Você está na página 1de 43

MATERIAL DE APOIO

SOFRIMENTO
PSÍQUICO
NA ATUALIDADE
COM JULIA CATANI
Este material de apoio foi preparado pela curadoria da Casa do Saber e tem
como objetivo acompanhar você ao longo da sua jornada de aprendizagem
nos cursos, masterclasses e palestras disponíveis na plataforma de streaming
Casa do Saber +.

Procuramos trazer aqui pontos importantes abordados ao longo das aulas e


também outras informações que possam te auxiliar na compreensão dos
conhecimentos tratados no curso.

Com o intuito de expandir o conteúdo que foi abordado nos cursos, incluímos
aqui algumas referências bibliográficas, audiovisuais e também indicações
dos professores e professoras.

Conectamos neste material o universo de conteúdo produzido pela Casa do


Saber. Preparamos uma curadoria exclusiva de cursos e indicamos vídeos do
canal no YouTube relacionados ao tema do curso que você está assistindo.

Além disso, você pode acessar o Quero Saber, o blog de conhecimento da


Casa do Saber.

Esperamos que este material de apoio sirva como importante ferramenta que
possa potencializar o seu processo de aprendizagem e
de educação continuada.

Curadoria Casa do Saber.


curadoria@casadosaber.com.br
O CURSO

A psicanálise e a psicossomática, disciplinas responsáveis pelo estudo da


relação mente e corpo, sugerem que a dor psíquica é também uma dor
corporal e que a dor corporal é também uma dor psíquica. Quanto maior os
preconceitos e os estigmas, menor a probabilidade das pessoas buscarem
auxílio e cuidados quando necessário.

No entendimento psicanalítico, a (in)capacidade de nomear e narrar os fatos


e as lembranças tende a levar as pessoas a um maior risco de sofrimentos
somáticos, isto é, adoecimentos cuja expressão encontra vazão por meio do
próprio corpo.
AULA A AULA

Aula 01 | O corpo em cena

A questão das fronteiras entre os saberes disciplinares e uma perspectiva

histórica da Antiguidade aos dias atuais.

Aula 02 | A Psiquiatria e seus modos de classificar os sofrimentos

A definição de saúde segundo a OMS, o crescimento da indústria

farmacêutica, os transtornos mentais e os conceitos psicanalíticos.

Aula 03 | A psicanálise e suas formas de nomeação e tratamento dos

sofrimentos

O interligamento entre as dimensões físicas e psíquicas, o sintoma como


identidade.

Aula 04 | A infância e o ambiente escolar

As formas de adoecimento, a construção de diálogo e articulação entre os

profissionais.

Aula 05 | O neoliberalismo como produtor de sofrimento psíquico

As estratégias de cuidados e intervenções terapêuticas.


SOBRE A PROFESSORA

Júlia Catani é Psicóloga e Psicanalista. Pós-doutora pela Faculdade de


Educação da USP com bolsa FAPESP. Doutora e Mestre em Psicologia Clínica
pelo Instituto de Psicologia da USP.

Membro do Instituto Sedes Sapientiae e do Grupo Brasileiro de Pesquisas


Sándor Ferenczi (GBPSF).

Autora de “Sofrimentos Psíquicos: as lutas científicas da psicanálise e da


psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento” (Ed. Zagodoni).
O QUE VOCÊ VERÁ NO CURSO
Alguns tópicos sobre os temas mais importantes: um guia para você
acompanhar durante as aulas.

1. O corpo em cena:

A questão das fronteiras entre os saberes disciplinares e uma perspectiva


histórica da Antiguidade aos dias atuais, onde vamos discutir a noção de
corpo e suas transformações ao longo do tempo.

2. A Psiquiatria e seus modos de classificar os sofrimentos:

Percorremos as formas pelas quais a psiquiatria foi construindo as suas


nomeações e como isto se reproduz nos dias de hoje, assinalando aqui quais
seriam os impactos dos diagnósticos e dos manuais psiquiátricos nas nossas
vidas.

3. A psicanálise e suas formas de nomeação e tratamento dos sofrimentos:

De que forma, portanto, a psicanálise entende a idéia de sofrimento e como


cuida dele, buscaremos fazer um contraponto com a psiquiatria para
pensarmos os pontos de convergência e divergência na perspectiva do
cuidado

4. A infância e o ambiente escolar - formas de adoecimentos e a construção


de diálogo e articulação entre os profissionais:

A discussão dos sofrimentos nas crianças hoje e os motivos pelos quais eles
podem estar presentes. A definição acerca do ambiente será uma perspectiva
para estabelecer as razões que levam ao mal-estar e de que modo a
educação e a articulação entre psicanalistas, psiquiatras, professores e
educadores de modo geral podem potencializar modos de prevenção e
cuidado dentro e fora da escola.

5. O neoliberalismo como produtor de sofrimento psíquico e as estratégias de


cuidados e intervenções terapêuticas:
Refletir como o modelo neoliberal guarda relações com as escolhas e com os
tipos de sofrimentos apresentados hoje por cada um de nós a partir da
perspectiva física, psíquica, social e econômica.

O SEU PERCURSO DE APRENDIZADO

Aula 01. Apresenta elementos para a compreensão do que significam os sofrimentos


corporais e psíquicos e como a questão da associação das dimensões físicas e
mentais foi construída em alguns momentos históricos.

Aqui, trata-se de estabelecer então alicerces para entendermos como, na atualidade


e nas “ciências do cuidado” como a Psicanálise, a Psiquiatria, e a Educação podem
confrontar os sofrimentos psíquicos no sentido de prevenir e cuidar dos sujeitos, tal
como o curso propõe.

É preciso colocar em circulação a ideia de que é possível sofrer. Ou seja, de que isto
possa ser falado, cuidado e compartilhado, não apenas silenciado pelas formas de
repressão e pelos discursos eventualmente levianos que levam a movimentos das
pessoas chegarem a se perguntar se deveriam sofrer?

Todos nós sofremos e todos devemos ser cuidados

O trabalho clínico não deve ser isolado. Trata-se de uma dimensão de cuidado com
quem quer que seja, pois antes de mais nada é o paciente que está em questão e
não as disciplinas, as especialidades e/ou os profissionais que o assiste. As
desagregações, as críticas, o silêncio e os estigmas podem levar a efeitos e prejuízos
substanciais aos pacientes.

Foram estas algumas das motivações principais que levaram a um mestrado sobre
as edições dos manuais psiquiátricos (a Classificação Internacional de Doenças – CID
e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM), os seus
diagnósticos e as formas de nomeação, numa maneira de melhor compreender as
aproximações do entendimento médico com as explicações psicanalíticas.

Este investimento iria prosseguir no estudo posterior no qual se analisou os


transtornos somatoformes, os sintomas somáticos e os sofrimentos psíquicos e
corporais de pacientes com sintomas corporais em que a questão psíquica interfere
de tal modo a produzirem ou agravarem estas manifestações, identificadas por
transtorno de somatização (queixas dolorosas, gastrointestinais, sexuais), transtorno
conversivo (em que há um prejuízo motor ou sensorial no corpo –
pseudoneurológicos– paralisia de algum membro, por exemplo), transtorno doloroso
(dores excessivas que não cessam mediante o uso de medicações fortes como os
opióides), hipocondria (preocupação ou idéia excessiva em ter uma doença grave) /
transtorno ansioso da doença (faz buscar ou não querer sob nenhuma hipótese
buscar um médico), transtorno dismórfico corporal (preocupação excessiva com a
aparência, muitas vezes fazendo recorrer a inúmeras cirurgias plásticas).

Não é possível falar de uma mente separada do corpo e vice-versa, pois a todo o
instante um está impactando o outro. O corpo é o que temos de mais familiar, desde
o nosso nascimento experimentamos o mundo e as relações com os outros deste
modo e ao mesmo tempo é algo “partilhado” por todos. Nele construímos
lembranças, identificações, significados e representações, portanto, o estar no
mundo. É corporalmente que sentimos o que ainda não conseguimos nomear. É em
nossos corpos que construímos histórias, ideais, cuidados físicos, estéticos e mentais.

Pensar como se configuram os sofrimentos psíquicos ligados às dificuldades


corporais. E quais os modos de apresentação e representação desses fenômenos na
atualidade. Ou seja, o que faz com que a gente adoeça e como isto se mostra?

O “corpo em cena” é aquele que se:

● apresenta, chega e pode ser lido como um primeiro cartão de visitas,


● manifesta, clama por atenção e por cuidados (seja de uma mãe, de médicos,
de exercícios físicos, de tratamentos estéticos),
● estuda nas artes, na literatura, no cinema, nas especialidades profissionais;
● representa para além do estudo é algo que se pode pensar como uma
manifestação e a construção de símbolos e objetos por meio das pinturas, das
esculturas, do teatro, do cinema – o que encaminha para um outro ponto que
pode ser a idéia da encenação;
● encena e com isso, o corpo em cena, foi um dos aspectos que levou Sigmund
Freud a criar a psicanálise em 1900, quando ele atendia paciente histéricas,
onde o corpo era alvo e palco para a expressão do seus mal-estares, mas isto
era feito de modo muito marcante, intenso, uma encenação ao mesmo tempo
que imitava muitas vezes de alguma doença;
● lembra, traz em si fantasias, recordações e compreensões que sequer nos
damos conta.

