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HISTÓRIAS

PARA LER
NO BANHEIRO
Hilton Görresen

Histórias para ler


no banheiro

NOVA LETRA - 2013


Histórias para ler no banheiro
Copyright © 2013 by Hilton Görresen

Capa: Fábio Görresen

Ilustração: Cacá

Edição e projeto gráfico: o autor

Impressão: Nova Letra Gráfica & Editora

ISBN 978-85-7682-789-4

Pedidos e sugestões:
gorresenh@gmail.com
ÍNDICE

A bela adormecida 9
Minha perereca de estimação 11
Campanha eleitoral 13
Quem bebe mais pinga? 15
Concurso de cuspe 17
Conversa de macho 19
Diário de um hipocondríaco 21
E aí, Beiçolão? 23
Estrambótico 25
Falta de provas 27
“Farra do homem” 29
Funcionário-modelo 31
Luxúria 33
Na barbearia 35
Na boca do sapo 37
No tempo dos caranguejos 39
No velório 41
O dia de azar do Nequinho 43
O estranho amigo 45
O funcionário ideal 47
O homem que assassinou a si mesmo 49
O homem sem cabeça 51
O mais feio da cidade 53
O sufoco do Papai Noel 55
O terrorista 57
Os fantasmas do casarão 59
Papagaio de anedota 61
Pequenas batalhas 63
Quem era o Ganimedes? 65
Razões para mudar de endereço 67
Salário mínimo 69
Sonhos ou pesadelos? 71
Tia Lucrecinha 73
Um fantasma discreto 75
Venga toro! 77
Viagem a Valões 79
Vida de cão 81
Admirador secreto 83
Bom para a tosse 85
Carta pedindo emprego 87
Central de reclamações 89
Como acreditar nos contos de fadas? 91
Crítico de sucesso 93
Feio, porém bonito 95
A repulsiva Mulher-Gorila 97
Aula de História 105
O magnifico discurso 109
A gravata do morto 113
Bar Amizade 116
Apresentação

Existe muita gente que só abre um livro quando vai ao


banheiro. Conheço um em minha própria casa. Para conquistar
essa faixa excêntrica de leitores, é que agora lanço esta reunião
de histórias com tal título. Não pretendo de forma alguma ter
reserva de mercado, todos os demais leitores podem se apropriar
da obra.

Já houve uma tentativa de criar histórias em quadrinhos em
papel higiênico. Isso seria ideal para aqueles solitários, cujo ba-
nheiro é de uso exclusivo, assim não perderiam a sequencia das
narrativas a cada vez que fossem “visitar” o local. Minha avó,
já em seu tempo, foi mais longe: em sua casa, o próprio gibi
servia de papel higiênico. Não era muito prático, mas alegrava
o ambiente com aquelas páginas coloridas.
As histórias são de extensão variável. Há os que são ra-
pidinhos no uso do toalete. Para esses, as histórias curtas, no
máximo duas páginas. Aos que gostam de se refestelar pachor-
rentamente no vaso e ali esquecer a vida – pra que local mais
tranquilo? – dedico histórias mais extensas (a partir da página
97).
Os gêneros também são variáveis: há os textos alegres, de
humor; os satíricos e aqueles que podem ser lidos até com certa
tristeza. Gosto é gosto e vice-versa. Leitores há que preferem
entretenimento; já outros apreciam uma boa crítica social. Em
todos os casos, trata-se de textos leves, fluentes, objetivos, pró-
prios para auxiliar e promover uma boa descarga intestinal.


A Bela Adormecida

O príncipe ouvira falar de uma princesa belíssima,


adormecida por dezenas de anos, vítima da maldição de uma
fada má.
Segundo as informações recebidas, essa princesa era ain-
da virgem. Isso era uma coisa rara naquela época. Quem lhe
deu a dica foi o espelho mágico, que havia emprestado de sua
tia, a rainha malvada. Aquela que queria sacanear a Branca de
Neve, estão lembrados?
O príncipe ficou animado. O dedo-duro, isto é, o espelho
lhe havia fornecido a localização da dorminhoca. Detrás das
sete montanhas...não...não...isso é na história da Branca. Mon-
tou seu cavalo branco, meteu no porta-luvas (naquele tempo,
sim, se usavam luvas) uma garrafa de uísque importado e saiu
em busca do fenômeno.
Depois de algumas semanas, chegou a uma floresta impe-
netrável. Para o príncipe não existia essa palavra. Destemido,
entrou naquele cipoal, espada em riste, podando ramos e ga-
lhos, atravessando pântanos.
Mas foi recompensado finalmente pela visão da encanta-
dora moça, deitada numa cama de pedra, descalça, a feição

9
calma e repousada dos inocentes. O príncipe ficou extasiado
com aquela criaturinha doce e meiga. De seus lábios – apesar
de estar há décadas sem escovar os dentes – exalava um per-
fume doce e misterioso. Tentou acordá-la. Fez cócegas atrás
da orelha; depois aproximou os lábios quentes e soprou-lhe
no ouvido. Nada. A jovem permanecia imperturbável como
uma pedra. Segurou delicadamente os pezinhos alvos e se
pôs a beijá-los. Depois, passou a mordê-los com força: nham,
nham. Devagarinho, foi levantando o vestido comprido e ren-
dado, deixando à mostra as pernas alvas. Queria que a donze-
la acordasse para poder sentir-lhe o corpo trêmulo. Mas não
tinha jeito. O que fazer? Deu uns tabefes na cara, beliscou os
braços.
– Ah, não quer acordar, né? Pois vai assim mesmo!
As cenas que se seguiram não podem ser narradas neste
horário em que você está lendo. Só sei que o príncipe montou
seu cavalo branco e foi-se embora. A princesa continuou dor-
mindo, mas já não era a mesma. Azar do verdadeiro príncipe
encantado que a acordaria com um beijo e só chegou três anos
mais tarde.

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Minha perereca de estimação

A vendedora bateu à porta. Quando colocou os pés na


soleira, deu um pulo pra trás: um sapo!
Sapo nada! Era o Chico, minha perereca de estimação.
Bonzinho, educado, não fazia mal a ninguém, apenas ficava
imóvel, absorto em meditação.
Chico apareceu lá em casa num dia chuvoso, com seu si-
lêncio e sua sabedoria, em boca fechada não entra mosca.
Mas mosca mesmo devia entrar, pois o Chico não era bobo.
Fingia-se de morto, para a refeição se aproximar sem medo e
aí, zupt.
Passaram-se os dias e o Chico continuou na sala de TV, seu
local preferido. O pessoal da casa foi se acostumando com sua
presença e lhe deu o apelido carinhoso. Claro, ninguém che-
gou a verificar se o Chico era realmente Chico.
Revelou-se um companheirão. Sua presença dava tranqui-
lidade; ninguém se sentia solitário ao lado dele. Era a compa-
nhia ideal, você podia ler sossegado sua revista, assistir a um
jogo de futebol, sem trocar uma palavra com ele; o Chico não
se importava, não exigia atenção. Não reclamava precisar de
roupa nova ou do carro emprestado para sair.

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Depois de certo tempo, a gente já se entendia bem, eu e o
Chico, só pela expressão corporal. Quando o Flamengo levava
gol, o Chico, que era flamenguista doente, revirava indignado
os olhos, eu percebia o que estava pensando do juiz. Mas se
babava mesmo era por um filme erótico. Nas cenas quentes,
remexia o gogó diversas vezes, com nervosismo. Se passasse
uma pobre mosca diante dele, coitada. Era traçada ali mesmo,
sem pudor.
Pensei seriamente em lhe arranjar uma companheira, ou
companheiro, ou os dois, tenho certeza de que o Chico não
era preconceituoso. Mas preferi não me imiscuir em sua vida.
Quem sabe, aborrecido, ele fosse embora.
Quando morresse, certamente teria um enterro digno, com
choro das crianças e flores sobre o túmulo. Era considerado
parente, como cachorro e gato. Mas o Chico não nos deu esse
prazer, quero dizer, essa tristeza. Simplesmente sumiu, o in-
grato.
Sumiu numa noite gelada, quando mais precisávamos de
sua presença reconfortante. Não sei se foi alguma coisa que fa-
lamos ou alguma referência desairosa à classe dos répteis, feita
sem querer, que o deixou magoado. Era um bocado sensível,
acho que lhe demos o nome errado, devia ser mesmo uma
garota. Só sei que nunca mais apareceu aqui em casa.
Conservo intocado seu lugar preferido, ao lado da TV, ain-
da com um restinho de gosma e uma marquinha esverdeada.
Depois dessa, já resolvi, nunca mais vamos ter animais de es-
timação.

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Campanha Eleitoral

Em época de eleições, assistimos pela TV centenas de


candidatos, a maioria para nós desconhecidos, a jogarem no
ar seus apressados discursos.
Alguns são “macacos velhos”, buscando reeleição, outros são
ingênuos bem ou mal intencionados. Parece que houve uma
“democratização” das candidaturas, uma espécie de pegue e
pague, ao alcance de qualquer consumidor. Todos pretendem
dar sua contribuição à cidade. O pior, depois, é o vice-versa.
Sabe, tem políticos que recebem nosso voto nas urnas, depois
querem retribuir colocando com prazer em nossa urna.
Isso me lembra uma história, não garanto que tenha mes-
mo acontecido. Após seis anos de casamento, a mulher resol-
veu separar-se. Além do desgaste que isso provocava, tinha
um problema maior: o marido iniciava campanha eleitoral,
era candidato a vereador.
A cidade tinha algo de peculiar: a enorme colônia dos imi-
grantes de Glicéria, país quase desconhecido (duvido que você
tenha ouvido falar). Numerosa, a colônia tinha o poder de de-
cidir uma eleição. E acontece que sua mulher era descendente
de glicerinos. Não podia separar-se antes de ocorrer a eleição.

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Estar desquitado, divorciado ou mesmo desamigado de uma
integrante da colônia era fracasso na certa. Foi procurar a
quase ex, implorou, fez promessas. Que deixasse a separação
para depois, precisava acompanhá-lo nos comícios, dar uma
palavrinha aos conterrâneos. A mulher acabou concordando.
Ficava junto dele até o dia das eleições. Nem um dia a mais. E
camas separadas.
Iniciaram a campanha: reuniões, visitas, entrega de santi-
nhos... Nos festejos em honra do fundador da colônia, aprovei-
taram para vender o seu peixe. A mulher foi muito aplaudida
quando pediu a palavra. Houve um prolongado burburinho
quando disse umas palavras em seu dialeto, apontando o ex-
marido. Eta, mulher porreta! Levava jeito para se comunicar
com os eleitores. Sentiu vontade de não concordar com a se-
paração.
No entanto, perdeu feio as eleições. Ficou abaixo do candi-
dato com menos chance. Motivo: no discurso, ela havia dito
aos conterrâneos que ele era um chilopaque. Não esclareceu o
que era chilopaque. Mas lhe disse claramente: acha que eu ia
ajudar um sem-vergonha como você a ser vereador? Além do
mais, meu novo love também era candidato.

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Quem Bebe Mais Pinga?

O alemãozão tinha uma vaidade: era imbatível na ca-


pacidade de ingerir chope e “schnapps”. Era um copo atrás
do outro. Quando foi transferido para a cidadezinha praiana,
passou a ser das figuras mais conhecidas, pelo menos nos ba-
res e associações. Ganhou o apelido de Fritz. Nas rodadas de
cerveja, deixava longe todos os colegas e zombava deles com
uma risada grossa: tenho que defender a honra da raça ger-
mânica.
Um dia - vejam só! – foi desafiado para uma competição de
levantamento de copo. Quem conseguiria tomar maior quan-
tidade de pinga? Se o desafiante fosse o Pé de Cana ou o Des-
gosto de Mãe, cachaceiros célebres da cidade, ainda dava de
acreditar, mas não. Foi justamente o último sujeito em quem
poderia pensar: o Zé Menezes, pobre contínuo de repartição
pública, magro, fraquinho, mas que tinha uma cara de esper-
to.
Marcaram dia e horário. A novidade se espalhou, era uma
boa opção para quebrar a monotonia da vida na cidadezinha.
Com isso, o desafio ganhou contorno de uma grande compe-
tição esportiva, uma espécie de combate entre Popó e Myke

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Tyson. Ligeireza enfrentando força bruta. Saiu até comentário
na rádio local e aviso pregado na porta da igreja (que o padre,
indignado, arrancou dali com um discreto palavrão).
Na data acertada para o importante evento, o salão nobre
da associação inundou de gente: curiosos, apostadores, paren-
tes e amigos dos competidores.
Os dois acomodaram-se na mesa central. O barman trouxe
dois copos de pinga, para o aquecimento; cada um entornou o
seu. O aroma da bebida encheu o ambiente. Veio uma garrafa
cheia para cada um, que foram sendo entornadas, copo atrás
de copo. Com surpresa, o alemão viu que o magrinho conti-
nuava firme.
Continuaram bebendo. Mais quatro garrafas (quero dizer,
duas, os contendores é que estavam com visão meio prejudi-
cada). Ignorando a presença de algumas moças que tinham
vindo abrilhantar o certame, o alemão soltou um tremendo
pum, que afastou os que estavam mais perto, mantendo-os em
uma distância segura.
No final da terceira ou quarta garrafa, o Fritz entregou os
pontos (mais precisamente, arregalou os olhos e caiu duro no
chão). Aclamação geral. Vitória do brasileirinho raquítico.
O barman veio, passou um pano molhado na mesa, deu
uma piscadela pro Zé Menezes e recolheu sua garrafa que ain-
da tinha um restinho de água mineral. E falou para os espec-
tadores: agora esse alemão deixa de ser besta!

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Concurso de Cuspe

Conheci Diana dentro do cinema, na matinê das duas


horas. As luzes tinham se apagado, mas era possível divisar
as pessoas ainda entrando na sala. Foi aí que vi, quase indis-
tintamente, a figurinha esbelta, cabelinho curto, o nariz meio
empinado. E foi aí que comecei a gostar da moça.
Diana, um nome badalado naquela época, por causa da
música de Neil Sedaka, Daiana.
Agora, o problema era este: como me aproximar da gata,
como fazer com que ela me notasse e até (se os deuses quises-
sem) se interessasse por mim? Eu era tímido e discreto, nun-
ca teria coragem de abordar uma menina tão bonita. Era um
castelo a conquistar, cercado de fossos de água profunda. Um
trabalho para o Superman...
O máximo que consegui, depois de uns tempos, foi con-
versar com o irmãozinho dela, dar-lhe meia dúzia de pecas,
para mostrar como era um cara legal. Porém, o que aconteceu
depois veio tornar inviável qualquer oportunidade de aproxi-
mação.
Uma tarde, estava com meu irmão na sacada do casarão
onde morávamos, olhando, chateados, o mar num daqueles

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dias de vazante, em que a lama fétida se estendia por centenas
de metros até encontrar a água escura. O irmão sugeriu:
– Vamos fazer um concurso de cuspe? (Desculpe, leitor,
mas não encontrei um sinônimo mais aceitável para a palavra;
ia perder a graça)
Era uma brincadeira que fazíamos na infância. Seria vence-
dor quem conseguisse reunir na boca o maior volume de sali-
va. E isso era uma de minhas poucas habilidades. Após alguns
minutos de preparação, enchendo a cavidade bucal de líquido,
iniciamos o jogo. Como primeiro a fazer a apresentação, im-
pulsionei lá de cima uma quantidade enorme de saliva. Pouca
chance ao adversário.
O casarão situava-se numa esquina. Levada pela brisa agra-
dável, a matéria salivar foi conduzida lentamente, num voo
gracioso, em direção à calçada.
Repentinamente, virando a esquina, surge um rosto balofo,
com bigodes grossos e óculos de aros escuros, bem diante da
trajetória do – digamos assim – meu projétil. Comecei a fazer
sinais desesperados, como se, por controle remoto, pudesse
desviar o volume de saliva do alvo inesperado.
Não deu outra: plafff! O líquido chocou-se com o vidro dos
óculos, escorreu para o bigode.
O homem era novo na cidade. Era baixo, de barriga pro-
eminente. Dizem que os baixinhos são bravos, esse era duas
vezes mais. Não vou mencionar a confusão que se deu, com
interferência da minha mãe, da vizinhança e quem sabe até do
padre. Para mim, apenas uma coisa importava: o homem era
o pai de Diana.

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Conversa de Macho

Não sou de ficar ouvindo conversa dos outros. Gos-


to, sim, de observar gestos e comportamentos. Já flagrei bri-
gas de casais em restaurantes e supermercados. Desta vez, não
pude evitar. Estava numa mesinha de bar, sozinho, e os caras
ao meu lado não pautavam pela discrição ao falar. O mais alto
e magro dizia:
– Leio! Leio, sim, coluna social. Mas não é pra ficar saben-
do de fofoquinha de madame, não! Essa coisa de jantarzinho,
de recepção na orla, Deus me livre. Leio é pra saber quem está
por cima, quem está “podeiindo”. Sou vendedor, você sabe.
O outro disse alguma coisa, e o altão continuou:
– Musculação? Não é coisa pra macho. Acaba com a agili-
dade da pessoa. Deixa o bumbum duro; o sujeito vai sentar,
não tem amortecedor, fica se mexendo todo na cadeira. Pre-
firo balé. Sim, faço balé! Mas não é pra ficar dando pulinho,
a munheca solta no ar, imitando cisne. É mais pra defesa pes-
soal. Pra se esquivar dos tiros, sabe como é, esta cidade anda
muito “violeiinta”. Até meu maridão, digo, meu sócio está
pensando em fazer.
– Estou percebendo. De repente, vocês podem formar uma

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dupla, encenar uma coreografia máscula: Batman e Robin. Ou
Átila, o Flagelo de Deus.
– Átila, não, pelo amor de Deus. Não me fale desse sujeito.
Foi a minha fantasia no carnaval. Deu um azar danado. Últi-
mo lugar em luxo masculino.
– Você foi ao carnaval fantasiado de Átila? – o outro apa-
rentava estar gracejando.
– Natural! Queria que eu fosse vestido de havaiana, uma
coisinha básica, dançando ula-ula? Macho tem de usar fan-
tasiona pesada, com ombreiras, chapéu pesadérrimo, enfeites
mil, coisa pra quem tem músculos. Me aguarde no próximo
ano!
– O quê? Quer dizer que você já planeja outra fantasia
“massscula”? Diz aí: qual é?
– Segredo, minha santa! É pra deixar a concorrência arria-
dérrima, lambendo os confetes do chão.
– Eu já prefiro sair no bloco das “melindrosas”. Me divirto
a valer! – falou o outro.
– O quê? Aquele bloco cheio de bêbados arrastando a san-
dalinha, com uma peruca cafonérrima, que nem a vovó usaria.
Sai dessa, santinha! Você não sabe o que é curtir o carnaval.
Fui interrompido pelo garçom, pedi a “saideira” e perdi o
resto da conversa. Só percebi quando o da fantasia se levantou
e se dirigiu asperamente ao outro:
– Simbora, cara! Detesto conversar com gente invejosa.
Aposto que você é desses que se tranca no quarto para experi-
mentar as calcinhas da irmã.

