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46º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

ST 08: Ciências Sociais e Descolonização

DUAS ESCOLAS, UMA LIÇÃO: A SOCIOLOGIA UTILIZADA COMO INSTRUMENTO


DE DESRACIALIZAÇÃO PELA INTELECTUALIDADE DA ESCOLA DE ATLANTA E

DO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO

NIKOLAS GUSTAVO PALLISSER SILVA1

ALAN CALDAS2

1
Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São
Carlos, bolsista CAPES. E-mail: nikolaspallisser@gmail.com.
2
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, professor do Instituto de Biocência da
Universidade Estadual Paulista - UNESP, campus Rio Claro.
DUAS ESCOLAS, UMA LIÇÃO: A SOCIOLOGIA UTILIZADA COMO INSTRUMENTO
DE DESRACIALIZAÇÃO PELA INTELECTUALIDADE DA ESCOLA DE ATLANTA E

DO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO3

Resumo: O problema deste trabalho consiste em relacionar a concepção de sociologia como


arma de libertação, desenvolvida entre acadêmicos norte-americanos da Escola de Atlanta,
liderada por W.E.B. Du Bois, no início do século XX, e a concepção da sociologia como saber
de salvação que emergiu entre os intelectuais do Teatro Experimental do Negro (TEN),
especificamente entre 1948 e 1955. Objetivamos mostrar como a Escola de Atlanta, inserida
no contexto pós-abolição dos EUA, marcado pelas leis segregacionistas Jim Crow (1877 –
1964), usou a sociologia para mostrar que as desigualdades provinham de mecanismos sociais
e econômicos e não de uma pretensa inferioridade atávica. Já o TEN, inserido no contexto em
que a democracia racial ocultava e legitimava as desigualdades sociais, apropriou-se da
sociologia, primeiro como meio de construção de um projeto de integração social da população
negra, depois como ferramenta de desmascaramento das ideologias produzidas pelas ciências
sociais.

INTRODUÇÃO
A posição da racionalidade europeia sobre a questão da colonização e da escravidão foi
problemática. Com muita frequência, o universalismo do pensamento europeu apresenta dois
limites: a) um territorial, já que o humanismo europeu não costuma valer para além das
metrópoles colonizadoras; b) outro conceitual, pois o conceito de humano frequentemente era
construído a partir das particularidades étnicas dos povos europeus. As consequências políticas
dessas limitações são evidentes: de um lado, ao usar essas características particulares em um
discurso supostamente universal, frequentemente os povos não europeus, sobretudo, os povos
colonizados das Américas, África e Ásia eram excluídos do gênero humano; por outro lado,
essa mesma racionalidade invisibilizava e justificava a exploração desses povos, bem como
suas lutas por autonomia.

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Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no GT 17 - Política Cultural Negra e Processos de
Racialização, do 12º Seminário Nacional Sociologia e Política, que ocorreu entre os dias 13 e 23 de junho de 2022
na Universidade Federal de Curitiba (UFPR).
Da perspectiva dos povos submetidos a essa racionalidade imperialista e colonizadora,
surge um problema de amplo alcance: como construir projetos emancipatórios partindo dessa
mesma racionalidade e a levando para além dos seus limites? Como um povo colonizado por
essa racionalidade imperialista pode se utilizar dela para sua própria libertação? Como levar
essa racionalidade mais adiante de modo que ela possa incluir a diversidade dos povos e
permitir-lhes autonomia?
Este trabalho investiga duas organizações lideradas por intelectuais racializados que,
em distintos contextos históricos, em sua prática e em sua produção teórica, enfrentaram esse
problema. Uma dessas instituições foi a Escola Sociológica de Atlanta que, liderada pelo
sociólogo W.E.B Du Bois, enfrentou o racismo científico que legitimava o regime Jim Crow.
A outra foi o Teatro Experimental do Negro, liderada por Abdias Nascimento e orientada, do
ponto de vista sociológico, por Guerreiro Ramos, empenhada em desafiar os limites
estabelecidos pelo pacto da democracia racial.
Em comum, esses dois grupos fizeram avançar a racionalidade sociológica e, ao mesmo
tempo, construíram projetos de luta emancipatória. No entanto, isso só foi possível devido a
uma aposta que a comunidade negra fez na educação, em geral, e na sociologia, em especial,
como “arma de libertação” (Escola de Atlanta) ou “saber de salvação” (TEN). Mediante
grandes esforços, essa comunidade acumulou significativa quantidade de capital político,
social e cultural que, por sua vez, foi cedido a sua intelligentsia para que ela construísse
conhecimentos capazes de se tornar armas de luta contra o racismo e a opressão.
Em vista desse contexto, a questão que pretendemos abordar é: de que maneira essas
duas instituições fizeram avançar a racionalidade sociológica, ao mesmo tempo, em que
combatiam as injustiças e desigualdades sociais?

