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Viagem do Bom Fim até a Moldávia

Eduardo Kives

Was du ererbt von deinen Vätern hast, erwirb es, um


es zu besitzen [O que herdaste de teus pais,
conquista-o, para que o possuas] (J. W. Goethe,
Fausto, citado por Freud, em Totem e tabu).

Deixar o judaísmo falar...

Quando me pediram uma contribuição para este livro sobre


Psicanálise e Judaísmo, meu primeiro impulso, um tanto literal, foi o de
lançar-me em direção ao universal e investigar as relações gerais
existentes entre judaísmo e psicanálise. Todavia, acabei tomando outro
rumo ao indagar qual seria o lugar de minha implicação, como judeu, na
escrita de tal texto. De repente, pareceu-me que uma abordagem que se
orientasse pelo singular poderia ser mais interessante para alguns dos
leitores, judeus ou não, assim como seria mais desafiador para mim
tentar escapar da armadilha de um gozar teórico reconfortante,
inteligente, mas que é, no mais das vezes, desencarnado.
Sendo assim, não foi nas elucubrações teóricas de O Futuro de uma
ilusão, ou de Moisés e o monoteísmo, que encontrei o mote para a escrita
deste texto, mas em um simples prefácio, de 1934, à edição hebraica de
Totem e tabu. Notem que a citação que vem a seguir está em um reles e
marginal prefácio, quase como se Freud (2012) fizesse como aqueles
analisantes que desembucham suas mais caras verdades não deitados
no divã ou sentados na poltrona, mas na chegada ou na saída, nos
momentos “não-oficiais”:

Nenhum leitor deste livro [de sua edição hebraica] poderá imaginar-se
facilmente na situação afetiva do autor, que não entende a língua
sagrada, que se afastou inteiramente da religião paterna – como de
qualquer outra –, que não consegue partilhar ideias nacionalistas e, no
entanto, jamais negou a vinculação a seu povo, sente sua particularidade
de judeu e não deseja que ela mude. Se lhe perguntarem: “o que ainda te
resta de judeu, após renunciar a todos esses elementos que tinhas em
comum com teus patrícios?”, ele responderá: “muita coisa ainda, talvez o
principal”. Mas atualmente ele não seria capaz de exprimir em palavras
claras este quê de essencial (p. 16).

Também não tenho palavras claras, Freud, e é por isso que minha
contribuição se fundamentará simplesmente – e seguindo o método que
criaste – em tentar deixar meu judaísmo falar. Ou então, para retomar
um termo caro à tradição judaica, escreverei com kavaná, estado
espiritual daquele que está implicado naquilo que faz. Mas sem muitas
teorias prévias. Elas podem vir depois, mas não antes. Senão, como falar?
Contarei agora a singular história de uma viagem, tentando
respeitar a forma como vão me ocorrendo os pensamentos associados às
lembranças que tentarei evocar. Ficarei contente se, ao final, eu tiver
proporcionado ao leitor outros olhares para esta “particularidade de
judeu” sentida por Freud, por mim e por muitos outros.

Gelt far vos? [“Dinheiro para quê?”]

Quando eu era criança, meu avô me dava moedas do mundo todo.