Cada pessoa carrega em si e na relação com o seu corpo uma história que
merece ser observada / ouvida pelo sujeito e uma dimensão do ponto de vista
histórico desde a Antiguidade também permite compreender os mal-estares e
possíveis sofrimentos que são comuns nos dias de hoje.

O compromisso e a dimensão de cuidado dos profissionais de saúde mental

Na vida estamos sujeitos a passar por experiências ruins e a termos frustrações, às


vezes diárias. É preciso cuidar, prevenir e tratar os sintomas físicos, a fim de evitar que
os sofrimentos se prolonguem exigindo a intervenção de uma equipe
multidisciplinar e/ou o uso de medicamentos.

As expressões populares como: “frio na barriga”, “nó na garganta”, “estômago


embrulhado”, “coração saindo pela boca”, etc. são apenas algumas referências de
quando e do quanto as nossas emoções podem se encontrar à flor da pele.

As nomeações e as formas diagnósticas (depressão, ansiedade, bipolaridade,


autismo, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH, dislexia etc.)
deixaram de ser apenas domínio dos profissionais da saúde mental, além dos que já
tínhamos dito que afetam o corpo diretamente.

Ao mesmo tempo em que hoje se tornou quase corriqueiro escutar frases da


seguinte natureza: “sou super ansioso”, “tenho ansiedade”, “sou bipolar”, “aquela
criança não para quieta, é hiperativa” “meu filho fica muito pouco com os amigos, é
antissocial”, “acho que tal pessoa é quieta demais, tem um quadro de autismo leve”
etc.

Nos últimos anos frases como ‘eu tenho’, ‘alguém tem’, portanto que aludem a uma
condição provisória e temporária deixaram de ser empregadas com tanta frequência,
para a escolha predominante do verbo “SER” – “eu sou, ele é”, e não mais o verbo
“ESTAR”. Tal alteração produz formas e novos modos de lidar com o sofrimento,
sobretudo através do processo de identificação e de reconhecimento de si e do
outro.

A atenção que faço aqui se configura como um cuidado a dimensão do trabalho


que cada profissional realiza, sobretudo no campo da saúde mental. Trata-se de
respeitar a prática que cada classe de especialistas. Um desconhecimento ou a
proliferação de palavras sem fundamentos apropriados pode promover discursos,
alterações e impactos enormes em cada esfera do cuidar e na compreensão de
pessoas menos familiarizadas com o discurso científico.
Aula 2. Antes de apresentar as explicações do campo da psiquiatria e as suas formas
de nomear e classificar os sofrimentos, é importante falar de algumas condições a
respeito de saúde e de doença segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

(a) Saúde

É uma definição muito criticada e que sofreu diversas variações na história, ela já
chegou inclusive a ser classificada como ausência de enfermidade, mas, atualmente,
saúde é um estado completo de bem estar biopsicossocial. Isso se refere a um
ambiente social, psicológico, econômico, físico e individual. A interferência de algum
destes fatores, coloca em risco a saúde do indivíduo. O cuidado físico e mental é algo
extremamente importante, pois a forma como lidamos com o nosso corpo interfere
no nosso bem estar e no funcionamento psicológico

Como dissemos, diariamente cada um de nós experimenta desafios que tem


potencial para levar ao comprometimento de nosso bem estar emocional, seja um
compromisso cancelado, o trânsito, uma discussão com um companheiro/ amigo,
uma notícia desagradável, etc. qualquer um destes e muitos outros acontecimentos
do dia a dia podem nos levar a algum incômodo e a algum nível de sofrimento.

As consequências podem ser tristeza, preocupações, irritabilidade, ansiedade,


dificuldade em relacionamentos interpessoais, estresse, sofrimentos em geral.
Quando então isto passaria a se tornar preocupante ao ponto de se convocar um
médico, um clínico ou um psiquiatra? Antes de tentarmos responder a esta questão
outros elementos parecem importantes de serem explicitados, dentre eles: o que
seria a saúde mental e como a psiquiatria entende e classifica o sofrimento.

(b) O que é saúde mental?

1. Termo usado para descrever a qualidade de vida cognitiva e emocional de cada


um;
2. Capacidade de aproveitar a vida com equilíbrio entre as atividades que oferecem
prazer e os esforços e obrigações
3.Aptidão para manter uma conciliação entre as exigências internas (vida emocional
e expectativas) com a realidade externa (exigências e pressões cotidianas)
4. Possibilidade de viver a vida de modo satisfatório e aproveitando ao máximo
possível sem desmerecer a si mesmo e ao outro

(c) As formas de nomeação e de cuidado no campo psiquiátrico: uma


perspectiva histórica
A psiquiatria, assim como outras especialidades da saúde mental, tem dentre as suas
tarefas desenvolver sistemas de classificação que possam facilitar o diagnóstico e a
terapêutica dos transtornos mentais.

O sofrimento consiste em uma experiência aversiva que independe de nossa


vontade e gera um processo de padecimento e mal-estar e um desarranjo que a
psiquiatria passou a nomear de transtornos mentais.

O diagnóstico, por definição, compreende o conhecimento das características de


uma doença e a descrição dos seus sintomas para indicar o tipo de tratamento
adequado, mas também, propor pesquisas teóricas, entrevistas, hipóteses a partir
dos avanços constatados com cada paciente.

Antes mesmo que se criasse a Psiquiatria como disciplina, por volta do século XIX, os
diagnósticos relativos à saúde psicológica eram estabelecidos como: insanidade ou
loucura (hoje conhecidos como maníacos, esquizofrênicos, delirantes, perda do
contato com a realidade); doença dos nervos (histeria, distúrbios de ansiedade,
depressão e somatoformes).

A Psiquiatria nasce da necessidade de proteger, cuidar, investigar, diagnosticar e


tratar o homem e a patologia que o acomete. Phillippe Pinel (1745-1826), médico
francês da psiquiatria moderna, estabeleceu que as doenças mentais seriam
justificáveis por causas naturais, proporcionando aos pacientes um tratamento mais
humanizado.

Ainda no século XIX e início do XX, com as contribuições de Sigmund Freud, o


diagnóstico em psiquiatria recebeu uma dimensão dinâmica, uma separação menos
evidente entre o normal e o patológico. Assim, os grupos clínicos foram divididos em
psicoses (perda de contato com a realidade), neuroses (formas de lidar com os
conflitos diários que apresentam respostas apreensões, ansiedades, angústias) e
perversões (forma específica de lidar com regras, tende a mentir e a manipular).

A dificuldade de diagnosticar é mais evidente nos sofrimentos já que não se dão por
exames laboratoriais e dependem do relato do paciente e da interpretação do
psiquiatra. Isto possibilita, por vezes, divergências entre os profissionais. Por este
motivo, os sistemas classificatórios se oferecem como mais importantes do que em
outras clínicas.
(d) Os sistemas classificatórios em psiquiatria: uma perspectiva histórica e o
impacto do discurso psiquiátrico hoje

A ideia de classificar e catalogar as doenças já existe há muitos e muitos anos, e


surgiu com o intuito de que esta prática facilitasse a identificação da patologia e o
tratamento que deveria ser empregado.

A Classificação Internacional de Doenças (CID), de origem europeia, caracteriza-se


como um sistema classificatório de doenças que se apoiam em observações de
sinais e sintomas baseados em determinados códigos, portanto uma meta de
grupos ou categorias. Ela serve como referência estatística mundial para o registro
de morbidade e mortalidade e para a questão das relações saúde, doença e trabalho
(licenças, seguros, afastamentos, ANVISA para pedido de exame, etc).

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), de origem


americana, é um manual (específico da psiquiatria) que possibilita (a partir de uma
lista de categorias de transtornos mentais e alguns critérios por ele estipulados)
definir um diagnóstico e, a partir disso, traçar possíveis estratégias de tratamento. É
um trabalho de discriminação de entidades clínicas, assim como de demonstração
de prevalência e índice de cada transtorno no mundo, portanto, um manual de base
estatístico. serve como auxílio para pesquisas clínicas e teóricas em saúde mental.

Na prática, os profissionais de saúde de modo geral fazem o diagnóstico com base


no DSM, uma vez que é um instrumento clínico, mas no momento de documentar
este processo para fins burocráticos é necessário que isto seja feito por meio do
código presente na CID, na psiquiatria, os transtornos são identificados pela letra F.

