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101-115, 2019
eISSN: 2358-9787
DOI: 10.17851/2358-9787.39.61.101-115
102 Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 39, n. 61, p. 101-115, 2019
“Marido”
No conto intitulado “Marido”, a violência aparece como o
principal elemento para conferir a unidade das ações narrativas. Embora
a linguagem se apresente carregada de um lirismo pungente, práticas
violentas encontram-se entranhadas mesmo nos gestos mais triviais.
A personagem central da narrativa, Lúcia, uma porteira de um
edifício, é apresentada ao leitor em plena invocação ao transcendente,
num latim de arremedo e desesperado pedido de proteção, durante a
oração de uma Salve Rainha adaptada às suas necessidades domésticas.
Como nos melhores relatos do gênero, por razões de concisão, os aspectos
constitutivos do desfecho já estão inclusos na introdução: “Vem e abafa a
vida, a roupa, a sala e o fogão, abafa a espera com teu doce bafo. Ampara
a vela, acende o fósforo, concentra o ar, protege da aragem a chama da
vela até ele vir”. (JORGE, 2014, p. 17).
Portanto, o leitor é apresentado à história in media res e de chofre,
sem qualquer preparação de antemão. Mesmo assim, ainda que não possa
contar com o benefício de um aviso prévio, que o permita estabelecer
com o impacto inicial, provocado pela exasperada invocação da Regina,
uma entrada gradual no terrível cenário a ser desenhado posteriormente,
o leitor é levado a perceber que a referida invocação parece constituir
uma espécie única de esperança para porteira. Submetida a uma ordem
impositiva, de que lhe serviria a esperança? Para manter aquilo que para
ela representa a normalidade da rotina diária, sobre a qual assentam suas
noções de contato com a vida responsável: “Abafa o som, protege o
som da ira dos inquilinos até ele tocar” (JORGE, 2014, p. 17). “Ele” é o
marido, um mecânico, que até às cinco da tarde trabalha numa oficina-
auto, aonde arrisca a vida sob “carros inteiros e peças resvaladiças”. Se
ele se demora, depois do trabalho, a vida da porteira fica entregue aos
caprichos de combinações imprevisíveis, incontroláveis, cujos excessos
do álcool e os percalços do caminho de retorno à casa são as variáveis
quase sempre recorrentes. “É por isso que a hora crucial da vida da
porteira acontece entre as cinco e as sete. É dentro desses minutos
decisivos da tarde que se dita o dia e a noite da porteira” (JORGE, 2014,
p. 18-19).
Nesta tentativa de equilibrar-se entre o trabalho e a espera do
retorno do marido, a mulher acaba por circular apenas pelo espaço
privado. Tal restrição circulatória pretende facilitar sua adequação ao
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