Você está na página 1de 191

O Século XX - Volume 3

Autor: Daniel Aarão

Editora Civilização Brasileira

Ano: 2000
:.V

i
.. u ([
Daniel Aarão Reis Filho
Jorge Ferreira
Celeste Zenha
(organizadores)

O século XX
Volume III
O tempo das dúvidas
Do declínio das utopias às globalizações

4- edição

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de janeiro
2008
1968: rebeliões e utopias
Marcelo Ridenti
Professor livre-docente do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Unicamp
INTRODUÇÃO

As novidades dos movimentos sociais e culturais de 1968 levaram o jornalis­


ta Zuenir Ventura a chamá-lo “o ano que não terminou”, pois as bases em
que se apoiam as sociedades do presente teriam um forte laço de continuida­
de com aquele ano de ruptura com o passado. Contudo, assim como nenhum
raio cai com céu azul, os eventos marcantes de 1968 foram gestados nas con­
dições históricas precedentes. Em outras palavras, os acontecimentos ex­
traordinários de 1968 devem ser p‘ensados como uma condensação da expe­
riência histórica passada e prenuncio da História futura.
Nos anos imediatamente anteriores a 1968, foram vitoriosas ou estavam
ocorrendo inúmeras revoluções de libertação nacional: a revolução cubana
de 1959, a independência da Argélia em 1962, e a Guerra do Vietnã. O su­
cesso dessas revoluções é fundamental para a compreensão das lutas e do
ideário contestador de 1968: havia povos subdesenvolvidos que se rebela­
vam contra as grandes potências, para criar um sonhado mundo novo.
Por outro lado, os revoltosos de 1968 criticavam o modelo soviético de
socialismo, tido como burocrático e acomodado à ordem internacional esta­
belecida pela Guerra Fria, sem interesse em incentivar as transformações so­
ciais, políticas e econômicas necessárias para chegar ao comunismo. Esse
modelo só ruiria de vez com a desagregação da União Soviética, em 1991,
mas já era contestado em 1968, por exemplo, no interior do Partido
Comunista na Tchecoslováquia, cuja Primavera de Praga foi destruída pela
intervenção militar soviética. A revolução cultural proletária, em curso na
China a partir de 1965 — que mais tarde viria a revelar seu lado trágico —,
também parecia a setores jovens do mundo todo uma resposta ao burocratis-
mo de inspiração soviética.
Movimentos de protesto e mobilização política surgiram por toda parte
em 1968: das manifestações nos Estados Unidos contrá*a Guerra do Vietnã

135
O SÉCULO XX

à Primavera de Praga; do maio libertário dos estudantes e trabalhadores


franceses ao massacre de estudantes no México; da alternativa pacifista dos
hippies, passando pelo desafio existencial da contracultura, até os grupos de
luta armada, espalhados mundo afora.
O comportamento das pessoas também mudava, por exemplo, nas rela­
ções entre os sexos (emancipação feminina crescente), no uso de anticoncep­
cionais e de drogas, na consolidação da televisão como principal meio de co­
municação de massas, ocupando lugar cada vez maior no cotidiano das po­
pulações etc. Travavam-se lutas radicais de negros, mulheres e outras mino­
rias pelo reconhecimento de seus direitos. Grupos da chamada nova esquer­
da sonhavam com a construção de uma sociedade alternativa, de um homem
novo, nos termos de Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Enfim, os
sentimentos e as práticas de rebeldia contra a ordem e de revolução por uma
nova ordem fundiam-se criativamente.

GUERRA DO VIETNÃ E SUAS REPERCUSSÕES EM 1968

O ano de 1968 iniciou-se com uma virada no andamento da Guerra do


Vietnã, conhecida como ofensiva do Tet: a partir de 30 de janeiro, por oca­
sião dos feriados do Ano Novo lunar (Tet), os comunistas do Vietnã do
Norte atacaram maciçamente o Vietnã do Sul e as forças americanas ali se­
diadas. Os comunistas perderam de 30 a 40 mi! homens, sem conseguir man­
ter as posições inicialmente conquistadas, o que fez os analistas em geral
abordarem a ofensiva como uma derrota militar. Contudo, pode-se conside­
rá-la como uma vitória política, pois a ousadia da ofensiva e as baixas ame­
ricanas provocaram impacto no governo e na opinião pública dos Estados
Unidos, que até então pareciam estar vencendo a guerra sem maiores dificul­
dades, depois de três anos de presença ativa na região. Eles estavam lá para
impedir a queda do governo capitalista do Vietnã do Sul, acossado pelos
guerrilheiros comunistas da Frente Nacional para a Liberação do Vietnã do
Sul — chamada pejorativamente pelos americanos de Vietcong.
O Vietnã era palco de uma das revoluções de libertação nacional da
época, que tanto empolgaram militantes do mundo todo, contagiados tam­
bém pelo êxitoda revolução cubana de 1959 e pela independência da Argélia
de 1962, dentre outros exemplos de combates de povos para superar o sub-

136
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

desenvolvimento e livrar-se de dominações imperialistas ou ainda colonialis­


tas (caso sobretudo de alguns países da África).
Desde o início dos anos 60, os EUA passaram a mandar conselheiros mili­
tares ao Vietnã do Sul; já estavam lá 16.300 soldados em 1963, mas não deve­
ríam entrar em combate, a princípio. O suposto ataque, nunca comprovado, a
dois destróieres americanos no Golfo de Tonquim, em agosto de 1964, serviu
de pretexto para o envolvimento militar direto dos Estados Unidos na guerra.
O Vietnã dividira-se em dois após a libertação do jugo colonial francês,
uma metade comunista, a outra capitalista, no intrincado jogo político da
época da Guerra Fria, em que a União Soviética e os Estados Unidos dispu­
tavam palmo a palmo a hegemonia política no cenário internacional.
Enquanto soviéticos e chineses forneciam armas e apoio logístico aos comu­
nistas, os americanos resolveram intervir diretamente na guerra, enviando
tropas. Sucede que eles não esperavam encontrar lá tantas dificuldades: os
vietnamitas — apesar de serem um povo pobre, agricultor e subdesenvolvido
— têm uma tradição guerreira-Tnilenar, que havia sido recentemente provada
na luta feroz de independência contra a França (1945-54). Transformou-se
num pesadelo o que inicialmente se anunciava como mais um passeio das
forças armadas americanas num país estrangeiro, para salvá-lo do império
comunista do mal e garantir os valores democráticos da “civilização ociden­
tal”: em 1968, já haviam morrido 14.692 americanos no Vietnã, além de
92.820 feridos.
Até a ofensiva do Tet, a maioria da imprensa e da população dos EUA
apoiara a guerra. Essa situação foi mudando com as crescentes baixas nas pró­
prias fileiras, a ousadia guerreira dos vietnamitas e o envolvimento bélico cres­
cente dos EUA. Foi-se tornando inaceitável para seus próprios cidadãos ver
todos os dias na televisão os horrores de uma luta em que a mais rica potência
mundial despejava toneladas de bombas num dos países mais atrasados do
mundo e, mesmo assim, ia perdendo a guerra, com alto custo em vidas de
americanos. Derrotados militar e moralmente, eles só voltariam para casa em
março de 1973, com o saldo de 57.605 mortos em combate.
O eventos históricos diferenciados de 1968 em todo o mundo estiveram
diretamente marcados pelas repercussões da Guerra do Vietnã: do Brasil ao
Japão, da Tchecoslováquia ao México, da Itália à Austrália, da França aos
Estados Unidos. Essas repercussões ganhavam sentido um pouco diferente,
conforme a conjuntura local de cada país ou região em que se espalhavam os
protestos contra a guerra, ou ainda de acordo com setores distintos da popu-

137
O SÉCULO XX

lação de cada país. Por exemplo, na América Latina, inclusive no Brasil, re­
percutia sobretudo em setores da juventude o chamamento de Che Guevara
para que se constituíssem no continente novos Vietnãs contra o domínio im­
perialista dos EUA. A idéia de seguir o exemplo revolucionário vietnamita
teve muitos adeptos na Europa e até mesmo nos Estados Unidos; contudo,
nesses países, entre os cidadãos que se opunham à guerra, predominavam os
argumentos pacifistas e liberais, de respeito aos direitos humanos e de auto­
determinação dos povos.
Seria preciso fazer estudos específicos sobre a repercussão particular da
Guerra do Vietnã nas lutas de 1968 em cada país. Mas é um fato que em pra­
ticamente todos os cantos da Terra levantaram-se ondas de indignação con­
tra a guerra.
Evidentemente, a guerra marcou o ano de 1968 com mais intensidade no
país em que ela se deu, o Vietnã, onde cada momento da vida de seus habi­
tantes tinha ligação com as conseqüências e horrores das batalhas. Já para a
população do outro contendor, os EUA, a guerra estava fisicamente distante,
mas não deixava de impor sua presença ao longo de 1968: nas televisões, nos
jornais, nas famílias que enviavam seus filhos para a guerra e por vezes os
perdiam, nas vidas dos veteranos que retornavam com traumas e dificulda­
des de reintegração social, nas canções e outras obras de arte, nos protestos
de rua, nos movimentos pacifistas, nos jovens que desertavam ou se recusa­
vam a servir o exército etc.
Se, em movimentos contestadores de outros países, a Guerra do Vietnã
foi um dos aspectos presentes, nos EUA ela se constituiu no aspecto central.
A ela estiveram ligados eventos marcantes de 1968, como os distúrbios e
protestos radicais dos negros e de outras minorias, a campanha política para
a Presidência, a revolta dos estudantes e a emergência da contracultura. Nos
Estados Unidos, 1968 representou os estertores de movimentos sociais ante­
riores, como o dos direitos civis, e o esgotamento da visão liberal-social-de-
mocrática, herdeira do New Deal de Roosevelt. Por outro lado, 1968 anun­
ciou movimentos que se desenvolveriam nos anos seguintes, como os das
mulheres, dos homossexuais, do meio ambiente etc.
A partir de meados dos anos 50, florescera nos EUA um importante mo­
vimento pelos direitos civis dos negros, que sofriam forte segregação. A lide­
rança negra mais importante nesse período foi a do pastor Martin Luther
King, grande orador, pacifista, que teve seu auge político nas grandes mani­
festações negras de Birmingham, no Alabama, em 1963. Ganhador do Prê-

138
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

mio Nobel da Paz em 1964, ele foi um dos responsáveis pelas conquistas his­
tóricas das leis de 1964-65, que garantem formalmente aos negros os mes­
mos direitos civis de qualquer cidadão americano. Por exemplo, a nova legis­
lação proibia que escolas não admitissem negros, incentivando a educação
pública inter-racial.
Em 1968, contudo, as circunstâncias haviam mudado. Com o surgimen­
to de vários grupos radicais negros — a afirmar o black power, o poder
negro, contra a sociedade excludente dos brancos — passavam a ser contes­
tadas as propostas de King, de integração racial e de não-violência. No prin­
cípio de 1968, King já havia perdido muito de sua influência sobre as novas
gerações. Não obstante, em abril, ele foi vítima de um atentado racista que o
matou, em Memphis, transformando-o em mártir da causa negra. A reação
dos negros diante do assassinato foi variada: da prostração até explosões es­
pontâneas de violência revanchista. Grupos radicais — como os Panteras
Negras —, procuraram conter os ânimos populares, temendo que revoltas
desorganizadas pudessem dar ao governo o pretexto que esperava para liqui­
dá-los. De fato, conseguiram manter a calma em metrópoles como Nova
York, Los Angeles, Cleveland e Detroit. Mas os distúrbios raciais espalha­
ram-se por mais de 150 cidades, como Washington, Seattle e São Francisco,
gerando inúmeras mortes, ferimentos e prisões.
Apesar das divergências, tanto os adeptos de King como os do black
power posicionavam-se contra a Guerra do Vietnã, até porque os negros es­
tavam na linha de frente nos campos de batalha e o belicismo era identifica­
do com os setores brancos mais retrógrados. As posições dos movimentos
negros variavam da moderação de King — que em 1965 já se declarara con­
trário a “uma das guerras mais sem sentido da História” — até o terceiro-
mundismo radical (e minoritário) de líderes como Stokely Carmichael, que
em 1967 fizera um discurso em Havana pela revolução total, inserindo as
reivindicações afro-americanas como parte das lutas para “mudar as estrutu­
ras imperialistas, capitalistas e racistas dos Estados Unidos”.
Em 1968 também se desenvolveu nos EUA um capítulo importante da
busca das mulheres pela igualdade entre os sexos. Elas participaram ativa­
mente da luta contra a Guerra do Vietnã, imposta pela sociedade “fálica e
imperialista”. O mesmo ocorrería em seguida com movimentos de homosse­
xuais, gays e lésbicas.
No campo da política institucional, os eventos libertários de 1968 — no-
tadamente o combate à Guerra do Vietnã — também tiveram força significa-

139
O SÉCULO XX

tiva. 1968 foi um ano de eleições presidenciais nos EUA. As engrenagens do


sistema político tradicional continuavam a funcionar. Até porque, como bem
já se observou, o 1968 americano foi mais acapitalista do que anticapitalis-
ta. O Partido Republicano, mais conservador, indicou Richard Nixon para
concorrer à Presidência. Era o homem forte, que prometia defender o sonho
americano para agradar à maioria silenciosa, chocada com as ondas de rebel­
dia que invadiam as ruas e com as mudanças de comportamento da juventu­
de e das minorias, especialmente dos negros. Apesar de conservador, Nixon
detectava o mal-estar com a Guerra do Vietnã e prometia encontrar uma so­
lução para retirar os EUA do conflito — promessa que, depois de eleito, não
cumpriría nesse mandato.
No Partido Democrata, a luta interna pela candidatura à Presidência foi
dura, especialmente depois que o desgastado candidato natural do partido, o
presidente Lyndon Johnson, desistiu de pleitear a reeleição. Concorriam: o
vice-presidente Hubert Humphrey — homem da máquina partidária —, o
herdeiro político do presidente John Kennedy, seu irmão Robert Kennedy, na
época defensor de uma plataforma de abertura para os direitos sociais e
Eugene McCarthy, com um programa próximo do de Kennedy, porém mais
explicitamente comprometido com a retirada dos americanos do Vietnã, o
que lhe valia maior apoio das bases universitárias. A disputa pela indicação
democrata era acirrada, com ligeira vantagem para Kennedy, quando ele foi
assassinado num atentado, em Los Angeles, no dia 5 de junho.
O atentado foi um reflexo da política dos EUA, pró-Israel, nos conflitos
que agitavam o Oriente Médio, especialmente desde a Guerra dos Seis Dias,
que estava completando um ano na data do atentado a Kennedy. Ele foi ba­
leado por um palestino que morava na Califórnia. Robert Kennedy — tão
pró-Israel quanto os demais candidatos — era alvo preferencial pelo seu
prestígio pessoal e de sua família.
A Convenção do Partido Democrata, realizada em Chicago, no fim de
agosto, acabou indicando Humphrey candidato, tido como continuador da
política já desgastada do presidente Johnson, especialmente em relação à
Guerra do Vietnã. O partido saiu dividido da convenção, estreitando demais
suas possibilidades de vitória nas eleições, vencidas por Nixon em novembro.
Para agravar a situação dos democratas, nos dias de sua convenção,
Chicago foi palco de verdadeira batalha campal entre a polícia e os manifes­
tantes contra a Guerra do Vietnã — compostos por pacifistas do movimento
hippy e por jovens organizados em agrupamentos de esquerda. Transmitidos

140
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

pela televisão, esses conflitos chamaram mais a atenção do público do que a


Convenção Democrata (ainda em 1965, cerca de 93% dos lares americanos
tinham televisão, e cada americano assistia em média a cinco horas diárias da
programação, o que fazia desse veículo o principal meio de comunicação,
com repercussões políticas evidentes). A reação da imprensa e da maioria da
população foi de indignação com a violência policial, mas também de temor
em relação às atitudes dos jovens, vistos como drogados, libertinos e arrua­
ceiros que buscavam desestabilizar o sistema político constituído.
O terreno estava aplainado para Nixon. Guardadas as devidas propor­
ções, ele significou para os EUA da época algo parecido com De Gaulle na
França: o pulso firme capaz de manter a lei e a ordem contra as ameaças dos
movimentos libertários de 1968. Nixon foi apoiado nas urnas pela maioria
da população, temerosa de eventuais mudanças, simbolizadas no imaginário
do cidadão mediano pela desordem da contracultura.
A Guerra do Vietnã também foi o eixo em torno do qual se articulou o
movimento de contracultura/pregando paz e amor, convocando o jovem
para que “faça amor, não faça guerra”. No campo musical, esse movimento
foi especialmente significativo, nas canções de Janis Joplin, Jimi Hendrix,
The Mamas and the Papas, Simon & Garfunkel, entre outros, cujos precur­
sores foram Bob Dylan e Joan Baez, que cantavam denúncias ao racismo e à
Guerra do Vietnã, em 1968. Bandas inglesas famosas internacionalmente,
como os Beatles e os Rolling Stones, também estavam afinadas com a contra­
cultura. Paralelamente, desenvolvia-se a pop art, com Andy Warhol, Roy
Lichtenstein ou Jasper Johns. Na literatura destacavam-se novos temas, in­
troduzidos por escritores como Norman Mailer e John Updike. Na
Broadway entrava em cartaz a peça Hair, abordando o cotidiano da juven­
tude e a contestação dos valores tradicionais.
Além da nova música e do parentesco com manifestações em todas as
artes, a contracultura caracterizava-se por pregar a liberdade sexual e o uso
de drogas — como a maconha e o LSD, cujo uso era considerado uma forma
de protesto contra o sistema. O amor livre e as drogas seriam liberadores de
potencialidades humanas escondidas sob a couraça imposta aos indivíduos
pelo moralismo da chamada sociedade de consumo. Aliás, contra os valores
dessa sociedade, começaram a se formar comunidades alternativas, com eco­
nomias de subsistência no campo e um modo de vida inovador, como as do
movimento bippy.
A contracultura era particularmente difundida nos meios universitários,

141
O SÉCULO XX

caso de Columbia em Nova York e Berkeley na Califórnia. Ficaria famosa a


frase “não confie em ninguém com mais de trinta anos” — afinal, a taxa de
natalidade crescera consideravelmente nos EUA, do pós-guerra ao fim dos
anos 50 e início dos 60, fenômeno conhecido como baby boom, de onde pro­
vinham os jovens universitários de 1968.
O movimento estudantil americano foi muito significativo de 1964 a
1970. Diferentemente da França e do Brasil, 1968 não foi o ápice do movi­
mento estudantil nos EUA, apenas um momento significativo das lutas que
se articulavam em torno do combate à Guerra no Vietnã e ao serviço militar
obrigatório, mobilizando os jovens muito além da minoria mais identificada
com a contracultura. Mas eles jamais conseguiram romper o isolamento dos
campi universitários, tendo sido sempre vistos à distância e com desconfian­
ça pelo restante da população — ao contrário do que ocorreu na França, por
exemplo. De modo que é preciso atentar para as especificidades das lutas de
jovens e estudantes em cada um dos países etj};que elas se deram, como será
exposto a seguir.

1968 ESTUDANTIL E OPERÁRIO NA FRANÇA

Se é legítimo dizer que houve um movimento social mais destacado no ano


de 1968, sem dúvida foi o dos estudantes, que se mobilizaram em todos os
cantos do globo, nos países avançados e nos subdesenvolvidos, nos capitalis­
tas e nos comunistas. Os movimentos estudantis tiveram suas especificida­
des, pois ocorreram em países diferentes, cada um dos quais com sua própria
organização social e educacional, passando por diversas conjunturas políti­
cas. Todavia, eles também apresentaram significativos pontos de identidade,
na medida em que havia vários aspectos históricos supranacionais, isto é, co­
muns aos vários Estados onde houve agitação estudantil. Por isso, alguns
chegam a falar numa Internacional Estudantil espontânea, movimento não
organizado politicamente em termos internacionais, mas com inúmeras afi­
nidades entre seus componentes.
Cada um dos movimentos estudantis de 1968 merecería destaque. Na
impossibilidade de tratar de todos eles, vale a pena deter-se um pouco no
mais conhecido de 1968: o de maio, na França, que costuma ser tomado co­
mo referencial para o estudo da época. Isso não significa que os movimentos

1 42

L.
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

de outros países tenham sido mero reflexo do francês. A própria cronologia


de 1968 atesta que movimentos estudantis importantes — como o brasileiro
— precederam o maio francês, ainda que posteriormente tenham sofrido sua
influência.
Durante a Segunda Guerra Mundial, parte da França foi ocupada pela
Alemanha nazista, que também instalou ao sul, em Vichy, um governo fran­
cês colaboracionista, liderado por Pétain, que havia sido herói nacional da
Primeira Grande Guerra. Com a liberação da França e o fim da guerra, ins­
titui-se a Quarta República, na qual o país foi dirigido por partidos de cen­
tro esquerda, que promoveram a modernização da sociedade, acompanhada
de direitos sociais e liberdades democráticas, com ajuda financeira do Plano
Marshall, bancado pelos EUA, temerosos de possíveis avanços comunistas
na Europa. Mas os governos de orientação social-democrata tiveram de con­
viver com os problemas gerados pelos resquícios coloniais franceses: espe­
cialmente a partir de 1954, intensificou-se a luta pela independência da
Argélia, que viria a dividir a opinião pública francesa até 1962, quando se
efetivou a independência.
A crise gerada pela guerra na Argélia acabou reconduzindo a centro di­
reita ao poder, em junho de 1958, sob o comando do general De Gaulle, líder
carismático que comandara a resistência no exterior, durante a Segunda
Guerra Mundial, e dirigira o governo provisório, no pós-guerra. A partir de
1958, o poder Executivo ganhou força, no período que se convencionou cha­
mar de Quinta República, com a entrada em vigor de nova Constituição, que
dava poderes maiores ao presidente, em detrimento do poder Legislativo. De
Gaulle, a princípio favorável a manter tropas na Argélia, mudou de rumo e
combateu a extrema direita, bem-organizada e colonialista, conseguindo
levar a bom termo a crise da Argélia. Ele comandaria a França com pulso
firme e sem maiores problemas até 1968.
Os eventos de maio viriam a constituir-se numa surpresa, pois a econo­
mia estava estabilizada e predominava certo marasmo político também no
pólo mais forte à esquerda, o Partido Comunista Francês (PCF). Chocado
pela crise do stalinismo após 1956, e muito burocratizado, ele não se mostra­
va capaz de ameaçar a ordem estabelecida.
A França mudara e as instituições já não davam conta de representar a
sociedade — foi o que se descobriu em maio de 1968, quando o país entrou
em ebulição a partir da mobilização estudantil.
Os estudantes tinham tradição de luta, inclusivé no período mais recen-

143
O SÉCULO XX

te, quando se posicionaram pela retirada francesa da Argélia, com inúmeras


manifestações de rua até 1962. A partir do fim dos anos 50, formaram-se or­
ganizações da juventude à esquerda do PCF, que ganhavam força crescente.
Em 1968, havia no meio estudantil correntes trotskistas, maoístas e anar­
quistas. Elas tiveram importância no movimento, mas estiveram longe de di­
rigi-lo: as manifestações de massas foram autônomas e espontâneas, marca­
das pela recusa de qualquer organização nos moldes tradicionais e profunda­
mente críticas do burocratismo, da hierarquia e da cisão que costuma ser ge­
rada na relação entre dirigentes e dirigidos.
Em 22 de março de 1968, os estudantes ocuparam a Universidade de
Nanterre, nos arredores de Paris, em protesto contra a prisão de seis estudan­
tes do Comitê Vietnã nacional. Em homenagem a esse dia — que costuma ser
caracterizado como o marco inicial do movimento que se estendería até
junho —, formou-se o grupo 22 de Março, crítico dos métodos organizacio­
nais marxistas-leninistas; seu membro mais destacado foi Daniel Cohn-
Bendit, estudante de nacionalidade alemã radicado na França, que passou a
ser processado. Em maio, a agitação atingiría a tradicional Sorbonne, que
acabou sendo ocupada pela polícia, gerando revolta dos estudantes, que
foram para as ruas protestar e enfrentar a polícia no Quartier Latin (bairro
universitário no coração de Paris). Os eventos geraram prisões e crescentes
ondas de protesto estudantil para libertar os colegas.
No dia 10 de maio, cerca de 15 mil manifestantes são impedidos de en­
trar no Quartier Latin, cujos principais pontos haviam sido fechados pela
polícia. Mesmo assim, os estudantes resolvem ocupar o bairro, são atacados
pela polícia e acontece verdadeira batalha, de mais de quatro horas. A vio­
lência do combate incendeia a França: os estudantes ocupam todas as facul­
dades; vão se sucedendo passeatas e enfrentamentos com a polícia. O gover­
no cede, libera a Sorbonne e todo o Quartier Latin no dia 13. Imediatamente,
os estudantes ocupam a universidade e tratam de levantar barricadas para
defendê-la, nos moldes da tradição republicana francesa. Forma-se uma co­
muna estudantil no bairro, que promove comícios, debates e festas, sem que
se destacassem líderes específicos, num clima de total liberdade, recusa em
relação à ordem estabelecida e suas instituições, inclusive os partidos de es­
querda consolidados, notadamente o PCF. Este, por sua vez, via no movi­
mento um esquerdismo juvenil estéril.
O movimeftto de maio inaugurava novo estilo de ação e manifestação,
fora de partidos ou sindicatos, recusando qualquer tipo de tutela política,

144
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

embora estivessem muito ativos no movimento pequenos grupos de esquer­


da e, principalmente, a União Nacional dos Estudantes da França (UNEF), o
Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), entidade dos docentes
universitários, entre outros órgãos de estudantes e professores, inclusive se-
cundaristas.
No dia 13 de maio, a situação agravou-se para os partidários da ordem:
percebendo o ânimo dos operários de suas bases, a Confederação Geral do
Trabalho (CGT), central sindical ligada ao PCF, e a Confederação Francesa
Democrática do Trabalho (CFDT), próxima dos socialistas, declararam uma
greve de 24 horas em solidariedade aos estudantes e fizeram uma manifesta­
ção de centenas de milhares de pessoas. Começaram a suceder-se greves e
ocupações espontâneas de fábricas, que logo paralisariam a França.
Os estudantes franceses conseguiram o que queriam: solidariedade e
ação conjunta com os trabalhadores, cuja atividade política já não era con­
trolada por qualquer organização. Não obstante, essa solidariedade nas ruas
não significou a constituição de um comando organizado operário-estudan-
til de novo tipo, mesmo porque a insurreição estudantil, espontânea e com­
bativa, não tinha uma proposta de organização política ou sindical — ao
contrário, uma característica do maio universitário era a recusa a qualquer
organização, apesar dos esforços dos grupos de vanguarda trotskistas e
maoístas. Naquele momento, tratava-se mais de negar os valores e a ordem
estabelecidos do que de propor qualquer alternativa concreta. Nessa medida,
era de esperar que, cedo ou tarde, apesar de abalada, a CGT retomasse sua
hegemonia sobre a maioria dos operários de esquerda.
Nos meios operários e estudantis, misturavam-se os propósitos, que va­
riavam desde o desejo de melhorias salariais e trabalhistas dentro da ordem
reformada, passando pela contestação radical da sociedade do bem-estar e
do consumo, até as propostas revolucionárias anticapitalistas. Bandeiras ver­
melhas (marxistas) e pretas (anarquistas) espalhavam-se pelas ruas e monu­
mentos; frases libertárias e criativas eram pichadas nos muros; revoltosos
ocupavam barricadas em clima de festa e prazer, abraçavam-se e beijavam-se
em público; apareciam declarações de apoio às lutas de libertação nacional
no Terceiro Mundo, especialmente no Vietnã; o rosto de Che Guevara, assas­
sinado em 1967, ressurgia em bandeiras e cartazes; manifestantes entoavam
a Internacional.
Vários artistas aderiam ao movimento, que interrompeu o Festival de Ci­
nema de Cannes e ocupou o tradicional Teatro Odéon. Em 20 de maio, havia

145
O SÉCULO XX

10 milhões de trabalhadores em greve, além de todo o sistema universitário.


A França parou de trabalhar: metade do país sonhava com transformações,
a outra metade as temia, resguardando-se, intimidada, para dar o troco na
primeira oportunidade. O filósofo Jean-Paul Sartre declarava que o movi­
mento estudantil estaria preparando a verdadeira via ao socialismo e à liber­
dade, que seriam inseparáveis. Sucediam-se declarações de apoio de expres­
sivos intelectuais de esquerda, na França e no exterior, como Herbert
Marcuse, autor de livros afinados com o ideário do movimento, ainda antes
de seu surgimento.
Mesmo sem jamais terem obtido controle sobre o conjunto dos revolto­
sos, floresceram pequenos e variados grupos contestadores: trotskistas, anar­
quistas, maoístas e outros, como os situacionistas, autores de muitas das fra­
ses mais criativas pichadas nos muros de Paris e outras cidades. Os situacio­
nistas eram herdeiros e dissidentes do surrealismo, propunham uma fusão
entre a política e a arte, bem como a “revolução integral na vida cotidiana”.
Em 1957, eles haviam criado uma Internacional Situacionista, que a princí­
pio era mais artística que política, invertendo esses pólos em meados dos
anos 60, ao defender a autogestão e a revolução proletária como uma festa,
em que a regra é gozar a vida. As idéias de festa de libertação coletiva e de
fruição dos prazeres pessoais foi muito marcante na França de 1968.
Situacionistas escreveram alguns dos livros mais significativos e influen­
tes no período, como A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, e Tratado
de saber-viver para o uso das novas gerações, de Raoul Vaneigem. Ambos
foram publicados em 1967, ano do filme A chinesa, de Jean-Luc Godard,
que profetizara o maio de 68 e a influência sobre setores da juventude da re­
volução cultural, em curso na China a partir de 1966. Essa influência basea-
va-se em imagens ideais libertárias, projetadas no exterior pela revolução
cultural — imagens que talvez tivessem tênue ligação com seu real significa­
do na pátria de Mao.
A identidade de alguns jovens revoltosos franceses de 1968 com a revolu­
ção cultural chinesa dava-se porque viam nela: o combate ao processo de bu-
rocratização nos países socialistas; uma política externa de solidariedade com
as nações do Terceiro Mundo; a ênfase na ação espontânea das massas no pro­
cesso de ruptura da divisão entre campo e cidade, trabalho intelectual e traba­
lho manual; igualitarismo social, em detrimento das forças do mercado; admi­
nistração popular direta; uso da energia e do entusiasmo da juventude etc.
Nas circunstâncias descritas, a insubordinação e as greves estudantil e

<46
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

operária levaram a uma crise geral de autoridade na França, propagada aos


quatro cantos pela imprensa escrita, pelo rádio e pela televisão, que levavam
ao mundo palavras, sons e imagens da contestação. O governo sentia-se po­
liticamente frágil para enfrentar a revolta e temia lançar mão de armas con­
tra o manifestantes, o que poderia levar a uma guerra civil, recurso a que re­
correría apenas em último caso. Por outro lado, até mesmo instituições con­
solidadas de esquerda, como o PCF e a CGT, sentiam questionada sua auto­
ridade sobre os trabalhadores. O presidente De Gaulle mantinha negociações
com os comunistas para a ruptura do impasse, que surpreendia e ameaçava
os dois lados. Esboçou-se o acordo de Grenelle (rua do Ministério do
Trabalho), entre governo, patrões e operários, fazendo concessões trabalhis­
tas. Mas o movimento grevista não arrefeceu de imediato.
Em 29 de maio, De Gaulle chegou a sair subitamente de Paris para man­
ter conversações secretas com generais do exército no exterior, particular­
mente Massu, comandante das forças francesas sediadas na Alemanha
Ocidental. Rearticulavam-se os conservadores: os generais garantiram apoio
a De Gaulle, se preciso, usando a força para restabelecer a ordem. Em con­
trapartida, o presidente comprometeu-se a libertar os últimos militares ainda
presos, devido a suas ações terroristas na França, contra a independência da
Argélia.
De Gaulle retornou decidido a, mais uma vez, colocar ordem na casa fran­
cesa: no dia 30 de maio, dissolveu o Parlamento e convocou eleições gerais.
Ameaçada pelo desenrolar dos acontecimentos, a maioria silenciosa conserva­
dora abandonava suas tocas, ia às ruas de Paris em apoio ao presidente, fazen­
do manifestações de centenas de milhares de pessoas. Revertia-se a situação. A
própria esquerda institucionalizada, esperançosa de vencer nas urnas, tratava
de garantir um desenrolar normal do pleito, preparando o fim da greve. Isso
valia tanto para os comunistas, liderados por Georges Marchais, como para os
socialistas, capitaneados por François Mitterrand e Mendès-France.
Em seguida, o governo implementaria medidas do acordo de Grenelle e,
por outro lado, mandaria a polícia recuperar fábricas, repartições públicas e
estabelecimentos escolares ocupados por revoltosos. Encontrou pouca resis­
tência, que se estendeu num ou outro local isolado até o fim de junho. No dia
12, o governo colocou na ilegalidade 11 grupos revolucionários estudantis,
proibiu manifestações e prendeu militantes. No dia 23, a direita francesa
venceu o primeiro turno das eleições gerais, com 43,65% dos votos para can­
didatos gaullistas. A vitória foi confirmada no seguqdo turno, em 30 de

147
O SÉCULO XX

junho: o centro e a direita conseguiram 358 cadeiras no Parlamento, de um


total de 485.
Derrotado o movimento de maio, intelectuais e militantes franceses bus­
caram explicá-lo. Até hoje não há consenso nas interpretações, muitas vezes
contraditórias entre si. Por exemplo, alguns pensam que os eventos de maio
na França foram um fenômeno essencialmente estudantil e de juventude, a
comprovar que a luta de classes já não seria adequada para compreender os
movimentos sociais contemporâneos; ao passo que outros entendem que o
caráter distintivo do movimento foi a greve geral dos trabalhadores, que lhe
deu o conteúdo fundamental de classe. Alguns vêem os movimentos estudan­
tis de 68 como um passo importante para adaptar a Universidade à vida mo­
derna, pois até então ela estaria ultrapassada, em descompasso com as novas
necessidades do mercado de trabalho. Outros contestam essa interpretação:
os estudantes de 68 não estariam à procura de uma carreira dentro da
ordem, mas buscavam contestá-la radicalmente, promovendo uma grande
recusa de todos os aspectos da ordem estabelecida. Segundo certos autores,
1968 é um mito em grande parte criado pela mídia; para outros, é o ano fun­
dador de uma forma inovadora de fazer política, que teria aberto um novo
período na História. Para uns, maio foi uma revolta individualista, o adven­
to atrasado na França de um consumismo permissivo, que anunciaria o flo­
rescimento subseqüente da ideologia capitalista, ao combater as noções de
proletariado e de nação como sujeitos coletivos. Para outros, significou a
abertura de uma brecha no sistema, um vislumbre de que a revolução socia­
lista e libertária seria possível na Europa.
Philippe Bénéton e Jean Touchard chegaram até a construir uma classifi­
cação de oito tipos diferentes de interpretações sobre maio de 68 na França
tipos que talvez também possam ser válidos para pensar outros movimen­
tos daquele ano. Maio de 68 seria visto como: 1. complô anticapitalista para
subverter a ordem; 2. crise da Universidade, ligada essencialmente à margi-
nalização social dos estudantes; 3. revolta da juventude; 4. crise da civiliza­
ção, geradora de consumismo numa sociedade tecnificada; 5. conflito de
classe de um novo tipo, mais cultural e político do que econômico; 6. confli­
to de classe de tipo tradicional; 7. crise política, dada a ausência de alterna­
tivas viáveis; 8. encadeamento de circunstâncias. Keith Reader aumentou
essa tipologia: 9. exercício de modernização social, prefigurando o ressurgi­
mento do individualismo nos anos 70 e 80; 10. oportunidade revolucionária
perdida ou traída; 11. interpretações culturais.
A despeito de todas essas interpretações, está longe de fechar-se o leque

148
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

de hipóteses para compreender o fenômeno. Isso talvez seja indicativo de que


maio de 1968 na França e o conjunto mundial dos movimentos daquele ano
ainda estão carregados de atualidade.

1968 NO BRASIL

No Brasil, acima da influência dos fatores internacionais e da identidade com


movimentos contestadores de outros países, 1968 teve especificidades locais
determinantes. O movimento estudantil daquele ano, por exemplo, nasceu
de uma dinâmica de luta própria, anterior a maio de 1968.
Em 31 de março de 1964, um golpe militar interrompera o processo de
democratização política e social, marcado pela mobilização popular em
busca das reformas de base, que permitiríam melhor distribuição da riqueza
e de direitos. O golpe deu fim às crescentes reivindicações de trabalhadores
urbanos e rurais, estudantes, intelectuais e militares de baixa patente, cuja
politização ameaçava a ordem estabelecida.
A falta de resistência ao golpe gerou surpresa e foi atribuída por muitos
aos erros dos dirigentes dos partidos de esquerda, que não se prepararam
1
IP 1
para resistir, notadamente o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Formara-se
uma corrente de opinião favorável à criação de uma vanguarda realmente re­
m*. volucionária, para opor uma resistência armada à ditadura e avançar em di­
reção à superação do capitalismo.
Em outubro de 1965, o regime extinguiu os partidos constituídos. Impôs
normas que levariam à existência legal de apenas dois partidos: a situacionis­
ta Aliança Renovadora Nacional (Arena) e a oposição moderada do
Movimento Democrático Brasileiro (M1)B), que viria a ser calada com cas-
sações de políticos e outros mecanismos, sempre que se excedesse aos olhos
dos governantes.
Fora do campo institucional, vários grupos procuravam combater a dita­
dura c organizar os movimentos populares: além do PCB, a Ação Popular
(AP), o Partido Comunista do Brasil (PC do B), a Política Operária (Polop) e
dezenas de pequenos grupos que comporiam a “nova esquerda revolucioná­
ria” — caso da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR). Dada a repressão que praticamente dizimou os seto­
res combativos do sindicalismo e de outros movimentos populares, a princi­

149
O SÉCULO XX

pal fonte de recrutamento de militantes estava no meio estudantil, berço do


único movimento de massas que se rearticulou nacionalmente nos primeiros
anos do pós-64, lançando-se em significativos protestos de rua em 1968.
1968 iniciou no Brasil com manifestações de estudantes. Por um lado
eles reivindicavam ensino público e gratuito para todos, uma reforma que
democratizasse o ensino superior e melhorasse sua qualidade, com maior
participação estudantil nas decisões, mais verbas para pesquisa — voltada
para resolver os problemas econômicos e sociais do Brasil. Por outro lado, os
estudantes contestavam a ditadura e o cerceamento às liberdades democráti­
cas. Naquela época, a maioria dos universitários estudava em escolas públi­
cas e o acesso ao ensino superior era bem mais restrito que nos dias de hoje,
havendo uma demanda muito maior que a oferta de vagas.
As manifestações estudantis de rua vinham acontecendo desde 1966,
com repressão policial, mas foi em 1968 que amadureceu a rebelião estudan­
til. No início do ano, mobilizaram-se por mais vagas os excedentes (estudan­
tes que obtinham média nos vestibulares, mas não entravam na Universidade
porque o número de aprovados excedia o número de vagas disponíveis); en­
quanto os freqüentadores de um restaurante estudantil carioca, conhecido
como Calabouço, pleiteavam sua ampliação e melhoria. Essas reivindicações
específicas associavam-se à luta mais geral contra a política educacional e
contra a própria ditadura.
O primeiro grande conflito de rua de 1968 surgiu em torno do restauran­
te Calabouço, que foi invadido a tiros pela polícia em 28 de março. Resul­
tado: vários feridos e um morto, o secundarista Edson Luís de Lima Souto.
O corpo foi levado para a Assembléia Legisíadva. Compareceram ao enterro
milhares de pessoas, enquanto no resto do país houve passeatas de protesto.
Numa delas, em Goiânia, a repressão policial matou mais um estudante.
Em abril e maio, ocorreram novas manifestações públicas, mas os estu­
dantes em geral recolheram-se no interior das faculdades, para refazer forças.
Enquanto isso, nos sindicatos de trabalhadores, esboçavam-se movimentos de
contestação, dos mais moderados aos mais radicais. Em abril, estes últimos li­
deraram uma greve em Contagem, cidade industrial próxima a Belo Ho­
rizonte: abalado pelo surgimento inesperado do movimento operário, o gover­
no fez concessões. Já os setores mais moderados constituíram o Movimento
Intersindical Antiarrocho (MIA), logo abortado. A entidade chegou a convi­
dar o governador de São Paulo, Abreu Sodré, para o comício de Io de Maio na
Praça da Sé. Esperançoso de conseguir algum respaldo popular para seu pro­
jeto de vir a tornar-se presidente da República, indicado pelo regime, Sodré

1 50
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

compareceu ao ato. Arrependeu-se: grupos operários de Osasco e do ABC, es­


tudantes e militantes da nova esquerda resolveram expulsar do palanque o go­
vernador e os dirigentes sindicais considerados pelegos, que tiveram de refu­
giar-se na Catedral. Depois de queimar o palanque, a pequena multidão de re­
voltosos saiu em passeata, gritando: “Só a luta armada derruba a ditadura.”
Em junho, o movimento estudantil ganharia novamente as ruas, atingin­
do seu ápice em todo o país. Ocorriam greves, ocupações de faculdades, pas­
seatas etc. Os estudantes exploravam as divergências na cúpula do regime,
indecisa entre a abertura e o fechamento político nacional. O palco principal
era o Rio de Janeiro, onde os estudantes conseguiam adesão popular a suas
manifestações: no dia 19 de junho, mais de cem pessoas foram presas após
sete horas de enfrentamento nas ruas; no dia 21, as cenas repetiram-se, ainda
mais agravadas, com quatro mortos, dezenas de feridos e centenas de presos
durante a sexta-feira sangrenta. No dia 22, ocorreu a primeira de uma série
de ocupações de escolas pelo país afora, na tradicional Faculdade de Direito
de São Paulo, logo seguida pela Faculdade de Filosofia. Sucediam-se protes­
tos, manifestações, ocupaçõés e passeatas também em Belo Horizonte,
Curitiba, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, João Pessoa,
Florianópolis, Natal, Belém, Vitória, São Luís e outros centros universitários.
No dia 26 de junho, teve lugar a Passeata dos Cem Mil, em que estudan­
tes, intelectuais, artistas, religiosos e populares tomaram as ruas do Rio de
Janeiro para protestar contra a repressão policial às manifestações e contra a
ditadura. Dada a pressão da opinião pública, o governo não reprimiu a pas­
seata, na qual foi escolhida uma comissão ampla para iniciar um diálogo
com o governo, que não prosperou. O movimento estudantil entrava num
impasse: as autoridades não faziam concessões e intensificavam a repressão.
Paralelamente, uma organização paramilitar de extrema direita, o Comando
de Caça aos Comunistas (CCC), composto por estudantes e policiais, reali­
zava uma série de atentados terroristas.
Em julho, operários fizeram uma greve em Osasco, cidade da Grande
São Paulo. Na época, Osasco foi chamada “a Meca das esquerdas”, devido
à atração exercida pela combatividade do Sindicato dos Metalúrgicos — em
contraste com a mobilização operária escassa em quase todo o país. José
Ibrahim, presidente do Sindicato, e os principais líderes do movimento eram
também estudantes, muito influenciados pelo exemplo da revolução cubana.
Decidido a não fazer mais concessões, o governo reprimiu duramente a
greve. A maioria de seus líderes caiu na clandestinidade; os que ainda não
eram militantes de organizações de esquerda passaram a sê-lo.

151
O SÉCULO XX

Em 3 de agosto de 1968, foi preso o principal líder estudantil carioca,


Vladimir Palmeira. No dia 29, a Universidade de Brasília foi violentamente
invadida pela polícia. O número de passeatas e de participantes ia diminuin­
do drasticamente. Em 3 de outubro, morreu um estudante na Faculdade de
Filosofia da USP, em ataque de estudantes de direita abrigados na Univer­
sidade Mackenzie, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Nos dias seguintes,
houve passeatas e choques com a polícia. Esta, no dia 15 de outubro, des­
mantelou o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna,
prendendo todos os presentes, cerca de 700 universitários. Era o fim do mo­
vimento estudantil de 1968. Muitos de seus integrantes passariam a concen­
trar suas atividades na militância política clandestina contra a ditadura, em
organizações de esquerda — algumas delas já começavam a fazer uma ou
outra ação armada em 1968.
A contestação radical à ordem estabelecida difundia-se socialmente na
música popular, na literatura, no teatro, no cinema e nas artes plásticas.
Romances como Quarup, de Antonio Callado; filmes como Terra em transe,
de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Ruy Guerra, entre outros do Cinema Novo;
peças encenadas no Teatro de Arena e no Oficina; canções como Pra não dizer
que não falei das flores (Caminhando), de Geraldo Vandré, Procissão, de
Gilberto Gil, Soy loco por ti, América, de Capinam e Gil, e outras de compo­
sitores como Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento
e seus parceiros; as exposições de artes plásticas, caso da Nova Objetividade
Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; enfim, inúmeras
manifestações culturais diferenciadas, entre 1964 e 1968, cantavam em verso
e prosa a esperada revolução brasileira — com base principalmente na ação
das massas populares, em cujas lutas a intelectualidade de esquerda estaria or­
ganicamente engajada.
Em 1968, os setores artísticos críticos da ordem estabelecida estavam di­
vididos, grosso modo, em dois grandes campos: o dos nacionalistas e o dos
vanguardistas. Os primeiros procuravam usar uma linguagem autenticamen­
te brasileira, na luta pela afirmação de uma identidade nacional-popular que
seria, no limite, socialista. Já os vanguardistas — capitaneados pelo movi­
mento tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil — criticavam o nacio­
nal-popular, buscando sintonizar-se com as vanguardas européia e america­
na, particularmente com a contracultura, incorporando-as criativamente à
cultura brasileira. Apesar das divergências e das rivalidades entre eles, os ar­
tistas engajados nos dois campos viriam a sofrer perseguições, censura a suas
obras e até mesmo prisão e exílio.