Algo assim como toda semana, eu esperava o momento em que ele,
tirando sua mão do bolso, brandia uma nova peça de metal enigmática
que, brilhando, era colocada em minha mão. Ele fazia isso sem dizer
palavra – talvez aí o enigma: não apenas a respeito do significado do que
aí não era dito, mas também acerca do sujeito que, através desse gesto,
falava. Calado meu avô, parecia-me, cantavam as moedas.
Moedas do mundo todo...
E o mundo todo em moedas.
***
“Qual é o culto secular do judeu? O negócio. Qual é o seu deus
secular? O dinheiro” (Marx, 2010, p. 56).
Deixando de lado a crítica aos argumentos e à linguagem utilizados
por Marx em Sobre a questão judaica, dou-me conta de que sempre achei
graça nas associações nem tão incomuns entre judeus e dinheiro. É
nesse efeito chistoso que tais associações têm para mim que penso agora,
e não no antijudaísmo popular ancestral em que elas estão ancoradas.
***
Se eu fosse um etnólogo observando essa tribo na sinagoga, em
suas festas e na intimidade dos seus lares, eu anotaria: “eles exprimem
as verdades mais importantes de sua história e condição através de
gracejos, ironias e piadas”.
***
Essa era a história judaica contada pelas moedas de meu avô,
arauto do mito do judeu errante que nele, mais uma vez, se atualizara:
“eu sou a moeda circulante, que chega a terras distantes, no bolso de um
viajante!”.
***
Não caberia detalhar, aqui, como meu avô, saído aos quatorze anos
da Bessarábia (região localizada na atual Moldávia, antigamente na
Romênia1), viveu seus próximos oitenta e cinco anos sem muito se
deslocar de um conjunto de não mais de seis ruas no bairro Bom Fim.
Nem cinquenta anos de atuação no movimento sionista, iniciados mais
de uma década antes da criação do estado de Israel, foram capazes de
motivá-lo a atravessar o oceano a fim de se instalar em outro lugar.
Em seus últimos anos de vida, quando repetia sempre as mesmas
histórias, sempre com os mesmos detalhes... Claro que é mortalmente
tediosa essa eterna repetição do mesmo! Mas, ao mesmo tempo, quão
cheias de emoção e significado eram essas histórias tão simples que
insistiram em ficar. Para mim, até mais verdadeiras do que as eternas

1 Aviso ao leitor que é confuso mesmo. E até vou contar uma anedota ocorrida no Museu
Municipal de Bucareste. Meu amigo Gabriel foi flagrado tirando uma foto de uma réplica
de um mapa centenário que determinava com relativa precisão os limites territoriais da
antiga Bessarábia. Na saída, a funcionária do museu queria que pagássemos dez leus
(moeda local) por termos violado a proibição de tirar fotos. Na argumentação que se
seguiu, tentei lhe explicar que havíamos tirado apenas uma foto, e lhe pedi que olhasse
a foto no celular de meu amigo, como se eu lhe dissesse: “antes de pedir que paguemos,
pergunte-se por que, de todos os quadros e objetos valiosos deste museu, tiramos uma
foto justamente desta porcaria de réplica de um mapa”. Dez leus não era lá uma grande
quantia e o que estava em jogo, finalmente, não era o puro questionamento da lei, mas
de que ela fosse aplicada, cegamente, sem reconhecer o acontecimento de nosso
encontro com uma parte importante de nossa história... A funcionária rosnou, rosnou,
sorriu e aquiesceu. Não pagamos.
discussões sobre a emancipação judaica através do sionismo, do
socialismo, do republicanismo ou o que for.
***
História 1: “na Romênia, eles começaram a pegar os judeus nos
trens e a chutar eles para fora. Cortavam a barba dos judeus e jogavam
eles para fora do trem! O rei tinha virado contra os judeus. E então um
dia todos, no shtetl, nós pegamos ferramentas, pá, enxada, e esperamos
a noite toda. Eles não vieram. E depois disso é que nós fomos embora”.
História 2: “eu estava na rua e um homem disse ‘judeu imundo,
judeu sujo!’, e então um padre apareceu, e correu atrás dele dizendo ‘nós
estamos no Brasil, isto aqui não é permitido’. E o padre chamou um
policial e disse ‘bota ferro nele, porque estamos no Brasil e aqui isso não
é permitido’. Daí o policial foi lá, pegou ele e botou ferro nele”.
***
Eu não me lembro de existir, no meio de todas aquelas moedas,
alguma que fosse da Romênia, da Bessarábia ou da Moldávia...
***
É aqui que começa este texto:
Eu morava em Paris já há dois anos quando resolvi passar as férias
de verão nas terras de onde vieram meus avós: Romênia, Moldávia,
Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia. Um ano depois, de volta ao Brasil,
estava organizando minhas coisas, quando me deparei com as moedas
que tinha trazido como lembrança da viagem. “Onde vou colocá-las?”. Foi
aí que me lembrei das moedas que, em minha infância, me dera meu
falecido avô. Pensei em juntar as novas com as velhas, como se assim eu
lhe dissesse: “olha, vô, encontrei a moeda que faltava!”.

