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Bárbara Nascimento Ayrosa

FUNÇÃO MATERNA E AUTISMO INFANTIL:


UMA ANÁLISE DO CASO JOEY

Curso de Psicologia
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2010
Bárbara Nascimento Ayrosa

FUNÇÃO MATERNA E AUTISMO INFANTIL:


UMA ANÁLISE DO CASO JOEY

Trabalho de conclusão de curso como


exigência parcial para a graduação no
curso de Psicologia, sob orientação da
Profa. Dra. Paula Regina Peron.

Curso de Psicologia
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2010
Dedicatória
Dedico este trabalho a meus pais, primeiramente por eles
serem as pessoas mais importantes da minha vida e agradeço a
eles por terem desempenhado muito bem a função materna e
paterna que possibilitou que eu me constituísse como sujeito.
Outro motivo que eu dedico esse trabalho a eles é por eles
sempre terem me apoiado a estudar psicologia.

Dedico este trabalho também ao Marco, meu companheiro


de todas as horas, pelo apoio e compreensão durante todo o
tempo de realização deste trabalho.
Agradecimentos

Agradeço primeiramente a minha orientadora Paula Peron,


que graças a seus muitos conhecimentos e práticas possibilitou
tornar minhas idéias em um trabalho. Agradeço também a
professora Silvana Rabello por me inspirar a pesquisar sobre o
tema autismo.

Agradeço as minhas queridas amigas e, assim como eu,


futuras psicólogas que participaram, de alguma maneira, da
realização deste trabalho: Letícia, Camila Ruiz, Camila Zorzan,
Maria Rejane, Daniel Caro e Flávia.

Agradeço também, aos meus pais, ao Marco, minha tia


Miriam, as amigas que acompanharam de fora e me apoiaram nas
difíceis horas durante a realização deste trabalho: Julie, Carol,
Daniela, Mariana, Larissa, Juliana, Marina e Nathalí.
Bárbara Nascimento Ayrosa; “Função Materna e Autismo Infantil: Uma Análise
do Caso Joey”, 2010.
Orientadora: Profa. Dra. Paula Regina Peron

RESUMO

No presente trabalho analisamos a história de vida do garoto Joey, de Bruno


Bettelheim - um caso de relevância para a Psicanálise - com o objetivo de discutir, sob
a perspectiva da Psicanálise lacaniana, a importância que a função materna tem no
processo de constituição do bebê, para se compreender em quais aspectos houve
ruptura da relação mãe-bebê na história de vida de Joey e analisar a constituição
autística do garoto. Portanto, analisou-se que houve falhas importantes da função
materna nos primeiros meses de vida de Joey. Porém, essas falhas não ocorreram de
maneira intencional por parte de sua mãe, mas sim inconscientemente, pois algo
ocorreu nesse período, impossibilitando-a de exercer sua função materna
adequadamente.
Autores afirmam que no autismo a estrutura psíquica não é a mesma da
psicose. Na psicose verifica-se ter havido falha da função paterna, enquanto no
autismo, falha a função materna. A literatura afirma que a função materna é de
essencial importância na constituição de um sujeito, o qual irá se constituir a partir do
carinho, do olhar desejante, do investimento libidinal da mãe por seu filho. Alguns dos
principais exemplos dessas demonstrações podem ser o manhês (falar materno), o
olhar desejante e o toque da mãe em seu bebê. Faz parte da função materna acreditar
que naquele pequeno corpo de bebê um sujeito há de advir. E a falha dessa função
pode desencadear uma constituição autística.
O trabalho em questão pode contribuir na compreensão da importância que a
função materna tem para a constituição do sujeito e em próximos estudos sobre o
assunto, que abordem a função materna e o autismo.

Palavras chave: Autismo Infantil; Função Materna; Constituição do sujeito;


Psicanálise
SUMÁRIO

I. Introdução..................................................................................................01
II. Método......................................................................................................07
III. Capítulo 1: Descrição do Caso Joey.......................................................10
IV. Capítulo 2: Autismo Infantil ....................................................................22
- Histórico do Autismo...................................................................26
V. Capítulo 3: Constituição do Sujeito..........................................................33
- Olhar materno ............................................................................34
- Mapeamento Corporal ...............................................................36
- Manhês ......................................................................................37
VI. Capítulo 4: Constituição autística............................................................40
- Ausência do olhar materno ........................................................42
- Ausência da imagem corporal ...................................................44
- Ausência do Manhês .................................................................45
- A questão da linguagem ............................................................46
- Estereotipias...............................................................................52
VII. Capítulo 5: Análise do Caso...................................................................53
VIII. Conclusão.............................................................................................66
IX. Referências Bibliográficas.......................................................................70
INTRODUÇÃO

O autismo é uma psicopatologia infantil bastante grave, estudada pela


Medicina e pela Psicologia. Sua etiologia ainda não foi esclarecida. Leo
Kanner, o primeiro a expor estudos sobre autismo, em 1943 acompanhou onze
casos de crianças que apresentavam comportamentos semelhantes, tais como:
respostas incomuns ao ambiente, incluindo maneirismos motores
estereotipados, inabilidade para desenvolver relacionamentos, atraso na
aquisição da fala, com tendência à ecolalia (eco na linguagem), insistência
obsessiva na manutenção da rotina, falta de imaginação, boa memória e
fisionomia normal. Então, a partir dessa observação, Kanner sugeriu uma
única entidade clínica, a qual ele nomeou como autismo infantil precoce.

No atual trabalho, analisaremos nos capítulos seguintes essa questão,


ou melhor, a relação da função materna com a constituição psíquica do bebê.
Exploraremos como se dá essa função materna e qual a sua importância para
a constituição do sujeito.

Kanner observou que, coincidentemente, as mães do grupo de crianças


que ele acompanhou pareciam ser frias e distantes, o que o fez sugerir que
isso teria relação com a dificuldade daquelas crianças em se relacionarem.
Então, passou a utilizar a relação mãe-bebê para explicar a etiologia do
autismo. Segundo Laznik Penot (1997), de certa forma Kanner estava certo
quanto a essa hipótese, levantada por ele ainda em 1943.

Apesar do autismo ter sempre existido, a discussão sobre o tema é


muito recente e muito polêmica também, pois não há unanimidade entre as
áreas profissionais, principalmente quanto à sua etiologia, o que é assunto de
bastante controvérsia. Segundo Tamanaha et.al (2008), há duas abordagens
teóricas distintas quanto às hipóteses de sua etiologia: a teoria afetiva
(puramente relacional) sob a visão da psicanálise e a teoria que busca uma
etiologia orgânica, que prioriza falhas cognitivas e sociais. Vale ressaltar que a

1
presente pesquisa considera apenas a primeira hipótese etiológica, ou seja, a
teoria afetiva. Mesmo dentro desta categoria de hipótese etiológica há
discordância entre os profissionais que estudam o assunto, inclusive entre
psicanalistas.

Como tentativa de estabelecer uma concordância, uma padronização


entre as diferentes formas de entender o autismo, desde 1994, a Associação
Americana de Psiquiatria, no Manual de Diagnóstico e Estatísticas de
Distúrbios Mentais (DSM-IV), passou a classificar como uma categoria, então
denominada “portadores de distúrbios globais do desenvolvimento”, as crianças
autistas e psicóticas. Essa classificação, apesar de ter favorecido a troca entre
profissionais, nada acrescentou para a compreensão sobre o assunto. Outra
forma de tentar facilitar o diagnóstico do autismo, o Código Internacional de
Doenças - CID-10 - caracteriza o Autismo Infantil como um desenvolvimento
anormal ou alterado, apresentando falhas de funcionamento nas áreas de
comunicação e interação social, com manifestações de comportamento
repetitivo. Quanto aos dados de sua epidemiologia, a incidência populacional é
em torno de 2 a 5 indivíduos autistas para 10.000 nascimentos.

O autismo é o mais conhecido entre os transtornos invasivos do


desenvolvimento (TID). Refere-se a um grupo de condições caracterizadas por
uma vasta variabilidade de condições clínicas. O autismo é marcado por um
permanente prejuízo na interação social, com alterações da comunicação e
padrões limitados ou estereotipados de comportamentos e interesses.

A medicina entende a etiologia do autismo de maneira diferente daquela


da psicologia. Para a psicanálise, o autista não se constituiu como sujeito, mas
sim autisticamente. O atual trabalho, nos próximos capítulos, irá analisar
detalhadamente cada uma dessas duas distintas maneiras de constituição.
Porém, este estudo segue a linha lacaniana da Psicanálise, a qual considera a
constituição autística diferentemente da psicótica.

2
Jerusalinsky, apud Kupfer (2000), compreende que no autismo a falha é
da função materna, enquanto que na psicose a falha ocorre na função paterna.
Segundo Calligaris (1989), o autismo não se inclui na problemática psicótica,
mas sim remete a uma mais precoce problemática de defesa. Tanto a psicose
quanto a neurose, para o autor, procuram responder a demanda do outro,
“sustentando o sujeito na sua referência a um saber que o defenda,
constituindo-o como distinto do objeto” (p.67), ao passo que o autismo lhe
parece ser uma tentativa de apagar a demanda do outro, se anulando.

Na visão da Psicanálise lacaniana, o que desencadeia esse


comportamento isolacionista deve-se à ocorrência de falha em algum momento
da relação mãe-bebê, durante os primeiros meses da vida deste. Vale ressaltar
que, não necessariamente, é a própria mãe quem desempenha essa função, a
qual pode ser desenvolvida por outra pessoa, como um cuidador, por exemplo.
Porém, o presente estudo se referirá sempre à mãe quanto a essa questão.
Para Lacan, a constituição subjetiva depende da relação com o Outro, pois o
Outro é lugar de uma rede, de um todo. O Outro pode ser entendido como o
universo prévio da palavra. O outro é o lugar em que a constituição subjetiva se
dá.

Tendo em vista que o bebê humano depende de outro ser humano para
sobreviver, pode-se já perceber que a mãe/cuidador desse bebê tem grandes
responsabilidades. É a mãe que, ao cuidar desse bebê, vai demonstrar seu
amor pelo filho, quem vai supor que naquele pequeno corpo do bebê há um
sujeito. E a partir daí, se estabelece a relação mãe-bebê, o que é de essencial
importância para a constituição do bebê como sujeito. É nessa relação que a
mãe se torna figura essencial para o bebê, é ela quem o investe libidinalmente
a partir de seu olhar, da sua voz e de seu toque; é ela quem vai introduzir a
linguagem a esse bebê, vai dar banho e embalá-lo de modo a fazer com que
aquela massa corporal do bebê vá se tornando um corpo erógeno e parte de
um sujeito.

3
Segundo Jardim (2000), “É a partir da função materna que se arma um
sujeito no bebê. (...) À função materna cabe, primordialmente, transmitir um
desejo de existência, de pertença a uma história, transmitir ao bebê um desejo
que não seja anônimo.” (p. 57). A função materna tem essencial importância no
processo de constituição do sujeito. Se houver falha no desenvolvimento dessa
função materna, ou seja, se a mãe ou o cuidador, por qualquer que seja o
motivo, não conseguir supor um sujeito em seu bebê e não o investir
libidinalmente, sérias conseqüências podem ocorrer na constituição psíquica
dessa criança.

Ao contrário do que possa parecer, o nascimento de um bebê nem


sempre significa alegria para a mãe. Segundo Azevedo & Arrais (2006),
culturalmente têm-se como normal e ideal um modelo de mãe perfeita, numa
imagem romanceada da maternidade. Espera-se que as mães sejam sempre
ternas, acolhedoras, férteis e disponíveis, não considerando a possibilidade de
qualquer resquício de sentimentos ambivalentes nas mães. No entanto, é
possível verificar que esses ideais foram construídos ao longo dos últimos
séculos da história da humanidade.

Zugaib (1997) afirma que o período de gestação é um período de muitas


mudanças na mulher, é um período em que além da mudança corporal, a
mulher passa por ajustes psicológicos e psicossociais. Quanto à questão da
falha da função materna, Kupfer (2000) afirma que não se trata de atitudes
conscientes por parte das mães de autistas, mas sim inconscientes, não
intencionais. A autora compreende que algo de errado ocorreu com essas
mães, impossibilitando-as de exercer sua função naquele momento. Portanto,
os psicanalistas não podem culpar as mães pelo autismo de seus filhos, mas
sim as responsabilizam pelo futuro subjetivo de seus bebês.

Neste ponto, é interessante apontar que, no universo da Medicina Legal,


denomina-se “estado puerperal” a condição emocional das mães logo após o
nascimento de seus filhos, tanto que isso, em casos extremos, de cometimento

4
de crimes contra esses bebês, pela própria mãe, é legalmente considerado
como aspecto atenuante de sua responsabilidade penal.

Caso Joey
Neste trabalho irá se analisar a história de vida do garoto Joey, relatada
em A Fortaleza Vazia pelo autor Bruno Bettelheim - seguidor da psicanálise de
linha inglesa - com o objetivo de analisar a falha da função materna nos
primeiros meses de vida do garoto, bem como quais foram suas
conseqüências, para que ele se constituísse de maneira autista.

Joey foi um garoto que não se sentia um ser humano, mas sim um
dispositivo mecânico, uma vez que desde sua chegada ao mundo, não teve
uma recepção acolhedora por seus pais. Segundo descrição de Bettelheim, a
mãe do garoto não deu grande importância à maternidade, e após o
nascimento, considerava seu filho mais como uma coisa do que como um
bebê. Relatou ter se sentido apavorada com a nova responsabilidade que a
aguardava, e dizia não querer cuidar dele. Em seu aniversário de um ano,
ganhou de presente de seus pais um ventilador, o que passou desde então
despertar intenso interesse pelo garoto. Foi a partir de objetos com movimentos
giratórios que Joey passou a criar um vínculo, já que por pessoas isso não era
possível, ou melhor, gerava sofrimento a ele.

Portanto, tendo em vista que houve por algum motivo uma falha na
função materna no caso de Joey, o presente trabalho tem como objetivo
analisar a importância que a função materna tem no processo de constituição
do bebê, para se compreender em quais aspectos houve ruptura da relação
mãe-bebê na história de vida de Joey, e analisar a constituição autística do
menino.

Compreendo que é importante pesquisar sobre o autismo porque é um


tema que, além de polêmico, ainda não teve sua etiologia bem definida pela

5
medicina, ao passo que, para a psicanálise lacaniana, pode-se ter uma
explicação para a questão.

Os assuntos relacionados à relação mãe-bebê sempre me despertaram


interesse, assim como o tema autismo, este consistindo em matéria bastante
polêmica, principalmente por ainda haver controvérsias por sua etiologia
específica. Considerando que o autista tem a interação social bastante
prejudicada, e que psicanalistas afirmam que a falha da função materna pode
levar ao autismo, interessei-me em pesquisar a questão da relação do autismo
com a função materna, é o que se verá nas páginas a seguir.

Este trabalho poderá contribuir na compreensão da importância que a


função materna tem para a constituição do sujeito e em próximos estudos
sobre o assunto que abordem a função materna e autismo.

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MÉTODO

O presente trabalho consiste em uma pesquisa em Psicanálise, que se


trata, segundo Violante (2000), de uma teoria sobre o psiquismo. “É um método
de investigação do inconsciente e uma técnica terapêutica” (p.109). A
Psicanálise surgiu com Freud, um pensador da cultura, no início do século XX.
Segundo Birman, apud Violante (2000), tudo que trata do humano com a marca
do inconsciente é da competência da Psicanálise.

Apesar de outros meios de investigação, a circunstância analítica é a mais


privilegiada da Psicanálise. Contemporâneos de Freud, como Melanie Klein e
Lacan, inovaram os estudos de Freud a partir da atividade analítica. O
processo analítico se desenvolve em um espaço que segue os seguintes
critérios: uma relação inter-humana que consiste na fala e na escuta, o que
leva à transferência e a repetição, em que o analista se coloca como
interlocutor impessoal, de modo a não responder a demanda do paciente
(Violante, 2000).

Porém, a pesquisa em Psicanálise pode ser, além da circunstância


analítica, uma pesquisa teórica assim como histórica. O presente estudo trata-
se de uma pesquisa teórica, em que analisei um caso da literatura
psicanalítica.

A Psicanálise vai além da psicologia, ela implica em estudar além do


comportamento do humano, mais além da consciência, em direção ao
inconsciente. Portanto, para Birman, apud Violante (2000) ir além da Psicologia
é “realizar um percurso que transcende o comportamento, a consciência e o
ego, para encontrar o funcionamento pulsional do sujeito e as marcas de suas
identificações” (p.112). Laplanche compreende que além do inconsciente, a
sexualidade também é objeto da Psicanálise, uma vez que a sexualidade esta
está implicada na constituição do psiquismo. Assim exclui a noção de que a
Psicanálise é uma teoria psicológica global que explica todo desenvolvimento

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do ser humano (Violante, 2000). Esse ponto da pesquisa psicanalítica é
importante ressaltar uma vez que o trabalho em questão estuda, sob o olhar da
psicanálise, a constituição do sujeito, ou seja, não o desenvolvimento do bebê.
E a constituição do sujeito se dá a partir da compreensão da sexualidade
entendida no âmbito da psicanálise, em que a mãe tem seu bebê como objeto
de desejo, e assim o investe libidinalmente.