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Diário de um Hipocondríaco

Durante muitos anos mantive um relacionamento di-


ário com a Neusa. Santa companheira! Foi sempre um alívio
para minhas aflições e aborrecimentos.
Que Neusa? Ah, sim, esqueci-me de apresentar: Neosaldi-
na. Mais recentemente fui apresentado a um simpático casal: a
alemã Frau Hérnia e o britânico Mr. Parkinson. Casal perfeito.
Enquanto uma me travava os movimentos, o outro me deixa-
va como uma pilha de energia. Nada como os opostos. Esses
dias, iniciei negociações com um notável cidadão de origem
árabe, o senhor Al Zheimer. Meu círculo de boas amizades
tem se ampliado ultimamente.
Meu cálculo renal mereceu um registro no Guiness Book.
Isso foi há uns três anos, mas minha marca até hoje não foi
ultrapassada. O bendito do cálculo é maior do que o próprio
rim, muito embora o rim em questão já esteja comido pela
metade.
Mas não tem nada, continuo seguindo em frente. Isso, cla-
ro, quando não tenho crise de labirintite, e costumo então an-
dar em ziguezague.
Hemorroidas? Nem me falem! Esses dias – culpa do Sr. Al

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Zheimer – acabei escovando os dentes com a pomada Hemo-
virtus. Imaginem a opção inversa...
Andava uns tempos me sentindo mal, com sobrepeso, oca-
sionado pela tireoide; felizmente sobreveio o diabetes que em
pouco tempo me afinou o corpo, deixando-me elegante qual
um dançarino espanhol. Somente não saí dançando para co-
memorar o novo físico por causa da artrose no joelho e do es-
porão no calcanhar. Foi tamanha a alegria que pensei em dar
um grito para o mundo, como o fazem os participantes de um
“reality show”, em bom português: Brigaduuuu! Infelizmente,
um acesso de bronquite me provocou espasmos de tosse tão
violentos que quase vai junto a dentadura.
Atualmente, estou inaugurando o Museu dos Medicamen-
tos. Conservo em meu poder remédios que não existem mais
há décadas, alguns de valor inestimável para os colecionado-
res, como Antisardina, Urodonal, Phimatosan, Lugolina, Qui-
nado Constantino, Pílulas de Vida do Dr. Ross. O mais ba-
dalado, e por isso sofro constante assédio de colecionadores,
é o Rhum Creosotado, objeto de uma quadrinha publicitária
inscrita nos assentos de ônibus no início do século 20.
Estou redigindo este diário aos poucos, conforme me per-
mitem as condições físicas. Sempre tive vontade de escrever
um livro contando minha sofrida passagem por este mundo.
Se não fosse a tremedeira nas mãos, a dor nas costas, o glauco-
ma, e se as hemorroidas me permitissem sentar, faria... o que
mesmo?...

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E aí, Beiçolão?

Devia fazer uns 50 – não, não sou tão velho assim –, uns
40 anos que o havia visto pela última vez.
Éramos adolescentes, e me lembro bem de sua figura. Era
alto, magro, desengonçado, com os ombros caídos, feito um
cabide, os braços cumpridos e dedos da mão afunilados. Ti-
nha o rosto inchado, descombinando com o resto do corpo, e
o beiço grosso meio arriado. Diferentemente dos outros garo-
tos, que viviam descalços, ele andava de sapatos, e nas poucas
vezes em que se descalçava mostrava uns pés brancos e deli-
cados. Pés de moça.
Nosso primeiro encontro não foi dos mais amigáveis: eu
estava jogando uma linha no mar em frente de casa, quando
apareceu a figura e começou a me aporrinhar. Eu não era de
briga, e somente para assustá-lo disse:
– Me deixa em paz, ou vou aí e te quebro a cara.
Mas ele não se assustou com minha valentia e respondeu:
– Vem, se tu é homem!
Aí eu não podia voltar atrás. Recolhi a linha de náilon e
parti em sua direção. Quando cheguei perto, ele veio de peito
empolado como um galinho de briga:

23
– O que foi? O que foi?
Por falta de experiência em brigas, eu não sabia o que fazer
primeiro. Então, sem dizer água vai (que expressão antiga!),
larguei uma direta que pegou no lado de seu rosto. Deu de
ouvir até o barulhinho do osso estralando. Ele deu uma re-
cuada e esperei a reação, que não veio. Passou a mão no rosto
dolorido e sua arrogância foi murchando. Vitorioso, voltei à
minha pescaria.
Depois disso, pela sua proximidade com os demais garotos,
acabamos ficando amigos. Ele era um cara alegre; não era mé-
dium, mas tinha muita presença de espírito.
Foi a lembrança que me veio naquela hora, em que o divisei
no aeroporto de Guarulhos, sentado num banco, com uma
imensa valise ao lado. O rosto era o mesmo, o beiço arriado
parecia estar pesando na cara inchada. Só os cabelos já es-
tavam meio ralos e os dentes apresentavam aquela perfeição
metálica própria de uma prótese.
Dei-me conta de que não me lembrava mais de seu nome,
todos nós o conhecíamos pelo apelido. Quem sabe fosse agora
um doutor, um político, pessoa importante.
Mas não podia perder a oportunidade de falar-lhe. Cada
antigo colega que reencontramos nos traz um pedacinho, às
vezes esquecido, do painel que forma nossa vida. Por isso, fui
em frente. Agarrei seu braço e, estampando uma alegria sin-
cera, fui exclamando: – E aí, Beiçolão!!
Ele ergueu a cabeça, surpreso, com uma atarantada expres-
são britânica, e mais balbuciou do que falou:
– Sorry, Mister. I don’t understand…

24
Estrambótico

Quando o professor Linotipus de Azevedo, meu atual


assessor gramatical, se aposentou, foi uma festa pra guriza-
da. Isto para alguns, que moravam mais distante do professor,
porque os ex-alunos da vizinhança continuaram padecendo:
Bom dia, Carlinhos. Como vais? Vamos ver como andas em
concordância verbal: o certo é forra-se botões ou forram-se
botões?
Sem ter mais o que fazer, dava vazão aos seus cuidados me-
ticulosos com a língua pátria, aterrorizando a vizinhança com
seu policiamento gramatical. Quando mirava alguém com os
óculos redondos, era de tremer, a pessoa já se perguntava: que
será que eu disse de errado?
Um dia entrou furioso no bar onde se jogava dominó e se
consumiam (ou será consumia?) algumas geladas:
– Estou pasmo! É abominável! O Carvalho, aquele beócio,
sabem a palavra que ele teve a ousadia de pronunciar? Es-
trambólico! Pasmem!
Todos ficaram realmente pasmos: estrambólico, que pala-
vra era essa? Para não dar vexame, concordaram, era real-
mente um absurdo. Logo o Carvalho!

25
– Pois é! – continuou o mestre. Nunca vi tanta ignorância.
O correto é estrambótico, com “te” de taxidérmico.
O professor Lino, como é mais conhecido, dava a vida por
essas minudências da linguagem. Esmagados pela sua sapiên-
cia de mestre emérito do bairro, os outros se calaram; apenas
o Curió, bêbado contumaz (ou será costumaz?), teve coragem
de perguntar:
– E o que significa esse tal de eston... estrambótico?
– Coisa simples: quer dizer extravagante, inusitado, escala-
fobético...
Não bastava ao mestre humilhar os pobres viventes com
seu poderoso vocabulário; costumava variar as palavras expe-
didas por seus doutos lábios em grupo de três sinônimos.
Um dia, numa de suas caminhadas, o professor quase teve
uma apoplexia. Ali estava, na fachada de um barzinho, uma
tabuleta com nada menos – em seu linguajar gramaticista –
que um pleonasmo, um solecismo e dois barbarismos:
“Aqui neste locau vende-se salchichas”.
Fora de si, avançou contra o proprietário do bar, indagando
quem fora o néscio, o capiau, o beldroegas que escrevera tal
sandice. Assustado, o homem defendeu-se da agressão tacan-
do uma garrafa de cerveja na ilustre testa do mestre. Felizmen-
te, Linotipus sobreviveu, para glória da gramática nacional.
No bar, todos lastimaram o incidente: no fundo, o profes-
sor era uma excelente pessoa. Concordo – opinou o Curió,
enrolando a língua – pena que é meio estrambótico!

26
Falta de Provas

Atenção, leitor, esta é uma história amoral, antié-


tica. Por favor, vá chamar as crianças. Elas têm que aprender
alguma coisa, pode ser que queiram mais tarde entrar na po-
lítica.
Os dois vizinhos eram muito diferentes. Um deles, de nome
Catarrôncio – não tenho culpa, é uma mistura de Catarina, a
mãe, com Gerôncio, o leiteiro –, era um animal, sádico e vio-
lento. Sujo, encorpado, de tremenda barba hirsuta (paciência,
leitor, tenho que gastar o vocabulário). O outro era um magri-
nho frágil, conhecido por Tuluquinha.
O passatempo do grandalhão era atormentar o vizinho
com humilhações, barulhos, ofensas e tudo que lhe passava
pela mente pouco desenvolvida. Ultimamente, a coisa tornou-
se pior. Incentivado pela onda de impunidades que acontecia
em determinado país (na Austrália, é claro!), passou a tratar o
coitado com maior dose de violência. Entrava acintosamente
na casa do Tuluca e esvaziava a geladeira, comendo o que ha-
via de bom e bebendo todas. Depois, de barriga cheia, encara-
va o baixinho e dizia:
– Fui eu, sim, e daí? Eu nego e processo quem disser o con-

27
trário. Como é que você vai provar?
Só restava ao prejudicado ficar caladinho. Às vezes, o gran-
dalhão aplicava um safanão no filho mais novo do vizinho. O
guri ficava choramingando num canto, temeroso. E aí? Cadê
a prova de que fui eu? Até prova em contrário, todo mundo é
inocente (e às vezes até com prova em contrário).
A vida foi ficando difícil para o Tuluca. Bons tempos aque-
les em que tinha vizinhança melhor selecionada. Um dia, Ca-
tarrôncio passou da conta: agarrou a própria mulher do na-
nico atrás da árvore do quintal. Foi a maior das humilhações.
E ainda dizia: agradeça que não aprecio mulher magra, sem
bumbum, senão ia ser uma festa! Hahaha! Prove que fui eu
quem apalpou a magrela! Peça uma CPI, a CPI dos amassos...
hahaha! Mande me extraditar para a Itália! Hahaha!
No outro dia, Tuluca sentou na varanda da casa com uma
latinha de cerveja na mão. Nem chegou a bebê-la. O marman-
jão surgiu, com andar pesado, bonezinho vermelho na cabeça,
e lhe arrebatou a bebida. Levantando a cabeça, fez gluglu e
esvaziou rápido seu conteúdo. Seria mais um abuso impune
nesta nação desprotegida?
Desta vez, não! Enquanto Catarrôncio estrebuchava, tor-
cendo-se de dor, como um gambá que recebeu paulada, Tulu-
quinha arremessou a latinha num bueiro, deixou-a sumir no
esgoto e falou: fui eu, sim, que coloquei veneno para rato na
cerveja, mas cadê a prova?

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“Farra do Homem”

Algumas comunidades trouxeram de seu país de


origem uma tradição estranha. Trata-se da “farra do ho-
mem”.
Em primeiro lugar, escolhe-se um homem. Mas não é as-
sim tão fácil como parece. Deve ser um homem diferente: um
homem honesto, fiel, cumpridor da palavra. Viram como não
é fácil? Em algumas comunidades, é comum isolarem essa
raríssima espécie humana desde pequeno, preparando-o para
a ocasião certa.
Como funciona a brincadeira? Em princípio, solta-se na
rua o homem escolhido, doravante denominado homem ho-
nesto. Na sua frente colocam dois obstáculos: de um lado, um
gordo financiamento do BNDES, a fundo perdido; de outro, a
oferta de aposentadoria especial por haver sofrido tortura nos
anos de chumbo: um delegado lhe havia dado um “puxão de
orelha”.
O homem honesto, certamente, pula os obstáculos com ca-
tegoria. Ainda se encontra disposto. Mais adiante, um empre-
sário lhe propõe pagar propinas para liberar um documento
na repartição. Desvia-se do obstáculo. Um empreiteiro lhe

29
acena com um orçamento superfaturado, lucro meio a meio.
Se não fosse educado, o homem honesto lhe cuspiria na cara.
Adultos começam a vaiá-lo. Crianças lhe jogam pedras.
Isso faz parte da brincadeira.
O homem honesto não anda nem mais dois passos e en-
contra um credor. Se fosse outro, desviaria a trajetória, fingiria
que não estava vendo o fulano. Mas o homem honesto, não.
Ali mesmo tira o talão de cheques do bolso, pede desculpas
pelo pequeno atraso e quita o débito. Novas vaias.
Em seguida, vê-se diante de uma morena provocante, que
faz de tudo para conquistá-lo (é um teste de fidelidade). O
homem honesto atende-a com educação e respeito, mas re-
cusa de imediato as propostas sensuais que lhe são dirigidas.
Sai correndo, com o povo todo atrás de si. Uns lhe puxam os
cabelos, outros lhe rasgam as roupas.
O homem honesto tem um olhar bovino. Começa a cansar.
Aí, os participantes da brincadeira aproveitam para lhe bom-
bardear: oferecem comissões, vantagens, participações em ne-
gócios escusos, cargos bem remunerados. O homem honesto
vacila, mas não se deixa comprar.
Leitores, é preciso acabar com essa brincadeira cruel. Ho-
mem honesto também é um ser humano.

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Funcionário – Modelo

O jovem entrou na empresa como estagiário. Traba-


lhou seis meses sem receber um só centavo. Mesmo assim,
era um funcionário dedicado. Absorvia serviços, extrapolava
o horário de expediente. Ao completar o sexto mês, o chefe
veio felicitá-lo. Tinha sido efetivado. Agora era funcionário da
empresa, não um simples estagiário.
Com a distinção recebida, como ia ter coragem de falar nos
atrasados? Continuou se dedicando. Mais seis meses sem ver
a cor do dinheiro. A empresa precisava de sua abnegação. No
ano seguinte já era chefe de equipe. Ordenado zero. Como re-
ceber, se sua função era enxugar o quadro, diminuir despesas?
Nisso conseguiu sucesso, era o próprio exemplo vivo de que
um empregado pode muito bem viver sem onerar a empresa.
Para completar sua dedicação renunciou ao direito de fé-
rias. Pra que férias se não tinha ordenado para gastar? Pre-
cisava pensar unicamente em sua carreira profissional. Era o
que importava. Como muitas pessoas, vivia em função de seu
trabalho, sem tempo para a família, para os amigos e mesmo
para diversão. Nas poucas horas que lhe sobravam, montou
uma fabriqueta que fornecia matéria-prima aos patrões, a pre-

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ço abaixo do custo. Levava na cabeça, mas a empresa alargava
sua margem de lucro.
Em pouco tempo virou chefe de departamento. Se recebesse
algo, seu salário seria um dos maiores da firma. Estava cheio
de moral para cortar benesses e vantagens dos subordinados.
A empresa crescia, e ele crescia junto. Não demorou muito,
chegou à vice-presidência. Um belo exemplo de dedicação:
nunca recebera um centavo. E começara na empresa como es-
tagiário – informava orgulhoso aos mais jovens.
Quando o conselho deliberativo quis lhe oferecer a presi-
dência, recusou. Na presidência não podia receber o mesmo
de atualmente, ou seja, nada. O conselho não abria mão, dese-
java remunerá-lo. Tinham de pensar na imagem da empresa.
Despesas de representação, jantares, moradia. “Pelo menos
um salário-mínimo, aceita?” Ele negava obstinadamente rece-
ber alguma coisa. O caso, agora, está na Justiça do Trabalho.

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Luxúria

O ambiente era de um banquete romano. Garotas dan-


çavam seminuas, deixando à mostra toda a sensualidade de
seus corpos morenos. Quando a música parou... Peraí! Corta!
Corta! Não é essa a história. Desculpe, leitor. Trata-se da triste
história de Luxúria da Silva, moça feinha, de cabelos ralos e
pernas finas. Na certa, nem sabe o que significa a palavra lu-
xúria. Certamente seus genitores a leram em alguma parte e
acharam bonitinha.
Quando novinha, era conhecida por Lulu. Sua irmã gêmea,
Lixívia, que era mais bonitinha apesar do nome, casou com
um auxiliar de alfaiate.
Luxúria teve uma vida sofrida. Quando era menina, deixou
de ir à sua igreja depois que o pastor falou em altos brados, o
dedo em riste: “a luxúria é responsável por todos os vícios”.
Parecia que o dedão do pastor apontava diretamente para ela.
“Devemos nos afastar da luxuria! A luxuria é abominável!”
Ficou traumatizada, mesmo sem saber o que significa abomi-
nável. Boa coisa não era.
Afastou-se de qualquer religião daí em diante. Todas con-
denavam a luxúria, isto é, sua humilde pessoa. O que fizera de

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errado? De que modo ofendera a Deus e aos homens?
Quando era mocinha, presenciou uma cerimônia numa
comunidade alternativa, termo genérico que abriga compor-
tamentos fora dos padrões normais. Era gente de todo tipo:
cabeludos, carecas, mulheres de batas compridas e bordadas,
centenas de piercings e tatuagens... Muitos já naquele estado
“pra lá de Bagdá”.
O líder espiritual bradava: A luxuria é nossa deusa! Todos
repetiam, de olhos arregalados, as mãos para o alto: A luxúria
é nossa deusa! Sentiu-se nas nuvens. Nunca seu nome tinha
sido literalmente tão endeusado.
Até que, uma hora, três ou quatro adeptos da seita a agarra-
ram e arrastaram para o matinho ali perto. Quando ela grita-
va, desesperada, o que vão fazer comigo? diziam: calma, irmã,
vamos praticar nossa religião.
Enquanto praticavam na pobre moça, gritavam em unísso-
no: A luxúria é nossa deusa! Não conseguiu nem explicar que
ela era a própria Luxúria, deviam respeitá-la. Desnecessário
dizer que detestou mais essa experiência religiosa.
Daí a uns meses criou barriga, passou uma gestação difícil,
cheia de traumas, e desembarrigou um piá cabeludinho. Di-
zem que a mulher sempre sabe quem é o pai da criança. Nesse
caso, acho meio difícil.
Por via das dúvidas, deu ao filho o nome de José, nada de
nome complicado. O que um nome faz a gente sofrer!

