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PARA LER
NO BANHEIRO
Hilton Görresen
Ilustração: Cacá
ISBN 978-85-7682-789-4
Pedidos e sugestões:
gorresenh@gmail.com
ÍNDICE
A bela adormecida 9
Minha perereca de estimação 11
Campanha eleitoral 13
Quem bebe mais pinga? 15
Concurso de cuspe 17
Conversa de macho 19
Diário de um hipocondríaco 21
E aí, Beiçolão? 23
Estrambótico 25
Falta de provas 27
“Farra do homem” 29
Funcionário-modelo 31
Luxúria 33
Na barbearia 35
Na boca do sapo 37
No tempo dos caranguejos 39
No velório 41
O dia de azar do Nequinho 43
O estranho amigo 45
O funcionário ideal 47
O homem que assassinou a si mesmo 49
O homem sem cabeça 51
O mais feio da cidade 53
O sufoco do Papai Noel 55
O terrorista 57
Os fantasmas do casarão 59
Papagaio de anedota 61
Pequenas batalhas 63
Quem era o Ganimedes? 65
Razões para mudar de endereço 67
Salário mínimo 69
Sonhos ou pesadelos? 71
Tia Lucrecinha 73
Um fantasma discreto 75
Venga toro! 77
Viagem a Valões 79
Vida de cão 81
Admirador secreto 83
Bom para a tosse 85
Carta pedindo emprego 87
Central de reclamações 89
Como acreditar nos contos de fadas? 91
Crítico de sucesso 93
Feio, porém bonito 95
A repulsiva Mulher-Gorila 97
Aula de História 105
O magnifico discurso 109
A gravata do morto 113
Bar Amizade 116
Apresentação
A Bela Adormecida
9
calma e repousada dos inocentes. O príncipe ficou extasiado
com aquela criaturinha doce e meiga. De seus lábios – apesar
de estar há décadas sem escovar os dentes – exalava um per-
fume doce e misterioso. Tentou acordá-la. Fez cócegas atrás
da orelha; depois aproximou os lábios quentes e soprou-lhe
no ouvido. Nada. A jovem permanecia imperturbável como
uma pedra. Segurou delicadamente os pezinhos alvos e se
pôs a beijá-los. Depois, passou a mordê-los com força: nham,
nham. Devagarinho, foi levantando o vestido comprido e ren-
dado, deixando à mostra as pernas alvas. Queria que a donze-
la acordasse para poder sentir-lhe o corpo trêmulo. Mas não
tinha jeito. O que fazer? Deu uns tabefes na cara, beliscou os
braços.
– Ah, não quer acordar, né? Pois vai assim mesmo!
As cenas que se seguiram não podem ser narradas neste
horário em que você está lendo. Só sei que o príncipe montou
seu cavalo branco e foi-se embora. A princesa continuou dor-
mindo, mas já não era a mesma. Azar do verdadeiro príncipe
encantado que a acordaria com um beijo e só chegou três anos
mais tarde.
10
Minha perereca de estimação
11
Depois de certo tempo, a gente já se entendia bem, eu e o
Chico, só pela expressão corporal. Quando o Flamengo levava
gol, o Chico, que era flamenguista doente, revirava indignado
os olhos, eu percebia o que estava pensando do juiz. Mas se
babava mesmo era por um filme erótico. Nas cenas quentes,
remexia o gogó diversas vezes, com nervosismo. Se passasse
uma pobre mosca diante dele, coitada. Era traçada ali mesmo,
sem pudor.
Pensei seriamente em lhe arranjar uma companheira, ou
companheiro, ou os dois, tenho certeza de que o Chico não
era preconceituoso. Mas preferi não me imiscuir em sua vida.
Quem sabe, aborrecido, ele fosse embora.
Quando morresse, certamente teria um enterro digno, com
choro das crianças e flores sobre o túmulo. Era considerado
parente, como cachorro e gato. Mas o Chico não nos deu esse
prazer, quero dizer, essa tristeza. Simplesmente sumiu, o in-
grato.
Sumiu numa noite gelada, quando mais precisávamos de
sua presença reconfortante. Não sei se foi alguma coisa que fa-
lamos ou alguma referência desairosa à classe dos répteis, feita
sem querer, que o deixou magoado. Era um bocado sensível,
acho que lhe demos o nome errado, devia ser mesmo uma
garota. Só sei que nunca mais apareceu aqui em casa.
Conservo intocado seu lugar preferido, ao lado da TV, ain-
da com um restinho de gosma e uma marquinha esverdeada.
Depois dessa, já resolvi, nunca mais vamos ter animais de es-
timação.
12
Campanha Eleitoral
13
Estar desquitado, divorciado ou mesmo desamigado de uma
integrante da colônia era fracasso na certa. Foi procurar a
quase ex, implorou, fez promessas. Que deixasse a separação
para depois, precisava acompanhá-lo nos comícios, dar uma
palavrinha aos conterrâneos. A mulher acabou concordando.
Ficava junto dele até o dia das eleições. Nem um dia a mais. E
camas separadas.
Iniciaram a campanha: reuniões, visitas, entrega de santi-
nhos... Nos festejos em honra do fundador da colônia, aprovei-
taram para vender o seu peixe. A mulher foi muito aplaudida
quando pediu a palavra. Houve um prolongado burburinho
quando disse umas palavras em seu dialeto, apontando o ex-
marido. Eta, mulher porreta! Levava jeito para se comunicar
com os eleitores. Sentiu vontade de não concordar com a se-
paração.
No entanto, perdeu feio as eleições. Ficou abaixo do candi-
dato com menos chance. Motivo: no discurso, ela havia dito
aos conterrâneos que ele era um chilopaque. Não esclareceu o
que era chilopaque. Mas lhe disse claramente: acha que eu ia
ajudar um sem-vergonha como você a ser vereador? Além do
mais, meu novo love também era candidato.
14
Quem Bebe Mais Pinga?
15
Tyson. Ligeireza enfrentando força bruta. Saiu até comentário
na rádio local e aviso pregado na porta da igreja (que o padre,
indignado, arrancou dali com um discreto palavrão).
Na data acertada para o importante evento, o salão nobre
da associação inundou de gente: curiosos, apostadores, paren-
tes e amigos dos competidores.
Os dois acomodaram-se na mesa central. O barman trouxe
dois copos de pinga, para o aquecimento; cada um entornou o
seu. O aroma da bebida encheu o ambiente. Veio uma garrafa
cheia para cada um, que foram sendo entornadas, copo atrás
de copo. Com surpresa, o alemão viu que o magrinho conti-
nuava firme.
Continuaram bebendo. Mais quatro garrafas (quero dizer,
duas, os contendores é que estavam com visão meio prejudi-
cada). Ignorando a presença de algumas moças que tinham
vindo abrilhantar o certame, o alemão soltou um tremendo
pum, que afastou os que estavam mais perto, mantendo-os em
uma distância segura.
No final da terceira ou quarta garrafa, o Fritz entregou os
pontos (mais precisamente, arregalou os olhos e caiu duro no
chão). Aclamação geral. Vitória do brasileirinho raquítico.
O barman veio, passou um pano molhado na mesa, deu
uma piscadela pro Zé Menezes e recolheu sua garrafa que ain-
da tinha um restinho de água mineral. E falou para os espec-
tadores: agora esse alemão deixa de ser besta!
16
Concurso de Cuspe
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dias de vazante, em que a lama fétida se estendia por centenas
de metros até encontrar a água escura. O irmão sugeriu:
– Vamos fazer um concurso de cuspe? (Desculpe, leitor,
mas não encontrei um sinônimo mais aceitável para a palavra;
ia perder a graça)
Era uma brincadeira que fazíamos na infância. Seria vence-
dor quem conseguisse reunir na boca o maior volume de sali-
va. E isso era uma de minhas poucas habilidades. Após alguns
minutos de preparação, enchendo a cavidade bucal de líquido,
iniciamos o jogo. Como primeiro a fazer a apresentação, im-
pulsionei lá de cima uma quantidade enorme de saliva. Pouca
chance ao adversário.
O casarão situava-se numa esquina. Levada pela brisa agra-
dável, a matéria salivar foi conduzida lentamente, num voo
gracioso, em direção à calçada.
Repentinamente, virando a esquina, surge um rosto balofo,
com bigodes grossos e óculos de aros escuros, bem diante da
trajetória do – digamos assim – meu projétil. Comecei a fazer
sinais desesperados, como se, por controle remoto, pudesse
desviar o volume de saliva do alvo inesperado.
Não deu outra: plafff! O líquido chocou-se com o vidro dos
óculos, escorreu para o bigode.
O homem era novo na cidade. Era baixo, de barriga pro-
eminente. Dizem que os baixinhos são bravos, esse era duas
vezes mais. Não vou mencionar a confusão que se deu, com
interferência da minha mãe, da vizinhança e quem sabe até do
padre. Para mim, apenas uma coisa importava: o homem era
o pai de Diana.
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Conversa de Macho
19
dupla, encenar uma coreografia máscula: Batman e Robin. Ou
Átila, o Flagelo de Deus.
– Átila, não, pelo amor de Deus. Não me fale desse sujeito.
Foi a minha fantasia no carnaval. Deu um azar danado. Últi-
mo lugar em luxo masculino.
– Você foi ao carnaval fantasiado de Átila? – o outro apa-
rentava estar gracejando.
– Natural! Queria que eu fosse vestido de havaiana, uma
coisinha básica, dançando ula-ula? Macho tem de usar fan-
tasiona pesada, com ombreiras, chapéu pesadérrimo, enfeites
mil, coisa pra quem tem músculos. Me aguarde no próximo
ano!
– O quê? Quer dizer que você já planeja outra fantasia
“massscula”? Diz aí: qual é?
– Segredo, minha santa! É pra deixar a concorrência arria-
dérrima, lambendo os confetes do chão.
– Eu já prefiro sair no bloco das “melindrosas”. Me divirto
a valer! – falou o outro.
– O quê? Aquele bloco cheio de bêbados arrastando a san-
dalinha, com uma peruca cafonérrima, que nem a vovó usaria.
Sai dessa, santinha! Você não sabe o que é curtir o carnaval.
Fui interrompido pelo garçom, pedi a “saideira” e perdi o
resto da conversa. Só percebi quando o da fantasia se levantou
e se dirigiu asperamente ao outro:
– Simbora, cara! Detesto conversar com gente invejosa.
Aposto que você é desses que se tranca no quarto para experi-
mentar as calcinhas da irmã.
20
Diário de um Hipocondríaco
21
Zheimer – acabei escovando os dentes com a pomada Hemo-
virtus. Imaginem a opção inversa...
Andava uns tempos me sentindo mal, com sobrepeso, oca-
sionado pela tireoide; felizmente sobreveio o diabetes que em
pouco tempo me afinou o corpo, deixando-me elegante qual
um dançarino espanhol. Somente não saí dançando para co-
memorar o novo físico por causa da artrose no joelho e do es-
porão no calcanhar. Foi tamanha a alegria que pensei em dar
um grito para o mundo, como o fazem os participantes de um
“reality show”, em bom português: Brigaduuuu! Infelizmente,
um acesso de bronquite me provocou espasmos de tosse tão
violentos que quase vai junto a dentadura.