A CID é uma classificação internacional de doenças, tal como mencionado, portanto,


cada especialidade da medicina possui um livro e um código correspondente que
define cada uma das patologias (cardiologia I, dermatologia L, endocrinologia E,
hematologia D, etc.). Assim, se na área de saúde, um profissional que esteja
familiarizado com a CID sabe ao ler em um prontuário médico a sigla F45 sabe que
se refere ao transtorno somatoforme, F32 depressão, F90 TDAH e por aí vai e não
apenas aqui no país, mas se eu abrir um prontuário em qualquer lugar do mundo
acharei a mesma correspondência, mesmo que a língua seja outra.
E vocês devem estar se perguntando: de que modo isto impacta a minha vida?

A história dos sistemas classificatórios não deveria interessar somente aos


profissionais do campo da saúde e, sobretudo, da saúde mental, pois tanto a CID
quanto o DSM:
1. Ilustram os índices de transtornos e as formas de sofrimento da população em
geral;
2. Determinam a forma de tratamento e cuidado que os médicos, os psiquiatras e os
outros especialistas terão conosco;
3. São influenciados pelo contexto político, econômico e social em questão. As
respostas que buscamos na internet, sobretudo quando recorremos ao Google para
saber a respeito de algum desconforto que constatamos em nós ou em pessoas
próximas são pautadas principalmente nestes instrumentos.

Sabe-se que o ato de classificar é algo inerente a qualquer ser humano. Ao abrir o
DSM, por exemplo, não é incomum que as pessoas possam se identificar com um ou
mais transtornos. A tal ponto que não seria descabido perguntar: sofremos mais ou
estamos a cada dia ficando mais saudáveis, já que gastamos mais com saúde?

A psiquiatria moderna oferece alternativas medicamentosas para corrigir os


sintomas e incômodos produzidos pelas manifestações listadas no DSM, mas seria
isso suficiente para tratar os sofrimentos psíquicos e corporais? Dados mundiais a
respeito do sofrimento afirmam que os transtornos mais comuns atualmente são
ansiedade, depressão, insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de
concentração e queixas somáticas (falta de ar, alteração da frequência cardíaca,
questões gastrointestinais etc.).

O tipo de sofrimento e a necessidade de adaptação está ligada também ao contexto


social em que a pessoa se encontra, isto vai desde o círculo de amizades, a relação
com os seus familiares, o trabalho, o país e a cultura em que cada um encontra-se
inserido. A grosso modo:

Desadaptação funcional: leva o paciente/ a pessoa a ter prejuízo ao pleno


desenvolvimento laborativo, incapacidade parcial ou plena de trabalhar, estabelecer
relações afetivas ( estes quadros estão ligados mais a condições que exigem um
cuidado de maior tempo de acompanhamento, com ajuda de um ou mais
profissionais como é o caso: da esquizofrenia, do atraso cognitivo, , do autismo etc.
Desadaptação social: são comportamentos que causam problemas para outras
pessoas, contudo o sujeito acometido por um transtorno pode não se queixar ou não
reconhecer ter um problema. Pode haver agressividade verbal ou física,
comportamento inadequado (esquizofrenia, atraso ou déficit cognitivo,
hiperatividade, alcoolismo)
Sofrimento psíquico: Referido pela própria pessoa; o indivíduo não se sente bem:
mentalmente, com questões existenciais, relacionais ou de autoconhecimento (
depressão, ansiedade, síndrome de pânico, por exemplo.

Saúde mental: é o modo como as pessoas reagem às exigências da vida e como são
capazes de conciliar seus desejos, capacidades, ambições, ideias e emoções
1. Reconhecer os limites e potenciais de si e do outro
2. Evitar consumo excessivo de: álcool, cigarros, medicamentos sem prescrição
3. Manter hábitos saudáveis: horas de sono, atividade física regular, alimentação
4. Reservar tempo de lazer e convivência com amigos e familiares

Não gostaria de deixar de mencionar que diversos psiquiatras são absolutamente


comprometidos com a assistência e o cuidado ao realizar o diagnóstico, portanto
ao escutar o relato do paciente e, muitas vezes, o recurso à medicação se faz
necessário e é a melhor e talvez a única alternativa. Saliento que não pretendemos
aqui estabelecer uma crítica leviana aos profissionais e o comprometimento com
os pacientes atendidos.

O Brasil chegou a ser o maior consumidor de metilfenidato (popularmente


conhecido hoje como ritalina), remédio mais comum para tratar o déficit de atenção
e hiperatividade, por exemplo. Se nos anos 70 a pílula da felicidade passou a ser uma
promessa com o prozac, nos anos 2000 a ritalina foi a mais vendida. A questão é
como ficam as pessoas sem estes recursos, se não cuidarmos do contexto e das
pessoas, como podemos interromper o consumo de medicação? Como cuidar e o
que estaria levando ao consumo excessivo de tais recursos?

Aula 03: A definição de sofrimento ocupa um lugar central na obra de Freud e na


psicanálise. Para ele podemos encontrar as alusões ao sofrimento com base no que
estabeleceu quanto a noção de dor, de angústia, de mal-estar, de inibição, de
sintoma, de masoquismo, de compulsão, entre tantas outras. Ao longo de sua obra
este conceito de sofrimento é desenvolvido a partir de um modelo de formulação
teórica e metapsicológica (termo criado em 1896, para estabelecer o funcionamento
do aparelho psíquico e do comportamento humano) baseado em situações clínicas
e nos atendimentos realizados com os pacientes.
A noção de sofrimento, segundo a psicanálise, configura-se como algo inevitável,
conforme apontou Freud em 1924 em seu texto “O problema econômico do
masoquismo”. Em suas palavras, o sofrimento se origina na relação com o corpo,
com o mundo, com o outro. Em qualquer momento em sua história de vida o
homem se depara com a condição de sofrimento e de sofrer, diante de alguma
situação de medo ou de dificuldade, por exemplo. De acordo com a psicanálise, o
sofrimento possui tanto a dimensão somática/ corporal quanto a dimensão psíquica.
Ou seja, tal como se percebe e como estamos tentando assinalar desde a primeira
aula não é possível separar a dimensão psíquica da dimensão corporal. O sofrimento
é uma condição que se impõe e exige da pessoa um tipo de resolução e alternativa.

(a) A Psicanálise e a questão do sofrimento: elementos de comparação com a


Psiquiatria

Freud, no texto O Mal-estar da civilização (1929), afirma que de algum modo o


mal-estar e a sensação de deslocamento e de infelicidade, não pertencimento está
presente. Em alguma medida estamos sempre insatisfeitos por alguma razão.
Reconhecer este movimento consiste em compreender que não há como realizar
um tratamento psicanalítico que não seja por meio da inclusão e da travessia de dor
e sofrimento, pois esta compõe a constituição do nosso psiquismo/ aparelho mental
em torno do eixo do princípio de prazer e desprazer.

Se para psiquiatria o sofrimento que se manifesta por meio de um sintoma


físico/corporal ou psíquico deve ser eliminado, para a psicanálise, isto não se dá da
mesma forma. Para Freud, é preciso cautela no que diz respeito ao sofrimento e ao
modo como ele se apresenta, isto porque há uma história e uma razão pela qual
aquela pessoa encontra-se nesta condição e com um determinado sintoma, é
preciso falar muito a respeito para que ele se dissolva aos poucos, não se trata de
eliminar, caso isso aconteça, um novo sintoma pode aparecer.

A psiquiatria por muitos anos apostou nesta direção, mas a imposição dos modelos
classificatórios algumas vezes corre o risco de levar o profissional, se muito preso
apenas ao modelo diagnóstico, a uma desatenção a história clínica e mais filiada,
somente, às manifestações sintomatológicas, já que hoje a CID e o DSM, não
dependem da história necessariamente para o tratamento, conforme aprendemos
na aula passada.

Para a psicanálise, o paciente é um sujeito responsável por si e pelos seus desejos,


mas isto não quer dizer que o que o tenha levado a uma condição de sofrimento
tenha sido feito de modo intencional. Se formos pensar a grande maioria, em sã
consciência, não desejaria ficar doente, portanto, dizer que uma determinada pessoa
tenha produzido uma doença ou um sintoma parece bastante imprudente. Ao
mesmo tempo, é preciso reconhecer que, em geral, é o sintoma que leva o paciente
a procurar uma análise.
Então caberia perguntar: o que é o sintoma para a psicanálise? Ele é o efeito
manifesto do mal-estar e do sofrimento e configura-se como um modo de
apresentação. O sintoma então é um termo que Freud importou da literatura
médica onde há algum tipo de sentido e razão para existir, mesmo que o paciente
não reconheça. O sintoma consiste em uma expressão do corpo para dar sinais de
que algo não vai bem e que exige cuidados, ele é frequente e, não raras as vezes,
conforme alertou Freud, pode piorar no início do tratamento analítico.