A Sociologia Como Arma De Libertação: A Escola De Atlanta4


O período da existência da chamada Escola de Atlanta (1897-1910), se deu no contexto
pós-abolição dos EUA. A Guerra de Secessão (1861-1865) havia intensificado o conflito entre
brancos do norte e do sul, no entanto, após o breve Período de Reconstrução (1865-1877), esse
grupo étnico reconquistou sua unidade mediante a segregação dos negros. Como afirmou W.
E. B. Du Bois: “todo o ódio que os brancos sentiam uns pelos outros após a Guerra de Secessão
foi, aos poucos, se concentrando [nos negros]” (DU BOIS apud MARX, 1996, p. 22), entre

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A principal fontes de informações sobre W. E. B. Du Bois e a Escola de Atlanta foi o livro de Aldo Morris The
scholar denied: W. E. B. and the birth modern sociology, de 2015.
outras coisas, através dos mais de quatro mil linchamentos que aconteceram no período das leis
segregacionistas Jim Crow (1877 - 1964).
Essas leis estavam sustentadas na justificação das injustiças sociais através das
diferenças de cor. Segundo Patricia Hill Collins (2005, p. 25, trad. nossa), “tudo sob Jim Crow
era sobre a cor — vê-la, medi-la, encontrar até uma gota dela e atribuir valor social a indivíduos
e grupos de acordo com sua colocação em um sistema de apartheid racial”. No Sul, esse regime
rapidamente se espalhou, colocando o negro nas piores posições dentro da ordem social, sujeito
à exploração, à violência e à dominação; no Norte, tal condição só variava em grau. Além disso,
a competição com os imigrantes — que incorporaram rapidamente as ideias acerca da
inferioridade do negro, pois lhes garantiam privilégios raciais — só agravava esse quadro, de
tal modo constituiu-se a situação do negro nos EUA.

W.E.B. Du Bois
Nesse contexto, a sociologia norte-americana nasceu intensamente preocupada com o
problema racial e William Edward Burghard Du Bois foi uma das figuras principais dessa
sociologia. Nascido em 1868, em Great Barrington, Massachusetts, ainda na sua infância, ele
viveu uma experiência de rejeição devido à sua cor, quando em uma escola da Nova Inglaterra,
os meninos e meninas resolveram trocar cartões de visita e uma menina, recém-chegada à
escola, recusou-se a aceitar seu cartão, “recusou-o peremptoriamente, com um olhar” (DU
BOIS, 1887a). Como ele relatou, a partir deste momento, passou a viver sob um véu, de onde
a imagem do outro é apenas parcial. O véu constrói uma dúvida no seu ser, pois não permite o
reconhecimento, constrói, então, a si mesmo como estranho (DU BOIS, 1887a).
Desde jovem interessou-se pela carreira intelectual, graduou-se em Fisk e em Harvard,
estudou em Berlim e foi o primeiro afro-americano a conquistar um título de doutor em
Harvard. Enquanto esteve em Fisk (1885–1888), em Nashville, Tennessee, viveu sob o regime
Jim Crow. Ali ele conviveu com intelectuais negros que desejavam se ver livres do racismo e
com uma população negra, pobre, sem educação formal, vivendo em condições semelhantes à
escravidão. O fato de Du Bois “viver sob a segregação Jim Crow influenciou todos os aspectos
de sua vida” (COLLINS, 2005, p. 24). Foi ali que ele se comprometeu com a luta dessas
pessoas. A partir dessa experiência pessoal de marginalidade, Du Bois (assim como o
antropólogo judeu Franz Boas), anos mais tarde, teorizou sobre a raça (LISS, 1998).
Apesar de ter um bacharelado em Fisk e outro em Harvard, um mestrado e um
doutorado nesta última, bem como estudos na universidade Friedrich Wilhelm, em Berlim, na
Alemanha5, Du Bois não conseguiu realizar sua carreira em uma universidade estadunidense
de prestígio devido ao racismo. Ele deu aulas de latim, grego, alemão e inglês, por dois anos
(1894–1896), na Universidade negra de Wiberforce, em Ohio — onde não encontrou espaço
para dar aulas de sociologia. Entre 1896 e 1897, foi contratado pela Universidade da
Pennsylvania para executar um estudo sobre a população negra da cidade. Apesar de não
conseguir dar aulas nesta universidade, ele escreveu, como resultado de sua experiência ali, em
1899, o estudo The Philadelphia Negro — momento em que já era professor de história e
economia na Universidade de Atlanta (MORRIS, 2015).

A Escola de Atlanta
Du Bois permaneceu na Universidade de Atlanta de 1897 até 1910, apesar de ser uma
instituição periférica no contexto acadêmico dos EUA, com poucos recursos financeiros,
tratava-se de uma importante universidade negra, que também aceitava estudantes brancos. Ali,
ele foi professor de economia, história e deu aulas de sociologia.
Em Atlanta, Du Bois comandou o primeiro departamento de sociologia do sul dos EUA,
criado no mesmo período que os departamentos de sociologia existentes no norte, como na
universidade de Chicago, Columbia e Kansas. A universidade de Atlanta atraiu Du Bois devido
à sua localização propícia para estudar o problema do negro; ao seu programa anual de coleta
de dados desta população; e, às suas conferências sobre esse tema.
A Universidade de Atlanta foi a primeira a desenvolver trabalhos empíricos sobre a
população negra, preparando pesquisadores para isso desde meados da década 1880. Os
resultados dessas pesquisas eram apresentados nas Conferências de Atlanta (Atlanta
Conference of Negro Problems). Essas conferências eram anuais e começaram a ser realizadas
dois anos antes da chegada de Du Bois, sempre na primavera, como parte central das atividades