Bem debaixo do meu nariz

Eram umas duas horas da manhã na capital francesa. A marcha


trôpega que eu e mais três amigos empreendíamos ao longo do Canal de
l’Ourcq fora interrompida por uma gangue de adolescentes da cité que
nos roubaram alguns pertences. Hora de ir para casa (infelizmente, não
havia clima para continuar). Na parada, ao certificar-me acerca do
número do ônibus com uma mulher que parecia igualmente extenuada,
dei ensejo a uma conversa que se liquefez, inesperadamente, em chuva
de coincidências: os dois estrangeiros, a mesma idade, a mesma
profissão, formados na mesma universidade e, para terminar: “e eu
também, de certa forma, sou romeno... De origem romena... Dois avós,
então metade... Quer dizer, não é bem a Romênia, tenho dois avós que
vieram da Moldávia”. Ao que ela replicou com a serenidade de um anjo:
“sim, é tudo quase igual. Moldávia é e não é Romênia, no fundo é a
mesma coisa”.
A sensação que então me atingiu, de encantamento mesclado a
certa dose de estranheza, penso ter se originado não somente da
experimentação de uma nova forma de me apresentar, quer dizer, de me
situar para mim e para os outros, mas também, certamente, do tom tão
tranquilo da resposta que recebi... Quando, em seguida, eu lhe disse que
era judeu e ela começou a compartilhar comigo o que sabia sobre os
judeus de seu país, foi como se todo um universo muito, muito distante
começasse a ganhar vida – universo do qual eu sentia, de alguma
maneira, fazer parte. É assim, calculo, que o saldo deste encontro foi que
a Moldávia, estando até então, neste continente, invisível, mas bem
debaixo do meu nariz, fosse finalmente desvelada.
Eu sairia em viagem mais ou menos um ano depois.

Tour judaico

Após haver visitado Bucareste e Brașov, na Romênia, cheguei em


Chișinau, capital da Moldávia. Assim como em Bucareste, aparentemente
o demiurgo comunista havia tacado concreto em tudo. A diferença é que
em Chișinau ele havia deixado sua obra despudoradamente inacabada,
ou melhor, abandonada; desintegrando-se e envolvendo a cidade em uma
nuvem de pó impiedosa.
Peguei um dia para tentar encontrar algo da vida judaica.
***
Após passar em frente às ruínas de uma grande yeshivá, pedi
informações a uma estudante, que fez a gentileza de me conduzir a uma
antiga sinagoga revitalizada pelo movimento ortodoxo Chabad. Aí, dois
motoqueiros de meia-idade israelenses travavam uma discussão com o
rabino, também israelense. Um deles, um argentino que havia feito aliá
quando jovem, argumentava, com visível culpa, que não queria colocar
os tefilin. Criticou duramente seu amigo, que havia realizado o ritual
conduzido pelo rabino, por haver recitado a reza, segundo ele, de forma
apenas decorada. Tentei conversar com eles, mas o ambiente de
acusações criado pelo argentino – “você, judeu do Brasil, prove-me que
também não é um hipócrita” – fez-me apenas pedir um copo d’água e ir
embora.
Na sequência, chegando ao lugar onde deveria estar outra
sinagoga, deparo-me com uma pizzaria kasher. Toco a campainha da
pizzaria e me explicam que a sinagoga estava funcionando no prédio ao
lado.
Sou acolhido por um judeu religioso que insiste em que eu participe
de um shiur. Levam-me a uma sala lotada de homens que me saúdam
com o canto dos olhos, sem desviar a atenção do discurso do rabino, que
é novamente um israelense. A aula é em hebraico, com tradução direta
para o russo feita por um membro da comunidade. O tema: kavaná. Qual
é o tipo de intenção, mentalização e atenção necessárias ao ato de rezar?
Como aumentar a qualidade da reza e como melhorar nossa relação com
Deus?
Sinceramente, eu estava me divertindo mais com essa aula de
teologia ortodoxa do que com a neurose secular daquele argentino.
Todavia, o tempo passava, eu precisava ir-me dali. Fiz uma leve
reverência aos homens levantando o chapéu de palha que me haviam
emprestado para servir como kipá, e saí. Um homem que parecia estar
em processo de conversão à ortodoxia foi atrás de mim e, anunciando-se
como taxista, insistiu para levar-me a meu próximo destino. Eu não tinha
um próximo destino; mas, como ele insistia, resolvi lhe dizer apenas que
me deixasse no centro da cidade.
Conversa realizada através do aplicativo de tradução simultânea do
celular: orgulho de um importante ministro da extrema-direita israelense
que nascera na Moldávia, exaltação da produção de vinhos nacionais,
queria saber se eu conhecia um turista brasileiro ou argentino que um
dia passara por lá em busca de suas origens. Deixou-me em uma rua
central e cobrou, impiedosamente, pela corrida que ele próprio havia
oferecido. “Judeu mercenário”, pensei, antes de pagar.
***
Que fique claro que, neste ponto, eu estava completamente
perdido: primeiro, por ser detentor do pior senso de localização que logrou
ser transmitido na evolução do homo sapiens; segundo, porque eu não
tinha internet no celular.
Desde certo ponto de vista, essas condições me deixavam “livre”.
Porém, essa “liberdade” vinha acompanhada não apenas por um
recorrente perder-se, mas, principalmente, pelo preço da culpa
antecipada de ter podido deixar escapar algo importante, de não ter ido
para onde eu deveria ir, de não ter olhado para onde eu deveria olhar...
Por isso, os em média 29 quilômetros diários que meu celular indicou eu
ter andado nesse período; por isso, as centenas de fotos que eu tirava
muitas vezes de forma automática, sem nem olhar para o celular.
***
Buscava um monumento aos judeus mortos, e encontrei outro!
Meu ídiche “de guerra2” me servia, finalmente, para entender esses
monumentos, que em minha viagem foram vários. Nos países do Leste,
essa foi a língua que me permitiu entender as inscrições dos memoriais,
frequentemente bilíngues (na língua do país e em ídiche), relatando o
triste destino do meu povo. Às vezes, havia também uma tradução em
hebraico, mas que me soava alienígena. É que todas essas línguas,
apesar de dizerem o mesmo, não diziam a mesma coisa. Acho que nem
poderiam. De qualquer forma, era o ídiche, em minha mente, a língua em