152
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

O ano de 1968 encerrou-se no Brasil sob o signo da repressão: em 13 de


dezembro, o regime civil-militar baixara o Ato Institucional número 5 (AI-
5), conhecido como “o golpe dentro do golpe”. Com ele, os setores militares
mais direitistas oficializaram o terrorismo de Estado, que passaria a deixar
de lado quaisquer pruridos liberais, até meados dos anos 70. Agravava-se o
caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional
e as Assembléias Legislativas estaduais, passando a ter plenos poderes para:
cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir
ou aposentar juizes e outros funcionários públicos, suspender o habeas cor-
pus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar cri­
mes políticos em tribunais militares, entre outras medidas autoritárias.
Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do as­
sassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da segurança nacional, tida
como indispensável para o desenvolvimento do posteriormente denominado
milagre brasileiro na economia.
Com o AI-5, foram presos, cassados, torturados, mortos ou forçados ao
exílio inúmeros estudantes, intelectuais, políticos e outros oposicionistas. O
regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação e manifesta­
ções artísticas, colocando um fim à agitação política e cultural do período.
Não seria tolerada qualquer oposição ao governo. O ano rebelde de 1968
seria sucedido por anos de chumbo.

OUTROS 1968s

1968 foi um ano de agitação e protesto em países do mundo todo: México,


Itália, Alemanha, Japão, Egito, Senegal, Suécia, Bélgica, Holanda, Inglaterra
etc. Para dedicar algumas palavras a mais à América Latina, vale destacar o
movimento estudantil do México.
De 26 de julho a 2 de outubro de 1968, o México viveria dias de protes­
tos, passeatas, repressão e luto nas ruas, tomadas por estudantes e professo­
res. Eles desafiavam o poder do Partido Revolucionário Institucionalizado
(PRI), condutor de um sistema político autoritário, fechado e corrupto, vi­
gente há décadas. Setores das classes médias opositoras do regime conse­
guiam conviver com ele, em parte, pela autonomia concedida pelo governo à
maior universidade do país — a Universidade Autôno,ma do México (Unam),
escola pública, respeitada como intocável templo do saber. Essa autonomia

153
O SÉCULO XX

foi ameaçada quando a polícia ocupou a Unam, no dia 18 de setembro de


1968, em resposta a protestos e a uma greve. Encabeçados pelo reitor, pro­
fessores, funcionários e estudantes saíram em defesa da universidade.
A partir daí, ocorreu nova série de atos públicos duramente reprimidos,
que deixaram vários mortos e feridos. O mais trágico deles foi o de 2 de ou­
tubro. Às vésperas dos Jogos Olímpicos do México, sequioso por garantir a
lei e a ordem para o evento, o governo — articulado com a Central de
Inteligência Americana (CIA) — mandou a polícia abrir fogo contra os ma­
nifestantes na Praça das Três Culturas, Tlatelolco. No massacre, morreram
centenas de pessoas, cerca de 1,5 mil foram presas, outras tiveram de se es­
conder. Com isso, o governo logrou desarticular o movimento universitário.
No âmbito da América Latina, também é essencial observar que 1968 foi
um ano importante para a mudança de postura de setores significativos de
uma das instituições mais importantes: a Igreja Católica. Em agosto, foi rea­
lizada em Medellín, na Colômbia, a Conferência Episcopal Latino-America­
na (Ceiam), na qual se esboçaram a opção preferencial pelos pobres e a defe­
sa dos direitos humanos, constantemente violados pelas ditaduras que domi­
navam a região.
Não foi, contudo, apenas nos países capitalistas que tiveram lugar as ma­
nifestações de 1968. Também em sociedades ditas socialistas — como
Polônia, Iugoslávia e Tchecoslováquia — estudantes e outros setores sociais
ganharam as ruas para expressar sua insatisfação com regimes burocratiza-
dos e autoritários, com raízes stalinistas, muito distantes das promessas li­
bertárias da tradição de pensamento marxista, inclusive da experiência dos
primórdios da revolução soviética.
Um dos eventos mais significativos de 1968 foi a Primavera de Praga. Em
janeiro, o reformador Alexander Dubcek foi escolhido primeiro-secretário do
Partido Comunista (PC), o cargo mais alto na direção do país. Iniciava-se a
breve experiência que eles chamaram de socialismo democrático, ou “socialis­
mo de face humana”. O planejamento econômico ficava a cargo de Ota Sik,
que inovava, ao flexibilizar o controle econômico estatal centralizado. De ja­
neiro a agosto de 1968, a Tchecoslováquia conheceu extraordinário floresci­
mento cultural e político. Abriu-se espaço para a discussão política ampla,
houve descentralização das decisões, criaram-se conselhos de trabalhadores, a
história recente do país era debatida e as artes ganharam impulso.
O estopim do processo que conduziu à Primavera de Praga foi a posição
assumida, em julho de 1967, por alguns autores presentes ao 4° Congresso
da União dos Escritores Tchecoslovacos, que reivindicavam o fim da censu-

i 54
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

ra, novas relações entre política e cultura, entre os cidadãos e o Estado. A in­
satisfação nos meios intelectualizados foi-se avolumando, inclusive na dire­
ção do PC, que afastou o até então todo-poderoso Novotny. A luta contra as
velhas estruturas ganhou a adesão sobretudo dos jovens, afinados com a
onda juvenil libertária internacional.
Sentindo-se ameaçadas pelos ventos liberalizantes, as burocracias no
poder nos demais países do Leste europeu trataram de reprimir o mau exem­
plo: em 20 de agosto de 1968, tropas do Pacto de Varsóvia — lideradas pelas
forças armadas da União Soviética — invadiram a Tchecoslováquia para re­
colocar no poder gente de sua confiança. Houve protestos e escaramuças que
deixaram cerca de 30 mortos e centenas de feridos ao longo da ocupação de
um mês. Contudo, predominou a resistência passiva, estampada, por exem­
plo, em frases criativas pichadas nos muros de Praga, com espírito irônico
próximo daquele de maio de 68 em Paris: “circo russo na cidade: não ali­
mentem os animais”; “Ivan, pense na tensão sexual de Lena”; “grande expo­
sição de armas soviéticas na praça Venceslau: entrada franca, saída difícil”.
O exército tchecoslovaco-‘ficou nos quartéis, devidamente instruído por
generais locais, inimigos das reformas. A população saiu às ruas para protes­
tar, houve uma greve geral, o PC realizou um congresso clandestino, mas os in­
vasores mantiveram o controle da situação. Após instalar no comando do PC
homens de sua confiança, os invasores deixaram o país; então, caberia à polí­
cia política da própria Tchecoslováquia fazer o trabalho sujo da repressão.
Talvez tenha sido a última oportunidade perdida para reformar o socialismo
real: os documentos da época atestam que a ideologia do movimento tchecos-
lovaco era de avanço socialista, não de retorno ao capitalismo. O socialismo
real no Leste europeu, apodrecido em suas estruturas internas, viria a ruir
como um castelo de cartas, mais de vinte anos depois, em outra conjuntura in­
ternacional, dando lugar ao retorno do capitalismo, cujos novos capitães de
empresa seriam os mafiosos que operavam no câmbio negro durante o socia­
lismo e os próprios burocratas que tanto haviam defendido o comunismo...

CONCLUSÃO

Em 1968, o mundo já seria uma aldeia global, na expressão célebre da época,


do sociólogo canadense Marshall McLuhan, que anunciava o fim da era da
imprensa escrita e sua substituição pela era da comunicação audiovisual ime-

155
O SÉCULO XX

diata em todo o mundo. A rápida difusão das notícias pela aldeia global po­
de ser considerada um dos aspectos para compreender a generalização inter­
nacional de eventos como os protestos estudantis de Paris ou a Guerra do
Vietnã. A influência da televisão na França, no Brasil e em outros países,
seria maior nos anos 70, mas já era considerável no fim da década de 1960.
Nos EUA, ela já era enorme em 1968.
Contudo, se os meios de comunicação de massa tiveram um papel consi­
derável para informar os agentes sociais das agitações que se iam sucedendo
em todas as partes do mundo, isso não significa que os protestos se espalha­
ram como reflexo do fenômeno da televisão, ou como mera imitação, mas
porque estavam dadas as condições para que as notícias recebidas tivessem
repercussão e as informações incorporadas colaborassem na construção de
novas ações criativas, política e culturalmente.
Algumas condições materiais eram compartilhadas pelas diversas socie­
dades em que houve o florescimento cultural e político de 1968 — além das
especificidades locais. Essas condições eram.tuais significativas nos países
centrais, mas importantes também em países em desenvolvimento, como o
México e o Brasil: crescente urbanização, consolidação de modos de vida e
cultura das metrópoles, aumento quantitativo das classes médias, acesso cres­
cente ao ensino superior, peso dos jovens na composição etária da população,
incapacidade do poder constituído para representar sociedades que se reno­
vavam, avanço tecnológico (por vezes ao alcance das pessoas comuns, que
passaram a ter cada vez mais acesso, por exemplo, a eletrodomésticos, nota-
damente aparelhos de televisão, além de outros bens, como a pílula anticon­
cepcional — o que possibilitaria mudanças consideráveis de comportamento)
etc. Essas condições materiais não explicam por si sós as ondas de rebeldia e
revolução, apenas abriram possibilidades para que frutificassem ações políti­
cas e culturais inovadoras, buscando colocar a imaginação no poder.
Foram características dos movimentos libertários de 1968 no mundo
todo: inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica;
crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução; busca
do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacre­
ditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo
soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade
de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos de desobe-
diencia civil; ansia de libertação pessoal das estruturas do sistema (capitalis­
ta ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre

1 56
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

lutas sociais amplas e interesses imediatos das pessoas; aparecimento de as­


pectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminis­
mo, de movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros que vi­
ríam a desenvolver-se nos anos seguintes.
Já se disse, com propriedade: o ano de 1968 não deve ser mitificado, mas
sua importância não pode tampouco ser minimizada. As contestações de
1968 marcaram a História contemporânea. A profundidade e a extensão des­
sas marcas são até hoje objeto de muita discussão. Talvez o fascínio de 1968
venha de sua ambigüidade na promessa de construir formas de futuro reno­
vadas, quer de um novo tipo de capitalismo, quer de socialismo. No entanto,
o peso do passado viria a provar-se muito maior do que os militantes de 1968
supunham — tão grande que muitos militantes da época viriam a passar para
o campo conservador vitorioso, chegando até mesmo a ocupar cargos como
os de primeiros-ministros e presidentes da República de governos que adotam
medidas neoliberais em todo o mundo de hoje. Em que medida as promessas
libertárias de 1968 foram, nãq foram, estão sendo ou ainda poderão ser cum­
pridas? As interrogações sobre 1968 permanecem em aberto.

FRASES PICHADAS NOS MUROS FRANCESES EM MAIO DE 1968

“É proibido proibir”; “a imaginação no poder”; “sejamos realistas, peçamos


o impossível”; “a mercadoria, nós a queimaremos”; “a barricada fecha a rua
mas abre o caminho”; “a palavra é um coquetel molotov”; “a humanidade
nunca será feliz até o último capitalista ser enforcado nas tripas do último
burocrata”; “o homem [...] é violento quando oprimido, doce quando é
livre”; “nosso modernismo não passa de uma modernização da polícia”;
“limpeza = repressão”; “as fronteiras que se danem”; “corra, camarada, o
velho mundo está atrás de você”; “a felicidade é uma idéia nova na Escola de
Ciência Política”; “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”;
“você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; “estamos
tranqüilos: 2 + 2 não são mais 4”; “a liberdade do outro amplia a minha ao
infinito” (frase original do anarquista clássico, Bakunin); “abrir as portas
dos asilos, das prisões e outros liceus”; “acho que meus desejos são realida­
de porque acredito na realidade de meus desejos”; ‘!faça amor, não faça guer­
ra ”; “inventem novas perversões sexuais”; “aquéje que fala de revolução
O SÉCULO XX

sernVnudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver”; “quanto ma>s eu faço


amor^ynais eu tenho vontade de fazer a revolução; quanto ma:s eu faço a re­
volução, mais eu tenho vontade de fazer amor”; “o sexo da noite sorriu ao
olho unânime da revolução”; “levemos a revolução a sério, mas não nos le­
vemos a sério ; revolução, eu te amo”; “a morte é necessariamente uma
contra-revolução”.

BIBLIOGRAFIA

i Anderson, Perry. 1985. A crise da crise do marxismo. T. ed. São Paulo, Brasiliense.
Ains, Paulo E. (pref.). 1985. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes.
Callado, Carlos. 199 . Tropicália. São Paulo, ed. 34.
Cardoso, Irene. 1988. “Os acontecimentos de 1968 — notas para uma interpretação”, in
Santos, M.C.L. dos (org.). Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo, Nobel.
Debord, Guy. 1997. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto.
Favaretto, Celso. 1996. Tropicália alegoria alegria. 21 ed. revista. São Paulo, Ateliê Ed.
Perry, Luc e Repaut, Alain. 1985. Pensamento 68. São Paulo,-Ensaio.
Garcia, M arceiAurélio e Vieira, Maria Alice (org.). 1998. Rebeldes e contestadores —
1968, Brasil, França, Alemanha. São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo.
Goldfelder, Soma. 1981. A Primavera de Praga. São Paulo, Brasiliense. Coleção Tudo É
História.
Gc.ender, Jacob. 1987. Combate nas trevas — a esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada. São Paulo, Ática.
Maciel, Luiz Carlos. 1987. Anos 60. Porto Alegre, LP&cM.
Martins Filho, João Roberto. 1987. Movimento estudantil e ditadura militar, 1964-1968.
Campinas, Papirus.
-------------- 1996. Rebelião estudantil: 1968 — México, França e Brasil. Campinas,
Mercado das Letras.
-------- — ■<orS-)- 1998- /áz 30 anos. Campinas, Mercado das Letras; São Carlos
ed. da UFSCar.
i
Matos, Olgárta. 1981. Paris 1968 — as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense.
Coleção Tudo É História.
i Perrone, Fernando. 1988. ’68 relatos de guerra: Praga, São Paulo, Paris. São Paulo, Busca
Vida.
Reis Filho, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de (org.). 1988 — reeditado em 1998. 1968, a
paixão de uma utopia. Rio de Janeiro, Espaçe e Tempo.
Ridenti, Marcelo S. 1993. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo, ed. Unesp/FA-

158

I
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

------------2000. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.


Rio de Janeiro, Record.
Valle, Maria Ribeiro do. 1999. 1968: o diálogo é a violência: movimento estudantil e di­
tadura militar no Brasil. Campinas, ed. da Unicamp.
Veloso, Caetano. 1997. Verdade tropical. São Paulo, Companhia das Letras.
Ventura, Zuenir. 1988. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

0 mundo socialista:
expansão e apogeu
Daniel Aarão Reis Filho
Professor titular de História Contemporânea
da Universidade Federal Fluminense

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

E n tre 1 9 4 5 , q u a n d o se e n c e rro u a S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, e 1 9 8 5 , q u a n ­


d o te v e in íc io o p r o c e s s o d a perestroika, o m u n d o s o c ia l is ta , a p e s a r d e p r o ­
b le m a s e c o n t r a d i ç õ e s , c o n h e c e u u m t e m p o d e s u c e s s o , d e e x p a n s ã o e d e g ló ­
r ia . N o e n t a n t o , d e s d e a s e g u n d a m e ta d e d o s a n o s 7 0 e , s o b r e t u d o , a p a r t i r
d o s a n o s 8 0 , c o m e ç a r a m a se m u l t i p l i c a r o s s in a is d e u m a c r is e m a io r , e m b o ­
r a m u i t o p o u c o s im a g in a s s e m a s u a p r o f u n d i d a d e .
O e s t u d o d a e v o l u ç ã o d o s is te m a s o c ia l is ta , e n c e t a d o p e lo p r e s e n te t e x t o ,
c o n s i d e r a r á , e m p r i m e i r o e p r i n c i p a l lu g a r, o s e u n ú c l e o p a r a d i g m á t i c o , a
U n i ã o S o v ié tic a , m a s t a m b é m t r a b a l h a r á , d e m o d o m u i t o r á p i d o , c o m o u t r a s
re fe rê n c ia s e e x p e riê n c ia s s o c ia lis ta s : as q u e tiv e ra m lu g a r n a E u ro p a
C e n tra l, d e s d e o té rm in o d a S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, a s c h a m a d a s demo­
cracias populares-, a s q u e o c o r r e r a m n a Á sia O r i e n t a l ( C o r é ia e V ie tn ã ) e n a
C h i n a ( t r i u n f o d a r e v o lu ç ã o c h in e s a e m 1 9 4 9 ) , o n d e o s o c ia l is m o se a f i r m o u
p o r m e io d e g u e r r a s c a m p o n e s a s c o n d u z i d a s p e lo s c o m u n i s t a s ; a s q u e se d e ­
s e n v o lv e r a m n a E u r o p a O c i d e n t a l , c o m o s u r g im e n to d e u m a a l t e r n a t i v a q u e
s e p r e t e n d e u r a d ic a lt n e n te d if e r e n te d o m o d e lo s o v ié tic o : o e u r o c o m u n í s m o ;
a s q u e se v e r if ic a r a m n a A m é r ic a L a t i n a , c o m o t r i u n f o d a r e v o l u ç ã o c u b a ­
n a , e m 1 9 5 9 , q u e se t r a n s m u d o u d e s d e o c o m e ç o d o s a n o s 6 0 n u m a r e v o l u ­
ç ã o s o c ia l is ta ; e , f in a l m e n t e , a s e x p e r i ê n c ia s r e a l iz a d a s n a Á f r ic a e n o m u n d o
á r a b e , o n d e p r o p o s t a s n a c i o n a l i s t a s e e s t a t i s t a s , la r g a m c n t e in s p i r a d a s n a s
e x p e r i ê n c ia s s o v ié tic a e c h i n e s a , h a v e r í a m d e c o n d i c i o n a r a s lu ta s d e l i b e r t a ­
ç ã o n a c io n a l e a c o n s tr u ç ã o d e n o v o s e s ta d o s n a c io n a is s o b e ra n o s .
A n a r r a t i v a s e d e s d o b r a r á e m tr ê s p e r ío d o s . E m p r i m e i r o lu g a r, o t e m p o
d a e x p a n s ã o e d a s u p r e m a c i a d o s o c ia lis m o s o v ié tic o , q u e se e s te n d e d e 1 9 4 5
— t é r m i n o d a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l — a 1 9 5 3 - 5 4 , q u a n d o se e n c e r r a m
a g u e r r a c iv il d a C o r é i a e a G u e r r a d o V ie tn ã c o n t r a o c o l o n i a l i s m o fr a n c ê s .
E m 1 9 5 3 d e s a p a r e c e ig u a lm e n t e J . S ta lin , q u e c h e f i a r a o g o v e r n o s o v ié t ic o
d u r a n t e q u a s e v in t e a n o s . C o m e le , c o m o s e v e r á , t e n d e r a m t a m b é m a d e s a ­

13

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

p a r e c e r c e r t a s e s c o lh a s e s tr a t é g ic a s e c e r t o s p a d r õ e s d a c u l t u r a p o lí tic a a t é
e n t ã o p r e v a le c e n te n o â m b i t o d o c o m u n is m o in t e r n a c i o n a l.
O s e g u n d o p e r ío d o a s s in a l a o a p o g e u d o s o c ia lis m o e , a o m e s m o te m p o ,
o a p a r e c i m e n t o d e v á r ia s c ris e s q u e p a s s a m a s o l a p a r o s is te m a . E le p r o lo n g a *
se d e 1 9 5 3 a 1 9 7 5 , q u a n d o t r i u n f a a lo n g a g u e r r a d o V ie tn ã c o n t r a o s E s ta d o s
U n id o s . O m u n d o s o c ia lis ta c o n h e c e u n e s s e p e r ío d o u m p r o c e s s o d e e x t r e m a
d iv e rs ific a ç ã o , e s te n d e n d o - s e s u a á r e a d e in f lu ê n c ia à A m é ric a L a tin a ( C u b a ) ,
à Á f r ic a , à Á sia e a o m u n d o is lâ m ic o . A o m e s m o te m p o , a c e n t u a r a m - s e a s
c o n t r a d iç õ e s in t e r n a s , q u e d e s e m b o c a r a m , e m a lg u n s m o m e n to s , e m in v a s õ e s
m ilita r e s e g u e r r a s e n tr e o s E s ta d o s s o c ia lis ta s . A p e s a r d a s f r a t u r a s e x p o s ta s ,
0 s o c ia lis m o c o n s ti tu ía - s e n u m a r e a l id a d e in c o n to r n á v e l d o p o n t o d e v is ta d a
d i n â m i c a d a s r e la ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s . M u i t o s n ã o a v a l i a v a m d e t i d a m e n t e
s u a s c o n t r a d iç õ e s in t e r n a s , s e u s im p a s s e s , p r e f e r i n d o d e s t a c a r o s d e n o m i n a ­
d o r e s c o m u n s q u e u n ia m a q u e le s E s ta d o s , m o v im e n to s e p a r t i d o s q u e r e iv in ­
d ic a v a m r e f e r ê n c ia s p o lític a s , e c o n ô m ic a s e id e o ló g ic a s q u e a H i s t ó r i a c o n s a ­
g r a r a c o m o s o c ia lis ta s . O u t r o s a i n d a in s is tia m n o f a to d e q u e o s is te m a s o c i a ­
lis ta a v a n ç a v a le n ta m a s s is te m a tic a m e n te , q u a s e s e m i n t e r r u p ç õ e s , a p a r t i r d a
S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , e n q u a n t o e n c o lh ia m a s á r e a s f ir m e m e n te c o n t r o l a ­
d a s p e l o s e u riv a l m a i o r — o c a p ita lis m o i n t e r n a c i o n a l e o s E U A , e m p a r t i c u ­
lar. N ã o r a r o s a n a lis a v a m o s o c ia lis m o , e s p e c ia lm e n te o s o c ia lis m o s o v ié tic o ,
c o m o u m s is te m a e m a s c e n s ã o , e n q u a n t o o s E U A lid e r a v a m u m b lo c o d e p a í ­
se s c a p i ta l is ta s c o n d e n a d o a o d e c lín io e à d e c a d ê n c ia ...
N o t e r c e ir o p e r í o d o , a ú ltim a d é c a d a q u e p r e c e d e u o d e s e n c a d e a m e n t o
da perestroika ( 1 9 7 5 - 1 9 8 5 ) , e s tu d a - s e o c h a m a d o s o c ia lis m o d e s e n v o lv id o .
D e u m la d o , o s o c ia lis m o n u n c a p a r e c e r a t ã o f o r te . M a s já h a v i a e n t ã o s in a is
d e u m p r o c e s s o c r ít ic o , q u e im p u n h a r e f o r m a s d r á s ti c a s . A q u e le s is te m a , q u e
p re te n d ia e n c a r n a r o fu tu ro , p a s s o u a se r o b rig a d o a e x a m in a r s u a s c o n tr a ­
d iç õ e s e im p a s s e s , a a v a l i a r s e u p a s s a d o , o s p r o b le m a s a c u m u l a d o s , e a d e f i­
n ir n o v o s ru m o s .
O s p e r í o d o s a q u i d e f in id o s s ã o a p e n a s b a liz a s p a r a o r i e n t a r a r e f l e x ã o , e
n ã o m a r c o s r í g i d o s q u e a p e n a s c o n f u n d i r í a m , já q u e a H i s t ó r i a , c o m o se
s a b e , n ã o s e c o n s ti tu i e m b lo c o s s e p a r a d o s , m a s t r a n s c o r r e n u m f lu x o c o n t í ­
n u o , s e m p r e r e m o d e l a d o e r e o r i e n t a d o p e la v o n t a d e e p e la i m a g i n a ç ã o d o s
s e re s h u m a n o s , a g i n d o s e g u n d o s u a s c i r c u n s t â n c i a s .

14

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIAU5TA: EXPANSÃO E APOGEU

1. EXPANSÃO E SUPREMACIA DO MONOL1TO SOVIÉTICO

A U R S S e m e r g iu d a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , d o p o n t o d e v i s t a d a e c o n o ­
m i a e d a d e m o g r a f i a , s e m i - a r r a s a d a , d e v a s t a d a p e lo s e x é r c ito s n a z i s t a s , s o ­
b r e t u d o e m s u a p a r t e o c i d e n ta l , o c u p a d a d u r a n t e a n o s . M a s s e u p r e s tí g io p o ­
lític o e r a im e n s o e s u a fo rç a m ilita r, in c o n tr a s r á v e l, p a r ti c u la r m e n te n a
E u r o p a . O m o d e lo s o v ié tic o ir r a d i a v a f o r ç a , r e c o n h e c id a p o r a m ig o s e i n i m i­
g o s . A f in a l, f o r a c a p a z d e s e r o f a t o r d e c is iv o n a d e r r o c a d a d o n a z is m o . O s
p o v o s d a U R S S , s o b r e t u d o o p o v o r u s s o , e m b o r a t r a u m a t i z a d o s p e l o s s a c r i­
fíc io s im p o s t o s , e s ta v a m a l iv ia d o s e o r g u lh o s o s , c o e s o s e m t o r n o d e s u a s in s ­
ti t u i ç õ e s e d e s e u s d i r i g e n t e s , e n t r e o s q u a i s e m e r g ia a f i g u r a d e J . S ta l in ,
e n t ã o in c e n s a d o c o m o g u ia p o lític o g e n ia l.
D e m o d o g e ra l, em to d o o m u n d o , e ta m b é m n a tu r a lm e n te n a U R S S ,
h a v ia u m a g r a n d e e s p e r a n ç a d e q u e s e ria p o s s ív e l a g o r a r e c o n s tr u ir u m
m u n d o m a is ju s to , f r a t e r n o , s o lid á r io , liv re e d e m o c r á t i c o . N ã o t i n h a m s id o
e s te s o s v a l o r e s e m t o r n o d o s q u a i s se f o r m a r a a G r a n d e A lia n ç a q u e d e r r o ­
t a r a o n a z is m o ?
E n t r e t a n t o , a s e x ig ê n c ia s d o p r o c e s s o d e r e c o n s t r u ç ã o d o p a í s , o u a m a ­
n e i r a c o m o o p o d e r s o v ié tic o e n t e n d e u o r i e n t a r e s te p r o c e s s o , e , p r i n c i p a l ­
m e n te , a s c i r c u n s t â n c i a s d a G u e r r a F r ia , a b e r t a m e n t e i r r o m p i d a d e s d e 1 9 4 6 ,
m o d e la ra m o f u tu r o d e o u tr a fo rm a , fa z e n d o r e to r n a r a a tm o s fe ra d o s r it­
m o s f e b r is , d a te n s ã o e d o m e d o , tí p i c a d o s p la n o s q u i n q u e n a i s e x p e r i m e n ­
t a d o s a o lo n g o d o s a n o s 3 0 ,
I n s t a u r o u - s e o m u n d o f e c h a d o d a b ip o l a r iz a ç ã o , a s e r v iç o d o s in te r e s s e s
e d a d i n â m i c a d o s com plexos industriais e m ilitares d e c a d a c a m p o , o u s e ja ,
d o s s e to r e s c o m p r o m e t i d o s c o m a c o r r i d a a r m a m e n t i s t a e c o m t o d a a s o r te
d e b e n s e s e r v iç o s q u e a p o i a v a m a p r o d u ç ã o p a r a a g u e r r a . N e s t e q u a d r o ,
c o n t i n u a r a m a m e re c e r a m a io r p r i o r i d a d e , e m t e r m o s d e in v e s tim e n to s , e o s
m a io r e s c u i d a d o s , e m p e s s o a l e d e m a is r e c u r s o s , os dinossauros comedores
de ferro e de aç o : i n d ú s tr i a s d e a r m a s e m u n iç õ e s , d e m á q u i n a s e d e b e n s i n ­
t e r m e d i á r i o s , a p r o d u ç ã o d e e n e r g ia e a c o n s t r u ç ã o d e v ia s d e t r a n s p o r t e s .
A economia d e comando, m obilizada (S a p ir, 1 9 9 0 ) c o m s u a s c a r a c t e r í s ­
tic a s típ ic a s : e s ta tiz a ç ã o g e ra l d a s a tiv id a d e s , p la n e ja m e n to c e n tr a liz a d o ,
p r o l i f e r a ç ã o d e a g ê n c ia s c e n t r a i s d e c o n t r o l e , d i t a d u r a p o l í t i c a , r e le g a ç ã o , a
u m p l a n o s e c u n d á r i o , d o s in te re s s e s i m e d ia t o s e d a s d e m a n d a s d a s p e s s o a s
c o m u n s p o r c o n d iç õ e s m e lh o r e s d e v i d a , d e t r a b a l h o , d e t r a n s p o r t e e tc .
E m 1 9 5 0 , o a n ú n c i o d o s r e s u lt a d o s d o IV P la n o Q ü i n q ü e n a l evidenciou

15

M aterial com •direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

a f o r ç a e a f r a q u e z a d e s t a s e s c o lh a s e s tr a t é g ic a s . E n q u a n t o a p r o d u ç ã o d e
c a r v ã o , d e p e t r ó l e o , d e a ç o e d e e n e r g ia e l é tr ic a , e n t r e o u t r a s d o m e s m o t i p o ,
r e g is t r a v a m n o v o s r e c o r d e s im p r e s s i o n a n te s , a p r o d u ç ã o d e b e n s d e c o n s u ­
m o , e s o b r e tu d o a a g ric u ltu ra d e g rã o s , a p o n ta v a m p a r a u m a s itu a ç ã o d e e s­
t a g n a ç ã o o u , e m a l g u m a s á r e a s , p a r a o d e c l ín io . O V P l a n o , f o r m a l m e n t e
a p r o v a d o e m f in s d e 1 9 5 2 , p o r o c a s i ã o d o X I X C o n g r e s s o d o P a r t i d o
C o m u n i s t a d a U n iã o S o v ié tic a (P C U S ), m a s já s e n d o i m p l e m e n t a d o d e s d e o
a n o a n t e r io r , m a n te v e e a p r o f u n d o u e s ta s o p ç õ e s . E r a p r e c i s o s e d e f e n d e r d a
G u e r r a F r ia , c u jo s p e r ig o s r o n d a v a m . M a i s u m a v e z , o s c i n to s d e v e r i a m s e r
a p e r t a d o s .. . e a s c o n s c iê n c ia s e v o n t a d e s , m o b i liz a d a s .
O r e la n ç a m e n to d o s m é to d o s h a b i t u a i s . D e u m l a d o , c a m p a n h a s p o s i t i ­
v a s , p a r a a u m e n t a r a p r o d u ç ã o e a p r o d u t i v i d a d e , e m u la ç ã o e n t r e u n id a d e s
d e p r o d u ç ã o , i n d u s tr i a is e a g r íc o la s , c id a d e s , r e g iõ e s , d i s t r i b u i ç ã o d e p r ê m io s ,
in c e n tiv o s m o r a is e m a te r ia is , p r o c e s s o s d e p r o m o ç ã o s o c ia l. D e o u t r o la d o , o
e m p r e g o d o T e r r o r , c o m s u a s d u a s fa c e s , c o a g i n d o e i n i b in d o , m a s t a m b é m
m o b i l i z a n d o e m c a m p a n h a s d e id e n tif ic a ç ã o , d e l a ç ã o e d e r r u b a d a d o s c h a m a ­
dos inimigos do povo.
E m s u a d i m e n s ã o p u n i t i v a , o T e r r o r , m a is u m a v e z , t r a u m a t i z o u a s o c ie ­
d a d e e o p r ó p r i o p a r t i d o . E n t r e o s s o l d a d o s e c iv is p r e s o s p e lo s n a z i s t a s , e r e ­
c a m b i a d o s p a r a a U R S S lo g o d e p o i s d a g u e r r a , u m p o u c o m a is d e 4 0 %
f o r a m p a r a o s c a m p o s d e t r a b a l h o s f o r ç a d o s , s o b s u s p e ita d e colaboraáonis-
mo. P e q u e n a s n a ç õ e s n ã o -ru s s a s , n a re g iã o d o C á u c a s o , fo ra m d e p o r ta d a s
e m b lo c o , t a m b é m a c u s a d a s d e s e r v ilis m o d i a n t e d o in v a s o r . N a s f ile ir a s d o
p a r t i d o , d o m a is a l t o e s c a l ã o { q u e d a b r u s c a d e N .A . V o z n e s s e n s k i, m i n i s t r o
d o P la n o ) à b a s e (a d e p u r a ç ã o a l c a n ç o u 3 0 % d e d ir i g e n te s lo c a is n o c o n j u n ­
t o d a U R S S ), a i n s t a l a ç ã o d e u m a a t m o s f e r a d e areias movediças.
P a r a c o m p e n s a r , a s m o b iliz a ç õ e s e m t o r n o d e m i to s u n i f i c a d o r e s , c o m -
p r o v a d a m e n t e e fic a z e s a o l o n g o d a H i s t ó r i a : a d e f e s a d a P á t r i a a m e a ç a d a , a
f o r ta l e z a s o c ia l is ta s i t i a d a p o r u m m u n d o c a p i t a l i s t a h o s til e o c u l t o à p e r s o ­
n a l i d a d e d o g u ia g e n ia l, o P a i d o M u n d o d o T r a b a l h o , o c a m a r a d a J . S ta lin .
E m 1 9 4 9 , p o r o c a s iã o d o se u s e p tu a g é s im o a n iv e rs á rio , h o u v e u m d e lírio
in é d i t o d e h o m e n a g e n s e f e s tiv id a d e s . O h o m e m a d q u i r i u d im e n s õ e s s e m id i-
v in a s . E p a r e c ia t a n t o m a is f o r te q u a n t o m a is se f o r t a l e c i a o s i s t e m a q u e o r e ­
c o n h e c ia c o m o c h e f e s u p r e m o e in q u e s t io n á v e l .
C o m e f e i to , o s is te m a s o c ia l is ta e s te n d í a - s e p a r a a E u r o p a e p a r a a Á s ia ,
s u p e r a n d o a s i t u a ç ã o d e is o la m e n t o q u e m a r c a r a a t r a j e t ó r i a d a r e v o lu ç ã o
ru ssa d e sd e 1 9 1 7 .

16

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

A o e s te , g r a ç a s a o a v a n ç o d a s t r o p a s s o v ié tic a s a t é B e rlim , fo i p o s s ív e l,
e m p r i m e i r o lu g a r, a n e x a r à U R S S im p o r t a n t e s t e r r i t ó r i o s : o s c h a m a d o s E s ta ­
d o s b á ltic o s { L e tô n ia , E s tô n ia e L i tu â n i a ) , a p a r t e o r i e n t a l d a P o lô n ia e u m a
p o r ç ã o d a R o m ê n ia —- t r a n s f o r m a d a e m R e p u b lic a S o v ié tic a d a M o l d á v i a .
C o m e s te m o v i m e n t o , M o s c o u r e c u p e r o u a s f r o n t e i r a s d o v e l h o I m p é r i o
T z a r i s t a , p e r d i d a s e m 1 9 1 7 . I r o n ia d a h is tó r i a : o t r a ç a d o d e s t a g e o g r a f i a fiz e ­
r a p a r t e d o a c o r d o g e r m a n o - s o vi é tic o a s s in a d o e m a g o s t o d e 1 9 3 9 ...
N a á r e a d a E u r o p a C e n t r a l ( P o lô n ia , T c h e c o s lo v á q u i a , A le m a n h a O r i e n ­
t a l e , d e p o i s , R e p ú b l i c a D e m o c r á t i c a A le m ã ( R D A ) , H u n g r i a , R o m ê n i a ,
A lb â n i a , B u lg á r ia e Iu g o s lá v ia ) , q u a s e t o d a o c u p a d a p e lo s e x é r c ito s s o v ié ti­
c o s , a e x p e c ta t iv a d e M o s c o u e r a f o r m a r u m c i n t u r ã o d e E s ta d o s n o m ín im o
n ã o - h o s r is . C o m e f e ito , n a fa s e f in a l d a g u e r r a , h a v ia u m a c o r d o e n t r e a s p o ­
tê n c ia s d a G r a n d e A lia n ç a d e q u e o s p a ís e s d a á r e a n ã o p o d e r í a m s e r in im ig o s
d a U R S S , c o m o t i n h a s id o o c a s o d e p o is d o t r i u n f o d a r e v o lu ç ã o r u s s a , e m
1 9 1 7 , M a s n e m p o r is s o s e r i a m t a n g i d o s a o s o c i a l i s m o . O c o n s e n s o , q u e
a b r a n g i a i g u a l m e n t e m u i t a s r e g iõ e s d o m u n d o ( E u r o p a O c i d e n t a l , Á s ia e
A m é r ic a d o S u l), e r a o d e o r g a n iz a r , e m t o d a p a r t e , g o v e r n o s d e u n i ã o n a c i o ­
n a l , c o m a m p l a p a r t i c i p a ç ã o , in c lu s iv e d e c o m u n i s t a s e s o c i a l i s t a s . M a i s
t a r d e , e le iç õ e s liv re s t e r i a m lu g a r, c a d a p o v o d e f in i n d o s e u f u t u r o c o m o b e m
lh e a p r o u v e s s e . A c o n s t r u ç ã o e r a c o e r e n te c o m o s v a lo r e s q u e h a v i a m m o b i li­
z a d o o s p o v o s c o n t r a o n a z is m o e in s p i r a d a , n a m e d id a e m q u e e r a s e n s ív e l à s
p a r t i c u l a r i d a d e s d e c a d a r e g iã o e d e c a d a p a ís . M a s n ã o r e s is ti u à p r o v a d 3
G u e r r a F r ia e d e s u a s e x ig ê n c ia s .
A s s im , n o c a s o d a E u r o p a C e n t r a l , s o c ie d a d e s e x r r e m a m e n t e d iv e r s if ic a ­
d a s , h i s t o r i c a m e n t e c o n s t i t u í d a s e m s u a s e s p e c if ic id a d e s p o lí tic a s , lin g ü ís ti-
c a s , r e lig io s a s e c u l t u r a i s , ti v e r a m q u e e n t r a r n u m m o l d e ú n ic o , r íg i d o e c e n ­
t r a l i z a d o , o m o d e lo s o v ié tic o . F o r a m r e v o g a d o s c o m m a i o r o u m e n o r r a p i ­
d e z o s g o v e r n o s d e u n i ã o n a c i o n a l , e se u n if i c a r a m e m r i t m o m a r c ia l o s p a r ­
t i d o s s o c ia lis ta s e c o m u n i s t a s lo c a is . A r e p r e s s ã o c u i d o u d a s o p o s iç õ e s à m a -
ríè ira s o v ié t ic a , c o m d i r e i t o a g r a n d e s p r o c e s s o s p ú b li c o s , t o r t u r a s e c o n f i s ­
s õ e s. N a s c ia m a s d e m o c ra c ia s p o p u la re s , q u e n u n c a fo ra m d e m o c r á tic a s ,
t a m p o u c o p o p u l a r e s ... c o n d i c i o n a d a s , d e s d e o in íc io , p o r u m a a l i a n ç a s u b ­
m is s a c o m o p o d e r o s o v iz in h o ( C la u d in , 1 9 8 3 ) .
N o o u t r o e x t r e m o d o m u n d o , n a Á s ia O r i e n t a l , o s o c ia lis m o f a r t a o u t r o s
a v a n ç o s , a í s e m p r a t i c a m e n t e a j u d a n e n h u m a d o s s o v ié tic o s .
O p r o c e s s o s o c ia l, m a is u m a v e z , s u r p r e e n d e r í a a t o d o s , i m p o n d o s i t u a ­
ç õ e s im p r e v is ta s , d ifíc e is d e a n a lis a r. R e v o lu ç õ e s n a c io n a lis ta s r a d ic a is ,
t e n d o o s c a m p o n e s e s c o m o p r in c i p a l f o r ç a s o c ia l, b a s e a d a s e m o r g a n i z a ç õ e s

17

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

a r m a d a s d e m a s s a s , o s e x é r c ito s g u e r r il h e ir o s p o p u l a r e s , e s ta v a m s e c a n d i d a ­
t a n d o a o p o d e r n u m c e r t o n ú m e r o d e p a ís e s q u e h a v ia m s id o p a r c i a l o u t o ­
ta lm e n te o c u p a d o s p e lo s ja p o n e s e s d u r a n te a S e g u n d a G u e r r a M u n d ia l
( C h in a , C o r é i a , V ie t n ã , I n d o n é s ia , B ir m â n ia , M a l á s i a , F ilip in a s e tc .) . O p r o ­
b le m a , p a r a a s p o tê n c ia s c a p i t a l i s t a s , s o b r e t u d o p a r a a s e u r o p é i a s , c q u e o s
c o m u n is ta s a s iá tic o s e s e u s a lia d o s t i n h a m a h e g e m o n ia , o u g r a n d e i n f l u ê n ­
c i a , e m q u a s e t o d o s e s te s e x é r c ito s g u e r r il h e ir o s ...
E n t r e a s p o tê n c ia s d a G r a n d e A lia n ç a , c o m o já fo i r e f e r i d o , h a v i a o a c o r ­
d o d e q u e , n e s te s p a ís e s , t a m b é m d e v e r ía m se o r g a n i z a r g o v e r n o s d e u n i ã o
n a c i o n a l , e le iç õ e s liv re s e t c ., e m s u m a , a m e s m a m e t o d o l o g i a p r e v is ta p a r a
o u t r a s p a r te s d o m u n d o . M a s n in g u é m i m a g in o u , n e m m e s m o o s s o v ié tic o s ,
q u e o s c o m u n is ta s p u d e s s e m v e n c e r e le iç õ e s e s e a s s e n h o r e a r d o p o d e r.
E m 1 9 4 5 , o s c o m u n is ta s v i e t n a m i t a s , l i d e r a d o s p o r H o C h i M i n h , a p r o -
v e ita n d o - s c d a d e r r o c a d a d o J a p ã o , e a n t e s q u e o s e u r o p e u s , n o c a s o , o s f r a n ­
c e s e s , c h e g a s s e m p a r a t e n t a r r e o c u p a r o lu g a r d e p o tê n c ia c o l o n i a l p e r d i d a
d u r a n t e a g u e r r a , p r o c l a m a r a m a in d e p e n d ê n c ia n a c i o n a l. T i v e r a m o c u i d a ­
d o d e a f i r m a r b a s t a n t e b e m s u a a u t o n o m i a e s e u s v ín c u lo s à n a ç ã o a q u e p e r ­
te n c ia m . N ã o e r a m p e õ e s , n e m m u i t o m e n o s a g e n te s d e M o s c o u . O m e s m o
f a r ia m o s c o m u n is ta s c h in e s e s , a o lo n g o d a s d ifíc e is n e g o c ia ç õ e s q u e se e s t a ­
b e le c e r a m lo g o d e p o i s d a r e n d iç ã o d o s ja p o n e s e s c o m v is ta s à c o n s t i t u i ç ã o
d e u m g o v e r n o d e u n i ã o n a c i o n a l d a C h in a . M a n t i v e r a m c o n v e r s a ç õ e s c o m
r e p r e s e n t a n t e s c iv is e m i l i t a r e s d o g o v e r n o a m e r i c a n o , e m i t i r a m o s s in a i s
p o s s ív e is n o s e n ti d o d e m o s t r a r s u a s e s p e c if ic id a d e s n a c i o n a is e s u a s p e r s p e c ­
tiv a s d e a u t o n o m i a .
O c o r r e r a , d e f a t o , a o lo n g o d a g u e r r a , n a Á s ia O r i e n t a l , u m f e n ô m e n o
n o v o : c o m e p i c e n tr o n a b a s e v e r m e lh a d e Y a n a n , n o n o r o e s te d a C h i n a , c o n ­
t r o l a d a p e lo s c o m u n is ta s c h in e s e s , c o n s ti tu iu - s e u m a e s p é c ie d e internacional
comunista asiática, b a s t a n t e f r o u x a e m t e r m o s o r g â n i c o s , m a s r a z o a v e lm e n ­
te a f i n a d a e m te r m o s s o c ia is , e s tr a t é g ic o s e p r o g r a m á t i c o s . S e u s d e n o m i n a ­
d o r e s c o m u n s , d e u m a f o r m a m u i to e s q u e m á tic a , p o d e m s e r a s s im s i n t e t i z a ­
d o s : d e s e n v o lv e r a l u t a n a c i o n a l d e f o r m a r a d ic a l, l i b e r t a n d o a s n a ç õ e s d a
Á s ia d e q u a l q u e r t i p o d e c o l o n i a l i s m o ; b a s e a r - s e f u n d a m e n t a l m e n t e n o s
c a m p o n e s e s , m o b i liz a d o s e m t o r n o d e p r o g r a m a s d e r e f o r m a a g r á r i a ; f o r m a r
a lia n ç a s a s m a is a m p la s , i n c lu in d o a b u r g u e s ia e p e q u e n a b u r g u e s ia u r b a n a s ,
d e s d e q u e e s tiv e s s e m d is p o s ta s a l u t a r c o m o s c a m p o n e s e s p e l a in d e p e n d ê n ­
c ia n a c i o n a l ; c o n d u z i r a lu t a d e f o r m a a r m a d a , a p o i a d a e m e x é r c ito s g u e r r i ­
lh e ir o s p o p u l a r e s , c e r c a n d o a s c i d a d e s a p a r t i r d o s c a m p o s e m g u e r r a s p o p u ­

18

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

la r e s d e lo n g a d u r a ç ã o . A p ó s a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , c o m e ç o u a s u r g i r
u m t e r m o , a i n d a a l g o im p r e c is o , o maoísmo (d e M a o T s é - tu n g , p r e s id e n t e d o
P a r t i d o C o m u n i s t a C h in ê s e p r in c i p a l e s t r a t e g i s t a d o E x é r c i t o P o p u l a r d e
L i b e r t a ç ã o (E L P )), p a r a d e s ig n a r t o d a s e s ta s n o v id a d e s q u e p o u c o s a n a l i s t a s
e s ta v a m d is p o s to s a le v a r a s é r io (R e is F ilh o , 1 9 8 1 ) .
A r e s p e it o d o s m é r i to s e d o s d e m é r ito s d o m a o ís m o , m u i t o j á s e e s c r e ­
v e u . O f a t o q u e n o s b a s t a a q u i é q u e s u a s r e f e r e n c ia s e s ta v a m s e n d o c a p a z e s
d e m o b i l i z a r v o n ta d e s e c o n s t i t u i r f o r ç a s c a p a z e s d e a s p i r a r a o p o d e r p o l í t i ­
c o . O r e c u o d a H i s t ó r i a , h o je a l c a n ç a d o , já n ã o p e r m i t e d ú v i d a s q u a n t o à
r e a l a u t o n o m i a d e s te s m o v im e n to s g u e r r il h e ir o s e d e s te s c o m u n i s t a s e m r e l a ­
ç ã o a M o s c o u . N e m o g r a n d e S ta lin c o n f ia v a n e le s , n e m e le s ti n h a m p o r q u e
c o n f i a r e m S ta lin .
C o n t u d o , n a d a d is to fo i c o n s id e r a d o . U m a v e z m a is , a i r r u p ç ã o d a G u e r ­
r a F r i a te v e , a q u i t a m b é m , e f e ito s u n i f o r m i z a d o r e s i g n o r a n d o p a r t i c u l a r i ­
d a d e s e a u t o n o m i a s , e e s c o lh e n d o a l ia d o s m e s m o q u e e s te s , m u i ta s v e z e s, n ã o
tiv e s s e m n e n h u m c o m p r o m is s o c o m a d e m o c r a c ia n e m tiv e s s e m se d e s t a c a d o
n a lu t a c o n t r a o s ja p o n e s e s . Q u a n t o à s lu ta s d e li b e r ta ç ã o n a c i o n a l n a r e g iã o
d a Á sia O r i e n t a l , e la s s e r ia m , d e m o d o g e r a l, d e r r o t a d a s ( B ir m â n ia , F ilip in a s ,
M a lá s i a ) , o u s e v e r ia m , p r o g r e s s iv a m e n te , e n c u r r a l a d a s , e m p u r r a d a s , lite r a l­
m e n te , a t é c a i r n a ó r b i t a d o s o c ia lis m o s o v ié tic o ( C h in a , V ie tn ã e C o r é ia ) .
A s s u c e s s iv a s c r is e s q u e e n t ã o s o b r e v i e r a m , c o m o a d e B e rlim , c u jo b l o ­
q u e i o e s te n d e u - s e d e n o v e m b r o d e 1 9 4 8 a m a i o d e 1 9 4 9 , e , m a is g r a v e , a d a
C o r é i a , q u e v ir o u g u e r r a c iv il, e n t r e 1 9 5 0 e 1 9 5 3 , d a n d o a s a s à in t e r v e n ç ã o
d i r e t a d o s E U A ( s o b o m a n t o d a s N a ç õ e s U n id a s ) , p a r a d e f e n d e r o g o v e r n o
a l i a d o d a C o r é i a d o S u l, e d a C h in a , p a r a s u s t e n t a r o s n o r t e - c o r e a n o s , s ó fi­
z e r a m a p e r t a r o s n ó s d a a l ia n ç a e n t r e U R S S e c o m u n i s t a s a s iá tic o s .
D o p o n t o d e v is ta d o s E U A , e s ta v a s e n d o c r i a d a e m t o r n o d a Á s ia e d a
C h i n a , e m p a r ti c u la r , u m a cortina de bambu, e q u i v a le n t e à cortina de feno
( e x p r e s s ã o c u n h a d a p o r W . C h u r c h i ll) , q u e s e p a r a v a a E u r o p a e m d u a s p a r ­
te s in c o n c iliá v e is . N e s t a l e itu r a , t o d o s o s c o m u n is ta s a s iá tic o s n ã o p a s s a v a m
d e p e õ e s d e M o s c o u . E s ta s c i r c u n s t â n c i a s d i m i n u í r a m d r a s t i c a m e n t e a s m a r ­
g e n s d e m a n o b r a n o s e n t i d o d a c o n s t r u ç ã o d e u m s o c ia l is m o p r ó p r i o , o r ig i­
n a l . D e f a t o , a a l i a n ç a c o m a U R S S , n a f o r m a c o m o se r e a l iz o u , e c o n s i d e r a n ­
d o a s c i r c u n s t â n c i a s d a é p o c a , im p lic a v a e m p r é s t im o s , a s s e s s o r e s , m a s , p r i n ­
c ip a lm e n te , i m p o r t a ç ã o d e m o d e lo s d e o r g a n i z a ç ã o p o lí tic a e e c o n ô m ic a in ­
c o m p a tív e is c o m a d iv e r s i d a d e e c o m a e s p e c if ic id a d e . U m a a l ia n ç a granítb
ca, c o m o e n t ã o se d iz ia .