Atualmente, estou inaugurando o Museu dos Medicamen-
tos. Conservo em meu poder remédios que não existem mais
há décadas, alguns de valor inestimável para os colecionado-
res, como Antisardina, Urodonal, Phimatosan, Lugolina, Qui-
nado Constantino, Pílulas de Vida do Dr. Ross. O mais ba-
dalado, e por isso sofro constante assédio de colecionadores,
é o Rhum Creosotado, objeto de uma quadrinha publicitária
inscrita nos assentos de ônibus no início do século 20.
Estou redigindo este diário aos poucos, conforme me per-
mitem as condições físicas. Sempre tive vontade de escrever
um livro contando minha sofrida passagem por este mundo.
Se não fosse a tremedeira nas mãos, a dor nas costas, o glauco-
ma, e se as hemorroidas me permitissem sentar, faria... o que
mesmo?...
22
E aí, Beiçolão?
Devia fazer uns 50 – não, não sou tão velho assim –, uns
40 anos que o havia visto pela última vez.
Éramos adolescentes, e me lembro bem de sua figura. Era
alto, magro, desengonçado, com os ombros caídos, feito um
cabide, os braços cumpridos e dedos da mão afunilados. Ti-
nha o rosto inchado, descombinando com o resto do corpo, e
o beiço grosso meio arriado. Diferentemente dos outros garo-
tos, que viviam descalços, ele andava de sapatos, e nas poucas
vezes em que se descalçava mostrava uns pés brancos e deli-
cados. Pés de moça.
Nosso primeiro encontro não foi dos mais amigáveis: eu
estava jogando uma linha no mar em frente de casa, quando
apareceu a figura e começou a me aporrinhar. Eu não era de
briga, e somente para assustá-lo disse:
– Me deixa em paz, ou vou aí e te quebro a cara.
Mas ele não se assustou com minha valentia e respondeu:
– Vem, se tu é homem!
Aí eu não podia voltar atrás. Recolhi a linha de náilon e
parti em sua direção. Quando cheguei perto, ele veio de peito
empolado como um galinho de briga:
23
– O que foi? O que foi?
Por falta de experiência em brigas, eu não sabia o que fazer
primeiro. Então, sem dizer água vai (que expressão antiga!),
larguei uma direta que pegou no lado de seu rosto. Deu de
ouvir até o barulhinho do osso estralando. Ele deu uma re-
cuada e esperei a reação, que não veio. Passou a mão no rosto
dolorido e sua arrogância foi murchando. Vitorioso, voltei à
minha pescaria.
Depois disso, pela sua proximidade com os demais garotos,
acabamos ficando amigos. Ele era um cara alegre; não era mé-
dium, mas tinha muita presença de espírito.
Foi a lembrança que me veio naquela hora, em que o divisei
no aeroporto de Guarulhos, sentado num banco, com uma
imensa valise ao lado. O rosto era o mesmo, o beiço arriado
parecia estar pesando na cara inchada. Só os cabelos já es-
tavam meio ralos e os dentes apresentavam aquela perfeição
metálica própria de uma prótese.
Dei-me conta de que não me lembrava mais de seu nome,
todos nós o conhecíamos pelo apelido. Quem sabe fosse agora
um doutor, um político, pessoa importante.
Mas não podia perder a oportunidade de falar-lhe. Cada
antigo colega que reencontramos nos traz um pedacinho, às
vezes esquecido, do painel que forma nossa vida. Por isso, fui
em frente. Agarrei seu braço e, estampando uma alegria sin-
cera, fui exclamando: – E aí, Beiçolão!!
Ele ergueu a cabeça, surpreso, com uma atarantada expres-
são britânica, e mais balbuciou do que falou:
– Sorry, Mister. I don’t understand…
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Estrambótico
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– Pois é! – continuou o mestre. Nunca vi tanta ignorância.
O correto é estrambótico, com “te” de taxidérmico.
O professor Lino, como é mais conhecido, dava a vida por
essas minudências da linguagem. Esmagados pela sua sapiên-
cia de mestre emérito do bairro, os outros se calaram; apenas
o Curió, bêbado contumaz (ou será costumaz?), teve coragem
de perguntar:
– E o que significa esse tal de eston... estrambótico?
– Coisa simples: quer dizer extravagante, inusitado, escala-
fobético...
Não bastava ao mestre humilhar os pobres viventes com
seu poderoso vocabulário; costumava variar as palavras expe-
didas por seus doutos lábios em grupo de três sinônimos.
Um dia, numa de suas caminhadas, o professor quase teve
uma apoplexia. Ali estava, na fachada de um barzinho, uma
tabuleta com nada menos – em seu linguajar gramaticista –
que um pleonasmo, um solecismo e dois barbarismos:
“Aqui neste locau vende-se salchichas”.
Fora de si, avançou contra o proprietário do bar, indagando
quem fora o néscio, o capiau, o beldroegas que escrevera tal
sandice. Assustado, o homem defendeu-se da agressão tacan-
do uma garrafa de cerveja na ilustre testa do mestre. Felizmen-
te, Linotipus sobreviveu, para glória da gramática nacional.
No bar, todos lastimaram o incidente: no fundo, o profes-
sor era uma excelente pessoa. Concordo – opinou o Curió,
enrolando a língua – pena que é meio estrambótico!
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Falta de Provas
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trário. Como é que você vai provar?
Só restava ao prejudicado ficar caladinho. Às vezes, o gran-
dalhão aplicava um safanão no filho mais novo do vizinho. O
guri ficava choramingando num canto, temeroso. E aí? Cadê
a prova de que fui eu? Até prova em contrário, todo mundo é
inocente (e às vezes até com prova em contrário).
A vida foi ficando difícil para o Tuluca. Bons tempos aque-
les em que tinha vizinhança melhor selecionada. Um dia, Ca-
tarrôncio passou da conta: agarrou a própria mulher do na-
nico atrás da árvore do quintal. Foi a maior das humilhações.
E ainda dizia: agradeça que não aprecio mulher magra, sem
bumbum, senão ia ser uma festa! Hahaha! Prove que fui eu
quem apalpou a magrela! Peça uma CPI, a CPI dos amassos...
hahaha! Mande me extraditar para a Itália! Hahaha!
No outro dia, Tuluca sentou na varanda da casa com uma
latinha de cerveja na mão. Nem chegou a bebê-la. O marman-
jão surgiu, com andar pesado, bonezinho vermelho na cabeça,
e lhe arrebatou a bebida. Levantando a cabeça, fez gluglu e
esvaziou rápido seu conteúdo. Seria mais um abuso impune
nesta nação desprotegida?
Desta vez, não! Enquanto Catarrôncio estrebuchava, tor-
cendo-se de dor, como um gambá que recebeu paulada, Tulu-
quinha arremessou a latinha num bueiro, deixou-a sumir no
esgoto e falou: fui eu, sim, que coloquei veneno para rato na
cerveja, mas cadê a prova?
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“Farra do Homem”
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acena com um orçamento superfaturado, lucro meio a meio.
Se não fosse educado, o homem honesto lhe cuspiria na cara.
Adultos começam a vaiá-lo. Crianças lhe jogam pedras.
Isso faz parte da brincadeira.
O homem honesto não anda nem mais dois passos e en-
contra um credor. Se fosse outro, desviaria a trajetória, fingiria
que não estava vendo o fulano. Mas o homem honesto, não.
Ali mesmo tira o talão de cheques do bolso, pede desculpas
pelo pequeno atraso e quita o débito. Novas vaias.
Em seguida, vê-se diante de uma morena provocante, que
faz de tudo para conquistá-lo (é um teste de fidelidade). O
homem honesto atende-a com educação e respeito, mas re-
cusa de imediato as propostas sensuais que lhe são dirigidas.
Sai correndo, com o povo todo atrás de si. Uns lhe puxam os
cabelos, outros lhe rasgam as roupas.
O homem honesto tem um olhar bovino. Começa a cansar.
Aí, os participantes da brincadeira aproveitam para lhe bom-
bardear: oferecem comissões, vantagens, participações em ne-
gócios escusos, cargos bem remunerados. O homem honesto
vacila, mas não se deixa comprar.
Leitores, é preciso acabar com essa brincadeira cruel. Ho-
mem honesto também é um ser humano.
30
Funcionário – Modelo
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ço abaixo do custo. Levava na cabeça, mas a empresa alargava
sua margem de lucro.
Em pouco tempo virou chefe de departamento. Se recebesse
algo, seu salário seria um dos maiores da firma. Estava cheio
de moral para cortar benesses e vantagens dos subordinados.
A empresa crescia, e ele crescia junto. Não demorou muito,
chegou à vice-presidência. Um belo exemplo de dedicação:
nunca recebera um centavo. E começara na empresa como es-
tagiário – informava orgulhoso aos mais jovens.
Quando o conselho deliberativo quis lhe oferecer a presi-
dência, recusou. Na presidência não podia receber o mesmo
de atualmente, ou seja, nada. O conselho não abria mão, dese-
java remunerá-lo. Tinham de pensar na imagem da empresa.
Despesas de representação, jantares, moradia. “Pelo menos
um salário-mínimo, aceita?” Ele negava obstinadamente rece-
ber alguma coisa. O caso, agora, está na Justiça do Trabalho.
32
Luxúria
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errado? De que modo ofendera a Deus e aos homens?
Quando era mocinha, presenciou uma cerimônia numa
comunidade alternativa, termo genérico que abriga compor-
tamentos fora dos padrões normais. Era gente de todo tipo:
cabeludos, carecas, mulheres de batas compridas e bordadas,
centenas de piercings e tatuagens... Muitos já naquele estado
“pra lá de Bagdá”.
O líder espiritual bradava: A luxuria é nossa deusa! Todos
repetiam, de olhos arregalados, as mãos para o alto: A luxúria
é nossa deusa! Sentiu-se nas nuvens. Nunca seu nome tinha
sido literalmente tão endeusado.
Até que, uma hora, três ou quatro adeptos da seita a agarra-
ram e arrastaram para o matinho ali perto. Quando ela grita-
va, desesperada, o que vão fazer comigo? diziam: calma, irmã,
vamos praticar nossa religião.
Enquanto praticavam na pobre moça, gritavam em unísso-
no: A luxúria é nossa deusa! Não conseguiu nem explicar que
ela era a própria Luxúria, deviam respeitá-la. Desnecessário
dizer que detestou mais essa experiência religiosa.
Daí a uns meses criou barriga, passou uma gestação difícil,
cheia de traumas, e desembarrigou um piá cabeludinho. Di-
zem que a mulher sempre sabe quem é o pai da criança. Nesse
caso, acho meio difícil.