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Na Barbearia

Dizem que é uma classe em extinção, o velho e


bom barbeiro. Muitos deles insistem há anos no mesmo tipo
de corte. Não abrem mão da estimada navalha para os arre-
mates em redor da orelha do freguês. No balcão, em frente ao
espelho, a indispensável Água Velva.
A barbearia é um dos últimos redutos do machismo, local
onde se pode discutir futebol, ouvir anedotas picantes, as úl-
timas fofocas e falar sobre mulheres, sem a interferência da
classe oposta, essa mesma que serve de assunto.
O proprietário da barbearia normalmente é um gozador de
primeira; se você não fica quietinho em seu canto acaba sendo
esculachado. Toda barbearia tem um personagem de presença
constante: é aquele sujeito que vai diariamente ali para matar
tempo, jogar conversa fora. Aboleta-se sem cerimônia numa
das cadeiras e, como figurinha manjada da casa, rebate as pro-
vocações do fígaro (não, não se trata do gato do Pinóquio, mas
do famoso barbeiro de Sevilha), dando à conversa um jeito
de “desafio” nordestino, um procurando ridicularizar o outro
diante da plateia. Os assuntos (ou os combates) vão desde a
incompetência sexual, os problemas da idade, até a desastrada

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atuação do time do adversário.
Tenho frequentado uma das barbearias por um bom tem-
po, mas eu e o profissional nos comunicamos muito pouco.
Deve ser porque não acompanho futebol e não entendo nada
de canários e curiós, e ele, por sua vez, não acompanha cine-
ma e literatura.
Certo dia, me falou indignado, ao mesmo tempo em que
virava a almofadinha de couro sobre a cadeira, ato praticado a
cada troca de freguês:
– Viu que espetáculo deprimente ontem à noite?
– É verdade. Acho que o Spielberg está se repetindo muito.
Bom mesmo era o John Ford – falei, entre sério e provoca-
dor.
– Que nada! Bom era o Esquerdinha. Tinha raça. Jogava
por amor à camisa.
Em um cabeleireiro unissex a conversa seria diferente. O
espetáculo deprimente poderia ser a apresentação de balé ou
o concurso de miss, em que os penteados foram feitos por um
seu rival.
Ir à barbearia é um ato de higiene mental. Não é para os
apressados e sim para quem deseja dar uma parada, esquecer
os problemas, a concorrência. Entre resmungos e risadas, nem
notamos chegar nossa vez de ser atendido.

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Na Boca do Sapo

Certa vez, levado por um amigo, fui parar na casa de


um mulato magro, conhecido por Pai Tartufo. O homem é
muito bom, disse o meu amigo, vai desembaraçar o teu cami-
nho.
Depois de aprovar minha ficha cadastral, Pai Tartufo mar-
cou hora para o dia seguinte, de tardinha, e perguntou se eu
tinha em casa travesseiro de penas.
– Se não tiver, serve o de isopor, traga junto com você.
Na hora marcada, me conduziu a uma salinha à meia luz,
de tons vermelhos, com algumas velas acesas. Examinou o
travesseiro que eu trouxe, apalpando-o por todos os lados e
deu um sorriso de vitória, como se tivesse encontrado o que
procurava. Voltou-se para mim e disse:
– Meu fio, abra o travesseiro e despeje tudo no chão.
Feito isso, apanhou do meio do isopor picado um embru-
lho e desenrolou-o devagarinho, sorrindo estranhamente. E aí
apareceu um sapo seco, enorme! Da boca do sapo, o mulato
extraiu um papel enrolado. De um lado estava escrito apenas
um nome: Ranulfo. No outro lado, alguém escrevera coisas
terríveis: Ranulfo, vai lhe acontecer isto, Ranulfo, aquilo... as

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maiores desgraças! Duvido que lendo uma coisa daquelas, na
luz tremulante das velas, você não ficasse estarrecido, como
eu fiquei.
No final da delicada cartinha havia uma lista enorme com
os ingredientes utilizados no trabalho (como o inteligente lei-
tor deve ter percebido, tratava-se de um trabalho feito contra
mim).
Era de se ver: de uísque estrangeiro pra cima. Com certeza,
até o próprio sapo era importado.
Bondoso, pai Tartufo não cobrava nada pela sua ajuda, mas
para desfazer o trabalho eu teria de adquirir os mesmos pro-
dutos. Felizmente, para minha maior comodidade, Pai Tartu-
fo os possuía em seu estoque. Era só deixar o dinheiro. Fácil,
fácil...
Mas não pense que fiquei desesperado. Afinal de contas, eu
nem me chamo Ranulfo. Foi o nome que dei ao marcar con-
sulta, constrangido em dar meu nome verdadeiro. E para não
trazer um travesseiro velho, passei no supermercado e com-
prei um novo. Não posso entender como meu terrível inimi-
go, o malvado ou a malvada que me augurava tantas desgra-
ças, sabia que eu iria comprar justamente aquele travesseiro.
Essas coisas são inexplicáveis!

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No Tempo dos Caranguejos

Em meus bons tempos em S.Chico, de vez em quando me


juntava aos amigos para colher berbigão, atolado na lama, ou
mesmo caçar caranguejos no mangue da Paum. Como não era
bobo de meter a mão nas tocas de lodo, eu levava uma vara
para imobilizar os crustáceos desprevenidos. Uma vez imobi-
lizado, colocava cuidadosamente a mão por trás das garras do
bicho, e o erguia para atirar no saco de aniagem.
Meu companheiro constante era o Edu, grande aprontador,
cujas façanhas são mencionadas em meu livro “São Chico Ve-
lho de Guerra”.
Certa vez, enchemos o saco até a boca e saímos felizes, os
bichinhos fervilhando dentro do saco, algumas pontas de gar-
ra saindo para fora. Ao parar a bateira na praia diante de casa,
juntaram-se alguns curiosos. Aí apareceu a Dona Mariquinha,
sábia administradora do Centro Espírita, e nos passou um tre-
mendo “sabão”, obrigando-nos, envergonhados, a soltar todos
os “peludos”. Era época de procriação.
Em outra ocasião, embicada a bateira entre os arbustos do
mangue, saímos à cata dos bichinhos, que corriam atordoados
para todos os lados. Que festa! De repente, divisamos uma fi-

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gura feminina escondida entre os arbustos. Era uma mocinha,
de shorts, as pernas roliças, corpo cheinho. O Edu gritou para
mim e o Toni, outro amigo que nos acompanhava: Vamos pe-
gar! Não julguem mal, era apenas por farra, coisa de jovens.
Os dois, então, correram atrás da moça. (Não me lembro se
também participei da brincadeira, a memória providencial-
mente me falha nesse ponto.)
A moça se embarafustou por entre as folhagens, de vez em
quando dava para ver uma nesga de sua roupa. E os dois atrás,
respingando lama, esbarrando em gravetos que se quebra-
vam.
Nisso, dão de cara com o cano de uma espingarda pica-
pau.
Era um senhor de meia-idade, provavelmente o pai da
moça. Calmamente, o velho falou, apontando a arma para o
Edu:
– Vem aqui! Vem pegar ela, se tu é homem!
O Edu era rápido de pensamento. Sem titubear, afinando a
voz, responde:
– Imagine... até dizem que sou fresco!
No susto, voltamos pra casa de saco vazio.

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No Velório

Alguns anos atrás, eu participava de um programa


de alfabetização de adultos. Certo dia, uma das colegas
alfabetizadoras apanhou uma gripe mal-educada, ficando de
cama por uns três dias. Para não deixar sua comunidade na
mão, eu me prontifiquei a substituí-la: deixa que eu vou lá!
A base da colega era uma comunidade afastada. As aulas
eram ministradas em um galpão comunitário, o local mais
confortável da localidade. Às vezes faltava luz, mas isso não
impedia a continuidade do programa.
Saindo do serviço, à tardinha, fui cumprir a missão. E a
missão já começava no próprio trajeto, por estradas de barro,
com enormes sulcos no meio, barrancos perigosos.
O que eu não sabia é que houvera, à última hora, uma pe-
quena alteração. Uma velhinha havia morrido e o galpão foi
cedido para o velório, sendo as aulas suspensas naquela noi-
te.
No local – que consegui achar com dificuldade – havia um
grupo de homens do lado de fora do galpão, uns fumando,
outros de braços cruzados, escorados na parede de madeira.
Fui cumprimentando, tipo alguns políticos, conhecidos como

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“mão biônica”. Depois, ia explicar a ausência da professora. O
primeiro a quem dei a mão trazia a expressão triste, pesada,
combinando com o terno grosso, meio puído: mas que des-
graça! – repetia. Devia ser o viúvo.
Puxa! Como gostavam da professora, para sentir tanto sua
ausência. Assumindo o comando, bati palmas (como faziam
minhas professoras no curso primário), chamando a atenção
de todos de modo brincalhão para quebrar o gelo, o clima es-
tava pesado.
– Vamos pessoal! Por que ficar assim jururus? Ela só está
descansando um pouco. Amanhã ela volta em forma. Hoje vai
ser moleza, todo mundo vai se divertir.
Uns olhavam para os outros, ressabiados. Quem seria esse
camarada? Quando entrei no galpão, vi um monte de senho-
ras, com roupas pretas de bolinhas, sentadas nos cantos, com
ar compungido. No meio do salão, um caixão de madeira cla-
ra, cercado de velas. Todo mundo de olho pregado em mim.
Que vexame, meu Deus!
Não tive outro jeito: aproximei-me do caixão abrindo os
braços, o jeitão compenetrado: Venham irmãos! Vamos fazer
uma prece por esta irmãzinha!

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O Dia de Azar do Nequinho

Nequinho, ou melhor, Manuel Hermógenes de Alen-


castro, só deu uma mancada na vida, e isso lhe custou um
trauma para toda a existência.
Órfão, foi criado com todo cuidado por duas tias solteiro-
nas, Dona Fininha e Dona Dunildes. Era tímido, de educação
finíssima, daqueles que pedia licença até para tossir e tapava
os ouvidos quando ouvia palavrão.
Aos 20 anos, prestou concurso para os Correios, no qual
foi aprovado com distinção. Foi mandado, então, para uma ci-
dadezinha à beira-mar. Alugou um quarto em uma das casas
antigas, onde se refugiava após o serviço, com seus livros e o
radinho de pilhas. Seu tormento era o bar, abaixo do quarto,
onde pinguços se reuniam e contavam pesadas anedotas, em
voz tão alta, que precisava aumentar o volume do rádio para
que não ferissem seus delicados ouvidos.
Sem nada para passar o tempo, resolveu completar os es-
tudos, pois só fora até o antigo ginásio. Esqueci de dizer que
estávamos nos “anos de chumbo”, período mais negro da dita-
dura militar. Em matéria de segundo grau, só havia na cidade
o Curso Normal (e muitas belas normalistas) e o Técnico em

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Contabilidade, o conhecido Contador. Foi nesse que o Nequi-
nho se matriculou.
O professor de Educação Moral e Cívica era um militar
reformado, que havia sido nomeado titular da Delegacia de
Polícia, o que significava naquele tempo poder absoluto na ci-
dadezinha.
Não me perguntem o motivo, mas o novo delegado recebeu
na cidade o apelido de Varejão. Quando tomou conhecimento
do singelo epíteto, ficou possesso. Disse que “prendia e arre-
bentava” quem ousasse pronunciá-lo em sua frente. Por isso,
os “corajosos” cidadãos somente o mencionavam quando se
encontrava ausente, e olhando cuidadosamente para todos os
lados.
Mas o nosso Nequinho estava distante de tais coisas mun-
danas e ignorava completamente esse fato. Longe do militar,
seus colegas de aula dialogavam: Amanhã tem aula com o Va-
rejão? Você fez o trabalho do Varejão?
Durante uma das aulas do tal professor, o Nequinho se viu
com o estômago revirando, uma urgência danada de “ir fora”.
Aguentou o que pôde, não ficava bem interromper as expla-
nações do mestre. Mas não havia jeito. Por isso, quando ele
fez pausa para escrever na lousa, Nequinho chamou timida-
mente:
– Professor Varejão!!!
A classe toda imobilizou-se. Silêncio completo! Não vou
descrever as nuances de cores que perpassaram a face do mi-
litar. Sei que levantou o espantado Nequinho pelas orelhas e o
conduziu até fora da sala. E o Nequinho foi “fora” ali mesmo.

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O Estranho Amigo

Naquela manhã, Chico só arredara pé de um bar


para ir a outro. Acabado o crédito (ou as bebidas?) viera
“emendar” em casa. Ali havia um corredor que certamente
havia sido construído levando em conta suas eventuais bebe-
deiras. Podia vir no maior dos porres, mas não caía no chão,
pois era amparado pelos dois lados da parede. Era só ir-se jo-
gando de um lado para outro, e assim chegava ao seu quarto,
no final do corredor.
Desta vez, o Chico falhou em seus reflexos (se é que ainda
restava algum): atravessou todo o corredor e cruzou direto a
porta dos fundos, indo se estatelar no chão do quintal.
Aí, conheceu nosso principal personagem. Surgira da noi-
te, do estranho mundo dos répteis; esbarrara no Chico e ali
ficaram os dois, estudando-se; um, espantado, o outro não sei,
porque reação de bêbado é estranha. O Chico então falou, aos
arrancos:
– Meu amigo! Tu tá bêbado! Tu também caiu na vida?
Até aí tudo normal, a não ser o fato de que o amigo em
questão era um sapo, enorme e viscoso. O sapo esperneava,
escorregando pelas mãos do Chico, que já o havia agarrado.

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Recebendo aquele bafo de bebida na cara, o pobre réptil aca-
bou mesmo por se iniciar na arte do alcoolismo. Quando saíra
de casa era um sapo; agora já não sabia mais. Aquele sujeito
estranho na sua frente começava a girar. Tentou coaxar. Sua
voz saiu pastosa. E aquela estrofe gozada no seu ouvido:
– Ah, tu tá bêbado, bichinho? – e o Chico esfregava o rosto
na cara do sapo, num estranho “tête a tête”.
Ah! Aquele bafo! Como entorpecia os sentidos! Ele até es-
tava simpatizando com esse interlocutor tão romântico. Pela
noite adentro coaxaram juntos, rosto a rosto (ou cara a cara),
abraçados e trôpegos.
Depois, uma alma pérfida os separou. Chico, agarrado pe-
los braços, ainda esperneava; suas mãos, aos poucos, iam es-
corregando pelas coxas viscosas do sapo. A porta se fechou e
o pobre animal ficou sozinho na escuridão imensa, os olhos
marejados e a voz embargada.

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O Funcionário Ideal

O que aconteceu com o Soromenho não foi fá-


cil. Evidentemente, você já ouviu falar do Soromenho. É um
daqueles caras que conhecem Deus e todo mundo. É assim, ó,
com todos os importantes. Qualquer coisa, falassem com ele.
Diz que conseguia testes na Globo, na Record, ou, no mínimo,
no “se vira nos 30”. Foi ele quem soprou para o Roberto Mari-
nho a ideia de colocar no ar o “Big Brother Brasil”.
Problemas nos bairros? Deixa comigo, dizia – deixa o Udo
voltar de viagem. Em último caso, apelava para o Lula (o Lula
tinha sido colega de sindicato, em 64), mas não gostava de in-
comodar, acabava deixando recado com algum assessor.
Não perdia festas de socialites, badalações na orla maríti-
ma, todos gostavam de cercá-lo para ouvir intimidades dos
famosos: o Boni só bebe caipirinha de vodca; o Antonio Ermí-
rio detesta caviar. Teve, certa vez, um pega com o Ayrton Sen-
na por causa de uma olhada da Adriane. Adorava uma boca
livre, só evitava aparecer nas colunas sociais; sabe como é, a
modéstia era sua maior vaidade.
Vivia, em grande parte, de seu prestígio. Eram assessorias,

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pequenos lucros em transações... dizem que seu nome abria
todas as portas.
Quando se instalou na cidade uma nova empresa, anda-
va com o caixa meio baixo para sustentar seus “uisquinhos”
e resolveu reivindicar o cargo de relações públicas, ninguém
melhor do que ele para isso. Ia exigir mordomias, veículo alu-
gado, cartão corporativo, viagens de avião...
Na entrevista com o diretor da empresa, este lhe confiden-
ciou que estavam com problemas para liberar um maquinário
importado. Problemas na alfândega? Deixa comigo. No ato,
passou a mão no telefone do diretor, discou um número e foi
direto:
– Lelinho, aqui é o Sorô! Me quebra um galho (e explicou o
assunto). O quê? Quinze dias? É muito tempo!
Teve, então, a promessa de que numa semana tudo seria
resolvido. Mais algumas ligações e resolveu outros problemi-
nhas da empresa. Era, com certeza, o funcionário ideal.
Surpreso, o entrevistador falou: você conhece também
o diretor da empresa de telefone? Claro que conhecia, eram
amigos de pescaria.
– Então pede para agilizarem o conserto deste telefone, que
está há três dias mudo!
Grande Soromenho! Perdeu o emprego, mas não a pose.

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O homem que assassinou a si mesmo

Certa vez, em meus tempos de juventude, cismei de


escrever uma obra policial. Resolvi começar pelo título.
O título é importantíssimo num texto, é o que vai despertar a
curiosidade do leitor e fazer com que inicie a leitura. E já tinha
um título porreta: “O homem que assassinou a si mesmo”.
Agora precisava pesquisar para ver se não existia uma obra
com esse título. Sabe como é, o tal de direito autoral. Detesta-
ria que, depois de famoso, viesse algum autorzinho me cobrar
milhões de indenização.
Dentre os seis livros da biblioteca pesquisados (naquele
tempo as verbas para biblioteca eram escassas), encontrei ape-
nas uns versos de Anfilóquio de Souza que diziam: “rasguei
meu coração, matando-me a mim mesmo...”.
Anfilóquio de Souza, como explicou um de seus netos, foi
um escritor conhecido em todo mundo. Usava o pseudônimo
de Balzac. Por isso, eram conhecidas como balzaquianas as
“coroas” que o velho havia... como direi?... desonrado. Claro
que não acreditei nisso: quem conhece esse tal de Balzac?
Resolvido isso, passei ao planejamento do texto. Um bom
texto não dispensa o planejamento. Se não se souber de ante-

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mão do que irá tratar, corre-se o risco de ficar empacado no
meio da obra.
Precisava agora de um modelo, como alguns pintores, para
descrever meu personagem. Quem iria me servir de modelo?
Repassei as pessoas que moravam em minha rua: o seu Carlos
Aranha? Não, não iria assassinar-se, estava bem com seu bar-
co e seu joguinho de canastra. Seu Raul Osório? Estava muito
velho, precisava ser mais moço. Seu Vadinho Zattar? Não, com
aquele jeitão ladino, a piteira nos lábios, não iria fazer isso.
Aí surgiu o segundo (e definitivo) problema: como iria fazer
alguém assassinar-se a si mesmo? Diz o dicionário que “assas-
sinar” significa matar alguém traiçoeiramente. Quer dizer, o
cara tinha que se matar de surpresa. Quando menos estivesse
esperando, pimba! metia um tiro traiçoeiro nos miolos.
Olhem a repercussão que a obra iria ter nos tribunais. Ma-
gistrados perdendo horas para discutir até que ponto seria as-
sassinato e não suicídio. Como não sou de dificultar a vida
de ninguém, muito menos de nossos atarefados juízes, preferi
condenar ao olvido (revisor, não escreva ouvido!) essa impor-
tante peça literária.