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Du Bois possui uma extensa relação com a Alemanha, dentre outras formas, por sua relação com o sociólogo
Max Weber. Ao que tudo indica, em sua primeira passagem pelo país, o sociólogo estadunidense foi colega de
Max Weber e, quando Weber foi aos E.U.A. (1905), Du Bois lhe apresentou a sociedade norte americana. Ainda
sobre essa relação, de acordo com Morris (2015), Weber via Du Bois como um dos maiores sociólogos da América
(leia-se: E.U.A.) e enriqueceu sua imaginação sociológica a partir desse contato, sendo levado a questionar
pressupostos racistas que orientavam sua imaginação sociológica (MORRIS, 2015, p. 155). Ainda sobre essa
relação, Weber solicitou a Du Bois que escreve um artigo para a revista alemã Arquivos de Ciências Sociais e
Política Social (Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik) da qual ele era um dos editores, o artigo intitulado:
A questão negra nos Estados Unidos, foi publicado em 1906. Ademais, Weber leu The Souls of Black Folk (1903)
de Du Bois e escreveu-lhe dizendo que achou “esplêndido” e gostaria de traduzil-lo e publica-lo em alemão, porém
isso não chegou a acontecer (CASTRO, 2022). Ainda sobre a relação de Du Bois com a Alemanha, em 1958 ele
recebe o Doutorado Honorário de economia pela Humboldt Universität (antiga Friedrich Wilhelm) (GOMES,
1999).
de pesquisa do laboratório de sociologia. Elas visavam discutir as implicações acadêmicas e
sociais dos resultados das pesquisas e formulavam resoluções almejando a mudança social.
Apesar do departamento de sociologia e das conferências anuais já existirem na
Universidade de Atlanta, a Escola Sociológica de Atlanta, a primeira escola americana de
sociologia, segundo Morris (2015), iniciou-se com as seguintes obras de Du Bois: The Negroes
of Farmville, Virginia: A Social Study (1898), The Philadelphia Negro (1899)6, The Negro
Artisan (1902) e The Souls of Black Folk (1903). Outro trabalho que contribuiu para o
desenvolvimento da Escola de Atlanta foi o de George Edmund Haynes, intelectual próximo
de Du Bois, que defendeu The Negro at Work in New York City, na Universidade de Columbia
em 1911. Contribuição similar foi elaborada por Monroe Work, que desde quando era estudante
de Chicago, esteve envolvido nas pesquisas realizadas em Atlanta.
A Escola de Atlanta se constituiu a partir da liderança que Du Bois exerceu entre os
sociólogos negros formados em universidades brancas, os alunos de graduação dos “black
colleges” e os seus estudantes em Atlanta. Todos esses intelectuais conheciam sua obra e
internalizaram suas diretrizes metodológicas e seu uso do saber acadêmico para produzir
mudança social. Du Bois não foi um intelectual isolado, ele incorporou uma extensa rede de
pesquisa e construiu um método que formou a primeira escola de sociologia da América, num
momento em que os sociólogos ainda procuravam diretrizes intelectuais para a disciplina7.
Du Bois, assim que chegou em Atlanta, assumiu as Conferências e as redesenhou como
um projeto científico de várias décadas, em que, a cada ano, seria estudado um tema específico
a partir de uma variedade de métodos (surveys, entrevistas, observação participante, etnografia,
estatística). Os temas seriam revisitados a cada década para uma compreensão longitudinal e
as condições sociais seriam analisadas indutivamente visando construir dados para produzir
generalizações sociológicas. As pesquisas não se restringiam à Atlanta, abordando diversas
outras cidades. Os temas eram relacionados a diferentes tópicos, como: organização social,
religião, classe, crime, saúde, ocupações profissionais, demografia, lazer, migração, família,
urbanização e cultura. O conteúdo político das conferências decorria do seu enfrentamento com
o racismo científico, amplamente difundido nas ciências, supondo com argumentos diversos
que as populações negras eram inferiores.