Para a Psicanálise, o processo da constituição psíquica do sujeito não se


trata de algo natural. Na psicose e no autismo o sujeito não se reconhece como
sujeito e nem seu Eu é reconhecido pelos outros sujeitos. Assim, segundo
Laplanche, apud Violante (2000) o desenvolvimento é uma explicação para a
Psicologia, porém não para a Psicanálise, pois a noção de desenvolvimento se
trata de algo que se dá de maneira pré-determinada, de diferentes etapas.
Porém, para a Psicanálise, o surgimento do inconsciente não se desenvolve,
uma vez que o inconsciente “é um acontecimento não-inscrito em qualquer
programa e nem a sexualidade se desenvolve linearmente por meio de etapas
sucessivas de evolução.” (Violante, 2000, p.113).

Segundo Laplanche, apud Violante (2000), a Psicanálise propõe como


objeto o sujeito humano, “enquanto ele próprio é auto-hipotético,
autoconjectural, auto-representante ou autoteorizador.” (p.114).

O campo da pesquisa em Psicanálise é restrito:


“por seu objeto, que é o psíquico, ou seja, o inconsciente; por seu
método que é a interpretação; pela técnica da associação livre e
pelas condições de possibilidade para a emergência empírica das
formações do inconsciente- o sonho, o ato, falho, o chiste e o
sintoma.” (Violante, 2000, p. 114).

Portanto, no presente estudo escolhi fazer a análise de um caso da


literatura psicanalítica, porém inicialmente descrito através da Psicanálise de
linha inglesa, para que se pudesse fazer uma nova análise, sob um distinto
ponto de vista. Então escolhi um caso de grande relevância para a Psicanálise:
O Caso Joey, extraído do livro A Fortaleza Vazia, de Bruno Bettelheim (1967).

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Segundo Nasio (2001) o caso Joey é considerado como um dos mais
célebres casos de psicose da história da Psicanálise, pois este trabalho de
Bettelheim contribuiu para “elaborar uma representação do autismo a partir de
uma perspectiva terapêutica e institucional” (Nasio, 2001 p.129).

Então escolhi analisar no presente trabalho, sob a perspectiva da


Psicanálise lacaniana, a história da primeira infância de Joey focando-se na
falha da função materna como uma possível etiologia de seu autismo.

No primeiro capítulo aborda-se o resumo focado na história da infância


do caso Joey, de Bruno Bettelheim (1967), um caso que ilustra a falha da
função materna e algumas das possíveis conseqüências na constituição do
garoto. O capítulo seguinte trata da breve explicação do Autismo Infantil, seu
histórico e o diagnóstico diferencial do autismo e da psicose, para que assim se
possa compreender, o que é exposto no capítulo três: A constituição do sujeito
e a importância da função materna nos primeiros meses de vida do bebê. A
partir disso, no capítulo quatro, são apresentadas as possíveis implicações das
falhas da função materna para a constituição do bebê podendo levar à
constituição autística.

Desta maneira, pretendi examinar as noções de autismo infantil, função


materna e falhas da função materna para compreender aspectos da
constituição psíquica e autística de Joey, o que veremos nos seguintes
capítulos.

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CAPÍTULO 1 - DESCRIÇÃO DO CASO

Iniciarei o capítulo contando um pouco sobre a história de vida do autor.


Bruno Bettelheim (1903-1990), nascido em Viena, de uma família da alta
burguesia judia, fez um curso universitário em que passava pelos estudos de
literatura, história da arte e estética. Sua tese de finalização do curso revelou
seu interesse pela psicanálise, ao integrar uma abordagem psicanalítica da arte
com uma interpretação filosófica do Belo. A partir de 1932 passou a ligar-se
aos analistas vienenses que se interessavam pelo tratamento psicanalítico de
crianças; e hospedou em sua casa, uma garota considerada débil mental (mas
que na realidade era autista) para realizar um tratamento domiciliar, o que,
segundo ele, tratava-se de uma terapia do ambiente.

Em 1938, foi interrompido o tratamento domiciliar da garota devido à


invasão da Áustria pelas tropas alemãs. Bettelheim foi deportado para um
campo de concentração, onde passou por experiências desumanas e
marcantes por um ano. Depois de ser libertado, aos seus 36 anos de idade, foi
morar nos Estados Unidos, onde dirigiu, entre 1943 e 1973, a Escola
Ortogênica de Chicago, uma instituição que acolhia crianças que sofriam de
distúrbios afetivos graves, em especial crianças autistas.

A história de Joey foi extraída de seu livro chamado A Fortaleza Vazia, o


qual foi escrito em decorrência de uma reflexão sobre a densa e longa
experiência do autor na Escola Ortogênica. Neste livro, Bettelheim conta três
histórias de vida, constatadas e estudadas no cotidiano da escola: as de
Laurie, de Marcia e de Joey. Dentre estes três casos descritos por Bettelheim,
foi escolhido relatar e analisar neste trabalho a história de vida do garoto Joey,
por se tratar de um caso em que o autor considerou ter alcançado um sucesso
relativo, uma vez que nos outros dois casos o resultado não foi positivo.

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Levou-se em consideração também a grande relevância deste caso
para a literatura psicanalítica, uma vez que com esse caso, Bettelheim
contribuiu bastante para os estudos de psicose na psicanálise. J.-D. Nasio
(2001) considera este caso de psicose1 como um dos mais célebres da história
da psicanálise, pois nele estudou-se “o menino autista cuja cura
impressionante reforçou a convicção de Bettelheim em seu projeto de tratar o
autismo no meio institucional (a Escola Ortogência)” (p.7).

Portanto, nesta parte do presente trabalho contaremos abaixo um


resumo da história de vida do garoto Joey, focando até o período de sua
infância, a partir do que foi descrito por Bettelheim, em seu livro A Fortaleza
Vazia.

Joey
Segundo Bettelheim, Joey não se sentia uma pessoa, mas sim um
dispositivo mecânico, uma vez que encontrou um mundo em que o calor
humano o levava a sofrer, um mundo sem carinho materno e que não lhe
ofereceu nenhuma parcela de autonomia. Joey então criou seu próprio e único
mundo, onde não havia sentimentos, mas sim um mundo de máquinas.

Bettelheim compreende que o casamento dos pais de Joey foi uma


tentativa de solucionar casos amorosos anteriores, de ambas as partes, já que
cada um estava traumatizado com a perda de um companheiro, tendo essas
perdas significado uma profunda relação emocional para eles. Então, ambos
decidiram que uma escolha racional iria ajudar, ou seja, casarem-se, já que
embora menos excitante, a decisão era menos dolorosa e menos suscetível de
riscos. Portanto, o casal viu o casamento como uma solução para esquecerem
a dor de cada um, já que tal dor não era compartilhada entre eles.

1
Para o autor, autismo se trata de uma estrutura psicótica, porém no atual estudo será explicado na página
21 a diferença entre psicose e autismo sob o ponto de vista da teoria lacaniana.

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Antes de casar-se, a mãe de Joey amou um homem que faleceu em um
combate aéreo (na 2ª Guerra Mundial), e teve uma adolescência difícil em que
não tinha amigos e vivia atormentada por freqüentes desmaios. O pai de Joey
era militar, também marcado por uma história de amor infeliz, teve dificuldades
na escola, mas uma vez fora de casa, morando em um internato, houve
melhoras e o mesmo se repetiu na Universidade, no Exército e na vida
profissional.

Segundo a compreensão de Bettelheim, os pais de Joey não estavam


psicologicamente preparados para ter um filho. Sua mãe deu pouca
importância à maternidade e não deixou que esta lhe provocasse nenhuma
emoção. Quanto ao momento de gestação, a própria mãe disse: “Nunca me
dei conta de que estava grávida” (p.259), o que Bettelheim interpretou como
uma demonstração de que a gravidez não modificou a vida dessa mãe. Quanto
ao nascimento da criança, ela disse não ter feito nenhuma diferença.

Muitas vezes os pais começam a se modificar com a chegada de um


bebê, mas isso infelizmente, segundo o autor, não ocorreu nesse caso, muito
pelo contrário, apesar da mãe, em parte, ter gostado da idéia de ter um filho e
tornar-se mãe, pois isso, para ela, faria diminuir sua solidão. Assim que o bebê
nasceu, ela se sentiu apavorada com a nova responsabilidade. Incomodada
pela ansiedade de não ser uma ótima mãe, passou a desprender-se por
completo de Joey. “Numa atitude de auto defesa, seu investimento emocional
orientou-se no sentido de reprimir essa ansiedade.” (p.260).

O autor descreve que depois do nascimento de Joey, sua mãe o


considerou mais uma coisa do que uma pessoa. Ela não quis vê-lo no hospital
e nem amamentá-lo, dizendo “não se tratar realmente de uma aversão, mas
que somente não queria cuidar dele” (p.260), não por negligência, mas porque
sentia que era algo além de suas possibilidades. Então, segundo Bettelheim, o
acolhimento que ele teve neste mundo não foi de amor, rejeição e nem de

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ambivalência, mas ele foi simplesmente ignorado, tudo isso devido a uma
ansiedade absoluta.

A partir das informações de Bettelheim, durante o período em que o


garoto esteve no hospital ocorreu tudo bem, mas depois de ter ido para casa as
coisas mudaram. Até os três meses de vida, “chorava quase o tempo todo”
(p.260), sofria de cólicas, obedecia a um rigoroso horário alimentar de quatro
em quatro horas e era trocado apenas quando necessário. Ninguém o
embalava e nem brincava com ele. Embora forte e saudável ao nascer, com o
tempo passou a bater violentamente com a cabeça, balançando-a ritmicamente
para frente, para trás e para os lados.

O pai foi transferido para outra unidade em seu trabalho e a mãe mudou-
se com a esposa de outro militar. Então, as ansiedades aumentaram e as
tensões também, tanto por causa da relação dos pais de Joey um com o outro,
a qual o autor descreve como um casamento considerado apenas uma
tentativa de resolução de problemas, quanto pela guerra. A mãe passou a
sentir-se fisicamente exausta, se preocupando apenas com si própria, deixando
freqüentemente o garoto sozinho no berço, ou mesmo no parque. Após alguns
meses a mãe juntou-se ao marido novamente, o que não aliviou as tensões
internas e nem as incertezas da guerra, já que os pais referem-se a esse
período como o mais difícil para eles. O pai freqüentemente descarregava sua
irritabilidade sobre o bebê, o qual teve para seu choro noturno, um acolhimento
negativo.

Ao seu um ano e meio, sua mãe e ele foram morar na casa de seus
avós maternos, os quais logo notaram uma mudança evidente e estranha em
seu comportamento, que contrastava desfavoravelmente com sua anterior
receptividade para com eles. Notaram também seu envolvimento com
máquinas, principalmente um ventilador que havia ganhado de seus pais,
quando do aniversário de um ano. Joey, com muita habilidade, desmontava e
remontava repetida e incansavelmente o ventilador.

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Bettelheim entende que o interesse do garoto por esse ventilador e seus
movimentos giratórios é justificado pelo fato de que, desde muito cedo, antes
mesmo dos dezoito meses de idade, Joey era levado ao aeroporto quando seu
pai embarcava ou desembarcava de suas viagens a trabalho. O autor entende
que essas viagens tiveram grande significado para Joey. Assim, o garoto
conviveu com barulhos ensurdecedores do motor do avião e trepidações de
decolagens e aterrissagens, enquanto sua mãe sentia uma mistura de angústia
e alívio naquela barulheira.

De acordo com a distância defensiva mantida pelos pais com relação a


Joey, ao outro e à vida, Bettelheim diz que não é de surpreender que essa mãe
pouco saiba do que aconteceu nos primeiros meses de vida do garoto.
Segundo Bettelheim, ao contrário do que se esperava, Joey era uma criança
autista que falava, embora não se comunicasse. Por viver em um vazio
emocional, a linguagem de Joey foi se tornando cada vez mais abstrata e
despersonalizada. Passou a utilizar incorretamente os pronomes pessoais, até
chegar ao ponto de não mais utilizá-los. Bettelheim afirma que o garoto
demonstrou ter tal capacidade, mas por escolha inconsciente, desenvolveu
uma linguagem autística.

A princípio Joey nomeava corretamente os alimentos, mas com o tempo


passou a classificá-los especificamente em novas categorias, por exemplo, o
“açúcar” ele passou a denominar “areia”, a “água” passou a ser chamada de
“líquido” e assim por diante. Segundo Bettelheim (1987), Joey passou a
substituir a qualidade nutritiva do alimento por sua qualidade física, “porque ele
alimentava-se apenas de substâncias físicas e não de emoções. Assim, privava
a comida do sabor e do cheiro e substituía essas qualidades por características
táteis” (p.261).

“Era evidente que Joey era capaz de pensar abstratamente


e que nessa transposição de nomes, assim como no abandono
dos pronomes, a criança autista cria uma linguagem de acordo
com a experiência emocional que tem do mundo - o que é uma

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realização intelectual. Longe de não saber como utilizar
corretamente a linguagem, significa uma decisão espontânea de
criar uma linguagem que se coadune com a forma como ela
experimenta as coisas - e apenas as coisas, não as pessoas”.
(Bettelheim, 1987, p.262).

Aos quatro anos de idade, Joey foi encaminhado a uma escola maternal
para crianças perturbadas, dirigida por uma clínica universitária de orientação
infantil e por uma orientadora infantil, a qual reconheceu que o garoto
necessitava de tratamento psiquiátrico devido a seu isolamento e interesse
somente por atividades de movimentos giratórios. Na clínica, Joey foi
diagnosticado como autista e foi proposto tratamento psicoterápico individual,
tanto para a criança quanto para seus pais, o que ocorreu.

Durante anos de terapia da mãe, e um menor período de terapia do pai,


o progresso de ambas as partes conseguiu fazer com que melhorassem as
condições do casamento, até um nível satisfatório. Os pais, posteriormente,
tiveram mais dois filhos não-autistas, uma menina seis anos mais nova do que
Joey e um menino treze anos mais novo que ele.

Além da modificação de seus pais, Joey também apresentou alguns


progressos nesse longo período (três anos) de tratamento psicoterápico,
embora tenha mantido os comportamentos autísticos. O período de terapia de
Joey foi caracterizado pela repetição de suas atividades, pela limitação de seu
interesse, o que se restringia muito mais a coisas do que a pessoas. Seu
interesse único e obsessivo por ventiladores o excluía do contato com a
realidade. Quando Joey não estava imitando um motor - sendo um motor, de
acordo com sua vivência - a maior parte das vezes sentia-se tão frustrado, que
se desorientava por completo e então arremessava pratos ao chão, derrubava
prateleiras ou dirigia sua violência contra si próprio.

Parecia ser impossível estabelecer contato com Joey, uma vez que ele
se mostrava indiferente a tudo. Entretanto, com a terapia ao longo de anos, na
escola maternal para crianças perturbadas, ele passou a perceber a existência

15
de sua terapeuta, chegando até a interagir um pouco com ela. Posteriormente,
passou a utilizar pronomes pessoais ao contrário, ou seja, mencionava “tu” ao
referir-se a si próprio, e “eu” ao adulto ao qual se dirigia. Depois de um ano,
passou a chamar a terapeuta pelo nome, apesar de ainda não utilizar o
pronome “tu” a ela, dizendo, por exemplo, “Quero que Miss M. balance você”.

Pouco depois de seu tratamento com essa terapeuta acabar, Joey


passou a utilizar o eu de forma correta, e a identificar tanto sua terapeuta como
algumas crianças pelo nome, apesar de não utilizar pronomes pessoais no
discurso direto, apenas na terceira pessoa, quando se referia a elas. O garoto
chegou a progredir nos três anos em que freqüentou a clínica, mas não
abandonou suas atitudes autistas e nunca brincou com outras crianças.
Apenas no último ano, quando já tinha seis anos de idade, ele finalmente
tomou consciência das outras crianças, o suficiente para lhes desejar o mal, ou
para expressar uma resistência muito grande.

Por volta dos seis anos, além de Joey ter ganhado uma irmãzinha, ele
atingiu a idade limite permitida para a escola maternal da clínica. Então passou
seus dois anos seguintes num internato religioso severo, onde seu progresso
antes conquistado muito se perdeu, voltando-se ele a um mundo
despersonalizado e passando a se dirigir apenas à mãe, manifestando-se
apenas por murmúrios. O garoto não era mais capaz de utilizar pronomes
pessoais e nem de chamar as pessoas pelo nome.