19

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

D e la e s c a p o u a p e n a s a I u g o s lá v ia , à c u s t a d e m u i ta o u s a d i a e d e t e r m i n a ­
ç ã o . O s c o m u n is ta s iu g o s la v o s , e o s v á r io s p o v o s q u e c o n s t i t u í a m a f e d e r a ­
ç ã o iu g o s la v a , s o b l i d e r a n ç a d e J . T i to , r e c u s a r a m a s a m b iç õ e s s o v ié tic a s e
e n f r e n t a r a m a s c a m p a n h a s d e t o d o o t i p o fe ita s p a r a d e s e s ta b i liz a r s e u g o ­
v e rn o . E m to r n o d e u m p ro je to p r ó p r io — o e n tã o c h a m a d o socialismo au-
togestionário — , c o n q u i s t a r a m s u a a u t o n o m i a , e s a ír a m v i t o r i o s o s , m a s fo i
a e x c e ç ã o q u e c o n firm o u a re g ra .
A r e g r a e r a o b lo c o s e m f a lh a s e s e m f is s u r a s , u m m o n o l i t o c o e s o e m
t o r n o d a U R S S e d e J . S ta lin , N u m m u n d o d e c o m b a t e a c i r r a d o , d iz ia - s e , n ã o
h a v i a a l t e r n a t i v a , n e m q u a l q u e r r ip o d e d e s v io p o d i a s e r t o l e r a d o . E r a a m e ­
l h o r m a n e ir a d e v e n c e r, e o s o c ia lis m o v e n c e r ía . P e lo m e n o s , u m a c o i s a e r a
c e r t a : o s is te m a s o c ia l is ta e s ta v a se e x p a n d i n d o .

2. APOGEU E CRISES DO SOCIALISMO MONOLÍTICO

A m o r t e d e J . S ta lin , e m 1 9 5 3 , fo i d iv e r s a m e n te a p r e c ia d a . N o s c a m p o s d e
t r a b a l h o s f o r ç a d o s n a U R S S h o u v e i m e n s o jú b i lo , e a l g u m a s t e n t a t i v a s d e
m o t i m , lo g o e s m a g a d a s a f e r r o e f o g o . U m p o u c o p o r t o d a a p a r t e , a n a l i s t a s
a p re s s a d o s a n u n c ia v a m q u e a m o rte d o Grande Chefe d e s e n c a d e a r ia o caos
n a U R S S . C o n tu d o , n ã o fo i is to q u e a c o n te c e u . H o u v e , c e r ta m e n te , u m a
g r a n d e d o r e u m p r o f u n d o s e n t i m e n t o d e d e s a m p a r o n o p a ís . E n t r e o s c o m u ­
n is ta s e s e u s a l i a d o s , e m t o d o o m u n d o , c o n s t e r n a ç ã o . M a s a p e r d a s e r ia a s ­
s im i la d a e m t e m p o r e l a t i v a m e n t e r á p i d o , o p e r a n d o - s e a s u c e s s ã o s e m c o n ­
v u ls õ e s m a io r e s . O s is te m a p a r e c ia t e r r e s e r v a s , e s o b r e v iv e u s e m g r a n d e s s o ­
b r e s s a lto s à m o r t e d o guia genial. E n t r e t a n t o , a lg u n s a s p e c t o s e s s e n c ia is d a s
o r ie n t a ç õ e s e d a c u l t u r a p o lític a lig a d a s a o n o m e d e S ta lin — o stalinismo —
p a s s a ra m a se r q u e s tio n a d o s e su p e ra d o s .
O e m b a te se m q u a r te l à s fo rç a s d o c a p ita lis m o in te rn a c io n a l, n u m a a t ­
m o s f e r a d e e n f r e n t a m e n t o s d e v id a o u m o r t e , fo i d a n d o l u g a r a p r o p o s t a s
m a is c o n c i l i a t ó r i a s , b a s e a d a s n u m a o u t r a p o l í t i c a , a d a c o e x i s t ê n c i a p a c í f ic a
e n t r e s is te m a s d if e r e n te s . A U R S S n ã o a b d i c a v a d o t r i u n f o d o s o c i a l i s m o ,
c o n s i d e r a d o in e v itá v e l h i s t o r i c a m e n t e . M a s o s c a m i n h o s n e s t a d i r e ç ã o s e ­
r i a m m e n o s li n e a r e s . O s o c ia l is m o , s e g u n d o a s n o v a s o r i e n t a ç õ e s , ir i a d e ­
m o n s t r a r s u a s u p e r i o r i d a d e e m t o d o s o s n ív e is . C o m o t e m p o , s o m e n t e u m a
m i n o r i a d e e m p e d e r n id o s se m a n t e r i a n a d e f e s a d o c a p i t a l i s m o . E le s s e r ia m

20

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

v e n c id o s , m a s e s t a r i a m t ã o e n f r a q u e c i d o s q u e n ã o s e r ia d ifíc il s u a n e u t r a l i z a ­
ç ã o . D e p r e f e r ê n c ia c o m u m m ín im o d e d e r r a m a m e n t o d e s a n g u e . E r a f u n d a ­
m e n t a l , n e s t a p e r s p e c t iv a , e v i ta r o a p o c a lip s e n u c le a r , d e n u n c i a r a c o r r i d a a r -
m a m e n t i s t a , e n c u r r a l a r e is o la r o s c ír c u lo s m a is a g r e s s iv o s d o imperialismo.
D o p o n t o d e v is ta d o c a m p o s o c ia l is ta , a U R S S p a s s o u a a d m i t i r a b e r t u ­
r a s a n t e s c o n s i d e r a d a s in c o n c e b ív e is , c o m o , p o r e x e m p lo , a d e q u e p o d e r í a
h a v e r, e m te s e , v á r io s c a m i n h o s p a r a a l c a n ç a r o s o c ia lis m o . E m lu g a r d o tno-
nolito, c e n t r a d o em M o sco u , u m esb o ço de policentrismo s o c ia l is ta .
E m s ín te s e , g r a n d e s m u d a n ç a s , r e o r ie n ta ç õ e s c a p i ta i s e m t e r m o s d e p o lí­
t i c a in t e r n a c i o n a L E la s c r i a r i a m a s c o n d iç õ e s p a r a o fim d a G u e r r a d a C o r é i a
( c o n v e r s a ç õ e s d e P a n m u n j o m / 1 9 5 3 ) , p a r a o s a c o r d o s q u e p u s e r a m f im à
g u e r r a n a c i o n a l d o V ie tn ã c o n t r a o c o l o n i a l i s m o f r a n c ê s , r e c o n h e c e n d o , n o
n o r te d o p a ís , a in d e p e n d ê n c ia d a R e p ú b lic a D e m o c r á tic a d o V ie tn ã
( C o n f e r ê n c i a d e G e n e b r a / 1 9 5 4 ) , p a r a a r e c o n c ilia ç ã o c o m a I u g o s lá v i a (v isi­
t a d e d ir ig e n te s s o v ié tic o s a B e l g r a d o /1 9 5 5 ) e, f in a l m e n t e , m a s n ã o m e n o s
i m p o r t a n t e , p a r a u m a d is te n s ã o s ig n if ic a tiv a n a s r e la ç õ e s c o m o s E U A (v isi­
ta d e N . K ru c h e v a o s E U A 719 5 9 ).
N o p l a n o i n t e r n o , m u d a n ç a s n ã o m e n o s c a p i ta i s e s ta v a m e m c u r s o .
E m p r im e ir o lu g a r, u m p ro c e s s o g e r a l d e institucionalização d a r e v o lu ç ã o
n a s o c ie d a d e s o v ié tic a , c o m p r e e n d e n d o u m a s é rie d e m e d id a s o u p o lític a s : a
a f ir m a ç ã o d a s u p r e m a c ia d o P a r t i d o C o m u n i s t a (a rig o r, e s ra r e f e r ê n c ia n u n c a
f o r a a b a n d o n a d a n a t e o r i a , m a s , n a p r á t i c a , n o s te m p o s á u r e o s d a d i t a d u r a d e
J . S ta lin , o p a r t i d o p e r d e r a q u a s e q u e c o m p le ta m e n t e s u a f o r ç a p o lític a ) ; a ê n ­
fa s e n o c a r á t e r c o le tiv o d a d ir e ç ã o p o lític a , e m to d o s o s n ív e is; a d e f e s a d o r e s ­
p e i to a o q u e se p a s s o u e n t ã o a c h a m a r a legalidade socialista; a e l im i n a ç ã o o u
s u b o r d in a ç ã o d e o rg a n iz a ç õ e s q u e h a v ia m g a n h o c o n s id e rá v e l a u to n o m ia
d e n t r o d o E s t a d o e q u e f u n c io n a v a m c o m o v e r d a d e i r o s e s t a d o s d e n t r o d o
E s ta d o ( p o líc ia p o lític a , a s s e s s o r ia p a r t i c u l a r d o d i t a d o r e tc .).
A o m e s m o t e m p o , d e u -s e in íc io a u m p r o c e s s o d e li b e r a li z a ç ã o d o s c o n ­
tr o l e s e d a r e p r e s s ã o — c o m o se fo s se u m degelo, t í t u l o d a n o v e la d o e s c r i t o r
r u s s o , I, E h r e n b u r g : a n i s t i a p a r a o s p r e s o s p o lític o s e c o m u n s , a f r o u x a m e n ­
t o d o s c o n t r o l e s s o b r e o s m e io s d e c o m u n i c a ç ã o , in c e n tiv o à c r í t i c a e r e v i t a ­
liz a ç ã o d a s i n s tâ n c ia s c o le tiv a s d e d e c i s ã o , a n ú n c i o d e p o lí tic a s d e s c e n t r a li -
z a n te s e d e m o c ra tiz a n te s .
N o p l a n o d o d e s e n v o lv im e n to e c o n ô m ic o , a g ita v a m - s e n o v a s r e f e r ê n c ia s
e p r i o r i d a d e s : e r a p r e c is o a g o r a c o n f e r i r m a io r a t e n ç ã o à s n e c e s s id a d e s d a s
p e s s o a s c o m u n s : h a b i ta ç õ e s p o p u la r e s , t r a n s p o r t e s c o le tiv o s , s a ú d e e e d u c a ­

21

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

ç ã o , a g r ic u ltu r a e tc . N . K ru c h e v , o d ir ig e n te e n t ã o e m a s c e n s ã o , g o s ta v a d e
d iz e r q u e o socialism o era bom , m as seria melhor com m anteiga... o u s e ja ,
c h e g a r a o m o m e n t o d e p r e s t a r a t e n ç ã o à s d e m a n d a s im e d ia t a s d a p o p u l a ç ã o ,
e le v a r s e u s n ív e is d e v id a , m e l h o r a r s u a s c o n d iç õ e s d e t r a b a l h o . T o d a u m a ê n ­
fa s e fo i a t r i b u í d a à a g r i c u l t u r a , c o n h e c id o p o n t o f r a c o d a e c o n o m i a s o v ié tic a ,
d e s d e o s a n o s 3 0 , q u a n d o o c o r r e r a a te rr ív e l e d e s a s tr o s a c o le tiv iz a ç ã o f o r ç a ­
d a d o s c a m p o n e s e s . H o u v e r e a ju s te s d e p r e ç o s , d e f in iç ã o d e u m a p o lític a d e
in c e n tiv o s , a t r i b u i ç ã o d e c r é d i to s p a r a a e x p a n s ã o d a i n d ú s t r i a q u ím ic a ( a d u ­
b o s , p e s tic id a s e tc .) e , s o b r e t u d o , u m a a g r e s s iv a p o lític a d e d e s b r a v a m e n t o d e
t e r r a s v ir g e n s — a m e t a e r a m e l h o r a r s u b s t a n c i a lm e n te o a b a s t e c i m e n t o d o
p o v o , i g u a l a n d o , e s u p e r a n d o , o s n ív e is d e p r o d u t i v i d a d e r e g is t r a d o s p e lo s
p a ís e s c a p i ta l is ta s a v a n ç a d o s .
O X X C o n g r e s s o d o P a r t i d o C o m u n i s t a , r e a liz a d o e m f e v e re iro d e 1 9 5 6 ,
c o n s a g r o u t o d a s e s ta s m u d a n ç a s d e r u m o , c o n s o l i d a n d o o c lim a d e degelo .
E n t r e t a n t o , n o fim d o s tr a b a l h o s , N . K r u c h e v r e s e r v a r a p a r a o s d e le g a d o s u m a
s u r p r e s a : le u p a r a e le s u m in f o r m e , r e s e r v a d o (d ito secreto ), e m q u e se f o r m u ­
la v a m g r a v ís s im a s d e n ú n c ia s a J . S ta lin . O g u ia g e n ia l e r a a p r e s e n t a d o c o m o
u m re le s c r im in o s o , o d ir ig e n te s e m id iv in o fo i d e s c id o a o s in f e r n o s , v ir o u d e ­
m ô n i o . A U R S S t o m a r a - s e u m a g r a n d e p o tê n c ia , n ã o g r a ç a s a S ta lin , c o m o
t o d o s a t é e n t ã o im a g in a v a m , m a s a p e s a r d e le , d e s e u s e r r o s e d e s e u s c rim e s .
F o i u m a c o m o ç ã o . O s d e l e g a d o s f ic a r a m a t u r d i d o s , m a s c o n s a g r a r a m a
li d e r a n ç a d e N . K ru c h e v , a q u e l e a u d a c i o s o d i r i g e n t e q u e o u s a r a d e r r u b a r d o
p e d e s ta l o M a q u i n i s t a d a L o c o m o ti v a d a H i s t ó r i a , J . S ta lin . O m o v i m e n t o
c o m u n is ta n o m u n d o c a m b a le o u , a to r d o a d o . M u ito s s im p le s m e n te n ã o
a g ü e n ta ra m o im p a c to d a q u e la s re v e la ç õ e s e a b a n d o n a r a m a s file ira s .
O u tr o s c o m e ç a ra m a se p e r g u n ta r a o n d e q u e ria ir N . K ru ch ev . O f a to é q u e
o m o n o l i t o e s t r e m e c e u , a p a r e c e n d o a s p r i m e i r a s f is s u r a s . N u n c a m a i s e le
s e r ia o m e s m o .
N a U n iã o S o v ié tic a c r io u - s e u m a a t m o s f e r a a m b íg u a : i n s e g u r a n ç a e d ú ­
v id a s a o l a d o d e s e n ti m e n t o s d e c o n f i a n ç a e d e e u f o r i a , in é d ita s d e s d e o s t e m ­
p o s lo n g í n q u o s d a r e v o l u ç ã o d e 1 9 1 7 . N ã o a p e n a s a v id a c o r r e n t e i r i a m e ­
l h o r a r ( o socialism o com m anteiga ), m a s t a m b é m o s is te m a p a r e c ia m o s t r a r
c o n d i ç õ e s d e se a u t o - r e f o r m a r , c o m m a io r e s m a r g e n s d e l i b e r d a d e , d e d e b a ­
t e e d e c r í t i c a . A lé m d is s o , a U R S S s u r p r e e n d i a e f a s c in a v a o m u n d o c o m s e u s
a v a n ç o s te c n o ló g ic o s , m a te r ia liz a d o s n o c o n t r o l e d a s m a is m o d e r n a s e d e s ­
t r u t i v a s b o m b a s ( a t ô m i c a e d e h id r o g ê n i o ) , e , s o b r e t u d o , c o m a l i d e r a n ç a
q u e t o m a v a n a c o r r i d a e s p a c i a l, l a n ç a n d o o p r i m e i r o s a té l it e d e c o m u n i c a ­

22

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

ç õ e s (o S p u tn ik ), o p rim e iro h o m e m a o e s p a ç o (Y . G a g a rin ), a p r im e ir a


s o n d a à L u a . N o c e n t r o d o p a lc o , N . K ru c h e v , r o m p e n d o c o m o p a d r ã o t r a ­
d ic io n a l d o s d irig e n te s s o v ié tic o s , s is u d o s e c a r r a n c u d o s , a p r e s e n ta v a - s e
c o m o u m b o m v e l h in h o , lo q u a z , a m á v e l, t o m a n d o banhos de povo, a b r i n d o
e x p e c t a t i v a s e p a r e c e n d o t e r s o lu ç õ e s p a r a t o d o s o s p r o b le m a s .
E n t r e t a n t o , a s p r o m e s s a s r ó s e a s d e s e n h a d a s p e lo n o v o líd e r n ã o se c o n ­
c r e t iz a v a m , a s c o r e s c o m e ç a v a m a d e s b o ta r , d e s p e r t a n d o c o n t r a d i ç õ e s e in ­
c e r te z a s .
A a g r i c u l t u r a , a p e s a r d o s e n o r m e s in v e s tim e n to s , n ã o r e a g ia . A s p o lític a s
i m p le m e n ta d a s p o r N . K ru c h e v , c o m o a d o d e s b r a v a m e n t o d e t e r r a s v ir g e n s ,
q u e m o b i liz a r a c o lo s s a is r e c u r s o s e c o n ô m ic o s e h u m a n o s , d a v a m r e s u lt a d o s
m i tig a d o s , q u a n d o n ã o g e r a v a m d e s p e r d íc io s . E m 1 9 6 3 , a U R S S te v e q u e im ­
p o r ta r g ra n d e s q u a n tid a d e s d e g rã o s d o s p a ís e s c a p ita lis ta s p a r a e v ita r a
fo m e . A s u p e r p o tê n c ia c o n s e g u ia e n v ia r f o g u e te s à L u a , m a s n ã o e r a c a p a z d e
a l i m e n t a r o p r ó p r i o p o v o . U m a lá s tim a . E m o u t r o s s e to r e s , e m b o r a t e n h a m
s id o r e g is tr a d o s a lg u n s a v a n ç o s , c o m o n a c o n s tr u ç ã o c iv il, a s p r o m e s s a s n ã o
s e c o n c r e tiz a v a m , o u o s r e s u lt a d o s n ã o e r a m c o n s id e r a d o s s a ti s f a t ó r io s .
O s r e s p o n s á v e is p e lo s s e to r e s t r a d i c io n a lm e n t e p r iv ile g ia d o s p e lo s p l a n o s
q ü in q iie n a is c r itic a v a m a s n o v a s o r ie n ta ç õ e s . N o p a r t i d o , a p a r e c e r a m re s is tê n ­
c ia s à s p r o p o s ta s d e m o c r a tiz a n te s , q u e p r e v ia m o v o to s e c r e to p a r a a e s c o lh a
d o s d ir ig e n te s e lim ite s p a r a q u e p u d e s s e m s e r re e le ito s , e a o p ro c e s s o d e d e s ­
c e n t r a li z a ç ã o , q u e p r e v ia a c o n s ti tu iç ã o d e c e n tr o s r e g io n a is d e p la n e ja m e n to .
A s c o n r r a d i ç õ e s a v o lu m a v a m - s e . A p o n ta v a - s e o f a to d e q u e N . K ru c h e v ,
e m b o r a d e n u n c i a n d o o s m a le s d o c u l t o à p e r s o n a li d a d e , e s ta v a r e t o m a n d o , a
se u m o d o , o s p a d r õ e s d e d ir e ç ã o p o lític a d e u m grande chefe. M e d id a s v o lu n -
t a r i s t a s , d e c is õ e s s e m c o n s u lt a , r e v ir a v o lta s , a q u i lo t u d o c o m e ç o u a in q u ie ta r ,
s o b r e t u d o , a s e lite s d ir ig e n te s .
N o p l a n o in t e r n a c i o n a l, o s f r u to s o b t i d o s n ã o m e re c ia m a v a lia ç õ e s p o s i­
tiv a s u n â n im e s . A o c o n t r á r i o : s u s c ita v a m á s p e r a s c rític a s . A p o lí tic a d e d i s ­
t e n s ã o c o m o s E U A n ã o p r o d u z i r a r e s u lt a d o s c o n c lu s iv o s . E m 1 9 6 0 , a c o n f e ­
r ê n c ia d e P a r is , e n t r e a s g r a n d e s p o tê n c ia s , f r a c a s s a r a . U m p o u c o m a is t a r d e ,
e m 1 9 6 2 , a c r is e d o s m íss e is, e m C u b a , q u a s e le v a ra o m u n d o à g u e r r a a t ô m i ­
c a . A d e c i s ã o d e c o l o c a r o s m ís s e is n a I lh a r e v o l u c i o n á r i a , a t r i b u í d a a N .
K r u c h e v e m p e s s o a , a p r o f u n d o u s e u d e s g a s te , p o is â r e t i r a d a d o s m e s m o s , im ­
p o s t a p e lo b lo q u e io a m e r ic a n o , fo i r e s s e n tid a c o m o u m a h u m i lh a ç ã o .
O m u n d o s o c ia lis ta d e ix a ra d e s e r u m m o n o lito e a p re s e n ta v a a g o ra
e n o r m e s fis s u r a s . N a E u r o p a O c id e n t a l , o s c o m u n i s t a s it a l i a n o s , s o b a d i r e ­

23

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

ç ã o d e P a lm ir o T o g l ía t ti, p a s s a r a m a d e f e n d e r u m p e r f il e u m r u m o p r ó p r i o s
p a r a o s o c ia l is m o n o s p a ís e s c a p i t a l i s t a s a v a n ç a d o s : a e v o l u ç ã o h a v e r í a d e
s e r g r a d u a l , p a c í f ic a e b a s e a d a n a s i n s ti tu iç õ e s d e m o c r á t i c a s . A p o i a n d o - s e
n o le g a d o te ó r i c o d e A n t o n i o G r a m s c i, d e f e n d i a m u m a a l t e r n a t i v a p r ó p r i a
q u e , m a is t a r d e , t o m o u o n o m e d e eurocomunismo. N a Á s ia , a C h in a d e
M a o T s é - tu n g , d e s c o n f i a d a d a s d e c is õ e s d e s e u p o d e r o s o v iz in h o , c o m e ç o u a
d e n u n c ia r o revisiottismo d e N . K r u c h e v . A s c r ít ic a s , n o in íc io , e r a m d e c a r á ­
t e r t e ó r i c o , t e x t o s q u e s ó o s in ic ia d o s c o n s e g u ia m d e c ifra r. C e d o , n o e n t a n ­
t o , a s c o n t r a d iç õ e s r a d ic a li z a r a m - s e , d a n d o lu g a r a d e s t e m p e r o s v e r b a i s , e x ­
p r i m i n d o a n t a g o n i s m o s in c o n c iliá v e is , E s f u m a r a - s e a a l ia n ç a granítica e boa
p a r t e d a r e s p o n s a b ili d a d e d o p r o c e s s o e r a i m p u t a d a a o e s ti lo d e N . K r u c h e v ,
sem o q u a l, a rg u m e n ta v a m o s a d v e rs á rio s , a s c o n tra d iç õ e s p o d e r ía m te r s id o
m a is b e m a d m i n i s t r a d a s .
N a E u r o p a C e n t r a l , a p a r e n t e m e n t e im o b i l i z a d a e s o b c o n t r o l e , h o u v e
u m s u r t o d e r e b e ld ia s . A in d a e m 1 9 5 3 , p o u c o s m e s e s d e p o i s d a m o r t e d e J .
S ta lin , u m p r im e ir o s in a l: u m a v i o l e n ta in s u r r e iç ã o p o p u l a r n a p a r t e o r i e n t a l
d e B e rlim , c o n t r o l a d a p e lo s s o v ié tic o s , p r e c is o u s e r e s m a g a d a d e f o r m a v i o ­
le n ta . A n o s m a is t a r d e , a A lb â n i a p a s s o u a a c o m p a n h a r , à s v e z e s a a n t e c ip a r ,
a s c r ít ic a s c h i n e s a s a o s desvios s o v ié tic o s . A o m e s m o t e m p o , e m 1 9 5 6 , m a is
d u a s r e b e liõ e s . N a P o lô n ia , fo i p o s s ív e l c o n t r o l á - l a c o m c o n c e s s õ e s p a r c i a i s ,
c o m b i n a d a s c o m e x p u r g o s n o p a r t i d o e n o E s ta d o . M a s n a H u n g r i a , o d e s ­
c o n t e n t a m e n t o p o p u l a r fo i lo n g e d e m a is , m e s m o p a r a o s n o v o s p a d r õ e s q u e
se d e s e ja v a i n s t a u r a r . U m a e s p é c ie d e r e v o l u ç ã o p o p u l a r t o m o u a s r u a s d e
B u d a p e s te c o m u m p r o g r a m a e x t r e m a m e n t e s u b v e r s iv o : r e iv i n d ic a v a a n e u ­
t r a l i d a d e d o p a í s , a r e t i r a d a d a s t r o p a s s o v ié tic a s , a d e m o c r a t i z a ç ã o r e a l d a s
in s ti tu iç õ e s , O m o v i m e n t o fo i c o n s i d e r a d o a n t i c o m u n i s t a e a n t i- s o v ié ti c o —
u m a s e n h a p a r a q u e o s t a n q u e s in te r v ie s s e m , o q u e f iz e r a m c o m a e f ic á c ia e
a b r u t a l i d a d e h a b i tu a is . A r e v o lu ç ã o h ú n g a r a f o i s u f o c a d a e m s a n g u e e e m
e x ílio s — e d e i x o u c l a r o s o s lim ite s d o p o li c e n tr i s m o s o c i a l i s t a , p e l o m e n o s
n a á r e a d a E u r o p a C e n t r a l.
M a s n e m tu d o e r a m c o n tra d iç õ e s , h a v ia ta m b é m c irc u n s tâ n c ia s fa v o rá ­
v e is , e o s o c ia l is m o s o v ié tic o d e la s e x t r a í a f o r ç a s e a l e n t o . E n t r e o s p a ís e s d o
c h a m a d o T e r c e ir o M u n d o , a U R S S a p r e s e n t a v a - s e c o m o , e e r a d e f a t o , a
g r a n d e r e t a g u a r d a d o s in te r e s s e s d o s p o v o s o p r i m i d o s e m l u t a p e l a l i b e r t a ­
ç ã o n a c i o n a l . V o ta v a s e m p r e e m f a v o r d e s u a s c a u s a s n a s in s tâ n c ia s i n t e r n a ­
c i o n a is , o f e r e c e n d o c o n t r a p e s o à s p o tê n c ia s c a p i t a l i s t a s , c a p i t a n e a d a s p e l o s
E U A . A ju d a v a e m a r m a s e a s s e s s o r ia m u i t a s l u t a s e m c u r s o . C r i a r a a t é u m a

24

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

universidade em Moscou especialmente voltada para estudantes do Terceiro


Mundo — a Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba. Em
muitos momentos críticos, a intervenção soviética fora decisiva para inverter
situações, como, por exemplo, em 1956, quando apoiara G. A. Nasser, ííder
nacionalista árabe, na crise desencadeada com a intervenção anglo-francesa
em reação à nacionalização do canal de Suez. Ou quando, nos inícios da re­
volução cubana, entre 1959 e 1962, sustentara Fidel Castro e seus liderados
com seu poderio político, material e logístico.
A verdade, no entanto, é que estes aspectos positivos, e outros, não
foram considerados determinantes pelos adversários de N. Kruchev, que o
derrubaram em 1964. Nas acusações que então lhe desferiram, estava sobre­
tudo a de que concentrara demasiados poderes, subestimando o primado da
direção coletiva, incorrendo nos mesmos erros de voluntarísmo e de falta de
respeito pela vontade do partido, além de se deixar embalar pelos vícios do
culto à personalidade, por ele mesmo tão violentamente criticados em 1956.
N ã o é m u i t o fá c il f o r m u l a r u m b a l a n ç o p r e c is o d o p e r í o d o e m q u e N .
K r u c h e v g o v e r n o u a U R S S . A lg u n s s u s t e n t a m q u e a li se p e r d e u u m a o p o r t u ­
n i d a d e h i s t ó r i c a d e r e f o r m a r o s o c ia lis m o , q u e c o n s e r v a v a n a s o c ie d a d e u m
p r e s tí g io r e a l. C o m o p o n t o s p o s itiv o s , in e g á v e is , o a f r o u x a m e n t o d o s c o n ­
tr o l e s r e p r e s s iv o s , a d e s m i tif i c a ç ã o d e J . S ta lin , o fim d o T e r r o r , a s a n i s t ia s ,
a s t e n t a t i v a s d e in s t i t u c i o n a l i z a r e d e m o c r a t i z a r a r e v o lu ç ã o , u m a p r e o c u p a ­
ç ã o m a io r q u a n to à s d e m a n d a s d a s o c ie d a d e . N o p la n o in te r n a c io n a l, a
a b e r t u r a , e m te s e , a u m c e r t o p o li c e n tr i s m o n o m u n d o s o c ia l is ta , u m a r e a l
c o n t r i b u i ç ã o à c o n s t r u ç ã o d e u m a a t m o s f e r a m e n o s a c i r r a d a e b e lic o s a . P o r
o u t r o la d o , a d i f i c u ld a d e e m a s s u m ir c o m t o d a a c o n s e q u ê n c ia e s ta s p r ó p r i a s
o r i e n t a ç õ e s , a s c o n s t a n t e s r e c a í d a s e m t r a d i ç õ e s c r i t i c a d a s (a q u e s t ã o d o
c u l t o à p e r s o n a l i d a d e ) , o s z i g u e z a g u e s f r e q u e n te s (o e s m a g a m e n t o p e la f o r ç a
d a r e v o lu ç ã o h ú n g a r a ) , o v o l u n t a r í s m o t i p i c a m e n t e s t a l i n i s t a (o d c s b r a v a -
m e n t o d a s t e r r a s v ir g e n s ) , o s a n ú n c i o s a p o c a líp t ic o s d e v i t ó r i a s n ã o - c o n c lu -
s iv a s , o a u t o r i t a r i s m o s e m p r e p r e s e n te ...
N . K r u c h e v t i n h a a s l i m it a ç õ e s p r ó p r i a s d e u m h o m e m p o l i t i c a m e n t e
f o r m a d o n o s a n o s 3 0 d e n t r o d a c o r r e n t e d i r i g i d a p o r J . S ta H n , o q u e s e e v i­
d e n c i a m u i t o b e m n a s in c o n g r u ê n c ia s e n a s u p e r f ic i a li d a d e c o m q u e f o i c r it i­
c a d a n o in f o r m e d i t o s e c r e to a t r a j e t ó r i a d o guia genial. N o fim , s u a s i n ú m e ­
r a s in i c ia t iv a s p a r e c ia m t e r c a n s a d o a s d iv e r s a s c o r r e n t e s d a s o c ie d a d e . S u a
q u e d a f o i, a s s im , o b s e r v a d a c o m in d if e r e n ç a . R e s to u - lh e u m a a p o s e n t a d o r i a
v ig ia d a — s in a l d o s n o v o s te m p o s , q u e e le p r ó p r i o , m a is d o q u e n in g u é m ,
a j u d a r a a c r ia r .

25

M aterial com direitos autorais


Edited b y Foxit PDF Editor
C o pyright (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 201 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

3. O SOCIALISMO DESENVOLVIDO — FORÇA E FRAQUEZAS DE


UM SISTEMA

A fa se q u e se a b r iu e n t ã o , a té o in íc io d a perestroika, e m 1 9 8 5 , m a is d e v in te
a n o s , fo i, e m s u a é p o c a , c o n s id e r a d a a d e e x p a n s ã o m á x im a d o s o c ia lis m o —
o te m p o d o socialismo desenvolvido. U m a n o v a C o n s titu iç ã o , a p ro v a d a em
1 9 7 7 , e x a l ta v a o s a v a n ç o s o b tid o s , c o n s a g r a n d o ju r id ic a m e n te a U R S S c o m o
p o tê n c ia s o c ia lis ta . D e u m o u t r o â n g u lo , c r ític o , a p a r e c e u u m a o u t r a f o r m u l a ­
ção: 0 socialismo realmente existente. A q u e la s s o c ie d a d e s , s o b r e t u d o a s o v ié ti­
c a , n ã o t i n h a m s id o id e a liz a d a s n e m p r e v i s t a s , m a s e x i s t i a m n a r e a l i d a d e .
C o n t r a a te im o s ia d o s f a to s , a le g a v a m o s p a r ti d á r io s d a e x p r e s s ã o , n ã o h a v ia
a r g u m e n to s .
A p e s a r d o s p r o b le m a s e d a s c o n t r a d i ç õ e s , a U R S S e o s o c ia lis m o p a r e ­
c ia m im b a tív e is , d o ta d o s d e u m a d in â m ic a in v e n c ív e l. O s d ir ig e n te s s o v ié ti­
c o s , a g r u p a d o s e m t o r n o d a fig u r a d e u m n o v o s e c r e t á r io - g e r a l , L. B re jn e v , a s ­
s u m ia m o d is c u r s o d a e s ta b ilid a d e e d a e fic á c ia .
E m p r o l d a e s t a b i l i d a d e , e s v a z i a r a m o u s im p le s m e n te r e v o g a r a m a s p o ­
lític a s r e f o r m i s t a s d e m o c r a t i z a n t e s e d e s c e n t r a li z a n te s p r o p u g n a d a s p o r N .
K ru c h e v , O P a r t i d o C o m u n ista , n a n o v a C o n stitu iç ã o , fo i s o le n e m e n te r e a ­
f i r m a d o c o m o v a n g u a r d a d a s o c ie d a d e e d o r e g im e . D o p o n t o d e v is ta d a
e c o n o m i a , h o u v e t o d o u m e s f o r ç o p a r a d e f in i r p o lí tic a s n o s e n ti d o d e s u p e ­
r a r o s p ro b le m a s d ia g n o s tic a d o s d e sd e o s a n o s 5 0 : d e s la n c h a r a a g ric u ltu ra ,
a b a s te c e r m e lh o r as c id a d e s , e s tim u la r o s a v a n ç o s q u a lita tiv o s , in tr o d u z ir
n o v o s m é t o d o s d e g e s t ã o e d e o r g a n i z a ç ã o d o t r a b a l h o . A s s im , o p r o g r a m a
d e r e f o r m a r o s o c ia lis m o , e n u n c i a d o p o r N . K ru c h e v , p e r m a n e c i a d e p é .
N a e s f e r a d a s r e la ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s a U R S S c o n s o li d a v a - s e c o m o s u ­
p e r p o tê n c ia . E o s o c ia lis m o r e g is t r a v a ê x ito s e s p e t a c u l a r e s , h i s tó r i c o s .
N o S u d e s te A s i á t i c o , a G u e r r a d o V ie t n ã , m a is u m a , a g o r a c o n t r a o s
E U A , e n c e r r a r a - s e , e m 1 9 7 5 , c o m u m a c o m p l e t a v it ó r ia d o s n a c i o n a l i s t a s ,
h e g e m o n i z a d o s p e l o s c o m u n i s t a s , a p o i a d o s p e la U R S S . L o g o e m s e g u i d a ,
c a i r i a m t a m b é m o L a o s e o C a m b o j a . O s a m e r ic a n o s , e m b o r a t e n d o d e i x a ­
d o a r e g iã o a r r a s a d a , f o r a m o b r i g a d o s a c o n t a b i l i z a r u m a d e r r o t a h u m i l h a n ­
te . P a r e c ia r e a liz a r - s e a m e t á f o r a d a queda dos dominós, fo rm u la d a d esd e
1 9 4 6 , s e g u n d o a q u a l e r a p r e c is o d e te r, a q u a l q u e r c u s t o , e v e n t u a is v it ó r ia s
d o s c o m u n i s t a s , p o is e la s te n d e r í a m a se e n c a d e a r d e f o r m a in c o n t o r n á v e l .
N o m u n d o á r a b e e m u ç u lm a n o , h o u v e z ig u e z a g u e s ( r e c u o d a U R S S n o
E g ito ) e a l g u m a s d e r r o t a s h i s t ó r i c a s ( q u e d a d e A , S u k a r n o n a I n d o n é s i a ) ,

26

M aterial com direitos autorai


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSiO E APOGEU

m a s n a lu t a c o n t r a o E s t a d o d e I s r a e l, q u e p o l a r i z a v a a m p l a m e n t e a s f o r ç a s
p o lí tic a s i d e n tif i c a d a s c o m o Eslã, a U R S S a p a r e c i a c o m o a l i a d a c o n t r a o s
E U A e o s E s ta d o s e u r o p e u s .
N a Á f r ic a , a o s u l d o S a a r a , a d e s a g r e g a ç ã o d o v e lh o I m p é r i o P o r t u g u ê s ,
a c e le r a d a c o m a R e v o l u ç ã o d o s C r a v o s e m P o r t u g a l , e m 1 9 7 4 , e s t a v a le v a n ­
d o a o p o d e r n a s d u a s p r in c ip a is c o l ô n ia s , A n g o la e M o ç a m b i q u e , m o v i m e n ­
t o s d e li b e r t a ç ã o n a c i o n a l (F r e lim o e M P L A ) a l i a d o s d a U R S S . O s p r in c i p a is
d ir i g e n te s id e n tif ic a v a m - s e c o m o m a r x i s m o - le n i n is m o e se p r o p u n h a m a a s ­
s o c ia r e x p lic ita m e n te se u s p r o je to s p o lític o s a o s o c ia lis m o in te r n a c io n a l.
A lé m d is s o , e m v á r io s o u t r o s E s ta d o s , c o n s ti tu ía m - s e e lite s p o lí tic a s , à s v e z e s
a t r a v é s d e g o lp e s m ilita r e s , q u e p r o c u r a v a m a l i a n ç a e a p o i o ( a r m a s e a s s e s -
s o r a m e n t o ) e m t r o c a d e c o n c e s s õ e s e s tr a té g ic a s . U m c a s o q u e se t o r n o u e m ­
b le m á ti c o , e n t r e o u t r o s , fo i o d a E t ió p ia , o n d e e s ti v e r a m , in c lu s iv e , t r o p a s
c u b a n a s , a p o i a n d o m i lit a r e s n a c i o n a l i s t a s q u e se d iz ia m s o c ia lis ta s , o u a l i a ­
d o s d o s o c ia lis m o . S e m c o n t a r a e x i s t ê n c ia d e o u t r o s e x p e r i m e n t o s , f u n d a ­
m e n t a l m e n t e n a c i o n a l i s t a s , q u e n a d a t i n h a m a v e r c o m o m a r x i s m o - le n i n is ­
m o , m a s q u e se i n s p ir a v a m n o s m o d e l o s s o v ié tic o s d e o r g a n i z a ç ã o p o lí tic a e
e c o n ô m ic a ( p a r t i d o ú n ic o , p la n o c e n t r a l i z a d o , e s t a t i z a ç ã o d e s e t o r e s e c o n ô ­
m ic o s e s tr a t é g ic o s e tc .) e /o u q u e se a p r o x i m a v a m e m b u s c a d e a p o i o .
N a A m é r ic a L a t i n a , a r e v o lu ç ã o c u b a n a — v i t o r i o s a c o m u m p r o g r a m a
n a c io n a lis ta e d e m o c rá tic o — tra n s fo rm a ra -s e e m re v o lu ç ã o s o c ia lis ta , em
la r g a m e d i d a , e m v i r t u d e d a s p r e s s õ e s a m e r ic a n a s . A li t a m b é m o s s o v ié tic o s
s ó c o l h e r a m o s f r u t o s a m a d u r e c i d o s , p o is e s ti v e r a m p r a t i c a m e n t e a u s e n te s
d a l u t a r e v o lu c io n á r i a c o n t r a o re g im e d e B a t is ta — d e r r u b a d o e m ja n e i r o d e
1 9 S 9 — e d o s m o m e n to s im e d ia t a m e n te s u b s e q u e n te s , q u a n d o a r e v o lu ç ã o
r a d ic a li z o u - s e n u m a e s p ir a l d e a ç õ e s e d e r e a ç õ e s o n d e a in t r a n s ig ê n c i a d o
E s ta d o a m e r i c a n o fe z le m b r a r a s a t i t u d e s t o m a d a s n a Á s ia O r i e n t a l e m fin s
d o s a n o s 4 0 , c o m o s m e s m o s e f e ito s .
A re v o lu ç ã o c u b a n a a f ir m a r a s u a a u to n o m ia a o lo n g o d o s a n o s 6 0 ,
q u a n d o s u a e x t e n s ã o p a r a a A m é r ic a L a t i n a fo i c o n s i d e r a d a u m a h ip ó t e s e
possível (F ern an d es, 1 9 7 9 ) . C o n tu d o , a p ó s a m o r r e d o C h e G u e v a ra , c m o u ­
tu b r o d e 1 9 6 7 , e d o fra c a s s o d o p ro je to d a grande zafra, em 1 9 7 0 , q u a n d o
s e p r e t e n d e u , e m v ã o , c o l h e r o r e c o r d e h is t ó r i c o d e 1 0 m i lh õ e s d e t o n e l a d a s
d e a ç ú c a r , o a l i n h a m e n t o p o lí tic o e d i p l o m á t i c o c o m a U R S S te n d e u a se e s ­
ta b ili z a r , c o m a p r e v a lê n c ia d e a s p e c t o s c e n t r a is d o m o d e lo s o v ié tic o ( p a r t i ­
d o ú n ic o , p l a n o c e n t r a l i z a d o , e s t a t i z a ç ã o g e r a l d a e c o n o m i a , f o r ç a s a r m a d a s
p r o f is s io n a i s c a l c a d a s n o m o d e lo s o v ié tic o e tc .) . C u b a r e v o l u c i o n á r i a , e m b o ­