Por via das dúvidas, deu ao filho o nome de José, nada de
nome complicado. O que um nome faz a gente sofrer!
34
Na Barbearia
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atuação do time do adversário.
Tenho frequentado uma das barbearias por um bom tem-
po, mas eu e o profissional nos comunicamos muito pouco.
Deve ser porque não acompanho futebol e não entendo nada
de canários e curiós, e ele, por sua vez, não acompanha cine-
ma e literatura.
Certo dia, me falou indignado, ao mesmo tempo em que
virava a almofadinha de couro sobre a cadeira, ato praticado a
cada troca de freguês:
– Viu que espetáculo deprimente ontem à noite?
– É verdade. Acho que o Spielberg está se repetindo muito.
Bom mesmo era o John Ford – falei, entre sério e provoca-
dor.
– Que nada! Bom era o Esquerdinha. Tinha raça. Jogava
por amor à camisa.
Em um cabeleireiro unissex a conversa seria diferente. O
espetáculo deprimente poderia ser a apresentação de balé ou
o concurso de miss, em que os penteados foram feitos por um
seu rival.
Ir à barbearia é um ato de higiene mental. Não é para os
apressados e sim para quem deseja dar uma parada, esquecer
os problemas, a concorrência. Entre resmungos e risadas, nem
notamos chegar nossa vez de ser atendido.
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Na Boca do Sapo
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maiores desgraças! Duvido que lendo uma coisa daquelas, na
luz tremulante das velas, você não ficasse estarrecido, como
eu fiquei.
No final da delicada cartinha havia uma lista enorme com
os ingredientes utilizados no trabalho (como o inteligente lei-
tor deve ter percebido, tratava-se de um trabalho feito contra
mim).
Era de se ver: de uísque estrangeiro pra cima. Com certeza,
até o próprio sapo era importado.
Bondoso, pai Tartufo não cobrava nada pela sua ajuda, mas
para desfazer o trabalho eu teria de adquirir os mesmos pro-
dutos. Felizmente, para minha maior comodidade, Pai Tartu-
fo os possuía em seu estoque. Era só deixar o dinheiro. Fácil,
fácil...
Mas não pense que fiquei desesperado. Afinal de contas, eu
nem me chamo Ranulfo. Foi o nome que dei ao marcar con-
sulta, constrangido em dar meu nome verdadeiro. E para não
trazer um travesseiro velho, passei no supermercado e com-
prei um novo. Não posso entender como meu terrível inimi-
go, o malvado ou a malvada que me augurava tantas desgra-
ças, sabia que eu iria comprar justamente aquele travesseiro.
Essas coisas são inexplicáveis!
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No Tempo dos Caranguejos
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gura feminina escondida entre os arbustos. Era uma mocinha,
de shorts, as pernas roliças, corpo cheinho. O Edu gritou para
mim e o Toni, outro amigo que nos acompanhava: Vamos pe-
gar! Não julguem mal, era apenas por farra, coisa de jovens.
Os dois, então, correram atrás da moça. (Não me lembro se
também participei da brincadeira, a memória providencial-
mente me falha nesse ponto.)
A moça se embarafustou por entre as folhagens, de vez em
quando dava para ver uma nesga de sua roupa. E os dois atrás,
respingando lama, esbarrando em gravetos que se quebra-
vam.
Nisso, dão de cara com o cano de uma espingarda pica-
pau.
Era um senhor de meia-idade, provavelmente o pai da
moça. Calmamente, o velho falou, apontando a arma para o
Edu:
– Vem aqui! Vem pegar ela, se tu é homem!
O Edu era rápido de pensamento. Sem titubear, afinando a
voz, responde:
– Imagine... até dizem que sou fresco!
No susto, voltamos pra casa de saco vazio.
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No Velório
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“mão biônica”. Depois, ia explicar a ausência da professora. O
primeiro a quem dei a mão trazia a expressão triste, pesada,
combinando com o terno grosso, meio puído: mas que des-
graça! – repetia. Devia ser o viúvo.
Puxa! Como gostavam da professora, para sentir tanto sua
ausência. Assumindo o comando, bati palmas (como faziam
minhas professoras no curso primário), chamando a atenção
de todos de modo brincalhão para quebrar o gelo, o clima es-
tava pesado.
– Vamos pessoal! Por que ficar assim jururus? Ela só está
descansando um pouco. Amanhã ela volta em forma. Hoje vai
ser moleza, todo mundo vai se divertir.
Uns olhavam para os outros, ressabiados. Quem seria esse
camarada? Quando entrei no galpão, vi um monte de senho-
ras, com roupas pretas de bolinhas, sentadas nos cantos, com
ar compungido. No meio do salão, um caixão de madeira cla-
ra, cercado de velas. Todo mundo de olho pregado em mim.
Que vexame, meu Deus!
Não tive outro jeito: aproximei-me do caixão abrindo os
braços, o jeitão compenetrado: Venham irmãos! Vamos fazer
uma prece por esta irmãzinha!
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O Dia de Azar do Nequinho
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Contabilidade, o conhecido Contador. Foi nesse que o Nequi-
nho se matriculou.
O professor de Educação Moral e Cívica era um militar
reformado, que havia sido nomeado titular da Delegacia de
Polícia, o que significava naquele tempo poder absoluto na ci-
dadezinha.
Não me perguntem o motivo, mas o novo delegado recebeu
na cidade o apelido de Varejão. Quando tomou conhecimento
do singelo epíteto, ficou possesso. Disse que “prendia e arre-
bentava” quem ousasse pronunciá-lo em sua frente. Por isso,
os “corajosos” cidadãos somente o mencionavam quando se
encontrava ausente, e olhando cuidadosamente para todos os
lados.
Mas o nosso Nequinho estava distante de tais coisas mun-
danas e ignorava completamente esse fato. Longe do militar,
seus colegas de aula dialogavam: Amanhã tem aula com o Va-
rejão? Você fez o trabalho do Varejão?
Durante uma das aulas do tal professor, o Nequinho se viu
com o estômago revirando, uma urgência danada de “ir fora”.
Aguentou o que pôde, não ficava bem interromper as expla-
nações do mestre. Mas não havia jeito. Por isso, quando ele
fez pausa para escrever na lousa, Nequinho chamou timida-
mente:
– Professor Varejão!!!
A classe toda imobilizou-se. Silêncio completo! Não vou
descrever as nuances de cores que perpassaram a face do mi-
litar. Sei que levantou o espantado Nequinho pelas orelhas e o
conduziu até fora da sala. E o Nequinho foi “fora” ali mesmo.
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O Estranho Amigo
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Recebendo aquele bafo de bebida na cara, o pobre réptil aca-
bou mesmo por se iniciar na arte do alcoolismo. Quando saíra
de casa era um sapo; agora já não sabia mais. Aquele sujeito
estranho na sua frente começava a girar. Tentou coaxar. Sua
voz saiu pastosa. E aquela estrofe gozada no seu ouvido:
– Ah, tu tá bêbado, bichinho? – e o Chico esfregava o rosto
na cara do sapo, num estranho “tête a tête”.
Ah! Aquele bafo! Como entorpecia os sentidos! Ele até es-
tava simpatizando com esse interlocutor tão romântico. Pela
noite adentro coaxaram juntos, rosto a rosto (ou cara a cara),
abraçados e trôpegos.
Depois, uma alma pérfida os separou. Chico, agarrado pe-
los braços, ainda esperneava; suas mãos, aos poucos, iam es-
corregando pelas coxas viscosas do sapo. A porta se fechou e
o pobre animal ficou sozinho na escuridão imensa, os olhos
marejados e a voz embargada.
46
O Funcionário Ideal
47
pequenos lucros em transações... dizem que seu nome abria
todas as portas.
Quando se instalou na cidade uma nova empresa, anda-
va com o caixa meio baixo para sustentar seus “uisquinhos”
e resolveu reivindicar o cargo de relações públicas, ninguém
melhor do que ele para isso. Ia exigir mordomias, veículo alu-
gado, cartão corporativo, viagens de avião...
Na entrevista com o diretor da empresa, este lhe confiden-
ciou que estavam com problemas para liberar um maquinário
importado. Problemas na alfândega? Deixa comigo. No ato,
passou a mão no telefone do diretor, discou um número e foi
direto:
– Lelinho, aqui é o Sorô! Me quebra um galho (e explicou o
assunto). O quê? Quinze dias? É muito tempo!
Teve, então, a promessa de que numa semana tudo seria
resolvido. Mais algumas ligações e resolveu outros problemi-
nhas da empresa. Era, com certeza, o funcionário ideal.
Surpreso, o entrevistador falou: você conhece também
o diretor da empresa de telefone? Claro que conhecia, eram
amigos de pescaria.
– Então pede para agilizarem o conserto deste telefone, que
está há três dias mudo!
Grande Soromenho! Perdeu o emprego, mas não a pose.
48
O homem que assassinou a si mesmo
49
mão do que irá tratar, corre-se o risco de ficar empacado no
meio da obra.
Precisava agora de um modelo, como alguns pintores, para
descrever meu personagem. Quem iria me servir de modelo?
Repassei as pessoas que moravam em minha rua: o seu Carlos
Aranha? Não, não iria assassinar-se, estava bem com seu bar-
co e seu joguinho de canastra. Seu Raul Osório? Estava muito
velho, precisava ser mais moço. Seu Vadinho Zattar? Não, com
aquele jeitão ladino, a piteira nos lábios, não iria fazer isso.
Aí surgiu o segundo (e definitivo) problema: como iria fazer
alguém assassinar-se a si mesmo? Diz o dicionário que “assas-
sinar” significa matar alguém traiçoeiramente. Quer dizer, o
cara tinha que se matar de surpresa. Quando menos estivesse
esperando, pimba! metia um tiro traiçoeiro nos miolos.
Olhem a repercussão que a obra iria ter nos tribunais. Ma-
gistrados perdendo horas para discutir até que ponto seria as-
sassinato e não suicídio. Como não sou de dificultar a vida
de ninguém, muito menos de nossos atarefados juízes, preferi
condenar ao olvido (revisor, não escreva ouvido!) essa impor-
tante peça literária.
50
O Homem Sem Cabeça
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– Ma como, bom Dio? Se o cara não tinha cabeça!
– Não se preocupe com isso. Também tenho em casa dois
jovens sem cabeça e não saio à rua apavorado.
– É sério, doutor. E se ele volta lá em casa?
– Tá bom! Ele lhe falou alguma coisa? Fez ameaças?
– Evidente que não.
Então o policial expediu ordem para a “captura de um in-
divíduo acéfalo, que estava apavorando a população”. A popu-
lação aí mesmo é que ficou apavorada. Viam o sem cabeça em
toda parte.
Coisas que nunca aconteceram neste país – conhecido e
invejado em todo o mundo pela ética e decência de sua clas-
se política, pela honestidade de muitos de seus empresários e
empreiteiros, pela justiça de sua distribuição de renda – passa-
ram a acontecer de maneira constante e acintosa. Tudo natu-
ralmente por culpa exclusiva do tal “indivíduo acéfalo”.