Seu estado deteriorou-se a ponto de ter que voltar a morar em casa,


enquanto aguardava ser admitido na Escola Ortogênica (Orthogenic School). A
deterioração do garoto foi tanta que ele não falava mais “mamãe” e se
comunicava com ela aos sussurros para chamar sua atenção. Mas, para piorar,
até isso era em vão, pois ela, então, dedicava-se totalmente à filha mais nova,
que obtinha dela tudo o que Joey desejava, mas que jamais havia obtido.
Assim, o garoto foi mergulhando em uma raiva, a ponto de sua própria vida
tornar-se insuportável, o que o levou a cometer uma grave tentativa de suicídio.

16
Mais uma vez, ele “aprendeu que sentir é ser destruído; que só completamente
insensível é que podia sobreviver” (Bettelheim p.266).

Aos nove anos e meio, quando Joey conseguiu ser atendido pela Escola
Ortogênica, ele apresentava estatura menor do que o esperado.

“Parecia frágil, parecia só olhos num corpo dolorosamente magro, olhos


escuros e sofredores fitando vagamente o nada. Se por acaso fazia
algo, parecia funcionar por controle remoto - um “homem mecânico”
dirigido por máquinas que haviam sido criadas por ele e que lhe
escapavam ao controle” (p.254).

Quando Joey foi à Escola Ortogênica, profissionais de lá conversaram


bastante com seus pais, e a mãe os impressionou bastante devido a seu ar de
“condenada à morte”, sua insegurança e mais ainda pela sua frieza quando
falava de Joey, demonstrando-se incapaz de vê-lo como uma pessoa com vida
própria. Ao falar de outras pessoas e acontecimentos, a mãe de Joey
expressava-se com vivacidade e clareza, mas era só o assunto voltar ao
menino que imediatamente tornava-se impessoal, desligada e desinteressada,
tornando-se incapaz de comentar sobre o filho, até que mudasse de assunto,
falando de outras pessoas ou de si própria. Parecia que Joey nunca havia feito
parte de sua mãe.

Joey, por ter encontrado um mundo em que sentimento era sinônimo de


sofrimento, ou seja, no qual ter afetos era um pressuposto para ser destruído, e
onde ele só poderia sobreviver se conseguisse defender-se de qualquer
emoção, criou um mundo separado, único e próprio, só seu, sem lugar para
sentimentos. Interessava-se ele, assim, exclusivamente pelo funcionamento
das máquinas, por ser este apenas mecânico e isento de qualquer emoção ou
sentimento. Bettelheim analisa que como um bebê tem que estar em contato
com a mãe para mamar, Joey tinha, como se fosse uma máquina elétrica, estar
ligado na tomada para funcionar.

17
Segundo descrição de Bettelheim, Joey era uma criança carente.
Notava-se que, subjacente a tudo que fazia, havia tensão, objetivo e uma
complexidade que ultrapassava sua compreensão. “Só que estas não
chegavam até nós como tensões e complexidades humanas. Assemelhavam-
se mais à tensão que sentimos num fio de alta tensão ou num cabo de aço
esticado até o ponto de ruptura” (p.254).

Esse menino-máquina só se relacionava com os outros quando


funcionava; quando em descanso, era como se não tivesse existência; ele não
saía de perto de suas maquinarias, as quais não trocava por nada. Embora no
instante anterior não se encontrasse emocionalmente presente, no instante
seguinte Joey parecia uma máquina, as rodas a chiar e a girar rapidamente e
assim absorvia os outros a seu redor, quer gostassem quer não.

Contudo, Bettelheim entende que Joey não agia de forma tão


indiferente, e nem tão ausente como outras crianças autistas extremamente
alienadas ou mudas, que, devido à sua ferocidade e selvageria, foram
comparadas a animais e chamadas de crianças selvagens. Sua existência
humana não era reduzida, nem era uma existência do tipo animal. Bettelheim
conclui que ele era real, mas que sua realidade era a das máquinas.

Bettelheim exemplifica que às vezes, por um longo período de ausência


(como se o garoto estivesse desconectado do mundo), Joey era interrompido
ao ligar a máquina, cada vez mais freqüentemente até culminar numa explosão
destruidora. Isso acontecia muitas vezes ao dia e acabava com Joey
arremessando subitamente uma válvula eletrônica ou uma lâmpada ao chão,
que se estilhaçava e se quebrava com estrépito. Bettelheim acha que o garoto
tinha uma capacidade notável para apropriar-se de válvulas ou para
desatarraxar lâmpadas, antes de se percebesse o que estava acontecendo.

Uma vez, chegando ao momento de o mundo explodir, essa criança, que


vivia em profunda quietude, muda e impassível, se enfureceria de repente,

18
correndo desenfreadamente e gritando, “Bum! Bum!” ou “Explosão!” enquanto
atirava ao ar uma lâmpada ou um motor. Logo que o objeto arremessado se
quebrava e que o estrépito acabava, Joey como que morria com ele. Sem
qualquer transição, retornava à sua aparente não-existência. Explodida a
máquina, não restava movimento, vida, absolutamente nada.

Durante as primeiras semanas de Joey na escola de Bettelheim,


observaram atentamente, por exemplo, sua entrada na sala de jantar.
Estendendo um fio imaginário, ligava a si próprio à sua fonte de energia
elétrica. Depois esticava o fio desde uma tomada elétrica imaginária à mesa da
sala de jantar, para se isolar, e então o garoto se ligava na tomada. Segundo o
autor, Joey tinha de estabelecer essas ligações elétricas imaginárias (tentara
utilizar fio verdadeiro, mas para sua segurança não o permitiram) antes de
poder comer, porque só a corrente fazia funcionar seu aparelho digestivo. O
garoto realizava tal ritual de forma tão concentrada e com tanta habilidade, que
era contagiante. Quem o observava nestes momentos precisava certificar-se
de que não havia nem fio, nem tomada elétrica e nem plugue. Com receio de
interromper a corrente e deter sua existência, as crianças e os membros da
equipe tomavam cuidado para não pisarem nos fios imaginários do garoto.

Após muitos acontecimentos e aproximação de Joey com Fae, Bárbara


e Lou, suas duas orientadoras e seu professor, muitas evoluções ocorreram.
Bettelheim relata que Joey, por volta de seus doze anos, deixou de agir como
um aparelho mecânico, para ser uma criança humana, tornando-se um recém-
nascido que havia perdido muito tempo de sua vida, e que tinha muita coisa
para recuperar, embora já tivesse superado bastante.

Passados nove anos que havia entrado na escola de Bettelheim, Joey,


que então já era capaz de sentir emoções e desejava ser amado, demonstrava
ter vontade própria de dirigir sua vida e expressou o desejo de morar
novamente junto aos seus pais. Ele mesmo comunicou à escola que havia
chegado o momento de deixá-los, para recomeçar a vida com sua família. Joey

19
“completou sua educação numa escola técnica, utilizando melhor seu
perseverante interesse, agora mais normal, por questões técnicas” (Bettelheim,
p.356).

“Quando Joey terminou a escola secundária, pediu aos pais, como


presente, que o deixassem visitar-nos. Viajou sozinho até Chicago.”
(Bettelheim, p.357). Foi nessa visita que Bettelheim pediu a Joey o
consentimento para publicar sua história.

Seguem, na página seguinte, duas fotos extraídas da página 254 do livro


A Fortaleza Vazia, de Bruno Bettelheim. As fotos demonstram como Joey
transformou sua cama em uma espécie de máquina.

20
21
CAPÍTULO 2 - AUTISMO INFANTIL

O tema Autismo abrange diversas maneiras de ser compreendido, não


apenas quanto à sua denominação, mas também quanto ao seu quadro clínico
e, principalmente, às supostas etiologias, que até os dias de hoje ainda são
muito discutidas.

“Trata-se de um campo fragmentado entre psiquiatras,


neurologistas, educadores, psicólogos e psicanalistas… Além da
dificuldade de isolar precisamente quadros clínicos na infância (cf.
Volnovich, 1993), defrontamo-nos com a divergência acerca da
própria definição do que é o autismo e como diagnosticá-lo – isto
é, como identificar um autista – diferenciando o autismo de outras
patologias infantis.” (Rocha, 2003 p.6)

Segundo Kupfer (2000), o avanço dos estudos sobre psicose infantil e


autismo é em grande parte devido à não concordância entre os profissionais
quanto aos seus diagnósticos, dificultando assim as trocas científicas sobre o
tema. Ela diz que “o autista do neurologista não é o autista do psicanalista”
(p.1). Até mesmo entre os psicanalistas não há um consenso sobre o assunto,
uma vez que para seguidores de Jacques Lacan o diagnóstico de uma criança
autista é diferente daquele dado seguindo-se uma outra visão da psicanálise.

Segundo Kupfer (2000), embora psicose infantil e autismo sejam temas


de discussões recentes, eles sempre existiram. E dentro das discussões, não
há um consenso nem mesmo entre psicanalistas seguidores de diferentes
linhas teóricas, quanto às diferenças entre autismo e psicose infantil.

Kupfer (2000) exemplifica que Mahler (citado por Ledoux, 1989),

“(...) incluía o autismo dentro do quadro geral das psicoses


infantis. De acordo com Ledoux, Mahler, inicialmente, estabeleceu
uma distinção nítida entre o que ela chamou de psicose autística e
psicose simbiótica. Na primeira a mãe parece não ser percebida
como elemento externo, e não é investida libidinalmente, o que
aproxima essa categoria com a clássica de autismo. Na psicose
simbiótica, a representação psíquica da mãe existe, mas

22
fusionada ao self; essa segunda categoria aproxima-a da psicose
infantil clássica. Após 1951, essa nitidez desaparece, já que, para
Mahler, podemos encontrar um largo espectro de traços autísticos
e simbióticos no interior da síndrome psicótica infantil.” (p.2).

Laznik Penot (1997) faz parte dos psicanalistas que acreditam que “as
falhas de estrutura que apresenta o autismo não são necessariamente as da
psicose” (p.57). Assim como Jerusalinsky, o qual, segundo Kupfer (2000),
“marca radicalmente a diferença, e propõe que se entenda o autismo como
uma quarta estrutura clínica, ao lado das três outras -psicose, neurose e
perversão -, proposta por Lacan.” (p.3).

Levando-se em consideração que, resumidamente, a função materna


atua desde o início da vida de um bebê, ou melhor, antes mesmo de seu
nascimento, antecipando o filho, escolhendo-lhe um nome e preparando-se
para sua chegada ao mundo, a função materna tem como principal objetivo dar
possibilidade de surgir um sujeito no bebê e de, principalmente, “transmitir um
desejo de existência, de pertença a uma história, transmitir ao bebê um desejo
que não seja anônimo”. (Jardim, 2000, p.57).

Já a função paterna, apesar de ter outros objetivos, também é de


essencial importância. Jardim (2000) é sucinta em explicar que a função
paterna tem a principal missão de “barrar, de mediar a relação desejante
estabelecida entre uma mãe e seu bebê” (p.57), como também a de barrar “(...)
o bebê em apreender-se como único objeto de desejo de uma mãe, que por
sua vez, é também mulher” (p.57). Essa função carrega com si a lei, a qual
pode ser inclusive a de castração.

Se falhar uma dessas funções, as conseqüências para o bebê podem


ser negativas. Jerusalinsky compreende que no autismo, a falha é da função
materna, e na psicose, entende-se que a falha é da função paterna2. Portanto

2
Entende-se que a função paterna também é de grande importância para a constituição psíquica do bebê,
porém o atual estudo tem como foco principal o autismo, portanto será abordada apenas a função
materna.

23
as identidades de estrutura não são as mesmas, na primeira se tratando de um
caso de exclusão e na segunda, de foraclusão. O autor diz assim ser seu ponto
de vista, mesmo sabendo que apesar de que para Lacan não há unanimidade
neste aspecto, uma vez que há quem entenda “a exclusão como um caso
particular da foraclusão” (Kupfer, 2000, p.3).

“A diferença entre forclusão e exclusão consiste em que,


no caso da forclusão se produz uma inscrição do sujeito numa
posição tal que esta inscrição não pode ter conseqüências na
função significante. No caso da exclusão não há inscrição do
sujeito; no lugar onde a inscrição deveria se encontrar, se
encontra o Real, ou seja, a ausência de inscrição. Esta diferença
radical de estrutura conduz a efeitos clínicos observáveis.”
(Jerusalinsky, apud Kupfer, 2000, p.3) .

Lacan (1955-6), apud Lima (2001) traduz com o conceito foraclusão, o


que Freud chamava de Verwerfung, o que designa “o mecanismo específico da
psicose, ou seja, o que caracteriza a estrutura psicótica é a não ocorrência e,
portanto, a não inscrição da castração no Inconsciente, no Outro3” (p.34). A
autora conclui que a psicose, portanto é uma estrutura em que o Nome-do-Pai
é foracluído do Simbólico.

Contardo Calligaris (1989) entende o autismo como aquém da


problemática da psicose, ou melhor, de qualquer problemática de defesa. Para
ele,
“A psicose como a neurose procuram responder à
Demanda do Outro sustentando o sujeito na sua referência a um
saber que o defenda, constituindo-o como distinto do objeto. A
escolha do autismo me parece diferente: uma tentativa de apagar
a Demanda do Outro, se anulando, segundo a idéia que, se não

3
É importante que fique claro o uso que Lacan faz de sua terminologia especifica do
Outro/outro. Segundo Rudinesco (1998), Lacan criou tal terminologia para diferenciar o que é
da ordem do terceiro, ou seja, da determinação do inconsciente freudiano (Outro), do que é da
alçada da pura dualidade (outro), no sentido da psicologia. O termo Outro (escrito com letra
maiúscula) para indicar “um lugar simbólico - o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente,
ou, ainda, Deus - que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-
subjetiva em sua relação com o desejo.“ (Roudinesco, 1998, p.558). O termo outro - escrito
com letra minúscula - designa o semelhante, o parceiro imaginário, fonte das identificações
imaginárias. (Kupfer, 2000).

24
houvesse criatura, não haveria falha na perfeição do criador e por
conseqüência o criador não queria nada” (p.67).

Conclui-se então, a partir deste modo psicanalítico de compreensão do


autismo e da psicose, que ambos, apesar de apresentarem quadros
psicopatológicos diferentes, “podem ser considerados efeitos da falência de a
educação primordial inscrever marcas simbólicas no psiquismo, o que acarreta
impossibilidade de fundação do sujeito” (Lima, 2001, p.34).

Apesar de autores seguidores de Lacan terem alguma relativa


concordância quanto à compreensão do autismo e da psicose, há muita
discordância entre outros profissionais da saúde, inclusive psicanalistas.
Portanto, para tentar instalar uma uniformidade diagnóstica, desde 1994, a
Associação Americana de Psiquiatria, no Manual de Diagnóstico e Estatísticas
de Distúrbios Mentais (DSM-IV), crianças psicóticas e autistas passaram a ser
classificadas em uma mesma categoria, chamadas, como já anteriormente, de
“portadores de distúrbios globais do desenvolvimento”. Essa classificação
facilitou a troca entre profissionais, mas não acrescentou na compreensão
sobre o tema.

Dentre os transtornos globais do desenvolvimento, o autismo é o mais


conhecido. Refere-se a um grupo de condições caracterizadas por uma vasta
variabilidade de condições clínicas. São identificados por apresentarem uma
interrupção precoce dos processos de sociabilização. O autismo é marcado
por um permanente prejuízo na interação social, alterações da comunicação e
padrões limitados ou estereotipados de comportamentos e interesses.

Atualmente, a Décima Revisão da Classificação Internacional de


Doenças (CID-10) define Autismo Infantil como um desenvolvimento anormal
ou alterado, apresentando falhas de funcionamento nas áreas de comunicação,
interação social e comportamento repetitivo. Segundo os dados obtidos no
CID-10, a incidência populacional do autismo é em torno de 2 a 5 indivíduos
autistas para 10.000 indivíduos, e o predomínio para o sexo masculino é de 4

25
a 5 vezes superior do que para o sexo feminino, observando-se, portanto, uma
muito maior incidência no sexo masculino4.

Quanto aos sintomas apresentados pelo autismo infantil e outros nomes


antes propostos, Stefan (1998), crianças autistas apresentam um quadro que
fenomenologicamente pode ser muito variado, e também as descrições dos
autores são muito diferentes, pois alguns sintomas são levados mais em
consideração do que outros.