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The Philadelphia Negro foi considerado o primeiro estudo de sociologia urbana, veja: Castro (2022).
7
Toda essa geração de intelectuais negros foi apagada da história da disciplina pelo racismo na ciência. Ainda
assim, o legado de Du Bois foi poderoso entre os intelectuais negros, mesmo aqueles formandos em universidades
brancas, e mesmo entre a segunda geração de sociólogos negros formados duas décadas depois em Chicago
(MORRIS, 2015, p. 72).
Sociologia como arma de libertação
Como já mencionado, a Escola Sociológica de Atlanta estava inserida no regime
segregacionista orientado pelas leis Jim Crow e legitimado pelo racismo científico. Neste
contexto, as pessoas negras procuravam conhecimentos capazes de libertá-las através do
enfrentamento a esta ideologia, um deles era a sociologia. Para aprendê-la efetuaram diversos
esforços, viagens longas, enfrentamentos com professores racistas e dispêndio de importantes
recursos. As lideranças da comunidade negra foram aprender sociologia nas universidades de
Chicago, Yale, Pennsylvania e Columbia, e, depois, voltaram para suas universidades para
ensinar essa “secular religion and its promise for social transformation”, tornando-a uma
“weapon of liberation” (MORRIS, 2015, p. 59).
A sociologia era muito atrativa para esses grupos porque eles a viam como uma
possibilidade de desqualificar cientificamente o racismo e, com isso, derrubar as ideologias
sobre a suposta inferioridade dos negros. Eles acreditavam que, derrubando essas teorias,
estariam enfrentando também as estruturas de opressão. Segundo Morris (2015, p. 187), esse
empreendimento só foi possível devido ao acúmulo, na comunidade negra, de um tipo muito
especial de capital, que esse autor denominou “capital de libertação”.
A origem desse capital decorreu da aposta que líderes e intelectuais negros e negras
fizeram na educação como forma de superação do racismo, algo que começou durante a Guerra
de Secessão, com as primeiras escolas filantrópicas dirigidas por negros e brancos e com
aquelas dirigidas por mulheres negras para pessoas negras (FRANKLIN e MOSS Jr., 1989, p.
202-203). Segundo Morris (2015), esse tipo de iniciativa deu origem a um capital de libertação
produzido em redes de solidariedade e ajuda mútua, entre intelectuais racialmente
marginalizados, de modo a permitir a superação da carência de recursos e dar sustentação para
o desenvolvimento de novas linhas de pensamento. Esse capital é usado para denunciar os
fundamentos simbólicos da opressão, servindo como uma arma de emancipação dos grupos
oprimidos.
Du Bois se utilizou desse capital incorporado na comunidade negra para sua formação
pessoal e para montar a Escola de Atlanta. Tanto em Fisk quanto em Harvard, ele recebeu
formação de lideranças e de organizações de mulheres negras; já em Atlanta, contou com
grande quantidade de capital intelectual incorporado numa classe média negra; desse meio,
recrutou os pesquisadores e as pesquisadoras que foram trabalhar com ele no seu laboratório
sociológico8; e, também, teve apoio de pesquisadores, pesquisadoras e estudantes negros de
outras universidades que lhe forneciam dados para as suas pesquisas.
O projeto sociológico de Du Bois agenciou o capital de libertação incorporado na
comunidade negra, transformando-o numa arma de libertação e fazendo decolar a iniciativa
sociológica que já vinha sendo desenvolvida por seus mentores Alexander Crummell e Richard
Wright Sr., nas conferências de Atlanta, que pretendia provar, com dados empíricos, que as
desigualdades entre negros e brancos eram econômicas e sociais e não biológica. Nessa
perspectiva, a Escola Sociológica de Du Bois inovou ao considerar que as categorias raciais
eram socialmente construídas; ao combinar métodos quantitativos e qualitativos; ao promover
discussões metodológicas apoiadas numa preocupação com o rigor e com a quantificação das
desigualdades; desta forma, ele produziu uma sociologia capaz de minar as justificativas do
sistema de opressão racial (MORRIS, 2015).
Essa iniciativa não tinha um fim em si mesma, isto é, não era um mero projeto
acadêmico, mas um projeto amplo de mudança das mentalidades de negros e brancos, como
notou Morris (2015, p. 134, trad. nossa): “Du Bois desenvolveu sua sociologia para servir como
uma arma de libertação para mudar as mentes brancas, despertar os negros para o poder da
educação e remodelar a forma como os negros se viam”. Desse modo, o que estava em jogo na
produção duboisiana era, sobretudo, a emancipação da população negra, tal perspectiva fica
evidente nas colocações feitas por ele ao retornar da Alemanha, em 1895: “Volto pronto e
ansioso para começar um trabalho de vida, levando à emancipação o negro americano. A
história e as outras ciências sociais seriam minhas armas, aguçadas e aplicadas pela pesquisa e
pela escrita” (DU BOIS apud MORRIS, 2015, p. 134, trad. nossa).
Veremos a seguir que, no Brasil, nos anos 1940 e 1950, um uso semelhante da
sociologia se fez presente nas práticas da comunidade negra, sobretudo, no Teatro
Experimental do Negro.

A sociologia como saber de salvação: o Teatro Experimental do Negro (1948-1955)


Diferente dos EUA, onde a Guerra de Secessão havia dissolvido a unidade entre os
grupos brancos e a reunificação desses grupos foi conquistada mediante a exclusão das pessoas
negras, no Brasil a unificação do Estado nacional não dividiu profundamente os grupos brancos

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Du Bois nunca foi um pensador solitário, ele estava sempre com importantes líderes da comunidade negra. Por
exemplo, ele recrutou seu colega em Fisk, Procto. Este era reverendo em uma grande Igreja de Atlanta; podia
mobilizar grande quantidade de pessoas para ajudá-lo nas pesquisas; tinha uma tradição de ativista; e acreditava
no papel da sociologia na luta contra o racismo (MORRIS, 2015).
dominantes, de modo que não foi necessária a exclusão legal e aberta das pessoas negras, aqui
a democracia racial agia para desmobilizar os negros (MARX, 1996).
É possível afirmar, seguindo Florestan Fernandes (1965a), que o conceito de
democracia racial surgiu no interior das elites da I República, como uma ideologia estritamente
atrelada aos interesses políticos dessa classe. A partir da obra de Gilberto de Freyre, tal
ideologia ganhou ares científicos, tornando-se uma utopia conservadora que objetivou
organizar e pensar a modernização brasileira a partir da categoria de mestiçagem. Antonio
Sergio Alfredo Guimarães (2001) afirmou que a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial deu
centralidade às ideias de democracia, povo e nação. Isso favoreceu que concepções diversas de
democracia racial surgissem no contexto brasileiro.
O Teatro Experimental do Negro surgi nesse contexto onde a democracia racial estava
sendo mobilizada como ideologia que legitimava as desigualdades raciais da sociedade
brasileira. Fundado em 13 de outubro de 1944, o TEN surgiu com o propósito de denunciar o
racismo e conscientizar o negro acerca de sua condição objetiva, além de resgatar a cultura e
os valores africanos (ALMADA, 2009). Articulando arte e política, o grupo construiu uma
identidade negra em oposição a uma identidade mestiça ancorada na associação entre
brasilidade e mestiçagem (NASCIMENTO, E.L. 2003).