27

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O S É C U 1 0 XX

r a m a n t e n d o m a r g e n s d e a u t o n o m i a , a l in h a v a - s e , a f in a l, n a ó r b i t a s o v ié tic a
e e m s u a s o r g a n iz a ç õ e s p o lí tic a s e m i lit a r e s ( C o m e c o n , P a c t o d e V a r s ó v ia
etc.)* N o r e s t a n t e d a A m é r ic a L a t i n a , a d e r r o t a d a e x p e r i ê n c ia d a U n id a d e
P o p u la r , c h e f i a d a p o r S a lv a d o r A lie n d e , e m 1 9 7 3 , f o r a u m r e tr o c e s s o , a s s im
c o m o u m a c o n s t e l a ç ã o d e d i t a d u r a s m ilita r e s n o s u b c o n t i n e n t e l a t i n o - a m e r i ­
c a n o ( A r g e n tin a e B ra s il, e n t r e o u tr a s ) . C o n t u d o , a i n d a a o l o n g o d o s a n o s
7 0 , a U R S S t e n t a r i a , à s v e z e s c o m ê x i t o , e s ta b e le c e r r e la ç õ e s c o m re g im e s m i­
lita r e s n a c ío n a l- e s ta tis ta s q u e r e s s u r g ir a m n a re g iã o — n o P a n a m á , n a
B o lív ia e n o P e r u . N o fim d a d é c a d a , e m 1 9 7 9 , o t r i u n f o d o s s a n d i n i s t a s n a
N i c a r á g u a e o f o r ta l e c i m e n to d e u m m o v i m e n t o n a c i o n a l i s t a r a d ic a l e m E l
S a lv a d o r, a lé m d e o u t r a s e v o lu ç õ e s n a á r e a , p r e n u n c i a v a m u m n o v o s u r t o d e
v i t ó r i a s d e m o v i m e n t o s g u e r r il h e ir o s — u m a n o v a q u e d a d e d o m i n ó s ?
T o d o e s te a v a n ç o , p a r a d o x a l m e n te , n ã o u n i f i c a r a o m u n d o s o c i a l i s t a ,
c u ja s d iv is õ e s a c e n tu a v a m - s e . N a E u r o p a C e n t r a l , p e r m a n e c ia u m a s i t u a ç ã o
i n s t á v e l — c r i s e s s u c e s s iv a s n a P o l ô n i a , m o v i m e n t o s d i v e r s o s — , p o r é m
te n d o u m d e n o m in a d o r c o m u m — a lu ta p o r a u to n o m ia n a A lb â n ia , n a
H u n g r i a e n a R o m ê n i a , s o m a n d o - s e à já h is tó r i c a d is s id ê n c ia d a I u g o s lá v i a ,
e , f in a l m e n t e , a P r im a v e r a d e P r a g a , e m 1 9 6 8 , q u a n d o se t o r n o u n e c e s s á r i o
f a z e r in t e r v ir m a is u m a v e z o s t a n q u e s p a r a e s m a g a r u m a t e n t a t i v a d e c o n s ­
tr u i r u m s o c ia lis m o d e m o c r á tic o , p lu r a l (B ro u é , 1 9 7 9 ). N a E u r o p a O c i­
d e n t a l , m u ltip lic a v a m - s e o s a d e p t o s d o e u r o c o m u n i s m o , p r in c i p a lm e n te n a
I tá l ia , d i f i c u l t a n d o o e x e r c íc io d a li d e r a n ç a d e M o s c o u n o q u a d r o d o q u e r e s ­
ta v a d o m o v i m e n t o c o m u n i s t a in t e r n a c i o n a l.
N a C h i n a , a p a r e c e u u m a a m e a ç a m a io r . C h e f i a d o s p o r M a o T s é - tu n g , o s
c o m u n i s t a s c h in e s e s t r a t a r a m , v á r ia s v e z e s , a o lo n g o d o s a n o s 5 0 e 6 0 , d e
c o n s t r u i r a l t e r n a t i v a s a o s s o v ié tic o s . A s p o lí tic a s d a s C e m F lo r e s ( 1 9 5 6 ) , d o
G r a n d e S a lt o p a r a a F r e n t e ( 1 9 5 8 ) e d a G r a n d e R e v o l u ç ã o C u l t u r a l P r o ­
le t á r i a ( 1 9 6 5 - 1 9 6 9 ) c o n s t i t u í r a m , a s s o c ia d a s a u m a a g r e s s iv a p o lí tic a e x t e r ­
n a d e a p o i o a o s m o v i m e n t o s d e li b e r t a ç ã o n a c i o n a l e m t o d a a p a r t e , o c e r n e
d o m a o ís m o , j á n ã o a p e n a s u m m o d e lo d e g u e r r a c a m p o n e s a d e l i b e r t a ç ã o
n a c io n a l, m a s u m a te n ta tiv a d e s u rg ir c o m o u m n o v o farol p a r a a r e v o lu ç ã o
m u n d i a l . A p r o p o s t a d e c e r c a r a s c i d a d e s p e lo s c a m p o s a s s u m ia a g o r a u m a l ­
c a n c e m a io r : o d e c e r c a r a s cidades d o p l a n e t a (o m u n d o r ic o ) p e lo s campos
— os p a ís e s p o b r e s e o p r im id o s . O p r o b le m a é q u e o s c h in e s e s c o l o c a v a m a
U R S S n o c o n t e x t o d o m u n d o ric o . E m a is : s i t u a v a m - n a c o m o m a is p e r ig o s a
a i n d a d o q u e o s E U A , p o is , e n q u a n t o e s te s ú ltim o s e s ta v a m e m decadêticia>
a q u e l a e n c o n t r a v a - s e n u m a t r a j e t ó r i a a s c e n d e n te . O s c h o q u e s a r m a d o s f r o n -

28

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

c e iriç o s e n t r e a U R S S e a C h i n a ( 1 9 6 9 ) , o q u e s t i o n a m e n t o e x p l í c i t o q u e e s ta
ú l t i m a c o m e ç o u a f a z e r d o t r a ç a d o d a s f r o n te i r a s e n t r e o s d o is p a ís e s , c h e g a ­
r a m a a l i m e n t a r a h ip ó t e s e d e u m a g u e r r a d e g r a n d e s p r o p o r ç õ e s e n t r e o s
d o i s e x - a lia d o s .
E n tr e ta n to , a a lte rn a tiv a m a o ís ta , e m b o ra te n h a s e d u z id o d u r a n te u m
c e r t o te m p o m u i t a s c o r r e n t e s r a d ic a is e m t o d o o m u n d o , t e n d e u a d e c l i n a r
e m v i r t u d e d o f r a c a s s o d e s u a s p r in c i p a is p r o p o s t a s . A s C e m F lo r e s , q u e v i­
s a v a m p r o m o v e r u m a m p l o d e b a t e n a s o c ie d a d e s o b r e o s o c ia lis m o , n ã o f lo ­
r i r a m c o m o se e s p e r a v a , e fe n e c e r a m m u i to r a p i d a m e n t e , p o d a d a s p e lo a p a ­
r e l h o r e p r e s s iv o . O G r a n d e S a lto p a r a a F r e n te fo i u m g r a n d e s a l t o p a r a t r á s ,
g e r a n d o f o m e e d e s e s p e r o , o q u e foi a s s u m id o p e lo p r ó p r i o M a o a u t o c r i t i c a -
m e n te . F in a l m e n t e , a G r a n d e R e v o lu ç ã o C u l t u r a l P r o l e t á r i a , a p e s a r d e , i n i­
c ia lm e n te , te r re g is tra d o c e rto s a v a n ç o s n o s e n tid o d a d e m o c r a tiz a ç ã o d o
p o d e r e d o a p a r e l h o e d u c a c i o n a l , c e d o te v e s u a d in â m i c a li m it a d a a lu t a s in ­
c o n c iliá v e is e n t r e c o r r e n t e s p a r t i d á r i a s p e la s i n s tâ n c ia s c e n t r a i s d o E s t a d o .
E m v e z d e g r a n d e r e v o lu ç ã o , p a s s o u a s e r u m a p e q u e n a lu t a p o lí tic a ( n o s e n ­
t i d o h is tó r i c o ) p e l a a f i r m a ç ã o d o p r ó p r i o M a o T s é - tu n g n a li d e r a n ç a d o p a r ­
t i d o e d o E s ta d o c h in e s e s .
N o in íc io d o s a n o s 7 0 , a a p r o x i m a ç ã o e n t r e o s E U A e a C h i n a fo i a e v i­
d ê n c i a m a is s e g u r a d a s e r ie d a d e c o m q u e s e c o g i ta v a d a ameaça soviética. Ao
m e s m o t e m p o , p o r é m , in t e g r a n d o o s c h in e s e s n a s in s titu iç õ e s i n t e r n a c i o n a i s
( in g r e s s o n a O N U ) , c o n t r i b u i u p a r a a t e n u a r o r a d i c a l i s m o q u e se t o r n a r a
m a r c a r e g i s t r a d a d o m a o ís m o . Q u a n d o M a o d e s a p a r e c e u , e m 1 9 7 6 , a C h i n a
j á se e n c o n t r a v a e n v o lv id a n o p r o c e s s o d a s Q u a t r o M o d e r n iz a ç õ e s ( d a in ­
d ú s t r i a , d a a g r i c u l t u r a , d a c iê n c ia e d a s f o r ç a s a r m a d a s ) — q u e a l e v a r i a
lo n g e n o c a m i n h o d a p r o s p e r i d a d e e d a a l ia n ç a c o m o s c a p i t a i s i n t e r n a c i o ­
n a i s (V. P o m a r , 1 9 8 7 ) .
D e s o r te q u e , a p e s a r d a s c o n tra d iç õ e s n o p r ó p r io c a m p o s o c ia lis ta , a
U R S S n ã o d e ix a v a d e a p a re c e r c o m o s u p e rp o tê n c ia e d e s e r re s p e ita d a c o m o
ta l. O s e n c o n t r o s r e g u la r e s d o s p r e s id e n te s a m e r ic a n o s c o m o s e m p i t e r n o s e ­
c r e t á r i o g e r a l s o v ié tic o — L. B re jn e v — , q u e p e r m a n e c ia f ir m e n o c a r g o , a u ­
t o r i z a v a m a h ip ó t e s e d a f o r m a ç ã o d e u m a e s p é c ie d e c o n d o m í n i o m u n d i a l —
o m u n d o r e g id o p e l o s in te r e s s e s d o s E U A e d a U R S S .
A c o r d o s c o m e r c ia i s in t e r l i g a v a m c o m c a d a v e z m a i o r f o r ç a a m b o s o s
la d o s , N o s a n o s 7 0 , o c o m é r c io e n t r e a m e r ic a n o s e s o v ié tic o s m u ltip lic o u - $ e
p o r o i t o , a s i m p o r t a ç õ e s s o v ié tic a s d e c e r e a is a t i n g i n d o a m é d ia a n u a l d e 4 0
m ilh õ e s d e t o n e l a d a s n o in ic io d o s a n o s 8 0 ( N o v e , 1 9 9 0 ) . E m c o n t r a p a r t i d a ,

29

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O SÉCULO XX

a U R SS a p a re c ia c o m o g ra n d e fo rn e c e d o ra de p e tró le o p a ra a E u ro p a
O c i d e n t a l , in ic ía n d o - s e a c o n s t r u ç ã o d e u m g a s o d u t o l i g a n d o e s ta r e g iã o à
S ib é ria . C o m a F r a n ç a e a R e p ú b lic a F e d e r a l A le m ã (R F A ), p r in c i p a l m e n te ,
a U R S S te c ia a c o r d o s p o lí tic o s e e c o n ô m ic o s d e g r a n d e a lc a n c e . A Ostpolitik
( a b e r t u r a p a r a o L e s t e ) , e n c a b e ç a d a p e l o s o c i a l - d e m o c r a t a W illy B r a n d t ,
d e s d e 1 9 6 9 , c o n t r i b u i r a p a r a d i m in u ir n o ta v e lm e n te a$ te n s õ e s n a á r e a , le ­
v a n d o , in c lu s iv e , a o r e c o n h e c im e n to d a s f r o n t e i r a s e d a p e r s o n a l i d a d e d i p l o ­
m á tic a d a R e p ú b l ic a D e m o c r á tic a A le m ã (R D A ) , s e m q u e tiv e s s e s id o n e c e s ­
s á r i o t i r a r u m a p e d r a d o M u r o d e B e rlim , e r g u i d o d e s d e 1 9 6 1 .
E m 1 9 7 5 , o a c o r d o f in a l d a C o n f e r ê n c ia s o b r e a S e g u r a n ç a e a C o o p e ­
r a ç ã o n a E u r o p a (C S C E ), a s s i n a d o e m H e l s i n q u e , c o n s a g r o u a s f r o n t e i r a s
n e g o c i a d a s e m Y a lta , u m a n t i g o p r o g r a m a d a d i p l o m a c i a s o v i é t i c a ( M a i-
d a n ik , 1 9 9 8 ).
C o m o se n ã o b a s ta s s e , a U R S S c o m e ç o u a s u r g ir c o m o p o t ê n c i a n a v a l
m u n d i a l . S e u s n a v io s d e g u e r r a e s u b m a r i n o s a t ô m ic o s a p a r e c ia m e m á g u a s
e p o r t o s d o S u d e s te A s iá tic o ( V ie tn ã ) , d o Í n d ic o , d o M a r V e r m e lh o ( I ê m e n
d o S u l), d o A t l â n t i c o ( A n g o la ) , d o C a r i b e e a t é m e s m o d o M e d i t e r r â n e o
O r ie n ta l. $ u c e d ia m -s e a d v e rtê n c ia s s o m b ria s e a p o c a líp tic a s : a o n d e iria
p a r a r o e x p a n s i o n i s m o s o v ié tic o ?
A U R SS p a s s a ra p o r p ro fu n d a s tra n s fo rm a ç õ e s , v e rd a d e ira s m u ta ç õ e s
s o c ia is , p e r c e b id a s , e n t r e o u t r o s , p o r M . L e w in ( 1 9 8 8 ) . E m m e io s é c u lo , o
p ro c e s s o d e u r b a n iz a ç ã o re g is tra r a u m im p re s s io n a n te c re s c im e n to : d e 5 9
m ilh õ e s p a r a 1 8 0 m i lh õ e s d e p e s s o a s . N o in íc io d o s a n o s 8 0 , c e r c a d e 6 6 %
d a p o p u l a ç ã o v iv ia m e m c i d a d e s , m a i s 1 7 p o n t o s p e r c e n tu a is e m v in te a n o s .
N o m e s m o p e r í o d o , o s c e n t r o s u r b a n o s d e m a is d e 1 m i l h ã o d e h a b i t a n t e s
s a l t a r a m d e 3 p a r a 2 3 , c o n c e n t r a n d o m a is d e 2 5 % d a p o p u l a ç ã o t o t a l , a b ­
s o r v e n d o u m a f l u x o d e 3 5 m ilh õ e s d e m ig r a n te s .
O u t r a m u d a n ç a q u a l i t a t i v a — a q u a l if ic a ç ã o d a m ã o - d e - o b r a . N o s a n o s
8 0 , 4 0 % d a p o p u l a ç ã o u r b a n a e c o n o m ic a m e n te a t iv a e r a m f o r m a d o s p o r d i ­
p l o m a d o s e m s e g u n d o g r a u (c e rc a d e 1 8 m ilh õ e s ) o u u n i v e r s i t á r i o s ( 1 3 ,5 m i­
lh õ e s ). E s ta v a e m c u r s o u m a p r o g r e s s iv a s o f is tic a ç ã o d a f o r ç a d e t r a b a l h o .
C a d a v e z m e n o s t r a b a l h a d o r e s m a n u a i s , c a d a v e z m a is q u a l if ic a ç ã o . D e s d e
m e a d o s d o s a n o s 7 0 , u m o u t r o ín d ic e e c o n ô m ic o r e v e l a d o r : u m a le v e s u p r e ­
m a c ia d o s e t o r d e s e r v iç o s e m r e la ç ã o a o s e to r i n d u s tr i a l.
N e s t a s o c ie d a d e c r e s c e n t e m e n te u r b a n i z a d a e i n s t r u í d a , e x t r a o r d i n a r i a ­
m e n te c o m p le x a , t o r n a v a - s e c a d a m a is d ifíc il — e m e s m o in v iá v e l — m a n t e r
o s p a d r õ e s c e n t r a l i s t a s d o s a n o s 3 0 ( W e r th , 1 9 9 2 ) . N o p r ó p r i o c o r a ç ã o d o

30

M aterial com -direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIAUSTA: EXPANSÃO E APOGEU

E s t a d o , c o n s t i t u í a m - s e g r u p o s c o m d in â m i c a p r ó p r i a , i n d e v id a m e n te c h a m a ­
dos de feudos ( H o u g h , 1969), s e m fa la r n a s máfias, d a s q u a is se o u v ira m as
p rim e ira s d e n ú n c ia s em m e a d o s d o s a n o s 7 0 .
A u to n o m ia s d e s a fia n d o a a m b iç ã o d o p o d e r c e n tra l d e tu d o c o n tro la r,
e s c o r r e n d o p o r e n t r e a s m a lh a s d e u m E s ta d o c u ja o n i p o t ê n c i a s ó e x i s t ia n a s
te o ria s d o to ta lita r is m o , re d e fin in d o , r e a ju s ta n d o e a té in v e rte n d o a s o r ie n ­
t a ç õ e s p r o v e n ie n te s d a s in s tâ n c ia s c e n t r a is .
A s f r e q ü e n t e s c a m p a n h a s e m p r o l d a d is c i p lin a e c o n t r a o d e s p e r d í c i o n o
t r a b a l h o , c o n t r a o a l c o o lis m o e o a b s e n t e í s m o , e v id e n c ia v a m a s d i f i c u l d a d e s
e m c o n t r o l a r e m o b i l i z a r u m a s o c ie d a d e q u e p a r e c ia a p á t i c a e d e s i n t e r e s s a d a
(eles fingem que nos pagam, nós fingimos que trabalhamos).
A s o c ie d a d e e m iti a o u t r o s s in a is in q u i e t a n t e s .
A s r e s is tê n c ia s n a c i o n a i s , r e c u s a n d o - s e a se d e i x a r m o l d a r n o s p a r â m e ­
tro s d o homo sovieticus. O p r o c e s s o d e in t e g r a ç ã o d o s p o v o s s o v ié t ic o s , c a n ­
t a d o e m p r o s a e v e r s o , p a r e c ia n ã o e s t a r f u n c i o n a n d o n a p r á t i c a . D e s d e o s
a n o s 7 0 , d e n u n c i a v a - s e a e x i s t ê n c i a d e i m p o r t a n t e s t e n s õ e s ( D ’E n c a u s s e ,
1 9 7 8 ) . E o q u e f a z e r c o m u m a j u v e n t u d e q u e n ã o s e r e c o n h e c i a m a is n o s
m i t o s e n o s líd e r e s f u n d a d o r e s d a r e v o l u ç ã o , p a r e c e n d o s e d u z i d a p o r p a ­
d r õ e s d o s p a ís e s c a p i t a l i s t a s ? O s p r ó p r i o s t r a b a l h a d o r e s e x p r i m i a m d e s c o n ­
t e n t a m e n t o , r e g is t r a n d o - s e g re v e s e t e n t a t i v a s d e f o r m a ç ã o d e s i n d ic a to s li­
v r e s ( W e r th , 1 9 9 2 ) , S em f a la r n o f e n ô m e n o d a c h a m a d a dissidência, d e s g a s ­
t a n d o c o m s u a s d e n ú n c i a s e s e u s e s c â n d a lo s u m a o r d e m q u e se q u e r i a p e r f e i­
t a ( S o lje n its in , 1 9 7 5 ) .
S in to m a s , d if i c u ld a d e s , la d o s o c u l t a d o s p o r u m a p r o p a g a n d a m a c iç a , d e
g r a n d e p o t ê n c i a , m a s n e m p o r is s o m e r o s r e a is .
J á n ã o se f a l a v a m a i s , c o m o n o s t e m p o s d e N . K r u c h e v , e m a l c a n ç a r ,
m u ito m e n o s s u p e ra r, o s E U A . O s in d ic a d o re s e c o n ô m ic o s d e s p e n c a v a m .
E n t r e 1 9 6 5 e 1 9 7 0 , a i n d a f o r a p o s s ív e l r e g i s t r a r e x c e le n t e s m é d ia s a n u a i s d e
c r e s c i m e n t o i n d u s tr i a l: e m t o r n o d e 8 , 5 % . C o n t u d o , e n t r e 1 9 8 1 e 1 9 8 5 , e s ­
ta s m e s m a s m é d ia s c a í r a m p a r a 3 , 5 % . A c o m p a r a ç ã o d o s p l a n o s q u i n q u e ­
n a is a p l ic a d o s n o s a n o s 6 0 e 8 0 m o s t r a d e f a s a g e n s e m a t é 10 p o n t o s e n t r e
m e ta s d e f in i d a s e r e s u l t a d o s d e f a t o a l c a n ç a d o s . N o X P l a n o , e n t r e 1 9 8 1 e
1 9 8 5 , s o m e n te a p r o d u ç ã o d e g á s c o n s e g u iu s u p e r a r a s p re v is õ e s (N o v e ,
3 9 9 0 ) . N a a g r i c u l t u r a , a m é d ia a n u a l n o s a n o s 8 0 d e c r e s c e r a , a p e s a r d o s m a ­
c iç o s in v e s t im e n to s , p a r a 1 , 4 % , a b a i x o d o c r e s c i m e n t o d e m o g r á f i c o , s o b r e ­
tu d o d a s n açõ e s n ã o -ru ssa s.
E m v in t e a n o s a p r o d u t i v i d a d e d e c l i n a r a d e 6 , 3 % p a r a m e n o s d e 3 % e

31

M aterial com -direitos autorais


Edited b y Foxit PDF Editor
C o pyright (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 201 0
Fo r Evaluation Onty-

O SÉCULO XX

o s in v e s tim e n to s , d e 7 , 8 % p a r a 1 ,8 % ( W e r th , 1 9 9 2 ) . D e u m l a d o , a u m e n t a ­
v a m o s e s t o q u e s d e a r ti g o s in v e n d á v e is . D e o u t r o , d e m a n d a s in s a t is f e it a s .
D c f in it iv a m e n te , o p a ís n ã o e s t a v a c o n s e g u in d o a l c a n ç a r o s r it m o s q u e t i ­
n h a m f e ito a g l ó r i a d o s p la n o s n o s a n o s 3 0 .
O n d e e s ta r i a o n ó b á s ic o ? N a a g r i c u l t u r a , q u e , d e s d e o s a n o s 5 0 , r e c e b ia
r e c u r s o s e x t r a o r d i n á r i o s , a p a r e n t e m e n t e a f u n d o p e r d id o ? N a m ã o - d e - o b r a ,
c o m s u a i n a p e tê n c ia p a r a o t r a b a l h o , e s u a i n s u b m i s s ã o d ia n te d a s o r d e n s e
p r e s c r iç õ e s ? N o s c r it é r io s d o s p la n o s , e n f a t i z a n d o s e m p r e o s a s p e c t o s q u a n ­
t i t a t i v o s e d e s c u r a n d o o s q u a l i t a t i v o s ? N a c o r r u p ç ã o , q u e se a l a s t r a v a e m
t o d o s o s n ív e is ? N o a b i s m o c o l o s s a l v e r if ic a d o e n t r e o d i s c u r s o o f ic ia l e a
p r á t i c a d a s e lite s ?
N o in íc io d o s a n o s 8 0 , o q u a d r o d a s r e la ç õ e s in t e r n a c i o n a is já n ã o p a r e ­
c i a t ã o p r o m is s o r . U m a o n d a n e o lib e r a l a g r e s s iv a , a n t i- s o v ié ti c a , c o m e ç a v a a
v a r r e r o m u n d o c a p i t a l i s t a , a n u n c i a n d o n o v a s c o n c e p ç õ e s d e E s ta d o e d e s o ­
c i e d a d e e u m a n o v a e s p ir a l n a c o r r i d a a r m a m e n t is ta .
A d e c is ã o d e in v a d ir o A f e g a n is tã o , e m 1 9 7 9 , n ã o e s t a v a d a n d o o s r e s u l ­
t a d o s p o s i t i v o s e s p e r a d o s . H o u v e r a a li u m e r r o d e c á l c u l o . O s s o v ié t ic o s
i m a g in a v a m e s t a r p a r t i c i p a n d o d e u m a o p e r a ç ã o d e p o l í c i a i n t e r n a c i o n a l ,
n o s m o l d e s d a q u e h a v ia m p r o t a g o n i z a d o n a T c h e c o s l o v á q u i a e m 1 9 6 8 , m a s
ti n h a m m e r g u l h a d o n u m a g u e r r a d e g u e r r il h a s lo n g a e d e s g a s ta n t e . M u i t o s
já f a la v a m d o A f e g a n is tã o c o m o o V ie t n ã s o v ié tic o ...
N o m u n d o s o c ia lis ta o d i n a m i s m o v in h a a p e n a s d a C h in a , m a s e le n ã o
r e f o r ç a v a a U R S S , p o is , a lé m d a s r e s e r v a s q u e o s c h in e s e s c u l tiv a v a m e m r e ­
la ç ã o a o s s o v ié t ic o s , e le s p a r e c i a m o p t a r , j u s t a m e n t e , p o r u m a p o l í t i c a d e
descoletivização d o c a m p o , q u e n a d a t i n h a a v e r c o m o m o d e lo a p r e s e n t a d o
p o r M o s c o u . N o s d e m a is p a ís e s s o c ia lis ta s r e in a v a u m a a t m o s f e r a m o r o s a ,
a p e n a s in te r r o m p id a p e lo s p r o te s to s e p e lo in c o n f o r m is m o n a á r e a d a
E u r o p a C e n t r a l , n a P o lô n ia e m p a r t i c u l a r , c o m o s m o v i m e n t o s s o c ia i s d e
s e m p r e , q u e a g o r a d e s e m b o c a v a m , p o r é m , n u m f e n ô m e n o e s t r a n h o e i n é d i­
to : a f o r m a ç ã o d e u m s i n d ic a to a u t ô n o m o e m r e la ç ã o a o s c o m u n i s t a s — o
S o lid a r ie d a d e .
A U R S S p a r e c ia n e c e s s ita r d e r e f o r m a s . N ã o e r a u m g ig a n te im ó v e l, n e m
e s t a g n a d o . I n t e r n a m e n t e , e v i d e n c ia v a u m g r a n d e d i n a m i s m o s o c i a l e u m
c e r t o d e s e n v o lv i m e n t o e c o n ô m ic o , e m b o r a d e c l in a n t e . E x t e r n a m e n t e , a i n d a
p r o v o c a v a r e s p e it o e m e d o .
M a s s e r ia n e c e s s á r io e le g e r p r i o r i d a d e s , fa z e r o p ç õ e s . O r a , n a p r im e ir a
m e ta d e d o s a n o s 8 0 , a lo n g a a g o n i a d e L . B re jn e v e o s c u r t o s m a n d a t o s d o s

32

M aterial com direitos autorais


Edited by Foxit PDF Editor
C o p yrigh t (c) b y Foxit Corporation, 2 0 0 3 - 2 01 0
Fo r Evaluation Onty.

O MUNDO SOCIALISTA: EXPANSÃO E APOGEU

v e t u s t o s s e n h o r e s q u e o s u c e d e r a m , I. A n d r o p o v e K . T c h e m e n k o , a m b o s
c e d o c e if a d o s p e la m o r t e , p a r e c e r a m u m a p e r d a d e t e m p o . D e c e r t o m o d o ,
e r a s i n t o m á t i c o q u e a s e lite s r e a g is s e m a s s im à s u r g ê n c ia s d o s d e s a f io s : p e r*
d i a m t e m p o q u a n d o n ã o e s ta v a m e m c o n d iç õ e s d e e s p e ra r.
M a s q u e m p o d e r ia p r e v e r a im in ê n c ia d e u m c o l a p s o h is tó r i c o ?

BIBLIOGRAFIA

Broué, P. 1979. A p r im a v e r a d o s p o v o s c o m e ç a e m P ra g a , São Paulo, Kairós.


Claudin, F. 1983. A o p o s iç ã o a o s o c ia lis m o real. Rio de Janeiro, M arco Zero.
D*Encausse, H . C. 1978. L 'E m p i r e é c la té , la r é v o lt e d e s n a t i o n s e n U R S S . Paris,
Flanunarion.
Fernandes, F. 1979. D a g u e r r ilh a a o s o c ia lis m o : a r e v o lu ç ã o c u b a n a . São Paulo, T. A.
Queiroz.
Ffough, J. 1969. T h e s o m t p r e fe c ts . Cambridge, Cambridge University Press.
Lewin, M, 1988. O f e n ô m e n o C o r b a c h e v . Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Maidanik, K. 1998. “ Depois de outubro, e agora? Ou As três mortes da revolução russa”.
T e m p o . Revista do Departamento de História da UFF, n. 5. Rio de Janeiro, Sette
Letras.
Nove, A. 1990. A n e c o n o m ic h is to r y o f t h e U S S R . Londres, Penguin Books.
Pomar, V. 1987. O e n ig m a ch in ês: c a p ita lis m o o u s o c ia lis m o . São Paulo, Alfa-Ômega.
Reis Filho, D. 1981. A r e v o lu ç ã o c h in e sa . São Paulo, Brasiiíense.
. 1997. U m a r e v o lu ç ã o p e r d id a . São Paulo, Fund. Perseu Àbramo.
Sapir, j. 1990. V é c o n o m i e m o b ilis é e . Paris, La Découverte.
Soljeniisin, A. 1975. O A r q u ip é la g o G u la g . Sao Paulo, Difel.
Werth, N. 1992. V H i s t o i r e d e 1 'U n io n S o v ié tiq u e . Paris, PUF.

33

M aterial com direitos autorais


Descolonização e lutas de
libertação nacional
Maria Yedda Leite Linhares
Professora titular de História Moderna e Contemporânea
e professora emérita da Universidade Federal do
Rio de Janeiro
INTRODUÇÃO

Em 1 9 6 1 , ain d a d u ra n te a guerra d e lib erta çã o da A rg élia , escrev ia J ean -P au l


Sartre o m em o r á v e l p r e fá c io a o livro d e u m in te le c tu a l n e g r o , d a M a r tin ic a ,
argelin o d e c o r a ç ã o , F ran tz F a n o n , q u e se to rn a ria o m a n ifesto -d en ú n cia d o
c o lo n ia lism o e o g r ito d e rev o lta c o n tr a a d o m in a ç ã o im p e r ia lista d a E u rop a
(F an on , 1 9 6 1 ).

“Não faz muito tempo, a terra contava com 2 bilhões de habitantes, ou seja,
5 0 0 milhões de homens e 1,5 bilhão de indígenas. Os primeiros dispunham do
Verbo, os outros o pediam emprestado. Entre uns e outros, reis de fancaria,
feudais, uma burguesia inteiramente falsa, serviam de intermediários. Perante
as colônias, a verdade se mostrava nua: as ‘metrópoles’ queriam que ela se
apresentasse vestida; era preciso que o indígena as amasse. Como se, de algum
modo, fossem mães. A elite européia procurou fabricar um indigenato de elite;
selecionavam-se adolescentes que tinham sobre a testa, marcados a ferro, os
princípios da cultura ocidental e a boca recheada de mordaças sonoras, belas
palavras pastosas que se colavam aos dentes; após uma breve estada na metró­
pole, eram enviados de volta, truncados. Mentiras ambulantes, nada mais ti­
nham a dizer a seus irmãos; estes faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã,
lançávamos as palavras ‘Partenon! Fraternidade!’ e, em alguma parte da África,
da Ásia, lábios se entreabriam: ‘...tenon! ...nidade!’. Era a idade de ouro.”

Sartre foi a g ra n d e v o z da c o n sc iê n c ia e u ro p éia a n tic o lo n ia lista . F iló s o fo ,


escritor, r o m a n c ista , jo rn a lista , p a n fle tista , d as ruas e d a s p r a ç a s p ú b lic a s d e
Paris d e sa fio u a so c ie d a d e c o n se r v a d o r a e retrógrad a, as “ fo r ç a s d a o r d e m ” ,
o s p o d eres c o n s titu íd o s da R e p ú b lic a , c o lo c a n d o -s e se m p r e em d e fe sa d o s
o p rim id o s, da lib erd ad e d e e x p r e ss ã o e d as m a n ife sta ç õ e s d e so lid a r ie d a d e
a o s q u e se o p u n h a m à o p r e ss ã o , à h ip o c r isia , a o m e d o e a o o p o r tu n is m o .
A p r e s e n to u a g ra n d e força m o ra l da in telig ên cia livre e in d e p e n d e n te .

37

L
O SÉCULO XX

N a q u e le m o m e n to , esta v a n o a u g e o c o n fr o n to en tre d o m in a d o r e s e d o ­
m in a d o s, o u seja, en tre c o lô n ia s e m e tr ó p o le s. P o v o s e re g iõ e s da Terra q u e
tin h a m s o fr id o , n o p a ssa d o , a ocupação d ireta p or p a íses estr a n g e ir o s, c o m e ­
ç a v a m a m an ifestar, p o r m e io s d iv e r so s, a su a in sa tisfa ç ã o . A Á sia , p o r e x e m ­
p lo , fo r a b erço d e c iv iliz a ç õ e s m a g n ífic a s q u e m a rcaram c o n q u is ta s fu n d a ­
m e n ta is d a H u m a n id a d e , n o to c a n te a o d o m ín io so b r e a n a tu r e z a e o a v a n ­
ç o té c n ic o , ta is c o m o a d o m e s tic a ç ã o d e a n im a is, a agricu ltu ra para a o b te n ­
ç ã o d e a lim e n to s , a cerâ m ica para a fa b rica çã o d e u te n s ílio s, a m e ta lu r g ia , o
p a p e l, a p ó lv o r a , b em c o m o in stitu iç õ e s q u e to r n a r a m p o ss ív e l a v id a so c ia l
(c id a d e s, o r g a n iz a ç õ e s p o lític a s q u e lev a ra m à c o n s t itu iç ã o d e E s ta d o s , a
m o e d a , a escrita ). A Á sia o ste n ta v a , d e fa to , u m a v iv ên cia h istó r ic a d e 5 m il
a n o s. N o e n ta n to , a partir d o sé c u lo X V I, c o m as p rim eiras n a v e g a ç õ e s e u ­
r o p é ia s q u e a tin g ira m o Ín d ic o e o o c e a n o P a c ífic o , o is o la m e n to d e ssa s v e­
lh a s c iv iliz a ç õ e s c o m e ç a v a a ser in terro m p id o .
F oi, p o r é m , a partir d o sé c u lo X V III e, s o b r e tu d o , c o m a su p e r io r id a d e
té c n ic a o ste n ta d a p e lo s p a íses d a r e v o lu ç ã o in d u strial e c a p ita lista (p rin cip a l­
m e n te a Inglaterra e a F ran ça, lo g o seg u id a s p e la H o la n d a ) q u e o s p o v o s a l­
ta m e n te c iv iliz a d o s da Á sia , d o ta d o s d e p a d rõ es é tic o s bem d iv e r so s d o s v a ­
lo res fu n d a d o s na p reem in ên cia d o s b en s m a teria is, v a lo r e s e sses q u e se in ­
tr o d u z ia m in c o r p o r a d o s à o c u p a ç ã o o c id e n t a l, v ir a m -se a m e a ç a d o s p e la
perd a d e su a id en tid a d e cu ltu ra l. T ra ta v a -se d e m ais a in d a , o u seja, a perda
d e riq u ezas, d e a u to n o m ia , c o m o u m a te n ta tiv a d e ser-lh es a r ra n ca d o o p a s­
sa d o p ela s raízes.
Q u a n to à Á fr ic a , a e sp o lia ç ã o d e q u e fo i v ítim a tivera in íc io n o sé c u lo
X V I c o m o s d e se m b a r q u e s n o lito r a l o c id e n ta l a tlâ n tic o , in ic ia lm e n te em
b u sca d e o u r o e , lo g o a seguir, c o m o fo n te su p rid o ra d e e sc r a v o s n e g r o s, o
in u s ita d o trab alh ad or, tr a n sfo r m a d o em m erca d o ria a lta m e n te lu c r a tiv a , q u e
iria en riq u ecer o s c o m e r c ia n te s e ser a m ã o -d e -o b r a d a s n o v a s c o lô n ia s da
A m érica. O s in v a so r e s m u d aram o s v e lh o s e s ó lid o s p a d r õ e s d a s so c ie d a d e s
trib a is, im p o n d o o r a cism o e o u tr a s form as d e c o r r u p ç ã o em d eco rrên cia d o
tr á fic o d e h o m e n s , m u lh eres e jo v e n s m a l sa íd o s d a in fâ n cia .
A o lo n g o d o sé c u lo X IX , a p r o fu n d o u -se a o c u p a ç ã o d o c o n tin e n te afri­
c a n o ; seu s p o v o s e se u s territó rio s foram p a r tilh a d o s en tre a s p o tê n c ia s da
E u ro p a , já e n tã o m o n o p o liz a d o r a s d o n o v o sa b er c ie n tífic o e te c n o ló g ic o da
R e v o lu ç ã o In d u strial e d a s té c n ic a s da o r g a n iz a ç ã o e c o n ô m ic a d o c a p ita lis­
m o . A E u ro p a en tra v a , a partir d o s a n o s 7 0 d o sé c u lo X I X , n u m a n o v a era
d e e x p a n s ã o e c o n q u is ta d o m u n d o . A essa era o s p r ó p r io s c o n te m p o r â n e o s
d en o m in a r a m d e im p eria lism o .

38
DESCOLONIZAÇÃO E LUTAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

C o m o ju stificar essa in v estid a eu ro p éia so b re o m u n d o ? R e c e n te m e n te ,


um h istoriad or árab e, n a sc id o na P alestin a, m as d e lo n g a e p r o fu n d a vivên cia
na E uropa (Inglaterra) e n o s E sta d o s U n id o s, E d w ard W . Said, n u m livro c o m ­
p le x o e eru d ito , a n a liso u esse p ro b lem a — o d as rela ç õ es en tre, d e u m la d o , o
im p erialism o, o u seja, a e x te n s ã o d o d o m ín io e da so b era n ia so b r e d iferen tes
p o p u la ç õ e s e te r r itó r io s, c o m o o b je tiv o d e a u m e n ta r fo r ç a e p o d er, e , d e
o u tro , a cu ltu ra. T rata-se, fu n d a m en ta lm en te, em sab er — e e x p lic a r — c o m o
intelectuais ilu stres (as v isõ e s e p ersp ectivas d e J o sep h C o n r a d , J an e A u ste n , a
óp era A ída, de Verdi) vêem e ju stificam a a tu a ç ã o d o h o m em bran co civiliza­
dor em o u tras regiões e ju n to a o u tr o s p o v o s. T rata-se, e v id e n te m e n te , d e p o ­
líticas q u e serviram a in teresses c o n c r e to s d e in d u striais, c o m e r c ia n te s e b a n ­
q u eiros, em b u sca de lu cros e n o v a s áreas de in v e stim e n to s, e sc u d a d o s , para
ta n to , na Igreja, em b u sca da p r o p a g a ç ã o d a F é, n o s e x é r c ito s e n as m a rin h a s,
q ue m an tin h am p o d e r o sa s in d ú stria s, n o E stad o d e caráter b u rg u ês, g aran ti-
d or da g ran d eza d e seu s c id a d ã o s, e n o s in telectu ais, em b u sca d e tem a s, le i­
tores e poder. A e x p eriê n c ia im p erialista era p arte d o c o tid ia n o .
Bernard S h aw ( 1 8 5 6 - 1 9 5 0 ) , escrito r b ritâ n ico e c o m s ó lid a s o r ig e n s ir­
lan d esas, en carava d e o u tr a fo r m a o s fin s d o im p e r ia lism o . E screv ia e le em
O homem d o d e stin o :

“O inglês nasce com certo poder milagroso que o torna senhor do mundo.
Quando deseja uma coisa ele nunca diz a si mesmo que a deseja. Espera pa­
cientemente até que lhe venha à cabeça, ninguém sabe como, a insopitável con­
vicção de que é seu dever moral e religioso conquistar aqueles que têm a coisa
que ele deseja possuir. Torna-se, então, irresistível [...] Como grande campeão
da liberdade e da independência, conquista a metade do mundo e chama a isso
de colonização. Quando deseja um novo mercado para seus produtos adultera­
dos de Manchester, envia um missionário para ensinar aos nativos o evangelho
da paz. Os nativos matam o missionário; ele recorre às armas em defesa da
cristandade; luta por ela, conquista por ela; e toma o mercado como uma re­
compensa do céu [...]”

Bernard S h aw rep resen ta v a , em p len a era d o im p e r ia lism o , a c o n sc iê n c ia


crítica d a Inglaterra a lia d a a o e sp ír ito irre d e n to d o irlan d ês d u b lin e n se , c o n -
testad or p o r p rin c íp io . M a s a so rte d o s im p ério s colon iais n ã o seria lo n g a . A
Crise d o c a p ita lism o , a partir d e 1 9 2 9 , a a sc e n sã o fu lg u ra n te d o nazi-fascis-
Wo alia d a à e m erg ên cia d o J a p ã o , n o E x trem o O r ie n te , c o m o se e stiv e sse a

39
O SÉCULO XX

co n fir m a r o s te m o r e s d o Im p ério A le m ã o d o K aiser G u ilh erm e II q u a n to a o


p erigo a m a relo , o d e se n c a d e a m e n to d a guerra em 1 9 3 9 e su a e x p a n s ã o m u n ­
d ia l a té 1 9 4 5 , to d o s e sses s ã o o s fa to r e s q u e irão d e se n c a d e a r a d esa g r e g a ç ã o
d o s im p é r io s, n o s a n o s q u e su ced era m o fim d o c o n flito m u n d ia l.
R esta rá sem p re u m a p ergu n ta: o im p e r ia lism o c o m o sistem a ju r íd ic o -p o -
lític o -m ilita r ch eg a rá a o seu fim n a d éca d a d e 1 9 8 0 , n o e n ta n to , q u e n o v a s
fo rm a s d e d o m in a ç ã o irã o fa v o recer e c o n so lid a r a d iv isã o d o m u n d o en tre
ric o s e p o b r e s e c o m q u e n o v a s o u v elh a s ju stificativas? T e n ta r e m o s r e sp o n ­
d er a esta q u e stã o a o lo n g o d o p resen te te x to .

1. A DESCOLONIZAÇÃO NO PÓS-GUERRA

A gu erra a in d a n ã o ter m in a r a d e to d o na E u ro p a e n o E x tr e m o O r ie n te ,
q u a n d o se reu n iu , em ab ril-ju n h o d e 1 9 4 5 , a C o n fe r ê n c ia d e S ã o F ra n cisco ,
E sta d o s U n id o s , c o m o o b je tiv o d e discutir, en tre o s a lia d o s m ilita res v ito r io ­
so s so b r e o n a z i-fa sc ism o , a feitu ra d e u m a C arta o u d e u m a C o n s titu iç ã o in ­
te r n a c io n a l c a p a z d e a ssegu rar a p a z en tre o s p o v o s . D a í r e su lto u a C arta da
O r g a n iz a ç ã o d a s N a ç õ e s U n id a s (O N U ), q u e receb eu a a ssin a tu ra d e cerca
d e 5 0 E sta d o s fu n d a d o r e s. D e c o r r id o u m q u a rto d e s é c u lo , e sse n ú m e r o c h e ­
g o u a 1 2 0 , o q u e serve c o m o in d ic a d o r d a r a p id ez c o m q u e se d eu o p r o c e s­
s o d e c o n stitu iç ã o d o s n o v o s E sta d o s a fr o -a siá tic o s.
N e s te fim d e s é c u lo , o n ú m e r o de p a íses m e m b r o s d a O N U já é su p erio r
a 1 9 0 . N o v o s p a íse s em ergiram d a s lu tas c o n tr a o c o lo n ia lis m o , a c r e sc e n ta n ­
d o -s e , a in d a , n o s a n o s m a is re c e n te s, a q u eles q u e resu lta ra m d o d e sm o r o n a ­
m e n to d o s E sta d o s so c ia lista s n a E u ro p a , b em c o m o d e d e sm e m b r a m e n to s
na Á sia , n o s u b c o n tin e n te in d ia n o , n o O rien te M é d io e na p ró p ria Á frica , re­
su lta n te s d e v elh a s h era n ça s trib a is e re iv in d ic a ç õ e s in tern a s, r e iv in d ic a ç õ e s
e ssa s, em p arte, a lim e n ta d a s p e lo s in teresses e x te r n o s , q u er da a n tig a m e tr ó ­
p o le q u er d a s riv a lid a d es in te r n a c io n a is e n tã o em jo g o .
T ra ta v a -se d e um p r o c e ss o d e m u d a n ça q u e te v e in íc io lo g o a p ó s o té r ­
m in o da guerra na E u ro p a , e se in te n sific o u na d é c a d a d e 1 9 5 0 . N a s c o lô n ia s
a frica n a s, o m o v im e n to d e p a r tic ip a ç ã o n o c o n flito m u n d ia l fo i a c e n tu a d o ,
d esd e o p rim eiro c h a m a d o d a m e tr ó p o le à so lid a r ie d a d e d e s ú d ito s e c o lo ­
n o s , c o m c o n se q u ê n c ia p o sitiv a n o p ó s-g u erra , n o to c a n te a o m o v im e n to de
in d ep en d ên cia .

