A questão da tirania no Discurso da servidão voluntária, de Étienne de La Boétie
Pode-se dizer que o problema central da filosofia política é o poder público – ou
Estado –, seja ele de que natureza for, e sua relação com a qualidade de vida dos indivíduos. No bojo dessa problemática, um tema que, durante toda a tradição do pensamento da filosofia política, sempre foi uma constante é o tema da tirania. Todos os pensadores políticos dedicaram ao menos um parágrafo de seus escritos para tratar dessa questão. Comumente, a tirania foi e é interpretada a partir da figura do tirano, o qual, via de regra, é apresentado como um governante injusto e cruel, cheio de vícios, que coloca a sua vontade e sua autoridade acima das leis e da justiça. Étienne de La Boétie, em sua obra Discurso da servidão voluntária, muda o foco da análise e aborda a questão da tirania não a partir do tirano, mas a partir dos tiranizados, questionando por que, afinal, os tiranizados aceitam a existência de um tirano. A resposta clássica, que sempre se deu a essa pergunta, reside no que hoje chamaríamos, utilizando uma expressão althusseriana, de aparelho repressivo do Estado: o exército, a polícia, o aparato jurídico, as prisões etc. Enfim, tudo aquilo que compreende o que Weber chamou de monopólio legítimo da violência (seja ela física ou administrativa). La Boétie, entretanto, não para nessa explicação, mas questiona de onde vem essa força coercitiva que emana do tirano, uma vez que ele, destituído do poder, é um homem como qualquer outro: “Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também”. Responde, então, La Boétie: esse poder, somos nós mesmos que o damos ao tirano. Nas palavras do próprio autor: “Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis? Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas? Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos? Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha? Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?”. A grande questão, no entanto, é: por que nós fazemos isso? E a resposta de La Boétie será implacável: porque todos nós somos tiranetes. Cada um de nós quer humilhar, submeter e oprimir aqueles que estão abaixo de nós, seja sob nossa autoridade, seja sob nossa dependência. E, portanto, a sociedade como um todo é tirânica. A tirania não depende, assim, como sempre se disse na longa tradição de pensadores políticos, do caráter do governante; ela depende de toda a sociedade, construída tiranicamente, pelo desejo de dominar o outro. Desse modo, a tirania e seu negativo, a servidão voluntária, têm como causa nós mesmos, porque nós não desejamos a liberdade.
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