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O Homem Sem Cabeça

É uma coisa rara, mas às vezes acontece. Neste mun-


do nada é impossível. Pois o italiano Petrúquio Pasqualini
encontrou certo dia, dentro de suas terras, um homem sem
cabeça.
Achou que um indivíduo desprovido de cabeça não era
uma coisa normal. Podia ser um comunista, um chauvinista
ou mesmo um pedófilo. O homem parecia perdido ali, virava
o corpo de um lado a outro, sem se fixar em nada em especial.
Depois desapareceu, como se tivesse sido excluído num clique
de mouse.
O italiano achou melhor dar queixa na polícia. Entrou ain-
da trêmulo na delegacia e foi falando, atropelando palavras:
uma cabeça sem homem, isto é, um homem sem cabeça. Eu
vi! Eu vi!
– Fique calmo, homem! – falou educadamente o policial,
e o italiano também achou que isso não era normal. Coisas
estranhas estavam acontecendo.
– Seu nome? – voltou a falar a autoridade.
– Petrúquio Pasqualini.
– Muito bem, senhor Prepúcio, o senhor poderia descrever
esse indivíduo? Qual a cor dos olhos, do cabelo?

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– Ma como, bom Dio? Se o cara não tinha cabeça!
– Não se preocupe com isso. Também tenho em casa dois
jovens sem cabeça e não saio à rua apavorado.
– É sério, doutor. E se ele volta lá em casa?
– Tá bom! Ele lhe falou alguma coisa? Fez ameaças?
– Evidente que não.
Então o policial expediu ordem para a “captura de um in-
divíduo acéfalo, que estava apavorando a população”. A popu-
lação aí mesmo é que ficou apavorada. Viam o sem cabeça em
toda parte.
Coisas que nunca aconteceram neste país – conhecido e
invejado em todo o mundo pela ética e decência de sua clas-
se política, pela honestidade de muitos de seus empresários e
empreiteiros, pela justiça de sua distribuição de renda – passa-
ram a acontecer de maneira constante e acintosa. Tudo natu-
ralmente por culpa exclusiva do tal “indivíduo acéfalo”.
Desfalque em empresas? Coisa do sem cabeça. Moça que
engravidava? Olha ele aí! Superfaturamento em obras? Desvio
de dinheiro público? Contratos públicos sem licitação? Esque-
mas de lavagem de dinheiro? Forjaram-se roubos para aboca-
nhar o dinheiro do seguro. Praticaram-se atos de vingança.
Muita gente enriqueceu da noite pro dia. Mesmo apanhados
em flagrante, filmados, gravados, os “supostos” infratores ba-
tiam o pé, juravam inocência. Culpa de quem? Adivinhe, sa-
gaz leitor.
E o pobre indivíduo acéfalo, causador de toda essa revira-
volta nos costumes do país? Ninguém o viu. Não se sabe ao
certo se ao menos existia. Sabe, o senhor Prepúcio, digo, Pet-
rúquio não era muito bom da cabeça...

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O mais feio da cidade

Numa época, chegou à cidade um desses circos mam-


bembes que percorria a região. Em pouco tempo, o pessoal
do circo tornou-se íntimo dos habitantes e foi ficando por ali
mais um tempo. Para atrair espectadores, iam inventando fa-
tos. Espalhava-se que o leão havia fugido, que o palhaço esta-
va apaixonado por uma das solteironas do local, e por aí vai...
Numa hora, resolveram fazer um concurso para escolher o
cara mais feio da cidade.
A animação foi grande. Todos tinham candidatos a apre-
sentar. Verdade seja dita, a cidade possuía um almoxarifado de
gente feia. Foram “selecionados” três candidatos: o professor
Atanásio, de calva lustrosa; o cartorário Pancrácio, de quem se
dizia que (as)sustava qualquer protesto, e o tímido Janjão, que,
não sei se ele próprio sabia, era o feio oficial do município (os
nomes obviamente foram trocados).
Em todas as rodinhas só se falava nisso. Davam-se palpi-
tes, faziam-se apostas. As barbearias, o Mercado, a ponte da
Pedreira, locais onde se concentravam alguns espécimes do
gozador francisquense, viviam cheios.
Ninguém se lembrou de consultar os candidatos indicados

53
para tão grande honraria. Por via das dúvidas, o pessoal do
circo arrumou mais um candidato: o Grilo, figura popular,
meio maluquinho, que perambulava pelas ruas sem moradia
fixa.
No grande dia, o circo lotado, o apresentador finalmente
falou, com grande lábia:
– Algumas pessoas foram presenteadas por Deus com a
beleza. Mas Deus, em sua sabedoria, para contrabalançar,
criou outras pessoas que pelos padrões humanos não se po-
dem considerar bonitas. Essas não devem ser desprezadas e
sim valorizadas, pois são pessoas especiais (falou muito mais
coisas, para criar suspense, mas não cabe tudo neste espaço).
Dito isso, temos o grande prazer de apresentar o vencedor de
nosso concurso, o homem mais feio da cidade! Tchan, tchan,
tchan...
E quem aparece no palco, belo e saltitante? O Grilo. O apre-
sentador grita: Paaalmas! Palmas para o mais feio da cidade!
O Grilo até que não era tão feio; com um bom banho e
umas roupas decentes virava doutor. Evidente que nessas coi-
sas existem influências econômicas, alguém mexeu os pauzi-
nhos. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco. Coisas de
circo...

54
O Sufoco do Papai Noel

Houve tempo em que, para ganhar uns trocados, eu


fazia uns “bicos” de Papai Noel. Colocava a roupa verme-
lha, um travesseiro na barriga, colava uma barba incômoda e
ia à casa de meus “fregueses” com o saco cheio. De presentes,
claro.
Entrava nas casas com a risada do bom velhinho: rou, rou,
rou! – não sei se de alegria ou de sufoco debaixo daquela rou-
pa. Passava a mão na cabeça das amedrontadas crianças e per-
guntava: você obedece o papai e a mamãe? Você passou de
ano na escola? Comia um pedaço de bolo, tomava um gole de
guaraná e partia para outra casa.
Terminadas as visitas, saía com o dinheirinho no bolso,
louco para tirar aquela roupa, colocar uma bermuda e tomar
umas cervejas com os amigos.
Numa dessas, pelas vielas escuras, ao dobrar uma esquina
esbarrei num cano de revólver. E não era revólver de brinque-
do. Por trás do revólver, um bigode caído, tipo mexicano.
O bigode se mexeu e disse:
– Me passa o dinheiro!
Naquele tempo eu treinava caratê, senti que o homem es-
tava meio inseguro, me afastei um pouco e dei uma cutelada

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em seu braço. Quando largou a arma, apliquei uma gravata.
Minha barba desgrudou, o travesseiro saiu do lugar.
Era um indivíduo magro, baixinho. Quando o larguei, pen-
durou um olhar assustado na minha frente e implorou:
– Não me leve preso, moço, não sou ladrão!
– Ah, é? E o que você estava fazendo, treinando para um
filme de faroeste?
– Minha filha menor está doente. Precisava de dinheiro
para comprar remédio.
– Desculpa esfarrapada. Por que não procurou um posto
de saúde?
– Hoje está tudo fechado.
Palavras são enganadoras, não devemos nos fiar nelas, mas
o jeitão do homem, a tristeza no fundo de seu olhar, come-
çaram a amolecer este coração de Papai Noel. Ele propôs me
levar até sua casa para conferir o que havia me dito. Enfiamos
por um beco sem calçamento. O revólver, esqueci de dizer,
estava emperrado, ele o havia achado num monte de ferro ve-
lho. Chegamos diante de uma casinha triste, sem reboco; um
quintalzinho na frente, com pé de mamão e uma leira com
cebolinha e hortelã.
Parei diante da casa e me senti constrangido. Acho que foi
por causa da hortelã, lembrei dos quibes que minha mãe fazia.
Quase sem pensar, tirei o maço de dinheiro do bolso, o lucro
daquela noite, e o entreguei ao homem:
– Diga à sua filha que Papai Noel esteve aqui!
Grande efeito para o final de um conto de Natal! Parece
uma daquelas histórias melosas que cansamos de receber pela
internet. Mas eu não tinha coisa melhor sobre o tema.

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O Terrorista

O sujeito escrevia na página literária de um jornal.


Quando estava trabalhando uma ideia, costumava sair para
caminhar com papel e caneta no bolso. Surgindo de repente
uma frase ou imagem brilhante, parava e escrevia imediata-
mente, assim não corria o risco de esquecer.
Certa vez, quando isso aconteceu, achava-se defronte de
uma mansão. Apoiou o papel no muro e começou a rabiscar.
O segurança olhou-o com desconfiança. Disfarçadamente, li-
gou o celular. Era na época após o 11 de setembro, quando ha-
via verdadeira obsessão pela caça aos terroristas. Daí a pouco,
assustou-se com o berreiro de sirenes. Havia até um helicóp-
tero sobrevoando o local. Um pelotão de policiais cercou-o na
calçada.
– Parado aí, moço! Mãos na parede, abra as pernas – e já fo-
ram lhe dando uma botinada na panturrilha. Queremos ver as
anotações – um policial avantajado segurou-o, evitando que
procurasse engolir o papel suspeito.
Sob ameaça de agressão, não teve outro jeito senão mostrar
as garatujas, letra de médico. Iniciava com a frase: “o coração
da moça explodiu em pedaços”. Verdade que não era um tre-

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cho muito original, mas falar ou escrever sobre explosão na-
quele tempo já era caso de polícia. Além disso, sua aparência
não ajudava, tinha o rosto moreno pelo sol das caminhadas e
um vasto bigode negro.
– Eu sabia! Participante de atentado terrorista. Segura esse
Bin Laden, enquanto deciframos o resto da mensagem.
Por via de dúvidas, examinaram com cuidado a esferográ-
fica, podia esconder um microdetonador de explosivos. Mais
adiante, no papel, havia transcrito um verso:

O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

– Esse tal de poeta deve ser o cabeça do bando. Vamos levar


o homem para interrogatório.
Não adiantou dizer que aquilo eram ideias para um texto,
foi algemado e conduzido para a delegacia. Ali, cercado de
policiais, debaixo de uma luz forte, confessou o nome do tal
poeta: Fernando Pessoa.
– Agora espirra o endereço desse cafajeste!
– Não sei. Só conheço suas poesias. Ele morava em Portu-
gal.
– Portugal, hein? O caso está se complicando. Mandem
mensagem ao FBI que acabamos de descobrir um complô in-
ternacional.

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Os Fantasmas do Casarão

O casarão foi construído pelo bisavô norueguês, no


século 19. Paredes de pedra, cal e óleo de baleia, com mais de
meio metro de espessura, provavelmente erigidas com mão de
obra escrava. Ferro da sacada importado da Alemanha.
Era um tempo de pioneirismo, de açambarcar os melhores
locais para construir enormes prédios no estilo europeu. Teto
alto, grandes salões próprios para valsar ao som de pianos.
De tão grande, a parte térrea do prédio foi comércio, abas-
tecendo de mercadorias os bravos colonizadores de Joinville.
A parte superior acomodava várias famílias. Após a morte do
patriarca, foi “fatiado” em três partes, onde ficaram habitando
os descendentes.
Hoje, cerca de 140 anos pesam na estrutura. As paredes di-
visórias resistem ainda valentemente aos ataques dos cupins.
O que resta na casa? As lembranças, como fantasmas do
passado: a infância, a juventude, as brincadeiras de caubói em
dias de chuva, laçando os encostos de cadeiras. A estante de
mogno do avô, com antigos livros enfileirados. A sala de visi-
tas, com as cortinas cerradas e o tapete quase persa. As gretas
nas tábuas do assoalho, onde se catavam centenas de alfine-

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tes ali abandonados. O matraquear da máquina Singer na sala
frontal. O velho rádio Philips sintonizado na Rádio Nacional,
de onde vinham encher as tardes as vozes consagradas dos
astros e estrelas da música.
Mas não só esses fantasmas habitam o casarão. O fantasma
do bisavô não quer abandonar o local. O prédio construído
com suor e sangue dos escravos lhe pertence para todo o sem-
pre. Como seu colega, o fantasma de Canterville, não vê com
bons olhos (se é que fantasma possui olhos) os que ainda tei-
mam ali ficar.
E não é somente ele que vagueia pelos corredores e quartos,
exortando os mortais a sumirem de seus domínios. Dizem que
no século 17 o local foi ancoradouro de piratas, um dos quais
deixou enterrado seu tesouro entre as pedras que mais tarde
foram detonadas para se erguer o casarão.
O capitão deixou um de seus comandados encarregado de
proteger seu tesouro. Os anos se passaram e o dedicado pira-
ta continuou – mesmo sem saber que sua forma terrena não
mais existia – a cumprir a missão que lhe foi confiada. Nin-
guém o informou de que seu corpo voltou ao pó. Dali só se
retira com ordem expressa de seu chefe.
O tesouro, se existia, ficou soterrado debaixo dos alicerces.
Quem se habilitará a procurá-lo, enfrentando a ira do velho e
a ferocidade do pirata?

60
Papagaio de Anedota

O entrevistador, severo, gritou na direção da


porta: o próximo! E surgiu o candidato, meio desajeitado,
mas com um jeitão malandro, um risinho debochado.
– Nome, por favor.
– Clodoaldo, mais conhecido por Louro.
– Diabos, todos aqui se chamam Louro. Falta de criativida-
de! Qual é a vaga que pretende?
– Papagaio de anedota, sim senhor.
– Olha, você sabe a responsabilidade do cargo. Anedota de
papagaio não pode ser ingênua como a de louco ou de portu-
guês. Mas também não pode ter excessos. Virou pornografia,
vai pra rua. Vamos ver suas credenciais. É homossexual?
Clodoaldo ia dizer: só quando era menino. Mas calou-se,
bateu na boca, muita sinceridade ia pegar mal. Botou banca e
exclamou: qué isso, meu? Tá me estranhando?
– Tá certo – assentiu o homem. Mas papagaio de anedota
tem de ser versátil, às vezes pinta um galo mal intencionado,
te pega com a boca na botija, sabe como é, galo detesta ser
passado pra trás. Outra coisa importante: tem alguma doença
venérea?

61
– Tive crista de galo. As franguinhas adoravam.
– Possui boa audição? Papagaio...
– Já sei, já sei, papagaio de anedota tem obrigação de escu-
tar e repetir toda safadeza falada ou pensada perto dele.
Clodoaldo sentia que estava se saindo bem. Precisava do
emprego, vinha fugido de outro estado, onde, no carnaval,
confundira uma socialite fantasiada de Ave do Paraíso com
uma penosa que vinha paquerando. O marido da fulana era
proprietário de um frigorífico. Olha o perigo de ter virado
matéria prima.
Clodoaldo era ainda solteiro, devido ao sucesso com as pe-
nosas de todo tipo. Eta vida boa! Pra que casar? Lembrou da
patinha gordota e da ema anoréxica.
O entrevistador voltou à carga:
– Tem alguém a quem avisar, no caso de acidentes em ser-
viço? Algo como pescoço torcido, penas arrancadas...
– Uma velhinha de Curitiba, que me criou desde pequeno.
Foi com quem aprendi os palavrões mais cabeludos, princi-
palmente quando escondia sua dentadura dentro do bacio.
Grande! Essa tinha sido na caçapa. Sacanear a velhinha, isso
ia repercutir bem pra caramba! O emprego estava no papo.
O entrevistador fez cara de sério, fingiu que estava pensan-
do, mas era o único candidato até o momento. E tinha jeito de
sem-vergonha.
– Está aprovado – disse finalmente o homem. Pode ir. Com-
pareça segunda-feira na casa das duas solteironas, local de sua
estreia.

62
Pequenas Batalhas

Numa noite, em uma dessas festas com lindas garo-


tas e camisetas customizadas, o odontólogo Rufião de
Almeida foi destratado pelo empresário Félix Lambarini. Na
hora, ficou sem saber o que dizer. O odontólogo era daqueles
de reação retardada. Na cama ficou matutando: que panaca eu
fui. Devia ter-lhe respondido à altura. Mas não vai ficar assim,
esse sujeitinho vai ter de pedir desculpas.
Acordou ainda indignado. Na clínica, sua indignação foi
interrompida pela secretária, que anunciou a primeira pacien-
te. A vontade era pedir satisfações ao desafeto. Mas, diabos, a
agenda estava lotada. Chamou a secretária:
– Ligue para este número. Peça para falar com o senhor Fé-
lix e diga, de minha parte, que ele é um grande capadócio.
– Mas ele não vai ficar furioso?
– É pra ficar! Diga que fui eu quem falou.
Atendeu a secretária do empresário:
– O senhor Félix? Ele está numa reunião. Pode estar trans-
mitindo o recado?
Era um negócio chato, coisa particular, mas não podia ficar
ali o dia todo. Então falou:
– O doutor Rufião pediu pra dizer que o senhor Félix é um

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capa...hum...capadoque.
Quando foi levar alguns papéis para o chefe assinar, a se-
cretária disse-lhe que um tal doutor Rufião o chamara de ca-
pisboque (devia ser isso!).
– Capisboque é a mãe dele! Vou dizer-lhe isto na cara, não
por telefone.
Olhando a quantidade de papéis em sua mesa, o empresá-
rio considerou: é, de momento está difícil! Não consigo nem
me achar nesta papelada.
– Faça um favor: ligue para aquele sacripanta e repita o que
falei – copidesque é a mãe dele!
A moça achou isso meio chato, mas preferiu não arriscar
seu emprego:
– Alô! Consultório do doutor Rufião? É a secretária do se-
nhor Félix. O doutor Rufião está atendendo? Tá bom, vou lar-
gar esta batata quente agora mesmo. Diz pra ele, de parte do
senhor Félix, que cachimbeque é a mãe!
– A mãe de quem? – foi a resposta.
– A mãe do doutor! Qual é? Pensou que fosse a sua? – re-
trucou a outra, furiosa.
– Minha mãe já é falecida. E nunca foi cachimbeque, ouviu
sirigaita? Cachimbeque é você, que deve andar de conchavo
com esse seu chefe.
– Pode parar! Não sou de ficar mandando recadinhos por
telefone, não! Comigo é mais embaixo. Se tiver coragem repe-
te que sou pechimbeque.
À tardinha, depois do expediente, as duas se encontraram
diante da pracinha. O que saiu de tapa e puxão de cabelos,
nem lhe conto...