Para Freud, o perigo sempre está presente em sociedade, portanto, estamos tendo
que lidar todo tempo com as impossibilidades de descarga e satisfação →
Mecanismo de defesa: recursos e estratégias para lidar com esse excesso de energia
do corpo e que sejam melhores aceitos em sociedade, preservando o Eu de gasto de
energia:

Resistência: obstáculo que se opõe à progressão do trabalho analítico durante o


tratamento analítico para tornar consciente certos pensamentos e/ou lembranças
Repressão: processo psíquico que expulsa da consciência, uma ideia dolorosa que
está na origem de um sintoma. A repressão pode atuar numa lembrança
(esquecimento que evita evento perturbador) ou funcionamento fisiológico e
corporal (marcha, impotência, cegueira).

Mas em qual momento se deve procurar um especialista? Podemos pensar em


sinais mais objetivos que auxiliariam as pessoas a procurarem ajuda:

1. Falta de cuidados consigo mesmo;


2.Mudança de personalidade (eu e as pessoas a minha volta já não me reconhecem
como eu era até então);
3. Retração social e isolamento;
4. Ansiedade, raiva, tristeza ou mau humor incomuns;
5. Sensação de desesperança e de opressão;
6. Diminuição no rendimento do trabalho/estudos.

De qualquer forma é sempre preciso avaliar isso com o repertório da própria pessoa,
como aponta Ferenczi: somos sempre estrangeiro na terra/linguagem do outro.

Para Freud (1905), um sintoma surge como um incômodo. Desvendar um sintoma é


complexo pela gama de significados e pelas alterações que este sofre com o tempo
para representar o processo mental inconsciente e para que ele possa se manifestar
e perdurar por longo período. À medida em que se transforma, ele se torna mais
sofisticado para conseguir se manter, o analista determinados fatos e fantasias
relacionados à questão isso vai se desvelando.

A Psicanálise e suas nomeações

Um dos casos mais importantes da psicanálise foi o tratamento do Pequeno Hans


(Herbert Graf) que tinha cinco anos e sofria com uma neurose de angústia, uma
fobia que, de início, manifestava-se por medos de cavalos. Freud não atende o
menino diretamente, mas segue auxiliando o seu pai por um período em que se
sucede a análise do Hans e chega a vê-los algumas poucas vezes em seu consultório.

O motivo pelo qual eu destaco este paciente é porque a fobia, a forma de angústia
que ele apresentava por cavalos nos momentos mais graves do sintoma o impedia
de sair inclusive de casa. Sabe-se que na época os cavalos eram um dos meios de
transportes mais habituais, ou seja, ter uma ansiedade relativa a este animal e não
um outro sintoma era algo compatível com o contexto em que ele vivia.

Isto não é muito diferente de quem desenvolve uma fobia, por exemplo, de avião e
tem que viajar constantemente em decorrência do trabalho. Seu contexto exige pelo
trabalho o uso do avião, a fobia, hoje também podendo ser nomeada pela psiquiatria
como síndrome do pânico, causa tanto sofrimento que a pessoa fica impedida de
enfrentar. O sofrimento e o sintoma parecem fundar a pessoa em sua subjetividade.

Recordo-me de uma paciente que atendi no consultório pouco depois de formada e


outra alguns anos mais tarde que diziam frases de alguma forma um tanto similares:
“Se eu me curar eu morro e eu não quero melhorar”. Ambas eram mulheres na faixa
dos 50 anos e com sintomas corporais. A situação de ambas era bem grave e as
pacientes diziam, cada uma ao seu modo, não haver uma outra alternativa que não a
de conviver com a sua própria doença. Mais do que isso, para elas não parecia existir
outro modo de viver senão acompanhadas por aquelas doenças. Sarar poderia, em
seus entendimentos, equivaler à morte. Isto porque equivaleria a um esforço em
deixar a própria construção de quem se é e abandonar uma possível marca
identitária.

Aqui é preciso mencionar o trabalho do meu colega e alguém bastante importante


em minha trajetória psicanalítica, professor da Casa do Saber, Christian Dunker com
o seu trabalho Mal-estar, sofrimento e sintoma. Gostaria então de apresentar
rapidamente como ele conceitua:
1. Mal-estar seria uma condição mais filosófica e existencialista que deflagra uma
idéia de inadaptação, de incômodo e não pertencimento. A liberdade conquistada
na condição de humano, segundo ele, isso poderia ser positivo se o homem
conseguisse enfrentar de forma positiva para ser quem se deseja. No entanto, de um
modo geral, estamos sempre buscando propósitos, finalidades e o fato de não
encontrarmos isto dado nos leva ao mal-estar, ao incômodo.

2. Sofrimento: tem uma estrutura de narrativa e que se transforma a medida em que


se fala dele, portanto está ligado ao reconhecimento. O outro sofre comigo ou não e
isto me leva a uma identificação da minha experiência e isto leva ao que Dunker
chamou de uma “condição política”, pois eu determino o que e como sofrer, dou
mais valor a uma coisa do que a outra e isso faz com que as pessoas possam se
identificar e passar a sofrer e adoecer daquela forma. Isto, segundo ele, é lamentável
porque é o que temos visto nos dias atuais em que as pessoas se referem pelos
nomes e pelos diagnósticos psicanalíticos ou psiquiátricos para existirem e serem
valorizados no seu modo de experimentar a existência.

3. Sintoma é a expressão de uma contradição, algo que ficou fixado e se repete, com
uma nova roupagem, que nos pega de surpresa, mas que no momento em que ele
se apresenta a gente identifica como algo familiar e repetitivo. É algo muito
particular e subjetivo, único. O que imprime de certo modo a nossa identidade.

Há algo da experiência analítica que se dá na relação, na transferência que quando


transmitida ou comunicada não se dá do mesmo modo, isto é, altera-se no relato. É
como contar algo para um terceiro que na época foi engraçado e vivido por dois.
Algo escapa → risadas.

Um dos meus pacientes teve um filho e ficou duas semanas afastado, ele mora no
exterior e estava me contando da experiência até porque ele está em um país onde
não domina em absoluto o idioma, mas que ele e a esposa teriam conseguido se
comunicar bem. E conforme ele ia me contando a experiência que foi registrar o
filho, ir ao cartório, como ficaria o nome pelas questões impostas pela relação
burocrática do país e a angústia que sentiu, ao final do relato ele me diz: “nossa, eu te
contando nem parece que foi tão difícil e me escutando agora eu me vejo mais bobo
por ter sofrido tanto”.

Há algo da organização, de se ouvir e de se organizar para o outro, ao mesmo tempo


em que o valor da experiência vivida na hora escapa ao discurso e à ordem da
palavra. Mas, certamente poder falar a um outro transforma o modo como a gente
viveu a experiência, ela pode ressignificar-se, que não é o mesmo que contar para
um amigo, para um familiar ou escrever, por exemplo. Diz respeito a dizer a um outro
que não se sabe o que irá pensar, onde posso fantasiar a respeito de suas fantasia
etc.

Para finalizar essa aula, o sociólogo francês Pierre Bourdieu publicou uma obra
chamada O que falar quer dizer. Muito tempo depois, a propósito de suas relações
intelectuais com Michel Foucault, Mathieu Lindon tomou para si a inspiração de
Bourdieu e assim intitulou seu livro: O que amar quer dizer (2014), um livro muito
delicado e sensível que convido todos a lerem. E com base nisso a minha tese de
doutorado recebeu o nome: O que tratar quer dizer, mais do que uma pergunta é o
prenúncio de uma tese que se quer sustentar. Acredita-se que para tratar dos
pacientes é preciso escutar o que eles teriam a dizer, ouvir os seus relatos de modo
que a partir do acolhimento e do trabalho analítico se encontrem possibilidades de
que eles mesmos possam falar a respeito de si (possam se tratar), acolherem o seu
sofrimento. Tratar implica empatia, disponibilidade, tempo, escuta, esforços
conjuntos de nomeação.

Aula 04. Se até o momento nas aulas anteriores abordamos a questão do corpo e a
dimensão do sofrimento, como a psiquiatria e a psicanálise entendem este
problema e cuidam, interessa apresentar como isso comparece entre as crianças e
no ambiente escolar. Aposta-se que quanto antes tivermos atenção aos modos de
mal-estares dos pequenos e uma articulação entre os profissionais, talvez seja
possível em grande medida prevenir que as crianças adoeçam precocemente,
discutir a noção de ambiente pode ser fértil neste cuidado.

A psicanálise partilha com muitas outras ciências a ideia de que o meio que nos
cerca exerce uma condição determinante e fundamental. E para a estruturação do
nosso psiquismo, no caso, deve tratar-se de um ambiente fértil e acolhedor. O
contrário também é verdadeiro, o ambiente desestruturante e deixar marcas
traumáticas que dificultarão a vida social e o convívio da criança desde os tempos
iniciais até a vida adulta.

