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Eduardo Kives
Nenhum leitor deste livro [de sua edição hebraica] poderá imaginar-se
facilmente na situação afetiva do autor, que não entende a língua
sagrada, que se afastou inteiramente da religião paterna – como de
qualquer outra –, que não consegue partilhar ideias nacionalistas e, no
entanto, jamais negou a vinculação a seu povo, sente sua particularidade
de judeu e não deseja que ela mude. Se lhe perguntarem: “o que ainda te
resta de judeu, após renunciar a todos esses elementos que tinhas em
comum com teus patrícios?”, ele responderá: “muita coisa ainda, talvez o
principal”. Mas atualmente ele não seria capaz de exprimir em palavras
claras este quê de essencial (p. 16).
Também não tenho palavras claras, Freud, e é por isso que minha
contribuição se fundamentará simplesmente – e seguindo o método que
criaste – em tentar deixar meu judaísmo falar. Ou então, para retomar
um termo caro à tradição judaica, escreverei com kavaná, estado
espiritual daquele que está implicado naquilo que faz. Mas sem muitas
teorias prévias. Elas podem vir depois, mas não antes. Senão, como falar?
Contarei agora a singular história de uma viagem, tentando
respeitar a forma como vão me ocorrendo os pensamentos associados às
lembranças que tentarei evocar. Ficarei contente se, ao final, eu tiver
proporcionado ao leitor outros olhares para esta “particularidade de
judeu” sentida por Freud, por mim e por muitos outros.
1 Aviso ao leitor que é confuso mesmo. E até vou contar uma anedota ocorrida no Museu
Municipal de Bucareste. Meu amigo Gabriel foi flagrado tirando uma foto de uma réplica
de um mapa centenário que determinava com relativa precisão os limites territoriais da
antiga Bessarábia. Na saída, a funcionária do museu queria que pagássemos dez leus
(moeda local) por termos violado a proibição de tirar fotos. Na argumentação que se
seguiu, tentei lhe explicar que havíamos tirado apenas uma foto, e lhe pedi que olhasse
a foto no celular de meu amigo, como se eu lhe dissesse: “antes de pedir que paguemos,
pergunte-se por que, de todos os quadros e objetos valiosos deste museu, tiramos uma
foto justamente desta porcaria de réplica de um mapa”. Dez leus não era lá uma grande
quantia e o que estava em jogo, finalmente, não era o puro questionamento da lei, mas
de que ela fosse aplicada, cegamente, sem reconhecer o acontecimento de nosso
encontro com uma parte importante de nossa história... A funcionária rosnou, rosnou,
sorriu e aquiesceu. Não pagamos.
discussões sobre a emancipação judaica através do sionismo, do
socialismo, do republicanismo ou o que for.
***
História 1: “na Romênia, eles começaram a pegar os judeus nos
trens e a chutar eles para fora. Cortavam a barba dos judeus e jogavam
eles para fora do trem! O rei tinha virado contra os judeus. E então um
dia todos, no shtetl, nós pegamos ferramentas, pá, enxada, e esperamos
a noite toda. Eles não vieram. E depois disso é que nós fomos embora”.
História 2: “eu estava na rua e um homem disse ‘judeu imundo,
judeu sujo!’, e então um padre apareceu, e correu atrás dele dizendo ‘nós
estamos no Brasil, isto aqui não é permitido’. E o padre chamou um
policial e disse ‘bota ferro nele, porque estamos no Brasil e aqui isso não
é permitido’. Daí o policial foi lá, pegou ele e botou ferro nele”.
***
Eu não me lembro de existir, no meio de todas aquelas moedas,
alguma que fosse da Romênia, da Bessarábia ou da Moldávia...
***
É aqui que começa este texto:
Eu morava em Paris já há dois anos quando resolvi passar as férias
de verão nas terras de onde vieram meus avós: Romênia, Moldávia,
Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia. Um ano depois, de volta ao Brasil,
estava organizando minhas coisas, quando me deparei com as moedas
que tinha trazido como lembrança da viagem. “Onde vou colocá-las?”. Foi
aí que me lembrei das moedas que, em minha infância, me dera meu
falecido avô. Pensei em juntar as novas com as velhas, como se assim eu
lhe dissesse: “olha, vô, encontrei a moeda que faltava!”.