Capital de libertação no TEN


Assim como a Escola de Atlanta, o TEN também se formou a partir de um capital de
libertação incorporado na comunidade negra e nos seus integrantes. De acordo com Fernandes
(1965b, p. 6), as diferentes organizações negras, como a imprensa negra do começo do século
XX9 e a Frente Negra Brasileira (FNB - 1931 a 1937) — o primeiro partido de massas a
representar essa população —, tiveram o êxito de conscientizar a população negra acerca da
importância do conhecimento da realidade racial brasileira, desenvolveram formas de
mobilização e construíram pautas de reivindicação igualitárias, cujo resultado principal foi o
protagonismo negro no processo histórico, “o que representava, em si mesmo, um
acontecimento revolucionário”. Esses movimentos também estabeleceram conexões com o
mundo africano e com a luta negra transnacional. Por exemplo, a FNB citava movimentos
internacionais que ocorriam na época e o periódico Clarim d’Alvorada traduzia artigos de
Marcus Garvey (NASCIMENTO, E.L. 2003).

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A imprensa negra paulista surgiu, até o ponto em que podemos investigar, em Campinas, com o jornal O
Bandeirante, de 1910. Já na cidade de São Paulo, o períodico Menelik, de 1915, foi o primeiro de que se tem
notícia (BASTIDE, 1973).
Devido à ditadura do Estado Novo (1937 e 1945), a imprensa negra teve que se calar,
mas as associações e os terreiros continuaram como espaços de resistência. A partir de 1945,
as organizações negras começaram a se reestruturar: em 1941 surge a Associação José do
Patrocínio, voltada para a questão das domésticas; em 1945, a Associação do Negro Brasileiro
(ANB) — fundada por ex-membros da FNB — editava o jornal Alvorada, tinha como pauta a
legislação antidiscriminatória e a regulamentação da profissão de empregada doméstica;
haviam diversas outras entidades espalhadas pelo Brasil, no Rio de Janeiro destacava-se a
União dos Homens de Cor, que publicava o periódico Himalaia. Além disso, era muito comum
a existência de grupos de alfabetização ligados a essas instituições (NASCIMENTO, E.L.
2003).
As conquistas desses movimentos estavam incorporadas na trajetória de diversos
integrantes do TEN. Por exemplo, o líder desse grupo, Abdias Nascimento, desde a infância,
por inspiração de sua mãe, desenvolveu um sentimento de solidariedade com as pessoas negras
(NASCIMENTO; SEMOG, 2006). Esse sentimento se ampliou com sua participação na FNB,
em São Paulo. Ali esteve em diversas mobilizações políticas contra o racismo. Já no Rio de
Janeiro, frequentou o terreiro de Joãozinho da Goméia, estabeleceu amizade com outros
militantes antirracistas como Aguinaldo de Camargo e Geraldo Campos de Oliveira, e se
integrou na classe artística da cidade (ALMADA, 2009). Além disso, Nascimento trabalhou no
jornal Diário Trabalhista de 1946 a 1948, assinando uma coluna sobre os problemas e
aspirações do negro brasileiro, em que publicou 56 artigos. A coluna buscava construir uma
consciência objetiva da condição do negro, combater a discriminação, promover a
alfabetização, quebrar estereótipos e divulgar eventos ligados a gente negra (MACEDO, 2005).
A ideia de um teatro do negro surgiu a partir de uma experiência fundamental vivida
por Abdias Nascimento no Teatro Municipal de Lima, no Peru, quando ele assistiu à peça “O
imperador Jones”, de Eugene O’Neill e nela o ator branco, maquiado de negro, Hugo D'Eviéri,
representava o protagonista negro. Isso desencadeou uma compreensão mais abrangente do
fato de que os brancos impedem constantemente que as pessoas negras representem papéis de
destaque no teatro e na vida (ALMADA, 2009). Dessa experiência e com um acúmulo de
capital de libertação, Abdias levou adiante, diversificou e ampliou, pautas que já vinham sendo
levantadas pela comunidade negra.
Esse intelectual encontrou no Rio de Janeiro condições favoráveis à criação do TEN,
sobretudo, devido aos laços que estabeleceu com pessoas receptivas aos seus projetos políticos
e estéticos, por exemplo, o advogado Aguinaldo de Oliveira Camargo (que havia participado
com ele da organização do Congresso Afro-Campineiro de 1938), o então estudante de Direito
Ironides Rodrigues, o pintor Wilson Tibério, o funcionário público Teodorico dos Santos e o
contador José Herbel. Além destes homens, as mulheres tiveram uma atuação destacada no
TEN desde a sua fundação: Arinda Serafim, criadora da Associação de Empregadas
Domésticas, Marina Gonçalves, Elza de Souza e Ruth de Souza estavam entre os primeiros
