa encobrir muitas outras, há a
produção de uma imagem onírica com traços peculiares, que não são
comuns às pessoas referidas, mas, que levam ao aparecimento de uma
nova pessoa, uma pessoa mista. Ou, por exemplo, os traços são de uma
pessoa, mas os gestos são de outra. Essa possibilidade de criação mista
é o que, muitas vezes, fornece ao sonho seu efeito fantástico.
53

Todo esse trabalho do sonho serve para contornar a censura da


resistência, satisfazendo suas exigências.

Apesar da tendência em juntar os elementos contraditórios, Freud


também afirma que há uma possibilidade de o sonho transformar
os elementos opostos em traços invertidos, chamados de sonhos de
inversão, por exemplo, a lembrança infantil refere-se a uma subida e no
sonho, tal reminiscência se apresenta como uma descida.

Também a oposição pode estar presente nos sonhos em que há a não


realização de alguma ação, por exemplo, a impossibilidade de se chegar
a algum lugar, a sensação de um movimento inibido, representando,
assim, um conflito de vontades entre os diferentes sistemas.

Freud (2019 [1900], p. 365) conclui que todo sonho trata da pessoa do
sonhador, sem exceções. Ele afirma que “os sonhos são absolutamente
egoístas”. E todos os comentários que o sonhador realiza sobre o seu
sonho possui uma importância à sua interpretação, por exemplo,
durante a sessão, ao relatar um sonho, fala “essa parte está um tanto
borrada para mim”, a posterior análise pode trazer a reminiscência
infantil de se limpar após defecar.

Nenhuma palavra, ou mesmo esquecimento, ou forma de relatar o


sonho é em vão, mesmo quando o objetivo é ocultar algum conteúdo,
o sonhador acaba por revelá-lo. Os sentimentos que o sonho suscita
após o despertar também pertencem ao conteúdo latente e devem ser
interpretados.

O quarto elemento do trabalho do sonho, Freud denomina de


elaboração secundária, que tem como função moldar o conteúdo
manifesto em uma forma lógica e coerente, procurando dar sentido ao
sonho. Ele explica que há uma força psíquica que produz uma aparente
coerência, fundindo os conteúdos para que estes não apresentem
54

contradições, atribuindo-lhes sentido, criando ordem e estabelecendo


relações.

Freud descobre que não só os pensamentos oníricos fornecem o


material para o sonho, mas que ele também recebe contribuições de
outra função psíquica, a instância censuradora, que não só omite e
restringe elementos, mas também é responsável por interpolações e
acréscimos. Por exemplo, quando liga duas partes do conteúdo onírico,
criando um nexo entre os dois fragmentos do sonho. Freud os chama de
pensamentos-argamassa, que são os mais facilmente esquecidos pelo
sonhador. Referindo-se a esses pensamentos advindos da elaboração
secundária, faz-se a seguinte analogia, “com seus retalhos e remendos,
ela tapa os buracos no edifício do sonho” (FREUD, 2019 [1900], p. 538).

O resultado desse processo é que o sonho perde a aparência de


absurdo e torna-se mais compreensível. Tal função tem semelhança com
o pensamento desperto, que parece atribuir um sentido ao sonho, mas
esse sentido é sempre distante do significado real do sonho. Há sonhos
em que essa função tem maior êxito e, portanto, produzindo sonhos
mais claros e coerentes, já, em outros, fracassa, tendo aqui sonhos mais
confusos.

A formação do sonho forma algo novo somente em caso extremo. Na


maioria das vezes, ela somente emprega o que acha de útil no material
onírico. Pode também se utilizar de fantasias inconscientes já prontas,
que foram produzidas no estado de vigília (fantasias diurnas), que
permanecem inconscientes e que podem ser usadas pela elaboração
secundária, que as introduz no contexto do sonho. Fantasias que são
condensadas, reunidas, sobrepostas umas às outras com os demais
elementos dos pensamentos oníricos.

As exigências dessa instância realizada pela elaboração secundária


é uma das quatro a que o sonho deve satisfazer. Porém, ela parece
55

ser a exigência menos autoritária. Ela é a atividade ordenadora e


interpretativa dos sonhos.

Freud, ao estudar os sonhos, também se depara com a temática dos


afetos. Ele percebe que os conteúdos de representação dos sonhos
não são acompanhados dos afetos esperados se comparados aos
pensamentos despertos, ou seja, se tais situações acontecessem no
estado de vigília. Ele afirma que “a análise nos ensina que os conteúdos
de representação sofreram deslocamentos e substituições, enquanto os
afetos permaneceram inalterados” (FREUD, 2019 [1900], p. 507).

Os afetos seriam a parte menos influenciada pelo efeito da censura,


e portanto, o conteúdo da representação que foi modificado pela
deformação onírica não combina mais com o afeto preservado. A
representação a que o afeto pertence de fato foi reprimida e substituída,
e poderá ser revelada pela interpretação, que separará o afeto do
conteúdo apresentado no sonho, desprendendo-o dele e buscando a
representação do pensamento onírico correspondente. O sonho tem a
liberdade de desprender o afeto de suas ligações originais e inseri-lo em
qualquer outro lugar.

Há também sonhos em que ocorre uma supressão dos afetos, ou seja,


em que o trabalho do sonho reduziu tanto a tonalidade emocional
do pensamento onírico que este chega ao nível do indiferente. Sendo
esse um dos resultados da repressão, do conflito entre duas instâncias
psíquicas. “A inibição dos afetos seria então o segundo resultado da
censura onírica, assim como a deformação onírica foi o primeiro”
(FREUD, 2019 [1900], p. 515).