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Quem Era o Ganimedes?

Alguém me deu um recado por telefone: quero avisar


que seu amigo de infância Ganimedes faleceu hoje. Ganime-
des... Ganimedes... passei a limpo a memória, mas não pude
me lembrar de alguém com esse nome. Não seria o Arquime-
des? Ou o Ganeílson da dona Edmunda? Por via das dúvidas,
adotei uma expressão de tristeza, não ficava bem decepcionar
o portador do recado.
– Logo o Ganimedes - falei desolado. Tanta gente neste
mundo que podia morrer, tanto filho da mãe que não faz falta,
e logo o Ganimedes...
Só havia um jeito de resolver a dúvida sobre o defunto. Era
verificar com a tia Lina, uma octogenária sobrevivente daque-
les tempos, que nos conhecia a todos na juventude. Suas vi-
draças viviam com a marca de nossas peladas e nossas pelota-
das. Tinha uma memória de elefante. Certamente ela saberia
quem era o cujo.
E fui, consternado, dar a notícia à tia Lina. No caminho,
ia ainda martelando a memória: Ganimedes... será que estava
ficando com amnésia? Como não conseguia me lembrar dele,
um amigo de infância, segundo o informante?

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Fui entrando porta adentro com a liberdade de um falso
sobrinho. Sem jeito, parei na frente da velha, que bordava um
diminuto casaco em sua poltrona preferida:
– Tia, tenho uma notícia ruim...
A velha se empertigou na poltrona, o olhar surpreso. Apro-
veitei para entrar de macio:
– O Ganimedes, tia. Deus levou.
Tia Lina parece que diminuiu de tamanho dentro da pol-
trona:
– O Ga... Ganimedes?
– Sim, tia – e abracei-a consolando sua enorme dor. A vida
é assim mesmo, tia. Vai chegar também a nossa vez (e claro
que ela iria primeiro).
A velha emergiu quase sufocada do abraço solidário que eu
lhe aplicara e perguntou-me:
– Mas quem é o Ganimedes?
Tia Lina conhecia o Ganimedes tanto quanto eu. Aí me
veio uma ideia para tirar a limpo o assunto. Disquei para o Zé
Eduardo, amigão de infância, lá no Rio de Janeiro.
–Ei, Zé, você lembra quem era o Ganimedes?
– Ganimedes... deixa eu ver...ah, era o nome do Gaveta.
Estudamos na mesma turma no primário. A Irmã Ismália cos-
tumava dizer, com sua voz autoritária: Seu Ganimedes, já de
castigo!
Por pouco não perdi o último adeus ao amigo. Mas, tam-
bém, por que não disseram logo que o diabo do Ganimedes
era o Gaveta?

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Razões Para Mudar de Endereço

Você recebe proposta para um emprego em outra ci-


dade. A cidade é boa, tamanho médio, bem organizada. Para
convencer a família a se mudar, você passa a relacionar os
benefícios da troca de endereço: a maioria dos parentes está
morando lá, tenho meus irmãos, primos e tios. Vamos poder
conviver mais com a parentada.
Engano. Você só vai ver mesmo os parentes nos aniversá-
rios (quando for convidado) ou no enterro daquela tia octo-
genária.
Já estou de olho numa casinha perto do centro. Rua boa,
perto de uma confeitaria e de uma choperia. À tarde, podemos
tomar um bom café com doces. E (somente em pensamento)
algumas vezes poderei saborear meu chopinho com aperiti-
vos. Engano. A confeitaria é cara pra burro, melhor tomar o
café em casa. Você vai à choperia e vê que só é frequentada por
jovens, senta-se à mesa sozinho, pede um chope que demora
uma eternidade para ser servido, enquanto fica escutando a
zoeira ao seu redor.
Ali perto tem um cinema moderno, podemos acompanhar
todos os lançamentos de Holywood. Engano. Você vai umas

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duas ou três vezes, depois fica com preguiça de sair de casa;
também é difícil encontrar vaga para estacionar o carro. Para
complicar, a maioria dos filmes lançados parece feita especial-
mente para crianças e adultos imbecilizados. Resultado: você
prefere pegar as “novidades” numa locadora.
Há uma academia a poucos metros de casa. Vou poder
entrar em forma, fazer natação. Vocês vão ver, vou virar um
gurizão. Engano. Você só vai poder frequentar a academia à
noite, no horário do jornal nacional e dos jogos do campeona-
to. Depois, esse troço de ir lá, colocar calção de banho, entrar
debaixo do chuveiro, dar umas nadadas, entrar de novo debai-
xo do chuveiro, trocar de roupa, etc., etc. é muito incômodo.
Esqueça.
Bom, ali perto há uma escola de segundo grau, dizem que a
melhor da cidade. Professores todos com mestrado. O garoto
vai ter um bom estudo, ficar preparado para o vestibular da-
qui a dois anos. É cara, mas vale a pena.
Engano novamente. O garoto não consegue acompanhar o
ritmo de estudo, os trabalhos diários, as provas semanais. A
disciplina é rigorosa. Levou advertência por conversar com
o colega a seu lado. Antes que seu filho se torne abichornado
(calma, leitor, não faça julgamento antes de olhar no dicioná-
rio) e que perca o ano, pelas notas baixas, é melhor “pedir pra
sair”, solicitar transferência para outra escola menos compe-
tente (e muito mais distante).
Não é fácil, não é? Mas se o emprego é bom, faça valer seu
direito de chefe da família e vá em frente.

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Salário Mínimo

Quando anunciaram o novo aumento do salário


mínimo, a parentada reuniu-se na casa do velhinho. A mesa
cheia de salgadinhos, doces, champanhas. Um dos genros
consultou o relógio. Contagem regressiva. É agora! A Presi-
denta fez o esperado anúncio. Foguetes, abraços, promessas.
Inútil mencionar que a festança virou a madrugada.
No dia seguinte, o velhinho acordou de ressaca e já foi
surpreendido por uma comissão angariando fundos para o
MPCO (Movimento de Prevenção dos Conflitos no Oriente).
O valor mínimo das doações era de mil dólares. Em compen-
sação, os doadores estariam concorrendo ao sorteio de uma
batedeira. Mais tarde, um corretor (amigo do genro mais ve-
lho) veio convencê-lo a efetuar um belo seguro de vida. “É
preciso pensar na família. Que será deles se o senhor um dia
bater as botas?” Não é preciso dizer que o dinheirinho do
INSS é que pagava as despesas da casa e as biritas dos genros
desempregados.
Depois foi a vez de um vendedor de enciclopédias. É verda-
de que o velhinho mal sabia ler, trabalhara toda vida de operá-
rio. Mas o que melhor do que uma estante cheia de lombadas
coloridas para impressionar as visitas?

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A coisa não parou por aí, não. Planos de saúde, consórcios
funerários (pague hoje seu caixão e se enterre amanhã com
toda comodidade). Recebeu até telefonemas de belas jovens,
candidatas a modelo, carecendo de um protetor para facilitar-
lhes o início da carreira. Uma delas pedia passagem e estadia
em Milão. Os genros acompanhavam atentos esse vaivém de
interessados em abocanhar o expressivo aumento do salário
do velhinho. Será que sobraria alguma coisa para eles?
Uns parentes distantes telefonaram, a cobrar, de Goiânia,
avisando que viriam passar umas semaninhas em sua casa.
Não precisava muito luxo.
Curiosos em frente à casa perguntavam: o que houve?
– Parece que um sortudo ganhou sozinho o prêmio da me-
gassena acumulada.
Mas o pior foi a sondagem do Imposto de Renda. Exigiam
todas as declarações, a partir de 1990, quebra do sigilo das
contas bancárias (o velhinho nem sabia o que era isso!), lista
de cartões de crédito, participações em empresas de grande
porte, extrato de remessas de dólares para o exterior.
O velhinho passou a ficar trêmulo, sem apetite, os nervos
estourados. Todos queriam explorá-lo, prensá-lo, fazer exi-
gências. Onde estava sua tranquilidade de aposentado? En-
frentando a oposição da família, tomou uma decisão: escreveu
uma carta à Presidenta desistindo do substancial aumento de
seu salário.

70
Sonhos ou Pesadelos?

Isto acontece. Talvez os adeptos de autoajuda, pensa-


mento positivo e crenças exóticas possam explicar melhor
onde houve falha.
O sujeito era um bocado introvertido. Travado, tinha vergo-
nha até de falar com seus botões. A timidez já vinha de longe,
do tempo de criança. Sua primeira e talvez única namorada,
pelo que se sabe, foi um manequim. Não, não uma “maneca”
dessas que desfilam em passarelas e só querem namorar joga-
dor famoso. Um manequim mesmo, desses de expor roupas
em lojas, que sua mãe utilizava para dar o retoque nas costu-
ras que fazia. Mas nem mesmo com o manequim conseguiu
alguma coisa. Ansiedade, sabe como é!
Um dia um amigo, fissurado em livros de autoajuda, resol-
veu dar-lhe uma mãozinha. Começou perguntando:
– Nos seus sonhos, você também é assim travado?
– Completamente. Na hora de fazer alguma coisa, me bor-
ro todo.
– Aí é que está! Conforme pesquisas realizadas (“Acredite
em seus sonhos”, Editora Mefistófeles) nossa personalidade
permanece a mesma nos sonhos. O inconsciente não vê di-

71
ferença entre sonho e vida real. Aí vem o bom: se você con-
seguir se livrar da timidez nos sonhos, ficará livre também na
realidade, entendeu?
O amigo orientou-o a praticar autossugestão a fim de reco-
nhecer quando estivesse apenas sonhando, aí soltar a franga,
fazer o que lhe desse na telha, sem medo de recriminações.
Após algum treino, o sujeito já conseguia fazer isso, a princí-
pio timidamente, depois com toda força. O que aprontava nos
sonhos não era brincadeira! Precisava exercitar-se.
Um dia, num desses sonhos, viu-se no meio de uma sole-
nidade, inauguração não sei de quê. Resolveu bagunçar, soltar
todas as amarras. Na hora em que a autoridade de plantão foi
fazer discurso, subiu numa mesa e gritou: sai daí, corrupto!
Todos cravaram o olho nele, abestalhados. E continuou:
– Isso é obra superfaturada, quanto é que tu levou nisso?
Quando o assessor da autoridade quis abrir a boca para re-
trucar, nem lhe deu tempo: vai pra casa, mané. Vai cuidar da
gordalhufa da tua mulher, aquela marafona (era tímido, mas
tinha um vocabulário!).
O homem ficou roxo, partiu furioso pra cima dele. Foi aí
que nosso amigo se deu conta de que aquilo não era sonho.

72
Tia Lucrecinha

Tia Lucrecinha foi uma daquelas moças de antanho


que tiveram uma educação severa e repressiva. O pai era uma
machista, do tempo em que somente os homens tinham direi-
tos. Não era, na verdade, minha tia, mas sim uma tia universal,
dessas que os de minha idade ou anteriores a mim tiveram.
A tal ponto era pudica que, quando um sobrinho lhe per-
guntou se conhecia pica-pau, teve chilique duas vezes, uma
para cada parte da palavra.
Dizia que nunca iria se casar, pois – Deus me livre! – não
iria dormir com um desconhecido. Na verdade, não possuía
também os apetrechos necessários para atrair um bom ou
mesmo um mau marido. Era pequena, mirradinha, de voz es-
ganiçada. Tinha o rosto comprido que terminava num queixo
arredondado, o que lhe dava à cara a aparência de um amen-
doim.
Vivia à sombra da irmã mais nova, essa sim, bonitinha e
com um corpo roliço de vedete. Como costuma acontecer, era
um poço de frustrações e humilhações.
Quando a irmã se casou, passou a morar sozinha, acomo-
dada, com seus três ou quatro gatos e suas novenas, numa ca-

73
sinha antiga cheirando a mofo, herança de família, com um
quintal nos fundos, onde plantava cebolinha e hortelã.
Mas – não se admire, leitor, o ser humano é imprevisível –
chegando perto dos setenta anos embeiçou-se por um rapaz
de vinte e poucos. Não vou dizer que o rapaz em questão era
um surfista malhadão, alto, de olhos azuis. Era o filho de uma
comadre, que havia vindo do interior, raquítico, desconfio que
com pilha de menos no cérebro.
Chegaram a casar, ela de vestido branco discreto, ele de-
sajeitado no terno emprestado do cunhado (que só o tinha
utilizado uma vez), com direito a mãos dadas e beijo no canti-
nho da boca. Não sei se alguém se lembra, o estranho casal foi
objeto de uma reportagem no Fantástico.
O cunhado não era nenhum latifundiário, mas dizia com
toda “propriedade”: isso não vai dar certo!
Não foi um casamento por interesse, o rapaz era tão pobre
quanto ela. Ele lhe obedecia em tudo, cegamente, e tia Lucre-
cinha não ficava chateada com essa situação. Ia fazer compras,
regava as plantas, enchia a caixa d’água, de bomba manual,
varria a casa. E ela, refestelada numa poltrona, dizia: filhinho,
estou com sede, e lá corria ele a preparar um copo de limona-
da. Filhinho, amanheci ruim da coluna, e lá vinha ele massa-
gear-lhe as costas.
Um dia, Juclenildo (esse era o nome do infeliz) tentou se
suicidar, tomando um copo de suco com formicida. Desco-
briu que tia Lucrecinha o estava traindo com outro homem.
Quem pode explicar isso?

74
Um Fantasma Discreto

No hotel onde morei, no inicio de minha vida profis-


sional, havia uma portinha lateral que ficava aberta durante a
noite para os retardatários. Ao seu lado, uma barulhenta esca-
da de madeira.
Uma madrugada, quando entrava no hotel, um vendedor
ambulante ouviu um rangido na velha escada: créc... créc...
Quem será, a essas horas? Foi quando viu um vulto branco,
subindo lentamente a escadaria. O vendedor, que era cardía-
co, teve logo um troço, esparramou-se no chão.
Dizem que um romance policial começa sempre pelo final,
primeiro acontece o crime, depois é que descobrimos como
aconteceu. Para esclarecer o que houve naquela noite, preciso
me reportar ao Mineiro.
Era um indivíduo já maduro, baixinho e gordote, com um
bigodinho fino, estilo década de 50. Caladão e discreto como
todo bom mineiro. Quando se descobriu que aquela bela hós-
pede do hotel era meio leviana, o Mineiro já havia há tempo...
bom... sem comentários. Afirmavam que tinha uma noiva em
Minas, o Mineiro não dizia que sim, nem que não. Preferia o
benefício da dúvida: a cidade era cheia de moças bonitas.

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Um dia, recebeu convite para uma festa à fantasia, uma es-
pécie de Halloween, organizada pelas jovens da cidade. Recu-
sou. Mas à noitinha, diante da solidão do sábado, teve vonta-
de de ir, só não tinha fantasia. Pegou um lençol do hotel, fez
dois furos para os olhos e estava pronta a fantasia de fantasma.
Nem chegariam a saber que esteve na tal festa.
Divertiu-se naquela noite. Passou a mão boba nas moças,
participou de passeata de mascarados. Pela madrugada, re-
solveu ir embora. Não sei se pelos cubas que tomara ou para
manter-se incógnito, foi fantasiado para o hotel. As ruas esta-
vam desertas. Quando subia a escada - discretamente, é claro
– , ouviu um barulho – ploft! – e viu um careca estatelado no
chão.
Foi ao quarto, despiu a fantasia e voltou também discre-
tamente ao local do sinistro. O hóspede se levantava ainda
branco como... (como um lençol? Não! Por favor, esqueçam
essa história de lençol). O hotel quase criou fama de mal-as-
sombrado. O Mineiro, dali a meses, voltou para sua terra a fim
de casar. O danado era mesmo noivo.

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Venga Toro!

Quando a cidade de S.Chico festejou seus 500 anos,


esqueceu de prestar homenagem ao antigo colégio “Stela Ma-
tutina”, administrado pelas irmãs da Divina Providência. A
partir do ano de 1918 até seu fechamento na década de 70, o
colégio formou muita gente boa (e até não tanto, como este
que vos escreve). Pelo menos uma homenagem iria compen-
sar o que as pobres freiras sofreram com alguns “maus ele-
mentos”. Como no fato abaixo.
Naquele tempo, era comum a permanência na cidade dos
circos especializados em touradas. O pessoal ia em peso ver o
sofrimento do pobre touro que – por ser o maior patrimônio
do circo – sempre sobrevivia para a próxima sessão. Influen-
ciados pelo espetáculo, alguns alunos resolveram também
praticar a tauromaquia (um dicionário, rápido!).
No topo do morro do colégio havia um pasto com uma ou
duas vaquinhas, de onde certamente as irmãs tiravam seu leite
diário. Quando os moleques subiam o morro escondidos para
jogar futebol, era preciso espantar as vacas. Em algumas oca-
siões, quando faltava goleiro, até as aproveitavam no gol.
Aí, leitor, você já adivinhou o que passou pela cabeça dos

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malvados: na falta de touro, uma das vacas podia servir.
Tudo pronto, os toureiros se acercaram da vaca, sacudindo
um pano vermelho:
– Venga toro! Venga toro!
Mas o “toro” não se mexia. Olhava placidamente para to-
dos, abancado em seu lugar como um marajá. Os moleques
se aproximavam. Sacudiam freneticamente o pano. Um deles
chegou por trás da vaquinha, que naquele momento resolveu
aliviar-se – ploft! – largando uma espécie de barro nos pés do
atrevido.
Foi aí que os outros avançaram e se grudaram nos chifres
do animal, como fazem os caubóis, forçando sua cabeça para
baixo. A vaca mugiu, desesperada, e se arriou no chão, de
onde não mais conseguia se erguer. A coitada estava grávida;
naquele dia teve um aborto, perdeu o filhote e acabou mor-
rendo.
Como dizia um colunista social, em sociedade tudo se sabe;
em cidade pequena, também: no dia seguinte, estava nas mãos
do delegado uma lista com todos os participantes da trágica
tourada. Como a vaca era pobre, o caso rendeu quando muito
uns puxões de orelha.