40
I
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

N a Á sia , a in sa tisfa ç ã o era g ran d e n as c la sse s d irig en tes lo c a is, s o b r e tu ­


d o n o m a n d a r in a to , o s le tr a d o s p r iv ile g ia d o s q u e m o n o p o liz a v a m sa b e r e
restígio. M a io r in s a tis fa ç ã o , n o e n ta n to , resid ia en tre c a m p o n e s e s q u e re-
resentavam o g r o ss o da p o p u la ç ã o c o lo n iz a d a e q u e , c a d a v e z m a is, se ju n ­
tavam a o s m o v im e n to s n a c io n a lista s d e in flu ên cia c o m u n ista .
O s im p ério s c o lo n ia is c o n str u íd o s, em g ran d e p arte, a o lo n g o d o sé c u lo
X i x p a recia m in iciar, d e fa t o , u m p r o c e s s o d e liq u id a ç ã o . N a Á fr ic a , na
ín d ia, na In d o n é sia , era c o m o se in g le se s, fran ceses, b e lg a s, p o r tu g u e se s e h o ­
lan d eses c o m e ç a sse m a sen tir q u e a d o m in a ç ã o d o h o m em b ra n co so b r e o
planeta Terra en tra v a em fase d e e x tin ç ã o . N o lu gar d o s se n h o r e s d o m in a d o ­
res q u e, a partir d o sé c u lo X V I, em e ta p a s su c e ssiv a s, a v a n ç a r a m so b r e to d o s
os o c e a n o s e m ares, su rg iría m , na esteira d a S egu n d a G u erra M u n d ia l, p o p u ­
lações c o m id en tid a d e cu ltu ra l p róp ria. O s c o n q u is ta d o r e s m o d e r n o s a n e x a ­
ram c o n tin e n te s in te ir o s, q u er s o b a d o m in a ç ã o d e se u s s o ld a d o s e g o v e r ­
n ad ores, q u er s o b o p a tr o c ín io e a d ir e ç ã o d e se u s c o m e r c ia n te s, r e lig io s o s e
aven tu reiros, r e c o n h e c id o s h o je c o m o E sta d o s, p o v o s e n a ç õ e s.
E sse m o v im e n to , a c e le r a d o a o lo n g o d o s a n o s 5 0 e 6 0 , receb eu a d e n o ­
m in a ç ã o d e d e sc o lo n iza ç ã o , q u e r e s u lto u n o fim d o s im p é r io s c o lo n ia is ,
parte de um lo n g o p r o c e ss o d e m u d a n ç a n o p la n o in te r n a c io n a l. E fo ra m d i­
versos o s c a m in h o s d a in d ep en d ên cia .

A fin a l, d e s c o lo n iz a ç ã o p o r q u ê?

N o seu n a sc e d o u r o , a p alavra d e s c o lo n iz a ç ã o já vem c a rreg a d a d e id e o lo g ia ,


p arecen d o d efin ir um d e stin o h is tó r ic o d o s p o v o s c o lo n iz a d o s: d e p o is d e ter
c o lo n iz a d o , o e u r o p e u d e s c o lo n iz a , e s ta n d o , p o is , im p líc ita a v o n ta d e d o
país c o lo n iz a d o r d e abrir m ã o d e p r e te n so s d ir e ito s a d q u ir id o s em d e te r m i­
n ad o m o m e n to . A g e n e r a liz a ç ã o d o term o im p lic a , d e certa fo r m a , u m a in ­
terp retação eu ro cên trica d a H istó r ia , o u seja, a n o ç ã o d e q u e s ó a E u ro p a
p ossu i u m a H istó r ia o u é c a p a z d e ela b o r á -la . O s o u tro s n ã o tê m H istó ria :
nem p a ssa d o a ser c o n ta d o n em fu tu ro a ser e la b o r a d o .
E n q u an to o lo n g o p r o c e sso d e c o lo n iz a ç ã o resu lto u d e u m a a ç ã o e u r o ­
péia, a partir d o sé c u lo X V I, e x tr e m a m e n te c o m p le x a e d iv e r sific a d a , a d e s­
c o lo n iz a ç ã o d ev e ser v ista c o m o u m a m p lo p r o c e sso h is tó r ic o lig a d o à crise
do c a p ita lism o na d é c a d a d e 1 9 3 0 e à Segu n d a G u erra M u n d ia l, d e d e v a sta ­
d oras c o n se q ü ê n c ia s para o s im p ério s c o lo n ia is . O s m o v im e n to s n a c io n a is

41
O SÉCULO XX

q u e e stã o n o b o jo d a a sp ir a ç ã o d o s p o v o s c o lo n iz a d o s s ã o b a sta n te c o m p le ­
x o s n a s su a s d iv ersa s p o ss ib ilid a d e s , r e a liza çõ es e fru stra çõ es. N a r ea lid a d e,
c o m o p r o c e ss o h is tó r ic o d e g ra n d e en v e r g a d u r a , a d e s c o lo n iz a ç ã o n ã o fo i
a in d a c o n c lu íd a n o q u e ela p o d eria sig n ifica r em te r m o s d e b em -esta r e a u to ­
d e te r m in a ç ã o d o s p o v o s q u e v iv era m na ó rb ita d o c o lo n ia lis m o .
A gu erra q u e se en c e r r a v a em 1 9 4 5 , c o m a d e r r o ta d a A le m a n h a , da
Itália e d o J a p ã o , d e ix a v a atrás d e si u m s a ld o n e g a tiv o para v e n c id o s e v e n ­
ced o res: u m p a ss iv o em v id a s h u m a n a s d e 1 0 0 m ilh õ e s, en tre c iv is e m ilita ­
res, e o g e n o c íd io d e 5 m ilh õ e s d e ju d eu s, além d e a str o n ô m ic a s p erd a s m a ­
teria is d e sig u a lm e n te d istr ib u íd a s e c a lc u la d a s em te r m o s d a d e str u iç ã o de
e q u ip a m e n to s u r b a n o s, in s ta la ç õ e s d e in fra-estru tu ra, c a m p o s a g r íc o la s, fa ­
to r e s e sses q u e tr o u x e r a m o c a o s p ara o terren o d e batalh a em q u e se tra n s­
form ara a E u rop a. N o e n ta n to , o p r o g r e sso té c n ic o foi a c e le r a d o n esses a n o s
d e c o n flito , através d a s n o v a s d e sc o b e r ta s para o c o m b a te à s d o e n ç a s (D D T ,
p en icilin a ) e para o d e se n v o lv im e n to d e m e io s m a is r á p id o s d e c o m u n ic a ç ã o
(radar, a v ia ç ã o su p e r sô n ic a ), e le m e n to s q u e iriam ap ressar a re c o n str u ç ã o d o
siste m a e c o n ô m ic o . M a is ra p id a m en te d o q u e n o p ó s-g u erra d e 1 9 1 8 , o c a ­
p ita lism o se eq u ip a v a para a su a r e c o n str u ç ã o .

O e c lip s e d a E u r o p a

N a q u e le m o m e n to , fa la v a -se n o e c lip se d a E u ro p a , re ssa lta n d o -se o c o n te ú ­


d o r e v o lu c io n á r io d o c o n flito q u e se en cerra v a , te n d o em v ista a im p o rta n te
p a r tic ip a ç ã o d a U R S S n a d errota d o n a z i-fa sc ism o e o seu r e c o n h e c im e n to
c o m o n o v a p o tê n c ia m u n d ia l. C o n sid e r a v a -se , en tre v e n c id o s e v e n c e d o r e s
— c o m te m o r p ara u n s, c o m esp era n ça para o u tr o s — , q u e o s o c ia lis m o era
p a r te d a e x p e r iê n c ia s o v ié tic a c o m o u m a a lte r n a tiv a d e d e s e n v o lv im e n to
para p o v o s , p a íses e n a ç õ e s q u e g r a v ita v a m n a ó rb ita d o c a p ita lism o .
C o n sid e r e -se , a in d a , o fa to d e q u e a o c u p a ç ã o d e territó rio s p e lo s e x é r c i­
to s in im ig o s criara u m a n o v a v e r sã o d e nação em a rm a s, n a m e d id a e m qu e
o p r e stíg io da r esistên cia , a tu a n d o c o m o g u errilh a , c o n tr a o s e x é r c ito s n a z is­
ta s e fa sc ista s, ta n to na E u rop a c o m o n a Á sia , c o n tr ib u iu para ab a la r o p od er
d a s b u rg u esia s lo c a is, a c u sa d a s d e c o la b o r a r c o m o in im ig o . O s p a r tid o s p o ­
lític o s q u e em ergiram n o p ó s-g u erra iriam so fr e r a in flu ê n c ia d esses m o v i­
m e n to s d e o p in iã o p ú b lic a , in te r n a m e n te , b em c o m o n o to c a n te à situ a ç ã o
d a s c o lô n ia s . T ratava-se d e u m a d iv isã o so c ia l in tern a p r o fu n d a q u e m a rca ­

42
DESCOLONIZAÇÃO E LUTAS DE L I B E R T A Ç Ã O NACIONAL

ria a e v o lu ç ã o d o s p a rtid o s, so b r e tu d o o s d e esq u e r d a , c o m larga m arg em d e


p restíg io para o s p a rtid o s c o m u n ista s , c o m o oco rreu na F ran ça, na B élg ica ,
na H o la n d a , n a G récia , na Iu g o slá v ia .
O e c lip se , em b o r a te m p o r á r io , da E urop a c o r r e sp o n d ia à a sc e n s ã o m u n ­
dial d o s E sta d o s U n id o s, líder d e u m n o v o c a p ita lism o , sem rivais e sem c o n ­
corren tes. N a ç ã o m ilio n á r ia , v en ced o ra so b re o J a p ã o , fin a n c ia d o r a e c o n s ­
trutora da v itó ria em to d a s as fren tes, tin h a , n o e n ta n to , q u e en ca ra r o e v i­
d en te p restíg io da U n iã o S o v ié tic a , c o n q u is ta d o através d a e x tr a o r d in á r ia re­
sistên cia d e seu p o v o e d e se u s e x é r c ito s à o c u p a ç ã o d o p a ís p e la s tr o p a s d e
H itler. A in v estid a d o e x é r c ito s o v ié tic o em d ir e ç ã o a B erlim c o n s a g r o u a v i­
tória final so b r e a A lem a n h a . A partir d esse m o m e n to , to r n a -se in d iscu tív el
a lid eran ça d essa s d u a s p o tê n c ia s n o p la n o m u n d ia l, a U R S S e o s E sta d o s
U n id o s d a A m érica.
N o P a c ífic o , o c o la p s o d o J a p ã o , d e fin itiv o e arrasad or, a p ó s o la n ç a ­
m en to d e d u a s b o m b a s a tô m ic a s (H ir o sh im a e N a g a s a k i), rev ela v a q u e o cré­
d ito da d errota n ã o era so m e n te d o s E sta d o s U n id o s. C o u b e à C h in a u m a
im p ortan te p a r tic ip a ç ã o na lu ta c o n tr a o Im p ério J a p o n ê s. P aís d e p r o p o r ­
ç õ e s c o n tin e n ta is e im en sa p o p u la ç ã o , a C h in a em ergia d e um lo n g o p e r ío d o
de guerras in tern as q u e resu ltaram na d errota fin a l d a s e n tã o c h a m a d a s fo r ­
ças n a c io n a lista s d e C h ia n g K a i-sh ek e na v itó ria d o s c o m u n is ta s d e M a o
T sé-tung. Seria esse u m fa to d e c is iv o para a e v o lu ç ã o e o fin a l d e sm o r o n a ­
m en to d o s im p ério s c o lo n ia is n o E x trem o O rien te e n o S u d este A s iá tic o , n a s
décad as seg u in tes.

A fo r m a ç ã o d o s b lo c o s in te r n a c io n a is e a d iv is ã o d o m u n d o

O estu d o da d e sc o lo n iz a ç ã o n ã o p o d e ser le v a d o a c â b o sem q u e se te n h a em


m ente o q u a d r o in te r n a c io n a l n o q u al ela se d e se n v o lv e , b e m c o m o a s q u e s­
tõ es estru tu rais q u e m o ld a m e sse im e n so p r o c e sso d e m u d a n ç a . D e u m la d o ,
a h eg em o n ia d o s E sta d o s U n id o s so b r e o m u n d o c a p ita lis ta e su a r e la ç ã o
co m u m a E uropa em crise. D e o u tr o , o n o v o p r e stíg io d a U n iã o S o v ié tic a e a
c o n stitu iç ã o , a partir d e 1 9 4 9 , c o m a in c lu sã o d e u m a C h in a c o m u n is ta , d o
° c o so c ia lista , in te g r a d o p e lo s p a íse s d o L este e u r o p e u , q u e so fr e r a m a
upla o c u p a ç ã o m ilitar d e a lem ã es e so v ié tic o s . O s tr a ta d o s d e p a z a ssin a d o s
f ? 1 ^ar's (1 0 d e fevereiro d e 1 9 4 7 ) traçaram as n o v a s fro n teira s d a Itá lia , da
Ungria, da R o m ê n ia , da B ulgária e da F in lân d ia, d e ix a n d o um s a ld o a lta ­

43
O SÉCULO XX

m en te fa v o rá v el para a U n iã o S o v ié tic a . C o m e le s, n a sce o b lo c o so c ia lista e


é d a d o o sin a l d e p artid a à G uerra Fria.
É e v id e n te q u e a te n s ã o in te r n a c io n a l d e ss e s a n o s d e p ó s-g u e r r a te v e
fo rte in flu ên cia n o p r o c e sso d e d e s c o lo n iz a ç ã o , a ssim c o m o a in te n sific a ç ã o
d a s r iv a lid a d es le v o u a c o n fr o n to s q u e n ã o se lim ita v a m à sim p le s o p o s iç ã o
en tre c o m u n ista s e d e m o c r a ta s o u en tre c a p ita lism o e s o c ia lis m o , d e se n c a ­
d e a n d o c o n flito s a r m a d o s p r o lo n g a d o s . Já n o s a n o s 6 0 , a u to r e s se referiam
a m u d a n ç a s estru tu rais n o siste m a c a p ita lista ; d a í, as referên cias a n eocapi-
ta lism o e tte o co lo n ia lism o . N a s r e la ç õ e s c o lô n ia -m e tr ó p o le , o s c a p ita is b u s­
ca m lu cro s n ã o m a is n o c o n tr o le d a terra d estin a d a à a g ricu ltu ra d e e x p o r ta ­
ç ã o e n em n a c o n str u ç ã o da red e d e tra n sp o rtes, m a s em a tiv id a d e s n o s s e t o ­
res e str a té g ic o s, ta is c o m o m in é r io s, c o m b u s tív e is e m o d e r n a s in d ú stria s de
tr a n sfo r m a ç ã o .
P or o u tr o la d o , c a b e a e n tid a d e s e a g ên cia s in te r n a c io n a is, s o b o c o m a n ­
d o da s u p e r p o tê n c ia c a p ita lista , d irim ir d ú v id a s e r iv a lid a d e s, a te n u a n d o ,
a ssim , c o n flito s q u e a n te r io r m e n te e c lo d ia m na p ró p ria esfera in terim p eria-
lista. T ratava-se d e d im in u ir a c o m p e tiç ã o en tre a lia d o s d o m e s m o b lo c o . A
O N U , o B a n co M u n d ia l, o F u n d o M o n e tá r io In tern a cio n a l (F M I), a lém das
o r g a n iz a ç õ e s m ilitares d e d efesa d e áreas estra tég ica s (o A tlâ n tic o N o r te e o
S u d este d a Á s ia ), era m b em m a is d o q u e a te n u a d o r e s d e c o n flito p ara se
to r n a r e m a r tic u la d o r e s e e x e c u to r e s d e o b je t iv o s c e n tr a is d a p o lític a d o
c a p ita lism o .

A to m a d a d e c o n s c iê n c ia d o s p o v o s c o lo n iz a d o s

A S egu n d a G uerra M u n d ia l d e se m p e n h o u u m p a p el fu n d a m en ta l n o m o v i­
m e n to d e rev o lta d a s c o lô n ia s co n tra as m e tr ó p o le s. A F ran ça, a B élg ica , a
H o la n d a , a Inglaterra e sta v a m en v o lv id a s num c o n flito d e vid a e d e m o rte q ue
c o m p r o m e tia a su a p ró p ria so b r e v iv ê n c ia c o m o p a íse s e c o m o n a ç õ e s . N o
c a so d o s três p rim eiro s, so b o c u p a ç ã o m ilitar a lem ã , d esd e 1 9 4 0 , c o u b e aos
m o v im e n to s d e resistên cia a n tifa scista , lid erad os o u in sp ira d o s p ela estratégia
britân ica d e luta d esesp erad a co n tra a A lem a n h a e, a p artir d e 1 9 4 2 , p elas or­
g a n iz a ç õ e s c o m u n ista s n o s p a íses o c u p a d o s, buscar o a p o io d a s c o lô n ia s.
N o c a s o d o N o r te da Á fr ic a , s o b r e tu d o a p ó s a c a m p a n h a d a s tr o p a s
b lin d a d a s d o g en eral a le m ã o E rw in R o m m e l (1 8 9 1 - 1 9 9 4 ) — o A frik a K o rp s
( 1 9 4 1 - 1 9 4 3 ) — n o Saara, te n d o c o m o a lv o o E g ito e o C a n a l d e S u ez, p ô d e

44
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

a Inglaterra revidar o a raq u e, c o m a b rilh a n te p a r tic ip a ç ã o d a s tr o p a s fran ­


cesas resisten tes a o g o v e r n o c o la b o r a c io n is ta d e V ich y e o a p e lo à s p o p u la ­
ções locais. A v itó r ia d a s tr o p a s fra n cesa s em B ir-H ak eim (L íb ia , ju n h o d e
1 9 4 2 ), p o r e x e m p lo , a p ó s 16 d ia s d e ce r c o p o r p arte d o g e n e r a l R o m m e l, fo i
decisiva para a rec u p e r a ç ã o d o p restíg io fran cês n a reg iã o .
P or o u tr o la d o , as d ific u ld a d e s m ilitares p or q u e e sta v a m p a ss a n d o a s até
e n tã o p o d e r o sa s m e tr ó p o le s fo ra m m u ito im p o r ta n te s p a ra e n fr a q u e c e r a
im agem d a s p o tê n c ia s c o lo n iz a d o r a s ju n to a se u s c o lo n iz a d o s . C o m e ç a v a a
ficar seriam en te a b a la d o o m ito da su p e r io r id a d e d o h o m e m bra n co . A e n ­
trada d o J a p ã o na guerra (d e z e m b r o d e 1 9 4 1 ) em d ec o r r ê n c ia d o a ta q u e a
Pearl H a rb o r, b a se d o s E sta d o s U n id o s n o P a c ífic o , iria c o m p r o v a r , m a is
um a v ez, q u e o s o u tro s p o v o s da T erra, q u e n ã o esta v a m in c lu íd o s , se g u n d o
a id e o lo g ia d o m in a n te d o c o lo n iz a d o r e u r o p e u , e n tre o s d o m in a d o r e s e le i­
to s , seriam c a p a z e s d e en fren tar o s in ven cíveis da vésp era . A s v itó r ia s ja p o ­
nesas n o c o n tin e n te a siá tic o e n o P a c ífic o , so b re h o la n d e s e s , in g le se s, fr a n c e ­
ses e a m e r ic a n o s, fo ra m c o n tu n d e n te s. A ssim , a e x te n s ã o d o c o n flito e u r o ­
peu a o N o r te d a Á frica , a o c o n tin e n te a siá tic o e a o P a c ífic o p assará a e n v o l­
ver, d ir e ta o u in d ir e ta m e n te , o u tr o s p o v o s e o u tr a s r e g iõ e s ju lg a d a s , a té
e n tã o , in a tin g ív eis. A guerra se torn ara m u n d ia l; n o seu b o jo , em e r g ia m e se
m u ltip licavam as a sp ir a ç õ e s d e in d e p e n d ê n c ia d o s p o v o s d o m in a d o s .
A s d ific u ld a d e s terríveis p o r q u e p a ssa v a m o s p a íse s im p e r ia is p a recia m
d em on strar q u e o h o m e m b ra n co era v u ln erá v el. A ssim , a d e sa g r e g a ç ã o d o s
im p érios c o lo n ia is c o n str u íd o s d e lo n g a d a ta in sere-se n e ss e c o n te x t o in ter­
n a cio n a l, e se p r o lo n g a r á n o s a n o s d o p ó s-g u erra . A to m a d a d e c o n sc iê n c ia
d o s p o v o s c o lo n iz a d o s se dá n o m o m e n to em q u e e le s s ã o c h a m a d o s a p a r ti­
cipar na gu erra em d e fe sa d e su a s resp ectiv a s m e tr ó p o le s, o b te n d o , c o m o re­
co m p en sa , g a ra n tia s d e a u to n o m ia o u d e in d e p e n d ê n c ia , n em sem p re re sp e i­
tad as (C a r d o so , 1 9 7 3 ).
A m an eira p e la q u al se d e se n v o lv e u e ssa c o la b o r a ç ã o d e p e n d e u d e v á rio s
fatores q u e têm a ver c o m as ca ra cterística s d o p r o c e ss o d e c o lo n iz a ç ã o d e
cad a r e g iã o o u c o lô n ia e q u e fo ra m d e c is iv o s n o to c a n te à s fo r m a s d e a tu a ­
d o d o im p eria lism o em situ a ç õ e s e m o m e n to s e sp e c ífic o s (fa to r e s h is tó r ic o s ,
e c o n ô m ic o s, g e o g r á fic o s, e str a té g ic o -m ilita r e s). A ssim , p o r e x e m p lo , reg iõ e s
diferen tes c o m o a Á frica N e g r a , o N o r te da Á fr ic a (o M a g r e b e ), o O rien te
Próximo, o S u d este A siá tic o , o E x tr e m o O rien te n ã o p o d e r ã o ser c o m p r e e n ­
d id as em b lo c o ; a fo rm a d e a tu a ç ã o d a s p o tê n c ia s c o lo n iz a d o r a s te v e certa
^ P e c ific id a d e em c a d a c a s o , a ssim c o m o o p r o c e ss o d e d e s c o lo n iz a ç ã o d ev e

45
O SÉCULO XX

ser e n c a r a d o , e su a e v o lu ç ã o p osterior, re sp e ita n d o -se ta is d iferen ça s h istó r i­


c a s, c o m o tr a d iç õ e s e c u ltu r a s, n ív e is d e d e se n v o lv im e n to h is tó r ic o , recu rsos
n atu rais etc. (L in h ares, 1 9 6 7 ). \
O s m o v im e n to s n a c io n a is q u e se m a n ifesta m m a is a tiv a m e n te n o s a n o s
d a G u erra Fria, c o m o na ín d ia , n a In d o c h in a , na A rg é lia , n o M a r r o c o s e na
C h in a , s ã o , n a r ea lid a d e, a n tig o s e têm u m a lo n g a h istó r ia c o m raízes c u ltu ­
rais p ro fu n d a s. T ais p o v o s têm u m a tr a d iç ã o d e resistên cia a in v a s õ e s estra n ­
g eira s e jam ais aceita ra m d e b ra ço s c ru za d o s a d o m in a ç ã o d o im p e r ia lism o
e u r o p e u . N ã o há d ú v id a , p o rém , d e q u e o n a c io n a lis m o q u e se m a n ife sta n a s
c o lô n ia s n o p ó s-g u erra tem n o v a s fe iç õ e s e se u s líd eres se a p r e se n ta m c o m o
p o r ta -v o z e s d e a sp ir a ç õ e s p o p u la r e s, em b o ra n e m sem p re d e fo rm a c o e r e n te .
P or e x e m p lo , o n a c io n a lis m o d e N e h r u (ín d ia ) a p resen ta c a ra cterística s aris­
to c r á tic a s e a u to r itá r ia s q u e o d is tin g u e m d e u m L u m u m b a ( C o n g o , e x -
b elga) o u d e N a sse r (E gito).
O u tr o s líd eres, c o m o H o C hi M in h , q u e c o m a n d o u a gu erra p ela lib erta ­
ç ã o d o V ietn ã , e x -I n d o c h in a (fra n cesa ), sim b o liz a v a m a co r r e n te d e e sq u e r ­
da m a is rad ical e c o m u n ista d o s m o v im e n to s d e d e s c o lo n iz a ç ã o . N e m to d o s
a q u e le s q u e se d istin g u ira m n a s lu ta s q u e fo ra m tra v a d a s a o lo n g o d e sse p e­
r ío d o c o n tr a a d o m in a ç ã o d a s p o tê n c ia s im p eria lista s m erecem ser c o lo c a d o s
n a g a leria d e h eró is d a p átria. O C o n g o B elga, p o r e x e m p lo , a p ó s o a ssa ssi­
n a to d e P atrice L u m u m b a , o u U g a n d a , c o m a d e stitu iç ã o d o P a rtid o N a c io ­
n a lista d e A p o io M ilto n O b o te (o C o n g r e sso d o P o v o d e te n d ê n c ia so c ia lis­
ta) p e lo g en era l Idi A m in (1 9 7 1 ) , p aíses esses cu jas lid era n ça s a in d a lu ta v a m
p e la in d e p e n d ê n c ia e p e la m e lh o r ia d a s c o n d iç õ e s d e v id a d e s e u s p o v o s ,
foram m e r g u lh a d o s n a gu erra c iv il e na b r u ta lid a d e d e p rá tica s d e o p r e ssã o
in su p o r tá v e l, ora em b e n e fíc io d o s in teresses da e x -m e tr ó p o le e se u s títeres
lo c a is (T c h o m b e , em K atan ga) e o r e c o n h e c im e n to d o Z a ir e d e M o b u tu pela
B élgica (1 9 6 6 ) , o ra n a im p la n ta ç ã o d e u m g o v e r n o d ita to r ia l cr u e l c o m o o
q u e le v o u o p o v o d e U g a n d a à m a is triste m iséria.
É in d iscu tív el q u e a to m a d a d e c o n sc iê n c ia d o s p o v o s c o lo n ia is c o n tr a a
d o m in a ç ã o p o r p arte d o h o m e m b ran co rico e p o d e r o s o , e sc u d a d o n o s seu s
e x é r c ito s e n as su as m arin h as d e gu erra, c io s o d e su a su p e rio rid a d e cu ltu ral
e te c n o ló g ic a , d e se u s b a n c o s m ilio n á r io s, d e seu s tren s e d e seu s c a m in h õ e s,
d e se n v o lv e -se m ais r a p id a m en te n esse p ós-g u erra m u n d ia l, em p arte gra ça s à
n o v a c o r r e la ç ã o d e fo rça s en tre o s p a íse s d o m u n d o ca p ita lista : d e u m la d o ,
a p ró p ria tr a n s fo r m a ç ã o o c o r r id a n o in te r io r d a s v e lh a s m e tr ó p o le s e , d e
o u tr o , a d iv isã o en tre o s v e n c e d o r e s c o n tr a o fa sc ism o .

46
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

A crise in tern a cio n a l q u e se in ten sifica já a partir d e 1 9 4 7 d e u o r ig e m a


um lo n g o p e r ío d o d e guerra fria , d e fin in d o n ã o a p en a s u m a r iv a lid a d e en tre
d o is p o d e r io s m ilitares (os E stad os U n id o s e a U n iã o S o v ié tic a ) o u d u a s re­
g iõ es da terra, o O c id e n te e o O r ie n te , o O e ste e o L este, u m c a p ita lista e o
o u tro c o m u n ista , m as so b r e tu d o , se g u n d o a p ro p a g a n d a d ifu n d id a n a é p o c a ,
ou seja, a d iferen ça entre d o is m u n d o s e d u a s c o n c e p ç õ e s d e v id a , a d e m o c r a ­
cia e a tiran ia. E ssa id e o lo g ia , a p reg o a d a a o s q u a tr o v e n to s , a ss o c ia v a c a p i­
ta lism o a lib erd ad e e so c ia lism o o u c o m u n ism o a a tr a so e o p r e ss ã o . N o v o s
co n c e ito s su rgem , c o m o o d e T erceiro M u n d o , para sim b o liz a r a p arte d a h u ­
m an id ad e q u e se situ a ria n u m a e sp é c ie d e lim b o d a H is tó r ia , n em n o Pri­
m eiro M u n d o (o d o c a p ita lism o e da d e m o c r a c ia , d a riq u eza e da a b u n d â n ­
cia) nem n o S e g u n d o M u n d o (o d o c o m u n ism o e da a u sê n c ia d e lib erd a d e).
A o s d o is p rim eiros m u n d o s o u to r g a v a -se , ain d a n o s p a râ m etro s d a p r o ­
p agan d a in tern a cio n a l, o p r iv ilég io d e serem d e se n v o lv id o s, já q u e d e te n to ­
res d o c o n t r o le t e c n o l ó g ic o ( s o b r e tu d o a t ô m ic o ) , c a b e n d o a o T e r c e ir o
M u n d o , so b e ste títu lo , u m n o v o a d je tiv o , o d e su b d e se n v o lv id o , O su b d e ­
se n v o lv im e n to n a sc ia , a ss im , já c a r r e g a d o d a id e o lo g ia d o c a p ita lis m o a o
qu al cab eria a tarefa d e ela b o r a r p o lític a s d e aju d a e d e a ss istê n c ia a e ssa
outra parte d o p la n e ta , o m u n d o à p a rte , isto é , a A m érica L a tin a , a Á frica ,
o Sudeste da Á sia e o s a r q u ip é la g o s d o P acífico. A lu ta p ela d e s c o lo n iz a ç ã o
n ã o trad u z so m e n te o d e se jo d e lib erta çã o an te o s im p ério s d o m in a d o r e s. Ela
é tam b ém , na m a io ria d o s c a so s , p arte da c o n str u ç ã o d e u m a n o v a H istó r ia
da h u m a n id a d e em m e io a u m p o d er in te r n a c io n a l em fa se d e r e d e fin iç ã o
(c a p ita lis m o ve rsu s s o c ia lis m o ) e a o s m ilh õ e s d e c o n d e n a d o s d a T erra
(F anon, 1 9 6 1 ). /

2. APOGEU E CRISE DOS IMPÉRIOS

A e x p a n sã o da E uropa O c id e n ta l — m ed iterrân ea e a tlâ n tic a — , a partir d o


fim d o sé c u lo X V , foi o fa to m arcan te q u e a c o m p a n h o u a d e sin te g r a ç ã o d o
m u n d o feu d al e o n a sc im e n to d o c a p ita lism o . D a ta d a í a fo r m a ç ã o d o s pri­
m eiros im p érios m erca n tilista s q u e resu ltaram d a c o n q u is ta e o c u p a ç ã o d as
Américas, c a ra cteriza n d o o d o m ín io so b re o c e a n o s e m ares d o g lo b o terres-
j*e, o in ício da e x p r o p r ia ç ã o da Á frica negra para a c o m e r c ia liz a ç ã o d e seu s
h ab itan tes c o m o e sc r a v o s, a c o n q u ista d o su b c o n tin e n te in d ia n o , as p rim ei­

47
O SÉCULO XX

ras in v e stid a s d o s c o m e r c ia n te s e m issio n á r io s da cr ista n d a d e so b r e a C h in a


e se u im p é r io , so b r e o J a p ã o e o o c e a n o P a c ífic o c o m su a s ilh as e a r q u ip é la ­
g o s , a lém d a N o v a Z e lâ n d ia e d o c o n tin e n te a u str a lia n o .
O s é c u lo XEX a c o m p a n h o u a r e fo r m u la ç ã o d e sse s im p é r io s em várias re­
g iõ e s , en tre ela s, a s A m érica s (o s im p é r io s e sp a n h o l e p o r tu g u ê s), a Á fr ic a , a o
lo n g o d e se u s o c e a n o s e m a res, atra v és d e su a s sa v a n a s e flo r e sta s, c o r ta n d o
seu s rio s e d eserto s; a Á sia d o O r ie n te P r ó x im o a o Ín d ic o , a o S u d este A siá ti­
c o e a o P a c ífic o . D e le s r e su lto u u m a n o v a o r g a n iz a ç ã o im p e r ia l, a p artir de
u m a certa c o n c e p ç ã o eu r o c ê n tr ic a d o m u n d o .
O d e se n v o lv im e n to d o c a p ita lism o c o m b ase n a id e o lo g ia lib eral d o livre
c a m b ism o e na s u p o s iç ã o d e q u e a su p erio rid a d e d o h o m em b ran co era in ­
d isc u tív e l c o n stitu iu o fu n d a m e n to m o ra l da n o v a p a rtilh a d o m u n d o — a
p rim eira fora sa c r a m e n ta d a n o T r a ta d o d e T o r d e silh a s, e n tre P o rtu g a l e a
E sp a n h a , n o fim d o s é c u lo X V d a s g r a n d e s n a v e g a ç õ e s o c e â n ic a s . N e s s e s
d o is m o m e n to s da H istó r ia M u n d ia l, fo i n o s g a b in e te s d e m in istr o s e h o ­
m e n s d e n e g ó c io e u r o p e u s q u e se fe z a d iv isã o d e te r r itó r io s, c o m su a s r iq u e ­
z a s e se u s h a b ita n te s , e n tr e o s E s ta d o s d o m u n d o c a p it a lis ta , c o m o fo ra
a n te s, em n o m e d e C r isto e d a s d in a stia s c a tó lic a s, ta m b é m em b u sca d e ri­
q u e z a s . A s s im f o i, s o b r e t u d o , a p a r tilh a d a Á fr ic a , e n tr e 1 8 8 0 e 1 9 1 4
(W e sse lin g , 1 9 9 8 ) , em n o m e d o p o d e r c iv iliz a tó r io . A h is tó r ia d a Á fr ic a ,
c o m o ta m b é m a d e o u tr o s p o v o s q u e p assaram a viver na ó rb ita d o im p e r i­
a lism o , c o m e ç a v a a ser c o n c e b id a e d ifu n d id a p ara a a u to ju stific a ç ã o d o p r o ­
jeto d e d o m in a ç ã o eu r o p é ia .

O a p o g e u d a d o m in a ç ã o

N o m e a d o d o sé c u lo X I X , q u a se n a d a restava d o s v e lh o s im p ério s m erca n ti-


lista s. E stes d esa p a recera m na o n d a d e se n c a d e a d a p e la R e v o lu ç ã o F ran cesa
d e 1 7 8 9 - 1 7 9 5 , r e d u n d a n d o n o s m o v im e n to s d e in d e p e n d ê n c ia d a s c o lô n ia s
da A m érica q u e h a v ia m s id o fu n d a d a s p e lo s in g leses (a o n o r te ), p e lo s e s p a ­
n h ó is (d o M é x ic o a o C h ile ) e p e lo s p o r tu g u e s e s (B ra sil). S o m e n te a G rã-
B reta n h a p e r m a n e c ia c o m o g r a n d e p o tê n c ia m a r ítim a e im p e r ia l, e m b o r a
p ro cu ra sse evitar, a té 1 8 7 4 , n o v a s a n e x a ç õ e s, sa lv o a q u e la s situ a d a s na rota
da ín d ia p e lo C a b o , e n tã o c o n h e c id a s c o m o as e sca la s d a ín d ia . O c r e sc im e n ­
to d o d e se m p r e g o p r o v o c a d o p ela r e v o lu ç ã o in d u stria l em c u r so , e n tã o na
fa se d e d e s e n v o lv im e n to te c n o ló g ic o p o u p a d o r d e m ã o -d e -o b r a , a lia d o a o

48
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

crescimento d e m o g r á fic o e às crises a g ríco la s irla n d esa s, p erm itirá a em ig r a ­


ç ã o em m a ssa para o a p o ss a m e n to d e regiões p io n eira s n a s n o v a s c o lô n ia s d e
p o v o a m e n to (C a n a d á , C a b o , A u strá lia , N o v a Z e lâ n d ia ). N a s A n tilh a s e na
Guiana, é m a n tid o o sistem a tr a d ic io n a l d e c o lô n ia s , o u seja , a p erm a n ên cia
da m in o ria b ran ca, d e o rig em e u r o p é ia , d e te n d o o c o n tr o le d a agricu ltu ra
comercial c o m tra b a lh o esc r a v o d e o rig em african a.
A partir d e 1 8 7 4 , em d eco rrên cia da prim eira crise q u e a b a lo u o sistem a
ca p ita lista ca racterizad a c o m o se n d o d e su p e r p r o d u ç ã o , a In glaterra reto m a
o in teresse p e lo sistem a im p eria lista e su a e x p a n sã o . L íder in c o n te sta d a da
re v o lu ç ã o in d u str ia l, se n h o r a d o s m ares e, c o n s e q ü e n te m e n te , a ferra d a às
c o n c e p ç õ e s d e livre c o m é r c io e livre n a v e g a ç ã o , ela segu irá se u c u r so na d e ­
fesa d o lib e r a lism o e c o n ô m ic o . D e fa to , so m e n te n o fim d o sé c u lo , a c o n c o r ­
rência d e p r o d u to s in d u striais e p ráticas c o m e r c ia is p r o v e n ie n te s d o e n tã o re­
cen tem en te p r o c la m a d o Im p ério A le m ã o (1 8 7 0 ) c o m e ç a m a a m e a ç a r a h e g e ­
m on ia britân ica.
Por o u tr o la d o , ta m b ém a França rep u b lican a, a p ó s a d erro ta d o im p ério
de N a p o le ã o I ü , a n te o e x é r c ito p ru ssia n o e a d ip lo m a c ia d e B ism a rck (1 8 7 0 -
1 8 7 1 ), recu p era-se ra p id a m en te na e c o n o m ia e na p o lític a e jo g a -se , c o m a p e ­
tite e c o m p e tê n c ia , n a corrid a c o lo n ia l, q u e fora in icia d a c o m a o c u p a ç ã o da
A rgélia, n a d éca d a d e 1 8 3 0 . A reto m a d a d o p ro jeto im p eria l fra n cês, c o n c e ­
bid o p e lo s p o lític o s r e p u b lic a n o s ra d ic a is, a p ó s o C o n g r e s s o d e B erlim de
1 8 7 8 , e c o m a n d a d a p or Jules Ferry e L éon G a m b e tta , “ la n ç o u a T erceira R e ­
pública na rota im p e r ia l” , c o m a in terv en çã o na T u n ísia (W esselin g , 1 9 8 8 ,
pp. 2 6 -3 9 ) , q u e deu o sin al de p artid a para o a v a n ç o so b r e o N o r te d a Á frica
— o M a g reb e, r e g iã o esta m u ç u lm a n a , d e p r o fu n d a in flu ên cia d a cu ltu ra ára­
be, desd e o fim d o sé c u lo VII. A in d a , se g u n d o esse p ro jeto e x p a n s io n is ta , a
França, so b a in flu ên cia d e um p o d e r o so g ru p o co lo n ia l in sta la d o n a s fin a n ­
ças, n o P arlam en to e na im p ren sa , projeta a su a p a r tic ip a ç ã o na p artilh a d o
m u n d o n ã o -e u r o p e u , ain d a fora da órb ita d e d o m in a ç ã o d o h o m e m b ran co.
1 A França se a p resen ta v a , e n tã o , c o m o um a e sp é c ie d e h erdeira d a p o líti­
ca d o s reis feu d a is q u e p ro m o v e r a m as C ru zad as em defesa d o s lu g a res sa n -
to s da P a lestin a . C o n se q ü e n te m e n te , p a ssa a se o p o r , c o m o u m p r o lo n g a ­
m en to n o s te m p o s m o d e r n o s , à p resen ça d o s tu r c o s o to m a n o s n o O rien te
P róxim o. S ed ia d o s em B iz â n c io , C o n sta n tin o p la , d e sd e o fim d o s é c u lo X V ,
° s tu rcos alargaram o seu d o m ín io so b re a P en ín su la d o s B álcãs e , n o fim d o
sécu lo X V II, ch eg a ra m c o m se u s e x é r c ito s às p o r ta s d e V ien a . A in d a s o b o
•m pacto d a s prim eiras v itó r ia s, co n stru íra m u m im p é r io , a v a n ç a n d o so b r e as

49
O SÉCULO XX

terras á ra b es, p e n e tr a n d o n o N o r te da Á frica , a partir d o E g ito , em d ir e ç ã o


a o p o e n te , o M a g r e b e , o u seja, o M e d ite r r â n e o a frica n o . J
A o lo n g o d e to d o o s é c u lo X IX , fo i o Im p ério O t o m a n o a lv o d a s m a q u i­
n a ç õ e s d a s p o tê n c ia s e u r o p é ia s. Era c o m u m a o p in iã o d e q u e o s tu r c o s e sta ­
riam a c a m p a d o s nas terras q u e co n q u ista va m , sig n ific a n d o c o m is so a falta
d e c o e s ã o p o lític a d o Im p ério O to m a n o e , até c e r to p o n to , a p rática d e a s s o ­
cia r a u to r id a d e s lo c a is à s ta refa s e x e c u tiv a s e d e a d m in istr a ç ã o . E ra, ta m ­
b é m , u m a fo rm a d e ch a m a r a a te n ç ã o para o a tra so , a d ecadên cia e a in ferio­
ridade cu ltu ral d o reg im e o to m a n o . Em c o n tr a p a r tid a , a E u rop a levaria c o n ­
s ig o a m issã o civiliza d o ra d o h o m e m bran co, c o m o u m a ca rga a p esar so b re
o s seu s o m b r o s , a ssim p regava o escrito r in g lê s, e x p r e ss ã o d o im p e r ia lism o ,
R u d yard K ip lin g (1 8 6 5 - 1 9 3 6 ) .
A arm a d e se n v o lv id a e u sa d a para p ro m o v er a ruptura e o d e sm e m b r a ­
m e n to d e sse im p é r io fo i o n a c io n a lis m o . D o A d r iá tic o a o M a r N e g r o , d o
D a n ú b io às m argen s d o M e d ite r r â n e o , o s p o v o s s o b o d o m ín io o to m a n o se
lev a n ta ra m p or su a in d e p e n d ê n c ia . N o e n ta n to , árab es e b erb eres, d o E gito
a o M a r r o c o s , p e r d e r a m o s e lo s ju r íd ic o s q u e o s lig a v a m a o Im p é r io
O to m a n o para en trarem na ó r b ita d e d o m in a ç ã o d a E u ro p a , se g u n d o um a
partilh a d ecid id a p e la s p o tê n c ia s e p e lo s in teresses d e c a d a u m a d ela s.
A fin a l d e c o n ta s , q u e in teresses eram esses? A p o lític a e x e c u ta d a e se g u i­
d a c o n sistia em d efin ir o q u e e n tã o era c h a m a d o d e E q u ilíb rio d o Poder, ou
seja: evitar q u e u m a p o tê n c ia , atra v és d e a lia n ça s m ilita res o u d a e x te n s ã o
te r r ito r ia l, v ie s se a e x e r c e r o p r e d o m ín io so b r e o c o n tin e n te e u r o p e u e a
am ea ça r a p a z en tre o s p o d e r o so s o u a p róp ria h e g e m o n ia b ritân ica so b re o s
m ares d o p la n eta . O d e se n v o lv im e n to d o c a p ita lism o , a cele ra d o a partir da
seg u n d a m eta d e d o sé c u lo X IX , p assara a d ep en d er n ã o so m e n te d a e x p a n ­
s ã o d o s m e r c a d o s, m as ta m b é m d o a c e sso às m atéria s-p rim a s c a d a vez m ais
n u m ero sa s e d iv ersa s, d a p r o d u ç ã o d e a lim e n to s, d a c o n str u ç ã o e d o c o n tr o ­
le d o s m e io s d e tra n sp o rte e d e c o m u n ic a ç ã o . H a v ia a cren ça d e q u e o p od er
seria p o s to n u m a b a la n ç a , q u e trataria d e fazer u m a d istr ib u iç ã o ra zo a v el­
m en te eq ü ita tiv a en tre a q u eles q u e o m o n o p o liz a v a m , p arte de u m a m issã o
civ iliz a tó r ia d e q u e a E u rop a fo ra in cu m b id a p or a lg u m d e síg n io d a H istó ria .
N ã o era, p o is, p or a c a so q u e se lo u v a v a em p rosa e v erso a su p eriorid ad e
d o c o n tin e n te e u r o p e u . A p a r tilh a d a Á fr ic a , o r e c o n h e c im e n to d e áreas
d e in flu ê n c ia , c o m o reserva d e d o m ín io d a s p o tê n c ia s im p eria lista s, a d e n o ­
m in a ç ã o d e p r o te to r a d o s para territó rio s q u e m a n tin h a m g o v e r n o s n o m in a l­
m en te lo c a is, áreas d e influência c o m o e x p r e ss ã o d e u m a p o lític a d e p resti­

50
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

gio e fo rça n ã o -o s te n siv a , eram a lg u m a s d a s d e n o m in a ç õ e s q u e d esig n a v a m


a red istrib u içã o d e terras e p o v o s para garan tir o p o d er m u n d ia l n a s m ã o s d e
alguns: a In glaterra, a F ran ça, a A le m a n h a , a Itá lia , a H o la n d a , a B élgica,
Portugal e a E sp a n h a , e ste s d o is ú ltim o s c o m o se n h o r e s so b r e v iv e n te s d o s v e ­
lh o s im p ério s m erca n tilista s.
C o u b e , p r in c ip a lm e n te , a J. A . H o b s o n , R u d o lf H ilf e r d in g , K arl
K au tsk y, R o s a L u x e m b u r g o e L e n in , e c o n o m is ta s , p o lí t i c o s , a tiv is ta s d a
Internacional C o m u n is ta e a n tiim p e r ia lista s, fu n d a m e n ta d o s na a n á lise d o
ca p ita lism o m o n o p o lis ta e d o n o v o p ap el d o E sta d o m ilita r ista , ver n o im p e ­
rialism o u m a eta p a n a h istó r ia da h u m a n id a d e . A firm a v a H o b s o n , e c o n o ­
m ista liberal inglês: “ [...] a a n á lise d o im p e r ia lism o , c o m se u s n a tu ra is su p o r ­
tes, m ilita rism o , o lig a r q u ia , b u ro cra cia , p r o te c io n ism o , c o n c e n tr a ç ã o d e c a ­
pital e v io le n ta s flu tu a ç õ e s d o c o m é r c io , fa z c o m q u e e le se a p r e se n te c o m o
o p erigo su p r e m o d o s m o d e r n o s E sta d o s n a c io n a is ” . Para L en in , q u e esc r e ­
veu o seu fa m o so livro im p e ria lism o , ú ltim a e ta p a d o ca p ita lism o (1 9 1 6 ) , em
m eio à P rim eira G uerra M u n d ia l, cab eria a o n a c io n a lis m o , r e su lta n te da d o ­
m in ação estra n g eira , d ar o p rim eiro p a ss o para d e se n c a d e a r a cr ise fin al d o
ca p ita lism o .
A c o n tu n d ê n c ia d a s id é ia s d e L e n in , a lia d a à v it ó r ia d o P a r tid o
B olch ev iq u e n a R e v o lu ç ã o R u ssa d e 1 9 1 7 , e x e r c e u u m a g r a n d e in flu ê n c ia
sobre o s m o v im e n to s n a c io n a lis ta s n o in terior d a s c o lô n ia s , se m q u e , n o e n ­
ta n to , viesse a se cu m prir, p e lo m e n o s a té o m o m e n to , a p r e v isã o d e L enin
q u an to a o fim d o c a p ita lism o .