Além de admitir os afetos ou anulá-los, o trabalho do sonho pode


também transformar os afetos em seus opostos, realizando, portanto,
um deslocamento. Tal deslocamento pode estar tanto à serviço da
censura quanto da própria realização de desejo que substitui uma coisa
56

desagradável por seu oposto, visando se satisfazer, descarregando sua


energia.

Fontes de afetos que permaneceram inconscientes podem estabelecer


ligações com circunstâncias reais, abrindo o caminho para a liberação
dos afetos reprimidos. Freud infere, então, que as duas instâncias do
aparelho psíquico, a que reprime e a repressora, podem manter não
só relações de inibição, mas também de cooperação e fortalecimento
mútuo.

Assim sendo, podemos concluir que o sonho tem como objetivo sempre
a realização de desejos inconscientes. A maioria dos sonhos, para Freud,
trata de material sexual, expressando desejos eróticos.

O trabalho do sonho consiste na combinação de quatro fatores que


traduzem os pensamentos oníricos. Trabalhando para que os conteúdos
não sejam reconhecidos e, portanto, possam atravessar a barreira pré-
consciente, utilizando-se de uma linguagem diferente, transformada,
que respeite as exigências da censura que funciona como defesa
intrapsíquica.

Mesmo que o sonho possa conter pensamentos relacionados às


atividades do estado de vigília e impressões sensoriais noturnas, a parte
essencial do conteúdo latente do sonho é a que provém dos conteúdos
reprimidos inconscientes. Para Brenner (1987), mesmo quando ocorre
a presença dos primeiros fatores mencionados, eles só são incluídos
no sonho quando possuem ligação com algum conteúdo inconsciente,
quando são realizações de desejos.

O sonho toma emprestado fragmentos dos pensamentos oníricos e


os reaproveita, normalmente atribuindo-lhes novo sentido. Sobre o
trabalho do sonho, Freud sintetiza-o da seguinte maneira.

Ele não é mais negligente, incorreto, esquecido e incompleto que o


pensamento desperto; é algo totalmente diferente em termos qualitativos
57

e, por isso, não pode ser imediatamente comparado a este. Não pensa,
calcula e julga; antes se limita a transformar. É possível descrevê-lo
exaustivamente, quando se leva em conta as condições que seu resultado
tem de satisfazer. Esse produto, o sonho, deve ser principalmente
subtraído à censura, e para isso o trabalho do sonho recorre ao
deslocamento das intensidades psíquicas, até chegar à transmutação
de todos os valores psíquicos; os pensamentos devem ser reproduzidos
exclusiva ou predominantemente no material de traços mnêmicos
visuais e acústicos, e dessa exigência resulta para o trabalho do sonho a
consideração pela representabilidade, a que ele atende mediante novos
deslocamentos. Devem (provavelmente) ser produzidas intensidades
maiores do que as disponíveis nos pensamentos oníricos durante a noite,
e para essa finalidade serve a ampla condensação que é empreendida com
os componentes dos pensamentos oníricos. (FREUD, 2019 [1900], p. 556-
57)

A partir do estudo dos sonhos, Freud compreende o funcionamento do


inconsciente e, portanto, do próprio aparelho psíquico. O inconsciente,
para ele, é compreendido como a essência do psiquismo. O consciente
seria apenas “um efeito secundário do processo psíquico inconsciente”
(NASIO, 1999, p. 34), como nos é apresentado no esquema a seguir.
58

Figura 2 – Esquema do funcionamento psíquico

Fonte: Nasio (1999, p. 22).

O sistema inconsciente tem por objetivo escoar a tensão, realizando


uma descarga total, visando o prazer absoluto, porém, toda descarga
é inevitavelmente parcial, uma vez que a resposta do psiquismo a
uma excitação será metafórica e não uma ação concreta. O psiquismo
responde com imagens, pensamentos, falas que representam a ação.

O recalcamento, descrito na imagem, pode ser compreendido como


a repressão, uma barreira entre os sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente. Esse último sistema, diferentemente do
inconsciente, responde às exigências da realidade e, portanto, escoa
a energia psíquica de forma lenta e gradual, redistribuindo-a e não
focando em sua livre descarga.

A barreira entre os sistemas não é intransponível, alguns conteúdos


conseguem ultrapassá-la, porém, de forma disfarçada, em que o sujeito
não os reconheça, portanto, aqui, a descarga da energia psíquica é
considerada parcial e substitutiva. Os sonhos estariam nessa categoria,
uma vez que satisfazem o desejo inconsciente de forma parcial, a
59

partir de imagens acústicas ou visuais, ou seja, substitutivas do desejo


inconsciente.

Outra forma de descarga da energia é por meio da atividade intelectual,


como pensamento e a atenção, que proporciona um prazer moderado.
Importante ressaltar que, para Freud, o prazer significa supressão da
tensão e, ao contrário, desprazer, acúmulo e aumento de tensão.

Compreendendo o aparelho psíquico a partir do dinamismo de seus


sistemas e suas formas distintas de lidar com a energia psíquica, conclui-
se que o aparelho psíquico está sempre em constante tensão, e esse
seria o princípio da vida subjetiva.

Referências
BRENNER, Charles. Noções básicas de psicanálise: introdução à psicologia
psicanalítica. 4. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 4: A interpretação dos sonhos (1900).
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 13: Conferências introdutórias à
psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
NASIO, Juan-David. O prazer de ler Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
60

BONS ESTUDOS!

Você também pode gostar