“Através dos anos, várias outras denominações foram


propostas: esquizofrenia infantil (Bender, 1947), psicose
simbiótica (Mahler,1952), desenvolvimento atípico do ego ( Rank,
1949), pseudo-retardo ou pseudo-deficiência (Bender, 1956),
psicose da criança (Rutter,1963), etc.”(Stefan,1998, p.16)

- HISTÓRICO DO AUTISMO

Iniciarei com um breve histórico do surgimento do termo autismo, o qual,


segundo Stefan (1998), surgiu na psiquiatria em 1906, primeiramente como
adjetivo para indicar pacientes com demência precoce.

Segundo Rocha (2003), em 1943, no vocabulário psiquiátrico, o termo


autismo significava atitude de isolamento patológico. Eugen Bleuler, psiquiatra
suíço e pioneiro da Psiquiatria infantil, avaliou que autismo se referia ao:

“traço patognomônico da síndrome: uma incapacidade


manifestada desde o início da vida de estabelecer relações sociais
motivada por um forte desejo de isolamento e imutabilidade. Para
Kanner, a problemática dessas crianças se situava na
impossibilidade de contato afetivo com o outro, ou seja, nas
alterações da relação com tudo o que se apresentava a elas como
uma alteridade.” (Rocha, 2003, p.2).

Desde 1938, Leo Kanner, o primeiro a publicar estudos profundos sobre


autismo, já havia separado, dentre as psicoses infantis, uma nova classe, a
qual continha características de uma síndrome. Assim, utilizando-se do termo

4
Entendemos que é um ponto interessante sobre o tema, mas que não será discutido no presente trabalho.

26
autismo, cunhado por Bleuler em 1911 para mencionar um dos sintomas da
esquizofrenia, ele nomeou tal síndrome de Autismo Infantil Precoce (Kupfer,
2000).

Em 1943, Kanner acompanhou um grupo de 11 crianças que


apresentavam características semelhantes, sendo algumas das principais
delas, o fato de que essas crianças não estabeleciam relações; tinham alta
capacidade de memorização decorada; as que falavam não utilizavam a fala
para se comunicar; apresentavam tendência a ecolalia (eco na linguagem);
tinham comportamentos que tendiam à repetição; maneirismos motores
estereotipados; boa memória e fisionomia normal. Por serem parecidas as
características apresentadas por este grupo, Kanner sugeriu haver uma única
entidade clínica, a qual nomeou “autismo infantil precoce”, ressaltando que os
sintomas ocorreriam antes dos 30 meses de idade.

Stefan (1998), em “O que a clínica do autismo pode ensinar aos


psicanalistas”, na página 15, cita de modo resumido os critérios de diagnóstico
elaborados por Kanner:5

1- Incapacidade para vincular-se de maneira ordinária com pessoas e


situações;
2- Incapacidade para adotar uma postura antecipatória frente às pessoas;
3- Nenhuma linguagem ou incapacidade de empregar a linguagem de
maneira significativa para os demais;
4- Excelente memória mecânica;
5- Repetição de pronomes pessoais tal como são ouvidos;
6- Repete não só as palavras, como a entonação da pessoa com quem
fala;
7- Recusa de comida;
8- Reagem com horror a ruídos fortes e objetos em movimento;

5
Vale ressaltar ao leitor que nem todos os itens citados acima serão explorados no presente
trabalho. Serão explorados apenas os que foram considerados de maior importância e de mais
fácil acesso dentro da literatura do autismo.

27
9- Atitudes monotonamente repetitivas e necessidade de manter as coisas
sempre iguais;
10- Boa relação com objetos que lhe interessam, podendo jogar com eles
durante horas;
11- Todos (os 11 do grupo inicial) tinham boas potencialidades cognitivas e
fisionomias inteligentes;
12- Fisicamente eram essencialmente normais;
13- Infantis; de famílias bastante inteligentes.

Porém, segundo a mesma autora, em 1956 Kanner passa a manter


apenas dois elementos: o isolamento autístico e a necessidade de
imutabilidade, os quais passam a ser considerados patognomônicos. Foi o
autismo considerado, então, um distúrbio inato.

Segundo Kupfer (2000), quanto a última observação, o item 13, Kanner


ousou dizer que a grande maioria dessas crianças vinham de famílias muito
inteligentes e as mães dessas crianças pareciam frias e distantes, tendo
levantado a hipótese de que isso teria relação com o problema de contato
daquelas crianças. “Ou seja, Kanner oscilou, no transcurso de seus textos,
entre considerar a dimensão do orgânico e na etiologia do autismo - uma
síndrome genética - e enfatizar as relações mãe-bebê para explicá-lo.” (Kupfer,
2000, p.4,). Vale ressaltar que quando digo mãe, refiro-me tanto a esta quanto
ao(à) cuidador(a), ou seja, não necessariamente à mãe do bebê propriamente.

Tal hipótese espalhou-se muito rápido mundo afora, principalmente nos


Estados Unidos, gerando curiosidade na sociedade, mas ao mesmo tempo
negação e indignação por parte dessas mães, as quais se organizaram em
associações, uma vez que discordavam de sua caracterização como “frias” e
diziam “amamos nossos filhos, e ninguém tem o direito de dizer que somos
culpadas pelo autismo de nossos filhos.” (Kupfer, 2000, p.4).

28
Segundo observação feita por Kupfer (2000), devido às manifestações
das mães, Kanner teve que ceder, escrevendo em 1946, Em defesa das mães
(1946/1974) e, segundo a autora, ele pareceu confuso com o que fazer com
sua observação a respeito das mães.

Ainda segundo a autora, os psicanalistas não desprezam essa visão de


que a mãe tem relação com o autismo, e a autora compreende que atualmente
é possível recolocar a questão, afirmando “as mães têm razão - e Kanner
também.” (p.4).

“A partir de Kanner, duas correntes de explicação e


tratamento foram tornando-se claras. Uma foi a
“medicalização”, ou seja, uma biologização do autismo e
das psicoses, o que “desculpabilizaria” totalmente as
mães. A outra corrente é a psicanalítica, que enfatiza a
psicogênese do autismo, ou seja, entendem o quadro de
autismo e da psicose como o efeito de uma relação
patogênica mantida entre mãe e filho.” (Kupfer, 2000, p.6)

Kupfer explica que essa ligação da constituição de um sujeito autista


com a relação mãe-bebê, não ocorre de forma consciente dessas mães, e que
elas não podem ser intencionalmente culpadas pelo autismo de seus filhos,
mesmo porque o bebê também tem seu papel de possibilitar uma relação
saudável com sua mãe, o que pode não ocorrer. No entanto, ao mesmo tempo
em que os psicanalistas não podem culpabilizar as mães de crianças autistas,
eles podem responsabilizá-las pelo futuro subjetivo de seus filhos.
Responsabilizadas, segundo Kupfer (2000), no sentido de fazê-las se
perguntarem quanto ao que é de sua responsabilidade na criação de seu filho e
é também uma tentativa da mãe refletir sobre o que não pôde ocorrer nos
tempos de bebê de seu filho.

Segundo Montgomery (1997), a gravidez é um período de grandes


modificações tanto no corpo quanto no ego da mulher. O autor entende a
gravidez como um movimento.

29
“Assim como a puberdade, a gravidez é um passo
biologicamente motivado na maturação de um indivíduo. Esse
passo requer ajustes psicológicos e adaptações psicossociais
para conduzir a um novo nível de integração e que normalmente
representa desenvolvimento. Um período rico em transformações
que denominamos como um período de crise.” (p.253).

Situações de crise, Montgomery (1997) entende como períodos de


grandes modificações psicossociais que podem levar a desestruturação de
todo um “referencial prévio de valores, inserção social, modo de
relacionamento e até mesmo identidade.” (p.254). O autor compreende que
para elaborar esse momento de mudanças, é necessário que a gestante se
adapte às mudanças físicas e psicossociais.

O autor compreende que é comum mulheres abominarem


inconscientemente a rígida e tradicional posição de mãe, que é repleta de
estereótipos e convencionalismos. Então para essas mulheres, muitas vezes
torna-se difícil se colocar ao seu novo papel tanto de maneira afetiva quanto
ideologicamente. “Dependendo do núcleo estrutural, a gestante pode-se
encontrar dividida em um papel misto, ou seja, ela abdica de seu papel de filha
e não assume o papel de mãe.” (p.254).

O nascimento de um bebê nem sempre é sinônimo de alegria para a


mãe, como é o esperado. Culturalmente tem-se como normal e ideal um
modelo de mãe perfeita, uma imagem romanceada da maternidade. Espera-se
que as mães sejam sempre ternas, acolhedoras, férteis e disponíveis,
descartando a hipótese de qualquer vestígio de sentimentos ambivalentes nas
mães. Contudo, é possível verificar que essas idéias foram construídas ao
longo dos últimos séculos da história da humanidade (Azevedo e Arrais, 2006).

Frona (1999) afirma que a maternidade e a maternagem, segundo os


antropólogos e sociólogos, é um constructo social e cultural que decide como
criar e ser responsável pelos seus filhos, ou seja, tal imagem idealizada da
maternidade não é algo tradicional e natural da mulher, mas sim construída

30
culturalmente. Assim, a visão de que a maternidade é natural entra em choque
com a maternidade que foi criada culturalmente, o que, segundo Azevedo e
Arrais (2006), leva à impressão da existência de uma “mãe desnaturada”.

Então se a criança se desenvolve autisticamente, não podemos dizer


que é por culpa da mãe, mas sim porque algo a impossibilitou de realizar sua
função materna como é necessário para a constituição psíquica de seu bebê
como um sujeito autônomo, falante e desejante.

Jerusalinsky, apud Silva (1997) em seu trabalho “Psicanálise do


Autismo”, afirma, após uma revisão da etiologia do autismo e basear-se em sua
clínica, que:
“o aparecimento tanto de traços como de quadros autistas
está inteiramente vinculado ao desequilíbrio do encontro do
agente materno com a criança. Sendo que este equilíbrio
depende, por um lado, do status psíquico deste agente e, por
outro lado, das condições constitucionais da criança para se
apropriar dos registros imaginários simbólicos que entram no jogo
do vínculo” (Silva, 1997, p.32).

Portanto, entende-se que o autismo trata-se de um assunto complexo,


que desde que surgiu na psiquiatria infantil, gera polêmica por não haver um
consenso entre os profissionais que estudam o tema. Na tentativa de um
consenso diagnóstico, suas características foram rotuladas pelo DSM e pelo
CID10. Mas a Psicanálise, baseada na teoria de Lacan, na qual o atual trabalho
se baseia, entende que a constituição de um sujeito autista está relacionada
com a relação mãe-bebê. Não de forma a culpabilizar essas mães, mesmo
porque se trata de algo inconsciente por parte delas, da mesma forma tendo-se
que levar em consideração o fato de esses bebês também terem certa
participação, no sentido de conseguirem representar e suportarem a posição
de desejante, assim possibilitando ou não uma relação saudável. Segundo
Kupfer, o bebê tem que poder absorver a função materna.

Depois de examinarmos o diagnóstico diferencial entre autismo e


psicose, as controvérsias quanto a etiologia do autismo e sua história, agora

31
avançaremos para explicar, então, todo o processo de constituição do sujeito,
ressaltando a importância da função materna, dada sua relevância na
compreensão do autismo.

32
CAPÍTULO 3 - CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Sabemos que o bebê humano não sobrevive sem outro ser humano, ou
seja, é extremamente dependente do outro. Portanto, esse outro deve garantir
a sobrevivência do bebê. Sobrevivência, tanto física quanto de seu psiquismo,
no sentido de possibilitar ao bebê seu desenvolvimento rumo à constituição de
um sujeito, uma vez que sabemos que o psiquismo passa por uma construção,
uma produção. Ele não nasce pronto. E nessa produção, a psicanálise leva em
consideração o orgânico, embora mais ainda a relação com o outro.

Jerusalinsky, apud Rabello (2005) entende que para a Psicanálise, o


processo de constituição do sujeito está intimamente relacionado com a ordem
da linguagem, por isso, para ocorrer a constituição do sujeito é necessário a
presença de um Outro que sustente a temporalidade do desejo em relação ao
bebê.

Rabello e Franco (2005) compreende que a construção de um eu, que


possibilite um sujeito, deve acontecer durante o período da primeira infância,
que é o primeiro tempo de construção essencial de uma imagem unificada do
corpo. Esse período, antes mesmo do nascimento do bebê, já é precedido
pelos pais. “A função materna é o primeiro objeto que se oferece a ser
simbolizado e é esse mesmo agente materno que envia ao bebê marcas
significantes que o inscrevem no campo da linguagem” (p.2).

“A relação mãe-bebê opera sobre um universo de grande


complexidade, que começa com o equipamento material com o
qual a criança vem ao mundo e termina no entorno social em que
mãe e bebê encontram-se mergulhados. Mas, não se deve
minimizar o valor do encontro mãe-bebê. Somente ele poderá
permitir que um bebê faça uso de seu equipamento, inteiramente
inoperante se não houver quem o pilote. Mais que isso, esse
equipamento sequer existirá se não houver quem o construa”
(Kupfer, 2000 p.5)

33
As primeiras relações mãe-bebê são de essencial importância, uma vez
que é a partir dos cuidados e das ações desejantes depositadas ao filho, que
possibilitam ao bebê desenvolver-se e vir a constituir-se ou não como sujeito.
É a partir dessa relação que vai se estabelecendo com o Outro primordial
(posição que uma mãe sustenta para seu bebê), que “a mãe vai imprimindo em
seu bebê sua história fantasmática e também a do seu parceiro, bem como a
dos seus respectivos núcleos geracionais.” (Silva, 1997, p.31).

“Segundo Lacan, em um primeiro tempo, a criança procura


perceber o desejo de sua mãe. Isto pressupõe que a própria mãe
esteja à procura de um desejo e que ela possa significar, para a
criança, o indicativo de um lugar fálico primitivo. O problema para
criança fica sendo, então, ser ou não desejada, ou seja, poder vir
a ocupar o lugar do falo no desejo da mãe.” (Laznik Penot, 1997,
p.97).

Segundo Kupfer (2000), a mãe estará incitada pelo desejo e por conta
disso precipitará uma existência subjetiva em seu bebê, subjetividade esta que
ainda não há, embora virá a se instalar, pois foi suposta. Rabello e Franco
(2005) afirma que o que possibilita o bebê tornar-se sujeito é a função materna,
ao passo que faz parte dessa função dar significações para as produções do
bebê. “Desejando o desejo do bebê, esta mãe, através das trocas afetivas,
passa a fornecer ao bebê a possibilidade de intermediar-se ativa e
significativamente com o mundo.” (p.4).

- OLHAR MATERNO
Falaremos agora da importância que o olhar materno tem para a
constituição do sujeito, pois não se trata de um simples olhar, mas sim um
olhar desejante, como será explicado abaixo.

A mãe supõe nesse bebê como um ser subjetivo, uma vez que ele já
recebe um nome e muitas significações, mesmo que ele ainda não tenha um
saber. Desde seu nascimento, ele de certa forma já está inserido na sociedade,
já existe uma rede de comunicação, por mais que a dele ainda não esteja
estruturada. A partir desse desejo da mãe pelo seu bebê, ela demonstrará

34
diversos atos de carinho por ele: “Desenhará com seu olhar, seu gesto, com as
palavras, o mapa libidinal que recobrirá o corpo do bebê, cuja carne sumirá
para sempre sob a rede que ela lhe tecer.” (Kupfer, 2000, p. 4).

O bebê, segundo Laznik Penot (1997), tem que tomar um lugar ideal aos
olhos dessa mãe. A partir do que Kupfer (2000) nos diz, a tarefa da mãe não
depende de nenhum ato determinado de vontade, mas acontece como um
hábito estabelecido por sutis e imperceptíveis reconhecimentos recíprocos. Um
exemplo disso é o fato da mãe escutar o choro de seu bebê, enquanto ninguém
mais o escuta. Esse processo de reconhecimento e idealização está descrito
por Lacan através da metáfora do espelho6, que para ele é o primeiro momento
da constituição de um sujeito, e se inicia com a construção da imagem
corporal, através do desejo ou do olhar materno, o qual o possibilitará em uma
totalidade e maturação. (Kupfer, 2000).

Segundo Jardim (2000), Lacan entende o Estádio do Espelho como um


momento de transformação que o bebê passa de estado de ser para um estado
de subjetividade. É nesse momento que Lacan coloca os primeiros tempos da
emergência do sujeito.

“A passagem do Estádio do Espelho possibilita ao bebê


partir da insuficiência à antecipação, ou seja, antes mesmo que
tenha autonomia para falar, andar, etc., a criança pode recolher
uma imagem psíquica de si mesma da imagem que um outro lhe
oferece - para Lacan, este que oferta um nome, uma história, uma
imagem, um lugar social, etc. é o Outro primordial. Este lugar de
Outro garante a transmissão ao bebê de um código discursivo do
qual ele poderá se utilizar mais tarde.” (Jardim, 2000, p. 56).