quadros da organização; Ilena Teixeira, Mercedes Batista, Léa Garcia, a advogada Guiomar
Ferreira de Mattos e Marierta Campos Damas também participaram do grupo
(NASCIMENTO, E.L. 2003). A estes integrantes se uniram, logo depois, Sebastião Rodrigues
Alves, Claudiano Filho, Oscar Araújo, José da Silva, Antonio Barbosa, Natalino Dionísio, entre
outros e outras (ALMADA, 2009).
Assim como ocorreu na comunidade negra estadunidense, agenciando o capital de
libertação que circulava na comunidade negra, o TEN desenvolveu uma série de práticas que
podem ser compreendidas como armas de libertação, sendo que, uma das principais era a
educação. Para o TEN a educação era uma questão fundamental na luta dos povos oprimidos.
Tanto foi assim que suas atividades se iniciaram a partir de cursos de alfabetização, cultura
geral e representação teatral. O objetivo era a integração social, política e cultural, a
conscientização acerca das condições de vida da população negra, o desmascaramento dos
equívocos em torno da questão racial e também a luta por bolsas de estudos nos níveis básico
e superior (NASCIMENTO, E.L. 2003).
Enquanto as práticas educativas promovidas pelo TEN para as pessoas negras eram
voltadas para a conquista da igualdade social e política e para o protagonismo, aquelas voltadas
também para as pessoas brancas (que aconteciam por atividades culturais como concursos de
beleza e de artes plásticas, espetáculos teatrais, artigos de jornais, etc.) visavam educar
ideologicamente o branco para compreender os problemas reais da população negra, para ver
a beleza da pessoa negra e retirar os seus estereótipos raciais. Com isso se colocava o problema
do negro como um problema também do branco, enfatizando-se o aspecto relacional do racismo
(NASCIMENTO, E.L. 2003).
Outra bandeira levada adiante pelo TEN era a questão das empregadas domésticas. O
TEN ajudou a organizar a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional das
Mulheres Negras. Essas organizações pressionaram os membros da Assembleia Constituinte
de 1946 para que ela estabelecesse o registro profissional; a regulamentação da profissão; o
direito à sindicalização; a previdência; 8 horas de trabalho; pagamento de horas extras, aviso
prévio e indenização por demissão sem justa causa (ALMADA, 2009; NASCIMENTO, 2003).
Antes mesmo da criação do TEN, Abdias Nascimento já verificava a importância de
conhecer mais profundamente a realidade do negro brasileiro, bem como expô-la ao público.
Para isso, em sua coluna no jornal Diário Trabalhista, ele realizava entrevistas com diferentes
intelectuais, políticos e outras personalidades acerca do tema das questões raciais. Com ajuda
de intelectuais como Guerreiro Ramos e Ironides Rodrigues, o criador do TEN fundou o jornal
Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, que contou com artigos assinados por mais
de 56 intelectuais sensíveis à questão racial no Brasil, como Solano Trindade, Maria do
Nascimento, João Conceição, Edson Carneiro, etc.
O TEN criou em seu interior uma série de outras instituições voltadas para o
conhecimento objetivo das relações raciais no Brasil. O Instituto Nacional do Negro, dirigido
por Guerreiro Ramos, e o Museu do Negro são duas dessas instituições. Porém, foram os
eventos políticos e científicos promovidos pelo TEN que tiveram maior repercussão. O
principal desses eventos foi o I Congresso do Negro Brasileiro (1950), que possuía um caráter
científico e acadêmico, político e popular e objetivava construir um campo antirracista e
multirracial visando uma efetiva mobilidade ascensional da população negra (BARBOSA,
2004). Como resultado deste I Congresso, verifica-se a reafirmação da educação como arma
de libertação, em uma perspectiva semelhante à que circulava na Escola de Atlanta, pois o
plenário do evento reafirmou “a necessidade de ‘ampliação da facilidade de instrução e de
educação técnica, profissional e artística’ para resolução dos problemas da população negra”
(PALLISSER SILVA; MEDEIRO, 2022, p. 65).
Nas suas práticas teatrais, o TEN representava as questões existenciais ligadas à
subjetividade das pessoas negras, deixando evidente que o Brasil não poderia ser compreendido
e vivido autenticamente sem a apreensão do papel da população afro-diaspórica na sua história.
Dessa forma, num contexto de grande influência da ideologia da democracia racial, as
produções artísticas do TEN, enquanto recuperavam as heranças de lutas anteriores, disputaram
a hegemonia da diferença no imaginário nacional (NASCIMENTO, 2003).