2Foi apenas na última revisão deste texto que me dei conta das ressonâncias óbvias
desta expressão.
que era cantada esta epopeia: Dos lid geschriben iz mit blut un nit mit blai3.
Mit blut, fiquei pensando. Mit blut.
Novamente sem saber para onde ir, tentei relaxar um pouco e pedi
uma limonada na rua para esfriar as ideias.

I am a descendant of...

Estava ainda na metade do meu refresco quando meu olhar foi


sugado por uma menorá em relevo na fachada branca de um prédio. Bebi
tudo de um só gole e me lancei até lá.
Os guardas não entendiam de jeito nenhum o que eu queria.
Justíssimo. O que diabos, no fim das contas, eu queria?
É tão mais fácil levar na piada, dizer para si mesmo que é só
curiosidade...
Lembrei de meu amigo tirando a foto da réplica do mapa no museu
de Bucareste: não era só curiosidade.
Parecia que eu não ia entrar. Tinha chegado até ali e não ia entrar.
Em um último gesto, tirei meu passaporte polonês do bolso e
declarei em alto e bom inglês: I am a descendant of the jews of Moldavia.
Os guardas me olharam estarrecidos – em linguagem popular, “que
porra é essa?”. Depois, passaram meu passaporte um para o outro, um
tanto abobalhados, e, para meu júbilo, abriram os portões e me deixaram
entrar.
(Problema de expressão, e não de entendimento)
***
I am a descendant of the jews of Moldavia, repeti para a faxineira
que varria o chão do grande complexo que se escondia atrás da singela
fachada.
Entendido. Ela apontou para o grande prédio do complexo, onde
imperava o letreiro “The Kishinev Jacobs Jewish Campus” e falou algo
que, obviamente, eu não entendi. Ela me pegou pelo braço, me botou