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Viagem a Valões

Esses dias, viajando pela internet, deparei-me com o


site de uma cidadezinha próxima a Rio Negro e Mafra: Irineó-
polis. E me veio à lembrança uma temporada que lá passei, no
tempo de garoto, quando a cidade ainda se chamava Valões.
Minha mãe sofria de uma doença alérgica e constava que na-
quela cidade havia uma estação de cura, com abundância de
água sulfurosa.
Foi a viagem mais longa que fiz na vida. Pegamos o trem aí
pelas 6 horas da manhã – eu, a mãe e meu irmão – e viajamos
o dia inteirinho no assento desconfortável do trem, chegando
ao nosso destino somente à noitinha. Eu não sabia mais se fi-
cava em pé ou sentado, de qualquer jeito me doíam as pernas
e as nádegas.
A chegada foi péssima. Não havia luz elétrica e ninguém
para nos receber e orientar. A custo encontramos uma boa
alma, que nos conduziu ao hotel, que era bem simples, uma
espécie de hotel-fazenda.
De manhã, minha impressão sobre o local havia mudado.
Era um lugar bucólico, cercado de mato, com um riozinho
atravessando a estrada que conduzia ao centro. As refeições

79
eram efetuadas num salão separado do hotel. A “casinha” fica-
va também fora e uma enorme quantidade de moscas voejava
ao seu redor. Minha mãe, então, perguntou ao hoteleiro:
– Pelo menos, tem uma hora melhor para ir ao banheiro
sem essas moscas incomodarem?
O homem coçou o queixo e falou: olha dona, é perferivel a
senhora fazer as necessidades na horinha do armoço.
– Ótimo! E posso saber por quê?
– Porque nessa hora as moscas vão tudo pra cozinha!
Devia ser brincadeira dele, as moscas não incomodavam
tanto. E a comida era ótima, caseira, mas bem variada, tinha
até pastéis, que eu adorava.
Ali perto havia uma gangue de garotos que começaram a
nos estranhar. Um dia, resolveram nos atirar tomates. Sem va-
cilar, juntamos alguns dos tomates e devolvemos a “gentileza”
deles (claro, esse alimento não devia estar com o preço atual).
No outro dia, tivemos uma surpresa: os garotos vieram nos
convidar para uma “pelada”. Fizemos então amizade com os
da gangue, era tudo gente boa. Quem sabe, eles é que estives-
sem receosos de nós, meninos da cidade.
Passamos um mês em Valões, jogando bola, trocando gibis
e caçando passarinhos de setra, tudo o que um garoto quer,
porém minha mãe, coitada, não conseguiu se curar da aler-
gia.

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Vida de Cão

Se a onça soubesse como é boa a vida de cachorro,


viraria animal doméstico. Os cães são tratados melhor do que
muitos filhos: são penteados, bem alimentados, tomam banho
de água morna, não precisam ir à escola, dormem quando
bem lhes entender e ainda recebem carinho de beldades das
quais você, amigo, nem pensa em chegar perto. É a vida que
muito marmanjo pediu a Deus.
Poucas vezes se dão mal, como na história da Pâmela (e
será que se deu mal mesmo?).
Pâmela era uma cadelinha poodle branca. Seu Raimundo,
nordestino com seis filhos, era o encarregado do bem-estar
do animal. O bem-estar de Pâmela era mais prioritário do
que atendimento de grávida em fila de banco. Banhos de sais
aromáticos; água, somente Perrier fervida. Só dormia ouvin-
do música clássica. Seu cocô já saia perfumado com essência
francesa. Seu canil era maior do que o barraco em que vivia
seu Raimundo com os filhos.
Seu Raimundo, às vezes, abocanhava um naco do filé mig-
non que fazia parte da dieta de Pâmela. O valor gasto num
dia de alimentação da cadela era maior do que seu ordenado

81
mensal, incluído o vale-transporte.
O cuidado com Pâmela agora era maior, pois se achava no
cio. Estava sendo guardada para cruzamento com o magnífico
Closeau de Armagnac (lê-se clozô de armanhaque), perten-
cente ao embaixador francês. Dona Eulália, viúva riquíssima,
sonhava com a descendência nobre de Pâmela.
Certo dia, seu Raimundo faltou ao serviço, o filho menor
amanheceu com dor no peito, febre de lascar. Teve que en-
frentar fila no hospital do INSS. Nesse dia, a pobre Pâmela
ficou sem banho de sais. Por tal displicência e falta de respon-
sabilidade, seu Raimundo foi despedido por justa causa. De
temperamento calmo, não reclamou. Pediu para se despedir
da cadelinha. Aproveitando um descuido do segurança, saiu
levando Pâmela no colo.
Fora do portão, um bando de vira-latas latia alvoroçado,
atraído pelo odor da cadela no cio – que nem as essências
francesas disfarçavam. Eram cães de vários tipos, um bagua-
lão malhado, um baixotinho amarelo, que estraçalhava sacos
de lixo, um pretinho serelepe e um guapequinha cheio de pe-
reba.
Foi com imensa pena que seu Raimundo largou a cadelinha
ingênua e indefesa no meio daqueles cães desprovidos de des-
cendência nobre, simples gentalha. O resto, nem lhes conto...

82
Admirador secreto

Meu avô paterno, que não cheguei a conhecer, havia


deixado muitos livros, edições da antiga Livraria Garnier, ar-
rumados numa estante de mogno com portas de vidro, que até
hoje tenho comigo. Havia ali os autores clássicos, aqueles que
todos elogiam, dizem que são importantes, mas ninguém lê.
Havia também inúmeras revistas da época e antologias com
textos de hoje esquecidos beletristas. Você pode não acreditar,
mas uma de minhas primeiras leituras foi o texto do discurso
de Rui Barbosa ao pé do túmulo de Machado de Assis (“ao pé”
– significando “ao lado” – era, aliás, uma das expressões prefe-
ridas do Machadão). O que fazer? Era o que tinha disponível.
Adolescente, influenciado pelas leituras dos versos român-
ticos de Gonçalves Dias e pelo preciosismo de Coelho Neto e
Rui Barbosa, produzi alguns textos falando das “marmóreas
lajes de sua eterna campa” e outras babaquices. Enviei uma
dessas obras-primas, sob pseudônimo, a uma das rádios de
Joinville, que apresentava um programa musical, à tarde, em
que eram lidos textos de ouvintes e poesias do J.G. de Araú-
jo Jorge, pelas quais as moças se babavam (alguém se lembra
disso?).

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Um dia – nem acreditei – o locutor do programa anunciou:
agora vamos ler um belo texto enviado por nosso ouvinte de
São Francisco do Sul, de pseudônimo... (não me lembro qual
foi o pseudônimo que escolhi). Colocou uma suave música
de fundo. Eu estava em meu quarto, ao lado da sala do rádio,
na qual se encontravam minha mãe e a tia, que se dedicavam
a costurar. Droga! Logo agora! Não queria que elas descon-
fiassem que era eu o citado “nosso ouvinte de São Francisco”.
Que vexame! Colei os ouvidos na parede, mas com a conversa
delas e o barulho de duas máquinas Singer, não pude saborear
esse momento de glória.
Para não desperdiçar os textos que elaborava e ao mesmo
tempo me divertir um pouco, inventava cartas românticas, na
mesma linguagem gongórica, esdrúxula, e as enviava anoni-
mamente a algumas moças da cidade. Se uma delas passava
por mim naquele dia, fosse bonita ou um verdadeiro trubufu,
eu dizia comigo: é esta mesmo! Nada de preconceito. Para as
bonitas, era uma homenagem; para as feias, um ato de carida-
de...
Ficava imaginando o que pensariam ao recebê-las. Acho
que algumas teriam até dificuldade em decifrar aquela lingua-
gem estapafúrdia, com períodos intermináveis, pela qual me
penitencio até hoje; podiam muito bem achar que as estava
ofendendo.
Mesmo assim, nunca souberam quem era seu tímido “ad-
mirador secreto”. Mas deviam sentir-se poderosas.

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Bom para a Tosse

Tosse não é uma coisa ruim, tem muitas utilidades.


Isso é, tirando os casos dramáticos, quando essa expulsão re-
pentina de ar pela boca insiste manifestar-se em situações in-
convenientes, como numa audição de música erudita ou num
“minuto de silêncio”.
Veja agora as vantagens. Você chega ao dentista, a porta
do consultório está fechada. Será de bom-tom bater palmas,
bater á porta? Nada disso! Dê apenas uma discreta tossida.
Aguarde um pouco. Se não surtir efeito, tussa mais forte. Sem
ser inconveniente, você acabará sendo atendido.
Outra: você se encontra em um local público, rodeado
de pessoas. Acabou de almoçar faz pouco tempo, excelente
aquele charutinho de repolho. De repente, os gases do repo-
lho começam a passear no interior de seu ventre. Vem aquela
vontade urgente de.... digamos, aliviar o incômodo. Que situ-
ação, não é mesmo? O que você faz? Conte até três, e dê uma
tossida forte. Pronto, matou dois coelhos de uma só paulada.
E ninguém percebeu.
Outra situação: você atende ao telefone; do outro lado está
aquele credor insistente que conseguiu achá-lo em casa. Não

85
é mais possível disfarçar a voz e dizer que é o seu filho. Só há
um remédio, simule um ataque de tosse. Entre duas tossidas,
peça desculpas ao credor, sugira que telefone mais tarde. Cui-
de dessa tosse – dirá ele, fingindo-se preocupado.
Tenho uma tossezinha irritante há anos. A tosse era uma
companhia, quase um ente querido. Apesar disso, resolvi dar
um jeito nela. Procurei um especialista na capital. Me deram,
então, um questionário para responder. O questionário devas-
sava a vida de minha pobre tosse, queria saber tudo, até quem
tinha sido a bisavó da tosse.
Depois, umas moças me fizeram todo tipo de exame, só
faltou aquele que muitos machistas juram que nunca irão fa-
zer. Sabe, aquele do dedão. Recebi a receita e uma conta meio
salgada, não vi nem sombra do tal especialista. Não me con-
formei. “Trouxe minha tosse de longe, e o médico nem viu a
cara dela. Exijo que pelo menos me ouça tossir.”
– Pra quê? – responderam as moças. Sua tosse é igual a
muitas outras.
– A minha não! A minha é de estimação, tem personalida-
de própria.
Não adiantou. O médico detestava tosse, dava o diagnósti-
co pelo questionário.
Joguei a receita no lixo. Que fossem fazer questionário da
tosse da mãe. E continuei com a minha, talvez pelo resto da
vida.

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Carta Pedindo Emprego

Foi no tempo do Ginásio. O professor Utópicus (em casa,


Totó) lançou o tema: redigir carta a uma firma, solicitando
emprego. Para me livrar da tarefa, peguei a caneta e tracei es-
tas depois lamentadas palavras:

“Sr. Diretor, sabedor de uma vaga em sua empresa,


venho candidatar-me ao seu preenchimento”.

Me pareceu que nada mais havia a dizer. Estava livre para


ir brincar com os amigos. Mas minha carta ocasionou-me um
zero vírgula cinco e uma tremenda humilhação.
– Vejam só! - bramia o professor – peço para elaborar um
trabalho de português e o desatinado me vem com meia dúzia
de bobagens!
Depois, para que eu aprendesse o que era uma carta solici-
tando emprego, leu o trabalho do Astolfo, o primeiro da clas-
se, um garoto de óculos, todo arrumadinho, e me fez copiar
três vezes aquele belo exemplo de texto.
Anos depois, vejam como é a vida, a fim de pleitear serviço
numa empresa, precisei redigir justamente o quê?

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Vocês já devem saber. Revirei meus velhos cadernos e con-
segui achar o famoso texto Agora eu entendia como eram
úteis os bons exemplos. Como era mesmo aquela frase em la-
tim que o professor Utópicus usava para ilustrar esta situação?
“Mens sana...” não, não era essa.
Separei algumas folhas de papel e iniciei deste modo (coi-
tados dos outros candidatos!): “Ó, vós, que tendes em mão
esta pobre missiva!” Chumbo grosso! E isso foi só o começo.
Depois, o texto foi tomando corpo, mais profundo, abordan-
do importantes questões filosóficas da antiguidade clássica e
do Renascimento, questionando teorias genéticas e antropo-
lógicas. Isto sem falar na abundante reminiscência histórica
e na citação de famosos autores de nossa literatura. Por fim, o
golpe final, a transcrição de um longo trecho da Bíblia.
Foram dez páginas datilografadas na velha Remington de
meu pai. Somente uma coisinha acrescentei ao substancial
texto do Astolfo: sem mais para o momento, atenciosamente.
Quem sabe essa minha intromissão tenha aborrecido o di-
retor, pois não fui admitido no emprego. Sabem quem conse-
guiu a vaga? O Dico Fumeta, o último aluno de nossa classe.
O professor Utópicus ia morrer de desilusão!

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Central de Reclamações

Boa tarde! Aqui é a Central de Reclamações. Mande


seu abacaxi que nós descascamos. Mande seu pepino que nós
despepinamos. Em último caso enviamos sua queixa para a
respectiva empresa.
Pois não. Queixa contra veneno para ratos? O senhor tem
experimentado o veneno em sua sogra e depois de uma se-
mana não viu nenhum resultado? Nem uma dorzinha de
barriga? Talvez seja a dose. Tente aumentar a dose. Desculpe
perguntar: por que não experimenta o veneno nos ratos? Ah,
são muitos ratos e o senhor não vai saber se morreu algum
ou se são sempre os mesmos? Então temos uma sugestão. Pe-
gue dois ou três ratos e coloque uma fitinha vermelha em seus
pescoços. Se eles não aparecerem mais, é que o veneno está
surtindo efeito.
Mais alguma dúvida? A Central de Reclamações agradece.
Central de Reclamações, boa tarde! Reclamação contra a
fábrica de pães? Pois não. A fatia de pão cai no chão sempre
com o lado da manteiga para baixo? Ora, senhor, isso é um
fenômeno científico, acontece com qualquer marca do pro-
duto. O senhor queria o quê? Ah, sim, que a fatia caísse com

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o lado da manteiga para cima. É fácil: coloque manteiga nos
dois lados, assim um lado sempre cairá com a manteiga para
cima. Algo mais?
Boa tarde, senhor! Qual sua queixa? Comprou um papa-
gaio e o danado passa o dia todo só recitando orações? O se-
nhor já experimentou dar-lhe um beliscão no pescoço? E o
que ele falou? Valha-me Deus? Então o caso é grave. Deve ser
aquele que foi criado num convento. Vamos lhe mandar em-
prestado um outro bichinho que foi criado numa barbearia.
Deixe junto do seu e garanto que depois de um mês ele estará
discutindo futebol, falando de mulheres e fofocando sobre a
vizinhança.
Sim, minha senhora, é aqui mesmo. Traga o seu pepino que
nós despepinamos. Qual é a queixa? É contra a indústria far-
macêutica. Sei, a senhora sofre há vinte anos de dor de cabeça,
desde que seu marido a deixou. (Depois de quase uma hora):
a senhora já me contou toda a sua vida e os seus sofrimentos,
peço que me diga qual a sua queixa. Comprou um remédio
para sua dor de cabeça. O remédio está surtindo efeito, mas
o quê? Está lhe fazendo crescer pelo no rosto. Só agora o pelo
já cresceu uns vinte centímetros; parece mais a mulher barba-
da do circo. A senhora verificou na bula os efeitos colaterais?
Será que não adquiriu por engano um tônico capilar? Olha, se
o remédio está tendo efeito é bom não descartar. Vamos pro-
videnciar para a empresa lhe mandar uma navalha. A Central
de Reclamações agradece. Boa noite!

90
Como acreditar
nos contos de fadas?

Os contos de fadas em sua origem – a bem dizer, em


sua fase oral – não eram muito aconselháveis para
crianças. Eram narrativas populares ridicularizando a no-
breza opressora. Um tipo de vingança no plano do imaginá-
rio. Quando Perrault – que era chegado à nobreza – recolheu
e publicou essas narrativas, eliminou a parte das sacanagens e
transformou-as em histórias voltadas ao público infantil.
Hoje, as crianças são um pouco diferentes daquela época e
torna-se complicada a tentativa de narrar-lhes contos de fa-
das: era uma vez uma galinha (aí, tem de explicar que galinha
é a mãe do frango, aquele negócio que dizem colocar nos cro-
quetes e pastéis) que botava ovos de ouro. E por que já não
botava dólar? – pergunta o pequeno. É mais fácil comentar
que o dólar na época estava em baixa no mercado.
Dá de entender que Ali Babá foi um ladrão que se deu bem
(isso é normal), mas como era o mocinho da história se não
era do lado dos americanos? Bem, digamos que era um ame-
ricano que fazia o papel de muçulmano. E o Obama não man-
dou prender ele como suspeito de terrorismo?

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E o patinho feio? Delimite o grau de feiura – dirá o jovem.
Mais feio do que o ET (antigo participante do programa do
Sílvio Santos), do que o Shrek? Não, na realidade o patinho
nem era feio. Ele assim se achava, de acordo com os parâme-
tros de seu meio. Questão de baixa auto-estima, entende? E
ele não procurou um psicoterapeuta?
Difícil também é explicar por que a Bela Adormecida en-
trou em estado de coma por tanto tempo. Seria choque ana-
filático? Contaminação hospitalar? Ou overdose de cocaína?
Caso de risinhos disfarçados da criança é contar que a Branca
de Neve vivia inocentemente, numa boa, com sete velhinhos
que nunca viam mulher. Seria falta de Viagra? Ou porque eles
eram pobres (apesar de explorarem uma mina de diamantes)?
Queria ver se fossem cantores de pagode ou jogadores de fute-
bol. Ou até mesmo, pela idade deles, participantes dos Rolling
Stones.
E como explicar por que Chapeuzinho Vermelho não pro-
cessava o lobo por assédio sexual? Ia ganhar uma nota. E será
que o lobo tinha mesmo tudo grande? Vovozinha, pra que esta
barraca tããão grande? É, amigos, é mais fácil mandar as crian-
ças ligarem a TV e assistirem às reprises do Harry Potter.