Devo assinalar que boa parte do que vou mostrar aqui se liga aos trabalhos de Ana
Laura Godinho Lima e às minhas próprias produções de Pós-Doutorado. A educação
em sua proposta de ensinar e cuidar inclui aspectos éticos, morais, sexuais e
religiosos pautados nos valores da sociedade, que participam e interferem no
desenvolvimento e na produção do sofrimento. O tempo de presença dos pais
concorre para organizar e conferir qualidade ao ambiente. E tanto os médicos e
pediatras quanto os psicanalistas de modo geral ressaltam que a diminuição do
dispêndio de tempo dos pais é algo que deve ocorrer de forma gradual.
A psicanálise busca compreender o universo particular no qual o sujeito encontra-se
inserido e em casos de dificuldades visa analisar formas de agir diferentes daquelas
que, por ventura, estão trazendo sofrimento ou impedindo a autonomia. O processo
de crescimento e a autonomia liga-se à capacidade das crianças para conhecerem
os elementos e o mundo que as cerca e para isto contam com a apresentação que os
pais ou figuras responsáveis possam mostrar.

Quanto mais segura uma criança estiver, maior a sua iniciativa para explorar o
entorno e melhor será a sua habilidade para lidar com os problemas. A escola
colabora para que as crianças, pouco a pouco, aprendam as formas de organização
do tempo, determinação de regras, diferenças entre elas e outros colegas, além dos
aspectos de aprendizagem, alfabetização e exploração propriamente dita. O
ambiente escolar é transformador na vida de uma criança e onde os pequenos
passarão boa parte de seu dia a dia.

Os psicanalistas dedicados à infância Anna Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott,


Françoise Dolto destacam que, por melhor que seja o ambiente, ele será falho, é uma
condição do humano e portanto, inevitável. Dizer isto é importante para os pais e os
professores, mais ainda hoje em que a exigência se impõe, pois não se trata de um
espaço favorável que supra todas as vontades e desejos de uma criança e tampouco
que postule que pais e professores devam saber tudo. Atenção às necessidades nos
momentos oportunos. Espera-se também reconhecer que para cada idade as
situações exigem o bebê ou a criança de um modo diferente no que se refere a
cobranças e a obediência a regras. Trata-se de apresentar estes autores brevemente
como forma de pensar uma medicina educativa e pedagógica na prevenção de
problemas.
A percepção da criança e a compreensão a respeito dos perigos que a cercam
dependem de como os genitores apresentam o ambiente e reagem às
circunstâncias. O autor diz: a função da escola maternal não é ser um substituto para
uma mãe ausente, mas suplementar e ampliar o papel que nos primeiros anos da
criança, só a mãe desempenha. A instituição deve ser amorosa e atenta ao que o
pequeno precisa e sem julgar ou reprimir os seus impulsos neste momento.

Para Winnicott, a confiabilidade que o ambiente pode propiciar ao recém-nascido


depende de uma rotina em que eles consigam identificar o que pode ocorrer a
seguir e isto é possível a partir da repetição. Para o bebê, tudo é carregado de muito
estímulo, pois ele não possui registros prévios. A descoberta do mundo é feita a
partir da nomeação e da relação com o outro, por isto o ambiente deve inspirar
confiança para que aos poucos o bebê entenda os fatores externos e as repercussões
que estes podem ter em seu próprio corpo, até hoje reconhecido pela teoria da
maturidade emocional, dependem de paciência para que aquele pequeno ser vivo, o
bebê, consiga sobreviver.

Françoise Dolto, psiquiatra e psicanalista de crianças fez formação inicial como


enfermeira, sucessora de Jacques Lacan. A respeito do cuidado sustentou a
necessidade dos adultos traduzirem em palavras, o seu universo e os seus
pensamentos para as crianças. O seu trabalho analítico consistia em uma forma de
lidar com os traumas genealógicos, pois o nascimento já carregava uma trama
traumática que envolvia o desejo da mãe, do pai e do próprio sujeito. O sintoma
infantil era originário da estrutura familiar.

Em 1979, Dolto criou a primeira Casa Verde que seria adaptada em outros países. A
instituição servia para acolher crianças de zero a quatro anos de idade
acompanhadas de seus familiares que poderiam trocar experiências, sugestões e
atividades que envolvessem expressões corporais em conjunto. O espaço criado
para ser intermediário e transitório entre a relação familiar consistia em um trabalho
de prevenção para evitar futuros traumas que se alocam na entrada da pré-escola.

Para Dolto, a psicanálise e o analista deveriam ampliar a transmissão do seu


conhecimento e atingir um maior número de pessoas, em hospitais e escolas. Falou
em rádios respondendo as dúvidas de pais e crianças. Dolto aposta que, os adultos
mais zelosos e capazes de antecipar possíveis problemas, poderão minimizar o risco
de um evento traumático na vida de um bebê ou de uma criança. Em sua concepção
o ambiente deve envolver adultos amorosos e presentes, sobretudo na relação com a
mãe, o que não significa uma presença constante e sim, a capacidade de
acompanhar e estar ao lado do filho tendo atenção às suas necessidades. Desde
cedo deve-se nomear o que está sendo vivido no entorno para o bebê adquirir
repertório emocional e ser o mais honesto possível. Em seu entendimento muitos
dos sintomas infantis são produzidos por não-ditos a respeito de si mesma. Dolto
enfatizava a existência de uma linguagem corporal precedente à linguagem verbal.

A realidade escolar e o trabalho clínico

Na condição de psicóloga e psicanalista, desenvolvi parcerias com outras áreas do


conhecimento, no hospital e em escolas. Trabalhando no consultório, comecei a
receber encaminhamentos de mães, professoras ou coordenadora de uma escola na
cidade de São Paulo que me procuravam para perguntar se aquela criança teria ou
não um diagnóstico de autismo. Ou se outro aluno era hiperativo. Se ele teria
condições de apreender? Tais experiências fizeram com que eu me desse conta do
quanto nós (psicanalistas, psicólogos, professores, coordenadores pedagógicos)
fomos assimilando a idéia de que deveríamos saber ou garantir uma resposta final
(um diagnóstico e uma nomeação) sobre o que estava acontecendo com aquele
aluno, dadas as apropriações do discurso psiquiátrico pela psicanálise e pela
educação → pressão para dizer se são ou não, esta não é função de
educador/professor/analista.

A facilidade ou fluência com que transitam diagnósticos como: autismo, criança


nervosa (categoria mais antiga e popular) e déficit de atenção e hiperatividade são
exemplos claros da apropriação dos discursos e da circulação intensa dos dados e
referências dos manuais. Uma absorção que encaminha os profissionais da área ao
entendimento de que, quanto antes for possível encontrar traços de alguma
eventual anormalidade e realizar um diagnóstico, talvez o melhor possa ser feito pelo
aluno e para a escola. Cabe citar os dados trazidos por Frances (2016, p.135) quanto às
crianças:
Nos últimos 15 anos, houve quatro epidemias explosivas de transtornos
mentais. A bipolaridade infantil cresceu miraculosas quarenta vezes, o
autismo exorbitantes vinte vezes; o déficit de atenção/hiperatividade
triplicou (...). Sempre que as taxas disparam, uma porção do aumento
representa casos verdadeiros antes não detectados indivíduos que, de fato,
necessitam do diagnóstico e do tratamento que lhe sobrevém. Todavia, um
diagnóstico mais preciso não explica o fato de que tantas pessoas, em
especial crianças, subitamente parecem estar adoecendo.

Trata-se de refletir sobre como a disseminação dos diagnósticos e dos tratamentos


que os acompanham alteram a educação, o convívio, as formas de entendimento e
as expectativas de transformação dos sujeitos pelo recurso aos conhecimentos. A
importação conceitual e apropriação de classificações engendram hoje um excesso
de diagnósticos visível na área escolar e de consequências nem sempre previsíveis.
Quem são estes sujeitos, quem são os alunos, assim muitas vezes injustamente
classificados? Seria possível conter o ímpeto classificatório e inventar outros modos
de lidar com as crianças consideradas difíceis, desafiadoras para os pais e
professores?

Tais informações tornam-se relevantes, pois quando as formas de nomeação


apresentadas pela psiquiatria geram diagnósticos como: “criança-problema”,
disléxico, hiperativo, autista, entre outros e eles passam a integrar discursos
incorporados pelos educadores, corre-se o risco de produzir estigmas e efeitos
consideráveis e de difícil transformação para aqueles identificados rapidamente
como tais.
Além disso, o perigo é que os cuidados aos alunos que, de fato, poderiam precisar de
atenção podem passar despercebidos ou estes podem não obter os recursos
necessários. Os diagnósticos tendem a influenciar o modo como o entorno lida com
o próprio paciente/aluno e isso conduz a um maior ou menor grau de investimento
naquela criança, seja uma dedicação excessiva ou um distanciamento.