Sociologia: saber de salvação


Alberto Guerreiro Ramos, nascido na Bahia em 1915, migrou para o Rio de Janeiro em
1939, bacharelou-se na primeira turma de ciências sociais da Faculdade Nacional de Filosofia
da Universidade do Brasil, em 1942. Desde o início da criação do TEN, foi convidado por
Abdias Nascimento para integrar a instituição, aproximação que se deu somente após 1948
(CALDAS, 2021). Essa experiência representou um giro na sua maneira de pensar as relações
raciais no Brasil, conforme ele mesmo relatou:
o T.E.N. me deu uma oportunidade de viver o problema do negro, em vez de
ler ou escrever coisas doutorais sôbre êle [...] e a partir de uma situação
concretamente vivida, comecei a estudar a fundo o problema do negro, no
Brasil. O meu engagement representou, inicialmente, uma fase de liquidação
de certas fixações mentais de que era vítima até aquele momento e, em
seguida, conferiu-me a capacidade de ver as relações de raça, desde uma
perspectiva que não suspeitava existir (RAMOS, 1953a, p. 2).

Como para muitas das lideranças das comunidades negras estadunidenses, que viam a
sociologia como uma “religião secular”, que carregava uma “promessa de transformação
social” para essas comunidades (MORRIS, 2015, p. 59), também para Ramos (1947, p. 122)
as ciências sociais eram “instrumentos de salvação secular” profundamente comprometida com
a vida comunitária, como fica evidente nas seguintes palavras: “A essência de tôda sociologia
autêntica é, direta ou indiretamente, um propósito de salvação e de reconstrução social. Por
isso, inspira-se ela numa experiência comunitária vivida pelo sociólogo, em função da qual
adquire sentido” (RAMOS, 1953b, p. 4).
No entanto, há uma diferença significativa no uso da sociologia pela Escola de Atlanta
e pelo TEN. Enquanto a primeira enfatizava a necessidade de construir dados empíricos
capazes de desmascarar o racismo científico, o TEN se preocupava em tratar as subjetividades
violentadas pela estruturação racista da sociedade, sem descuidar do fato de que somente uma
mudança na organização social poderia dar cabo às patologias engendradas pelo racismo.
Entre 1948 e 1950, aprofundando sociologicamente a reivindicação dos movimentos
negros anteriores por uma “Segunda Abolição” (ou seja, uma abolição também das condições
de miséria e injustiça), Guerreiro Ramos notou que a igualdade formal, sem a respectiva
igualdade social e política, engendrava profundas tensões psíquicas na pessoa negra que vivia
em uma ordem competitiva, pois ela se via como igual, porém não tinha condições sociais de
competir com igualdade (RAMOS, 1966).
Essa condição foi fruto da inércia social do Estado brasileiro diante da população negra
no pós-Abolição. Para o autor, essa falta intencional de planejamento agravou a situação
psicológica do negro levando-o a um forte ressentimento, pois, embora em aparente igualdade
jurídica com o branco, a falta de igualdade econômica e cultural o levava a perder a competição
por bens sociais (RAMOS, 1950, p. 45).
A apropriação do estado pelas elites outrora escravocratas e o abandono da população
liberta, produziu uma ampla carga de ressentimento. Assim, Ramos (1950, p. 44) afirmou que:
“o ressentimento é uma das matrizes psicológicas mais decisivas do caráter do homem de côr
brasileiro”, de modo que produz tensões que se manifestam não apenas nas relações entre
brancos e negros, mas também nas relações entre “o negro de status inferior contra o negro de
status superior, do negro contra o mulato e dêste contra o negro” (RAMOS, 1950, p. 44).
Nessas circunstâncias, o ressentimento impedia a formação de um grupo étnico coeso entre as
pessoas de cor de pele escura.
Sendo um dado a existência do ressentimento nas relações cotidianas, a questão
sociológica relevante consiste em saber que elementos da estrutura social produziram essa
condição psicológica. Para responder a essa questão, Guerreiro Ramos se utilizou da teoria
fenomenológica do ressentimento formulada por Max Scheler, que argumentava que o
ressentimento surgia não na relação entre grupos de status diferentes, mas sim entre grupos de
status formalmente iguais. Em vista disso, afirmou Max Scheler (2012, p. 53-54) que:
O peso externo do ressentimento precisa por isso possuir uma sociedade, na qual [...]
a igualdade social de direito estabelecida formalmente caminhe lado a lado com uma
enorme diferença do poder de fato, da possessão de fato, e da formação e
conformação de fato: onde todos possuem o 'direito' de se comparar com todos, sem
'realmente' possuírem o 'poder de fato para se comparar'. Aqui está, [...] já por meio
da estrutura da sociedade, uma poderosa carga para o ressentimento no corpo social.

Apoiado nessa teoria, Ramos (1950d, p. 44) defendeu a tese de que o ressentimento dos
negros e mulatos “é um precipitado emocional da estrutura da sociedade republicana brasileira
[...] da ordem daquela dinamite psíquica que na Revolução Francesa impulsionou a plebe contra
a nobreza espúria”. O que é interessante nesta tese é que ela nem culpa os grupos oprimidos
pelo ressentimento de que são possivelmente portadores, nem coloca a causa no escravismo,
pois é a estrutura social pós-abolição que produziu o ressentimento nessas populações
marginalizadas.
Diante destas conclusões, a atuação de Ramos no TEN deu-se por meio das práticas de
grupoterapia e sociodrama10, que constituíam “um campo de polaridade psicológica, onde o
homem[sic] encontra oportunidade de eliminar as suas tensões e os recalques” (RAMOS, 1949,
p. 7). De fato, para Ramos, todas as práticas estéticas, educativas e científicas do TEN
constituíam verdadeiras terapêuticas para o problema racial no Brasil: “o T.E.N já é, em
essência, um centro de grupoterapia, ou seja, uma sociedade em que prêtos, mulatos e brancos
se reunem simpatéticamente” (RAMOS, 1966, p. 46). Em especial, as pessoas negras podem
expurgar o “sentimento de inferioridade e da vergonha de sua côr”, reencontrar a “autenticidade

10
A grupoterapia tinha o objetivo de despertar o negro para sua condição racial e ajudá-lo a enfrentar os desafios
postos por ela. A prática supõe que a vida social é feita de papéis que podem ser reaprendidos e modificados por
meio da representação de situações cotidianas em grupo, de modo terapêutico. Assim, um protagonista sobe ao
palco e com ajuda de “eus” auxiliares desenrola um drama pelo qual passou e que lhe propiciou traumas
psicológicos, assim envolvido de corpo e alma na situação e com ajuda de todos ao redor pode, ao mesmo tempo,
compreender a situação e mudá-la (NASCIMENTO, E.L. 2003).
de sua condição racial”, tornando-se “livres da ambivalência interior, ou da autoflagelação”
(RAMOS, 1953a, p. 2).
Já após 1950, os horizontes se ampliam. Por um lado, Ramos destaca as relações entre
colonialismo, imperialismo e racismo na construção da estética e dos valores dos povos
colonizados, portanto, da subjetividade desses últimos:
Povos brancos, graças a uma conjunção de fatores históricos e naturais, que
não vem ao caso examinar aqui, vieram a imperar no planeta e, em
conseqüência, impuseram àqueles que dominam uma concepção do mundo
feita à sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado por
europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do
colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso,
do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas
todas as perfeições. Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga
milenária de significados pejorativos. Se se reduzisse a axiologia do mundo
ocidental a uma escala cromática, a cor negra representaria o pólo negativo
(RAMOS, 1995 [1954], p. 241).