O c o m e ç o d o fim d o s im p é r io s

A o se encerrar o sé c u lo X IX , a p ó s d u a s d éca d a s d e acirrad as riv a lid a d e s, n e ­


g o c ia ç õ e s e a c o r d o s e n tr e a s p o tê n c ia s em litíg io , a lg u m a s d a s p r in c ip a is
q u estões relativas às áreas em d isp u ta p areciam ter s id o r e so lv id a s, c o m o v e­
tem o s a seguir.
A Inglaterra c o n tin u a v a se n d o a g ra n d e p o tê n c ia m a rítim a e im p eria l.
111 a a sc e n sã o d o s c o n se r v a d o r e s, d e p o is da crise d e 1 8 7 4 , te v e in íc io u m a
^ ® P a n h a p o r um a Inglaterra M a io r (G rea ter B ritam ), o m in istr o D isra eli
c o r o o u a rainha V itória im p era triz da ín d ia , e in te le c tu a is c o m o K ip lin g e
d a d f r a ‘n Preg a v a m a m issã o civ iliza d o ra d o h o m e m b r a n c o . Em n o m e
e esa da ín d ia , a n e x a n o S u d este A siá tic o a B irm ân ia (h o je M ia n m a r ) e

51
O SÉCULO XX

a M a lá sia . N a Á frica O r ie n ta l, a p o d e r a -se d o Q u ê n ia , d e U g a n d a , c o m o o b ­


je tiv o p r o p a la d o d e d efen d er as n a sc e n te s d o rio N ilo e g a ra n tir a p r o te ç ã o
d o C a n a l d e S u e z , em n o m e d a lib e r d a d e d e n a v e g a ç ã o ; o c u p a o E g ito , o
S u d ã o , o C h ip re e a S o m á lia ; na Á frica d o S u l, a n e x a o in terio r da C o lô n ia
d o C a b o , a tra v és d e C ecil R h o d e s, su r g in d o as R o d é sia s (d o N o r te e d o Sul);
e m 1 9 0 2 , a p ó s a gu erra co n tra o s b ô eres, a n tig o s c o lo n o s h o la n d e s e s, c o n ­
q u ista o T ra n sv a a l e O ra n g e. Em 1 9 1 0 , o u to r g a o e sta tu to d e D o m ín io a o
C a n a d á , à A u strá lia , à n o v a Z e lâ n d ia e à Á frica d o Sul.
À s v é sp e r a s da gu erra d e 1 9 1 4 - 1 8 , o Im p ério B r itâ n ic o e n g lo b a v a um
q u a r to d a p o p u la ç ã o d a Terra e d o m in a v a a p r o d u ç ã o m u n d ia l d e a rro z,
c a c a u , c h á , lã , b o rra ch a , e sta n h o , m a n g a n ê s, o u r o , n íq u e l, ju ta , açú car, ca r­
v ã o , c o b r e e , a in d a , o p e tr ó le o d o O rien te M é d io . C o n tr o la v a 1 5 % da p r o ­
d u ç ã o m u n d ia l d e tr ig o , ca rn e, m a n te ig a , a lg o d ã o , ferro e a ç o . A lé m d o m a is,
8 5 % d o s se u s 5 0 0 m ilh õ e s d e h a b ita n te s eram c o n s titu íd o s d e negros, in d ia ­
nos e am arelos.
A F r a n ç a p o s s u ía u m im p é r io c o lo n i a l m e n o s e s p e t a c u la r d o q u e a
In glaterra. F izera-se m a is ra p id a m e n te . E n q u a n to o s in g le se s g u a rd a ra m a
ín d ia d e su a s c o n q u is ta s a n te r io r e s, p o u c o restou a o s fra n ceses, a p ó s 1 8 1 5 :
M a r tin ic a , G u a d e lu p e , G u ia n a , a Ilha da R e u n iã o , c in c o fe ito ria s na ín d ia .
N a d é c a d a d e 1 8 3 0 , a F rança c o n q u is to u a A rg élia , c o m d ific u ld a d e , e a n e ­
x o u L ib r e v ille , n o G a b ã o , c o s ta o c id e n ta l a fr ic a n a . C o m as a n e x a ç õ e s da
p artilh a im p eria lista , d o fim d o sé c u lo , da p o lític a in terim p er ia lista q u e p re­
ce d e a guerra d e 1 9 1 4 -1 8 e, a in d a , a p ó s o s T ra ta d o s d e V ersalh es q u e se la ­
ram a d e r r o ta d o Im p ério A le m ã o e a p erd a d a s c o lô n ia s a le m ã s, p o d ia a
R ep ú b lica F ran cesa osten tar, em 1 9 3 9 , às vésp eras d e o u tr o c o n flito q u e viria
a ser m u n d ia l, um im p ério q u e forn ecia 2 5 % d o c o m é r c io e x p o r ta d o r fran ­
c ê s, o c u p a n d o 13 m ilh õ e s d e q u ilô m e tr o s q u a d r a d o s e c o m 1 1 0 m ilh õ e s de
h a b ita n tes. A s su a s p rin cip a is á reas d e d o m in a ç ã o eram a s segu in tes:
— N a Á fr ic a d o N o r t e , a A r g é lia , 8 m ilh õ e s d e h a b ita n te s , d o s q u a is
cerca d e 1 m ilh ã o d e fra n ceses resid en tes e c o lo n o s ; a T u n ísia e o M a r r o c o s,
c o m o p r o te to r a d o s;
— O S aara, e ste n d e n d o -se para o su l até as p r o x im id a d e s d o C o n g o ; essa
Á frica n egra d iv id ia -se , a d m in istr a tiv a m e n te , em d u a s fed erações: a Á frica
O c id e n ta l F ra n cesa e a Á frica E q u a to r ia l F ra n cesa (p r in c ip a is c o lô n ia s : o
S en eg a l, a C o sta d o M a rfim , o S u d ã o O c id e n ta l); T o g o e C a m a r õ e s, e x - c o lô ­
n ias a le m ã s, m a n d a to s da S o c ie d a d e d as N a ç õ e s;
— N a s A n tilh a s , sem a lte r a ç õ e s ; n o o c e a n o Í n d ic o , M a d a g á s c a r ; n o

52
I
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

Pacífico, a In d och in a (A n am , L a o s, C a m b o ja , C o c h in c h in a e T o n q u im ); na
Oceania, N o v a C a le d ô n ia , além d e p eq u en a s ilh as esp arsas (T aiti, p or e x e m ­
plo); n o O rien te P r ó x im o , o s m a n d a to s da L iga d as N a ç õ e s , resu lta n tes da
partilha d o Im p ério O to m a n o , a Síria e o L íb a n o .
A H o la n d a , em 1 9 3 9 , co n serv a v a a heran ça d o v e lh o im p ério m erca n ti­
lista; as ín d ia s N e e r la n d e sa s (A rq u ip éla g o d e S o n d a ), J a v a , fa m o s o p or seu s
vulcões, C eleb es e S u m atra, a lém d e B ornéu e N o v a G u in é , c o n c e n tr a v a m
tod a a en ergia c o lo n iz a d o r a da m e tr ó p o le h o la n d e sa . C o m 2 m ilh õ e s d e q u i­
lôm etros q u a d ra d o s e 7 0 m ilh õ es de h a b ita n tes, tin h a u m a g r a n d e im p o r tâ n ­
cia para a m e tr ó p o le c o lo n iz a d o r a , u m a H o la n d a d e a p e n a s 3 5 m il q u ilô m e ­
tros q u a d ra d o s e u m a p o p u la ç ã o d e 8 m ilh õ e s, q u e se o r g u lh a v a de su a o bra
colonial. G e n e r a liz a r a -se , e n tã o , a id éia d e q u e se tra ta v a d e um m o d e lo
exem p lar d e e m p r e e n d im e n to , p rosp erid ad e e o r g a n iz a ç ã o . J a v a , p or e x e m ­
p lo , era a p o n ta d a c o m o a prim eira u sin a d o g lo b o em a lim e n to s (H u b ert
D esch am p s, 1 9 5 2 ), graças a o b a ix o c u sto da p r o d u ç ã o em virtu d e d o s b a i­
x o s sa lá rio s, resu lta n te de a b u n d â n cia da m ã o -d e -o b r a e da a u sê n c ia d e m e­
lhores p ersp ectiv a s d e vid a para a p o p u la ç ã o lo c a l.
A guerra co n tra a p o tên cia c o lo n iz a d o r a iria revelar a n a tu reza d o fa lso
p araíso c o lo n ia l n e e r la n d ê s. E ste é u m d o s e x e m p lo s em q u e a o c u p a ç ã o
pelas trop as ja p o n esa s d e m o n str o u q u e o c o lo n iz a d o r b ra n co n ã o era in to c á ­
vel e, m u ito m e n o s , in v e n c ív e l. A gu erra c o n tr a o s o c u p a n te s e ste n d e u -se
con tra a p o tê n c ia c o lo n iz a d o r a , r e su lta n d o n o s u r g im e n to d e u m p a ís , a
Ind on ésia, em d ezem b ro d e 1 9 4 9 . N o in ício d e 1 9 4 2 , as tr o p a s h o la n d e sa s
capitularam p eran te a in v a sã o ja p o n e sa , p r o v o c a n d o a o r g a n iz a ç ã o d e um
m o v im e n to n a c io n a lis t a (P o d e r p a ra o s F ilh o s d o P o v o ) lid e r a d o p o r
Sukarno e H a tta . A p ó s a ren d içã o d o J ap ão (a g o s to d e 1 9 4 5 ), tem in íc io a
guerra d e lib e r ta ç ã o n a c io n a l c o n tr a as fo r ç a s n e e r la n d e sa s. O r e c o n h e c i­
m en to da so b era n ia d o n o v o E stad o Federal da In d o n ésia se d ará c in c o a n o s
m ais tarde, a p ó s lo n g a s e p e n o sa s n e g o c ia ç õ e s (1 5 d e a g o s to d e 1 9 5 0 ).
A B élgica, país p e q u e n o e sem tra d içõ es c o lo n ia lista s , e n tr o u na co rrid a
•m perialista c o m o parte da in iciativa p esso a l d e seu rei L e o p o ld o II (1 8 3 5 -
1 9 0 9 ), q u e a lia v a su a fa m a d in á s tic a (S a x e -C o b u r g o ) a o s se u s in te r e sse s
a
P elos n e g ó c io s . Subiu a o tr o n o em 1 8 6 5 e , em 1 8 7 6 , c r io u e m B ru x ela s
Associação In tern acion al para a E x p lo r a ç ã o e a C iv iliz a ç ã o d a Á frica , e sti­
m u lad o p elas v iagen s e d esco b erta s d e D a v id L iv in g sto n e, J. H . S p ek e, H . M .
Stanley. Em p o u c o te m p o , a A sso c ia ç ã o p assava para a d ir e ç ã o p e sso a l d o rei
e in iciava seu s tr a b a lh o s de e x p lo r a ç ã o e c o m e r c ia liz a ç ã o d o s p r o d u to s

53
O SÉCULO XX

d a im e n sa reg iã o d o rio C o n g o . E m 1 8 8 6 , p r o c la m o u o E sta d o In d ep en d en te


d o C o n g o , d o q u a l se t o r n o u , e m c a r á te r p r iv a d o , s o b e r a n o a b s o l u t o .
D e ix o u -o em h eran ça a o p aís d o q u a l era rei, a B élgica, p a ss a n d o a intitu lar-
se C o n g o B elga.
C o m o o s h o la n d e se s n a In d o n é s ia , o s b elg a s in vestiram g ra n d es c a p ita is
n o C o n g o , n a e x p lo r a ç ã o d e m in é r io s , n a s p la n ta ç õ e s d e b o r r a c h a e n a s
o b r a s m is s io n á r ia s . C o m o n a In d o n é s ia , ta n to o p r o c e ss o d e c o lo n iz a ç ã o
q u a n to o d e d e s c o lo n iz a ç ã o n o ta b iliz a r a m -se p or se u s p r o c e d im e n to s cru éis
e p o r su a e x tr e m a v io lê n c ia . A in d e p e n d ê n c ia d o C o n g o (Z a ire) fo i p o r d e ­
m a is a trib u la d a , te n d o p a ss a d o p o r várias fa ses, d o s a n o s 5 0 , s o b a lid era n ­
ça d e P atrice L u m u m b a , à p r o c la m a ç ã o da in d e p e n d ê n c ia em 1 9 6 0 e a o a s­
sa s sin a to d e L u m u m b a em 1 9 6 1 , p or ord em d e M o is é s T sh o m b e , p r o te g id o
d o s b elg a s e a m erica n o s; en tre 1 9 6 3 e 1 9 6 4 , in te r v e n ç ã o p o r tr o p a s da O N U ,
n o v a in te r v e n ç ã o d e T sh o m b e ; e m 1 9 6 5 , g o lp e c h e fia d o p o r M o b u tu , q u e
p e rm a n eceu n o p od er, em m e io a rev ir a v o lta s, até 1 9 9 7 . A s itu a ç ã o in tern a ­
c io n a l (G u erra Fria) p r o v o c a e p r o lo n g a o e sta d o d e a n a r q u ia e p r o fu n d a
v io lê n c ia n e sse e em o u tr o s p r o c e ss o s d e lib erta çã o .
P o r tu g a l, c o m seu im p é r io , o u o q u e d e le restou e resistiu a té m e a d o s de
n o s s o s é c u lo , fa zia figura d e p r im o p o b re a o la d o d e se u s c o le g a s ric o s. D o s
te m p o s á u r e o s, c o n se r v a r a D iu e G o a , n o Ín d ico ; u m a p arte d e T im or, n o
A r q u ip é la g o d e S o n d a; M a c a u , p erto d e C a n tã o , na C h in a , c o m o u m a a n ti­
g a feitoria; A n g o la e M o ç a m b iq u e , na Á frica , n o p rim eiro p la n o , e , n o se ­
g u n d o , o A r q u ip é la g o d e C a b o V erde e G u in é. Eram resto s d e u m a H istó r ia
b rilh a n te, em c e r to s e n tid o , o s q u a is co n tr ib u ír a m para revelar o a tr a so de
u m a fo rm a d e d o m in a ç ã o d e fa sa d a e retrógrad a e d e n u n c ia r a fra g ilid a d e d o
siste m a e c o n ô m ic o e so c ia l d a m e tr ó p o le . A c o n se q ü ê n c ia fo i a R e v o lu ç ã o
d o s C r a v o s, d e ab ril d e 1 9 7 4 , q u e d erru b o u o regim e d ita to r ia l fu n d a d o p or
A n to n io d e O liv e ir a Salazar, em 1 9 3 2 .
A o ter in íc io a guerra na E u ro p a , em 1 9 3 9 , o Im p ério B ritâ n ico p arecia
tã o s ó lid o e sa u d á v e l q u a n to em 1 9 1 4 . N o e n ta n to , su a d o m in a ç ã o n a ín d ia ,
p o r e x e m p lo , se m p r e so fr e u c o n te s ta ç õ e s e p r o v o c o u r e v o lta s lo c a is . N o
E g ito , n o S u d ã o A n g lo -E g íp c io , n a Á frica d o S u l, em G a n a , o n d e se m a n tev e
ferren h a a o p o s iç ã o da n a ç ã o A c h a n ti, na N ig é r ia , d e m a g n ífic a s e in vejáveis
tr a d iç õ e s c u ltu r a is, a s tr o p a s c o lo n ia is in g le sa s so frera m m u ito s rev eses. A
fó r m u la b ritâ n ica d o s e lf g o v e rn m e n t (a u to n o m ia lo c a l) e d o in d ire c t rule
(a d m in istr a ç ã o in d ireta ) r e su lto u , em g ran d e p a rte, d e n e g o c ia ç õ e s en tre p o ­
d eres lo c a is e a u to r id a d e s c o lo n ia is ; d ev e ser c o m p r e e n d id a , ta m b é m , c o m o
u m a p o lític a d e c o o p ta ç ã o d a s b u rg u esia s e da in te le c tu a lid a d e lo c a is.

54
I
DESCOLONIZAÇÃO E LUTAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

N a m ed id a em q u e se in tern a cio n a liza o c o n flito , as tr o p a s im p eria is e n ­


tram em c e n a e a G rã-B retan h a p a ssa a n ecessita r d a c o o p e r a ç ã o d e se u s sú ­
d ito s e c o lo n o s . A partir d e d e z e m b r o d e 1 9 4 1 , c o m a en tr a d a d o s E sta d o s
Unidos n a g u erra e a in te n sific a ç ã o d o c o n flito n o P a c ífic o , to r n a -se m a is
clara a e s tr a té g ia a le m ã d e in v e s tir s o b r e a ín d i a , a tr a v é s d o O r ie n te
Próximo. D a í a gu erra n o N o r te d a Á frica em d ir e ç ã o a S u ez e a im p o r tâ n c ia
q u e ad q u ire o p e q u e n o im p ério c o lo n ia l ita lia n o (L íb ia, A b iss ín ia , E ritréia).
D a m esm a fo rm a , a e x te n s ã o d a gu erra a o P a cífico p a ssa a e n v o lv e r ter­
r itó r io s s o b ju r isd iç ã o in g le sa n a q u e la r e g iã o . A p o s iç ã o tr iu n fa l d e u m a
nova p o tê n c ia na p o lític a m u n d ia l, o s E sta d o s U n id o s , a o la d o d a a g ita ç ã o
crescen te n o in terior d o m u n d o im p e r ia liz a d o e da re a ç ã o d o s p a r tid o s d e e s ­
querda n a E u rop a c o n tr a a p o lític a d o im p e r ia lism o c o n s titu e m e le m e n to s
d ecisiv o s q u e irã o in cid ir so b r e as p o lític a s c o lo n ia is , d e u m la d o , e, d e o u tr o ,
sob re o s c a m in h o s d a d e s c o lo n iz a ç ã o . Será fu n d a m e n ta l a a tu a ç ã o d o s in te ­
lectu ais em to d a s as p artes d o m u n d o . S u as v o z e s se r ã o o u v id a s e ir ã o se unir
em p r o te sto co n tra a tiran ia e a d e sig u a ld a d e to r n a d a in s u p o r tá v e l.
C o u b e à In glaterra a in icia tiv a da d e sc o lo n iz a ç ã o , a o a n u n c ia r a tra v és
d o p rim eiro -m in istro tra b a lh ista C lem en t A ttle e , em fev ereiro d e 1 9 4 7 , q u e
daria a in d e p e n d ê n c ia da ín d ia a té ju n h o d e 1 9 4 8 , c o m o r e c o n h e c im e n to d e
um p la n o d e p artilh a en tre in d ia n o s (ín d ia ) e m u ç u lm a n o s (P a q u is tã o ), c o r ­
r esp o n d en d o , a ssim , a o q u e v in h a se n d o e x ig id o d e lo n g a d a ta p e la s e lite s lo ­
c a is d o P a r tid o d o C o n g r e s s o (G a n d h i e N e h r u ) e d a L ig a M u ç u lm a n a
(Jinnah M o h a m e d A li). Em c o n tr a p a r tid a , a In glaterra se e n g a ja v a , n a q u e le s
an os, na a p lic a ç ã o d e u m a p o lític a so c ia l d e g r a n d e e n v e r g a d u r a , s o b o c o ­
m ando d o s tr a b a lh ista s, em d e fe sa d o b em -estar so c ia l, o q u e p o s s ib ilito u a
seu p o v o c o n h e c e r u m a n o v a era d e p ro sp erid a d e.

\
3 OS CAMINHOS PARA A INDEPENDÊNCIA

O p rocesso d e in d e p e n d ê n c ia resu lto u d e um c o n ju n to d e fa to r e s e d e a ç õ e s


que en volveram o p o d e r c o lo n ia l e as c o n d iç õ e s in tern as e sp e c ífic a s d a s c o -
° n ias, em um a c o n ju n tu ra in tern a cio n a l fa v o rá v el à m u d a n ç a d o sta tu s qu o
P olítico d o s im p é r io s em c a u sa . Em 1 9 4 2 , o C o m itê F ra n cês d e L ib ertação
c ,° n a l, em o p o s iç ã o a o g o v e r n o d e V ichy, c o m o o b je tiv o d e o b ter o su -
Porte d o s m o v im e n to s a n tifa sc ista s n o p la n o in te r n a c io n a l e , so b r e tu d o , d o s

55
O SÉCULO XX

se to r e s m a is e sc la r e c id o s d as c o lô n ia s , p ro cla m a v a o seu d e se jo d e alterar as


r ela ç õ es c o lo n ia is . Em jan eiro d e 1 9 4 3 , o g en eral d e G a u lle , em n o m e d e um a
F rança L ivre, a n u n c ia v a , e m d isc u r so p r o n u n c ia d o na A rg élia , a o u to r g a da
c id a d a n ia a m ilh a res d e m u ç u lm a n o s. N o a n o se g u in te , em B ra zza v ille, em
c o n fe r ê n c ia q u e reu n ia g o v e r n a d o r e s da Á frica , m a s sem a p resen ça d e afri­
c a n o s , r e c o m e n d a v a -se a in te g r a ç ã o n a c o m u n id a d e fr a n c e s a , c o m o se s ó
e x is tis se u m a in d e p e n d ê n c ia p o ss ív e l, a da França.
Em 1 9 4 5 , já se c o n s o lid a v a a id éia d e u m a U n iã o F ran cesa, c o m p r e e n ­
d e n d o a F rança e a s d iferen tes p artes d a c o m u n id a d e . A p resen ça d e repre­
se n ta n te s d o s p o v o s s o b d o m ín io d a F rança (a frica n o s, a s iá tic o s , a r g e lin o s,
m a lg a x e s) n a A sse m b lé ia C o n stitu in te fran cesa, p r e d o m in a n te m e n te d e e s­
q u erd a (m a io ria d e so c ia lista s e c o m u n ista s ), n ã o d e ix o u d e c a u sa r m al-estar
n o s se to r e s c o n se r v a d o r e s. N a G rã-B retan h a, a p ó s a a m p la v itó r ia e leito ra l
d a e sq u e r d a tr a b a lh is ta , tr a n s p a r e c ia u m a te n d ê n c ia a lib erar, e m a lg u n s
c a s o s , o s e lo s d e d e p e n d ê n c ia d ireta , p o lític a e a d m in istr a tiv a , d o im p ério .
N o fu n d o , a p esa r d a e x is tê n c ia d e diretrizes gerais p or p arte d a s m e tr ó p o le s,
o m o v im e n to d e in d ep en d ên cia d a s c o lô n ia s to m a rá ru m o s d iferen tes e e sp e ­
c ífic o s , em q u e c a d a c a s o terá cara cterística s p róp rias.
F atores d iv e r so s in cid irã o so b r e a m arch a d a d e s c o lo n iz a ç ã o . S ã o fa to res
r e la c io n a d o s c o m a n o v a p o s iç ã o d o s E sta d o s U n id o s n o c e n á r io m u n d ia l e
su a s r ela ç õ es c o n flita n te s c o m a U n iã o S o v ié tic a . A m b a s asp ira m c h eg a r à
h e g e m o n ia m u n d ia l. A m b a s d is p õ e m d e in str u m e n to s d e p o d e r e d e d issu a ­
s ã o e p o d e m in flu ir n a s áreas o n d e o p r o c e sso d e in d e p e n d ê n c ia é m a is c o m ­
p le x o : in te r e sse s e c o n ô m ic o s e m c h o q u e , lo c a liz a ç ã o e s tr a té g ic a , p o s iç ã o
id e o ló g ic a d istin ta d a s lid era n ça s lo ca is. A o s E sta d o s U n id o s in teressa v a , em
ú ltim a in stâ n c ia , d eter o a v a n ç o d o c o m u n ism o e a e x p a n s ã o d a id e o lo g ia de
in s p ir a ç ã o m a r x is ta , in c lu s iv e a d o n a c io n a lis m o , e m q u a lq u e r p a r te d o
m u n d o . A U n iã o S o v ié tic a d e se n v o lv ia su a s a ç õ e s em to d a s as fren tes, era
p restig ia d a n o s m e io s in te le c tu a is e p o lític o s d e esq u erd a e p o ss u ía sim p a ti­
z a n te s n o s m o v im e n to s n a c io n a lista s a n tic o lo n ia lista s.
O m u n d o d o pós-gu erra era polarizad o: o b lo c o o c id e n ta l, escu d a n d o -se
n o P lan o M a rsh a ll, d e caráter e c o n ô m ic o e fin an ceiro, e na O r g a n iza çã o d o
T ratad o d o A tlâ n tico N o r te (O T A N ), d e caráter m ilitar, rep resentava o p oder
d o gran d e C apital; o b lo c o o rien tal, em con trap artid a, a p o ia v a -se n o C o n se lh o
d e A ssistên cia E co n ô m ica M ú tu a (C o m eco n ) e, a in d a , para q u estõ es p olíticas
d e c o o r d e n a ç ã o d o s p a r tid o s c o m u n is ta s , n o K o m in fo r m , e o P a c to d e
V arsóvia, d e natu reza m ilitar, acen ava para a m u d a n ça , assim se p en sava.

56
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

A gran d e a g ita ç ã o q u e p a sso u a caracterizar o m u n d o c o lo n ia l, c o m su a s


conjunturas e sp e c ífic a s, iria, sem d ú v id a , fazer p arte d o s o b je tiv o s e d e síg ­
n ios d o s a m e r ic a n o s, bem a p a r e lh a d o s e m u n ic ia d o s para q u a lq u e r in terv en ­
ção m ais in cisiv a , in clu siv e m ilitar, so b a b an d eira da O N U . O s so v ié tic o s ,
por seu s p ró p rio s m e io s d e v ig ilâ n cia e, ta m b é m , m ilitares (fo r n e c im e n to d e
a n n a s a o s gu errilh eiro s, a u x ílio a g o v e r n o s su b s id ia d o s ), se fa z e m p resen tes.
É nesse se n tid o , q u e a riv a lid a d e d a G uerra Fria, a o en cerrar o s c o n flito s ar­
m ad os en tre o s g ra n d es E sta d o s, d e slo c a -o s para o m u n d o d o s p o v o s c o lo n i­
zad os. A o c o n tr á r io da H istó r ia d o s T e m p o s M o d e r n o s, o p o d e r d a g ra n d e
potência, d eten to ra da b o m b a a tô m ic a , d e d estru ir o m u n d o in a p e la v e lm e n -
te, faz co m q u e as r iv a lid a d es se tra n sfira m para o s te r r itó r io s d o s d e se r d a ­
d os da Terra e a í sejam esv a z ia d a s o u c o m p e n sa d a s.
A c r o n o lo g ia d a s lu ta s p ela in d e p e n d ê n c ia le v a em c o n s id e r a ç ã o e ssa
c o n stela çã o d e fa to res. E d w ard S aid c h a m a a a te n ç ã o p ara o fa to d e q u e , n o
auge da p o lític a im p eria lista , eram raros a q u eles q u e p o d e r ía m a ch a r q u e as
coisas m u d ariam . N o s a n o s d e 1 9 5 0 , t o d o o S u d este d a Á sia , d e d o m in a ç ã o
britân ica, tin h a se to r n a d o in d e p e n d e n te , d a m e sm a fo r m a a I n d o n é s ia se
tinha c o n stitu íd o em luta c o n tr a o s ja p o n eses e o s h o la n d e s e s. A In d o c h in a ,
outra in v e n ç ã o artificial d o c o lo n ia lis m o , so b o c o m a n d o d o líd er c o m u n is ­
ta H o C hi M in h (1 9 5 4 ) , se lib ertava da F ran ça, a p ó s u m a e sp e ta c u la r c a m ­
panha m ilitar, c o m o fim em D ie m B ien P h u , c a rrea n d o a a d m ir a ç ã o in tern a ­
c io n a l p ara o p o v o v ie tn a m ita . A Á fr ic a d e o c u p a ç ã o fr a n c e s a , in g le s a e
belga — Á frica O r ie n ta l, O c id e n ta l e d o N o r te — ta m b é m c h e g a a o fim em
m eio a cele b r a ç õ e s e festas m a s, ta m b é m , gu erras terriv elm en te cr u é is, c o m o
foram o s c a so s da A rg élia , d o C o n g o B elga, d e U g a n d a , d e A n g o la . Em 1 9 9 0 ,
haviam su rg id o 4 9 n o v o s E sta d o s a frica n o s (S aid , 1 9 9 5 , p . 2 5 4 ) .

A in d e p e n d ê n c ia ta r d ia

Em 1 9 5 5 , reu n iu -se em B a n d u n g , na In d o n é sia , u m a c o n fe r ê n c ia c o n v o c a d a


p elo gru p o d e C o lo m b o , c o n g r e g a n d o o s c in c o p a íse s re c é m -in d e p e n d e n te s
ín d ia , P a q u istã o , C e ilã o , B irm ânia e In d o n ésia — e, p e la p rim eira v e z , o s
chefes d e E sta d o d e 2 9 p a íses da Á sia e da Á frica (1 8 a 2 4 d e ab ril), q u e se
aP resentavam c o m o um terceiro m u n d o . P ro n u n c ia v a m -se p e la n eu tra lid a d e
e Pelo so c ia lism o m a s d e c la r a n d o -se co n tra o O c id e n te , o u seja, o s E stad os
« n id o s , e co n tra a U n iã o S o v iética . C o m p r o m e tia m -se a aju d ar a lib erta çã o

57
O SÉCULO XX

d o s p o v o s su b ju g a d o s. Era o esp írito d e B andung, q u e p erd u ro u p o r m ais de


u m a d é c a d a , a té ser d ilu íd o a n te as d ific u ld a d e s e d e s ilu s õ e s e n fr e n ta d a s
p e lo s n o v o s p a ís e s lib e r ta d o s d a d o m in a ç ã o c o lo n ia l d ir e ta . N o e n ta n to ,
B a n d u n g tra d u ziu u m m o m e n to de esp era n ça n a o r g a n iz a ç ã o m u n d ia l e n o
fu tu ro d a d e m o c r a c ia .
A o u to r g a d a in d e p e n d ê n c ia n ã o sig n ific a v a , n e c e ssa r ia m e n te , a c o n q u is ­
ta d a felicid a d e para to d o s e , m u ito m e n o s, o r e c o n h e c im e n to da a u to d e te r ­
m in a ç ã o d o n o v o p a ís n o p la n o e c o n ô m ic o , p o lític o e cu ltu ra l. O s v e lh o s in­
teresses c o lo n ia is tin h a m raízes p ro fu n d a s, o s e lo s d e d e p e n d ê n c ia eram re­
siste n te s e as b ases d a s a n tig a s cu ltu ra s lo c a is, c o m su a s tr a d iç õ e s trib a is, h a­
v iam s id o seria m en te a tin g id a s e , em m u ito s c a s o s , d estru íd a s p ela a ç ã o d o
c o lo n ia lis m o . N o p la n o in te r n a c io n a l, o c a p ita lism o se reestru tu rava n o se n ­
tid o d e se a d a p ta r às m u d a n ç a s, em face da v e r tig in o sa in o v a ç ã o d e te c n o lo ­
g ia s a lta m e n te so fistic a d a s na su a ca p a c id a d e d e d e str u iç ã o m a s, ta m b é m , no
c o n h e c im e n to d o e sp a ç o c ó s m ic o , n o a v a n ç o da c ib e r n é tic a e d a s ciê n c ia s da
vid a . C h e g a -se a falar n o tieo ca p ita lism o q u e regeria o s la ç o s d e d ep en d ên cia
n eoco lo n ia l, o u seja, a s m e tr ó p o le s, em a s s o c ia ç ã o c o m a d in â m ic a d o ca p i­
ta lism o h e g e m ô n ic o , c o n tin u a m a m an ter o s m e c a n ism o s d e su b o r d in a ç ã o .
P or o u tr o la d o , a crise d o regim e c o m u n ista n o s p a íse s d o b lo c o so v ié ti­
c o , o fim d o e s ta d o de G uerra F ria, c o m a n o v a p o lític a n o E x trem o O rien te
e a desesta lin iza çã o d a U R SS, tu d o isso acarreta u m a r e v o lu ç ã o n o sistem a
m u n d ia l. A d esa g r e g a ç ã o da U n iã o S o v iética revela a fr a g ilid a d e d o regim e
c o m u n ista e a n u n cia a e x is tê n c ia d e um a C h in a q u e d iz p erm an ecer fiel ao
s o c ia lis m o , p a r e c e n d o retom ar a su a m ilen ar v o c a ç ã o im p erial. A ssim , as d é­
c a d a s q u e sep a ra m B a n d u n g d e ste fim d e sé c u lo a ssistira m às g ra n d es m u ­
d a n ç a s q u e a feta ra m as r e la ç õ e s in tern a cio n a is e reforçaram as b ases d o c a ­
p ita lism o c o m o siste m a e c o n ô m ic o m u n d ia l.
N a d éca d a d e 1 9 6 0 , o s ú ltim o s da G uerra Fria, v erifica ra m -se alterações
e m u d a n ç a s im p o r ta n te s n o e sta tu to p o lític o d e A n g o la , M o ç a m b iq u e , São
T o m é e P rín cip e, G u in é-B issa u e o A r q u ip éla g o d o C a b o V erde, q u e vêem sua
in d e p e n d ê n c ia r e c o n h e c id a , a p ó s vin te a n o s d e gu erras c o lo n ia is (so b a lide­
rança d e su a s resp ectiv a s o r g a n iz a ç õ e s n a c io n a lista s) e a o c o r r ê n c ia d a revo­
lu ç ã o d e m o c r á tic a p o rtu g u esa em 1 9 7 4 . A té e n tã o , P o rtu g a l fazia figu ra de
ú ltim o b alu arte d o c o lo n ia lis m o , tal q u a l fo ra c o n c e b id o e p r a tic a d o — ul~
traco lo n ia lista , a ssim in titu la d o , na é p o c a , p or a u to res rad icais (A n d erso n ,
1 9 6 6 ), e x p o e n te d e um co lo n ia lism o d e p en d en te e su b d e se n v o lv id o , na m e­
d id a em q u e ja m a is a ceita ra fa zer q u a lq u e r c o n c e s s ã o o u m e s m o sen tar a

58
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

m esa d e r eu n iã o c o m o s líd eres n a c io n a lista s a u tê n tic o s. E ntre o s m a is n o tá ­


veis, d istin g u ira m -se A g o stin h o N e to , M a r io d e A n d ra d e e V iria to C ru z d o
fvlPLA (M o v im e n to P o p u la r d e L ib e r ta ç ã o d e A n g o la ), A m ilc a r C a b r a l,
PAIGC (P artid o A fr ic a n o p ela In d ep en d ên cia da G u in é e d e C a b o V erde).
N e sse p e r ío d o , a c o n d e n a ç ã o a P o rtu g a l v in h a d e to d a s as p a rtes. N a
O N U , resta v a m -lh e raros a lia d o s, a E sp an h a (e n tã o fran qu ista) e, o b v ia m e n ­
te, a Á frica d o S u l, tristem en te n o ta b iliz a d a p e lo cruel reg im e d e d o m in a ç ã o ,
b asead o n o r a c ism o e na se p a r a ç ã o a b so lu ta en tre b r a n c o s (m in o ria ) e n e ­
gros (grande m a io r ia ), o a p a rth e id ; e ste so m e n te fo i a b o lid o em 1 9 9 2 , em
p le b is c ito , g r a ç a s à p o lític a d e F red erik d e K lerk , s e g u id o d a e le iç ã o d e
N e lso n M a n d e la c o m o p resid en te da R ep ú b lica da Á frica d o Sul (1 9 9 4 ) .
A p esar da r ep ro v a çã o geral, P ortu gal c o n tin u a v a a receb er su p r im e n to s
em arm as p e la O T A N , q u e era m e n v ia d a s a o s se u s e x é r c ito s s e d ia d o s na
Á frica. Em face d as p r essõ es ex tern a s m a s, so b r e tu d o , e m v ista d a rev o lta in ­
terna cad a vez m ais g e n e r a liz a d a e n tre o s a fr ic a n o s, P o r tu g a l fe z a lg u m a s
c o n cessõ es, tais c o m o : su p r e ssã o form al d o tr a b a lh o fo r ç a d o , su p r e ssã o d o
indigenato, o in s titu to ju r íd ic o q u e iso la v a o s n a tivo s d a m in o r ia lo c a l de
evoluídos o u a ssim ila d o s , e q u e in clu ía a p o ssib ilid a d e d e a m p lia r o a c e ss o à
cidadania e a a p lic a ç ã o d e sa n ç õ e s d o C ó d ig o C ivil e, n ã o m a is, d o C ó d ig o
Penal, em m atéria d e c o n tr a to s d e tr a b a lh o . A p o lític a a frica n a p o r tu g u e sa
co m eçava, n o e n ta n to , a ser p esa d a d em a is a o s c o fr e s lu s ita n o s , a p esa r d o s
reforços em m u n iç õ e s e o u tr o s recu rsos m ateriais e fin a n c e ir o s p ro v e n ie n te s
de seus a lia d o s, so b r e tu d o da Á frica d o Sul.
E ntre 1 9 6 8 e 1 9 7 2 , p or e x e m p lo , a m a io r p arte d o e x é r c ito p o rtu g u ês
(142 m il h o m en s) se en co n tra v a na Á frica, na d efesa d a s c o lô n ia s em gu erra,
enquanto o m o v im e n to a rm a d o p ela lib ertação tin h a o a p o io da o p in iã o p ú ­
blica in tern acion al, c o n ta v a c o m a so lid a ried a d e african a e c o m o su p o r te em
material b élico e a ssistên cia a o s m ilitan tes d e p aíses d a área so c ia lista e g o v e r ­
nos sim p atizan tes e sc a n d in a v o s. Em 1 9 7 3 , o s p o rtu g u eses tin h a m p erd id o o
controle d o e sp a ç o aéreo (os africa n o s passaram a d isp o r d e m ísseis). N e sse
m om en to, A m ilcar C ab ral era a ssa ssin a d o em C o n a k ri (C o sta d o M arfim ),
uma grande p erd a, sem d ú v id a . A gu errilha se esten d e e m A n g o la c o m c a p a ­
cidade de su scitar o a p o io popular. Em M o ç a m b iq u e , a lu ta a rm ad a se a p o d e-
ra de C ab o D e lg a d o e N ia ssa . P ortugal ten ta n egociar, o fe r e c e n d o , em troca,
•naior a u to n o m ia a o s territórios. F in alm en te, em 2 5 d e ab ril de 1 9 7 4 , joven s
uciais das F orças A rm ad as em P ortugal d errubam a d ita d u ra , a p o ia d o s n o
P °vo cujas arm as eram o s cra v o s q u e levavam e a alegria esta m p a d a n o s ros-

59
O SÉCULO XX
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

to s . Era a d em o cra cia em m a rch a e a d ecreta çã o d o fim d o c o lo n ia lism o . O


Á frica d o Sul, tem to d a s as c o n d iç õ e s para ex ercer im p o r ta n te in flu ên cia p o ­
e x é r c ito c o lo n ia l fora d erro ta d o e v o lta v a -se co n tra a m e tr ó p o le , em n o m e da
lítica e e c o n ô m ic a n o p a ís, o q u e tem sid o c o m p r o v a d o n o s ú ltim o s a n o s c o m
lib erd ad e.
o fim d o ch a m a d o so c ia lism o a frica n o , na d éca d a d e 1 9 8 0 , a p ó s a m o r te d e
E c o n o m ic a m e n te , as c o lô n ia s eram im p o rta n tes para P o rtu g a l, so b retu ­
Sam ora M a c h e l, c h efe da F rente de L ib ertação N a c io n a l, p rim e ir o p resid en te
d o o p o te n c ia l d e A n g o la — p e tr ó le o de C a b in d a , m in é r io s e recu rsos agrí­
d e M oçam bique e q u e se p ro cla m a v a c o m u n ista . Foi v ítim a , e m 1 9 8 6 , d e um
c o la s . D a í serem m u ito s o s in teresses em jo g o , d u ra n te a d o m in a ç ã o p ortu ­
acidente d e a v ia ç ã o .
g u e sa e a s d u a s d éca d a s se g u in te s à d e c la r a ç ã o d e in d ep en d ên cia . A n o v a era,
O ca so d e G u in é-B issau difere d a q u eles já m e n c io n a d o s. N ã o d isp u n h a
n o e n ta n to , n ã o fo i d e p az. A in tra n sig ên cia d o c o lo n ia lis m o p o rtu g u ês teve
d os m esm os a tra tiv o s e c o n ô m ic o s e estr a té g ic o s d e A n g o la e M o ç a m b iq u e e
c o m o su c e sso r e s o s p a rticip a n tes da guerra civ il q u e , m a is u m a v e z , trará o
não tinha o p e so p o lític o q u e o s d o is p o d ia m ostentar. A crise d o c o m u n is m o
c a o s a o p a ís, ag o ra tr a n sfo r m a d o em m ais u m c e n á r io da c o m p e tiç ã o inter­
internacional ta m b ém teve su as c o n se q ü ê n c ia s lo c a is, su p e r a d a s, p o r é m , já
n a c io n a l, m a n ip u la n d o r iv a lid a d es in tertribais. A p róp ria d iv isã o d o m o v i­
n o in ício da d éca d a d e 1 9 9 0 . Sua p o lític a interna é o r ie n ta d a n o se n tid o d e
m e n to a n tic o lo n ia lista — o s três g ru p o s q u e lid eravam a lib erta çã o — torna- um a a p r o x im a ç ã o m a is e s tr e ita c o m a z o n a fr a n c a U n iã o E c o n ô m ic a e
se cru cia l a p ó s 1 9 7 4 , q u e m arca o fim da d o m in a ç ã o p o rtu gu esa: o M PLA , M onetária d o O e ste A frica n o . T am b ém o A r q u ip éla g o d e C a b o V erde tev e
m u ltir r a c ia l e m a r x ista (U R S S ), c o m o p r e d o m ín io d a n a ç ã o q u ib u n d o ; a sua in d ep en d ên cia p ro cla m a d a em 1 9 7 5 . N o s ú ltim o s a n o s , v e m p a ssa n d o
F ren te d e L ib e r ta ç ã o N a c io n a l d e A n g o la , a n tic o m u n is ta , a p o ia d a p elo s por um program a d e refo rm a s n o se n tid o de a d a p ta r as n o v a s in s titu iç õ e s li­
E sta d o s U n id o s e p e lo e x -Z a ir e (C o n g o ), n o n orte d o país; a U n iã o N a c io n a l berais à tra d içã o p o lític a e a d m in istra tiv a h erd ad a d o s a n o s d e g o v e r n o s o ­
p ela In d ep en d ên cia T otal d e A n g o la , in ic ia lm e n te m a o ísta e q u e , m a is tarde, cialista. Q u a n to a S ã o T o m é e P rín cip e, e ste te m a p e c u lia r id a d e d e ser o
r e c e b e o a p o io d a Á fr ic a d o S u l, to r n a n d o -s e a n tic o m u n is ta e m a n te n d o m enor país a frica n o , c o m um a p eq u en a p o p u la ç ã o d e cerca d e 4 0 m il h a b i­
c o m o b a se d e a tu a ç ã o a reg iã o ce n tr o -su l. tantes e, n o e n ta n to , sem c a p a c id a d e d e p rod u zir a lim e n to s su fic ie n te s para
A la str a -se a guerra c iv il, a partir d e 1 9 7 5 , c o m as d iferen tes fa c ç õ e s em seu próp rio p o v o . Sua lib erta çã o foi c o n q u is ta d a , c o m o o r e sta n te , ta m b é m
lu ta r e c e b e n d o a p o io d e p o tê n c ia s estra n g eira s. D a í p o r d ia n te , p red o m in a o em 1 9 7 5 . N o m o m e n to , vive c o m d ificu ld a d es e na e x p e c ta tiv a d e d e s e n v o l­
c a o s. A m a io ria m a ciça d e b ra n co s a n g o la n o s ( 3 5 0 m il) em ig ra , u m a parte ver o tu rism o lo c a l.
c h e g a a o B rasil. T r o p a s su l-a fr ic a n a s in v a d e m A n g o la , d a n d o su p o r te ao
U N IT A n o a ta q u e a L u a n d a . C u b a p a ssa a a p o ia r m ilita r m e n te o M PLA .
C o m a retirad a d e P o rtu g a l, A g o stin h o N e t o , líd er d o M P L A , é p roclam ad o E sp eran ças e fr u s tr a ç õ e s
p r e sid e n te da R e p ú b lic a P o p u la r d e A n g o la , c u jo reg im e fo i r e c o n h e c id o
c o m o se n d o so c ia lista . C o m su a m o rte, em 1 9 7 9 , a p resid ên cia p a sso u a seu ra por m e io s p a c ífic o s, ora p or in term éd io de lo n g a s e cru éis lu tas in tern as,
su cesso r, J o sé E d u ard o d o s S a n to s, sem v islu m b re d e p a z para a região nem por vezes a té m e s m o c o m o ca r á te r d e g u erra s c iv is , c o m o fo i o c a s o n o

a sa tisfa ç ã o d o s in teresses em jo g o . L °n g o Belga e em A n g o la , p o r e x e m p lo , o s v e lh o s im p ério s c o lo n ia is ch eg a -


Em M o ç a m b iq u e , n a s su a s lin h a s g era is, a e v o lu ç ã o n ã o foi m u ito dife­ ram a o fim . N a Á sia , na Á frica , n as A n tilh a s e n as G u ia n a s, n a s ilh a s d o

ren te n o q u e co n c e r n e à d e s c o lo n iz a ç ã o . O ite n ta p or c e n to da su a p o p u la çã o jjJ*? . CCÍ’ onc^e cl uer q u e se tiv esse e sta b e le c id o o p o d er d o im p é r io , cr ia d o e


_ ip lica d o a partir da E u ro p a , foi p ro fu n d a e d e v a sta d o r a a d o m in a ç ã o
s ã o p e q u e n o s p ro d u to res d e su b sistê n c ia e o p aís v iv e p r a tica m en te d e au xí­
^ cu ltu ras locais e seu s sistem a s so c ia is. P or o n d e o h o m e m b ra n co p as-
lio s e x te r n o s . A guerra civ il q u e se e ste n d e u en tre 1 9 7 4 e 1 9 9 0 tem como
> ícaram su as m arcas c o m o um rastro in d elév el, e d e tal fo rm a q u e q u an -
sa ld o n e g a tiv o a m orte d e 1 m ilh ã o d e p e sso a s e a sa íd a d e 1 ,7 m ilh ã o d e ha­
* e m bora q u a se n ad a restava a ser c o n se r v a d o n em d e se n v o lv id o p e lo s
b ita n tes q u e p assaram à c o n d iç ã o de refu g ia d o s. A p róp ria d ecla ra ç ã o de in­
d io ° r/ m v 'r'm as da su a d o m in a ç ã o . R e sta r a m , na m a io r ia , p o v o s a m e-
d e p e n d ê n c ia , em 1 9 7 5 , fo i a c o m p a n h a d a da sa íd a d e 5 0 0 m il c o lo n o s , uma
CCb- o s >arriscad os a p erder até a próp ria m em ó ria im p ressa , q u a se im per-
sa n g ria p o n d e r á v e l em m ã o -d e -o b r a q u a lific a d a . Seu v iz in h o p o d e r o s o , a
W e n o q u e lhe restava c o m o id en tid a d e.