Laznik Penot (1997) nomeia como “papel fundamental do olhar do Outro


primordial” (p.86) essa importante ação da mãe de olhar o bebê de modo a
desejá-lo e investi-lo libidinalmente, portanto olhá-lo como objeto de desejo e

6
Estádio do espelho é “(...) um momento psíquico e ontológico da evolução humana, situado
entre os primeiros seis e dezoito meses de vida, durante o qual a criança antecipa o domínio
sobre sua unidade corporal através de uma identificação com a imagem do semelhante e da
percepção de sua própria imagem num espelho.” (Roudinesco, 1998, p.194).

35
não, como a autora mesmo diz, um ser puro dejeto. Mas, para que o bebê
possa ser esse objeto de desejo, é preciso que antes ele esteja constituído no
genitor. Portanto, é apenas no olhar de amor do Outro primordial que o bebê
tornará objeto de desejo.

- MAPEAMENTO CORPORAL
Agora explicaremos a relevância do trabalho de mapeamento corporal
que as mães devem fazer em seus bebês . Segundo M. Silva (1997), falar do
corpo do bebê não é falar de um corpo só matéria, mas sim da matéria e do
sentido. É um corpo que se encontra numa dimensão própria, a dimensão
humana.

“(...) a representação psíquica do corpo se dá no entrecruzamento


de duas ordens que se superpõem, a ordem da matéria e a ordem
do sentido, ou seja, postulamos a existência de um corpo,
organismo fisiológico que, a partir da relação com um outro,
passará a se constituir como representação psíquica com uma
dimensão imaginária.” (M. Silva,1997, p.73)

Segundo M. Silva (1997), o bebê apropria-se do mundo através do


sensorial, ele apreende-se do objeto por via da epiderme. Portanto o contato
com a realidade é sensual. É a estimulação sensual que fará com que o bebê
crie a dimensão de si próprio. Esta estimulação sensual pode ser interna ou
externa. De início, a estimulação psíquica de seu corpo não possui
representação integrada, ela constitui-se apenas de partes não interligadas de
sensações. Portanto, como resultado do que for apreendido sensorialmente,
construirá, inicialmente por partes não interligadas, seu esquema corporal.
Porém, a apreensão do mundo “não é apenas da ordem da matéria; é matizada
pela qualidade da relação com a mãe.” (M. Silva, 1997, p.73).

É, portanto, através do investimento libidinal depositado ao bebê através


dos cuidados maternos, que ele vai criando sua noção de corpo, ou seja, vai
deixando de ser “um amontoado de partes soltas para começar a criar sua
dimensão de sujeito unificado (...) e em corpo erógeno, lugar por excelência de
produção de prazer; o corpo é, então, significado pelo cheiro, pelo toque, pelo

36
sorriso, pelo olhar e pela fala da mãe” (M. Silva, 1997, p.74). Está em jogo a
capacidade da mãe de mediar e transformar a excitação do bebê suportável a
ele e ajudá-lo a construir um contorno para seu corpo e posteriormente um ego:

“Todo o trabalho de erotização periférica feito pela mãe no


corpo do bebê, através do banho, colo, carinhos, torna-se um
convite prazeroso para que parte da energia psíquica se desloque
progressivamente do interior do corpo do bebê (das vísceras) e
seja investida na sua periferia, trazendo a vivência turva de um
continente corporal, prenúncio da formação do ego corporal. Este
ego corporal, por sua vez precede o ego propriamente dito.”(...)
(Rabello, 1990 ,p. 39).

É importante que a mãe valorize e dê qualidade ao que advém do bebê,


de modo a constituí-lo imaginariamente. Dessa forma, ela irá denominar o
corpo dele de maneira a cobri-lo de sentidos e o considerará e se dirigirá a ele
como uma unidade e não como um mero conjunto biológico. Essa unidade
passará a ser tomada pela pulsão. (M. Silva,1997).

Portanto, a mesma autora afirma que para que o corpo de um sujeito


seja o local de sua subjetividade, é preciso se constituir como representação de
significantes, os quais vão se construindo durante sua história. Essa
representação do corpo possibilita sua abertura e desdobramento, de modo a
tornar-se um corpo sexualizado, o qual responderá a uma ordem de sentido, e
será condução para dores, alegrias e afetos. Esse corpo será a expressão da
subjetividade do sujeito e, como vimos, é cartografado por um Outro primordial:
a mãe.

- MANHÊS
Nesta parte do trabalho explicaremos o modo específico que é esperado
que uma mãe tenha ao se dirigir verbalmente ao seu bebê, o que se entende
por manhês. Segundo Laznik Penot (1991), a questão do investimento libidinal
do olhar da mãe para seu filho, se trata “do olhar no sentido da presença; o
olho sendo o signo de um investimento libidinal, muito mais que o órgão
suporte da vista. Mas esta experiência da presença pode também se

37
manifestar por um barulho, uma voz” (p.32). Além do olhar desejante, que a
mãe investe libidinalmente no bebê e da forma que o toca - gerando sensações
físicas sensuais - e demonstra seus afetos por ele, é importante também o
modo pelo qual a mãe se dirigirá também verbalmente ao bebê, ou seja, sua
fala, a qual psicanalistas nomeiam manhês, ou em inglês, motherese. A
propósito, Laznik Penot (1997) afirma:

“As pesquisas recentes sobre a linguagem nos primeiros


meses de vida, mostram com efeito, que quando uma mãe se
dirige ao filho, ela imprime um certo número de modificações à
cadeia sonora de seu enunciado. Este fenômeno parece ser
universal e se produz quase que automaticamente na maioria das
pessoas que se encontram em situação de maternagem diante de
um bebê. Elas são indispensáveis para que o sensório deste
último esteja em posição de perceber e registrar os sons que lhe
são dirigidos. Sem estas alterações, a cadeia sonora produzida
pelo enunciado do adulto permaneceria inaudível para o bebê e
não seria, nem se quer, registrável. (...)”(p.36).

Segundo Kupfer (2004), os momentos de manhês são “momentos


especiais de conexão entre agente materno e o bebê (...)” (p.6). Boysson-
Bardies, apud Rabello (2005) ilustra o manhês quando os adultos:

“utilizam um registro de voz mais alto que o habitual, uma gama


de contornos de entonação restrita, cujas modulações de altura
são muito exageradas, formas melódicas longas, doces, com
glissando abruptos e excursões amplas. O efeito do ritmo
prosódico das produções é ampliado pela freqüência de suas
repetições. Todas essas características são perfeitamente
adaptadas às capacidades perceptivas e às capacidades de
atenção dos lactantes, facilitando sua percepção da palavra. Por
outro lado, com freqüência as mães acompanham essas
modificações vocais com expressões faciais exageradas (...)
assim como com movimentos rítmicos do corpo ou ajustes de
posturas (...) que focalizam a atenção do bebê, acentuam seu
interesse e fazem-no preferir esta forma de comunicação" (p.5).

Portanto, vimos até agora o quão importante é a relação mãe-bebê para


que o bebê se constitua como sujeito, o que Jerusalinsky, apud Rabello e
Franco (2005) afirma que:

38
"O modo em que um bebê é tomado no circuito do desejo
e demanda dos pais é decisivo para sua constituição como sujeito
e para seu acesso a diferentes realizações instrumentais. A
presença de uma patologia pode vir a obstacularizar tal circuito,
causando secundariamente danos que não estão impostos pela
patologia em si, mas pela representação simbólica e pelos efeitos
imaginários que ela engendra" (p.5).

Vimos que a mãe tem grande responsabilidade perante o processo de


constituição de seu filho como sujeito. Vimos também a importância do olhar
desejante que a mãe deve ter para com seu bebê, o trabalho de erotização que
deve ser feito pela mãe no corpo de seu bebê, as idealizações que a mãe fará
do corpo e da própria existência de seu filho, o valor da fala carinhosa da mãe
com o bebê (manhês), da suposição de que a mãe deve fazer de que haja uma
comunicação nos sons emitidos pelo bebê e, da suposição do bebê como um
sujeito singular e desejante.

39
CAPÍTULO 4 - CONSTITUIÇÃO AUTÍSTICA

A partir do exposto sobre a constituição do sujeito, estudaremos agora a


constituição do autista, na qual o que ocorre é supostamente uma falha na tão
importante relação mãe-bebê, ou melhor, uma falha da função materna. Vale
ressaltar novamente que tal falha ocorre de maneira não intencional por parte
da mãe, ou seja, de forma inconsciente. Então, vamos agora analisar o que
essas falhas podem gerar no bebê, para que este se constitua autisticamente,
o que será explicado ao longo deste capítulo. A constituição autística é uma
maneira diferente de constituição psíquica da que foi, até agora, explicada no
atual trabalho.

Kupfer (2000) afirma que a razão para o autismo é a falha da função


materna. A autora compreende que quando esse encontro entre a mãe e o
bebê falha, podem-se gerar diversas conseqüências, inclusive o surgimento
dos primeiros traços autistas, já por volta dos seis meses de idade. O bebê não
olha para o rosto de ninguém, especialmente para o de sua mãe. Nesse
momento, podem também aparecer as primeiras hipotonias, quando o bebê
não fixa a cabeça, que cai para o lado, uma vez que não há para onde olhar.

Lima (2001) entende que podem ocorrer entraves no processo de


subjetivação devido ás patologias orgânicas, mas excluindo os casos extremos,
a simples deficiência orgânica não é a única responsável para impedir o
processo de subjetivação. O autor compreende que para isso ocorrer, depende
da maneira como o:

“Outro significa tal intrusão do padecer orgânico no laço


libidinal em que a criança é tomada. Por outro lado, crianças que
nascem sadias com todo o aparato neurológico necessário para
se vincular ao campo do Outro, podem se ver impedidas de se
alienar ao desejo do Outro simplesmente porque este desejo não
visa a criança. Isto se articula (...) às vicissitudes da constituição
edípica dos próprios pais.” (Lima, 2001, p.31)

40
Jardim (2000) compreende que “na metáfora do espelho, o Outro
primordial está colocado como um espelho para o bebê, para o qual reenvia a
imagem de um corpo, um nome e um desejo.” (p.57). Stefan (1991) afirma que
autores lacanianos compreendem o autismo como uma anterioridade à
dialética do estádio do espelho, uma vez que o autista não constituiu imagem
narcísica de si. Para os autistas não existem Outro e nem outro semelhante.
Para Laznik Penot, a clínica do autismo relaciona-se com os primeiros
fracassos do aparelho psíquico, o que se trata de um tempo inicial não muito
abordado na psicanálise.

Segundo (M. Silva, 1997), a criança autista não se constitui


satisfatoriamente, assim impossibilitando uma estruturação narcísica primária,
o que é o apoio para que se estabeleçam relações com o mundo, devido aos
entraves das relações primárias, originadas pelas condições da mãe, do pai e,
certamente, da própria criança.

Embora estejamos falando de constituição autista, alguns autores, como


Calligaris (1989), compreende que a construção de uma estrutura necessita de
um certo tempo, ou melhor, tempos. O autor enumera como sendo pelo menos
quatro esses tempos:

“Primeiro, uma disposição já inscrita no Outro, e que por


sua vez já precisa talvez de uma sucessão de tempos lógicos para
ser eficiente. Segundo, algo relativo à primeira relação com o
Outro dito “materno”. Terceiro, o tempo do Édipo. Quarto, o
período de latência e a saída na puberdade.” (p.67).

O autor considera a passagem por esses quatro tempos essenciais para


se definir a estruturação neurótica ou psicótica, ou seja, apenas após a
puberdade, uma vez que segundo ele: “Eu não falaria propriamente de
estruturação, neurótica ou psicótica que seja, antes deste quarto tempo.”
(p.67). Assim, o autor indica a necessidade de extrema cautela no diagnóstico
precoce de qualquer psicopatologia.

41
Laznik Penot, em seu livro Rumo à palavra:Três crianças autistas em
psicanálise, expressa considerar importante a clínica do autismo, pois esta a
ensinou muito, não somente quanto “as primeiras relações do sujeito com a
linguagem, mas também sobre as condições de instauração da imagem
especular e da imagem do corpo, sobre a constituição do circuito pulsional e
sobre o funcionamento das representações inconscientes” (p.12).

- A AUSÊNCIA DO OLHAR MATERNO


Aqui explicaremos as conseqüências da falta do olhar desejante, libidinal
da mãe para seu filho. Segundo Laznik Penot, apud Rabello e Franco (2005) a
falta do olhar entre o bebê e sua mãe é o primeiro indicativo de um presente
risco de autismo, principalmente quando a mãe não demonstra sentir falta
desse olhar. As autoras relacionam esse fato com uma possível "depressão
branca" (p.3) apresentada pelas mães, “que supõem um quadro depressivo
mascarado, não favorecedor, portanto, de detecção e conseqüentemente não
favorecedor das medidas de apoio necessárias a maternagem desse bebê.”
(p.3).

“Freud (1914) afirma que o filho é o prolongamento do


narcisismo parental, isto é, os pais veiculam em relação aos filhos
uma série de desejos e demandas que se articulam na história
dos desejos edipianos parentais. A subjetivação consiste em o
filho poder se enganchar como objeto das demandas do Outro,
entrando assim no campo da linguagem, o que possibilita a
transformação de seu corpo biológico (organismo) em um corpo
erógeno.“ (Lima, 2001, p.31).

Segundo Laznik Penot (1991), a falta do olhar entre a mãe e seu bebê e
a não percepção disso por parte da mãe, estabelecem um dos mais
importantes signos que permitem conferir, durante os primeiros meses de vida
do bebê, a hipótese de um autismo. Se esse não olhar não levar a uma
síndrome autística, de qualquer modo suscitará uma acentuada dificuldade da
“relação especular com o Outro” (p.31). Se não houver intervenção, o estádio
do espelho não se constituirá favoravelmente nessas crianças.

42
A criança só pode reencontrar seu próprio valor de objeto causa do
desejo no olhar de amor do Outro real, mas antes disso é necessário que ele já
esteja constituído na mãe. O olhar da mãe para seu filho tem que tomar uma
posição especial, ideal aos olhos dessa mãe, o que tornaria possível que ela o
reinvestisse libidinalmente, de modo a tornar inútil o fechamento autístico de
seu filho. (Laznik Penot, 1997).

Lima (2001) define o autismo como uma “impossibilidade de a criança


entrar no campo da alienação ao desejo do Outro, pois o Outro não está lá, não
pode investir libidinalmente a criança” (p.32). O mesmo autor cita a seguinte
metáfora, apresentada por Jerusalinsky (1993):

“A mãe do autista coloca seu filho exatamente na mesma


posição que o turista coloca o monumento na fotografia que ele
mostrará a seus familiares no retorno de sua viagem. Ou seja, se
fotografará de costas ao objeto que foi ver. A mãe do autista é
uma turista do desejo. O objeto de seu desejo está fora de seu
olhar”. (Jerusalinsky, apud Lima, 2001, p.33).

Então, Lima (2001) esclarece que a criança não é vista pelo desejo do
Outro materno. Essa posição impossibilita a criança ver traçada como perfil sua
imagem no olhar do Outro, o que torna inviável a passagem pelo estádio do
espelho, assim chamado por Lacan, o tempo em que se constitui o eu e todo o
campo imaginário e simbólico indispensável ao advento da subjetivação.

Portanto, se falhar a função materna e não houver um outro que:


“encarne um desejo por esta criança, que não interprete seus
ruídos e seus gritos como algo dirigido a ela e que nem suponha
que naquele corpinho de bebê haja um sujeito, de fato ali não
haverá um sujeito, mas sim traços dele, e não uma unidade. O
fracasso da função materna impede que, a partir da imagem de
corpo próprio da criança, se organize um circuito pulsional. E
imagem de corpo fragmentada provoca fracasso da instauração
do circuito pulsional.” (Jardim, p.60).

43
-AUSÊNCIA DA IMAGEM CORPORAL
Na constituição da imagem corporal do bebê, como já foi dito no capítulo
anterior, a demonstração do investimento libidinal da mãe em seu bebê é de
enorme importância nos primeiros meses de vida do bebê. “A imagem
especular, nos diz Piera Aulagnier, só tomará a dimensão que permite a
estruturação do corpo imaginário quando for procedida pelo olhar dos pais,
pela capacidade deles de constituí-lo imaginariamente para si” (M. Silva, 1997,
p.75). Se isso não ocorrer, no caso do autismo, este corpo nunca terá sua
autonomia desejante reconhecida, assim será sempre como uma ”massa
muscular” (M. Silva, 1997, p.75). Assim, ao contrário de um corpo que se
transformou em sexualizado, ele não será condução de suas dores, alegrias e
afetos; esse corpo não responderá a uma ordem de sentido e nem será
expressão de sua subjetividade. Kupfer (2000) compreende que a partir da
falha da função materna,

“Poderá ocorrer uma inoperância radical da função e do


desejo materno, o que resultará em uma ausência de imagem do
corpo, já que o principal dessa função é a construção do mapa
libidinal do corpo. Nesses casos, estaremos diante do autismo
infantil precoce” (p.5).