Tour judaico
2Foi apenas na última revisão deste texto que me dei conta das ressonâncias óbvias
desta expressão.
que era cantada esta epopeia: Dos lid geschriben iz mit blut un nit mit blai3.
Mit blut, fiquei pensando. Mit blut.
Novamente sem saber para onde ir, tentei relaxar um pouco e pedi
uma limonada na rua para esfriar as ideias.
I am a descendant of...
3“Esta canção é escrita com sangue, e não com chumbo”, trecho de Zog Nit Keynmol,
hino dos partisans.
dentro do elevador e apertou no sétimo andar, indicando que, chegando
lá, eu deveria seguir para a esquerda.
No sétimo andar, abri, aleatoriamente, uma das várias portas e me
deparei com uma secretária que me conduziu até aquele que parecia ser
o diretor do centro comunitário.
I am a descendant of the jews of Moldavia. Mas a fórmula mágica
já não era mais necessária, pois o homem era fluente em inglês.
***
O diretor foi gentil comigo. Perguntou pelos nomes dos meus
antepassados e as cidades onde residiam.
“As cidades são Rezina e Markulecht”, disse-lhe.
Após checar os arquivos, ele diagnosticou a situação, levemente
decepcionado: “não sobrou muita coisa. São cidades muito pequenas.
Quer dizer, Rezina. Já Markulecht é, na verdade, apenas um pequeno
povoado. Pode ser que indo até lá você encontre alguma coisa”.
Depois disso, ele quis me apresentar o centro. Iniciou pela sala
pertencente à associação dos sobreviventes do Holocausto – “cada vez
menos”, segundo ele. Em seguida, levou-me até um salão de eventos em
que estava desenhada, de um canto a outro, uma grande maguen david.
Em cada uma de suas seis pontas, pairava um painel homenageando
alguma personalidade histórica daquela comunidade. Ele me contou um
pouco sobre cada uma delas. Outros temas de nossa conversa: a
decadente situação econômica da Moldávia, que provocava a evasão dos
jovens judeus (e dos não-judeus também) para os países desenvolvidos;
a criação do centro comunitário graças a ricos judeus canadenses; o
trabalho do comunismo na repressão da vida judaica após a Segunda
Guerra. Temas tristes que me pareciam ser também temas óbvios
naquela comunidade. Ele abriu um grande sorriso, porém, quando
contou sobre um projeto com as crianças para elas se corresponderem
com seus pares em comunidades judaicas dos Estados Unidos e de Israel.
Alegria que durou pouco. Descemos ao térreo e ele me levou até
nossa última parada, uma pequena sinagoga que ficava do outro lado do
pátio do complexo comunitário. Comentei que seu interior era muito
bonito e ele me fez notar que ela havia sido renovada recentemente. E
prosseguiu: “essa sinagoga, bom, ela não é qualquer sinagoga. Veja, em
1903, quando teve aqui o pogrom4, os judeus eram quase metade da
cidade. Há gente que estima que um terço dos prédios da cidade sofreu
algum dano ou foi destruído. E, entre eles, muitas sinagogas. Não havia
como recuperar os muitos sifrei torá que foram danificados e, tu deves
saber, é preciso enterrar. Aqui, nesta sinagoga, estão enterrados mais de
cem sifrei torá”.
Os mortos
Stein! [“Pedra!”]
Férias, enfim
Quão lenta era a minha aquisição das coisas que se precisa saber! Na
infância, agrilhoado à Gemará, levara a vida de um sábio. Quando cresci,
comecei a trepar em árvores, mas nadar estava acima de minhas
possibilidades. A hidrofobia de meus antepassados, rabinos espanhóis e
cambistas de Frankfort, arrastava-me para o fundo. As ondas se
recusavam a sustentar-me (Babel, 1969, p. 253).
Referências bibliográficas