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Formação em Teologia

Volume 16

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Formação em Teologia

Livros poéticos

I Cantares
Também conhecido como Cântico dos Cânticos, o Livro de Cantares até hoje
é objeto de muita controvérsia:

“Talvez nenhum outro livro bíblico tenha sido lido de modos tão
diferentes ao passar de um período para outro. Na Idade Média, poucos
interpretariam o livro relacionando-o à sexualidade humana. Na
verdade, fazê-lo era perigoso e poderia resultar em excomunhão ou
coisa pior (Pope, p. 112-6). Hoje, a maioria dos cristãos acha esse tipo de
abordagem natural e sensata. Contudo, é correto interpretar Cântico
dos Cânticos de forma ‘não-teológica?’. Por que um livro que apresenta
tais implicações obviamente eróticas está no cânon?” ¹

II Três Principais Interpretações

Primeira interpretação - Utilizada por judeus, que interpretam como sendo o amor
entre Deus e Israel, assim, é um livro que explica a relação de Deus com o povo
israelita. É importante notar que nas canções/poemas, a voz principal é da mulher,
nesse caso, a voz do povo de Israel.

Segunda interpretação - Usada pela maioria dos cristãos, ecoa a explicação de


Paulo, na Carta aos Efésios (5), sobre o mistério do amor de Deus pela Igreja, que
tem a voz principal e que suspira de amor pelo seu Deus.

Terceira interpretação - Lança um olhar sobre o livro como sendo uma coletânea
de poesias que mostram o amor de um casal como um presente de Deus.

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III Gênero
Duas direções disputam entre os estudiosos a primazia sobre qual seria a
melhor estrutura do Livro de Cantares. São elas:

Drama - A primeira possibilidade é tratar o livro como um “drama”, com três


personagens: o Noivo (Salomão), a Noiva (Sulamita) e as filhas de Jerusalém (que
funcionam como um tipo de coro). O primeiro obstáculo que surge no texto é a
dificuldade em precisar quantos personagens existem.
Considerando Cantares um drama, o enredo está centrado no amor entre o
rei e a mulher. A história desenvolve-se desde o primeiro encontro e as expressões
de afeto até o casamento (frequentemente associado a 3:6; 5:1). A relação é
perturbada logo após o casamento, mas, no fim, (8:5-14) o laço que os une mostra-
se leal e profundo. Como dissemos, existe uma discussão sobre qual é a melhor
forma de olhar para o Livro de Cantares. Abaixo seguem as principais dificuldades
em considerar Cantares como um drama²:

• É impossível atribuir passagens a personagens específicos, e essa


ambiguidade fica clara no debate entre as correntes defensoras de dois ou
três personagens. Deveria ser fácil reconhecer o total de personagens num
drama, e essa dificuldade prejudica a abordagem dramática.

• O livro não traz aspectos, em geral, associados a uma narrativa. Entre os


defensores de uma abordagem focada no enredo do livro, há certa confusão
em relação aos eventos e atos da peça. A única consistência real está em
situar o casamento antes do primeiro ato sexual do casal (Ct 4:16; 5:2).

• Positivamente, os poemas de amor da Mesopotâmia e do Egito exibem


semelhanças interessantes com Cantares.

• A abordagem dramática falha de modo mais evidente ao não conseguir


demonstrar uma clara estrutura de enredo.

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Poemas de amor - A segunda possibilidade é olhar para o livro como uma


coletânea de poemas de amor, ou seja, trechos poéticos que exaltam o amor
compartilhado entre um homem e uma mulher. Por exclusão dos argumentos
acima, consideramos ser mais coerente adotar esta posição ao nosso estudo.

IV Contexto histórico

O livro é “uma coletânea de cânticos, e não uma narrativa unificada. Tal


condição deixa aberta a possibilidade (embora não a resolva) de que Cantares é
uma antologia de poemas de diferentes autores e diferentes épocas.”² Por isso
existe dúvida entre os estudiosos quanto a Salomão ser o autor de todos os poemas.

V Interpretação alegórica
Algo deve ser esclarecido quanto aos tipos de interpretação anteriores, se
considerarmos o livro uma coleção de poemas de amor entre Deus/Israel, ou entre
Cristo/Igreja, trataremos o livro como uma alegoria. Qual é a consequência disso?
O Targum, de Cântico dos Cânticos (séc. VII d.C.), é um exemplo de interpretação
alegórica feita pelos judeus. Ao considerar os poemas uma alegoria, na perspectiva
judaica, Cantares se torna uma história da redenção.
O Targum ensina que o livro é a história do amor que Israel tem por Deus,
mas que é atrapalhado pelo pecado da nação. O livro é dividido em cinco partes,
referentes a cinco períodos históricos diferentes:

“Beija-me com os beijos de tua boca; por isso, as donzelas te amam.