A expansão e divulgação dos diagnósticos de transtornos psiquiátricos vêm


afetando, portanto, as práticas e relações na educação escolar. O efeito disto é a
reprodução de frases como: eu sou depressivo; eu sou bipolar, eu sou ansioso, eu sou
hiperativo e não mais a uma condição provisória que seria constatada em frases: eu
tenho isto ou eu tenho aquilo. As pessoas passaram da condição de terem para a
compreensão de serem. A alteração do emprego dos verbos produz uma forma de
se determinar um sofrimento e um estilo de vida. Ou seja, um consenso de que
porque eu sou uma pessoa hiperativa eu sofro de uma forma, como se já houvesse
um modelo pré-moldado.

Os educadores que passam a se preocupar em transformar a escola em um espaço o


mais acolhedor e adequado possível às necessidades das crianças voltam sua
atenção para materiais e objetos concretos para cada etapa da vida e também para
as formas de cuidado.

O que estamos fazendo com e pelas nossas crianças? No que diz respeito à antiga
escola primária, embora os médicos reconhecessem a sua necessidade para o
desenvolvimento e para a preservação da sociedade faziam ressalvas quanto ao
regime disciplinar que exigia muita dedicação à aprendizagem de conteúdos
formais mantendo o corpo imóvel.

Contrariando o que seria natural para a qualidade de vida na infância, estamos


mantendo corpos cada vez menos exercitados seja pelo momento de
entretenimento (exposição a telas, no geral) ou pelo formato em sala de aula onde
impera a disciplina e a capacidade de concentração sentada na cadeira. Se antes
havia onde gastar o excesso de energia natural da infância, hoje os espaços
encontram-se limitados dentro e fora da escola. A imobilidade e agitação dos corpos
ainda é alvo dos debates atuais acerca da capacidade de concentração e
aprendizagem.

Quanto mais à vontade ela estiver melhor será a capacidade cognitiva de absorver
novos conteúdos. Convém lembrar que a escola é o espaço no qual as crianças
passarão boa parte de seu tempo e terão as suas primeiras relações extrafamiliares.
Trata-se de um local onde as narrativas e os diálogos devem acolher tanto o seu
modo de pensar e perceber o mundo quanto um sofrimento eventual.

Neste processo podem começar a aparecer tensões e questões relativas ao ambiente


familiar e às diferenças de convívio na sociedade entre os alunos. A escola mais do
que a saída da família é também para a separação do outro e a construção de si. A
instituição também tem conhecido os novos modos de sofrimento: crianças mais
silenciosas, mais violentas, mais apáticas, mais agitadas e que, ao mesmo tempo,
pedem contenção para a compreensão dos próprios anseios e angústias.

Por vezes, hoje, os alunos parecem carecer da possibilidade de construir narrativas


que manifestem as suas angústias, insatisfações, descontentamentos. Sustenta-se
uma articulação e união entre os profissionais de modo a acolher os eventuais
sofrimentos vividos na escola, pois deste modo acredita-se que os professores, os
pais e poderão ocupar-se de suas funções de cuidadores, responsáveis e educadores
deixando para segundo plano as nomeações e os transtornos.

O professor não precisa se ocupar em fazer um diagnóstico daquela criança, por


exemplo, para saber se ela está com um determinado transtorno com tal ou qual
nome, mas pode perceber se o seu comportamento se alterou no decorrer do
tempo, conversar com os pais e verificar como ela se encontra sozinha e na
companhia de colegas a fim de identificar se algo diferente aconteceu. O ambiente
educacional escolar certamente tende a produzir marcas fundamentais na vida da
criança que passa boa parte do tempo na instituição. Aos pais, cabe confiar nos
profissionais aos quais delegaram esta função e observar quando algo diferente
ocorrer, na vida da criança, por exemplo: uma mudança de casa, a perda de um ente
querido, uma separação etc. E comunicar a escola, principalmente nos primeiros
anos de alfabetização, quando os adultos tendem a minimizar o fato de que uma
alteração na rotina possa ter impacto na vida emocional e na aprendizagem das
crianças.

Médicos, especialistas e professores: escrever manuais para difundir


conhecimentos

A fim de compreender o que vem ocorrendo nos últimos anos quanto a


popularização do discurso científico e o sofrimento, na minha pesquisa de
pós-doutorado realizei uma análise da Revista Pais & Filhos, um magazine brasileiro
publicado desde 1968 e de ampla divulgação que tem o intuito de dirigir-se à família
e traz temáticas como gravidez, orientação de pais, sempre ancorada na fala de
especialistas e de genitores que possam relatar a sua experiência a fim de tornar o
discurso mais fidedigno e próximo de seu público. As traduções dos conhecimentos
médicos, psicológicos e outros, combinadas a sínteses de experiências acumuladas
historicamente que fazem parte de um senso comum vem sob a forma de
conselhos, normas de conduta e recomendações.

Os aconselhamentos estendem-se inclusive para que os pais tenham condições de


verificar se algum comportamento diferente tem sido apresentado por seus filhos,
seja por meio de timidez, tristeza, birra, ansiedade, inquietude ou qualquer outra
percepção similar. A atenção a comportamentos e manifestações que talvez
pudessem passar despercebida pelos pais menos familiarizados com esse discurso é
despertada, como forma de antecipar eventuais problemas. Caso alguma destas
atitudes das crianças sejam constatadas, busca-se indicar a quem recorrer. Ou seja,
as revistas e os manuais de ampla divulgação, e inclusive o DSM, fazem observar
uma listagem de sintomas, intensidade e duração que possam servir de alerta. Essas
orientações oferecidas aos pais e professores faz com que esses se sintam cada vez
mais atentos às necessidades da criança ou bebê.

Associada a esta questão, figura uma preocupação de que crianças desde cedo
sejam as mais produtivas possíveis, o que parece ser uma preocupação típica da
modernidade. Pensar em estratégias para fazer render o maior número de
atividades, aprender muitas coisas em um curto período, desempenhar inúmeras
funções simultâneas, consumir o maior volume de informações e entretenimentos
são questões que se tornaram cada vez mais presentes e passaram a integrar
padrões saudáveis de desenvolvimento. Sabe-se que a passagem do tempo para
cada sujeito e para cada etapa da vida é experimentada de modo muito particular →
qual escola colocar o filho de 7 anos para o vestibular?

Quanto antes melhor. Será mesmo? Alianças, portanto, entre pais, professores,
educadores, pediatras, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas são incentivadas. A
nomeação do sofrimento psíquico para os indivíduos ajuda a diminuir parte da
angústia diante de emoções e sentimentos que, por vezes, não encontram formas de
tradução prévia e que tem a sua determinação por questões subjetivas. Em
contrapartida, os esforços pela objetivação e quantificação do sofrimento produzem
um número cada vez maior de fragmentações.

Convém questionar: é mesmo necessária a grande quantidade de prescrições e


diagnóstico que vem sendo aplicada às nossas crianças? Ou manifestar interesse,
fazer um acompanhamento mais sistemático e favorecer espaços de convivência
entre pais e filhos, alunos e professores, talvez fosse o suficiente, na maioria dos
casos?
Aula 05. O que é tratado aqui ancora-se nos estudos do período em que estive como
membro do Laboratório de Filosofia, Psicanálise e Teoria Social (Latesfip da USP)
coordernado por Christian Dunker, Nelson da Silva Junior e Vladimir Safatle.

(a) Algumas características possíveis para a definição de neoliberalismo (de


novo, não pretendo falar de todas, não seria possível)

O neoliberalismo surge a partir da década de 70 e reforça a defesa da ausência de


uma intervenção excessiva do Estado para a economia, que de certo modo já estava
presente na política liberal. No entanto, enquanto os liberalistas se preocupavam
com as liberdades individuais, o livre mercado e a mínima participação estatal
destinado à produção; os neoliberais reforçam a restrição ainda mais enfática da
presença do Estado, mas a favor da circulação de capital estrangeiro e das
privatizações visando o lucro do mercado financeiro a partir de investimento das
empresas internacionais no país.

Há uma redução da participação do Estado neste modelo neoliberal, como inclusive


já assinalamos, mas sem dúvida nenhuma, ela não foi feita no intuito de abrir mão
do controle simplesmente. Há um cálculo em como operar esta política, quem são as
empresas que passam a fazer parte deste movimento, etc. Os efeitos práticos são
mais impactantes inclusive para o Brasil:

(1) flexibilização de leis trabalhistas, diminuindo a atuação dos sindicatos (que passa a
depender da negociação entre patrão e empregado);

(2) redução de impostos e gastos públicos (o reflexo disso é que o país só precise
pagar o mínimo para cumprir os requisitos e com isto, faltem investimentos e
cuidados na educação creches, escolas, bolsas no país vacinação por exemplo
pandemia / na saúde sistemas únicos de saúde, medicações de alto custo e na
cultura falta de investimento);

(3) abertura econômica para a entrada de multinacionais no país (e fechamento de


empresas nacionais com menos capital financeiro e a dependência do investimento
externo que pode a partir de algum momento retirar essa participação -
instabilidade);

(b) Por que o neoliberalismo pode ser produtor de sofrimento?