Por outro lado, para tratar essa subjetividade colonizada, Ramos propõe a afirmação
existencial e teórica da negritude, o niger sum. Isso constitui “um processo de libertação
existencial e psicológico” que livra a pessoa do medo e da vergonha associada à sua condição
racial, “uma prática pela qual o indivíduo pudesse se libertar das amarras da ordenação social,
em um processo contínuo de conquista da capacidade mais humana”, “um processo de
experimentação da luta contínua e cotidiana pela humanização do homem[sic], enquanto
realização da expressão livre e plena do indivíduo no mundo das pessoas” (BARBOSA, 2004,
p. 120, 142).
Deste modo, o TEN, por meio de distintas práticas estéticas, psicológicas, sociológicas
e políticas elaborou uma práxis que, afirmando a condição existencial da pessoa negra, almejou
um humanismo universalista capaz de superar os traumas e estigmas produzidos pelo processo
de racialização no Brasil. Podemos ver nesse projeto uma nova forma do sujeito afro-diaspórico
enunciar sua existência (FLOR, KAWAKAMI, SILVÉRIO, 2020) de uma perspectiva
cosmopolita.
Considerações finais
Como vimos, W.E.B Du Bois e as pessoas integrantes da Escola Sociológica de Atlanta
se beneficiaram amplamente dos esforços empreendidos pela comunidade negra para se educar
desde o período da Guerra de Secessão. No início do século XX, uma parte significativa desses
esforços concentraram-se no domínio das novas formas de racionalidade científica emergente,
em especial, a sociologia. Partindo desse capital de libertação, esse centro de pesquisas
sociológicas transformou a sociologia numa arma de libertação, construindo uma grande
quantidade de dados objetivos capazes de provar que a raça era uma categoria social e política
e não uma resultante de forças biológicas. Assim, com uma massa de dados cientificamente
construídos, Du Bois almejava transformar a subjetividade de negros e brancos, visando
construir meios para a emancipação da população negra.

No Brasil, no final de 1940 e início de 1950, em um contexto bastante diverso, aparece


também a ideia da sociologia como um saber capaz de levar à emancipação, isto é, como um
saber de salvação. Este saber foi construído a partir de um capital incorporado nos movimentos
culturais, políticos e religiosos da comunidade negra no Brasil. Em ambos os contextos, a
educação aparece como uma das prioridades da comunidade afro-diaspórica na sua luta por
emancipação, prioridade essa que se revela na preocupação com a alfabetização, com a
sensibilização e valorização estética, bem como a compreensão científica das condições dos
povos negros da diáspora.

Porém, enquanto a Escola de Atlanta procurava transformar as subjetividades mais por


meio da divulgação de dados objetivos acerca da realidade da população negra nos EUA, o
TEN intentava agir mais esteticamente sobre essas subjetividades, quer dizer, embora partisse
também de dados objetivos acerca da população negra no Brasil, sua ação se focava na
capacidade das artes em transformar as subjetividades racializadas pela formação social
brasileira e, assim, liberar seu potencial político e estético. Isso decorria, de um lado, da função
central do TEN, que era a representação cênica, mas também do diagnóstico sociológico de
que a estrutura racial da sociedade brasileira produzia amplas cargas de ressentimento que
precisavam ser sublimadas a partir das artes e da política de modo a promover transformações
sociais. Disso resultaram diversas atividades estéticas sociológica e psicologicamente
orientadas como a grupoterapia e o sociodrama.

Após o 1º Congresso do Negro Brasileiro de 1950, a crítica de Guerreiro Ramos ao


racismo e seus efeitos subjetivos é ampliada, indo além do contexto da sociedade brasileira e
procurando pensar a dominação imperialista/colonial dos povos europeus. Em grande medida,
essa mudança de diagnóstico decorreu da ruptura no pacto da democracia racial e da
aproximação do TEN dos movimentos internacionais, sobretudo do Movimento da Negritude
(BARBOSA, 2004; CALDAS; PALLISSER SILVA, no prelo). Nesse momento, Ramos vê a
negritude como um novo humanismo capaz de inserir os povos negros como sujeitos
fundamentais da história mundial.
Se o processo de racialização pode ser pensado como a epidermização, a fixação da
raça sob o sujeito, almejando definir os lugares sociais, as oportunidades e, de modo geral, as
experiências que ele ou ela viverá (FANON, 2008), isto é, restringindo as potencialidades
humanas criativas desse sujeito, podemos compreender que a Escola de Atlanta e o Teatro
Experimental do Negro, ao retomarem criticamente os discursos universalistas e humanistas
das ciências e das artes agiram buscando a desracialização objetiva e subjetiva da experiência
de sujeitos racializados.
Por fim, destacamos que esse alargamento do discurso humano universalista teve como
condições de possibilidade uma ciência e uma arte profundamente ligada ao mundo da vida,
quer dizer, às lutas por emancipação social e política travadas pelas comunidades oprimidas da
diáspora negra. Assim, para usar uma linguagem da comunidade universitária contemporânea,
percebemos nessas experiências uma integralidade e uma organicidade entre ensino, pesquisa
e extensão agenciados na luta a favor da desracialização, quer dizer, contra a dominação e a
exploração a partir da fixação de categorias raciais.

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