Pelo fato de seu frágil corpo não ter sido investido libidinalmente por
seus pais, e ter ficado exposto apenas aos estímulos do meio ambiente, o
corpo do autista não se torna significado e também não se unifica. “Como uma
chaga viva, esse corpo exprime com crueza, o emaranhado e a fragilidade do
psiquismo dos pais que marcam a relação deles com o filho” (M. Silva,1997,
p.76).
Na clínica do autismo, segundo Cavalcanti (1997)

“sobressaem alguns distúrbios da imagem corporal, cujas


manifestações nos remetem a experiências muito primárias da
representação do corpo, levando-nos a pensar que, na história da
constituição do sujeito, há um tempo de passagem entre a
vivência de um corpo disperso, não integrado e a representação
deste corpo como unidade. Estamos sugerindo que os distúrbios
da imagem do corpo no autismo situam-se neste tempo de
passagem e que esta passagem só é possível mediante os

44
exercícios da função significante da mãe e da função paterna.”
(p.79).

Segundo M. Silva (1997) fica clara a falta da constituição da imagem


corporal na criança autista, uma vez que suas partes do corpo não se
constituem numa unidade psíquica e também não contém nenhuma
representação psíquica de suas funções. A falha da função materna, enquanto
possibilitadora de que o bebê construa sua imagem corporal como totalidade,
que ele deixe de ser um corpo de partes soltas para ser um corpo unificado e
com representações psíquicas de suas funções, faz com que a criança autista
se mantenha “presa a uma forma de identificação sensorial - a identificação
adesiva - em que a referência de si é feita através da sensação” (p.75). Assim
entende-se o modo pelo qual o autista faz uso do corpo do outro, tomando-o de
maneira indiferente, como se fosse uma continuação de seu próprio corpo. O
autista nega “a existência de dois, de separação, pois ela existe apenas nesta
indistinção” (p.75). Para a autora, na constituição autista não existe ego que
permita o autista ter sentimento dele próprio. Viver e sobreviver é apenas
possível devido às suas defesas autísticas:

“Na expressão sintomatológica do autismo fica clara a


fragilidade, ou mesmo ausência, da constituição de uma imagem
do corpo. Mão, boca, enfim, todas as partes do corpo, não só não
se constituem numa unidade, como não possuem qualquer
representação psíquica de suas funções. Na ausência do
exercício adequado da função materna - que possibilite a
construção imaginária de um corpo enquanto totalidade-, a criança
se mantém presa a uma forma de identificação sensorial - a
identificação adesiva - em que a referência de si é feita através da
sensação.” (M. Silva ,1997, p.75)

- AUSÊNCIA DO MANHÊS
Segundo Laznik Penot (1997), a falta desse estilo manhês de fala de
uma mãe como conseqüência deixa o bebê ficar fora de qualquer discurso.
Desta forma:

“Há provavelmente, uma relação entre a ausência desde


modo de falar na mãe e a surdez aparente de muitos autistas, que

45
como o sabemos, é uma surdez específica à voz humana, já que
reagem ao ruído de máquinas e de diversos equipamentos”
(Laznik Penot, 1997, p.36).

A autora afirma poder encontrar crianças autistas capazes de imitar a


cadeia melódica do enunciado da mãe, porém sem nenhuma recriminação e
sem espaçamento que possa emergir alguma significação. Ainda segundo
Laznik Penot (1997), estas crianças, se em tratamento, aderem ao discurso
com mais facilidade do que as que continuam “impermeáveis à melopéia
materna”. (p.36).

“Segundo estas reflexões, parece que não cabe distinguir


os papéis antagônicos incluídos em qualquer língua. Pois se a
necessidade do registro da significação – no qual a língua opera
como corte - não deixa dúvida, convém observar também a
necessidade fundamental da alienação. A alienação na melopéia
materna e a operação do corte que produz significação são dois
registros necessários para que a escuta se torne possível.”
(Laznik Penot, 1997, p.36).

Ainda mesma autora, as pesquisas sobre o manhês demonstram que


uma de suas principais características é a extensão do tempo das cesuras
entre as palavras, ou seja, é como se desde o começo, a mãe se prontificasse
a constituir os cortes possibilitando o surgimento da significação.

-A QUESTÃO DA LINGUAGEM
Kanner, já em 1943, em seu texto princeps no qual estabeleceu o
autismo como entidade nosográfica, entendia que o uso da linguagem no
autista não era para se comunicar:

“Dava como prova o fato de os enunciados proferidos pela


criança serem, na maioria das vezes, a retomada idêntica do
discurso de um outro. Além do mais, observando a
impossibilidade de inversão dos pronomes pessoais - que confere
à frase enunciada pela criança o caráter de uma cópia, conforme
ao que acaba de ser apenas uma linguagem ecolálica.” (Laznik
Penot, 1997, p. 107)

46
Segundo Laznik Penot (1997), tais observações feitas por Kanner são
“perfeitamente pertinentes do ponto de vista descritivo. No entanto, se era um
clínico muito sensível, Kanner não era psicanalista” (p.107). A autora ressalta
que nos anos 40 ainda nenhum psicanalista havia se arriscado a dizer que a
linguagem não tinha o objetivo de comunicar. Posteriormente foram feitas, por
Roman Jackobson, observações de bebês em um berçário, o que apontou a
possibilidade da linguagem daqueles bebês serem somente um puro
monólogo. Então,

“Seu amigo Lacan fez o seguinte comentário: “A


comunicação como tal não é o primitivo, já que, na origem, S (o
sujeito ainda não barrado, ainda não dividido pelo objeto de seu
desejo) nada tem a comunicar, já que todos os instrumentos da
comunicação estão do outro lado, no campo do Outro, e que
desde aí deve recebê-los.” (Laznik Penot, 1997, p.107)

Kanner concluiu que entre crianças autistas que falavam e crianças


autistas que não falavam não existia nenhuma diferença. Laznik Penot (1997)
aponta que das onze crianças que Kanner observou, oito alcançaram a
possibilidade de fala, independentemente de suas idades. “Kanner afirma que
nenhuma delas dispunha de uma linguagem que lhes permitisse conversar com
a outra” (p.133).

Segundo Kanner,

“lembremos, a criança se contenta em repetir os


enunciados parentais em ecolalia diferida e não é capaz de
inverter os pronomes. Além disso, ele com razão observa que esta
linguagem consiste, essencialmente, “na nominação de nomes de
objetos identificados, adjetivos indicando cores ou diversas
indicações sem especificidade”. No entanto, para mim é mais
difícil segui-lo quando conclui: “No que diz respeito à função de
comunicação da fala, não há diferença fundamental entre as oito
crianças que falam e as três mudas” (Laznik Penot,1997, p.133).

Para Laznik Penot, “(...) a linguagem da criança autista mantém a marca


do Real, de que provém” (p.134). A autora compreende que o discurso de uma
criança autista que fala bastante é “um discurso que não é cruzado por uma
cadeia significante, de forma que não pode se fechar numa significação”

47
(p.134). Para ocorrer fechamento de uma significação, o discurso deve ser
dirigido a um Outro que entenda que o discurso se trata de uma mensagem
dirigida a ele.

Segundo a mesma autora (1997), quanto aos enunciados ecolálicos de


uma criança autista, ela explica que mesmo que no início um enunciado não
tenha um destinatário, nem tenha se modulado a uma demanda, ao ser
devolvido com uma significação, como uma mensagem, algo se registra para
essa criança autista. Seguramente, somente depois, no a posteriori, que a
criança pode se identificar com a fonte deste prazer, antes conhecido pelo
Outro. “O que é remetido para a criança é que ela proferiu um enunciado que
“ex-siste” para o grande Outro, que pode surpreendê-lo, tornar-se inclusive o
objeto de um investimento pulsional7” (p.143).

Portanto, a autora conclui que opostamente ao que Kanner escreveu em


1943, há diferença entre as crianças autistas que falam e as que não falam,
essencialmente em relação ao trabalho terapêutico que se pode atentar com as
mesmas. “Mas isto, à condição de se considerar as produções linguageiras da
criança como significantes e portadoras do que nelas se esboça como
formação do inconsciente” (Laznik Penot, 1997, p.146). Mas para que isso seja
possível de acontecer, mesmo que as falas não tenham tido a intenção de
serem dirigidas a alguém, é necessário que um ser humano tome a posição de
destinatário destas falas, e conseqüentemente tome o lugar de grande Outro
real. Laznik Penot, citando Lacan entende que:

“uma fala apenas é uma fala, porque alguém acredita


nela. A nós, mostrar à criança - mesmo que seus sinais sejam
difíceis de decifrar - que o que ela diz pode fazer mensagem para
o destinatário que somos. Constatamos, então, que, conforme seu
próprio caráter, a criança opera toda uma série de processos
psíquicos capazes de suprir o que falha em seu funcionamento
mental”. (Laznik Penot, 1997, p.12)

7
“Termo extraído por Sigmund Freud do vocabulário militar para designar uma mobilização da energia
pulsional que tem por conseqüência ligar esta última a uma representação, a um grupo de representações ,
a um objeto ou partes do corpo. No Brasil também se usa “catexia” (Roudinesco, 1998, p.398).

48
Ainda segundo Laznik Penot, muitas crianças autistas falam de si
mesmas na segunda pessoa (fenômeno não próprio nem do autismo nem da
psicose), ou seja, retomam um enunciado tal qual lhe é dirigido. “Poderíamos
dizer que seu discurso não lhe vem do Outro sob sua forma invertida, mas
diretamente. Se invertesse os pronomes, poderíamos ter a ilusão de que é ele,
enquanto sujeito, quem fala, ao passo que, desta maneira, sua alienação no
discurso do Outro fica patente” (1997, p.26).

Quanto à fala de uma criança, ela afirma que se trata de algo que ainda
não tem como objetivo a comunicação, é na verdade, ainda, um mero efeito de
uma descarga motora. Ela é enunciada sem direção, ou seja, não é dirigida a
ninguém, é uma massa sonora. Porém, esses sons se tornam mensagem para
quem a recebe, no caso um terceiro, assim gerando efeitos posteriores sobre
aquela criança, efeitos estes como ela própria se reconhecer como agente
daquela mensagem. Também em um bebê normal, é importante que um Outro
- a mãe, por exemplo - acredite que há mensagem no som produzido por seu
filho. E que essa mensagem seja dirigida a alguém, a ela, principalmente. A
mãe passa a fazer certos cortes desses enunciados do bebê, e passa a dar
significado a eles, assim o devolvendo ao seu filho. Quanto a esse aspecto, a
autora se pergunta:

“Não seria isso o que Winnicott designava quando falava


da loucura necessária das mães? Loucura de escutar uma
significação aí onde há apenas massa sonora, mas também
direito exorbitante de escolher um sentido em detrimento de todos
os outros possíveis. Ora, a maioria dos pais de autistas
manifestam uma incapacidade de conferir um sentido a essa
forma.” (Laznik Penot ,1997, p.21)

Segundo ela, Jean Bergès refere-se à dupla função da mãe. Quanto à


motricidade da criança, a mãe deve ser tanto aquela que apóia a função,
quanto aquela que “se deixa ultrapassar pelo funcionamento da função no filho”
(p. 142). A respeito da linguagem,

49
“aquela que, normalmente, ocupa o lugar de Outro tem, também,
de sustentar uma posição dupla, dilacerante e contraditória: ser a
mãe que, graças a uma tradução permanente dos gritos e sons
proferidos, permitirá à criança fazer passar sua demanda pelo
desfiladeiro do significante que ao mesmo tempo o alienará e ser,
por outro lado, aquela que, apesar de saber antes que a criança
saiba, deixa-se ultrapassar por ela.” (Laznik Penot, 1997, p.142)

Ainda a mesma autora compreende que a criança autista não responde


a nenhuma demanda e nem convocação, pois nela não há nenhum sujeito que
atenda a solicitação de seu nome, uma vez que ainda encontra-se “diante do
grito da necessidade, ao qual, em geral, a mãe se apressa em dar uma
resposta que rapidamente remete a situação ao estado de equilíbrio” (1997,
p.83).

A autora explica que nosso sistema de defesa visa, em primeiro lugar, a


estabilidade, então a defesa trabalha para pôr de lado as excitações que
dificultam esta estabilidade. E se não houver ninguém que responda
rapidamente aos gritos dessa criança, não ajudando em uma diferenciação
entre o psíquico e o físico, o isolamento autístico estará sendo reforçado.

O autista, além de apresentar o mutismo, é uma criança que não brinca


com e como as outras, já que, Laznik Penot (1997) acredita que falta nessas
crianças, a capacidade de representação. A autora compreende que crianças
não autistas que apresentam o sintoma de mutismo geralmente mostram ter
uma vida imaginativa. Isso muitas vezes é expressado por meio de desenhos
figurativos, uma vez que a figurabilidade é importante, pois aponta a presença
de representações imagéticas, ou seja, de um espaço imaginário. Mesmo que
não haja uma formulação em forma de fala, nota-se nelas que “as
representações se organizam umas em relação às outras, formam
constelações, das quais podemos marcar sem grandes dificuldades os
deslocamentos e as condensações.” (p.57). Os jogos dessas crianças provam
que há um inconsciente estruturado de acordo com as leis do que Freud
chamou processo primário. Porém, nas crianças autistas o processo primário
não se constituiu, nem o inconsciente, como lugar de “uma gravitação das

50
representações, que as articulam por deslocamento e condensação” (1997,
p.58). O aparelho psíquico de autistas bem pequenos funciona “aquém do
recalcamento originário, portanto, aquém do registro da segunda inscrição,
denominada por Freud inconsciente” (1997, p.59).

Ainda assim, independentemente da constituição do inconsciente, pode


haver o primeiro registro de inscrição dos traços mnésicos (traços de memória).
Porém, somente quando reinscritos no registro do inconsciente é que é
possível ter acesso aos traços mnésicos - às representações: “Estas podem,
então, ser traduzidas pelo pré-consciente em representações de palavras, ou
ser expressas em encenações sem palavras, como nos exemplificam as
crianças mudas. (...) Se o aparelho psíquico da criança funcionar apenas no
primeiro nível de registro dos traços mnésicos, estes permanecerão
inacessíveis” (p.59).

Segundo Laznik Penot (1997), os sinais perceptivos que se retribui à


primeira inscrição, Lacan nomeia de significantes. Para Lacan, o significante
“não se superpõe ao de representação de palavra e pode se aplicar aos traços
mnésicos produzidos por todos os tipos de percepções e não somente os que
têm relação com percepções acústicas” (Laznik Penot,1997, p.59). Laznik
conclui que no autismo é possível haver significantes sem serem
“representados em imagens ou traduzidos em palavras como se alguma coisa
lhes barrasse o caminho, bloqueando a função de representação” (p.59). Tanto
a percepção quanto a inscrição dela podem falhar:

“O fechamento autístico é uma ilustração clínica deste


mecanismo. Em um autista, a percepção de um objeto qualquer
pode subitamente cessar, não apenas como se nunca tivesse
havido inscrição ao nível dos traços mnésicos, mas inclusive como
se este objeto nunca tivesse existido - pois o fenômeno pode
acontecer na presença do objeto. Isto supõe não somente uma
retirada maciça de investimento do sistema perceptivo, mas ainda
uma falha da segunda inscrição no inconsciente.” (Laznik Penot,
1997, p. 59).

51
- ESTEREOTIPIAS
Condutas estereotipadas, segundo Laznik Penot (1997), podem ser
entendidas como comportamentos que, “apesar de serem reiterados até o
esgotamento, não são da ordem da compulsão à repetição (...)” (p.70). Já que
são:

“sobretudo, meios de descarga, manobras de evitamento


defensivo (elisão) contra a lembrança de traços mnésicos ou
percepções dolorosas provenientes do mundo exterior. Estas
condutas não têm (ou não têm mais), portanto, um objetivo de ato,
não conduzem à encenação, à representação da ausência.”
(Laznik Penot, 1997, p.70).

A autora compreende que essas manifestações, embora caracterizem


um comportamento de retorno insistente, são ocorrências que antes de se
tornarem um ato, são descargas motoras. São como resquícios de gestos de
comunicação, resquícios de um ato. Portanto, falta ainda estabelecer nesses
comportamentos o valor representacional, relacionando-os às representações
de palavras, para assim tomarem um valor para além do corpo, que reage
ainda como real de descarga motora.