3“Esta canção é escrita com sangue, e não com chumbo”, trecho de Zog Nit Keynmol,
hino dos partisans.
dentro do elevador e apertou no sétimo andar, indicando que, chegando
lá, eu deveria seguir para a esquerda.
No sétimo andar, abri, aleatoriamente, uma das várias portas e me
deparei com uma secretária que me conduziu até aquele que parecia ser
o diretor do centro comunitário.
I am a descendant of the jews of Moldavia. Mas a fórmula mágica
já não era mais necessária, pois o homem era fluente em inglês.
***
O diretor foi gentil comigo. Perguntou pelos nomes dos meus
antepassados e as cidades onde residiam.
“As cidades são Rezina e Markulecht”, disse-lhe.
Após checar os arquivos, ele diagnosticou a situação, levemente
decepcionado: “não sobrou muita coisa. São cidades muito pequenas.
Quer dizer, Rezina. Já Markulecht é, na verdade, apenas um pequeno
povoado. Pode ser que indo até lá você encontre alguma coisa”.
Depois disso, ele quis me apresentar o centro. Iniciou pela sala
pertencente à associação dos sobreviventes do Holocausto – “cada vez
menos”, segundo ele. Em seguida, levou-me até um salão de eventos em
que estava desenhada, de um canto a outro, uma grande maguen david.
Em cada uma de suas seis pontas, pairava um painel homenageando
alguma personalidade histórica daquela comunidade. Ele me contou um
pouco sobre cada uma delas. Outros temas de nossa conversa: a
decadente situação econômica da Moldávia, que provocava a evasão dos
jovens judeus (e dos não-judeus também) para os países desenvolvidos;
a criação do centro comunitário graças a ricos judeus canadenses; o
trabalho do comunismo na repressão da vida judaica após a Segunda
Guerra. Temas tristes que me pareciam ser também temas óbvios
naquela comunidade. Ele abriu um grande sorriso, porém, quando
contou sobre um projeto com as crianças para elas se corresponderem
com seus pares em comunidades judaicas dos Estados Unidos e de Israel.
Alegria que durou pouco. Descemos ao térreo e ele me levou até
nossa última parada, uma pequena sinagoga que ficava do outro lado do
pátio do complexo comunitário. Comentei que seu interior era muito
bonito e ele me fez notar que ela havia sido renovada recentemente. E
prosseguiu: “essa sinagoga, bom, ela não é qualquer sinagoga. Veja, em
1903, quando teve aqui o pogrom4, os judeus eram quase metade da
cidade. Há gente que estima que um terço dos prédios da cidade sofreu
algum dano ou foi destruído. E, entre eles, muitas sinagogas. Não havia
como recuperar os muitos sifrei torá que foram danificados e, tu deves
saber, é preciso enterrar. Aqui, nesta sinagoga, estão enterrados mais de
cem sifrei torá”.

Os mortos

É hora de falar dos mortos.


Esta é a parte mais difícil. Em vários níveis. Por isso, esse meu
anúncio logo na primeira linha deste subcapítulo, afirmação de um fio
condutor que serve para que eu não ceda, quase para que eu me obrigue
a falar. Antes de tudo, porém, já adianto uma espécie de questão-
conclusão:
O homem (coisa) desaparece e fica a tumba (palavra), mas a tumba-
palavra adquire, por sua vez, dimensão de coisa. E essa tumba-coisa-
palavra, qual é o destino que a ela se dá?
Me peguei pensando que não basta que a tumba seja bem pesada
a fim de impedir que os mortos retornem, são necessárias também
palavras que façam as vezes de coveiro.
Me peguei pensando na emoção que acomete algumas crianças
judias quando elas se inteiram da existência do Holocausto. Muito antes
de poderem entender os eventos históricos, elas sintonizam com a
angústia das gerações anteriores, habitantes de um mundo onde os
mortos não foram devidamente enterrados.
(Este não é um texto sobre minha viagem à Lituânia, mas é
impossível não lembrar do terreno ondulado das covas coletivas onde os
dez mil judeus de Ukmergė foram colocados. Dez quilômetros de