Desfalque em empresas? Coisa do sem cabeça. Moça que
engravidava? Olha ele aí! Superfaturamento em obras? Desvio
de dinheiro público? Contratos públicos sem licitação? Esque-
mas de lavagem de dinheiro? Forjaram-se roubos para aboca-
nhar o dinheiro do seguro. Praticaram-se atos de vingança.
Muita gente enriqueceu da noite pro dia. Mesmo apanhados
em flagrante, filmados, gravados, os “supostos” infratores ba-
tiam o pé, juravam inocência. Culpa de quem? Adivinhe, sa-
gaz leitor.
E o pobre indivíduo acéfalo, causador de toda essa revira-
volta nos costumes do país? Ninguém o viu. Não se sabe ao
certo se ao menos existia. Sabe, o senhor Prepúcio, digo, Pet-
rúquio não era muito bom da cabeça...
52
O mais feio da cidade
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para tão grande honraria. Por via das dúvidas, o pessoal do
circo arrumou mais um candidato: o Grilo, figura popular,
meio maluquinho, que perambulava pelas ruas sem moradia
fixa.
No grande dia, o circo lotado, o apresentador finalmente
falou, com grande lábia:
– Algumas pessoas foram presenteadas por Deus com a
beleza. Mas Deus, em sua sabedoria, para contrabalançar,
criou outras pessoas que pelos padrões humanos não se po-
dem considerar bonitas. Essas não devem ser desprezadas e
sim valorizadas, pois são pessoas especiais (falou muito mais
coisas, para criar suspense, mas não cabe tudo neste espaço).
Dito isso, temos o grande prazer de apresentar o vencedor de
nosso concurso, o homem mais feio da cidade! Tchan, tchan,
tchan...
E quem aparece no palco, belo e saltitante? O Grilo. O apre-
sentador grita: Paaalmas! Palmas para o mais feio da cidade!
O Grilo até que não era tão feio; com um bom banho e
umas roupas decentes virava doutor. Evidente que nessas coi-
sas existem influências econômicas, alguém mexeu os pauzi-
nhos. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco. Coisas de
circo...
54
O Sufoco do Papai Noel
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em seu braço. Quando largou a arma, apliquei uma gravata.
Minha barba desgrudou, o travesseiro saiu do lugar.
Era um indivíduo magro, baixinho. Quando o larguei, pen-
durou um olhar assustado na minha frente e implorou:
– Não me leve preso, moço, não sou ladrão!
– Ah, é? E o que você estava fazendo, treinando para um
filme de faroeste?
– Minha filha menor está doente. Precisava de dinheiro
para comprar remédio.
– Desculpa esfarrapada. Por que não procurou um posto
de saúde?
– Hoje está tudo fechado.
Palavras são enganadoras, não devemos nos fiar nelas, mas
o jeitão do homem, a tristeza no fundo de seu olhar, come-
çaram a amolecer este coração de Papai Noel. Ele propôs me
levar até sua casa para conferir o que havia me dito. Enfiamos
por um beco sem calçamento. O revólver, esqueci de dizer,
estava emperrado, ele o havia achado num monte de ferro ve-
lho. Chegamos diante de uma casinha triste, sem reboco; um
quintalzinho na frente, com pé de mamão e uma leira com
cebolinha e hortelã.
Parei diante da casa e me senti constrangido. Acho que foi
por causa da hortelã, lembrei dos quibes que minha mãe fazia.
Quase sem pensar, tirei o maço de dinheiro do bolso, o lucro
daquela noite, e o entreguei ao homem:
– Diga à sua filha que Papai Noel esteve aqui!
Grande efeito para o final de um conto de Natal! Parece
uma daquelas histórias melosas que cansamos de receber pela
internet. Mas eu não tinha coisa melhor sobre o tema.
56
O Terrorista
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cho muito original, mas falar ou escrever sobre explosão na-
quele tempo já era caso de polícia. Além disso, sua aparência
não ajudava, tinha o rosto moreno pelo sol das caminhadas e
um vasto bigode negro.
– Eu sabia! Participante de atentado terrorista. Segura esse
Bin Laden, enquanto deciframos o resto da mensagem.
Por via de dúvidas, examinaram com cuidado a esferográ-
fica, podia esconder um microdetonador de explosivos. Mais
adiante, no papel, havia transcrito um verso:
O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
58
Os Fantasmas do Casarão
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tes ali abandonados. O matraquear da máquina Singer na sala
frontal. O velho rádio Philips sintonizado na Rádio Nacional,
de onde vinham encher as tardes as vozes consagradas dos
astros e estrelas da música.
Mas não só esses fantasmas habitam o casarão. O fantasma
do bisavô não quer abandonar o local. O prédio construído
com suor e sangue dos escravos lhe pertence para todo o sem-
pre. Como seu colega, o fantasma de Canterville, não vê com
bons olhos (se é que fantasma possui olhos) os que ainda tei-
mam ali ficar.
E não é somente ele que vagueia pelos corredores e quartos,
exortando os mortais a sumirem de seus domínios. Dizem que
no século 17 o local foi ancoradouro de piratas, um dos quais
deixou enterrado seu tesouro entre as pedras que mais tarde
foram detonadas para se erguer o casarão.
O capitão deixou um de seus comandados encarregado de
proteger seu tesouro. Os anos se passaram e o dedicado pira-
ta continuou – mesmo sem saber que sua forma terrena não
mais existia – a cumprir a missão que lhe foi confiada. Nin-
guém o informou de que seu corpo voltou ao pó. Dali só se
retira com ordem expressa de seu chefe.
O tesouro, se existia, ficou soterrado debaixo dos alicerces.
Quem se habilitará a procurá-lo, enfrentando a ira do velho e
a ferocidade do pirata?
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Papagaio de Anedota
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– Tive crista de galo. As franguinhas adoravam.
– Possui boa audição? Papagaio...
– Já sei, já sei, papagaio de anedota tem obrigação de escu-
tar e repetir toda safadeza falada ou pensada perto dele.
Clodoaldo sentia que estava se saindo bem. Precisava do
emprego, vinha fugido de outro estado, onde, no carnaval,
confundira uma socialite fantasiada de Ave do Paraíso com
uma penosa que vinha paquerando. O marido da fulana era
proprietário de um frigorífico. Olha o perigo de ter virado
matéria prima.
Clodoaldo era ainda solteiro, devido ao sucesso com as pe-
nosas de todo tipo. Eta vida boa! Pra que casar? Lembrou da
patinha gordota e da ema anoréxica.
O entrevistador voltou à carga:
– Tem alguém a quem avisar, no caso de acidentes em ser-
viço? Algo como pescoço torcido, penas arrancadas...
– Uma velhinha de Curitiba, que me criou desde pequeno.
Foi com quem aprendi os palavrões mais cabeludos, princi-
palmente quando escondia sua dentadura dentro do bacio.
Grande! Essa tinha sido na caçapa. Sacanear a velhinha, isso
ia repercutir bem pra caramba! O emprego estava no papo.
O entrevistador fez cara de sério, fingiu que estava pensan-
do, mas era o único candidato até o momento. E tinha jeito de
sem-vergonha.
– Está aprovado – disse finalmente o homem. Pode ir. Com-
pareça segunda-feira na casa das duas solteironas, local de sua
estreia.
62
Pequenas Batalhas
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capa...hum...capadoque.
Quando foi levar alguns papéis para o chefe assinar, a se-
cretária disse-lhe que um tal doutor Rufião o chamara de ca-
pisboque (devia ser isso!).
– Capisboque é a mãe dele! Vou dizer-lhe isto na cara, não
por telefone.
Olhando a quantidade de papéis em sua mesa, o empresá-
rio considerou: é, de momento está difícil! Não consigo nem
me achar nesta papelada.
– Faça um favor: ligue para aquele sacripanta e repita o que
falei – copidesque é a mãe dele!
A moça achou isso meio chato, mas preferiu não arriscar
seu emprego:
– Alô! Consultório do doutor Rufião? É a secretária do se-
nhor Félix. O doutor Rufião está atendendo? Tá bom, vou lar-
gar esta batata quente agora mesmo. Diz pra ele, de parte do
senhor Félix, que cachimbeque é a mãe!
– A mãe de quem? – foi a resposta.
– A mãe do doutor! Qual é? Pensou que fosse a sua? – re-
trucou a outra, furiosa.
– Minha mãe já é falecida. E nunca foi cachimbeque, ouviu
sirigaita? Cachimbeque é você, que deve andar de conchavo
com esse seu chefe.
– Pode parar! Não sou de ficar mandando recadinhos por
telefone, não! Comigo é mais embaixo. Se tiver coragem repe-
te que sou pechimbeque.
À tardinha, depois do expediente, as duas se encontraram
diante da pracinha. O que saiu de tapa e puxão de cabelos,
nem lhe conto...
64
Quem Era o Ganimedes?
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Fui entrando porta adentro com a liberdade de um falso
sobrinho. Sem jeito, parei na frente da velha, que bordava um
diminuto casaco em sua poltrona preferida:
– Tia, tenho uma notícia ruim...
A velha se empertigou na poltrona, o olhar surpreso. Apro-
veitei para entrar de macio:
– O Ganimedes, tia. Deus levou.
Tia Lina parece que diminuiu de tamanho dentro da pol-
trona:
– O Ga... Ganimedes?
– Sim, tia – e abracei-a consolando sua enorme dor. A vida
é assim mesmo, tia. Vai chegar também a nossa vez (e claro
que ela iria primeiro).
A velha emergiu quase sufocada do abraço solidário que eu
lhe aplicara e perguntou-me:
– Mas quem é o Ganimedes?
Tia Lina conhecia o Ganimedes tanto quanto eu. Aí me
veio uma ideia para tirar a limpo o assunto. Disquei para o Zé
Eduardo, amigão de infância, lá no Rio de Janeiro.
–Ei, Zé, você lembra quem era o Ganimedes?
– Ganimedes... deixa eu ver...ah, era o nome do Gaveta.
Estudamos na mesma turma no primário. A Irmã Ismália cos-
tumava dizer, com sua voz autoritária: Seu Ganimedes, já de
castigo!
Por pouco não perdi o último adeus ao amigo. Mas, tam-
bém, por que não disseram logo que o diabo do Ganimedes
era o Gaveta?
66
Razões Para Mudar de Endereço
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duas ou três vezes, depois fica com preguiça de sair de casa;
também é difícil encontrar vaga para estacionar o carro. Para
complicar, a maioria dos filmes lançados parece feita especial-
mente para crianças e adultos imbecilizados. Resultado: você
prefere pegar as “novidades” numa locadora.
Há uma academia a poucos metros de casa. Vou poder
entrar em forma, fazer natação. Vocês vão ver, vou virar um
gurizão. Engano. Você só vai poder frequentar a academia à
noite, no horário do jornal nacional e dos jogos do campeona-
to. Depois, esse troço de ir lá, colocar calção de banho, entrar
debaixo do chuveiro, dar umas nadadas, entrar de novo debai-
xo do chuveiro, trocar de roupa, etc., etc. é muito incômodo.