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Crítico de sucesso

Esses dias, caminhando pela cidade, encontrei – sabem


quem? – o Xexéu.
Xexéu foi meu colega de escola nos tempos de juventude.
Cá entre nós, não era bom de estudo, foi sempre o último da
turma.
Estava residindo na Espanha.
– E o que fazes por lá? – perguntei.
– Sou crítico literário. E de sucesso.
Não acredito, o Xexéu, que só tinha lido gibi na vida, dizia
agora que era crítico literário. Crítico literário é aquele que
mostra o caminho, mas não sabe dirigir.
Foi para o exterior em busca de oportunidades, uma mão
na frente e outra atrás. Fosse uma bela garota, bastaria tirar as
mãos desses locais para fazer sucesso. Penou um pouco, até
que conheceu a viúva de um famoso crítico. Ai funcionou o
velho charme do Xexéu, a viúva ficou encantada.
Aprendeu um pouco de castelhano, mas continuava no
“desvio”, vivendo às custas da mulher. Um dia encontrou na
casa o arquivo com os textos do falecido. Crítico famoso, es-
crevia em jornais e revistas. Sem nada para fazer, Xexéu pas-

93
sou a ler os textos, cada palavra difícil. Precisaria de outro crí-
tico para “traduzir“.
A ideia foi da mulher: por que ele não escrevia também
para uma revista. Ela conhecia um editor importante (não
disse, lógico, o “quanto” o havia conhecido).
Foi aí que o Xexéu teve a coragem de se tornar crítico líte-
rário. Acho que pelo desespero. Não lia os livros, coisa nenhu-
ma. Se era um volume grosso, iniciava chamando de obra de
extenso fôlego. Depois desfiava frases e expressões tiradas dos
arquivos do finado. Só tinha de ter o cuidado de não ser desfa-
vorável à obra; assim o autor ficava satisfeito, os editores idem,
e os leitores corriam a comprar (na verdade, às vezes, ele mes-
mo não sabia se estava comentando contra ou a favor).
Quando um livro era considerado difícil, os elogios eram
maiores; livro que todo leitor entende não pode ser bom. Ah,
ia me esquecendo: adotou o nome fictício de Juan Checheo de
Corominas. Acho que assenta bem para um crítico literário.
Só uma vez alguém contestou sua crítica, um tal Valdés
Alabastro y Cantinflón, isso lá é nome de gente? Havia escrito
sobre um novo autor: “explora um universo metafísico lique-
feito, comparável à obra do grande Carlos Zéfiro”. Seu oponen-
te não gostou da comparação. Ora – escreveu ele – comparar
um novato com Carlos Zéfiro, um dos expoentes da literatura
na Espanha!
Para quem não sabe, o nosso Carlos Zéfiro foi o autor dos
antigos “catecismos”, revistinhas de sacanagem. Gozação do
Xexéu, coisa de francisquense!

94
Feio, porém bonito

Podia nem ser, mas ele se achava o rapaz mais feio da


cidade. Verdade que a cidade era pequena, por isso a chance
de encontrar outro mais feio era menor. Tímido, só ia a festas
arrastado pelos amigos; mesmo assim, se encolhia num can-
to para passar despercebido. Quando olhavam para seu lado,
achava que estavam caçoando dele.
Numa festinha, aconteceu um fato diferente: a filha do ma-
jor, recém-chegada à cidade, interessou-se por ele, perguntou
insistentemente quem era aquele rapaz solitário. Dissera as-
sim mesmo, aquele rapaz solitário, e não aquela múmia com
cara de cavalo. O inusitado é que a filha do major, de nome
Valdirene, era uma tremenda gatinha, morena, de olhos ver-
des brejeiros, corpo que não faria feio numa capa da Playboy.
Todos os mauricinhos da cidade andavam ouriçados.
A jovem começou a mandar-lhe bilhetes, por intermédio
das amigas feiosas, aquelas amigas que antigamente só ser-
viam para entregar bilhetes (digo antigamente para não ofen-
der ninguém na atualidade). Ele não respondia. Quanto mais
a ignorava, mais Valdirene se sentia apaixonada. Dizia às ami-
gas: eu sei que ele é feio. Feio, porém bonito! Entenda-se isso

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agora. Como já dizia o filósofo: o coração tem razões que a
própria razão desconhece (desculpe, leitor, o lugar-comum).
Esperava-o na porta da escola, buscando um olhar, um
cumprimento. As amigas iam lhe dar recados, e ele as repelia.
Tornou-se mais arredio, trancou-se em casa. Valdirene telefo-
nava, aflita; ele chegou a desligar na sua cara. Sou feio mas não
sou palhaço. Ouviu dizer que ela sofreu com isso, chorou na
frente das amigas. Ah! Se fosse verdade!
Os amigos, invejosos, passaram a repreendê-lo. Está fican-
do maluco, cara? Se a gatinha gosta de carne de terceira, de
filé de orangotango, que fazer? (por aí se vê como os próprios
amigos o consideravam) Isto só acontece uma vez em um mi-
lhão. Vai lá, você venceu.
Mas ele, nada. Na cabeça não entrava tamanho absurdo: a
Bela e a Fera, esse romance só mesmo em historinha infantil.
Estava bem, isto é, mal assim. Pra que piorar as coisas?
Até que um dia, triste dia, o major foi transferido para o
Nordeste e Valdirene se foi. Deixou-lhe um bilhete perfuma-
do: vou embora sofrendo, não quiseste meu amor... Ele tam-
bém sofreu com a dúvida. Com o tempo, passou a acreditar.
Podia ter sido, por que não? E foi feliz, ganhou uma recorda-
ção de amor, algo de encher a vida de qualquer um.

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A Repulsiva Mulher Gorila

A luta próxima revolucionou a cidade. Vejam só:


aquele palerma do Chicão, que só serve para levantar pilhas
de madeira no serviço do porto, era agora transformado em
herói, procurador dos machos desta terra, como disse o escri-
vão juramentado Salatiel.
Claro, surgiram apostas, coisa alta: o cônsul da Argentina
prometeu até abrir champanha, o que não falta em sua espa-
çosa residência. Esse cônsul, o tal de D. Ricardo, é chegado
a ações e gestos largos, dando sempre a impressão de que
vai iniciar um tango. Como o “San Diego” está no porto, sua
casa vive atulhada de gringos, como a gente chama os maru-
jos estrangeiros, sejam argentinos, suecos, holandeses, o dia-
bo. Muito dado a jogos, dizem que foi D. Ricardo quem fez a
maior aposta no Chicão.

Tudo começou quando o Alarico Gervásio, locutor da Rá-


dio Hemisfério, depois de deixar escoar a voz morna do Elvis
Presley, anunciou (posso até ver o Alarico tirando o chiclete
de hortelã da boca, grudando-o debaixo da mesa de som):

97
nesta semana, teremos a sensacional estreia do Gran Circo
Universal Galhardo, pela primeira vez excursionando em Por-
to da Cruz. Não percam!
Dois dias depois, foi erguido no terreno vago do Expresso
Portocruzense um cirquinho mambembe, a lona colorida de
remendos enormes; de animais, apenas um macaco que batia
palmas e um leão aposentado, chamado nos cartazes de feroz
Golias. Havia, no entanto, um cartaz que chamou a atenção
do pessoal: venham ver a repulsiva Mulher-Gorila, a maior
lutadora da América do Sul.

Meu amigo Horacinho havia ajudado a erguer os mastros


do circo e ficou amigo do anão Bube, de quem ganhou um
passe para ver o espetáculo de graça. Aí perguntou se podia
levar um amigo, que era eu, e na estreia a gente estava lá fir-
me. Na porta estava o Bube, que também era porteiro, além
de ajudante (ele preferia dizer partner) da equilibrista Nad-
ja e parceiro do palhaço Xereta que lhe aplicava pontapés no
bumbunzinho disforme.
– Oi Bube, este aqui é o Zé Eduardo, aquele que te falei –
saudou o Horacinho.
– Vão entrando – dizia o anão, todo afobado com o início
do movimento.
Por trás da cortina, na entrada, me entrou pelo nariz um
cheiro de serragem e de mijo. Depois acostuma, pensei. Lá
na frente, em um tablado, os músicos tocavam uma marcha,
todos de vistoso uniforme vermelho.
Depois de uma espera enervante – a cada momento uma
voz no alto-falante dizendo que dali a poucos minutos iria ter

98
início a maravilhosa função, algo nunca visto – acenderam-se
as luzes do picadeiro e apareceu o Xereta correndo em cír-
culos, saltando, com o Bube atrás, vestidinho com roupa de
bufão, arrastando uma perna meio manca. Enquanto o Ho-
racinho me dizia, já conhecedor de tudo, que o Xereta era o
dono do circo, o Bube já tinha levado quatro pontapés nas
nádegas. O anão estatelava-se no chão e levantava rápido, lé-
pido, sem nenhum sinal de dor. Devia ter a bunda calejada, o
filho da mãe.
Em seguida veio o leão, mais preocupado com uma mosca
que rodeava seu focinho do que com o pessoal que pagou para
ver a sua brabeza. Deu dois ou três grunhidos salvadores e se
apagou como meu irmão mais novo diante de estranhos.

No picadeiro, após a última apresentação, que era da equi-


librista Nadja, gostosíssima num maiô colante, entraram ra-
pidinho dois ou três auxiliares, fixaram quatro estacas com
parafusos, passaram duas cordas unindo uma estaca a outra e
estava pronto um ringue de lutas. Aí entrou o apresentador:
– E ahora (o apresentador, depois eu soube, era um nortista
ex-embarcado) la merror atracion do Gran Circo Universal
Galhaaardo. Enfrentando, em lutcha mortal, el peligroso Ci-
gano, com ustedes... la repulsiva Mulheeer-Goriiiila
Suspense. Tinir de pratos. Repentinamente, sai detrás da
cortina e entra correndo no ringue uma figura enorme, horrí-
vel. Uma calúnia chamá-la de Mulher-Gorila, pois um oran-
gotango perto dela é um Tony Curtis. A pele escura, o nariz
achatado e torto, os olhos duros cuspindo desprezo. Ergueu
os braços cabeludos e grunhiu para o público, dando socos

99
no peito. Depois de algumas demonstrações que pareciam
de grande violência, a Mulher-Gorila deu cabo do peligroso
Cigano, um baixinho de cor parda, muito tinhoso nos golpes.
O apresentador, num entusiasmo teimoso, lançou então o
desafio que mexeu com os brios da moçada do porto:
– La invencible Mulher-Gorila lo afirma que em esta cidá
no tiene matcho! (murmúrios na plateia) E lo desafia aquelho
que tiver coragem para uma lutcha asta la desistência, em la
prócsima semana, no último espectáculo de este circo.
Foi quando o Chicão levantou-se, com seus quase dois me-
tros de altura, a voz disparada pelo nervosismo:
– Já acharo macho!
As tábuas da geral quase desabaram, de ponta a ponta, com
o rebuliço do povo; os que estavam perto correndo para abra-
çar Chicão, os outros gritando e sapateando na madeira. E fi-
cou acertada para a próxima sexta-feira a fabulosa luta entre o
Chicão, defensor da macheza de Porto da Cruz, e a invencível
Mulher-Gorila.

Fui ajudar o Horacinho a alimentar o Golias; era um traba-


lho enorme, o infeliz leão nem tinha mais dentes. Nessa tarde,
sentada num banquinho, a terrível lutadora consertava a sun-
ga que usava todas as noites no espetáculo. Mulher-Gorila – é
evidente – era seu nome artístico, todos ali tinham um nome
artístico que nem na zona (descobri que o nome verdadei-
ro da Tatiana, do Pouso da Anta, é Anfilóquia, não é de bai-
xar a tesão do cara?). O nome mesmo da lutadora era Nair.
Quando nos viu, meio ressabiados, falou: venham cá que eu
não mordo ninguém não! Foi legal com a gente, disse que não

100
pediu a Deus aquela vida. Depois levou-nos ao seu camarim,
digo camarim, mas era um cantinho em uma barraca, junto
com as outras artistas, repleto de fotos desbotadas que mos-
travam uma antiga Nair, um pouco mais magra.

No outro dia o Horacinho não foi à aula. Que filho da mãe,


eu me estrepando com a tal de análise sintática, que é pra gen-
te entender a letra do Hino Nacional, e ele na praia dos Biguás
com a turma do circo. Horacinho gazeava aulas pelo menos
uma vez por semana. O pai não ligava, dizia que ele puxou
pela falecida dona Olivinha, que era ignorante e que o fim dele
seria mesmo pegar no pesado.
Na escola se falava que o Chicão havia desaparecido. Boa-
to. A Rádio Hemisfério já havia desmentido. Então o Chicão,
com aquela força toda – contavam-se às dezenas as suas brigas
na zona, principalmente com os gringos - com aquele vozei-
rão grosso, de paralisar macho que não fosse muito convicto,
ia fugir da raia? Certa vez, havia chamado para briga o time
inteiro do Portocruzense, e ninguém foi bobo de enfrentá-lo.
Eu acho que ele estava é no bem-bom com a Suzineide, uma
mulata que anda fazendo estripetise no Pouso da Anta, uma
de bunda saltadinha.

“Senhores espectadores, selecta platea, o Gran Circo Uni-


versal Galhardo tem la honra de apresentar-lhes finalmente,
em esta notche, el electrizante combate que todos ustedes
aguardavam com ansiedá: el combate mortalíssimo entre el
senhor Chicón e la repulsiva Mulher-Gorila”.

101
Sem querer mentir, digo que a cidade toda se aperta den-
tro do circo. Estivadores pesados, ainda palitando os dentes,
se largam nas tábuas da geral. Assobios se cruzam por cima
de minha cabeça. O conjunto, de repente, ribomba a valsa de
abertura e leva uma vaia.
– Solta a fera! – gritam.
Alguém se lembra de puxar a torcida do Chicão:
– E para o Chicão, nada?
– Tudo!
Até o Cabo Lerguino, que tem uns ataques violentos en-
frentando nazistas invisíveis, coisas da guerra, está lá do lado
do velho Quincas. Pombas, que perigo, e se o caboclo fica ner-
voso, começa a ver alemães na frente? E olha que tem uns bra-
ços pra ninguém botar defeito.
Logo que chegam as autoridades, com toda a família, e se
abancam nas cadeiras reservadas, começa o espetáculo. Os
números de equilibrismo já tinham enchido o saco, embora
ninguém enjoasse de olhar as pernas da Nadja, com aquele
maiô curtinho entrando na bunda. Mas o pessoal está nervo-
so. Xereta consegue maior atenção de todos remexendo nos
brios do público: que a Mulher-Gorila vai pegar o estivador
e fazer assim...assim, e plaft no traseiro do Bube, coitado. A
geral responde com um urro de ódio.
Finalmente, o conjunto de músicos faz silêncio. A serra-
gem, pisada e repisada, aumentou o cheiro, agora parecendo
de bosta. O apresentador anuncia o espetáculo.
Primeiro entra o Chicão, que é saudado por uma grita-
ria infernal, assobios, barulho de latas. Vem com uma sunga
preta, apertada, os pulsos atados com tiras de couro. Levanta

102
os braços, agradecendo. Depois, debaixo de vaias, ninguém
ouvindo as palavras do apresentador, surge a Mulher-Gorila,
preparada como se fosse para uma cerimônia de luxo, com
uma longa capa dourada, os olhos de contorno roxo, uma apa-
rência terrível.
O gongo soa. A lutadora deixa que Chicão ataque primeiro.
O bobo veio feito um touro desgovernado e recebe o primeiro
pataço: poff. Com isso fica mais cauteloso, faz rodeios, amea-
ça, e nisso se passam os primeiros minutos. Agora se pegam
feio, pernadas, socos. Chicão acerta um murro no ombro da
adversária, recebe o troco no peito cabeludo. Até que, milíme-
tro a milímetro, como pescador que cansa o peixe na linha,
Chicão vai se impondo pela enorme força. A fera vai perden-
do a confiança. A balbúrdia é enorme, a força de Chicão sai
dos braços e dos gritos de cada um.
De repente – ninguém entendeu – o juiz encerra a luta,
Chicão dando sinal de desistência, imobilizado pela adversá-
ria. Sem ninguém perceber, num último recurso, ela havia lhe
agarrado os cocos com os dedos de alicate. Com a dor súbita,
Chicão desarmou-se e pronto, a lutadora aproveitou a vanta-
gem para aplicar-lhe uma chave de pernas sem escapatória.
A gente olha uns para os outros, sem entender nada, a cara
murcha, os gritos murchando. Nesta hora, há empurrões,
abre-se uma clareira em redor do Cabo Lerguino, que dá faca-
das em alemães. Surgem gritos, e não são dos alemães derru-
bados pelo Cabo: a lona do circo está queimando, o povaréu
aos encontrões, sem poder sair do lugar.
Escorrego pra baixo do madeirame e abro um rasgão a ca-
nivete na lona, ganhando o ar fresco de fora, para onde muitos

103
já haviam debandado. Correndo para longe, fico vendo o fogo
encorpando, a estalar, soprando rolos de fumaça em direção
do mar.

Graças a Deus não morreu ninguém, mas do circo não so-


brou nada, só a vontade de juntar os trapos e partir pra outra.
A aventura é um carrapato que está grudado nas veias desse
pessoal. De manhãzinha já tinham ido embora, levando o Ho-
racinho, sacana, como aprendiz do palhaço Xereta.