4 Referência ao Pogrom de Kishinev (Chișinau em russo), imortalizado no genial poema-


reportagem de Bialik, Na cidade do massacre.
caminhada dentro da floresta para chegar aí e acrescentar mais uma
pedrinha ao lado de todas as outras deixadas pelos que aí estiveram. É
como se a pedrinha mostrasse que, para além do enterro oficial, cada
pessoa segue, ao longo de sua vida, em seu próprio processo individual
de enterrar seus mortos).
***
Em Chișinau, quando fui pela primeira vez em um cemitério na
Moldávia, fiquei arrepiado com a impressão fugaz de ter, em minha
frente, a comunidade judaica de Porto Alegre enterrada. Exatamente os
mesmos sobrenomes, escritos, em sua maior parte, em letras cirílicas.
Fiquei andarilhando por aquele vasto cemitério, subindo e descendo,
evitando as áreas de mata fechada, até que um homem em farrapos,
funcionário do cemitério, se aproximou e me alcançou seu celular. Do
outro lado da linha, um sujeito se oferecia, em hebraico, para vir no dia
seguinte me ajudar a encontrar quaisquer túmulos que por ventura eu
procurasse. Com culpa, lhe respondi que eu não tinha como esperar.
***
Em Rezina, peguei carona monte acima até o cemitério municipal.
Encontrei sem dificuldades o setor judaico com seus túmulos recentes,
datados da segunda metade do século vinte.
Mas eu sabia, pois havia visto na internet, da existência de um
antigo cemitério judaico que aparecia localizado em uma foto de satélite.
Eu estava absolutamente decidido a encontrá-lo, apesar de as pessoas
na rua me dizerem não ter conhecimento dele. Desci o monte até a beira
do rio Dniestre, cuidando para não ultrapassar a perigosa fronteira que
dava para a Transnístria5, região separatista autônoma que luta para
integrar-se à Rússia, e rumei ao norte.
Não me ficou claro se eu cheguei a cruzar a fronteira. Em todo caso,
todos agora só falavam russo. O que não era um problema, já que eu,
precavido, havia aprendido a dizer “antigo cemitério judaico” também em
russo, e não só em romeno. Quanto mais eu avançava, mais as pessoas

5 Semelhantes querelas territoriais encontram-se por trás do cenário que levou ao


extermínio da população judaica da Bessarábia.
pareciam conhecer o destino que eu buscava, e elas foram me ajudando.
Escapei das garras de cachorros ferozes, escalei pequenos relevos,
seguindo por pequenos caminhos de terra batida que os passantes iam
me indicando. Após passar por uma construção que parecia ser um asilo,
cruzei um parque infantil abandonado e me deparei com uma selva
fechada e espinhosa. Jazia ali, por baixo da vegetação, o antigo cemitério
judaico.
Passei algumas horas lá fotografando tudo. Muitos túmulos por
entre as árvores e a mata: na maior parte, quebrados, espalhados,
fundidos com a natureza, tomados pela vegetação que crescia no oco dos
caracteres em hebraico (aqui, eles eram todos escritos em hebraico, não
se via mais o alfabeto cirílico). Limpei as letras de um destroço e li: “a
segunda filha de Rivka”. Me soou familiar.
Cedi ao cansaço e voltei para a hospedagem sem ter encontrado
ninguém da minha família. Fotografei o caminho para que no futuro
possam saber como chegar até lá. Recomendaria ainda que quem vá leve
consigo um facão, pois é preciso abrir caminho na vegetação a cada passo
dado na área do cemitério. Quebrar os galhos com a mão pode se revelar
um trabalho hercúleo e também perigoso.
(Me ocorreu um pensamento que veio com certa dose de culpa:
como deixar os túmulos lá, naquele estado? Agora, aquele passado, antes
distante, me parecia tão próximo... Ao mesmo tempo, fiquei me
indagando se essa reintegração à natureza e o esquecimento não seriam
os destinos finais de qualquer cemitério, inclusive aquele em que um dia
eu seria enterrado).

Stein! [“Pedra!”]