Esqueça.
Bom, ali perto há uma escola de segundo grau, dizem que a
melhor da cidade. Professores todos com mestrado. O garoto
vai ter um bom estudo, ficar preparado para o vestibular da-
qui a dois anos. É cara, mas vale a pena.
Engano novamente. O garoto não consegue acompanhar o
ritmo de estudo, os trabalhos diários, as provas semanais. A
disciplina é rigorosa. Levou advertência por conversar com
o colega a seu lado. Antes que seu filho se torne abichornado
(calma, leitor, não faça julgamento antes de olhar no dicioná-
rio) e que perca o ano, pelas notas baixas, é melhor “pedir pra
sair”, solicitar transferência para outra escola menos compe-
tente (e muito mais distante).
Não é fácil, não é? Mas se o emprego é bom, faça valer seu
direito de chefe da família e vá em frente.
68
Salário Mínimo
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A coisa não parou por aí, não. Planos de saúde, consórcios
funerários (pague hoje seu caixão e se enterre amanhã com
toda comodidade). Recebeu até telefonemas de belas jovens,
candidatas a modelo, carecendo de um protetor para facilitar-
lhes o início da carreira. Uma delas pedia passagem e estadia
em Milão. Os genros acompanhavam atentos esse vaivém de
interessados em abocanhar o expressivo aumento do salário
do velhinho. Será que sobraria alguma coisa para eles?
Uns parentes distantes telefonaram, a cobrar, de Goiânia,
avisando que viriam passar umas semaninhas em sua casa.
Não precisava muito luxo.
Curiosos em frente à casa perguntavam: o que houve?
– Parece que um sortudo ganhou sozinho o prêmio da me-
gassena acumulada.
Mas o pior foi a sondagem do Imposto de Renda. Exigiam
todas as declarações, a partir de 1990, quebra do sigilo das
contas bancárias (o velhinho nem sabia o que era isso!), lista
de cartões de crédito, participações em empresas de grande
porte, extrato de remessas de dólares para o exterior.
O velhinho passou a ficar trêmulo, sem apetite, os nervos
estourados. Todos queriam explorá-lo, prensá-lo, fazer exi-
gências. Onde estava sua tranquilidade de aposentado? En-
frentando a oposição da família, tomou uma decisão: escreveu
uma carta à Presidenta desistindo do substancial aumento de
seu salário.
70
Sonhos ou Pesadelos?
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ferença entre sonho e vida real. Aí vem o bom: se você con-
seguir se livrar da timidez nos sonhos, ficará livre também na
realidade, entendeu?
O amigo orientou-o a praticar autossugestão a fim de reco-
nhecer quando estivesse apenas sonhando, aí soltar a franga,
fazer o que lhe desse na telha, sem medo de recriminações.
Após algum treino, o sujeito já conseguia fazer isso, a princí-
pio timidamente, depois com toda força. O que aprontava nos
sonhos não era brincadeira! Precisava exercitar-se.
Um dia, num desses sonhos, viu-se no meio de uma sole-
nidade, inauguração não sei de quê. Resolveu bagunçar, soltar
todas as amarras. Na hora em que a autoridade de plantão foi
fazer discurso, subiu numa mesa e gritou: sai daí, corrupto!
Todos cravaram o olho nele, abestalhados. E continuou:
– Isso é obra superfaturada, quanto é que tu levou nisso?
Quando o assessor da autoridade quis abrir a boca para re-
trucar, nem lhe deu tempo: vai pra casa, mané. Vai cuidar da
gordalhufa da tua mulher, aquela marafona (era tímido, mas
tinha um vocabulário!).
O homem ficou roxo, partiu furioso pra cima dele. Foi aí
que nosso amigo se deu conta de que aquilo não era sonho.
72
Tia Lucrecinha
73
sinha antiga cheirando a mofo, herança de família, com um
quintal nos fundos, onde plantava cebolinha e hortelã.
Mas – não se admire, leitor, o ser humano é imprevisível –
chegando perto dos setenta anos embeiçou-se por um rapaz
de vinte e poucos. Não vou dizer que o rapaz em questão era
um surfista malhadão, alto, de olhos azuis. Era o filho de uma
comadre, que havia vindo do interior, raquítico, desconfio que
com pilha de menos no cérebro.
Chegaram a casar, ela de vestido branco discreto, ele de-
sajeitado no terno emprestado do cunhado (que só o tinha
utilizado uma vez), com direito a mãos dadas e beijo no canti-
nho da boca. Não sei se alguém se lembra, o estranho casal foi
objeto de uma reportagem no Fantástico.
O cunhado não era nenhum latifundiário, mas dizia com
toda “propriedade”: isso não vai dar certo!
Não foi um casamento por interesse, o rapaz era tão pobre
quanto ela. Ele lhe obedecia em tudo, cegamente, e tia Lucre-
cinha não ficava chateada com essa situação. Ia fazer compras,
regava as plantas, enchia a caixa d’água, de bomba manual,
varria a casa. E ela, refestelada numa poltrona, dizia: filhinho,
estou com sede, e lá corria ele a preparar um copo de limona-
da. Filhinho, amanheci ruim da coluna, e lá vinha ele massa-
gear-lhe as costas.
Um dia, Juclenildo (esse era o nome do infeliz) tentou se
suicidar, tomando um copo de suco com formicida. Desco-
briu que tia Lucrecinha o estava traindo com outro homem.
Quem pode explicar isso?
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Um Fantasma Discreto
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Um dia, recebeu convite para uma festa à fantasia, uma es-
pécie de Halloween, organizada pelas jovens da cidade. Recu-
sou. Mas à noitinha, diante da solidão do sábado, teve vonta-
de de ir, só não tinha fantasia. Pegou um lençol do hotel, fez
dois furos para os olhos e estava pronta a fantasia de fantasma.
Nem chegariam a saber que esteve na tal festa.
Divertiu-se naquela noite. Passou a mão boba nas moças,
participou de passeata de mascarados. Pela madrugada, re-
solveu ir embora. Não sei se pelos cubas que tomara ou para
manter-se incógnito, foi fantasiado para o hotel. As ruas esta-
vam desertas. Quando subia a escada - discretamente, é claro
– , ouviu um barulho – ploft! – e viu um careca estatelado no
chão.
Foi ao quarto, despiu a fantasia e voltou também discre-
tamente ao local do sinistro. O hóspede se levantava ainda
branco como... (como um lençol? Não! Por favor, esqueçam
essa história de lençol). O hotel quase criou fama de mal-as-
sombrado. O Mineiro, dali a meses, voltou para sua terra a fim
de casar. O danado era mesmo noivo.
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Venga Toro!
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malvados: na falta de touro, uma das vacas podia servir.
Tudo pronto, os toureiros se acercaram da vaca, sacudindo
um pano vermelho:
– Venga toro! Venga toro!
Mas o “toro” não se mexia. Olhava placidamente para to-
dos, abancado em seu lugar como um marajá. Os moleques
se aproximavam. Sacudiam freneticamente o pano. Um deles
chegou por trás da vaquinha, que naquele momento resolveu
aliviar-se – ploft! – largando uma espécie de barro nos pés do
atrevido.
Foi aí que os outros avançaram e se grudaram nos chifres
do animal, como fazem os caubóis, forçando sua cabeça para
baixo. A vaca mugiu, desesperada, e se arriou no chão, de
onde não mais conseguia se erguer. A coitada estava grávida;
naquele dia teve um aborto, perdeu o filhote e acabou mor-
rendo.
Como dizia um colunista social, em sociedade tudo se sabe;
em cidade pequena, também: no dia seguinte, estava nas mãos
do delegado uma lista com todos os participantes da trágica
tourada. Como a vaca era pobre, o caso rendeu quando muito
uns puxões de orelha.
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Viagem a Valões
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eram efetuadas num salão separado do hotel. A “casinha” fica-
va também fora e uma enorme quantidade de moscas voejava
ao seu redor. Minha mãe, então, perguntou ao hoteleiro:
– Pelo menos, tem uma hora melhor para ir ao banheiro
sem essas moscas incomodarem?
O homem coçou o queixo e falou: olha dona, é perferivel a
senhora fazer as necessidades na horinha do armoço.
– Ótimo! E posso saber por quê?
– Porque nessa hora as moscas vão tudo pra cozinha!
Devia ser brincadeira dele, as moscas não incomodavam
tanto. E a comida era ótima, caseira, mas bem variada, tinha
até pastéis, que eu adorava.
Ali perto havia uma gangue de garotos que começaram a
nos estranhar. Um dia, resolveram nos atirar tomates. Sem va-
cilar, juntamos alguns dos tomates e devolvemos a “gentileza”
deles (claro, esse alimento não devia estar com o preço atual).
No outro dia, tivemos uma surpresa: os garotos vieram nos
convidar para uma “pelada”. Fizemos então amizade com os
da gangue, era tudo gente boa. Quem sabe, eles é que estives-
sem receosos de nós, meninos da cidade.
Passamos um mês em Valões, jogando bola, trocando gibis
e caçando passarinhos de setra, tudo o que um garoto quer,
porém minha mãe, coitada, não conseguiu se curar da aler-
gia.
80
Vida de Cão
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mensal, incluído o vale-transporte.
O cuidado com Pâmela agora era maior, pois se achava no
cio. Estava sendo guardada para cruzamento com o magnífico
Closeau de Armagnac (lê-se clozô de armanhaque), perten-
cente ao embaixador francês. Dona Eulália, viúva riquíssima,
sonhava com a descendência nobre de Pâmela.
Certo dia, seu Raimundo faltou ao serviço, o filho menor
amanheceu com dor no peito, febre de lascar. Teve que en-
frentar fila no hospital do INSS. Nesse dia, a pobre Pâmela
ficou sem banho de sais. Por tal displicência e falta de respon-
sabilidade, seu Raimundo foi despedido por justa causa. De
temperamento calmo, não reclamou. Pediu para se despedir
da cadelinha. Aproveitando um descuido do segurança, saiu
levando Pâmela no colo.
Fora do portão, um bando de vira-latas latia alvoroçado,
atraído pelo odor da cadela no cio – que nem as essências
francesas disfarçavam. Eram cães de vários tipos, um bagua-
lão malhado, um baixotinho amarelo, que estraçalhava sacos
de lixo, um pretinho serelepe e um guapequinha cheio de pe-
reba.
Foi com imensa pena que seu Raimundo largou a cadelinha
ingênua e indefesa no meio daqueles cães desprovidos de des-
cendência nobre, simples gentalha. O resto, nem lhes conto...
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Admirador secreto
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Um dia – nem acreditei – o locutor do programa anunciou:
agora vamos ler um belo texto enviado por nosso ouvinte de
São Francisco do Sul, de pseudônimo... (não me lembro qual
foi o pseudônimo que escolhi). Colocou uma suave música
de fundo. Eu estava em meu quarto, ao lado da sala do rádio,
na qual se encontravam minha mãe e a tia, que se dedicavam
a costurar. Droga! Logo agora! Não queria que elas descon-
fiassem que era eu o citado “nosso ouvinte de São Francisco”.