pois melhor é o teu amor que o vinho. Leva-me após ti, apressemo-nos.
Suave é o aroma dos teus perfumes, O rei me introduziu em suas recâmaras.”
como perfume derramado é teu nome; (Cântico dos Cânticos 1: 2-4)

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O Targum trata esse texto como referência ao Êxodo, assim, Deus estaria
tirando o povo do Egito e o colocando em suas recâmaras (terra prometida).
Não apenas a tradição judaica trata cantares como alegoria, a tradição
cristã antiga faz o mesmo. A história mostra que muitos cristãos do primeiro século,
como Orígenes e Jerônimo, aderiram a essa abordagem. Hipólito (200 d.C.)
interpretou o texto acima como sendo Cristo conduzindo os salvos à igreja.
Noutro exemplo, extraído do livro Introdução ao Antigo Testamento, os
autores² analisam a interpretação do capítulo 1:13, de Ciríaco de Alexandria:

“O meu amado é para mim um saquitel de mirra, posto entre


os meus seios.”

Interpretação: os seios são símbolos do Antigo e Novo Testamento, enquanto o


saquitel de mirra é Cristo ("posto entre ambos os testamentos”).

VI Consideração crítica
Em parte, podemos explicar essa migração do significado imediato para um
significado espiritual ou alegórico em consequência dos pensamentos filosóficos
que influenciaram a mentalidade cristã. Pode-se notar o dualismo platônico,
estoicismo e cultos helenístico-romanos entrando no ambiente cristão e resultando
numa visão do corpo como mau e pecaminoso, portanto, o ele passa a ser tratado
de forma severa, com “jejuns e açoites”, pois tudo o que era relacionado à matéria
e ao corpo era mau. Por isso, o Livro de Cantares é visto com o máximo afastamento
de qualquer narrativa que contenha sexualidade.

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VII Posição atual sobre a interpretação alegórica


Na metade do século XIX havia uma forte tendência entre estudiosos e
teólogos de irem contra uma abordagem alegórica do Livro de Cantares. A
principal razão para essa mudança foi a descoberta dos poemas de amor da
Mesopotâmia e do Egito (Cooper, Lambert, White). Esses poemas tinham muitas
semelhanças com Cântico dos Cânticos, os poemas descobertos por Cooper são
naturalmente interpretados como a exaltação do amor entre homens e mulheres, e
essa interpretação influencia a percepção moderna do texto de cantares.
Abaixo veremos o exemplo do poema descoberto (Papiro Harris 500),
observe como a amada é chamada de "irmã", semelhante ao Cântico dos Cânticos,
além disso, vemos várias referências à natureza no poema:

“Plantas de Sa'am estão ali,


na presença das quais somos enlevados.
Eu sou a tua melhor irmã:
(Quanto) a mim, veja, eu sou como as Terras da Coroa
nas quais plantei flores e todas as plantas aromáticas
Gracioso é o canal de água ali,
o qual tuas mãos escavam
Para nos refrescar com a brisa do norte.
Lá é um bom lugar para caminhar.
Tua mão segura a minha.
Meu corpo está à vontade.
Meu coração está alegre em razão de juntos viajarmos.
Ouvir a tua voz é sorver o vinho da romã.
Eu vivo porque eu ouço.
Se eu visse em cada relance,
Seria mais esplêndido para mim do que comer e beber.” (Poema 19)

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J. G. Wetzstein é outro estudioso que tem influenciado a posição atual sobre


o Livro de Cantares. Ele publicou seu estudo dos cânticos de casamento entre os
habitantes árabes da Síria, e note que é fácil ver a semelhança com Cantares:

“Eu digo: Ó, formosa mulher, teus encantos eu jamais posso contar.

E, apenas o pouco que irei descrever, é o que os meus olhos me permitem ver:
Sua cabeça é como o cálice de cristal, seu cabelo como a noite escura,
Seu cabelo é como as sete noites, igual não há em todo o ano;
Em ondas se movem para cá e para lá, como a corda que ela lança para pegar água.
E as suas faces exalam qual fragrância, que me mata. [...]
Seu nariz é como a tâmara do lraque, como o fio da espada indiana;
Seu rosto é como a lua cheia, e um coração se partindo são as suas faces. [...]
Sua saliva, puro mel de virgem, e a cura para a picada da víbora.
Comparável à escrita elegante, o Seijai desce por seu queixo. [...]
Seus seios como placas mármore polido, quando os navios as trazem para Sidom.
Ali, como pomos da romã, duas joias brilhantes…”

As semelhanças nos poemas levam os estudiosos a abandonar a abordagem


alegórica na interpretação de Cantares. Some-se a isso a postura da teologia
reformada, de resistir a todo método alegórico de interpretação, e encontramos o
resultado para esse livro: uma coletânea de poemas “que se deleitam na boa dádiva
de Deus da sexualidade e do amor íntimo entre um homem e uma mulher³”. Logo,
o propósito percebido nessa perspectiva é a instrução divina sobre uma área
importante da experiência humana: a sexualidade. E pode-se ver isso claramente
nas metáforas e na linguagem usada, como exemplo “muro” e “porta” (8:10-12), que
são referências, respectivamente, de castidade e licenciosidade.
Cantares seria, então, a afirmação bíblica de que a sexualidade foi criada
por Deus como um presente, tendo de ser vivida a partir dos padrões divinos.