Complicado chegar a Markulecht. Foram necessários vários


pequenos transportes que me levaram de um a outro lado nos confins do
interior agrário da Moldávia. Da última parada, caminhei alguns
quilômetros carregando meu mochilão de dez quilos sob o sol escaldante,
até topar com a singela inscrição na entrada do povoado: “Markulecht”.
Eu mal chegara, já nem me aguentava em pé. Apreciei, rapidamente, as
casinhas do vilarejo, as pitorescas estátuas de Lênin da época comunista,
e fui, sem mais delongas, atrás do cemitério judaico, que eu sabia estar
localizado nas proximidades da única escola do povoado.
À diferença do antigo cemitério de Rezina, no de Markulecht ainda
sobravam algumas pedras da murada, o que dava ao cemitério algo de
um contorno real. Como se ele ainda existisse. “Existe?”, me perguntei.
Ao entrar no terreno, encontrei, novamente, o cenário de um cemitério
em decomposição (entretanto, não pude evitar de pensar que alguns dos
danos fossem também devidos à ação humana). Entre os vários túmulos,
na maioria quebrados, viam-se alguns relativamente bem conservados,
com os caracteres ainda legíveis. Eles pertenciam a rabinos importantes,
ou a pessoas que haviam morrido mais “recentemente”.
Foi aí que aconteceu.
Eu o avistei de longe. Larguei a mochila para me livrar daquele peso
insuportável e avancei. Um túmulo um pouco caído para o lado, mas
ainda de pé, em que pude ler com clareza os caracteres cirílicos: “1913-
1969. Куперштейн, Самуэл”. Samuel Kuperstein. Kuperstein: como
meu avô, minha mãe e eu.
“Vô, achei!”.
***
“Um parente, que sei eu? Um sobrevivente dos massacres de
Antonescu, que sei eu? Morreu há cinquenta anos, isso importa? Isso
importa, realmente? Pode ter sido um homem de qualquer espécie, ou até
um homem mau. Se ele estivesse vivo, que importância eu teria para ele?
Talvez entre nós não existisse nada. Há pouco tempo eu nem o conhecia.
A verdade é que, desde o início, não foi por ele que eu vim até aqui”.
Quis ir embora. Senti-me à beira do precipício e me defendi
antecipando a possibilidade vislumbrada de que o encontro com aquele
túmulo não significasse nada.
Peguei uma direção qualquer e dei com um pátio construído em
formato de maguen david. Troquei de direção e me deparei com um
monumento que se referia ao massacre: Mir vilen gedenken di idn
gehargete fun di faschisten in 1941-1944 ioren6. Parei e me sentei no chão.
Deu.
Fui ao único mercadinho do povoado e comprei uma coca-cola.
Encontrei o único restaurante de Markulecht, onde pedi o único prato
que era oferecido ali, borscht, e bebi a única cerveja que eles serviam.
Depois peguei o único ônibus que poderia me levar embora. Comecei a
me sentir melhor. Na van de volta para Chișinau, fiquei amigo do
motorista que, ao perceber que eu era brasileiro, me pôs na frente para
irmos conversando em português (como muitos moldavos, ele passara
uma parte de sua vida trabalhando, ilegalmente, em Portugal). Fiquei em
posição perfeita para contemplar, ainda durante algumas horas, os
ensolarados pampas moldavos por uma última vez.

Férias, enfim

Naquele mesmo dia, peguei um ônibus noturno para a Ucrânia e


acordei em Odessa, uma espécie de Rio de Janeiro do Mar Negro, a cidade
das ideias, onde floresceu a nata da intelectualidade judaica do Leste
Europeu. Passei na estátua de Isaac Babel para prestar homenagem e o
ouvi dizer:

Quão lenta era a minha aquisição das coisas que se precisa saber! Na
infância, agrilhoado à Gemará, levara a vida de um sábio. Quando cresci,
comecei a trepar em árvores, mas nadar estava acima de minhas
possibilidades. A hidrofobia de meus antepassados, rabinos espanhóis e
cambistas de Frankfort, arrastava-me para o fundo. As ondas se
recusavam a sustentar-me (Babel, 1969, p. 253).

Disse-lhe para pegar sua hidrofobia e passar bem. De minha parte,


eu estava indo tirar férias. Férias dentro das férias, a começar pelas
águas quentes das praias espetaculares de Odessa.

Referências bibliográficas

6 “Lembremos os judeus assassinados pelos fascistas entre os anos 1941 e 1944”.


Babel, I. (1969). A cavalaria vermelha. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira.
Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas. São Paulo:
Companhia das Letras.
Marx, K. (2010). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo.

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