Que vexame! Colei os ouvidos na parede, mas com a conversa
delas e o barulho de duas máquinas Singer, não pude saborear
esse momento de glória.
Para não desperdiçar os textos que elaborava e ao mesmo
tempo me divertir um pouco, inventava cartas românticas, na
mesma linguagem gongórica, esdrúxula, e as enviava anoni-
mamente a algumas moças da cidade. Se uma delas passava
por mim naquele dia, fosse bonita ou um verdadeiro trubufu,
eu dizia comigo: é esta mesmo! Nada de preconceito. Para as
bonitas, era uma homenagem; para as feias, um ato de carida-
de...
Ficava imaginando o que pensariam ao recebê-las. Acho
que algumas teriam até dificuldade em decifrar aquela lingua-
gem estapafúrdia, com períodos intermináveis, pela qual me
penitencio até hoje; podiam muito bem achar que as estava
ofendendo.
Mesmo assim, nunca souberam quem era seu tímido “ad-
mirador secreto”. Mas deviam sentir-se poderosas.
84
Bom para a Tosse
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é mais possível disfarçar a voz e dizer que é o seu filho. Só há
um remédio, simule um ataque de tosse. Entre duas tossidas,
peça desculpas ao credor, sugira que telefone mais tarde. Cui-
de dessa tosse – dirá ele, fingindo-se preocupado.
Tenho uma tossezinha irritante há anos. A tosse era uma
companhia, quase um ente querido. Apesar disso, resolvi dar
um jeito nela. Procurei um especialista na capital. Me deram,
então, um questionário para responder. O questionário devas-
sava a vida de minha pobre tosse, queria saber tudo, até quem
tinha sido a bisavó da tosse.
Depois, umas moças me fizeram todo tipo de exame, só
faltou aquele que muitos machistas juram que nunca irão fa-
zer. Sabe, aquele do dedão. Recebi a receita e uma conta meio
salgada, não vi nem sombra do tal especialista. Não me con-
formei. “Trouxe minha tosse de longe, e o médico nem viu a
cara dela. Exijo que pelo menos me ouça tossir.”
– Pra quê? – responderam as moças. Sua tosse é igual a
muitas outras.
– A minha não! A minha é de estimação, tem personalida-
de própria.
Não adiantou. O médico detestava tosse, dava o diagnósti-
co pelo questionário.
Joguei a receita no lixo. Que fossem fazer questionário da
tosse da mãe. E continuei com a minha, talvez pelo resto da
vida.
86
Carta Pedindo Emprego
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Vocês já devem saber. Revirei meus velhos cadernos e con-
segui achar o famoso texto Agora eu entendia como eram
úteis os bons exemplos. Como era mesmo aquela frase em la-
tim que o professor Utópicus usava para ilustrar esta situação?
“Mens sana...” não, não era essa.
Separei algumas folhas de papel e iniciei deste modo (coi-
tados dos outros candidatos!): “Ó, vós, que tendes em mão
esta pobre missiva!” Chumbo grosso! E isso foi só o começo.
Depois, o texto foi tomando corpo, mais profundo, abordan-
do importantes questões filosóficas da antiguidade clássica e
do Renascimento, questionando teorias genéticas e antropo-
lógicas. Isto sem falar na abundante reminiscência histórica
e na citação de famosos autores de nossa literatura. Por fim, o
golpe final, a transcrição de um longo trecho da Bíblia.
Foram dez páginas datilografadas na velha Remington de
meu pai. Somente uma coisinha acrescentei ao substancial
texto do Astolfo: sem mais para o momento, atenciosamente.
Quem sabe essa minha intromissão tenha aborrecido o di-
retor, pois não fui admitido no emprego. Sabem quem conse-
guiu a vaga? O Dico Fumeta, o último aluno de nossa classe.
O professor Utópicus ia morrer de desilusão!
88
Central de Reclamações
89
o lado da manteiga para cima. É fácil: coloque manteiga nos
dois lados, assim um lado sempre cairá com a manteiga para
cima. Algo mais?
Boa tarde, senhor! Qual sua queixa? Comprou um papa-
gaio e o danado passa o dia todo só recitando orações? O se-
nhor já experimentou dar-lhe um beliscão no pescoço? E o
que ele falou? Valha-me Deus? Então o caso é grave. Deve ser
aquele que foi criado num convento. Vamos lhe mandar em-
prestado um outro bichinho que foi criado numa barbearia.
Deixe junto do seu e garanto que depois de um mês ele estará
discutindo futebol, falando de mulheres e fofocando sobre a
vizinhança.
Sim, minha senhora, é aqui mesmo. Traga o seu pepino que
nós despepinamos. Qual é a queixa? É contra a indústria far-
macêutica. Sei, a senhora sofre há vinte anos de dor de cabeça,
desde que seu marido a deixou. (Depois de quase uma hora):
a senhora já me contou toda a sua vida e os seus sofrimentos,
peço que me diga qual a sua queixa. Comprou um remédio
para sua dor de cabeça. O remédio está surtindo efeito, mas
o quê? Está lhe fazendo crescer pelo no rosto. Só agora o pelo
já cresceu uns vinte centímetros; parece mais a mulher barba-
da do circo. A senhora verificou na bula os efeitos colaterais?
Será que não adquiriu por engano um tônico capilar? Olha, se
o remédio está tendo efeito é bom não descartar. Vamos pro-
videnciar para a empresa lhe mandar uma navalha. A Central
de Reclamações agradece. Boa noite!
90
Como acreditar
nos contos de fadas?
91
E o patinho feio? Delimite o grau de feiura – dirá o jovem.
Mais feio do que o ET (antigo participante do programa do
Sílvio Santos), do que o Shrek? Não, na realidade o patinho
nem era feio. Ele assim se achava, de acordo com os parâme-
tros de seu meio. Questão de baixa auto-estima, entende? E
ele não procurou um psicoterapeuta?
Difícil também é explicar por que a Bela Adormecida en-
trou em estado de coma por tanto tempo. Seria choque ana-
filático? Contaminação hospitalar? Ou overdose de cocaína?
Caso de risinhos disfarçados da criança é contar que a Branca
de Neve vivia inocentemente, numa boa, com sete velhinhos
que nunca viam mulher. Seria falta de Viagra? Ou porque eles
eram pobres (apesar de explorarem uma mina de diamantes)?
Queria ver se fossem cantores de pagode ou jogadores de fute-
bol. Ou até mesmo, pela idade deles, participantes dos Rolling
Stones.
E como explicar por que Chapeuzinho Vermelho não pro-
cessava o lobo por assédio sexual? Ia ganhar uma nota. E será
que o lobo tinha mesmo tudo grande? Vovozinha, pra que esta
barraca tããão grande? É, amigos, é mais fácil mandar as crian-
ças ligarem a TV e assistirem às reprises do Harry Potter.
92
Crítico de sucesso
93
sou a ler os textos, cada palavra difícil. Precisaria de outro crí-
tico para “traduzir“.
A ideia foi da mulher: por que ele não escrevia também
para uma revista. Ela conhecia um editor importante (não
disse, lógico, o “quanto” o havia conhecido).
Foi aí que o Xexéu teve a coragem de se tornar crítico líte-
rário. Acho que pelo desespero. Não lia os livros, coisa nenhu-
ma. Se era um volume grosso, iniciava chamando de obra de
extenso fôlego. Depois desfiava frases e expressões tiradas dos
arquivos do finado. Só tinha de ter o cuidado de não ser desfa-
vorável à obra; assim o autor ficava satisfeito, os editores idem,
e os leitores corriam a comprar (na verdade, às vezes, ele mes-
mo não sabia se estava comentando contra ou a favor).
Quando um livro era considerado difícil, os elogios eram
maiores; livro que todo leitor entende não pode ser bom. Ah,
ia me esquecendo: adotou o nome fictício de Juan Checheo de
Corominas. Acho que assenta bem para um crítico literário.
Só uma vez alguém contestou sua crítica, um tal Valdés
Alabastro y Cantinflón, isso lá é nome de gente? Havia escrito
sobre um novo autor: “explora um universo metafísico lique-
feito, comparável à obra do grande Carlos Zéfiro”. Seu oponen-
te não gostou da comparação. Ora – escreveu ele – comparar
um novato com Carlos Zéfiro, um dos expoentes da literatura
na Espanha!
Para quem não sabe, o nosso Carlos Zéfiro foi o autor dos
antigos “catecismos”, revistinhas de sacanagem. Gozação do
Xexéu, coisa de francisquense!
94
Feio, porém bonito
95
agora. Como já dizia o filósofo: o coração tem razões que a
própria razão desconhece (desculpe, leitor, o lugar-comum).
Esperava-o na porta da escola, buscando um olhar, um
cumprimento. As amigas iam lhe dar recados, e ele as repelia.
Tornou-se mais arredio, trancou-se em casa. Valdirene telefo-
nava, aflita; ele chegou a desligar na sua cara. Sou feio mas não
sou palhaço. Ouviu dizer que ela sofreu com isso, chorou na
frente das amigas. Ah! Se fosse verdade!
Os amigos, invejosos, passaram a repreendê-lo. Está fican-
do maluco, cara? Se a gatinha gosta de carne de terceira, de
filé de orangotango, que fazer? (por aí se vê como os próprios
amigos o consideravam) Isto só acontece uma vez em um mi-
lhão. Vai lá, você venceu.
Mas ele, nada. Na cabeça não entrava tamanho absurdo: a
Bela e a Fera, esse romance só mesmo em historinha infantil.
Estava bem, isto é, mal assim. Pra que piorar as coisas?
Até que um dia, triste dia, o major foi transferido para o
Nordeste e Valdirene se foi. Deixou-lhe um bilhete perfuma-
do: vou embora sofrendo, não quiseste meu amor... Ele tam-
bém sofreu com a dúvida. Com o tempo, passou a acreditar.
Podia ter sido, por que não? E foi feliz, ganhou uma recorda-
ção de amor, algo de encher a vida de qualquer um.
96
A Repulsiva Mulher Gorila
97
nesta semana, teremos a sensacional estreia do Gran Circo
Universal Galhardo, pela primeira vez excursionando em Por-
to da Cruz. Não percam!
Dois dias depois, foi erguido no terreno vago do Expresso
Portocruzense um cirquinho mambembe, a lona colorida de
remendos enormes; de animais, apenas um macaco que batia
palmas e um leão aposentado, chamado nos cartazes de feroz
Golias. Havia, no entanto, um cartaz que chamou a atenção
do pessoal: venham ver a repulsiva Mulher-Gorila, a maior
lutadora da América do Sul.