60
61
O SÉCULO XX

M u it o s fo r a m o s im p é r io s m o d e r n o s , d o s é c u lo X V I a té o s E sta d o s
U n id o s d e n o ss o s d ia s. N o s s a a te n ç ã o , n o e n ta n to , recaiu so b r e a q u e le s q u e
d esa p a recera m c o m o p o tê n c ia s im p eriais na seg u n d a m e ta d e d e ste n o s s o sé ­
c u lo e, a ssim m e sm o , em a lg u n s a sp e c to s a p en a s. Essa d erro ca d a se c o n stitu i
c o m o o fa to m a is im p o r ta n te d o m u n d o c o n te m p o r â n e o , a H istó r ia d e n o s ­
so s d ia s m a rcad a p e la v io lê n c ia e p e lo g e n o c íd io . C o n fo r m e d iz u m h isto r ia ­
d o r d o im p eria lism o : se e ste (o im p eria lism o ) “ a v a n ç o u im p la c a v e lm e n te n o s
sé c u lo s X IX e X X , o m e sm o se d eu c o m a resistên cia a e le ” (S aid , 1 9 9 5 , p.
2 5 ) . S eria u m e r r o p e n sa r q u e o s d ir ig e n te s , c o m o A ttle e , D e G a u lle ou
M á r io S o a res, p o r m ais e sc la r e c id o s q u e te n h a m s id o , co n ced era m a in d e­
p en d ên cia à ín d ia , o u a G a n a , à A rgélia, a o S en egal o u à C o sta d o M arfim ,
a A n g o la o u a M o ç a m b iq u e .
D a m esm a fo r m a , seria n o m ín im o in g ên u o atrib u ir o fim da seg reg a çã o
racial na Á frica d o Sul a D e K lerk o u m e sm o a M a n d e la , em b o r a te n d o sid o
im p o rta n tes, ju sto s e ilu m in a d o s na su a c o n d u ta c o m o c h e fe s d e E sta d o . A
d e s c o lo n iz a ç ã o fo i u m a c o n q u is ta d o s p o v o s d o m in a d o s , r e su lta d o de um a
resistên cia lo n g a e n em sem p re d e a p arên cia esp etacu lar, p o r v ezes sile n c io ­
sa. F oi o q u e a c o n te c e u na Á sia , n o N o r te d a Á frica, n o Sul da Á frica , em
q u a lq u er p arte p or o n d e a E u ro p a e , m ais tard e, o s E sta d o s U n id o s p assa­
ra m , e x ib in d o a su a s u p e r io r id a d e d e c iv iliz a d o s e as s u a s c o n v in c e n t e s
arm as d e fo g o . Se, p or um la d o , o im p eria lism o a m p lio u seu raio d e in flu ên ­
c ia , p or o u tr o , cresceu a c a p a c id a d e d o ser h u m a n o d e resistir à d o m in a ç ã o .
N a ín d ia , n o E g ito , na A rg élia , em G a n a , e assim p or d ia n te , a in sta la çã o
d o d o m in a d o r se fe z c o m v io lê n c ia e ig u a lm e n te v io le n ta foi a resistên cia
lo c a l. O a to final d e in d e p e n d ê n c ia foi sem p re p re c e d id o d e p r o lo n g a d o s d is­
t ú r b io s , q u a n d o n ã o d e lo n g a s e c r u e n ta s g u e r r a s d e lib e r t a ç ã o (na
I n d o c h in a -V ie tn ã , a g u e r r a c o n tr a a F ra n ça d u r o u d e 1 9 4 6 a 1 9 5 4 ; na
A rg élia , a lém d a g ra n d e resistên cia arm ad a a o e sta b e le c im e n to d a F ran ça, no
sé c u lo X IX , a gu erra final de lib erta çã o d u ro u seis a n o s, d e 1 9 5 4 a 1 9 6 2 ).
Q u e b u sca v a m o s c o n q u is ta d o r e s d e im p érios? L u cro, pod er, g ló r ia . Q u e p o ­
d eríam e les levar à s p o p u la ç õ e s c o n q u is ta d a s o u a b o rd a d a s? O p rim eiro c o n ­
ta to fo i sem p re d estru id or, já d e sd e o s p rim eiro s ib érico s q u e a p o rta ra m na
A m érica , n o sé c u lo X V /X V I, a té o ú ltim o m arine a m e r ic a n o d esem b a rca d o
em a lg u m a ilha d o P a cífico .
Q u e c a m in h o s o O c id e n te p o d e r ia m o str a r a o s p o v o s c o n q u is ta d o s ?
N e c e ssa r ia m e n te aq u ele por ele m esm o trilh ad o: o lib era lism o p o lític o e e c o ­
n ô m ic o , o c ó d ig o c iv il, o c a p ita lism o e su as leis d e m e r c a d o , a g a n â n c ia e o

62
d e s c o l o n i z a ç ã o e l u t a s d e l i b e r t a ç ã o n a c i o n a l

lucro a q u alq u er sa c r ifíc io (L in h ares, 1 9 8 1 ). Tal c a m in h o n ã o p o d eria ser tri­


lhado p ela s so c ie d a d e s a siá tica s e african as p r é -c o lo n ia is, c o m o bem ad vertia
Jean C h e sn e a u x , a o lem brar q u e o e stu d o da b u rgu esia a siá tic a n ã o se in scre­
ve d ir e ta m e n te n a h is tó r ia d a b u r g u e s ia d o s p a ís e s in d u s t r ia liz a d o s
(Chesneaux, 1 9 7 6 ). A ssim , c a d a p o v o c o n str ó i a su a p ró p ria h istó r ia , e ca d a
p o v o tem u m a h istó ria q u e é a su a , d iferen tem en te d o q u e p reg a v a m o s c o lo ­
nizadores, ta n to n o p ú lp ito q u a n to na b an ca d o p rofessor: o céreb ro d o n a ti­
vo, o negro d o Z a ir e , p o r e x e m p lo , era um a tá b u la rasa so b r e o q u a l c a b ia a o
colonizador im p rim ir o q u e lh e co n v ie sse ! Seria a id e o lo g ia d o c o lo n ia lis m o .
C o n q u ista d a a in d e p e n d ê n c ia , a lg u n s d esses n o v o s E sta d o s en traram n o
reino d a s gu erras civ is fratricid as e sem reto rn o . R e sta -lh e s a g o r a e n c o n tr a r
o seu p ró p rio c a m in h o e c o n s tr u í-lo , g r ã o p or g r ã o , p ed ra p o r ped ra.
Em c o n c lu s ã o , p od er-se-ia d izer q u e a h istó ria d o m u n d o a in d a n ã o foi
escrita, e s ó p o d erá sê -lo n o d ia em q u e o s d e serd a d o s d a terra p a rticip a rem
d o b a n q u ete d o s h erd eiro s d a terra, c o m o c o n v iv a s e c o m o d o n o s d a ca sa .
N esse d ia , e les n ã o esta r ã o rep etin d o c o m o u m e c o a s p a la v r a s d e o r d e m q u e
partem d o s a n tig o s p a trõ es, n em se in teressa rã o m a is em d e c o r a r a p rim eira
frase d o liv r o d e h istó r ia da c la s se in icial: nos an cêtres, les g a u lo is — n o s s o s
a n tep a ssa d o s, o s g a u leses!
E, p ara q u e a ssim seja, o m u n d o será rep en sa d o em se u s v a lo r e s m a te ­
riais, seu s d o g m a s e c o n ô m ic o s , seu s siste m a s d e o r g a n iz a ç ã o , su a s a sp ir a ç õ e s
h egem ôn icas e a u to r itá r ia s, so b r e tu d o su a s p r e te n sõ e s im p eria is. C la r o q u e
n os referim os a u m a u to p ia e a ela d e v e m o s ser fiéis. A c r ise d e id e n tid a d e e
a crise d o siste m a p o lític o v ig en te em a lg u n s d o s p a íse s a fr ic a n o s e a siá tic o s
(v io lê n c ia , c o r r u p ç ã o , n e p o tis m o ) fa z e m p a rte d o q u e fo i a q u i a p o n ta d o
c o m o h eran ças d o c o lo n ia lis m o recen te e n ã o e x tin to d e to d o .

bibliografia

Anderson, Perry. 1966. P o rtu g a l e o fim d o u ltr a c o lo n ia lis m o . Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira.
^*rdoso, Ciro Flamarion S. 1973. “La Descolonización.” In Jornal: U n iv e r s id a d (San
José de Costa Rica), pp. 12-14.
■®*sneaux, Jean. 1976. A Á s ia O r ie n ta l n o s sé c u lo s X I X e X X , Série Nova Clio. São
Livraria Pioneira Editora.
í*t»champs. 1952. E v e il p o litic A fric a n . Paris, Press Universitaires, 1952.

63
O SÉCULO XX

Dunn, John. 1972. 1989. M o d e m r e v o lu tio n s (uma introdução à análise de um fenôme­


no político). Cambridge. Cambridge University Press.
Fanon, Frantz. 1961. Os c o n d e n a d o s d a te rra . Prefácio de Jean-Paul Sartre, primeira edi­
ção francesa, L e s d a m n é s d e la te r re . 1963. Paris, Maspéro; edição em espanhol,
México, Fondo de Cultura Econômica.
Grimal, Henri. 1965. L a D é c o lo n is a tio n , 1919-1963. Coleção U. Paris, Armand Colin.
GT, Biblioteca Salvat de Grandes Temas. 1979. C o lo n ia lis m o e N e o c o lo n ia lis m o . Rio de
Janeiro, Salvat Editora do Brasil.
Ki-Zerbo, Joseph. 1978. H is tó r ia d a Á fric a N e g r a , ed. portuguesa, Viseu, dois volumes;
edição francesa: 1978, Paris.
Linhares, Maria Yedda L. 1967. “O capitalismo: seus novos métodos de ação”. R e v ista
C iv iliz a ç ã o B ra sileira , n. 15, Editora Civilização Brasileira.
________ , 1981. A lu ta c o n tra a m e tr ó p o le (Á sia e Á fric a ). Coleção. Tudo É História.
São Paulo, Editora Brasiliense, 6a. edição.
Memmi, A. 1977. R e tr a to d o c o lo n iz a d o p r e c e d id o p e lo r e tra to d o c o lo n iz a d o r , tradução
do francês, 2a. Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Panikkar, K. M. 1965. A d o m in a ç ã o o c id e n ta l n a Á sia , d o sé c u lo X V a o s n o s s o s d ia s. Rio
de Janeiro, Editora Saga, 2 volumes.
Said, Edward W. 1995. C u ltu r a e i m p e r ia lis m o , trad. Denise Bottman. São Paulo,
Companhia das Letras.
UNESCO. Projeto em 8 volumes. 1982. C o m itê C ie n tífic o p a r a a re d a ç ã o d a H istó r ia
G e r a l d a Á fric a . São Paulo, Ática/UNESCO, ed. brasileira, volume I.
Shaw, Bernard. S/d. O h o m e m d o d e s tin o . São Paulo, Melhoramentos.
Wesseling, H. L. 1988. D iv id ir p a ra d o m in a r , A Partilha da África, 1 8 8 0 - 1 9 1 4 , trad. de
Celina Brandt. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Editora Revan.

64
América Latina: dependência,
ditaduras e guerrilhas
Ana Maria dos Santos
Professora adjunta aposentada de História da América
da Universidade Federal Fluminense
O SÉCULO XX

Dunn, John. 1972. 1989. M o d e m r e v o lu tio n s (uma introdução à análise de um fenôme­


no político). Cambridge. Cambridge University Press.
Fanon, Frantz. 1961. O s c o n d e n a d o s d a te rra . Prefácio de Jean-Paul Sartre, primeira edi­
ção francesa, L e s d a m n é s d e la te r re . 1963. Paris, Maspéro; edição em espanhol,
México, Fondo de Cultura Econômica.
Grimal, Henri. 1965. L a D é c o lo n is a tio n , 1919-1963. Coleção U. Paris, Armand Colin.
GT, Biblioteca Salvat de Grandes Temas. 1979. C o lo n ia lis m o e N e o c o lo n ia lis m o . Rio de
Janeiro, Salvat Editora do Brasil.
Ki-Zerbo, Joseph. 1978. H is tó r ia d a Á fric a N e g r a , ed. portuguesa, Viseu, dois volumes;
edição francesa: 1978, Paris.
Linhares, Maria Yedda L. 1967. “O capitalismo: seus novos métodos de ação”. R e v ista
C iv iliz a ç ã o B ra sile ira , n. 15, Editora Civilização Brasileira.
________ . 1981. A lu ta c o n tr a a m e tr ó p o le (Á sia e Á fric a ). Coleção. Tudo É História.
São Paulo, Editora Brasiliense, 6a. edição.
Memmi, A. 1977. R e tr a to d o c o lo n iz a d o p r e c e d id o p e lo r e tr a to d o c o lo n iz a d o r , tradução
do francês, 2a. Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Panikkar, K. M. 1965. A d o m in a ç ã o o c id e n ta l n a Á sia , d o sé c u lo XV a o s n o s s o s d ia s. Rio
de Janeiro, Editora Saga, 2 volumes.
Said, Edward W. 1995. C u ltu r a e i m p e r ia lis m o , trad. Denise Bottman. São Paulo,
Companhia das Letras.
UNESCO. Projeto em 8 volumes. 1982. C o m itê C ie n tífic o p a r a a re d a ç ã o d a H is tó r ia
G e r a l d a Á fric a . São Paulo, Ática/UNESCO, ed. brasileira, volume I.
Shaw, Bernard. S/d. O h o m e m d o d e s tin o . São Paulo, Melhoramentos.
Wesseling, H. L. 1988. D iv id ir p a r a d o m in a r , A Partilha da África, 1 8 8 0 - 1 9 1 4 , trad. de
Celina Brandt. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Editora Revan.

64
América Latina: dependência,
ditaduras e guerrilhas
Ana Maria dos Santos
Professora adjunta aposentada de História da América
da Universidade Federal Fluminense
1 AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XX: DEPENDÊNCIA ECONÔMICA
E CONFLITO SOCIAL

Depois da in d e p e n d ê n c ia , n o sé c u lo X IX , o s p a íses h is p a n o -a m e r ic a n o s p r o ­
curaram esta b elecer u m a n o v a o rd em e c o n ô m ic a , p o lític a e s o c ia l e restau rar
os seus vín cu lo s c o m o m e r c a d o m u n d ia l. Isto fo i c o n s e g u id o a p ó s um p e r ío ­
d o de an arq u ia, d e gu erras c iv is, d e r e b e liõ e s, d e c o n flito s r e g io n a is e in ter­
nacionais, d e q u a rtela d a s, d e g o lp e s e d ita d u ra s. D e p o is d e lu ta s p e lo p o d e r
de durações va ria d a s, o rg a n iza ra m -se rep ú b licas lib era is, c o m c o n s titu iç õ e s
que segu iam o m o d e lo a m e r ic a n o . Em a lg u m a s d e la s, o p r o c e s s o fo i lo g o c o ­
m andado p or o lig a r q u ia s r e g io n a is, q u e já c o n tr o la v a m a p r o d u ç ã o p ara e x ­
p ortação d esd e a c o lô n ia . E sta s o lig a r q u ia s m a n tiv e r a m fo r te c o n tr o le d o
E stado, de ta l m an eira q u e a n u la v a m o real fu n c io n a m e n to d a s in stitu iç õ e s
liberais. A d e m o c r a c ia e a c id a d a n ia eram m a is d e fa to q u e d e d ir e ito e se li­
m itavam às elites.
Em algu n s p a íses o c a p ita l e x te r n o d o m in o u a p r o d u ç ã o e o p r e d o m ín io
político fo i d isp u ta d o p o r seto res a fin a d o s c o m o s in teresses in te r n a c io n a is.
N en h u m g ru p o o lig á r q u ic o n a c io n a l c o n se g u iu c o m a n d a r e s s e p r o c e ss o e a
p rod u ção fo i o r g a n iz a d a p e lo c a p ita l e str a n g e ir o . A s fo n t e s d e p r o d u ç ã o
para o m ercad o in te r n a c io n a l eram c o m a n d a d a s d e fo ra e n ã o se a rticu la v a m
com o restan te d a e c o n o m ia n a c io n a l. O s lu cro s era m r e m e tid o s p ara as m a ­
trizes e as rendas g era d a s p e lo se to r e x p o r ta d o r n ã o eram r ein v estid a s em b e­
neficio d o d e se n v o lv im e n to geral d o p a ís. O s o u tr o s se to r e s e c o n ô m ic o s n a-
°n a is m a n tin h a m o c o n tr o le da m ã o -d e -o b r a e a e sta b ilid a d e p o lític a n e­
cessários a o e n cla v e a g ríco la e o m in eiro. D e ssa m a n eira , o c a p ita l estran gei-
° P articip ava d a s m e s m a s fo r m a s d e e x p lo r a ç ã o d o tr a b a lh a d o r u sa d a s
Pc os setores o lig á r q u ic o s.
U m a série d e refo rm a s p ro cu ro u c o n stitu ir u m m e r c a d o d e terras e d e
®o d e-ob ra, n e c e ssá r io à p r o d u ç ã o p ara e x p o r ta ç ã o . H o u v e a ex p r o p r ia -

67
O SÉCULO XX

ç ã o d a s terras d a Igreja, d a s c o m u n id a d e s in d íg en a s rem a n e sc e n te s e d a s p e­


q u e n a s p ro p ried a d es. A s terras c o m u n a is p a ssa ra m para a p r o p r ie d a d e in d i­
I ^
A M É RICA LATINA: DEPENDÊNCIA. DITADURAS E GUERRILHAS

onômico, a lu ta c o n tr a o im p e r ia lism o , o fim d as d e sig u a ld a d e s so c ia is.


esar do r e flu x o d o m o v im e n to c a m p o n ê s , a A m érica L atin a v ivia u m a m ­
v id u a l e lo g o o s c a m p o n e s e s as p erd eram . E lim in a d o s o s o b stá c u lo s q u e im o ­ biente r e v o lu c io n á r io . A u m en to u a g r a v ita ç ã o d a s fo rça s a rm a d a s na p o líti­
b iliz a v a m a s te r r a s, s e g u ir a m -s e v á ria s fo r m a s d e e x p lo r a ç ã o d a m ã o -d e - ca As p ressõ es d as m assas eram r esp o n d id a s c o m g o lp e s d e E sta d o e p or d i­
o b ra to rn a d a d is p o n ív e l p o r essa s reform as. E las fo r a m a c o m p a n h a d a s d e re­ taduras (como na A m érica C en tral e n o C arib e, na A rg en tin a e n o Peru). O u
p r e ssã o e d e leis d e tr a b a lh o , ta n to na p r o d u ç ã o m in eira q u a n to na agrícola. então foram in c o r p o r a d a s a p ro jeto s d e d e se n v o lv im e n to p o r m o v im e n to s
A resistên cia se tr a d u ziu n as g u erra s c a m p o n e s a s rep rim id as c o m v io lên cia . reformistas, n a c io n a lista s e p o p u lista s, a lg u n s d e le s a u to r itá r io s. Em 1 9 3 6 ,
N o M é x ic o , a lu ta c a m p o n e s a te v e c o n t in u id a d e c o m a in s u r r e iç ã o de metade dos p a íses la tin o -a m e r ic a n o s vivia so b regim es m ilita res. N o M é x ic o ,
E m ilia n o Z a p a ta n a r e v o lu ç ã o m e x ic a n a d e 1 9 1 0 , p r e ssio n a n d o p ela refor­ Lázaro Cárdenas r a d ica lizo u a reform a agrária (1 9 3 5 - 3 7 ) e e x p r o p r io u as
m a ag rária, q u e fo i d e p o is c o n sa g r a d a na C o n stitu iç ã o d e 1 9 1 7 , m as a p lica ­ companhias de p e tr ó le o estra n g eira s em 1 9 3 8 .
da m u ito m a is tard e. A pós a S egunda G uerra M u n d ia l, e esp ecia lm e n te na d éca d a d e 1 9 5 0 , as
N o in íc io d o sé c u lo X X , a p ró p ria in teg ra çã o a o m erca d o m u n d ia l leva­ m udanças n o ca p ita lism o in tern a cio n a l levaram a u m in v e stim e n to m a io r n o
ra a u m c e r to grau d e m o d e r n iz a ç ã o e d e u r b a n iz a ç ã o . C r io u -se u m a infra- processo d e in d u stria liza çã o d o s p aíses p eriféricos. O m o d e lo n a c io n a lista e
estru tu ra d e tr a n sp o r te , c o m u n ic a ç õ e s e se r v iç o s a d e q u a d a à p r o d u ç ã o e x ­ d esenvolvim entista se e sg o ta v a e acabaria p or ced er lugar a o d e se n v o lv im e n to
p o rta d o ra e seu e s c o a m e n to . A d iv e r sific a ç ã o in clu iu a té u m a p r o d u ç ã o m a- associado. A n ecessid a d e d e co n te r a U n iã o S oviética e o c o m u n ism o , a G uerra
n u fatu reira para o in c ip ie n te m erca d o in tern o . H o u v e o a p a r e c im e n to e au­ Fria, orientava a p o lítica ex tern a d o s E stad os U n id o s n o c o n tin e n te e fazia in ­
m e n to d o s se to r e s m é d io s lig a d o s às p r o fissõ e s e à b u ro cra cia d a s em p resas teragir a a çã o m ilitar, p olítica e e c o n ô m ic a . N a A m érica L a tin a , as lu tas p or
e d o E sta d o . Em a lg u n s se to r e s, c h e g o u -s e a o rg a n iza r um p r o le ta r ia d o . T am ­ reforma e a in stab ilid ad e a u m en tavam . O m o v im e n to c a m p o n ê s ren ascia, c o m
b ém a o lig a r q u ia te n d ia a se d iversificar, para in clu ir b a n q u e ir o s, em p resá­ novas pressões p o r reform a agrária. A m p lia v a m -se o d e sc o n te n ta m e n to so cia l
rio s da in d ú stria e d o c o m é r c io . A to m a d a d e c o n sc iê n c ia e a p r e ssã o p o líti­ e os m ovim en tos pela d em ocracia e co n tra as ditad u ras. C h eg a v a a o fim o m o ­
ca d esses n o v o s g r u p o s a d q u iria m fe iç ã o a n tio lig á r q u ic a . P r e ssio n a v a m por delo de aliança p o p u lista (su icíd io d e V argas e q u ed a d e P erón ).
reform as e a m p lia ç ã o d a d em o cra cia : tal fo i o c a s o d o r a d ic a lis m o n a A rgen­ N a d écada de 1 9 6 0 , a n ec e ssid a d e d e c a p ita l e x te r n o , p ara d ar c o n tin u i­
tin a e d a lu ta c o n tr a a ree le iç ã o d e P orfirio D ía z em 1 9 1 0 , n o M é x ic o . dade a o p r o c e ss o d e d e s e n v o lv im e n to in d u str ia l, le v a v a à r e d e fin iç ã o d o s
N o p e r ío d o en tre a s d u a s g ra n d es g u erras, as crises m u n d ia is d e 1 9 2 0 e vín cu los co m o s c e n tr o s d e se n v o lv id o s e às m u d a n ça s n a s p o lític a s e c o n ô m i­
1 9 2 9 a fetaram a e c o n o m ia e x p o r ta d o r a d a A m érica L a tin a e , co n se q ü e n te - cas e sociais. O n o v o m o d e lo e c o n ô m ic o n ã o p o d ia m a is in c o r p o r a r o a u ­
m en te, ta m b é m o p o d e r d a o lig a r q u ia . O p r o c e sso d e m o d e r n iz a ç ã o e diver­ m ento d as reiv in d ica çõ es o p erá ria s. F alharam as in ic ia tiv a s p a ra d e se sta b ili-
s ific a ç ã o a v a n ç o u : em a lg u n s p a íse s c h e g o u -s e a té a o d e s e n v o lv im e n to de zar C uba e a re v o lu ç ã o c u b a n a a p resen ta v a para o c o n tin e n te a o p ç ã o s o c ia ­
u m a in d ú stria q u e su b stitu ía as im p o r ta ç õ e s d e b en s d e c o n s u m o p ara o m er­ lista. A cria ç ã o d e fo c o s gu errilh eiro s em v á rio s p a íses d a v a u m a d im e n sã o
c a d o in tern o . A té e n tã o , a p rin cip al área d e in flu ê n c ia d o s E sta d o s U n id os revolucionária a o s p r o te sto s n o c a m p o . N o s a n o s 6 0 , as s o lu ç õ e s p o lítica s
eram a A m érica C en tral e o C arib e. A partir d e 1 9 2 0 , su a in flu ên cia c o m e ­ renderam a se radicalizar. T o r n o u -se d ifícil m an ter o siste m a r e p resen ta tiv o ,
ç o u a se c o n s o lid a r n o c o n tin e n te e , c o m a P o lítica d e B oa V iz in h a n ç a , foram quando as a lian ças en tre o s g ru p o s so c ia is se rom p era m . C o m e ç o u -s e a p r o ­
a b a n d o n a n d o a p o lític a d e in te r v e n ç ã o m ilita r d ir e ta . O s E sta d o s U n id os curar o d e se n v o lv im e n to sem as te n sõ e s so c ia is, c o m seg u ra n ça e o r d e m , c o m
eram o p rin cip al in v erso r na m in e r a ç ã o (cob re n o C h ile ), na e x tr a ç ã o e refi­ u ovos g o lp es d e direita: o s m ilitares foram d e n o v o c h a m a d o s à cen a .
n o d e p e tr ó le o (V en ezu ela ), na agricu ltu ra tr o p ic a l e a té m e s m o n o p rocesso jq Umen to u a m ilita r iz a ç ã o da p o lític a la tin o -a m e r ic a n a , n o s a n o s 6 0 e
d e in d u str ia liz a ç ã o q u e se in icia v a . ç U e 1 9 6 2 a 1 9 6 7 , o s g o v e r n o s m ilitares ascen d era m na A r g e n tin a , Peru,
A o r g a n iz a ç ã o d o m o v im e n t o o p e r á r io e su a m ilitâ n c ia c r e sc e r a m . 196 ^erna'a ’ E qu ador, R ep ú b lica D o m in ic a n a , H o n d u r a s , B rasil e B o lív ia . D e
S urgiram p a rtid o s d e esq u erd a e reform istas: d e fe n d ia m o d e se n v o lv im e n to a 1 9 7 3 , n o v o s g o lp e s o c o r r e r a m n o P e r u , P a n a m á , E q u a d o r e

68 69
O SÉCULO XX
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA. DITADURAS E GUERRILHAS
H o n d u r a s e , d e 1 9 7 3 a 1 9 7 6 , n o C h ile , U ru g u a i e A rg en tin a . Em m u ito s p aí­
se s , o s m ilita res q u e to m a r a m o p o d er n essa é p o c a b a se a v a m -se n a su a assu ­ O m o v im e n to o p e r á r io a r g e n tin o atin gira n ív e is m a is c o m p le x o s d e or-
m id a c o m p e tê n c ia para en ca m in h a r o d e se n v o lv im e n tc u ie se u s p a íse s. A s po- nização e m ilitâ n c ia já n o in íc io d o sé c u lo X X . S ofrerá a in flu ê n c ia d o s
lítica s e c o n ô m ic a s a serem im p le m e n ta d a s d e v ia m esta r a sa lv o d a s co n se- ® oVim en tos o p e r á r io s e r e v o lu c io n á r io s da F ran ça, A le m a n h a , E sp a n h a e
q ü ê n c ia s d o p lu r a lism o p o lític o . A in sta b ilid a d e d o s r e g im e s c iv is, a s lutas Itália q u e, na A rg en tin a , resp o n d ia m a um a rea lid a d e d e m á s c o n d iç õ e s d e
p artid árias e as te n s õ e s q u e o p r ó p r io d e se n v o lv im e n to p o d e r ia criar eram ida e de o p o siç ã o da U n iã o Indu strial q u e c o n te sta v a o d ir e ito à a ss o c ia ç ã o .
v ista s c o m o in c o m p a tív e is c o m a o rd em e a seg u ra n ça n e c e ssá r ia s às n o v a s O Partido S o cia lista fo i fu n d a d o em 1 8 9 6 , m as o a n a r q u ism o m a n te v e a su a
p o lític a s d e m o d e r n iz a ç ã o c a p ita lista . influência até 1 9 2 0 . D e sd e o fim d o sé c u lo X IX , h o u v e te n ta tiv a s d e cria ç ã o
N o fin a l d a d é c a d a d e 1 9 7 0 e n o in íc io da d e 1 9 8 0 , a A m érica L atin a ex ­ de um a central ob reira e d e fed e r a ç õ e s reg io n a is. R e iv in d ic a v a -se a r eg u la ­
p erim en ta ria u m p r o c e ss o d e tr a n siç ã o para a d e m o c r a c ia , q u er p e la via re­ mentação da jo rn a d a d e tr a b a lh o , d e sc a n s o d o m in ic a l, leis so b r e a c id e n te s e
v o lu c io n á r ia , q u er d e m an eira p a c ífic a , c o n d u z id a e p a ctu a d a p e lo s p róp rios h igien e, trib u n a is a rb itra is, d ir e ito a p e n sõ e s . G rev e s e r e p r e ss ã o eram d e
m ilita res q u e tin h a m d o m in a d o p o r ta n to te m p o o c e n á r io p o lític o . grande m a g n itu d e, seg u id a s d e v io lê n c ia e d e c a m p a n h a s e leis c o n tr a o s c h a ­
mados agitad ores e stra n g eiro s.
Em 1 9 2 0 , foi fu n d a d o o P artid o C o m u n ista , q u e p reten d eu a u n ific a ç ã o
do m o vim en to sin d ica l. A Liga P atriótica A rgen tin a te n to u criar sin d ic a to s li­
2. ARGENTINA: TRABALHADORES URBANOS E PERONISMO vres e a A çã o C a tó lic a c o m e ç o u a o rien ta r o m o v im e n to sin d ic a l. L o g o , o s in ­
dicalism o a r g en tin o se fr a cio n o u em três cen trais e em s in d ic a to s a u tô n o m o s.
A in d e p e n d ê n c ia d o d o m ín io e sp a n h o l c o n s o lid o u o d o m ín io da r e g iã o por- Em 1 9 2 9 , c o m a d ete r io r a ç ã o da e c o n o m ia d o p aís, c o m cr ise , d e se m p r e g o e
te n h a , in term ed iá r ia en tre a s o u tr a s p r o v ín c ia s e o m e r c a d o in tern a cio n a l. greves, fo rm o u -se o C o m itê d e U n id a d e S in d ical C la ssista . A s lid eran ças sin ­
N o s sé c u lo s X IX e X X , a e c o n o m ia se d e se n v o lv e u em to r n o d a agricultura dicalistas e so c ia lista s fu n d a ra m a C o n fe d e r a ç ã o G eral d o s T r a b a lh a d o r e s

c erea lífera e da p ecu á ria b o v in a , esp e c ia lm e n te p ara o m e r c a d o eu ro p eu . O (C G T), q u e, em 1 9 3 5 -3 6 esta v a so b a d ireçã o d o s m ilita n te s c o m u n ista s . Sua

P am p a fo i a b e r to à p r o d u ç ã o e o s in d íg e n a s, e x te r m in a d o s. H o u v e m ecan i­ plataform a era lu ta p e lo d e se n v o lv im e n to d a in d ú stria n a c io n a l, n a c io n a liz a ­

z a ç ã o d a a g ricu ltu ra , e x te n s ã o d a rede ferro v iá ria , c r e sc im e n to d o s frigorífi­ ção das em p resas d e ca p ita l estran geiro; lu ta p elas lib e r d a d e s sin d ic a is e cu m -,

c o s e m o in h o s , en tra d a m a c iç a d e im ig ra n tes e u r o p e u s. U m g r a n d e flu x o im i­ prim ento da leg isla çã o trab alh ista; c o n s o lid a ç ã o d o regim e d e m o c r á tic o sem
g r a tó r io se d irigia para a c id a d e , a u m e n ta n d o o m e r c a d o u r b a n o , m a s a in­ abdicar d o s seu s p rin cíp io s d e reestru tu ração da so c ie d a d e .
d ú stria lev e so m e n te to m a r ia im p u lso d e p o is d e 1 9 3 0 . A crise d e 1 9 2 9 e a d e p r e ssã o m u n d ial tiveram r e fle x o s e c o n ô m ic o s e p o ­
A p ó s d éca d a s d e lu tas in tern as e e x te r n a s, d e c a u d ilh ism o s e ditaduras, líticos na A rgen tin a. A o lig a r q u ia c o n sp ir a v a c o m o s d is sid e n te s r a d ica is, q u e
c o n s o lid o u -s e o d o m ín io d e u m a o lig a rq u ia c o n se r v a d o r a (1 8 8 0 - 1 9 1 6 ) que denunciavam a in c lin a ç ã o d a U C R para a esq u erd a . S eto res lib e r a l-n a c io n a -
a fa sto u as m a ssa s da p o lític a , m a n te n d o -se n o p o d er graças a a c o r d o s p o líti­ listas d o ex é r c ito restau raram , em 1 9 3 0 , via g o lp e m ilitar, a p se u d o d e m o c r a -

c o s en tre o s p resid en tes e o s g r u p o s d o m in a n te s em c a d a p ro v ín cia . A d o m i­ Cla da aristocracia c o m ercia l e d o s p ro p rietá rio s d e terra, e sp e c ia lm e n te o s li­

n a ç ã o o lig á rq u ica foi c o n te sta d a p e lo ra d ica lism o , m o v im e n to q u e exp ressa­ gados a o cap ital estra n g eiro . T eve in íc io a “ d é c a d a in fa m e ” ( 1 9 3 2 - 4 2 ) . Em
va a p resen ça d e seto res m é d io s e d e tra b a lh a d o res u r b a n o s, d e d escen d en tes face da p ersp ectiv a d e v itó r ia d o s ra d ic a is, o s c o n s e r v a d o r e s s ó se m a n ti-

d e im ig ra n tes, d e seto res m argin ais d o s p rop rietários de terra. A U n iã o C ívica nham n o p o d er p ela frau d e e le ito r a l, p ela c o r r u p ç ã o g o v e r n a m e n ta l e d e i­
R a d ica l (U C R ) p erm an eceu n o p o d er d e 1 9 1 7 a 1 9 3 0 , c o m reform as peque­ xan d o o c a m p o livre para o ca p ita l estra n g eiro . O s rad icais reto m a ra m a ten -
n a s q u e d e ix a v a m in ta cta s a s b ases e c o n ô m ic a s d o p o d e r d o s co n serv a d o res. eneia in su rrecion al e a a b ste n ç ã o e leito ra l. P ersegu iu -se o s sin d ic a to s c o m u -
A U C R serviu c o m o freio a o s im p u lso s a scen d en tes d as m a ssa s, à m o b iliza çã o ? |stas e o m o v im e n to sin d ica l v o lto u a se cin d ir c o m a recria çã o da U n iã o
rural e à a tiv id a d e sin d ica l, c o m rep ressão v io le n ta e m a ssa cres (1 9 1 9 - 2 1 ). d*cal A rg en tin a , c o m a b an d eira da luta co n tra o fa sc ism o .
O s m ilitares se d iv id ira m . C rescia um a fa c ç ã o p r ó -fa sc ista n o e x é r c ito
O SÉCULO XX

q u e se in clin a v a p e lo a b a n d o n o d o caráter m o d e r a d o r e p ara u m n o v o tip 0


d e in te r v e n ç ã o c o m u m p rojeto n a c io n a l a ser im p le m e n ta d o p elas forças ar­
m adas: fez-se circu lar um a r tig o c la m a n d o p ela e lim in a ç ã o d o s p o lític o s. O
G rêm io d o s O fic ia is U n id o s (G O U ) m o b iliz a v a o fic ia is e o s o r g a n iz a v a em
várias g u a r n iç õ e s. Em 1 9 4 3 , te v e lugar o g o lp e m ilita r c o m caráter an tioli-
g á r q u ic o , a n tilib era l, a n tic o m u n is ta . D iss o lv e u e p ô s n a ileg a lid a d e o s parti­
d o s p o lític o s, im p ô s severas barreiras às a tiv id a d e s sin d ic a is. D e c r e to u inter­
v e n ç ã o n a s u n iv e r sid a d e s, a c e n su r a , a r e g u la m e n ta ç ã o e o fe c h a m e n to de
jorn ais e e m isso r a s d e rád io. R ep rim iu o s jorn ais ju d eu s e c o m u n ista s . Pro­
p u n h a u m p ro g ra m a d e m o d e r n iz a ç ã o in d u stria l, d e guerra e d e fe sa , e o lan ­
ç a m e n to d a s b a ses para a in d ú stria p esa d a c o m o p arte da c o n str u ç ã o d o p o ­
d erio da n a ç ã o .
A o p o s iç ã o d e n tr o d o e x é r c ito , da m arin h a e d o s g r u p o s d em o c r á tic o s
fo i elim in a d a pela b u sca d e a p o io p o p u la r e pela c o o p ta ç ã o d e se to r e s das
fo rça s arm a d a s através d e g a sto s m ilitares e r e o r g a n iz a ç ã o d o e x é r c ito . Em
o u tu b r o d e 1 9 4 3 , o c o r o n e l J u an D o m in g o P erón se c o lo c o u à fr e n te do
D e p a r ta m e n to d e T ra b a lh o e P rev id ên cia , e d a li p r o c u r o u o rg a n iza r o m o v i­
m e n to d o s tr a b a lh a d o r e s em b e n e fíc io d o p r o je to p o lític o d o se u g r u p o .
O fereceu p o sto s g o v e r n a m e n ta is a líd eres sin d ic a is, p r o m u lg o u 2 9 leis trab a­
lh ista s n o v a s , to m o u parte em 3 1 1 d isp u ta s, a r b it r a n d o l7 4 , c o n c e d e u au­
m e n to s sa la ria is e o 13° sa lá rio . A o m e sm o te m p o , p r o m o v e u a fo r m a ç ã o de
sin d ic a to s p a r a le lo s e a in te r v e n ç ã o na C G T , p ren d eu 4 8 líd eres sin d ica is e
p ersegu iu sin d ic a to s q u e se recu sa v a m a colab orar.
A lei d e a ss o c ia ç õ e s p r o fissio n a is r eco n h eceu a e x is tê n c ia legal d o s sin d i­
c a to s e o p r o c e ss o d e sin d ic a liz a ç ã o a u m e n to u . A C G T c h e g o u a 5 0 0 m il fi­
lia d o s em 1 9 4 5 , p a ssa n d o a 1 ,9 m ilh ã o em 1 9 4 9 e 2 ,3 m ilh õ e s em 1 9 5 4 . M as
so m e n te o s sin d ic a to s c o m situ a ç ã o legal p o d ia m p articip ar d a s n e g o c ia ç õ e s
c o le tiv a s. A s r e iv in d ic a ç õ e s d o s s in d ic a to s a r tic u la d o s a o p e r o n is m o eram
a te n d id a s, le v a n d o o s o u tr o s à d is so lu ç ã o . O s sin d ic a to s c u m p ria m a fu n ção
d e m e d ia ç ã o en tre o tr a b a lh a d o r e o p o d e r p ú b lic o . O g o v e r n o , p o r su a vez,
b u scava a p a r tic ip a ç ã o d o s o p e r á r io s c o m o c o n su m id o r e s e c o m o fo n te d e le­
g itim a ç ã o p o lític a . A s a tisfa ç ã o d a s r e iv in d ica çõ es d o s tr a b a lh a d o r e s c o in c i­
d ia c o m o p r o je to d e d e se n v o lv im e n to e c o n ô m ic o . A c r ia ç ã o d e u m a base
sin d ica l p rep arava P erón para u m a saíd a ele ito r a l em 1 9 4 6 , a p esa r da cres­
c e n te o p o s iç ã o d e se to r e s d e m o c r á tic o s.
A o fim da S egu n d a G uerra M u n d ia l a u m en ta v a a p ressã o para q u e o g o ­
vern o e x o n e r a sse P erón. Ela p artia d o s rad icais, c o m u n ista s , im p ren sa , em -