Como vimos até aqui, foram abordados todo o processo de constituição


do sujeito e nas últimas páginas o processo de constituição autística, nos quais
ambos têm a função materna como essencial. Vimos que a constituição
autística ocorre se houver falha da função Foi explicado a importância e as
conseqüências na constituição psíquica, se houver ausência do olhar materno
sobre o bebê, a falta do investimento libidinal da mãe sobre o corpo de seu
filho, a ausência do manhês, viu-se também a questão da linguagem e das
estereotipias em crianças autistas.

52
CAPÍTULO 5 – ANÁLISE DO CASO

Até agora, no presente trabalho foram estudadas a constituição do


sujeito e a constituição do autista. Esta última foi compreendida pelos autores
citados como conseqüência da falha da função materna. Vimos que esta
função desdobra-se em várias vertentes e possui uma dimensão bastante
ampla e complexa.

Nesta parte do estudo será analisado a história do caso abordado no


início do trabalho - Caso Joey, de Bruno Bettelheim - a partir da teoria estudada
até aqui.

Quanto à questão da inteligência dos pais ter relação com a constituição


autística de seus filhos, o que Kanner levantou em seus estudos, o próprio
Bettelheim descreve que os pais de Joey “eram inteligentes, mas de modo
nenhum sua inteligência estava acima da média. Tampouco havia pessoas de
inteligência notória entre os avós da criança”. (Bettelheim, 1987, p.448).
Portanto, pode-se levantar como hipótese essa observação feita por Kanner, a
qual posteriormente ele mesmo pôs em dúvida, não parece se encaixar no
caso de Joey.

Logo no início da descrição do caso, provavelmente chama a atenção do


leitor o fato da mãe de Joey relatar não ter sentido prazer em sua primeira
gravidez. Segundo sua própria fala: “Nunca me dei conta de que estava
grávida” (p.259). Bettelheim interpretou que a mãe de Joey não sentiu que a
gravidez fez diferença em sua vida. Apesar dela ter dito que gostou da idéia de
tornar-se mãe, uma vez que diminuiria sua solidão, ao que parece ela não
desejava essa criança como alguém para além desta sua necessidade. Pode-
se levantar a hipótese de que desde a gestação de Joey não houve um
investimento libidinal da mãe para o bebê. Como dito no capítulo três, é de se
esperar que os pais aguardem ansiosos a chegada do bebê ao mundo, tanto
que mesmo antes de nascer, este já tem nome e significações dadas pelos

53
pais. Porém, parece que isso não correu no caso de Joey. Para Freud (1914), o
filho é a prolongação do narcisismo parental, ou seja, os pais conduzem aos
seus filhos diversos desejos e demandas que se relacionam com a história dos
desejos edipianos parentais. O que parece ter de algum modo falhado nos pais
de Joey.

Após o nascimento de Joey, segundo Bettelheim, sua mãe o considerou


mais uma coisa do que uma pessoa. O que nota-se é que a mãe de Joey não o
viu como um objeto de desejo, desde seu nascimento ela não teve um olhar de
modo a desejá-lo libidinalmente. Ela não quis vê-lo no hospital e nem
amamentá-lo, dizendo “não se tratar realmente de uma aversão, mas que
somente não queria cuidar dele” (p.260), não por negligência, mas porque
sentia que era algo além de suas possibilidades.

Segundo o caso exposto, a mãe do garoto sentiu-se apavorada com a


nova responsabilidade de ser mãe e foi se sentindo cada vez mais angustiada
por não se sentir uma boa mãe. E seu modo de se defender dessa situação foi
procurar afastar-se ainda mais de seu filho. Pode-se, ante tal constatação,
analisar que foi principalmente a partir daí que houve a ruptura da função
materna, pois ao que parece a mãe de Joey passou a exercer apenas os
cuidados mínimos para a sobrevivência do garoto, sem dar-lhe carinho e sem
investir libidinalmente em seu bebê. Quanto a isso, pode-se considerar que a
mãe de Joey não estava conseguindo cumprir suas funções maternais, mas
isso não ocorria de forma consciente e nem por escolha dela, mas sim porque
algo, naquele momento de sua vida, a estava impossibilitando de realizar suas
funções maternas, de investir libidinalmente em seu filho, de supor que naquele
bebê havia um único sujeito que precisava dela.

Segundo Bettelheim, durante o período em que o garoto esteve no


hospital ocorreu tudo bem, porém depois de ter ido para casa as coisas
mudaram. Aqui fica claro que a partir do momento em que os cuidados passam
a ser exclusivamente maternos, as dificuldade se iniciam. A descrição do caso

54
relata que Joey chorava muito, sofria de cólicas e sua mãe seguia um rígido
horário para alimentá-lo e o trocava apenas quando necessário, ou seja, pode-
se perceber que a mãe do garoto, nesses momentos de choro e desprazer do
bebê, não tinha a preocupação em apaziguar o desprazer de seu filho, em dar
uma resposta que o remetesse rapidamente em estado de equilíbrio. Isso deixa
claro que ela não se preocupava em interpretar seus ruídos e gritos como algo
dirigido a ela e que nem supunha que naquele corpinho de bebê haveria um
sujeito. O que teve como conseqüência que, de fato, não houvesse um sujeito
em Joey, apenas traços, que não compunham uma unidade do ponto de vista
psíquico.

Segundo M. Silva (1997), a falha da função materna na constituição da


imagem corporal do bebê pode impossibilitar que o corpo se constitua como
uma unidade psíquica, e que também não contenha nenhuma representação
psíquica de suas funções. Isso faz com que a criança autista fique presa a uma
forma de identificação sensorial, e que a referência de si própria seja através
da sensação. Então, podemos levantar como hipótese, que foi dessa maneira
que Joey constituiu psiquicamente sua imagem corporal.

Segundo Laznik Penot (1997), se não houver ninguém para responder


aos gritos da criança, não a ajudando em uma diferenciação entre o psíquico e
o físico, o isolamento autístico estará sendo reforçado, o que ocorreu no caso
de Joey, uma vez que seus choros nunca eram atendidos pela mãe, a qual
então, ao contrário do que ocorria no berçário, passara a ser a única a cuidar
dele.

Bettelheim descreve que o pai descarregava sua irritabilidade sobre o


bebê com bastante freqüência, fazendo com que o choro noturno do garoto
tivesse um acolhimento negativo. Concordando com o autor, o choro de Joey,
ou seja, seu pedido de ajuda, não somente não era saciado por ninguém, como
era acolhido negativamente, ou seja, no momento em que deveria ocorrer uma
resposta acolhedora ao desprazer, uma suposição de comunicação entre a

55
mãe e o bebê, ocorria uma irritabilidade e uma descarga de energia negativa
sobre o bebê, fazendo com que provavelmente Joey fosse, aos poucos,
associando que se relacionar com os outros fosse algo sofrido.

Segundo Bettelheim, ninguém o embalava e nem brincava com ele.


Essa informação provavelmente é de causar impacto no leitor, pois realmente
passa a impressão de que Joey foi abandonado pelos pais, principalmente pela
mãe, pois o pai morou distante por algum tempo durante os primeiros meses
de vida do garoto. Como foi visto no capítulo dois, embalar o bebê é muito
importante para que ele se veja como objeto de desejo de sua mãe, se ponha
na posição de desejante; e sua pele, seu corpo, sejam alvo do amor da mãe,
de sua libido. O embalar também ajuda a definir os contornos do corpo do
bebê. Junto com o embalar, normalmente tem-se o olhar desejante, o toque e
a fala da mãe, o que, no caso de Joey, tudo indica que não tenha ocorrido.
Portanto pode-se levantar como hipótese, que Joey, enquanto um bebê frágil e
dependente, ficava abandonado no berço, sem carinho e sem estímulos,
apenas com os cuidados mínimos para sua sobrevivência, sem nenhum
investimento libidinal - e isso favoreceu seu fechamento autístico.

Embora forte e saudável ao nascer, com o tempo passou a bater


violentamente com a cabeça, balançando-a ritmicamente para frente, para trás
e para os lados. Aqui já se pode notar o início das estereotipias, no que pode
ser entendido como descargas motoras, “manobras de evitamento defensivo”
(Laznik Penot, 1997, p.70) contra a lembrança de traços mnésicos (traços de
memória) ou percepções dolorosas que ocorreram no mundo exterior, ou seja,
provavelmente como reação a esse acolhimento negativo por ele recebido de
seus pais.

Concordando com Bettelheim, tem-se que Joey não recebeu amor em


sua maneira de ser acolhido neste mundo, ele foi ignorado, o que, segundo o
autor, foi devido a uma ansiedade absoluta por parte de sua mãe. Mas foi visto
no presente estudo que para a constituição do bebê, não só a presença da

56
mãe, mas também seu carinho depositado no filho, seu olhar e seu toque
especial, sua maneira carinhosa de se comunicar tanto pela fala quanto pelos
gestos com ele, ou seja, a suposição de haver um sujeito naquele bebê, tudo
isso é de essencial importância para que o mesmo se constitua, de fato, como
sujeito. Ocorrendo falha nesta multiplicidade de investimentos libidinais, o bebê
se vê impossibilitado de construir uma estruturação narcísica primária. Isso
seria o apoio para se estabelecer relações com o mundo, mas devido aos
entraves das relações primárias, essa estruturação não pode ocorrer.

Como não havia olhar materno desejante, Joey nunca tomou a posição
ideal aos olhos de sua mãe, ou seja, a mesma não investiu libidinalmente em
seu bebê como um bebê perfeito, nem sequer como um bebê. Por conta disso,
Joey não foi visto pelo desejo do Outro. Assim, pensando na questão do
estádio do espelho, o tempo em que se deveria constituir o eu e todo o campo
imaginário e simbólico, indispensável ao advento da subjetivação, fica claro
que, na primeira infância do garoto, este estádio não ocorreu. Como
conseqüência disso, Joey também não encontrou seu valor de objeto causa de
desejo em sua mãe, o que antes era preciso estar estabelecido no olhar dela e
não estava. Isso foi um dos motivos para que Joey se fechasse autisticamente.

Concordo com Bettelheim que não é de se espantar que a mãe de Joey


pouco soubesse sobre os primeiros meses de vida do garoto, uma vez que
parece que a mesma participou muito pouco dessa fase. O menino teve
motivos para criar uma distância de seus pais e do mundo externo, como forma
de defesa. Isso, analiso que foi conseqüência do garoto não ter sido investido
libidinalmente pelos pais, por sua mãe preferencialmente. Portanto, no caso de
Joey, o que ocorreu foi a exclusão, uma vez que não havia inscrição do sujeito.
No lugar em que a inscrição deveria estar, havia o Real, ou seja, a não
inscrição de seu corpo nos campos imaginário e simbólico.

O pai de Joey era militar e durante seus primeiros meses de vida, por
um período ele foi transferido a trabalho, portanto Joey e sua mãe moraram

57
sozinhos por certo tempo. Durante esse período, a mãe do garoto passou a
sentir-se exausta fisicamente, preocupando-se apenas com si própria e,
segundo o autor, passando a deixar freqüentemente o garoto sozinho no berço
ou no parque, o que comprova que Joey foi de certa forma ignorado.

Após alguns meses o pai voltou a morar junto com a mãe, mas a partir
de Bettelheim, nem as tensões internas e nem as incertezas frente à guerra
aliviaram, uma vez que para o casal esse período foi o mais difícil. Segundo
Rocha (1997), na clínica com crianças autistas tem-se observado que os pais
sempre relatam algum acontecimento marcante para a família durante os
primeiros meses de vida do bebê. E geralmente não percebem quais as
conseqüências de tal acontecimento, e tampouco o relacionam com o bebê.
Levando isso em consideração, pode-se notar que no caso de Joey, este
período vivido como o mais difícil para os pais de Joey pode ter sido uma das
causas para, tanto a mãe quanto o pai, terem se afastado de Joey, ou seja, não
o ver como objeto de desejo. Outro fato importante que não deve ser ignorado,
é que, segundo autor, tanto a mãe quanto o pai do garoto viram o casamento
entre eles como um reparo de relacionamentos mal sucedidos anteriormente.

Ao analisar o caso, é curioso pensar que Joey foi estranhamente


presenteado por seus pais, ao completar um ano de idade, com um ventilador.
Isso, definitivamente, forçoso convir, não é algo comum, pois usualmente não é
de se esperar que pais de uma criança de um ano de idade lhe dêem um
ventilador como presente. Porém, é interessante observar a importância que o
garoto deu a esse presente. De certa forma, o ventilador foi um objeto que
representou a libido de seus pais por ele, então Joey se apegou
excessivamente ao ventilador, de modo que passou a montar e desmontar
incansavelmente esse objeto, como forma de querer reparar sua relação com
seus pais, com isso claramente demonstrando que algo naquela relação, para
ele, não estava satisfatoriamente construído. Pode-se pensar também que
como Joey foi de certa forma ignorado por seus pais, o ventilador era o objeto
que ele tinha para interagir, era o que lhe dava prazer. E assim, foi-se criando

58
uma forte ligação do garoto com o ventilador. E pode-se analisar, também, que
é a partir desse presente que Joey passa a demonstrar seu interesse por
máquinas e movimentos giratórios, o que viria a se perpetuar durante os anos
de sua vida.

É interessante pensar também que, desde muito cedo, antes de seus


dezoito meses de idade, a mãe de Joey o levava ao aeroporto quando seu pai
embarcava ou desembarcava das viagens a trabalho. Assim, ela fazia com que
o garoto, desde bebê, convivesse com os barulhos ensurdecedores e
trepidações dos aeroportos daquela época. É importante considerar que isso é
relatado junto a uma mistura de sentimentos que a mãe vivia nesses
momentos: angústia e alívio, por seu marido estar indo viajar a trabalho - em
momento de guerra - e voltar com vida. De acordo com Bettelheim, essas
viagens tiveram grande significado para o garoto, pois se pode levantar como
hipótese que a mãe de Joey provavelmente ficasse ainda mais ausente perante
Joey quando angustiada com o embarque de seu marido; e, ao esperar
ansiosamente por seu retorno, manifestasse uma provável alegria ao ter o
marido de volta. Talvez esses sentimentos de sua mãe impressionassem o
menino, que procurava ali sinais de afetividade.

Segundo Bettelheim (1987), ao contrário do que se esperava de um


autista, Joey falava, apesar de não se utilizar da fala para comunicar-se. Para o
autor, o que levou a isso foi o fato de ele viver em um vazio emocional, no qual
sua linguagem ia se tornando gradativamente abstrata e despersonalizada.
Como visto no atual trabalho, segundo Laznik Penot, o discurso de uma criança
autista que fala consiste em um discurso que não foi atravessado pela cadeia
significante, e que, assim, não se fecha em uma comunicação. Vale dizer: o
discurso de Joey não tinha como objetivo a comunicação, era apenas o efeito
de uma descarga motora. Ao que parece, a fala de Joey não tinha destinatário,
não era uma fala dirigida, o que é comum na linguagem de autistas. Isso pode
ser explicado pela falha - que provavelmente houve no caso de Joey - da mãe,
em não acreditar, ou mesmo supor, que nos sons que seu bebê emitia havia

59
uma mensagem, mensagem esta dirigida a alguém. Portanto, ela falhou na
função materna de dar significado à massa sonora emitida pelo garoto, fazendo
com que assim ela se mantivesse. Laznik Penot afirma que para a maioria dos
pais de crianças autistas, tal questão é aspecto de grande dificuldade.

Joey passou a utilizar incorretamente os pronomes pessoais, até chegar


ao ponto de não mais utilizá-los. Bettelheim afirma que o garoto demonstrou ter
tal capacidade, mas escolheu inconscientemente desenvolver uma linguagem
autística, o que pode ser considerado no sentido de que Joey provavelmente
regrediu, não conseguindo sustentar a comunicação.

A questão do uso incorreto de pronomes é uma questão muito freqüente


na linguagem do autista, como foi visto anteriormente. No caso de Joey, pode-
se analisar que durante seu tratamento psicoterápico na escola primária, o
menino apresentou algumas evoluções no uso de sua linguagem. Pode-se
sugerir como hipótese, que sua terapeuta fez com o menino o que falhou na
função materna, lá em seu tempo de bebê, ou seja, ela colocou-se na posição
de destinatária das falas de Joey e assumiu o lugar de Outro primordial e,
provavelmente, ao interpretar suas produções como um ato colocado pelo
garoto, a terapeuta tentou advir a uma ordem simbólica, a existência de um
sujeito. De acordo com Lacan, uma fala somente é fala porque alguém acredita
nela, então se pode pensar que a terapeuta do menino passou a ser alguém
que demonstrava a Joey que acreditava em sua fala, que ela poderia ter
significados e ter como objetivo a comunicação.