98
início a maravilhosa função, algo nunca visto – acenderam-se
as luzes do picadeiro e apareceu o Xereta correndo em cír-
culos, saltando, com o Bube atrás, vestidinho com roupa de
bufão, arrastando uma perna meio manca. Enquanto o Ho-
racinho me dizia, já conhecedor de tudo, que o Xereta era o
dono do circo, o Bube já tinha levado quatro pontapés nas
nádegas. O anão estatelava-se no chão e levantava rápido, lé-
pido, sem nenhum sinal de dor. Devia ter a bunda calejada, o
filho da mãe.
Em seguida veio o leão, mais preocupado com uma mosca
que rodeava seu focinho do que com o pessoal que pagou para
ver a sua brabeza. Deu dois ou três grunhidos salvadores e se
apagou como meu irmão mais novo diante de estranhos.
99
no peito. Depois de algumas demonstrações que pareciam
de grande violência, a Mulher-Gorila deu cabo do peligroso
Cigano, um baixinho de cor parda, muito tinhoso nos golpes.
O apresentador, num entusiasmo teimoso, lançou então o
desafio que mexeu com os brios da moçada do porto:
– La invencible Mulher-Gorila lo afirma que em esta cidá
no tiene matcho! (murmúrios na plateia) E lo desafia aquelho
que tiver coragem para uma lutcha asta la desistência, em la
prócsima semana, no último espectáculo de este circo.
Foi quando o Chicão levantou-se, com seus quase dois me-
tros de altura, a voz disparada pelo nervosismo:
– Já acharo macho!
As tábuas da geral quase desabaram, de ponta a ponta, com
o rebuliço do povo; os que estavam perto correndo para abra-
çar Chicão, os outros gritando e sapateando na madeira. E fi-
cou acertada para a próxima sexta-feira a fabulosa luta entre o
Chicão, defensor da macheza de Porto da Cruz, e a invencível
Mulher-Gorila.
100
pediu a Deus aquela vida. Depois levou-nos ao seu camarim,
digo camarim, mas era um cantinho em uma barraca, junto
com as outras artistas, repleto de fotos desbotadas que mos-
travam uma antiga Nair, um pouco mais magra.
101
Sem querer mentir, digo que a cidade toda se aperta den-
tro do circo. Estivadores pesados, ainda palitando os dentes,
se largam nas tábuas da geral. Assobios se cruzam por cima
de minha cabeça. O conjunto, de repente, ribomba a valsa de
abertura e leva uma vaia.
– Solta a fera! – gritam.
Alguém se lembra de puxar a torcida do Chicão:
– E para o Chicão, nada?
– Tudo!
Até o Cabo Lerguino, que tem uns ataques violentos en-
frentando nazistas invisíveis, coisas da guerra, está lá do lado
do velho Quincas. Pombas, que perigo, e se o caboclo fica ner-
voso, começa a ver alemães na frente? E olha que tem uns bra-
ços pra ninguém botar defeito.
Logo que chegam as autoridades, com toda a família, e se
abancam nas cadeiras reservadas, começa o espetáculo. Os
números de equilibrismo já tinham enchido o saco, embora
ninguém enjoasse de olhar as pernas da Nadja, com aquele
maiô curtinho entrando na bunda. Mas o pessoal está nervo-
so. Xereta consegue maior atenção de todos remexendo nos
brios do público: que a Mulher-Gorila vai pegar o estivador
e fazer assim...assim, e plaft no traseiro do Bube, coitado. A
geral responde com um urro de ódio.
Finalmente, o conjunto de músicos faz silêncio. A serra-
gem, pisada e repisada, aumentou o cheiro, agora parecendo
de bosta. O apresentador anuncia o espetáculo.
Primeiro entra o Chicão, que é saudado por uma grita-
ria infernal, assobios, barulho de latas. Vem com uma sunga
preta, apertada, os pulsos atados com tiras de couro. Levanta
102
os braços, agradecendo. Depois, debaixo de vaias, ninguém
ouvindo as palavras do apresentador, surge a Mulher-Gorila,
preparada como se fosse para uma cerimônia de luxo, com
uma longa capa dourada, os olhos de contorno roxo, uma apa-
rência terrível.
O gongo soa. A lutadora deixa que Chicão ataque primeiro.
O bobo veio feito um touro desgovernado e recebe o primeiro
pataço: poff. Com isso fica mais cauteloso, faz rodeios, amea-
ça, e nisso se passam os primeiros minutos. Agora se pegam
feio, pernadas, socos. Chicão acerta um murro no ombro da
adversária, recebe o troco no peito cabeludo. Até que, milíme-
tro a milímetro, como pescador que cansa o peixe na linha,
Chicão vai se impondo pela enorme força. A fera vai perden-
do a confiança. A balbúrdia é enorme, a força de Chicão sai
dos braços e dos gritos de cada um.
De repente – ninguém entendeu – o juiz encerra a luta,
Chicão dando sinal de desistência, imobilizado pela adversá-
ria. Sem ninguém perceber, num último recurso, ela havia lhe
agarrado os cocos com os dedos de alicate. Com a dor súbita,
Chicão desarmou-se e pronto, a lutadora aproveitou a vanta-
gem para aplicar-lhe uma chave de pernas sem escapatória.
A gente olha uns para os outros, sem entender nada, a cara
murcha, os gritos murchando. Nesta hora, há empurrões,
abre-se uma clareira em redor do Cabo Lerguino, que dá faca-
das em alemães. Surgem gritos, e não são dos alemães derru-
bados pelo Cabo: a lona do circo está queimando, o povaréu
aos encontrões, sem poder sair do lugar.
Escorrego pra baixo do madeirame e abro um rasgão a ca-
nivete na lona, ganhando o ar fresco de fora, para onde muitos
103
já haviam debandado. Correndo para longe, fico vendo o fogo
encorpando, a estalar, soprando rolos de fumaça em direção
do mar.
104
Aula de História
105
recentemente esta palavra – desabaladamente – e acho que era
adequada ao meu caso.
Sorte que todos estavam em aula e o pátio estava deserto.
Pelo caminho já fui desapertando o cinto. Quando parei em
frente ao banheiro dos meninos, sacanagem: a porta estava
trancada.
Alguém já passou por essa situação? Terrível!
Meu corpo estremeceu de frio e calor ao mesmo tempo.
Havia somente uma saída: olhei cuidadosamente para todos
os lados – ninguém! – e dirigi-me ao banheiro feminino.
Foi a salvação da pátria. Canhões e metralhadoras troaram
furiosamente; houve resistência, mas pouca, e os malditos ini-
migos caíram prostrados no campo de batalha. Depois, uma
descarga d´água lavou o solo pátrio e varreu-os da face da ter-
ra.
Mas não pensem que a batalha estava vencida. Logo, logo,
passos ressoaram no corredor do banheiro, portas se abriram
e fecharam. Uma descarga foi acionada e o barulho parecia
de uma cachoeira, despejando toneladas de água, que foram
diminuindo até virar um gluglu mansinho.
Esperei uns dez minutos, já preocupado com a bronca da
professora. Depois, resoluto, abri a porta do close. E cai in-
genuamente nas mãos do inimigo. Não se tratava de um sol-
dadinho qualquer, era o general-em-chefe de todo o exército
contrário: um grande urubu, de peito alvo, costas recurvadas,
o bico longo de narinas resfolegantes e o rosto branco e balofo
de quem nunca tomava sol – a própria Madre Superiora.
As freiras do colégio, salvo uma ou duas, me pareciam aves
de rapina, com suas vestimentas negras, prontas a enfiar as
106
garras recurvas nos pobres alunos. A pior, temível mesmo, era
a Madre Superiora. Diante dela todos tremiam de medo, até
as outras freiras se aproximavam humildemente, falando de
mansinho, não sem antes dar uma curvadinha de joelho.
Antes que eu pudesse organizar a defesa, sua mão grudou
em minha orelha e me arrastou para fora do banheiro. Aonde
a mão ia com a orelha, ia eu atrás, que não era bobo de resistir.
Minha orelha, esfumaçando, foi parar na salinha da diretoria.
Para me livrar da acusação de ter ido espiar as freiras faze-
rem xixi, tive de dar humilhantes explicações sobre o estado
de meus intestinos, a começar pela morte do porco para fa-
zer a maldita feijoada. Era um porco preto e tinhoso que meu
tio havia recebido de presente e criou como se fosse um filho,
pois meu tio era solteiro e não tinha filhos. Até que os vizi-
nhos reclamaram das porcarias do porco – e realmente podia-
se dizer, sem ser figura de linguagem, que a casa de meu tio
era um chiqueiro.
Então, desolado, resolveu passar o coitado na faca. O turco
Chafic, que era especializado em matar bodes e cabritos, foi
quem praticou o ato de misericórdia. Daí, retirou todos os mi-
údos, cortou o rabinho, os pés, as orelhas, e o tio cedeu tudo
para minha mãe, que justamente nesse fatídico dia tinha feito
uma bela feijoada.
A Madre tinha reunido um conselho de freiras que ouviam
com reprovação o meu relato. Não sei se acreditaram na his-
tória do porco, mas juro que é verdade.
Quando cheguei ao xis da questão, ou seja, que se não tives-
se corrido desabaladamente (olhem essa palavra novamente!)
para o banheiro feminino, me borrava todo na calça, umas
107
freiras ficaram vermelhas, outras, brancas, a Madre Superiora
ficou roxa. Irmã Dentucinha, assim conhecida pelos alunos
por motivos óbvios, sugeriu chamar meus pais ao colégio; a
irmã da horta queria suspensão por um mês. Resolveram fi-
nalmente me baixar três pontos em História do Brasil. Vai ver,
acharam que não foi uma cagada patriótica!
Agora me digam: não foi realmente um trauma pesadíssi-
mo para um garoto? E não é justo que atualmente o estômago
se me revire em cólicas e enjoos ao ouvir falar na tal de feijo-
ada?
108
O Magnífico Discurso
109
para mostrar a dentadura de baixo; franzir as sobrancelhas,
deixando um sulco de preocupação na testa, que dava um ar
de responsabilidade.
Não pretendia – e nem podia – gastar muito em sua campa-
nha eleitoral, apenas o necessário para algumas cédulas, balas
para a criançada, uma cachacinha para os compadres, coisa
compatível com seu modesto rendimento. Sabia que o deci-
sivo mesmo, ali em Tequiné, seria o magistral comício plane-
jado pelo partido para dali a um mês, na praça da igreja, com
a presença dos líderes estaduais. Aí as coisas começariam a se
definir, a esquentar. Claro, seria necessário um discurso à al-
tura, capaz de conquistar de modo indiscutível o voto de seus
concidadãos.
Para isso, Jesuíno até que havia dado trato às bolas: como
começar? Onde encaixar todos os seus atributos e qualidades
(algumas, descobertas recentemente pelos costumeiros corre-
ligionários)? Como deixar escapar alguns fatos desabonadores
contra os adversários, principalmente se até o momento ha-
viam sido companheiros de congregação? Mas o importante
mesmo, para deixar o pessoal de boca aberta, seria embrulhar
esse conteúdo desgastado numa embalagem rica, atada com
floreios gongóricos e termos ofegantes (esta terra tripudiada e
esquecida...). Em Tequiné, seja dita a verdade, o povo conside-
ra capazes os que falam coisas que ele (o povo) não consegue
entender.