104
Aula de História

Quando a irmã Eduwirges, professora de História do


Brasil, explicava a invasão dos holandeses, a barriga começou
a me apertar. Pombas, por que fui comer tanta feijoada no
almoço? Um bago de suor começou a correr pelo rosto, a posi-
ção na carteira ficou desconfortável: não adiantava me mexer
de um lado a outro, a dor continuava no mesmo lugar.
Aguentei o máximo que pude, irmã Eduwirges era severa,
não admitia interrupções em sua aula. Mas não houve jeito,
quando ela repetia, de boca cheia, o nome de Maurício de
Nassau, estava eu de braço levantado: posso ir fora?
A irmã me encarou com o rosto de pedra, seus óculos fais-
caram terríveis, com o fiozinho de sol que entrava pela jane-
la.
– Está bem, mas volte depressa – disse ela, não abrindo
mão de seu rigoroso controle, mesmo sobre a rebeldia de meu
intestino, que lá queria saber quem era Maurício de Nassau.
Levantei dignamente da carteira e me dirigi com passos
controlados para fora, não querendo demonstrar como era
desesperadora minha situação. Logo que atravessei a porta,
passei a correr desabaladamente para o WC. Tinha aprendido

105
recentemente esta palavra – desabaladamente – e acho que era
adequada ao meu caso.
Sorte que todos estavam em aula e o pátio estava deserto.
Pelo caminho já fui desapertando o cinto. Quando parei em
frente ao banheiro dos meninos, sacanagem: a porta estava
trancada.
Alguém já passou por essa situação? Terrível!
Meu corpo estremeceu de frio e calor ao mesmo tempo.
Havia somente uma saída: olhei cuidadosamente para todos
os lados – ninguém! – e dirigi-me ao banheiro feminino.
Foi a salvação da pátria. Canhões e metralhadoras troaram
furiosamente; houve resistência, mas pouca, e os malditos ini-
migos caíram prostrados no campo de batalha. Depois, uma
descarga d´água lavou o solo pátrio e varreu-os da face da ter-
ra.
Mas não pensem que a batalha estava vencida. Logo, logo,
passos ressoaram no corredor do banheiro, portas se abriram
e fecharam. Uma descarga foi acionada e o barulho parecia
de uma cachoeira, despejando toneladas de água, que foram
diminuindo até virar um gluglu mansinho.
Esperei uns dez minutos, já preocupado com a bronca da
professora. Depois, resoluto, abri a porta do close. E cai in-
genuamente nas mãos do inimigo. Não se tratava de um sol-
dadinho qualquer, era o general-em-chefe de todo o exército
contrário: um grande urubu, de peito alvo, costas recurvadas,
o bico longo de narinas resfolegantes e o rosto branco e balofo
de quem nunca tomava sol – a própria Madre Superiora.
As freiras do colégio, salvo uma ou duas, me pareciam aves
de rapina, com suas vestimentas negras, prontas a enfiar as

106
garras recurvas nos pobres alunos. A pior, temível mesmo, era
a Madre Superiora. Diante dela todos tremiam de medo, até
as outras freiras se aproximavam humildemente, falando de
mansinho, não sem antes dar uma curvadinha de joelho.
Antes que eu pudesse organizar a defesa, sua mão grudou
em minha orelha e me arrastou para fora do banheiro. Aonde
a mão ia com a orelha, ia eu atrás, que não era bobo de resistir.
Minha orelha, esfumaçando, foi parar na salinha da diretoria.
Para me livrar da acusação de ter ido espiar as freiras faze-
rem xixi, tive de dar humilhantes explicações sobre o estado
de meus intestinos, a começar pela morte do porco para fa-
zer a maldita feijoada. Era um porco preto e tinhoso que meu
tio havia recebido de presente e criou como se fosse um filho,
pois meu tio era solteiro e não tinha filhos. Até que os vizi-
nhos reclamaram das porcarias do porco – e realmente podia-
se dizer, sem ser figura de linguagem, que a casa de meu tio
era um chiqueiro.
Então, desolado, resolveu passar o coitado na faca. O turco
Chafic, que era especializado em matar bodes e cabritos, foi
quem praticou o ato de misericórdia. Daí, retirou todos os mi-
údos, cortou o rabinho, os pés, as orelhas, e o tio cedeu tudo
para minha mãe, que justamente nesse fatídico dia tinha feito
uma bela feijoada.
A Madre tinha reunido um conselho de freiras que ouviam
com reprovação o meu relato. Não sei se acreditaram na his-
tória do porco, mas juro que é verdade.
Quando cheguei ao xis da questão, ou seja, que se não tives-
se corrido desabaladamente (olhem essa palavra novamente!)
para o banheiro feminino, me borrava todo na calça, umas

107
freiras ficaram vermelhas, outras, brancas, a Madre Superiora
ficou roxa. Irmã Dentucinha, assim conhecida pelos alunos
por motivos óbvios, sugeriu chamar meus pais ao colégio; a
irmã da horta queria suspensão por um mês. Resolveram fi-
nalmente me baixar três pontos em História do Brasil. Vai ver,
acharam que não foi uma cagada patriótica!
Agora me digam: não foi realmente um trauma pesadíssi-
mo para um garoto? E não é justo que atualmente o estômago
se me revire em cólicas e enjoos ao ouvir falar na tal de feijo-
ada?

108
O Magnífico Discurso

Quando Jesuíno subiu ao palanque, o locutor pediu si-


lêncio e anunciou o começo da grande e vitoriosa jornada:
- E agora, com vocês, este cidadão brilhante, dedicado ao
seu povo e à sua terra, a terra onde nasceu – o futuro vereador
(pausa para as palmas) Jesuíno da Silva Matacouro. Jesuíno
sentiu um arrepio pelo corpo. Sobre as palmas e gritos flutu-
ava ele, o Jesuíno de todo dia, simples funcionário do estado,
inveterado jogador de dominó e palitos.
Tudo começou com uma indicação dos chefes políticos de
Tequiné (refiro-me ao município de Tequiné dos Pombos),
depois de um esforço enorme para ganhar prestígio, gastando
sua cota de elogios atrás das personalidades locais, esgotando
as amídalas como cantor de bingo nas festas de igreja. Candi-
dato a vereador: já era o começo de um sonho.
Em casa, a partir daí, só era tratado de Excelência, para ir se
acostumando ao doce gostinho do título (somente a emprega-
da, a negra Tertuliana, não entendeu por que o nome do seu
Zuza mudou de repente para seu Encelença). Perdia horas na
frente do espelho, treinando a mímica que o ajudaria a plantar
os fundilhos na cadeira dos edis; sorrir esticando o queixo,

109
para mostrar a dentadura de baixo; franzir as sobrancelhas,
deixando um sulco de preocupação na testa, que dava um ar
de responsabilidade.
Não pretendia – e nem podia – gastar muito em sua campa-
nha eleitoral, apenas o necessário para algumas cédulas, balas
para a criançada, uma cachacinha para os compadres, coisa
compatível com seu modesto rendimento. Sabia que o deci-
sivo mesmo, ali em Tequiné, seria o magistral comício plane-
jado pelo partido para dali a um mês, na praça da igreja, com
a presença dos líderes estaduais. Aí as coisas começariam a se
definir, a esquentar. Claro, seria necessário um discurso à al-
tura, capaz de conquistar de modo indiscutível o voto de seus
concidadãos.
Para isso, Jesuíno até que havia dado trato às bolas: como
começar? Onde encaixar todos os seus atributos e qualidades
(algumas, descobertas recentemente pelos costumeiros corre-
ligionários)? Como deixar escapar alguns fatos desabonadores
contra os adversários, principalmente se até o momento ha-
viam sido companheiros de congregação? Mas o importante
mesmo, para deixar o pessoal de boca aberta, seria embrulhar
esse conteúdo desgastado numa embalagem rica, atada com
floreios gongóricos e termos ofegantes (esta terra tripudiada e
esquecida...). Em Tequiné, seja dita a verdade, o povo conside-
ra capazes os que falam coisas que ele (o povo) não consegue
entender.
É claro que não conseguiu dar tamanha altitude ao seu pla-
nejado discurso: alinhavou, quando muito, um palavreado
chulo, alguns chavões, sem respeito à concordância e à orto-
grafia. Como conseguir o respeito dos eleitores desse modo,

110
manejando o léxico e a sintaxe só de ouvido, sem atentar para
os preceitos dos velhos mestres? Assim só lhe restou uma saí-
da: encomendar o discurso ao professor Aristomásio, a maior
capacidade de Tequiné dos Pombos.
Professor Aristomásio, como consciente profissional que
era, fez anotações, consultou as preferências morfológicas e
semânticas do cliente (em matéria de adjetivações, apraz-lhe
mais “gorgôneo” ou “formidoloso”?), apalpou as possibilida-
des do tom oratório (o nobre postulante optaria pela encomi-
ástica solerte ou pela feroz catilinária?), revirou os clássicos de
sua estante à procura de citações, e em menos de uma semana
largou a encomenda, que veio uma maravilha. Arrebatava pela
pujança dos termos, pelo exótico das construções. Só mesmo
um mestre para tecer tão belo cipoal... Até um tal de Nietszche
foi citado a respeito do alastramento do jogo do bicho em Te-
quiné. Ah! O povo ia delirar de incompreensão!
Não é de admirar, portanto, que trechos do discurso te-
nham rolado nas mesas de dominó, no Bar Rodoviário (onde
Jesuíno fazia ponto), entre uma cerveja e outra, no mais puro
sacrilégio. O carteiro Valtinho, seu parceiro de jogo, comenta-
va excitadíssimo para os demais frequentadores do bar:
– Repara só no português do home! Já tá eleito. Lê de novo
aquela parte do “qual tremebundo do Nestor”.
– ...furibundo Adamastor! – consertava Jesuíno paciente. E
olhando ao redor, orgulhoso, para ver se todos estavam aten-
tos, explicava: Adamastor é um baita dum caboclo, que tá nos
versos do Camões.
– Isto mesmo! Linda essa parte. É o que eu digo: já tá eleito,
parceiro.

111
Foi quando chegou o grande dia. Era domingo. O comí-
cio estava marcado para depois da missa das nove da manhã.
Jesuíno não conseguiu decorar o discurso: eram palavras e
ideias que se enviesavam, desacostumadas em sua boca incul-
ta, como objeto estranho. Mágica pura, que lhe dava a impres-
são de estar no comando de uma aeronave desgovernada.
Mas isso não era problema: o senhor Prefeito, em seus pro-
nunciamentos, não saca o “improviso” do bolso? Era o que
ele também faria. Nervoso, despachou o embrulho de alcatra
pela cozinheira (estava no açougue do Zé Quindim, um pou-
co antes do horário previsto para a grande jornada), ajeitou a
gravata e seguiu gélido para o palanque.
Na praça, o povo se acotovelava, na expectativa. Como era
a figura de menor expressão entre os representantes do parti-
do, Jesuíno seria o primeiro a discursar. Elevou-se, trêmulo,
pisando num pequeno caixão que seria, se Deus quisesse, seu
pedestal provisório. Puxou o discurso do bolso. Silêncio. Pi-
garros. Sentiu o papel um pouco áspero. O que é isso? E viu
surgir em sua mão, em vez da refinada peça oratória, um legí-
timo papel de embrulho, com a inscrição: Açougue São José
– agradecemos a preferência.
Pálido, diante do aterrador bafo da multidão, Jesuíno con-
seguiu perceber que, por obra do estabanado Zé Quindim, seu
magnífico discurso tinha servido de embrulho para a alcatra.

112
A Gravata do Morto

Algumas amizades são eternas, embora admitam às


vezes um pequeno estremecimento. Era o caso das duas ve-
lhotas, viúvas, conhecidas como “pão-de-ló de velório”. Não
fosse o medo de divulgar uma calúnia, diria até que seu único
divertimento eram as noites passadas ao pé do caixão de al-
gum infeliz, o rosto compungido, as vestes pretas sempre de
prontidão, no aguardo de qualquer notícia infausta. O pes-
soal da cidadezinha até já se acostumara: falecia alguém da
periferia, iam imediatamente avisá-las, como se fossem elas
parentes do finado.
– Sabem quem morreu? – e observavam a expressão alvo-
roçada das duas, como quem aguarda o disparar de uma bela
fofoca.
– Conta, conta! Não me diz que foi o velho Claudomir, que
estava nas últimas?
– Não, esse ainda continua de molho. Foi alguém mais jo-
vem. Uma mulher.
E esfregavam as mãos, animadas com o jogo de adivinha-
ção:
– Uma mulher? A sogra do Lelinho Costa!

113
– Tá esquentando! Tá esquentando!
Após os atos fúnebres, costumavam voltar pra casa cami-
nhando, cochichando juntinhas, de braços dados. Fossem ir-
mãs, não se entenderiam tão bem. Não faltava munição para
as conversas: os motivos ou a veracidade das lágrimas vertidas
pelos parentes; a pouca vergonha das jovens de vestido acima
dos joelhos. Ou a ausência dos “fulanos tão amigos do faleci-
do”.
Foi numa dessas que aconteceu o entrevero entre elas. De-
pois do enterro do ex-vereador Elesbão. Após se esgotarem
os assuntos costumeiros, uma delas voltou as armas de grosso
calibre para o defunto:
– Você notou a gravata que colocaram no coitado? Uma
aberração! Que ridículo desenho azul.
– Azul não, você está enganada. Tenho certeza de que a
gravata era verde.
– Estou lhe dizendo: azul. Naquela hora eu pensei comigo:
no lugar para onde vai, a única coisa azul que vai ver é a ponta
da gravata. E olhe lá, hein? Se o fogo não queimar.
A outra armou um gesto de impaciência:
– Isso pode ser, não discuto. Mas a gravata era verde. Ver-
dinha da silva. Me lembro bem...quando apareceu a sirigaita
da esquina, com aquele horrível esmalte verde, as garras arre-
ganhadas feito caranguejo, juro que fiquei chocada: seria para
combinar com a bendita gravata? E olha que a desinfeliz dei-
xou escorrer umas lagrimazinhas, bem que eu notei.
A primeira, de nome Judite, bateu o pé; de sua certeza não
arredava:
– Olhe, Olívia (mastigava bem as palavras com as gengivas

114
lisas), o homem foi enterrado de gravata azul. Eu vi! Minha
vista ainda está boa. Todo mundo viu que a gravata era azul.
– E a senhora quer dizer que eu também não vi? – quando
se tratavam por senhora o negócio não ia bem. Está me cha-
mando de ceguinha? A bendita dessa gravata era tão verde
quanto a sua cara bexigosa.
– Ora, quem é que está falando! A senhora, uma velha ridí-
cula dessas! Que só vai a enterro pra ver mais uma morte que
não quis lhe agarrar.
A outra já esgrimia no ar as unhas curvadas:
– E a senhora? Sua velha sovina, que já matou dois maridos
e quer ver se Deus consegue lhe perdoar!
Pararam no meio da rua enlameada e, se alguns cidadãos
não viessem acalmá-las, iam chegar realmente às vias de fato.
Voltaram para casa com a amizade provisoriamente corta-
da. Claro, não iriam suportar a falta de companhia nas horas
frias diante de algum caixão, do braço amigo pra se apoiar na
subida do morro do cemitério. No próximo velório voltariam
às boas. De todo jeito, acabaram esquecendo o falecido Eles-
bão, o ex-vereador, passivamente enfiado no seu terno preto e
na sua gravata de horroroso desenho cinzento...

115
Bar Amizade

No final de meu turno na estiva – empilhando um car-


regamento de compressores no navio Antuérpia – encontrei
dois amigos, o Tonho e o Dengo, isso já era de noitinha, e
resolvemos entrar no Bar Amizade, nas imediações do por-
to, e tomar umas cervejas. O bar estava atulhado de gringos
– como a gente chamava os marinheiros estrangeiros – que
bebiam até caírem tortos e serem levados para o navio pe-
los companheiros. O bar era escroto, mas já teve até uma gar-
çonete boa de língua, isto é, que entendia qualquer coisa em
alemão, dinamarquês, argentino, sueco, grego ou o que fosse.
Experiência, sabe como é. Acabou se juntando com um ja-
maicano e foi embora Deus sabe para onde. Garçonete esperta
tinha futuro: quando os gringos estavam podres de bêbados,
sentavam no colo deles, metiam a mão nos bolsos e tiravam
algum dinheiro.
Dali a pouco, o Tonho, extrovertido que era, estava no meio
de uma turma de suecos, com a mesa forrada de cerveja. Um
deles, sardento, apontou para nossa mesa. Em seguida, fez si-
nal para a gente se aproximar. Quando eu e o Dengo chega-
mos na mesa deles, colocaram um copo em nossa mão e em-

116
borcaram uma geladinha com pouca espuma, como o diabo
gosta. O Tonho, gozador, fez as apresentações, do jeito sacana
dele: este aqui é o Pinguelo Distraído e este o Joãozinho Papa
Gringo. Johnny Gringo´s Eater, understand? Os suecos ape-
nas riam
Bebemos um bocado por conta dos gringos. Mas estava
bom demais. O Tonho ainda não tinha aprontado das suas,
quando bebia um pouco. Numa hora, um gringo enorme, de
costeleta encrespada que descia até a boca, enlaçou o pescoço
dele num abraço fraternal e, com os olhos cheios de lágrimas,
começou a fazer confidências. O Tonho não entendia nada,
mas, não sei se emocionado, resolveu passar a mão na bunda
do cara.
O sueco teve um tremelique e parece que naquele momento
ficou bom da bebedeira. Levantou-se jogando a cadeira para
trás, puxou o Tonho pela camisa e ergueu o braço cheio de ta-
tuagens. Instintivamente, fechei os olhos. Coitado do Tonho.
Mas na hora em que o gringo recuou o braço para largar a
porrada, acertou com o cotovelo no ouvido de um holandesi-
nho que estava passando por trás dele.
O holandês caiu por cima da mesa de seus próprios com-
panheiros, que era do lado da nossa, e foi copo e garrafa pra
todo lado. Ainda bateu com a boca na quina de uma cadeira e
ficou com os lábios deste tamanho. Um dos holandeses avan-
çou para o sueco. Não sei se eles se entendiam, lá na língua
deles; eu é que não fui bobo: me joguei por trás do balcão
onde as garçonetes já tinham se entocado e perguntavam sem
se dirigir a ninguém – o que foi? Pelo amor de Deus, o que
aconteceu?

117
A confusão já havia tomado conta do bar. O sueco rolava
no chão com o holandês. Os outros viravam mesas para se de-
fender das garrafas que eram arremessadas. Manecão, o dono
do bar, veio da cozinha, com a enorme barriga bamboleando,
e berrava:
– Parem, seus miseráveis! Vão brigar lá fora, seus f.d.p.!
Não consegui mais ver o Tonho, que devia ter sumido numa
hora dessas. Desculpem se não consigo descrever detalhada-
mente todos os lances da briga, mas tudo se passou muito rá-
pido e, além disso, uma das garçonetes, agachada ao meu lado,
deixou distraidamente aparecer a calcinha, o que também me
distraiu um pouco.
Quando o negócio acalmou, havia um sueco com o rosto
ensanguentado e outro que se contorcia de dor, com a mão
sobre o estômago. Um holandês estava caído no chão e mais
dois tentavam fazê-lo voltar a si. As garçonetes recolhiam com
cuidado os cacos de vidro. Manecão punha as mãos na cabeça
e só repetia: quem vai me pagar? Quem vai me pagar?
Nisso, chegaram dois milicos da polícia; ficaram meio ame-
drontados vendo tantos gringos, mas tinham que manter a au-
toridade e um deles, o cabo, perguntou arrogante:
– Que houve? Quem foi o sacana que provocou a briga?
Ai apareceu o Tonho, vindo não sei de onde, e disse:
– Com licença, cabo. Foi este aqui que passou a mão na gar-
çonete – e apontou para o holandesinho que tinha recebido a
porrada do sueco por tabela.
Nessa hora o bar estava cheio de estivadores, que olhavam
com agressividade para os embarcados, o que deu segurança
para o cabo. Virou-se com cólera militar para o holandês:
– Então foi você seu f.d.p.? Isso só podia mesmo ser coisa
de gringo!
O coitado não entendia nada e fazia uns gestos, mostran-
do o beiço e o ouvido inchados; os suecos cruzavam palavras
confusas com os holandeses e também apontavam para ele,
parecendo concordar que fora o causador de toda a confusão.
Protegido pela massa de estivadores, o cabo pegou no bra-
ço do holandesinho e o arrastou para a cadeia. Fingindo-se
escandalizado, o safado do Tonho repetia para os curiosos que
se aproximavam do bar:
– Esses gringos filhos da mãe têm de aprender a respeitar as
garçonetes brasileiras.

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