Como resultado do tratamento psicoterápico, Joey passou a empregar


pronomes pessoais ao contrário, ou seja, mencionava “tu” ao referir-se a si
mesmo, e “eu” ao adulto a quem se dirigia. Depois de um ano, passou a
chamar a terapeuta pelo nome, embora ainda não utilizasse o pronome “tu” a
ela. Ele dizia, por exemplo: “Quero que Miss M. balance você”. Mas isso, com
certeza já foi uma grande evolução para o garoto. Segundo Laznik Penot
(1997), apesar de ser comum crianças autistas falarem de si mesmas em

60
segunda pessoa, esse é um fenômeno não próprio do autismo. Isso pode ser
entendido no sentido de que Joey retomava um enunciado tal qual lhe era
dirigido, ou seja, sua fala não lhe vinha do Outro sob sua forma invertida, mas
sim diretamente. Assim, sua alienação no discurso do Outro fica evidente, ao
passo que se re-invertessem os pronomes, pareceria então que Joey seria o
sujeito de sua fala.

Pode-se levantar como hipótese, a de que após Joey ter alguém


acreditando e supondo que nele havia um sujeito a advir, o que de fato ocorreu
em seu tratamento psicoterápico, ele, como conseqüência, começou a utilizar
corretamente o “eu” e até a chamar a terapeuta e mesmo algumas outras
crianças pelo nome, apesar de não utilizar pronomes pessoais no discurso
direto, somente na terceira pessoa ao se referir a elas.

Segundo Bettelheim, Joey chegou a progredir nos três anos em que


freqüentou a clínica, mas não abandonou totalmente suas atitudes autistas,
nunca brincou com outras crianças. Apenas no último ano, quando já tinha seis
anos de idade, ele finalmente tomou consciência das outras crianças, o
suficiente para lhes desejar o mal ou expressar uma resistência muito grande
em relação a elas. O que se pode interpretar é que, como sua relação com as
outras pessoas sempre foram dolorosas e sofridas, ele continuava, como
maneira de se defender, estabelecendo relações de maneiras sofridas com os
outros, pois esta foi a forma de se relacionar que ele vivenciou e aprendeu, em
razão daquela ausência de estímulos afetivos, de comunicação e de
investimento libidinal por parte de seus pais, em especial de sua mãe, durante
o início de sua vida, como já dito anteriormente.

Inicialmente Joey nomeava corretamente os alimentos, porém


posteriormente passou a classificá-los especificamente em novas categorias.
Assim, por exemplo, a água passou a ser chamada de líquido, o açúcar ele
passou a nomear areia, e assim por diante. Segundo Bettelheim, “Joey passou
a substituir a qualidade nutritiva do alimento por sua qualidade física, porque

61
ele alimentava-se apenas de substâncias físicas e não de emoções. Assim,
privava a comida do sabor e do cheiro e substituía essas qualidades por
características táteis” (p.261). Concordo com a análise do autor, e compreendo
que a abstração não se sustentava, o que se sustentava era apenas a
realidade concreta:

“Era evidente que Joey era capaz de pensar abstratamente


e que nessa transposição de nomes, assim como no abandono
dos pronomes, a criança autista cria uma linguagem de acordo
com a experiência emocional que tem do mundo - o que é uma
realização intelectual. Longe de não saber como utilizar
corretamente a linguagem, significa uma decisão espontânea de
criar uma linguagem que se coadune com a forma como ela
experimenta as coisas - e apenas as coisas, não as pessoas”.
(p.262)

A partir da afirmação de Lima (2001), de que no autismo não há sujeito


constituído, não há registro do inconsciente e nem fantasias, pode-se levantar
a hipótese de que as manifestações de Joey, ao agir como máquina e
apresentar comportamentos de criar explosões, por exemplo, não se tratam de
brincadeiras fantasiosas - como se espera de uma criança neurótica - mas sim,
de atitudes que para ele eram reais, que integravam e faziam parte de sua
realidade, de suas vivências.

O período em que o menino passou por terapia foi caracterizado pela


repetição de suas atividades, pelo seu interesse limitado, o que se restringia
muito mais às coisas do que às pessoas. Isso pode ser explicado pelo fato de
suas sofridas experiências anteriores, ou seja, o abandono de seus pais.
Segundo Bettelheim, seu interesse único e obsessivo por ventiladores o excluía
do contato com a realidade. Quando Joey não estava imitando um motor -
sendo um motor, de acordo com sua vivência - geralmente se sentia tão
frustrado, que se desorientava completamente e então arremessava pratos ao
chão, derrubava prateleiras ou dirigia sua violência contra si próprio. Quanto a
isso, pode-se perceber a importância que Joey deu ao ventilador ganho como
presente ao seu um ano de idade, pois como já dito anteriormente, para o
garoto o ventilador foi o objeto que representou a libido de seus pais por ele,

62
então Joey se apegou excessivamente ao ventilador, foi com esse objeto, uma
máquina de movimento giratório, que Joey criou seu vínculo. E quando esse
vínculo se rompia o garoto se desorientava, pois de certa forma, era com ele
que tinha que haver relação com a realidade - a realidade das pessoas e não a
das máquinas. Porém, essa realidade trazia-lhe desconforto.

Concordo com a análise de Bettelheim de que Joey, por ter vivenciado


um mundo em que sentimento significava sofrimento, e no qual ter afetos era
um pressuposto para ser destruído. Ele só poderia sobreviver a isso se
defendendo de qualquer emoção. E assim, criou um mundo separado, único e
próprio, no qual não havia lugar para sentimentos. Assegurando-se assim,
exclusivamente pelo mundo das máquinas, como vimos um bebê tem que estar
em contato com a mãe para mamar, Joey tinha que estar ligado na tomada
para funcionar, da mesma maneira que ocorre com o ventilador.

Quando se iniciou o tratamento psicoterápico individual do menino na


Escola primária, ao mesmo tempo também foi proposto a seus pais passarem
por atendimento psicoterápico, uma vez que foi nesse período que o garoto foi
diagnosticado como autista. Pode-se analisar que esse foi um
encaminhamento importante para que Joey pudesse evoluir e também para
que seus pais também pudessem, de certa forma, ser acolhidos, uma vez que
segundo Laznik Penot (1997), para os pais a situação é difícil, pois “os
distúrbios autísticos da criança, qualquer que seja sua origem, provocam
efeitos devastadores sobre o funcionamento mental dos pais.” (p.19)

Segundo Jardim (2000) é importante na clínica com crianças autistas,


escutar os pais para o terapeuta saber em que lugar estão seus filhos, seja o
filho imaginado ou o real, ou seja, saber que lugar o filho pode ocupar ou não
no desejo da mãe. Com o tratamento psicoterápico dos pais, o casal conseguiu
melhorar a qualidade do casamento e assim, tiveram mais dois filhos, os quais
se constituíram como sujeitos, e não autisticamente.

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Aos seis anos, por atingir a idade limite permitida pela escola maternal,
ele foi transferido para um rígido internato religioso, e segundo descrição de
Bettelheim, Joey perdeu muito do que havia evoluído, pois voltou a um mundo
despersonalizado, ou seja, a um mundo em que ele percebia não haver mais
investimento sobre ele, em que provavelmente ele mais uma vez foi
abandonado, ao passo que, naquele momento de seu desenvolvimento, Joey
precisava de alguém que acreditasse que nele havia um sujeito a advir. O autor
descreve que o garoto, nessa época, se dirigia somente à mãe, e aos
sussurros. E não era mais capaz de usar pronomes pessoais e nem de chamar
as pessoas pelo nome. Regrediu consideravelmente, portanto.

Depois Joey teve que voltar a morar em casa com seus pais, mas nessa
mesma época, Joey ganhou uma irmãzinha, a qual foi vista como objeto de
desejo de seus pais, e veio a se constituir como sujeito. Então Joey presenciou
sua irmã recebendo todo o carinho e atenção de sua mãe, o que ele sempre
desejou ter e nunca teve, e em contrapartida sua mãe novamente o ignorava.
Levando-o a comprovação, mais uma vez, de que o mundo externo trazia a ele
sofrimento. Segundo Bettelheim, mais uma vez ele “aprendeu que sentir é ser
destruído; que só completamente insensível é que podia sobreviver”
(Bettelheim, 1967, p.266). Joey então, por não suportar tal sofrimento, veio a
cometer uma grave tentativa de suicídio.

Aos nove anos, ao ser admitido na Escola Ortogência, ainda mantendo


sua relação com máquinas e movimentos giratórios, Bettelheim (1967) o
chamou de “homem mecânico” (p.254) dirigido por máquinas que foram criadas
por ele e que lhe escapavam ao controle.

Profissionais de lá conversaram com seus pais, e a mãe os comoveu


com seu ar de “condenada à morte”, sua insegurança e mais ainda pela sua
frieza quando falava de Joey, mostrando-se incapaz de vê-lo como uma
pessoa com vida própria. Ao falar de outras pessoas e acontecimentos, a mãe
de Joey falava com vivacidade e clareza, mas era só o assunto voltar ao Joey

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que rapidamente tornava-se impessoal, desligada e desinteressada, a ponto de
não conseguir falar sobre Joey, até que mudasse de assunto, falando de outras
pessoas ou de si própria. Bettelheim entendeu que era como se Joey nunca
tivesse feito parte de sua mãe. Pode-se analisar que para a mãe de Joey, essa
era uma questão difícil. Ao que parece, essa mãe se culpava pelo autismo de
seu filho, uma vez que, segundo Laznik Penot (1997), em geral o autismo
realmente é vivido pelas mães como um fracasso de sua parte. Porém, mães
de autistas não devem ser culpadas pelo autismo de seus filhos, mas sim
responsabilizadas pelo futuro subjetivo deles. A mãe de Joey falhou em exercer
sua função materna, porém isso ocorreu de maneira inconsciente, não
intencional por parte da mãe do garoto, mesmo porque foram momentos
difíceis - já discutidos acima – os que ela estava vivendo durante os primeiros
meses de vida de Joey.

Após muitos acontecimentos e aproximações de Joey com Fae, Barbara


e Lou, suas duas orientadoras e seu professor, muitas evoluções ocorreram.
Aqui se pode levantar como hipótese de que da mesma maneira que a
terapeuta na escola primária investiu em Joey como um objeto de desejo,
acreditando que nele havia um sujeito a advir, dando sentido e significado a
suas falas de modo a supor uma comunicação dirigida, fez com que nele
surgisse esse sujeito, ou seja, saísse do quadro autístico. O garoto, aos seus
doze anos, deixou de ser um aparelho mecânico para ser uma criança humana,
tornando-se um “recém-nascido”. Aqui podemos analisar que o garoto deixou
de se apegar à provável única demonstração libidinal que havia recebido de
seus pais, o ventilador, ao investimento libidinal que provavelmente recebeu
dessas três importantes pessoas que de certa forma ocuparam lugar de Outro
primordial ao garoto.

Vale relembrar ao leitor da importância que Calligaris (1989) dá aos


quatro tempos necessários para a construção de uma estrutura, seja ela
neurótica ou não. O autor considera que a estruturação só ocorre
definitivamente após a passagem pelo quarto tempo, sendo este a saída da

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puberdade. Portanto, Calligaris ajuda a pensar o cuidado que devemos ter para
diagnosticar uma criança e não acabar prendendo-a neste diagnóstico. Não
sabemos que efeito o diagnóstico de Joey teve sobre os pais, portanto não
temos como afirmar que o diagnóstico interferiu no desenvolvimento do garoto.

No caso de Joey, pode-se conjecturar, a partir das informações de


Bettelheim, que o garoto se constituiu posteriormente como sujeito, ou seja, o
sujeito veio advir nele, saindo de seu quadro autista. Após nove anos que havia
entrado na escola de Bettelheim, Joey, que já então era capaz de sentir
emoções e desejava ser amado, com vontade própria de ser dono da sua
própria vida, desejou voltar a morar com os pais. Portanto, esse caso faz
pensar que a terapia de crianças autistas, ou melhor, a aposta de que há um
sujeito a advir na criança autista, é aspecto essencial para que possam ocorrer
evoluções. Porém, o presente estudo não teve como objetivo a questão do
tratamento do autismo, mas entende-se que seria interessante analisar, em um
possível trabalho futuro, se Joey saiu ou não do quadro autístico no qual se
encontrava.

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CONCLUSÃO

O presente estudo teve como objetivo analisar a importância que a


função materna tem no processo de constituição do bebê. A partir disso, tinha
também como finalidade, compreender em quais aspectos houve ruptura da
relação mãe-bebê na história de vida de Joey, e analisar a constituição
autística do garoto. Foi estudada a constituição do sujeito e a constituição
autística considerando a importância da função materna na relação mãe-bebê;
depois o estudo analisou as falhas que ocorreram da função materna na
história da infância do garoto Joey.

Os objetivos propostos foram alcançados uma vez que foi afirmado pela
literatura que, além da função materna ter essencial importância para a
constituição do sujeito, a falha dessa função, que ocorre de modo inconsciente
por parte das mães, pode levar a uma constituição autística, tendo sido isso o
que ocorreu no caso de Joey. O garoto, durante seus primeiros meses de vida,
foi ignorado pelos pais, sua mãe principalmente, assim não foi objeto de desejo
de seus pais e nem estimulado a se constituir psiquicamente como sujeito.
Porém, após alguns anos de sua vida, ao iniciar tratamento terapêutico, em
que havia pessoas acreditando que nele havia um sujeito a advir; e se
colocando no lugar de Outro primordial, Joey apresentou muitas significativas
evoluções.

Recorremos a conceitos psicanalíticos como Outro primordial, estádio do


espelho, forclusão e exclusão. Citamos autores psicanalistas da linha francesa,
seguidores de Lacan, como alguns principais deles: Laznik Penot, Jerusalinsky,
Kupfer e Rabello.

O presente estudo tratou-se de uma pesquisa teórica em Psicanálise.


Escolhemos analisar um caso de grande relevância, para os estudos sobre
autismo, da literatura psicanalítica. O caso escolhido foi o relato da história da
infância do garoto Joey, descrito por Bruno Bettelheim, seguidor da linha
inglesa. O caso escolhido respondeu os objetivos da pesquisa, pois além de

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abordar as falhas da função materna na primeira infância do garoto, ele
mostrou as conseqüências que isso pôde trazer na constituição psíquica de
Joey. A análise do caso se deu através da psicanálise de linha francesa, para
que se pudesse fazer uma análise diferente da já feita. Portanto, quanto a
metodologia e o caso escolhido, podemos dizer que mostraram-se eficazes
para o estudo.

Neste estudo, assuntos como a estereotipia, gestos corporais e de


comunicação do autista, deveriam ter sido melhor aprofundados. Mostrou-se
necessário, embora pouco explorado, a questão do diferencial diagnóstico da
psicose e do autismo, e a função paterna. Faltou ser estudado, na presente
pesquisa, a importância do momento de amamentação para a relação mãe-
bebê.

O trabalho também não discutiu as implicações do diagnóstico precoce,


ou seja, de crianças muito pequenas. Há autores que criticam diagnosticar
crianças que estão ainda em constituição, tanto porque este poderá influenciar
o olhar dos pais sobre a criança e marcá-la em um lugar psicopatológico,
quanto porque, supostamente até o fim do Édipo a dinâmica psíquica pode
alterar-se.

Ao examinar os pontos teóricos pouco trabalhados, que em um outro


estudo poderia-se até mesmo questionar e analisar com profundidade o
diagnóstico de autismo para a escola inglesa e para a escola francesa, para
sabermos a diferença. Neste estudo, tomei Joey como autista, pois é a fala de
Bettelheim, e também para onde as características do menino apontam,
embora os critérios diagnósticos não tenham sido problematizados mais
profundamente.

O estudo produziu, em mim, novas questões a respeito do autismo.


Questões estas quanto à prevenção e o tratamento do autismo. Acredito que
esses seriam possíveis temas que dariam continuidade a essa pesquisa.

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Retomando a justificativa, é importante estudar o autismo, pois apesar
de sempre existir, sua discussão é muito recente. E além de ser um assunto de
muitas controvérsias, principalmente quanto a sua etiologia, a Psicanálise tem
um olhar importante para o assunto. Ela tem justificativas fundamentadas que
podem ajudar no estudo sobre o autismo. Uma delas é a de que a função
materna desempenhada, não necessariamente pela mãe, tem fundamental
importância na constituição psíquica do bebê, havendo falhas nessa função a
constituição psíquica do bebê pode se dar de maneira autística.

O presente trabalho pode contribuir de diversas maneiras para outros


futuros estudos sobre o tema. Ele pode servir como uma referência
bibliográfica para estudos principalmente sobre autismo e função materna,
como um primeiro aprofundamento sobre estudos sobre o autismo,
indiretamente ele pode servir também como um ponto de apoio para futuros
projetos de prevenção e tratamento do autismo.

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