É claro que não conseguiu dar tamanha altitude ao seu pla-
nejado discurso: alinhavou, quando muito, um palavreado
chulo, alguns chavões, sem respeito à concordância e à orto-
grafia. Como conseguir o respeito dos eleitores desse modo,
110
manejando o léxico e a sintaxe só de ouvido, sem atentar para
os preceitos dos velhos mestres? Assim só lhe restou uma saí-
da: encomendar o discurso ao professor Aristomásio, a maior
capacidade de Tequiné dos Pombos.
Professor Aristomásio, como consciente profissional que
era, fez anotações, consultou as preferências morfológicas e
semânticas do cliente (em matéria de adjetivações, apraz-lhe
mais “gorgôneo” ou “formidoloso”?), apalpou as possibilida-
des do tom oratório (o nobre postulante optaria pela encomi-
ástica solerte ou pela feroz catilinária?), revirou os clássicos de
sua estante à procura de citações, e em menos de uma semana
largou a encomenda, que veio uma maravilha. Arrebatava pela
pujança dos termos, pelo exótico das construções. Só mesmo
um mestre para tecer tão belo cipoal... Até um tal de Nietszche
foi citado a respeito do alastramento do jogo do bicho em Te-
quiné. Ah! O povo ia delirar de incompreensão!
Não é de admirar, portanto, que trechos do discurso te-
nham rolado nas mesas de dominó, no Bar Rodoviário (onde
Jesuíno fazia ponto), entre uma cerveja e outra, no mais puro
sacrilégio. O carteiro Valtinho, seu parceiro de jogo, comenta-
va excitadíssimo para os demais frequentadores do bar:
– Repara só no português do home! Já tá eleito. Lê de novo
aquela parte do “qual tremebundo do Nestor”.
– ...furibundo Adamastor! – consertava Jesuíno paciente. E
olhando ao redor, orgulhoso, para ver se todos estavam aten-
tos, explicava: Adamastor é um baita dum caboclo, que tá nos
versos do Camões.
– Isto mesmo! Linda essa parte. É o que eu digo: já tá eleito,
parceiro.
111
Foi quando chegou o grande dia. Era domingo. O comí-
cio estava marcado para depois da missa das nove da manhã.
Jesuíno não conseguiu decorar o discurso: eram palavras e
ideias que se enviesavam, desacostumadas em sua boca incul-
ta, como objeto estranho. Mágica pura, que lhe dava a impres-
são de estar no comando de uma aeronave desgovernada.
Mas isso não era problema: o senhor Prefeito, em seus pro-
nunciamentos, não saca o “improviso” do bolso? Era o que
ele também faria. Nervoso, despachou o embrulho de alcatra
pela cozinheira (estava no açougue do Zé Quindim, um pou-
co antes do horário previsto para a grande jornada), ajeitou a
gravata e seguiu gélido para o palanque.
Na praça, o povo se acotovelava, na expectativa. Como era
a figura de menor expressão entre os representantes do parti-
do, Jesuíno seria o primeiro a discursar. Elevou-se, trêmulo,
pisando num pequeno caixão que seria, se Deus quisesse, seu
pedestal provisório. Puxou o discurso do bolso. Silêncio. Pi-
garros. Sentiu o papel um pouco áspero. O que é isso? E viu
surgir em sua mão, em vez da refinada peça oratória, um legí-
timo papel de embrulho, com a inscrição: Açougue São José
– agradecemos a preferência.
Pálido, diante do aterrador bafo da multidão, Jesuíno con-
seguiu perceber que, por obra do estabanado Zé Quindim, seu
magnífico discurso tinha servido de embrulho para a alcatra.
112
A Gravata do Morto
113
– Tá esquentando! Tá esquentando!
Após os atos fúnebres, costumavam voltar pra casa cami-
nhando, cochichando juntinhas, de braços dados. Fossem ir-
mãs, não se entenderiam tão bem. Não faltava munição para
as conversas: os motivos ou a veracidade das lágrimas vertidas
pelos parentes; a pouca vergonha das jovens de vestido acima
dos joelhos. Ou a ausência dos “fulanos tão amigos do faleci-
do”.
Foi numa dessas que aconteceu o entrevero entre elas. De-
pois do enterro do ex-vereador Elesbão. Após se esgotarem
os assuntos costumeiros, uma delas voltou as armas de grosso
calibre para o defunto:
– Você notou a gravata que colocaram no coitado? Uma
aberração! Que ridículo desenho azul.
– Azul não, você está enganada. Tenho certeza de que a
gravata era verde.
– Estou lhe dizendo: azul. Naquela hora eu pensei comigo:
no lugar para onde vai, a única coisa azul que vai ver é a ponta
da gravata. E olhe lá, hein? Se o fogo não queimar.
A outra armou um gesto de impaciência:
– Isso pode ser, não discuto. Mas a gravata era verde. Ver-
dinha da silva. Me lembro bem...quando apareceu a sirigaita
da esquina, com aquele horrível esmalte verde, as garras arre-
ganhadas feito caranguejo, juro que fiquei chocada: seria para
combinar com a bendita gravata? E olha que a desinfeliz dei-
xou escorrer umas lagrimazinhas, bem que eu notei.
A primeira, de nome Judite, bateu o pé; de sua certeza não
arredava:
– Olhe, Olívia (mastigava bem as palavras com as gengivas
114
lisas), o homem foi enterrado de gravata azul. Eu vi! Minha
vista ainda está boa. Todo mundo viu que a gravata era azul.
– E a senhora quer dizer que eu também não vi? – quando
se tratavam por senhora o negócio não ia bem. Está me cha-
mando de ceguinha? A bendita dessa gravata era tão verde
quanto a sua cara bexigosa.
– Ora, quem é que está falando! A senhora, uma velha ridí-
cula dessas! Que só vai a enterro pra ver mais uma morte que
não quis lhe agarrar.
A outra já esgrimia no ar as unhas curvadas:
– E a senhora? Sua velha sovina, que já matou dois maridos
e quer ver se Deus consegue lhe perdoar!
Pararam no meio da rua enlameada e, se alguns cidadãos
não viessem acalmá-las, iam chegar realmente às vias de fato.
Voltaram para casa com a amizade provisoriamente corta-
da. Claro, não iriam suportar a falta de companhia nas horas
frias diante de algum caixão, do braço amigo pra se apoiar na
subida do morro do cemitério. No próximo velório voltariam
às boas. De todo jeito, acabaram esquecendo o falecido Eles-
bão, o ex-vereador, passivamente enfiado no seu terno preto e
na sua gravata de horroroso desenho cinzento...
115
Bar Amizade
116
borcaram uma geladinha com pouca espuma, como o diabo
gosta. O Tonho, gozador, fez as apresentações, do jeito sacana
dele: este aqui é o Pinguelo Distraído e este o Joãozinho Papa
Gringo. Johnny Gringo´s Eater, understand? Os suecos ape-
nas riam
Bebemos um bocado por conta dos gringos. Mas estava
bom demais. O Tonho ainda não tinha aprontado das suas,
quando bebia um pouco. Numa hora, um gringo enorme, de
costeleta encrespada que descia até a boca, enlaçou o pescoço
dele num abraço fraternal e, com os olhos cheios de lágrimas,
começou a fazer confidências. O Tonho não entendia nada,
mas, não sei se emocionado, resolveu passar a mão na bunda
do cara.
O sueco teve um tremelique e parece que naquele momento
ficou bom da bebedeira. Levantou-se jogando a cadeira para
trás, puxou o Tonho pela camisa e ergueu o braço cheio de ta-
tuagens. Instintivamente, fechei os olhos. Coitado do Tonho.
Mas na hora em que o gringo recuou o braço para largar a
porrada, acertou com o cotovelo no ouvido de um holandesi-
nho que estava passando por trás dele.
O holandês caiu por cima da mesa de seus próprios com-
panheiros, que era do lado da nossa, e foi copo e garrafa pra
todo lado. Ainda bateu com a boca na quina de uma cadeira e
ficou com os lábios deste tamanho. Um dos holandeses avan-
çou para o sueco. Não sei se eles se entendiam, lá na língua
deles; eu é que não fui bobo: me joguei por trás do balcão
onde as garçonetes já tinham se entocado e perguntavam sem
se dirigir a ninguém – o que foi? Pelo amor de Deus, o que
aconteceu?
117
A confusão já havia tomado conta do bar. O sueco rolava
no chão com o holandês. Os outros viravam mesas para se de-
fender das garrafas que eram arremessadas. Manecão, o dono
do bar, veio da cozinha, com a enorme barriga bamboleando,
e berrava:
– Parem, seus miseráveis! Vão brigar lá fora, seus f.d.p.!
Não consegui mais ver o Tonho, que devia ter sumido numa
hora dessas. Desculpem se não consigo descrever detalhada-
mente todos os lances da briga, mas tudo se passou muito rá-
pido e, além disso, uma das garçonetes, agachada ao meu lado,
deixou distraidamente aparecer a calcinha, o que também me
distraiu um pouco.
Quando o negócio acalmou, havia um sueco com o rosto
ensanguentado e outro que se contorcia de dor, com a mão
sobre o estômago. Um holandês estava caído no chão e mais
dois tentavam fazê-lo voltar a si. As garçonetes recolhiam com
cuidado os cacos de vidro. Manecão punha as mãos na cabeça
e só repetia: quem vai me pagar? Quem vai me pagar?
Nisso, chegaram dois milicos da polícia; ficaram meio ame-
drontados vendo tantos gringos, mas tinham que manter a au-
toridade e um deles, o cabo, perguntou arrogante:
– Que houve? Quem foi o sacana que provocou a briga?
Ai apareceu o Tonho, vindo não sei de onde, e disse:
– Com licença, cabo. Foi este aqui que passou a mão na gar-
çonete – e apontou para o holandesinho que tinha recebido a
porrada do sueco por tabela.
Nessa hora o bar estava cheio de estivadores, que olhavam
com agressividade para os embarcados, o que deu segurança
para o cabo. Virou-se com cólera militar para o holandês:
– Então foi você seu f.d.p.? Isso só podia mesmo ser coisa
de gringo!
O coitado não entendia nada e fazia uns gestos, mostran-
do o beiço e o ouvido inchados; os suecos cruzavam palavras
confusas com os holandeses e também apontavam para ele,
parecendo concordar que fora o causador de toda a confusão.
Protegido pela massa de estivadores, o cabo pegou no bra-
ço do holandesinho e o arrastou para a cadeia. Fingindo-se
escandalizado, o safado do Tonho repetia para os curiosos que
se aproximavam do bar:
– Esses gringos filhos da mãe têm de aprender a respeitar as
garçonetes brasileiras.
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