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VIII Conclusão
Fugir da alegoria é importante, apesar disso, podemos usar a metáfora
apresentada num sentido positivo. Significa dizer que o amor de um casal, como
descrito no texto sagrado, pode nos servir de analogia do amor de Cristo pela Igreja
(ou de Deus por seu povo, como em Efésios 5:22-23), que ensina exatamente isso.
A intensidade do amor se revela em ondas de encontros e desencontros,
como num relacionamento; conversas, aproximação, distância, o sentimento da
nova aproximação e a ansiedade da paixão. A analogia de Cantares ensina sobre a
aproximação e o afastamento entre as pessoas amadas. A duplicidade da paixão e
o sonho de quem está amando, seguida da decepção ao acordar do sonho e não ter
o objeto do seu amor; o sentimento de perder e achar, a alegria de estar na
presença da amada, depois a tristeza e o suspense do que ainda está por vir; a
angústia de não saber como será. Os versículos abaixo resumem a força do amor:

“Põe-me como selo sobre o teu coração e sobre o teu braço,


porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura
o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, com veementes
labaredas. As muitas águas não podem apagar este amor,
nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens
de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam.”
(Cantares 8: 6-7)

O amor vence a ausência, a insegurança (Cantares 1: 5-6), as circunstâncias


adversas e até mesmo a morte. Com o cuidado devido, podemos fazer a analogia
entre o amor homem/mulher e o amor de Cristo/Igreja, sem cair em alegorias
vazias, como o exemplo abaixo:

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“Eu dormia, mas o meu coração velava; e eis a voz do meu


amado que está batendo: abre-me, minha irmã, meu amor,
pomba minha, imaculada minha, pois minha cabeça está
cheia de orvalho, e meus cabelos das gotas da noite. Já despi
a minha roupa; como a tornarei a vestir? Já lavei os meus
pés; como os tornarei a sujar? O meu amado pôs sua mão
pela fresta da porta, e minhas entranhas estremeceram por
amor dele. Levantei para abrir ao meu amado e minhas mãos
gotejavam mirra, e meus dedos mirra com doce aroma, sobre
as aldravas da fechadura. Abri ao meu amado, mas já o meu
amado tinha se retirado; a minha alma desfaleceu quando ele
falou; busquei-o e não o achei, chamei-o e não respondeu.”
(Cânticos 5: 2-6)

O texto sugere um desencontro: A noiva não quis sujar-se, já tinha se banhado e


estava vestida para dormir. É uma armadilha tentar achar um sentido espiritual
oculto em “não querer sujar os pés.”, antes, deve-se refletir sobre um coração que
é nutrido de amor, mas procrastina e se acomoda. Essa é uma interpretação viável.

Expectativas cruzadas: O noivo queria sair da chuva e encontrar a noiva, mas ela
queria se aquecer e não se sujar. Até que a mão do noivo surgiu na fresta da porta,
o coração da noiva acendeu de paixão e mostrou a prioridade, mas já era tarde.

Aplicação: Mesmo amados por Deus, ainda somo mesquinhos, o que demonstra
que as nossas expectativas se encontram em descompasso com vontade de Deus,
até que o toque do amor divino reoriente nossas prioridades. A cama vazia faz
parte, mas não é sinal de ausência de amor, pois uma pessoa e uma igreja podem
dizer “Eu pertenço ao meu amado, e ele me deseja.” (Cânticos 7:10)

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Notas:
1,2 e 3: extraídas de Introdução ao Antigo Testamento por Longman II e Dillard

Bibliografia sugerida:
PRICE, Randall. Manual de arqueologia bíblica (Thomas Nelson/ Randall Price e H Wayne
House. Tradução de Wilson Ferraz de Almeida- Rio de Janeiro: Thomas Nelson. 2020)

KLEIN, William W. HUBBARD JR, Robert L., BLOMBERG, Craig L. Introdução à


Interpretação Bíblica (Tradução Maurício Bezerra Santos Silva. 1 ed. - Rio de Janeiro:
Thomas Nelson, 2017)

Manual bíblico vida nova (Editor geral: David S. Dockery. Tradução: Lucy Yamakami.
Hans Udo Fuchs, Robinson Malkomes. - São Paulo: Edições Vida Nova,2001)

DILLARD, Raymond B. Introdução ao Antigo Testamento (Raymond B. Dillard, Tremper


Longman III Tradução Sueli da Silva Saraiva.- São Paulo: Vida Nova, 2006)

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