Busquemos fazer o seguinte exercício: Há meses você vinha apresentando sintomas
de forte preocupação, choro fácil e dificuldade excessiva dormir e julgava que iriam
passar. Até que um dia, por conta dessas dificuldades você não conseguiu ir ao
trabalho justamente em um dia importante, acabou passando a noite em claro,
adormecendo pela manhã e, quando acordou já havia perdido a reunião e estava
com fortes dores de cabeça e dores no peito. Marcou, enfim, um psiquiatra por
recomendação de um amigo. Você pagou um valor considerável e saiu com uma
prescrição médica para tomar um determinado remédio por duas semanas e depois
dobrar a dosagem e mantê-la por três meses.

Ainda neste exercício de imaginação pensemos: este profissional para lhe receitar tal
medicamento perguntou somente o motivo pelo qual o procurou e há quanto
tempo vinha sentindo os sintomas. Você tentou contar algumas coisas mais
detalhadas ou dar informações que julgava importantes, mas você não teve tempo.
Ao sair do consultório sente-se um pouco frustrado, confuso e inseguro.

E aí pergunto a vocês: mas o médico deveria querer saber mais? Os sintomas


apresentados sempre se resolvem com determinados remédios e assim ele o fez.
Essa história fictícia é a lógica a que pouco a pouco a prática dos manuais
psiquiátricos correm o risco de se limitar. Uma racionalidade na qual não é preciso
conhecer a história do paciente e o contexto dos sintomas de forma detalhada. Isto
porque parece que se acredita que a situação econômica, cultural e política não
interfere necessariamente na classificação diagnóstica.
Gostaria de ressaltar que, é óbvio, nem todos os médicos são assim, inclusive,
conheço muitos psiquiatras cuidadosos com atendimentos e preocupados com os
seus pacientes, antes e ao longo do tratamento. Agora ainda no nosso exemplo:
imaginemos que você estivesse no Brasil nos tempos da pandemia ou na Nova
Zelândia (país em que os primeiros casos de COVID no mundo foram controlados e
depois extintos). Ainda assim, a gente prescreveria do mesmo modo, faria o
diagnóstico excluindo qualquer uma destas diferenças? Este é apenas um exercício
fictício. Ainda assim, parece preocupante excluir a subjetividade, o que estaria
acontecendo na vida do paciente, qual era a situação política e econômica no país e
seu impacto a vida desta pessoa.

Busquemos então tornar o exemplo mais verídico, se assim desejarmos: como fica
uma pessoa que para receber um diagnóstico de luto patológico (aquele que
perdura por um tempo excedente ao esperado) precisava de um ano desde a perda
de um ente querido? E agora, que na ótica da psiquiatria atual (DSM-5) considera
que o luto, se torna luto patológico quando a pessoa ainda sofre com a perda de um
ente querido depois de duas semanas. É possível assimilar uma perda extremante
significativa e ficar bem em 14 dias? A serviço do que estaria então essa proposta?

Pensar o corpo neoliberal e sem significação contribui para que este se torne cada
vez menos investido cada vez mais como um recurso para o trabalho, portanto, para
a produtividade. Assim, diante de um breve incômodo o melhor a ser feito, na ótica
neoliberal é recorrer a ansiolíticos e antidepressivos, por exemplo, deixar o incômodo
de lado e voltar a identificar-se com os demais pares e colegas de trabalho. Qualquer
coisa que seja contrária a esta prática deve ser suprimida.

É possível questionar: você está me dizendo que o corpo se torna cada vez menos
investido em um tempo em que se fala tanto do culto ao corpo, do cuidado com a
saúde, com a alimentação, com o exercício físico. Isto é não incoerente? Não. Posso
falar dos cuidados, da importância de praticar exercício físico como garantia de
saúde, mas a preocupação com esse bem-estar deve ser a de permitir trabalhar mais
e, portanto, ser mais rentável e produtivo para o mercado. Nesta lógica neoliberal, os
discursos de normalidade e normatização do DSM se organizam a partir da lógica de
inclusão, ou não de sintomas para a determinação de um transtorno. O mesmo está
presente em uma prática do mercado de trabalho, que leva em conta a
produtividade e os índices para que sejam incluídos (contratados e mantidos) ou
excluídos (demitidos) os trabalhadores.

Se o que passa a determinar a prática das vagas contratuais é o quanto um


funcionário é capaz de produzir e entregar para demonstrar a sua capacidade de
manter-se na empresa e essa medida é mensurada pelos índices de vendas,
quantidade de idéias, número de documentos produzidos, contratação de clientes,
etc. Interessa valorizar quem renda mais e quem tenha disponibilidade e energia
para as tarefas.

Assim, gestantes e mães (uma vez que seus filhos podem ficar doentes e elas são
obrigadas a se ausentar) ou pessoas menos jovens, certamente podem ter os seus
cargos ameaçados em trabalhos cujos regimes não são por meio de concursos
públicos que, tendem a desaparecer nas sociedades neoliberais em que a obrigação
do estado passa a ser reduzida ao mínimo.

Se o que se quer e se valoriza são altas performances e muito volume de trabalho,


alguém que não se importe com horários, fins de semana ou levar tarefas para casa,
incentiva-se a identificação com o que popularmente ficou conhecido como os
“workaholic”. Passa-se a naturalizar o vício no trabalho, pois o risco é que caso não se
tenha disponibilidades para responder as mensagens e e-mails de forma imediata,
isto coloque o seu emprego em xeque.

Quadros como a mania, por exemplo, também passam a ser associados já que neste
transtorno a excitação e a energia para o trabalho pode ser um dos benefícios,
portanto o transtorno-afetivo bipolar que pode ser associado a este sofrimento pode
ter uma função positiva. Ainda nesta direção em que a sua função está sempre em
risco, porque as pessoas podem ser demitidas a qualquer momento, o que se produz
são sentimentos de forte insegurança, paranoias de que uma reunião pode
representar uma comunicação de desligamento da empresa. A relação entre os
colegas também fica fragilizada, pois a fantasia é a de que eles possam ter algum
tipo de comportamento que prejudique uns aos outros para obterem vantagens e,
portanto sensações de ansiedade, angústias podem ser mal-estares presentes e
efeitos deste modelo onde os vínculos empregatícios não produzem garantias.

Há algumas décadas, o funcionário valorizado era o que tinha maior tempo de


trabalho na empresa, pois isto representava confiança, comprometimento e
segurança. Hoje, é raro encontrar pessoas que estejam há mais de dez anos em uma
mesma organização, inclusive porque se torna caro manter um trabalhador por um
longo período em função dos seus direitos; quanto menor o vínculo, menos custo as
empresas são obrigadas a ter.
Ao mesmo tempo que se estimula que os candidatos sejam especializados e
tenham experiências prévias, o que gera mais competitividade, formar-se também
passa a custar mais caro, para os trabalhadores acaba sendo uma equação
complexa: especializar-se ou não?

Tomemos o exemplo das faculdades particulares em São Paulo. Há pouco mais de


dez anos, cada uma delas tinha um ou mais donos, mas eram independentes entre
si, os salários dos professores eram significativamente melhores e os regimes de
trabalho também. De um tempo para cá, a maioria delas foram vendidas para dois
ou três grupos internacionais, os cursos ficaram pautados em apostilas e os docentes
não têm mais liberdade para produzir o conteúdo programático, o salário dos
professores reduziu-se bruscamente, já que o valor da hora aula caiu pela metade, o
quadro mínimo de professores doutores é mantido por exigência do Ministério da
Educação, predominando maior número de especialistas e doutores no quadro de
contratados.

A cada semestre há uma apreensão, nas últimas semanas, para saber quem serão os
professores demitidos (certamente haverá uma quantidade razoável), etc. Então a
solução seria ir para uma faculdade pública? Ledo engano, quase não há concursos
para novos professores, os salários estão defasados, a quantidade de bolsas no país é
absolutamente mínima e os contratos que abrem atualmente são altamente
concorridos e em geral, para vagas temporárias.

Isto porque, novamente, o Estado não tem mais uma responsabilidade tão grande
no investimento. Ainda a respeito do nível de capacitação de professores, cabe
perguntar quais as diferenças na aprendizagem dos alunos que se formam com
especialistas sem experiência prévia de docência ou com professores com anos de
trabalhos, pesquisas e formação acadêmica? Não estou reduzindo ou
desqualificando um mestre e tampouco um especialista, mas existem determinados
cursos e profissões, por exemplo, a própria psicologia e psicanálise, em que
supervisionar e cuidar do caso de um aluno ou de um paciente em uma clínica
escola com anos de experiência é muito importante de prática.

Estes exemplos servem para que possamos entender como a sociedade neoliberal
produz determinados tipo de sofrimentos condizentes com o que se vive e se
estimula na relação com o trabalho e que isto acaba por ter reflexos, inclusive, em
relacionamentos interpessoais. Posso pensar que é muito bom ter vínculos menos
definitivos no trabalho, afinal, eu não quero necessariamente me prender por muitos
anos em uma mesma empresa, quero ser livre. Isto de fato parece tentador, mas será
que tem a mesma significância quando se tem 20 anos e saiu do mercado de
trabalho e quando se tem mais de 50/60 e a saúde, as necessidades se tornam
maiores em função dos cuidados com o corpo, com médicos, por exemplo?

Nesse modelo, se é assim no trabalho, porque as pessoas irão se prender a


relacionamentos longos e duradouros? Por que continuar se tenho
desentendimentos na minha relação e posso abrir um aplicativo de paquera e sair
com outras pessoas? Por que devo ter resiliência e admitir meu erro, se posso
simplesmente desistir e ter um novo parceiro ou, por que devo aceitar ganhar
menos se sou obrigada a ser extremamente performática e entregar resultados altos
no meu cargo?

Certamente também devo exigir o mesmo em meu relacionamento amoroso. Não


estou dizendo que não deva ser verdade, mas estou colocando em questão o padrão
e o nível de comportamento e tolerância que isso vai atravessando em nossas vidas,
levando a sofrimentos que não são isolados, mas vinculam-se a uma condição e a
um contexto cultural e socioeconômico. Sentimentos de inadequação, de culpa, de
cobrança e de solidão também servem como reflexo deste processo e desta
condição onde não há vínculos e apoio, confiança para partilhar as tensões e os
medos do cotidiano e com isto os sintomas corporais, os sofrimentos.
Isto sem contar as redes sociais que fazem um apelo evidente em explicitar e
demonstrar um recorde da vida das pessoas onde, a suma maioria aparece em
momentos de entretenimento e viagens e com fortes insinuações de felicidade e
satisfação, fazendo com que as outras pessoas tendam a comparar as suas vidas e a
se sentirem em desvalia ou menos satisfeitas do que antes.

Se as fotos e publicações tendem a levar a este tipo de sentimento, que não raro
também se apresentam ou se intensificam quando o internauta constata que não foi
convidado ou não participou de um determinado evento/festa. Estas emoções
certamente se tornam ainda mais fontes de sofrimento no caso de adolescentes,
para quem a importância e a representação do grupo é ainda mais determinante.

E por fim, a condição que gostaria de colocar como fonte de possível sofrimento
decorre do uso da inteligência artificial. Certamente esta ferramenta traz benefícios e
eles não devem ser ignorados. Mas, o que interessa aqui é pensar o que este tipo de
ferramenta pode suscitar quando uma pessoa perde o seu companheiro e utiliza das
cartas por ele escritas para torná-lo presente e diminuir o mal-estar de sua ausência,
tal como foi um dos episódios de um seriado de televisão.

Prevalece neste exemplo, a idéia de que a dimensão do tempo e a perda possam ser
amenizadas, o que pode levar a produzir conforto e diminuir a saudade e a solidão.
Ao mesmo tempo, tal recurso pode levar as pessoas que tenham mais dificuldades
em lidar com o afeto, com a saudade e com o luto de ter perdido alguém a não ter
que enfrentar ou a recusar em parte o ocorrido. O exemplo faz com que as pessoas
tenham frustrações e tipos de sofrimento dos quais não falam.

Outra fonte de potencial adoecimento pode ser o whatsapp, um recurso que faz com
que a gente se sinta conectada e permite que possamos contatar uma pessoa
rapidamente onde quer que ela esteja e a qualquer hora, mas em contrapartida faz
com que as pessoas posterguem encontros reais por terem a falsa impressão de
estarem ligadas umas às outras. O risco é que essas ausências deixem traços difíceis
de serem identificados como responsáveis pela solidão, pelo afastamento, pela
desconexão e produzirem silêncios, sofrimentos e prejuízos ainda maiores.

Dores de cabeça, enxaquecas, sintomas gastrointestinais, sexuais, cardíacos,


respiratórios, alergias são alguns dos que dominam os consultórios médicos de hoje.
Ou ainda, sintomas de burnout, também conhecido como síndrome do
esgotamento profissional que conduz o trabalhador a uma condição elevada de
estresse e desgaste pelas condições relativas ao emprego que se refletem na saúde
física, mental e na satisfação na vida e com o trabalho. Tudo isto leva a pessoa a ter
dificuldades em desempenhar tarefas que outrora realizava com extrema facilidade.
Trata-se de um tipo de sofrimento em que a categoria dos professores é uma das
mais afetadas, produzindo elevados índices de afastamentos e licenças. Um
resultado alarmante que justificava o sofrimento pelo ambiente físico e emocional
de trabalho e o excesso de carga horária.

Esse quadro amplo demonstra quanto estamos sujeitos ao sofrimento físico e


corporal e mostrado também que não se trata de um quadro isolado ou de
responsabilidade de quem adoece. Passemos então a apresentar e problematizar as
possíveis estratégias de atenção e cuidado como formas de intervenções
terapêuticas.

(c) Estratégias de cuidados e intervenções terapêuticas

O modo como os profissionais de saúde e os meios de comunicação tem permitido


falar a respeito do tema do sofrimento, sem dúvida é fundamental para que as
pessoas se identifiquem e se sintam, inclusive, de certo modo, menos solitárias em
seus sofrimentos psíquicos e corporais. Embora se saiba que ainda existam estigmas
para quem recorre a um psiquiatra e não é impossível ouvir expressões como: tomar
remédio é coisa de gente fraca, psiquiatra é para “gente louca”, “terapia para quê se
eu tenho amigos?” etc. Mas, isto está cada vez menos recorrente, pois o recurso aos
tratamentos físicos e mentais está mais acessível. No entanto, mesmo que em
declínio e com maior acesso à internet, ainda se constatam desinformações e
desconhecimentos quanto à temática dos sofrimentos psíquicos, ainda hoje muitas
pessoas sofrem de modo solitário por receio de buscar ajuda profissional.

Acredita-se que para tratar dos pacientes é preciso escutar o que eles teriam a dizer,
ouvir os seus relatos de modo que a partir do acolhimento e do trabalho analítico se
encontrem possibilidades de que eles mesmos possam falar a respeito de si, assim
como, eu enquanto analista e pesquisadora adquiro condições de escrever acerca do
que configura tais modos de sofrimento., partilhar o que pode ser útil para outras
pessoas. Tratar implica empatia, disponibilidade, tempo, escuta, esforços conjuntos
de nomeação.

O sofrimento perde espaço para a eficácia e a performance em curto espaço de


tempo, então tudo deve ser aproveitado ao máximo. A psicanálise e a medicina
narrativa sugerem trocar o tempo curto das soluções diagnósticas correntes pelo
tempo estendido da atenção ao outro e a si. A transmissão entre as gerações
familiares, antes extremamente valorizada para a aquisição de conhecimentos
políticos e sociais, aos poucos se enfraquece e o reflexo disso é a impossibilidade do
sujeito narrar histórias e de se apropriar do que se passa com ele mesmo.

Não se trata de excluir os psiquiatras, as classificações e tampouco em recriminar a


lógica diagnóstica, mas de sustentar que a dimensão do sofrimento pode ser
cuidada a partir de estratégias de atenção e garantia de vínculos, inclusive com os
psiquiatras. Já diria Freud: o que trata é a figura do médico, a relação. Os gestores, os
educadores, os pais não precisam se preocupar com termos psiquiátricos, mas em
ter atenção às pessoas com as quais convivem e em se interessarem umas pelas
outras e, sobretudo, que isto ocorra de modo genuíno. Possivelmente, este tipo de
atitude antecipa eventuais problemas de sofrimento e solidão vividos na escola, no
trabalho, na família, entre amigos. As relações de confiabilidade permitem que as
pessoas recorram umas às outras nos momentos aflitivos e de desamparo e nestes
instantes sim, poder pensar em um tipo de ajuda e respaldo especializado pode ser
fundamental.

Ter espaços para expressão, narrativa e compartilhamento concorrem para dar voz às
aflições e angústias e ameniza os sintomas dos que adoecem. E certamente alivia
períodos de estresse. Isto não significa dizer que os problemas serão superados ou
que não haverá mais momentos de solidão e desamparo, mas quer dizer que eles
serão vividos de outro modo se houver rede de apoio e muitos deles talvez deixem
de existir ou se amenizem bastante.
CURSOS DA CASA DO SABER +
Uma seleção de cursos que vai ajudar a solidificar os aprendizados colhidos
em Sofrimento Psíquico na Atualidade, passando por temas pertinentes ao
momento atual pela perspectiva da Psicanálise e da Filosofia.
VÍDEOS NO CANAL NO YOUTUBE
PARA VOCÊ CONTINUAR APRENDENDO

INDICAÇÕES DE LIVROS
A CURADORIA INDICA
ANOTAÇÕES

___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________

Você também pode gostar