72
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

ários em g era l, p o lític o s c o n se r v a d o r e s, m a rin h a e se to r e s d o e x é r c ito ,


sindicatos, estu d a n te s. O s E sta d o s U n id o s a p o ia v a m a m o b iliz a ç ã o . O regi­
mento do C a m p o d e M a y o , c o m a p o io d a m a rin h a , e x ig iu a ren ú n cia d e P e­
rón que se d em itiu e foi p reso. N o m e io tra b a lh ista h o u v e in q u ie ta ç ã o pre-
«endo-se a o fe n siv a p a tro n a l co n tra a s c o n q u is ta s d o s tr a b a lh a d o r e s; o s o f i­
ciais do G O U tem eram p or seu d e stin o n o crescen te a n tim ilita r ism o . A C G T ,
encorajada p o r E va D u a r te P erón e p e lo c o r o n e l D o m in g o M e r c a n te , c o n v o ­
cou greve geral para 18 d e m a io . A p o líc ia foi p rep arad a p ara o e v e n to p e lo
coronel F ilo m e n o V e la sc o , p ero n ista . M a s, n o d ia 17 d e m a io , 2 0 0 m il tr a b a ­
lhadores m arch aram so b re B u en o s A ires e P erón fa lo u a o s d e sc a m isa d o s .
Perón se e le g e u c o m o seu ju stíc ia lism o : ju stiç a s o c ia l, in d e p e n d ê n c ia
econôm ica e s o b e r a n ia n a c io n a l, d is tr ib u tiv ism o , fo m e n to à in d ú str ia d o ­
méstica e p o lític a e x te r n a in d e p e n d e n te . Era u m a d o u tr in a d e h a r m o n ia e
bem-estar so c ia l, d e um g o v e r n o a cim a da luta d e c la s se s, p e n sa d a c o m o um a
alternativa en tre c a p ita lism o e c o m u n is m o , c o m o u m a filo s o fia so c ia l-c r istã .
Propunha a tr a n s fo r m a ç ã o d a s le a ld a d e s c o r p o r a tiv a s o u p a r tic u la r e s d e
classe, em um a fid elid a d e m a is a m p la , à N a ç ã o e a o s o b je tiv o s n a c io n a is.
D irig en tes sin d ic a is fu n d aram o P artid o L a b o rista , c o m b ase n a s a s s o c ia ­
ç õ e s p r o f is s io n a is . S eu p r e s id e n te er a L u ís G a y , líd e r d o S in d ic a t o d o s
T rab alh ad ores em E m p resas T e le fô n ic a s. P erón p r o c u r o u a m p lia r su a s b ases
d e a p o io n o s sin d ic a to s e tr a b a lh a d o r e s e n as m a ssa s u r b a n a s. O s sin d ic a to s
se tran sform aram em m e d ia d o r e s en tre o s tr a b a lh a d o r e s e o p o d e r p o lític o .
E stendeu as refo rm a s s o c ia is , a le g isla ç ã o tra b a lh ista e a u m e n to u o s b e n e fí­
cio s a o s sin d ic a to s . O s a ss u n to s tra b a lh ista s fica v a m a c a r g o d e E v ita , a ssim
c o m o o s in stru m en to s d e a ssistê n c ia so c ia l.
C o m o p arte d o p ro g ra m a red istrib u tiv ista e d e m a n u te n ç ã o d o s sa lá rio s
b a ix o s, ta x o u o s fa z e n d e ir o s e c o n c e d e u su b s íd io s para a lim e n to s . N a c io n a ­
lizou as em p resa s de ser v iç o p ú b lic o . C o m a s d iv isa s a c u m u la d a s d u ra n te a
guerra, e stim u lo u a in d u str ia liz a ç ã o . A p o io u a b u rgu esia in d u str ia l, c o n c e ­
d en d o -lh e c r é d ito s, tarifas a d e q u a d a s e c o n tr o le d o c â m b io , e a c e n a n d o c o m
a c o n te n ç ã o d o p r o le ta r ia d o . N o e n ta n to , a b u r g u e sia h e sita v a em a p o ia r
ab ertam en te o g o v e r n o . A reform a agrária p e rm a n eceu fo r a d o p rogram a.
N a s forças a rm a d a s, u sa v a -se a estra tég ia d e p reen ch er c o m se u s m em b ro s
a lto s p o s to s g o v e r n a m e n ta is e d e estim u la r o ca rr e ir ism o , p r o c u r a n d o d es-
P olitizá-las.
Perón p erm a n eceu n o p o d er d e 1 9 4 6 a 1 9 5 5 . E m p reen d eu forte centrali­
z a çã o d o a p a r e lh o d o E sta d o a o m e s m o te m p o q u e c o n s o lid o u o sindicalis­

73
O SÉCULO XX

m o a rg en tin o . M a s, a p ó s 1 9 4 9 , as m u d a n ça s n a s c o n d iç õ e s e c o n ô m ic a s co-
m eça ra m a afetar o reg im e e a estim u la r as te n s õ e s so c ia is. A s im p o rta çõ es
cresceram m u ito . A agricu ltu ra so fria d e c lín io e e sta g n a ç ã o , c o m as secas,
c o m a c o n c o r r ê n c ia a m erica n a , c o m a tra n sfo r m a ç ã o d a s terras em p astos e
c o m a e x p u ls ã o d o s arren d a tá rio s. Ela n ã o p o d ia m a is fin an ciar su p rim en to
d e b en s d e c o n s u m o in term ed iá r io e d e m a térias-p rim as. H o u v e a u m e n to da
d ív id a e da in fla ç ã o . A s reservas c a m b ia is se e sg o ta v a m e o d é fic it au m en ta­
v a . O n o v o p la n o q ü in q ü e n a l p ro cu ra v a o s in v e stim e n to s estra n g eiro s e a as­
s o c ia ç ã o c o m as m u ltin a c io n a is.
A o r ie n ta ç ã o e c o n ô m ic a m u d a ria para estim u la r a agricu ltu ra e as ex p o r­
ta ç õ e s , e para d im in u ir o d é fic it p ú b lic o e a in fla ç ã o . D im in u iu -se a ên fa se na
in d ú str ia , n o c o n s u m o in te r n o , n o s e to r u r b a n o e n o s tr a b a lh a d o r e s. T o­
m a ra m -se m ed id a s p ara reduzir o c o n s u m o , c o m c o n g e la m e n to d o s salários
e c o n tr o le so b re a o ferta d e a lim e n to s. C o m o r e su lta d o , a u m en taram o custo
d e v id a , o e m p o b r e c im e n to geral e sp ecia lm e n te n o c a m p o , a in sta b ilid a d e po­
lítica . M a s a p o lític a e c o n ô m ic a fa lh o u . A o p o s iç ã o a o g o v e r n o v in h a d e se­
to r e s a lto s e m é d io s, c o m te n ta tiv a d e g o lp e p o r p arte d e o fic ia is d a reserva.
O g o v e r n o en tro u em c o n flito c o m a Igreja. Em 1 9 5 2 m orria E vita, para se
tr a n sfo r m a r na sa n ta d o s d e sc a m isa d o s . O c o n tr o le d o s sin d ic a to s através
d o s m e c a n ism o s trab alh istas e a ssiste n c ia lista s d o p e r o n ism o c o m e ç a r ia a fa­
lhar: em 1 9 5 4 , u m a greve e sp o n tâ n e a m o b iliz o u o s m eta lú rg ic o s.
O g o v e r n o se to r n o u m ais d e m a g ó g ic o e rep ressivo: rep rim iu as greves,
su b m e te n d o o s g r e v ista s à lei m ilitar, e x p u r g o u a C G T e a s fo r ç a s arm adas.
P rocu rou silen cia r as crítica s a u m e n ta n d o a a b ra n g ên cia d o s crim es co n tra o
E sta d o . E x p r o p r io u o jorn al La Prensa. A o m e sm o te m p o a u m e n ta v a a pro­
p a g a n d a d o regim e. E m ju lh o d e 1 9 5 5 , o líder rad ical A rtu ro F ron d izi criti­
c o u a v io lê n c ia , a c o r r u p ç ã o e a p o lític a d o g o v e r n o , se n d o a p r isio n a d o . O
a p e lo d e P erón às m a ssa s, a p o ssib ilid a d e d e arm ar o s tr a b a lh a d o r e s e a im ­
p la n ta ç ã o d e m a is um e sta d o d e sítio m o b iliz o u o e x é r c ito . V á ria s g u a rn içõ es
re g io n a is se re v o lta r a m e P erón r e n u n c io u , r e fu g ia n d o -se em u m n a v io de
gu erra p a r a g u a io . O g en eral E d u ard o L on ard i to m o u p o ss e c o m o p resid en te
da ju n ta m ilitar.
D e p o is d e P eró n , a A rg en tin a n ã o c o n se g u iu en co n tra r a e sta b ilid a d e , al-
te m a n d o -s e p e r ío d o s d e g o lp e s e d ita d u ra s m ilita res. O s g o v e r n o s q u e se se­
gu ira m fizera m e sfo r ç o s para d estru ir o p e r o n is m o e a a tr a ç ã o q u e exercia
so b re as m a ssa s. E m e le iç õ e s liv res, o s p e r o n ista s p o d e r ía m o b te r v itó ria s. O
m o v im e n to sin d ic a l p e r o n is ta p er m a n e c e u c o m o e x p r e s s ã o o r g a n iz a d a d o

74
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

setor p o p u la r e m a n tev e-se na o p o s iç ã o . In ten sifico u -se a lu ta en tre m ilitares


o rg a n iza çõ e s p e r o n ista s, q u e c u lm in o u c o m o C o r d o b a z o d e 1 9 6 9 e 1 9 7 1 .
Como c o n se q ü ê n c ia , au m en taram o p r e d o m ín io e a in flu ê n c ia d o s m ilita res,
assim c o m o o a u to rita rism o . A v io lê n c ia se esten d ería c o m o e sta b e le c im e n ­
to da guerrilha e d e n o v o g o lp e m ilita r em 1 9 7 6 , q u e a b o liu a C G T . A p ó s o
fracasso da G uerra d a s M a lv in a s, c o m e ç a r ia o p r o c e sso d e tra n sferên cia d o
poder a o s civis.

3. A LUTA PELO SOCIALISMO: A REVOLUÇÃO CUBANA E A


NICARÁGUA SANDINISTA

D ep ois da guerra p ela in d ep en d ên cia em 1 8 9 8 , C u b a se to r n a r a um p a ís d e


faz-d e-con ta. O in te r v e n c io n ism o a m e r ic a n o na gu erra c o n tr a a E sp a n h a se
perpetuava n o sé c u lo X X , in s titu c io n a liz a d o p ela e m e n d a P la tt à c o n s titu i­
ção cu b an a. O e x é r c ito f o ra o r g a n iz a d o p e lo s E sta d o s U n id o s e c o n tr o la d o
através de n o m e a ç õ e s e p r o m o ç õ e s jp olíticas. O p resid en te e le ito em 1 9 0 8 era
funcionário d a C u b a n A m erica n C o . A p o lític a era m a rca d a p e la lu ta d e fa c­
çõ es das c la sses d o m in a n te s q u e a c a b a v a m em in te r v e n ç ã o d o s m arines.
A a sc e n sã o d e G era r d o M a c h a d o em 1 9 2 4 tr a n s fo r m o u a p o lític a em
gan gsterism o. Sua e le iç ã o foi fin a n cia d a p ela c o m p a n h ia d e e le tr ic id a d e , d e
propriedade a m erican a. A o p o s iç ã o v in h a d e u m p e q u e n o m o v im e n to o p e r á ­
rio p r ed o m in a n tem en te a n a rq u ista , n a in d ú stria d e ta b a c o e n a c o n str u ç ã o .
Em 1 9 2 5 , foi fu n d a d o o P artid o C o m u n ista . O s e stu d a n te s d a U n iv e r sid a d e
H avan a lid era v a m a o p o s iç ã o . U m a greve g e r a l o b r ig o u M a c h a d o a d e i­
xar C uba em 1 9 3 3 , su b s titu íd o p o r u m g o v e r n o p r o v is ó r io , d e p o s to lo g o d e ­
pois j>elos estu d a n te s, tra b a lh a d o res e so ld a d o s , q u e d e c r e to u o fim d a e m e n ­
da P latt, o d ireito a o v o to p ara a m u lh er, a jorn ad a d e 8 h o r a s d e tr a b a lh o , o
s^í áriqjn fn im o e o d ireito d o s c a m p o n e s e s à terra q u e c u ltiv a v a m . N a c io n a ­
lizou-se a c o m p a n h ia elétrica a m erica n a . O p e r ío d o fic o u c o n h e c id o c o m o
a revolu ção fru stra d a ” .
Em 15 d e jan eiro d e 1 9 3 4 , F u lg e n c io B atista, q u e c o m o sa r g e n to tin h a
Participado da reb eliã o c o n tr a M a c h a d o , d e p ô s o reg im e c o m o a p o io ame-
ticano e p e r m a n e c e u n o c o n tr o le p o lít ic o a té 1 9 5 9 . Em 1 9 4 0 , uma nova
instituição c o n c e d ia d ir e ito s in d iv id u a is e d o tra b a lh a d o r, p rev id ên cia so-
Clal e lim ita çã o d o la tifú n d io . B atista c o n ta v a c o m o a p o io d e a lg u n s líderes

75
O SÉCULO XX

c o m u n is ta s na fren te a n tifa sc ista . F u n d o u -se ta m b é m um a n o v a Confede.


r a ç ã o d o s T ra b a lh a d o res C u b a n o s. M a s a vid a p o lític a c a r a c te r iz o u -se pela ]
v io lê n c ia , c o r r u p ç ã o , n e p o tis m o e g a n gsrerism o. A o p o s iç ã o vin h a d o Par.
tid o d o P o v o C u b a n o (o r to d o x o ), q u e p reten d ia recu p erar o s id eais d a revo­
lu ç ã o frustrada d e 1 9 3 3 , c o m a p la ta fo rm a d e in d e p e n d ê n c ia e c o n ô m ic a , li.
b erd a d e p o lític a e g o v e r n o h o n e sto . A m e a ç a d o d e perd er o c o n tr o le d a s elei­
ç õ e s em 1 9 5 2 , um g o lp e c o lo c o u B atista n o v a m e n te n o poder.
A e c o n o m ia cu b a n a ca ra cteriza v a -se pela m o n o c u ltu r a da c a n a -d e-a çú ­
car, q u e d eslo c a r a as a tiv id a d e s d e su b sistê n c ia da p o p u la ç ã o rural. Era gran­
d e a c o n c e n tr a ç ã o da p r o p r ie d a d e e b o a p arte d a s terras e sta v a em m ã o s es­
tra n g eira s, e sp e c ia lm e n te a m erica n a s. O c o m é r c io era q u a se q u e ex c lu siv a ­
m en te c o m o s E sta d o s U n id o s. C o m a e v o lu ç ã o d a fa b r ic a ç ã o d o açúcar, as
centrales (u sin as) ca íra m s o b o c o n tr o le a m erica n o . O s c a m p o n e s e s p erd e­
ram as su a s terras p ara o s la tifu n d iá r io s, q u e d e p o is a s a lu garam a colonos,
q u e fo r n e c ia m c a n a para as centrales.
V in te cen trales d e tin h a m 1 /5 da área to ta l d e C u b a e as c o n d iç õ e s dos
tr a b a lh a d o r e s eram as p io res. O s sa lá rio s foram r e d u z id o s e o te m p o de d e­
s e m p r e g o e n tr e a s c o lh e it a s (te m p o m o r to ) e s t e n d e u -s e p o r q u a s e n o v e
m e se s, d u ra n te o s q u a is era g r a n d e a m iséria: as fa m ília s c h eg a ra m a se ali­
m e n ta r d e r a íz e s e m o r a r e m c a v e r n a s. O d o m ín io d o c a p ita l estr a n g e ir o
ta m b é m era m a rca n te n o ta b a c o , tra n sp o rte, en e r g ia , b a n c o s, se r v iç o s p ú b li­
c o s . A o m e s m o te m p o , o s in v e s tim e n to s em tu r ism o e c a s s in o s fa zia m de
H a v a n a a M o n te C a r io d o C a rib e, c o m a u m e n to d o jo g o , da p r o stitu iç ã o e
d o crim e.
N o s a n o s 4 0 e 5 0 , o c r e sc im e n to e c o n ô m ic o se a c e le r o u e C u b a se to rn o u
o m a io r p r o d u to r m u n d ia l d e açúcar, n u m m e r c a d o a çu ca reiro c o n tr o la d o
p o r g ra n d es e sp e c u la d o r e s. N o v o s in v e stim e n to s fo ra m fe ito s na m in era çã o
e n o tu r ism o . A u m e n ta v a a d e p e n d ê n c ia d o s E sta d o s U n id o s , e c o m o c o n ­
tr o le e c o n ô m ic o v in h a a d e p e n d ê n c ia cu ltu ra l. A d istr ib u iç ã o da renda se to r ­
n o u a in d a m a is d e sig u a l, c o m a lto nível d e d e se m p r e g o e m iséria p e lo trab a- .
lh o sa z o n a l, q u e em p u rrava o s m ig ra n tes rurais para a s v ila s m iserá v eis em
to r n o d a s cid a d e s. O s p r o te sto s e n c o n tr a v a m v io le n ta rep ressã o .
Em face d a s itu a ç ã o e c o n ô m ic a e so c ia l e d o fe c h a m e n to p o lític o d e p o is
d o g o lp e d e B a tista , a o p o s iç ã o se v o lto u p ara a a ç ã o a rm a d a . Em 2 6 d e ju lh o
d e 1 9 5 3 , o a d v o g a d o F idel C a str o , seu irm ã o R a u l, o jo v e m p ed reiro Juan
A lm e id a , a b ach arel M e lb a H e r n a n d e z , o e stu d a n te d e e c o n o m ia A b el San-
ta m a r ía , e su a irm ã H a y d é e e 1 2 5 o u tr o s a ta ca ra m o q u artel d e M o n c a d a ,

76
í „ l C A LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS
A M

B t ia g o d e C u h a ’ Para c o n t r o lá - lo e c o n s e g u ir a r m a s . D e r r o ta d o s
r i n n r p n á i r ã n * m n i t n ç fn r a r r
enl 1 a ssa ssin a d o s 6 5 d e le s d u ra n te a ca p tu ra o u r e n d iç ã o ; m u ito s foram
R f ^ t e to rtu ra d o s. A a u to d e fe sa d e Fidel c ir c u lo u m a is tard e c o m o
h
« a n fleto “ A H istó r ia m e A b so lv e r á ” . Por ele, re v e lo u -se um lib eral c o n stitu -
^ a l i s t a , c la m a n d o p or um g o v e r n o d e m o c r á tic o . L ib erta d o em 1 9 5 5 , e x i­
c
lou-se
1(
n o M é x ic o .
f j o M é x ic o , la n ç o u o M o v im e n to 2 6 d e Ju lh o . U m g r u p o tr e in o u -se e m
errilha para d esem b arcar em C u b a. N e le esta v a m o jovem m é d ic o a rg en ti­
v
no Ernesto G u e v a r a , C a m ilo C ie n fu e g o s e J o s é A n t o n io E c h e v e r r ía , d a
Federação d e E stu d an tes U n iversitários. A situ a ç ã o em C u b a já p arecia m a d u ­
ra para a revolu ção: a g ita ç ã o en tre o s trab alh ad ores u rb a n o s e raiva en tre o s
camponeses. Em 1 9 5 6 , o b arco G ranm a os le v o u , e m a is 81 p a tr io ta s, q u e fo ­
ram d escob ertos e a ta c a d o s. P rocuraram r efú g io em Sierra M a e str a . A li resis­
tiram e segu iram a estra tég ia d e abertura de c o lu n a s gu errilh eiras c e r c a n d o a
área.^ u a estratégia era m inar o m oral d as trop as d e B atista, c o m a ta q u es de
surpresa. L o g o d escob riram q u e n ecessita v a m d o a p o io d o s c a m p o n e s e s para
continuar a luta. O s reb eld es se to m a r a m em ca m p o n e se s e to m a r a m m ed id as
mais radicais, c o m o d istrib u içã o d as terras d o s p artid ários d o regim e.
O m o v im e n to n ã o se is o lo u na serra. O s g u errilh eiro s m a n tin h a m c o n ta ­
to co m b ases d e a p o io na c id a d e , para o b te r arm as, d in h e ir o e v o lu n tá r io s.
G rupos u rb a n o s rad icais se o r g a n iz a v a m e m a n tin h a m o g o v e r n o s o b p res­
sã o , co m a ta q u es e m a n ife sta ç õ e s se g u id o s d e v io le n ta re p r e ssã o . Em 1 9 5 8 ,
Batista la n ço u u m a g r a n d e o fe n s iv a e m Sierra M a e str a . S u a s tr o p a s foram
derrotad as, e seu c o m a n d a n te M a r io Q u e v e d o se ju n to u a o s g u errilh eiro s.
D u as c o lu n a s d e g u errilh eiro s lid era d a s p or G u evara e C ie n fu e g o s fo ra m e n ­
viadas à c a p ita l. C a stro seg u iu para S a n tia g o . T ro p a s d o e x é r c ito se recu sa ­
vam a lutar. B a tista fu g iu p ara a R e p ú b lic a D o m in ic a n a , le v a n d o c o n s ig o
avultada so m a em d ó la res.
O a p o io d o s c a m p o n e s e s in flu e n c io u nas a ç õ e s d o g o v e r n o r e v o lu c io n á ­
rio. O n o v o reg im e p r o m u lg o u d e im e d ia to u m a lei d e refo rm a agrária em
m aio d e 1 9 5 9 , q u e tr a n sfo r m o u o ag ro c u b a n o . C o m o m a io r e s p ro p rietá rio s
d ó s o lo c u b a n o , a lei a fe to u tr e m e n d a m e n te o s in te r e sse s a m e r ic a n o s. A s
p la n ta çõ es, as g ra n d es fa zen d a s e as p ro p ried a d es m a io r e s fo r a m e x p ro p ria -
das: lim ito u -se o ta m a n h o da p rop ried a d e e o s c a m p o n e s e s receb eram terras.
A s p la n ta ç õ e s d e açú ca r fo r a m , d e in íc io , tr a b a lh a d a s c o m o c o o p e r a tiv a s,
co m seu s m em b ro s r e c e b e n d o sa lá rio s e p a rticip a n d o d o s lu cro s. C o m o isso
d ivid ia o c a m p e s in a to , m ais tard e se tra n sfo rm a ra m em fa z e n d a s e sta ta is o u

77
O SÉCULO XX

p r o p r ie d a d e s d o p o v o . R a d ic a liz a n d o a in d a m a is , to d a s a s p r o p r ie d a d e s
a c im a d e 6 7 h ecta res foram ta m b é m n a c io n a liz a d a s e o s p e q u e n o s a g r ic u lto ­
res fo r a m o r g a n iz a d o s n a A s s o c ia ç ã o N a c io n a l d e P eq u en o s A g ricu lto res.
D e 1 9 5 9 a 1 9 6 3 , a e c o n o m ia fo i ca d a v ez m a is c o le tiv iz a d a e c o n tr o la d a
p e lo E s ta d o . E m 1 9 6 0 , a s e m p r e s a s e s tr a n g e ir a s fo r a m n a c io n a liz a d a s .
P r o stíb u lo s e c a ss in o s fo ra m fe c h a d o s , c o m g ra n d e c a m p a n h a p ara reab ilitar
a s p r o stitu ta s. P raias, h o té is e c lu b e s foram a b erto s a to d a a p o p u la ç ã o . A re­
fo r m a u r b a n a d im in u iu o s a lu g u é is e p r o ib iu a e s p e c u la ç ã o im o b iliá r ia .
P ro cu ro u -se lim itar a d e p e n d ê n c ia d o açú car e d o s E sta d o s U n id o s, d iv ersifi­
car a p r o d u ç ã o a g r íc o la e d e se n v o lv e r a in d ú stria . C e n tr a liz o u -se o p lan eja­
m e n to e c o n ô m ic o na Ju n ta C en tral d e P la n ific a ç ã o . H o u v e d ific u ld a d e s na
p r o d u ç ã o a g ríco la e in d u stria l, e o sistem a e c o n ô m ic o fo i r e o r g a n iz a d o em
1 9 7 0 , a fr o u x a n d o u m p o u c o o c o n tr o le d o E sta d o so b r e a e c o n o m ia a té ch e­
gar a u m a certa e x p a n s ã o n o s a n o s 8 0 .
U m a d a s b elas in ic ia tiv a s da r e v o lu ç ã o fo i a c a m p a n h a d e a lfa b e tiz a ç ã o ,
o n d e jo v e n s fo rm a ra m b rigad as e se e sp a lh a ra m p e lo p a ís , v iv e n d o c o m o
p o v o e e n sin a n d o -o a ler. J u n to c o m as letras se p ro cu ra v a d esp ertar a c o n s ­
c iê n c ia p o lític a e criar n o v o s c id a d ã o s d e u m a n o v a so c ie d a d e . U m d o s pri­
m eiro s a to s d a r e v o lu ç ã o fo i e x p a n d ir e m elh o ra r as e sc o la s p ú b lica s. A s e s­
c o la s p a rticu la res fo r a m p riv a tiza d a s. A s u n iv ersid a d es fo ra m reo rg a n iz a d a s,
p ara um e n sin o m a is té c n ic o e p r o fissio n a l. N o c a m p o d a sa ú d e , tev e-se de
p r a tic a m e n te c o m e ç a r d o zero: m e ta d e d o s m é d ic o s tin h a d e ix a d o o p a ís.
M a s e sta b e le c e u -se u m siste m a d e sa ú d e esta ta l d is p o n ív e l p ara to d o s o s c i­
d a d ã o s , d e q u a lid a d e e e fic iê n c ia r e c o n h e c id a s in te r n a c io n a lm e n te . C u b a
to r n o u -se u m c e n tr o m é d ic o d e referên cia m u n d ia l.
A o entrar em H a v a n a , F idel C a stro d escrev ia se u p ro g ra m a c o m o d e m o ­
cracia h u m a n ista so b r e a b ase d e lib erd ad e p ara to d o s . E stava d ete r m in a d o
a d ivid ir o p o d e r c o m o u tr o s g r u p o s. A re v o lu ç ã o n a c io n a lis ta , p o r é m , se in ­
c lin a v a para o m a r x ism o -le n in ism o . A d ireçã o c o u b e a C a stro e se u s c o m a n ­
d a n te s d e Sierra M a e str a , F id el c o m o p rim eiro -m in istro em 1 9 5 9 . A lia d o s de
B atista e c o n tr a -r e v o lu c io n á r io s fo r a m p reso s e e x e c u ta d o s . E lem en to s m o ­
d e r a d o s fo ra m a fa sta d o s d o g o v e r n o . Em 1 9 6 3 , fo i c r ia d o o P a rtid o U n id o
d a R e v o lu ç ã o S o c ia lista , su b s titu íd o em 1 9 6 5 p e lo n o v o P artid o C o m u n ista
C u b a n o , c u jo C o m itê C en tral era d e com an dan tes fid e lista s. O r g a n iz a ç õ e s
d e m a ssa m o b iliz a v a m v á r io s se to r e s d a p o p u la ç ã o : em 1 9 6 0 fo i cr ia d a a
F ed era çã o d a s M u lh e r e s C u b a n a s, para aju d á-las a p a rticip a r p le n a m e n te da
v id a e c o n ô m ic a , p o lític a e so c ia l d o país.

78
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

A estrutura d o p a r tid o se p a u ta v a p e lo ce n tr a lism o d e m o c r á tic o e en fa ti-


a a m o r a lid a d e c o m u n ista , a c r ia ç ã o d e um n o v o h o m e m , ca r a c te r iz a d o
nelo coletivismo, sa c r ifíc io p e ss o a l, a m o r a o tr a b a lh o e ó d io a o p a r a sitism o
e à exploração. A n o v a C o n stitu iç ã o , em b o r a o p ta s se p e lo p r e sid e n c ia lism o ,
seguia o s m o d e lo s d o L este e u r o p e u . F oram e sta b e le c id a s A s s e m b lé ia s d o
poder P op u lar (m u n ic ip a is, p r o v in c ia is e n a c io n a is), c o m r e p resen ta n tes e le i­
tos para a p resen tar e d e fe n d e r o s d esejo s e o p in iõ e s d o s se u s c o n stitu in te s.
Logo co m e ç a r a m as p ressõ es d o s a m e r ic a n o s, q u e te m ia m o e sta b e le c i­
mento de um E sta d o c o m u n ista em seu q u in ta l. O s E sta d o s U n id o s a p o ia r a m
a c o n tr a -r e v o lu ç ã o . C u b a fo i b o m b a r d e a d a p o r a v iõ e s q u e d e c o la v a m d a
Flórida. N a v io s e r a m s a b o ta d o s e m p o r to s c u b a n o s . C o r ta r a m o fo r n e c i­
mento de p e tr ó le o e a S tan d ard O il e a S h ell se re c u sa v a m a refin ar o p e tr ó ­
leo im p o rta d o da U n iã o S o v iética . A s c o ta s d e açú ca r fo r a m red u zid a s e as
exportações p ara C u b a su sp e n sa s, c o m sério s p reju ízo s p ara a estru tu ra p ro ­
dutiva. C u b a fo i e x p u ls a d a O r g a n iz a ç ã o d o s E sta d o s A m e r ic a n o s (O E A ).
Aumentava a su a a p r o x im a ç ã o c o m o b lo c o so c ia lista , m a s se m n e g a r seu d e ­
sejo de n e g o c ia r c o m o s E sta d o s U n id o s.
Em 1 9 6 1 , Fidel d eclarou q u e a rev o lu çã o era so cia lista . N o m e sm o a n o ,
em abril, a A gên cia C en tral d e In fo rm a çõ es (CIA) o r g a n iz o u u m a força in v a ­
sora q ue d esem b arcou na baía d o s P orcos. V ários a ten ta d o s fo ra m feito s à vid a
de Fidel C astro. O regim e c u b a n o se prepararia para en fren tar a c o n tra -rev o ­
lução, cria n d o C o m itês para a D e fe sa da R e v o lu ç ã o em ca d a b airro. C u b a c o n ­
tinuaria a m anter sua lo n g a luta d e resistência a o im p eria lism o , su a verdadeira
e x is tê n c ia , s e g u in d o c o m o m o d e lo p ara o s p o v o s o p r im id o s d a A m é r ic a
Latina, c o n ta n d o c o m a so lid aried ad e in tern acion al. N o e n ta n to , o b lo q u e io
am ericano p erd u rou e estes se recusaram a a b a n d o n a r a b ase d e G u a n tá n a m o ,
con tin u an d o a cam p a n h a d e sa b o ta g em e su b v ersã o , c o m a te le v isã o e o rád io
en vian d o m en sa g en s an ti-rev o lu cio n á ria s a partir d a F lórid a. A lu ta c u b a n a
con tin u ava para a lib eração d as cad eias d o su b d e se n v o lv im e n to .
O m o d e lo c u b a n o viria a in flu en cia r as tá tica s d e r e v o lu ç ã o n a A m érica
Latina. O c a m p o n ê s p a ss o u a ser v is to c o m o c la s se r e v o lu c io n á r ia . N ã o se
precisava esp erar q u e a s c o n d iç õ e s e stiv e sse m m a d u ra s p ara c o m e ç a r a rev o -
lu ç ã o , p o is a in s u r r e iç ã o m e s m o c r ia r ia e s s a s c o n d iç õ e s . S e r ia m c r ia d o s
fo c o s, g r u p o s m ó v e is d e g u errilh eiro s p ara d ifu sã o e e x te n s ã o d a luta r e v o lu ­
cion ária. A cred ita v a -se na c a p a c id a d e d e u m a v a n g u a rd a r e v o lu c io n á r ia em
M obilizar e levar a o tr iu n fo a r e v o lu ç ã o . N e s s a A m érica su b d e s e n v o lv id a , o
ca m p o fo rm a v a a área b ásica p ara a lu ta arm ada: p ara C h e G u ev a ra , o c a m ­

79
O SÉCULO XX

p o lid eraria a c id a d e . E ssas d iretrizes estiv era m p resen tes n a s lu ta s gu errilh ei­
ras d a B o lív ia , Peru e N ic a r á g u a .
C o m o C u b a , a N ic a r á g u a ta m b é m era u m a z o n a d e n tr o d a g e o p o lític a
d o s E sta d o s U n id o s. A p rim eira in te r v e n ç ã o a rm ad a d ireta a m erica n a veio
em 1 8 5 5 e a o c u p a ç ã o m ilita r d u ro u d e 1 9 1 2 a 1 9 2 5 e d e 1 9 2 6 a 1 9 3 3 , pri­
m eiro se in c lin a n d o para o se to r q u e ju lgava m ais c o n fiá v e l, o s c o n se r v a d o ­
res e , n o fin a l, p r o m o v e n d o u m a c o r d o c o m o s lib erais. D e ssa m a n eira , as
lu tas p o lític a s e a s reb e liõ e s p o p u la r e s in tern as eram m a rca d a s p e lo n a c io n a ­
lis m o , c o n tr a o d o m ín io e o c o n tr o le a m e r ic a n o e p ela lib e r a ç ã o n a c io n a l.
O c a fé fo i in tr o d u z id o em 1 8 5 0 e já em 1 8 9 0 era o p rin cip a l ra m o d e e x ­
p o r ta ç ã o . O c u ltiv o d o c a fé fo i e stim u la d o a tra v és d e p r ê m io s, su b s íd io s , pu­
b lic a ç õ e s té c n ic a s, c o n c e s s õ e s d e terras, c o n str u ç ã o d e te lé g r a fo s e ferrovias,
e n c o r a ja m e n to d o siste m a d e c r é d ito para fin a n cia r a p r o d u ç ã o . C o n stru iu -
se to d o u m sistem a para ga ra n tir o fo r n e c im e n to d e m ã o -d e -o b r a : recruta­
m e n to fo r ç a d o d o s in d íg e n a s e m e stiç o s através d e leis so b r e v a g a b u n d a g e m ,
ta x a s d e tr a b a lh o , e n d iv id a m e n to d o p e ã o n o s a rm a zén s d o p ro p rietá rio e
p r o ib iç ã o d e cu ltiv a r p r o d u to s b á sic o s d e su b sistê n c ia . T u d o era p ara forçar
o tr a b a lh o n o la tifú n d io .
A s c o n se q u ê n c ia s d a e x p a n s ã o d o c a fé fo i a p erd a d a s terras p e la s c o m u ­
n id a d e s in d íg e n a s e p e lo s c u ltiv a d o r e s d e p r o d u to s d e su b s istê n c ia . H a v ia
m iséria en tre o s p e r ío d o s d e c o lh e ita , r e b e liõ e s, fu g a para a s c id a d e s , m o n ta ­
n h a s d o n o r te e p ara a flo r e sta a tlâ n tic a . A d iv e r s ific a ç ã o a p ó s a S egu n d a
G u erra M u n d ia l in clu iu a lg o d ã o , açúcar, b a n a n a , m a d eira , ca r n e e o u r o , mas
a p r o fu n d o u o d e sp o ja m e n to d o s c a m p o n e s e s. O c o n tr o le d a s e x p o r ta ç õ e s e
d o c r é d ito p e r m a n e c ia em m ã o s d e in v e s tid o r e s e str a n g e ir o s a s s o c ia d o s à
elite local.
A d ita d u ra d a fa m ília S o m o z a c o m e ç o u a se g esta r q u a n d o o s E stad os
U n id o s p a tro cin a ra m a cr ia ç ã o d a G u ard a N a c io n a l d a N ic a r á g u a . Q u a n d o
sa íra m , o c o m a n d o da G u ard a p a sso u para A n a sta sio S o m o z a G a rcia , filho
d e u m ca feicu lto r, e d u c a d o n o s E sta d o s U n id o s. D e p o is d e p r o m o v e r o a ssa s­
sin a to d e A u g u sto C ésa r S a n d in o , líder lib eral d a gu errilh a c o n tr a a o c u p a ­
ç ã o a m e r ic a n a , S o m o z a c o n s o lid o u seu c o n tr o le : e x p u ls o u o fic ia is c o n c o r - _
ren tes, p erm itiu a m a ta n ç a d e c e n te n a s d e h o m e n s , m u lh eres e cria n ç a s na
área d e stin a d a a o s a n tig o s g u errilh eiro s; p erm itiu a o s m ilita res to d a so r te de
c o r r u p ç ã o , e x to r s ã o e e x p lo r a ç ã o d o jo g o , p r o stitu iç ã o e c o n tr a b a n d o . Isto
is o lo u as fo rça s a rm ad as d o p o v o , to r n a n d o -a s u m a m áfia d e u n ifo r m e , de­
p en d e n te s d o líder.

80
A M É R I C A LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

Em 1 9 3 6 , S o m o z a d e p ô s o p resid en te e p r o m o v e u n o v a s e le iç õ e s em q u e
f0 i o venced or. O regim e c u ltiv a v a o a p o io d o s E sta d o s U n id o s , p e r m itin d o
q estabelecimento~dê b a ses m ilitares e o u so d o p aís c o m o c a m p o d e tr e in a ­
m ento d o s o p o sito r e s d o p resid en te da G u a tem a la p e la C IA , e n v ia n d o s o ld a ­
dos para a G uerra da C oréia. A ssa ssin a d o em 1 9 5 6 , fo i su b s titu íd o p o r seu s
filh os e d u c a d o s e m W est P oin t: L u is, na P r e sid ê n c ia , e A n a s ta s io S o m o z a
Debayle, no c o m a n d o d a G u ard a N a c io n a l, q u e a ssu m iría ta m b é m a P resi­
dência em 1 9 7 2 .
A fam ília S o m o z a c o n tr o lo u b oa p arte da riq u eza da n a ç ã o , e x p lo r o u o
govern o para seu g a n h o p e sso a l, receb eu c o m issõ e s p o r c o n c e s s õ e s d e terras
e m in as e a u m e n to u o s la ço s c o m b a n c o s e in v estid o res a m e r ic a n o s. N o ter­
rem oto d e 1 9 7 2 , q u e arrasou M a n á g u a , p erm itiu q u e a G u a rd a N a c io n a l se
a p o ssa sse d o m a teria l v in d o d a a ju d a in te r n a c io n a l e o v e n d e s s e , q u e s a ­
queasse o se to r c o m ercia l da cid a d e e ain d a c a n a liz o u o s recu rso s d o s fu n d o s
intern acion ais d e ajuda para seu s p ró p rio s b o ls o s. O s recu rsos para a r e c o n s­
tr u ç ã o d e M a n á g u a fin a n c ia r a m m a n s õ e s p a r a o s o f i c ia i s d a G u a r d a
N a cio n a l.
A in sa tisfa ç ã o p o p u la r c o m e ç o u a se m a n ifesta r m ais a b e r ta m e n te c o n ­
tra o g o v e r n o a o m e sm o te m p o q u e p arte da elite e c o n ô m ic a p rin cip ia v a a
negar a p o io à d ita d u ra . A e c o n o m ia d a N ic a r á g u a era d o m in a d a p o r três
grupos: o Ba n c o N ic a r a g ü e n s e , d e p r o p a e tá r io s lib e r a is e d o a lg o d ã o ; o
Çanco d e A m érica, da olig a rq u ia c o n se r v a d o r a , d e em p resa s c o m e r c ia is , da
esp ecu lação im ob iliária e d a c o n str u ç ã o ; e a fa m ília S o m o z a e se u s c o la b o r a ­
dores m a is p r ó x im o s, q u e u ltra p a ssa v a e c o n c o r r ia c o m o s d o is p rim eiro s e
am eaçava a su a e sta b ilid a d e . D e p o is d e 1 9 7 2 , a lém d a s g rev es e d e m o n s tr a ­
ções, joven s da elite co m e ç a r a m a se juntar à Frente S a n d in ista d e L ib erta çã o
N a cio n a l (F SL N ) e se to r e s em p resariais c o m e ç a r a m a aju d ar fin a n c e ir a m e n ­
te o m o v im e n to . A r e p r e s s ã o , o s m a s s a c r e s e m p r e e n d id o s p e la G u a r d a
N a cio n a l co n tra o s c a m p o n e s e s e su a s v io la ç õ e s d o s d ir e ito s h u m a n o s foram
d en u n ciad os p ela Igreja C a tó lic a e in v e stig a d o s p ela A n istia In tern a cio n a l. O
tegim e e n c o n tr o u a in d a a p r e ss ã o d e J im m y C arter, e le ito p r e sid e n te d o s
Estados U n id o s em 1 9 7 7 .
Em 1 9 6 1 , fo i c ria d a n o ex te r io r , p o r C a r lo s F o n se c a A m a d o r, C a r lo s
Borge e S ilvio M a y o r g a , a F S L N , q u e se e n g a jo u n u m a lu ta d e d e z o ito a n o s
c°n tra o s S o m o z a e sua G u ard a N a c io n a l. T eve o rig em n o s m o v im e n to s e s­
tudantis d e 1 9 4 4 - 1 9 4 8 e 1 9 5 9 - 1 9 6 1 . O s n o v o s g u e r r ilh e ir o s rou b aram al-
8uns b a n c o s e fu giram para H o n d u r a s, d e o n d e co m e ç a r a m a lu ta . D e p o is d o

81
a s s a s s in a to d e S a n d in o , o s sa n d in ista s o r ig in a is tin h a m c o n tin u a d o a ]uta
c o n tr a S o m o z a e fo ra m e lim in a d o s, m a s um d e le s , o v e lh o S a n to s L o p ez, en . I
s in o u a o s g u errilh eiro s da F SL N a arte d e so b rev iv er n as selv a s e as táticas e 1
e str a té g ia s d a gu erra d e g u errilh a s. D e 1 9 6 1 a 1 9 6 3 , a s fo rça s san d in istas
p erm a n ecera m p e q u e n a s e so frera m várias d erro ta s. D e p o is so lid ific a r a m o
a p o io rural e u r b a n o , c o m o s c a m p o n e s e s d o n o rte e o s e stu d a n te s da Frente
R e v o lu c io n á r ia E stu d a n til. A o fe n siv a de 1 9 6 6 -6 7 in c lu iu a ss a lto s a b ancos
e o ju s tiç a m e n to d e um to r tu r a d o r da G u ard a N a c io n a l.
A estra tég ia era criar fo c o s r e v o lu c io n á r io s p o r to d o o p a ís, para atrair o
p o v o à lu ta , e p rocu rar a lia n ç a c o m c a m p o n e se s e o p e r á r io s p ara estab elecer
c o n d iç õ e s d e u m a G uerra P o p u la r P ro lo n g a d a . A b ru ta lid a d e d a repressão
a u m e n ta v a o a p o io c a m p o n ê s a o s sa n d in ista s. Em 1 9 7 4 , c o n se g u ir a m uma
g r a n d e v itó ria a o in vad ir a festa em h o m e n a g e m a o e m b a ix a d o r a m erican o
T urner B. S h e lto n e to m a r o s im p o rta n tes c o n v id a d o s c o m o refén s. Em troca
e x ig ir a m , e c o n se g u ir a m , a lib e r ta ç ã o d e p r isio n e ir o s sa n d in ista s, u m a gran­
d e q u a n tia em d in h e ir o e a tr a n s m is s ã o p e lo s m e io s d e c o m u n ic a ç ã o das
m e n sa g e n s d o s g u errilh eiro s a o p o v o da N ic a r á g u a .
A o p o s iç ã o p o p u la r a o regim e a u m en to u ra p id a m en te, em 1 9 7 8 , a p ó s o
a ssa ssin a to d e P ed ro J o a q u ín C h a m o rro , líder da U n iã o D em o crá tica d e Li­
b ertação e p rop rietário d o jorn al La Prensa. A o p o siç ã o in clu ía co n servad ores
e liberais d issid en tes; a ss o c ia ç õ e s d e em p resários p rogressistas; org a n iza çõ e s
e stu d a n tis e d e tr a b a lh a d o r e s; p a r tid o s c r istã o s e m o v im e n to s e v a n g é lic o s.
A lg u n s d eles se a p ro x im a ra m da F SL N , m as o u tr o s procu raram ajuda am eri­
ca n a para u m a altern ativa n ã o -a rm a d a a S om oza: p reten d iam tirar S o m o za e
m an ter a G uarda N a c io n a l c o m o garan tid ora de um regim e e c o n ô m ic o , p o lí­
tic o e so c ia l m ais d e m o c r á tic o , ab erto para o restan te da elite. O te m o r d e que
a N ic a r á g u a se to rn a sse um a n o v a C u b a fez c o m q u e a O E A p rocu rasse um
a c o r d o en tre S o m o z a e g ru p o s d e p o lític o s tra d ic io n a is, sem su c e sso .
A F S L N d iv id iu -se em três fa c ç õ e s. O s p r o le tá r io s, s a íd o s da fren te urba­
na em 1 9 7 5 , p r o c u r a v a m a m p lia r o m o v im e n to d e m a ssa o r g a n iz a n d o o s
o p e r á r io s n a s f á b r ic a s , n a s p e r ife r ia s d a s c id a d e s . A fa c ç ã o d a G u e r r a
P o p u la r P ro lo n g a d a v in h a d a F S L N o rig in a l e p referia c o n tin u a r c o m a a n ti­
g a fo r m a d e lu ta , d e g u errilh a rural e s p e c ia lm e n te n o N o r te , a c u m u la n d o
fo rça s. O s terceirista s o u in su rg en tes se a fa sta ra m d a o r to d o x ia m a rx ista -le-
n in ista , p r o p u n h a m a u n iã o d e to d a s as o p o s iç õ e s em u m a fren te a m p la e
c o n c la m a v a m o p o v o p ara a in su rreiçã o rural e u rb a n a . N e le s se in clu íam
D a n ie l e H u m b e r to O rtega Saaved ra e V icto r T ira d o L o p ez. O r á p id o cresci-

82
A N I Ê R |CA L A T I N A : DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

da oposição a o s S o m o z a e as reb eliõ es e sp o n tâ n e a s em várias c id a d e s


M e d i r a m q u e a d iv isã o se a p r o fu n d a sse .
ag OSto d e 1 9 7 8 o C o m a n d a n te Z e r o (E den P astora) to m o u o P a lá cio
. 1 fa z e n d o cerca d e 2 m il refén s, a ç ã o q u e tev e g r a n d e rep ercu ssã o
^ dial e d e sm o r a liz o u a G u ard a N a c io n a l. Foi c o n v o c a d a u m a grev e geral
°começou a in su rreiçã o a rm ad a n a c io n a l. N o p r in c íp io d e 1 9 7 9 , a F S L N
f Cçou uma o fe n siv a n o N o r te e n o O e ste d o p aís. A o fe n s iv a fin al v e io em
•^ho-julho d e 1 9 7 9 e S o m o z a fugiu d o p aís. A Ju n ta d e R e c o n str u ç ã o N a ­
cional, unindo to d a s a s o p o s i ç õ e s e o r g a n iz a ç õ e s p o p u la r e s , e n tr o u em
Manágua, c o m v ista s a o rg a n iza r o p ais.
O programa d e g o v e r n o tin h a sid o e sta b e le c id o em P u n ta A ren a s, C o sta
Rica. Prometia criar um sistem a d e m o c r á tic o e c o n v o c a r e le iç õ e s. M a s o c o n ­
ceito de d em o cra cia d o s sa n d in ista s era m a is a m p lo: e n v o lv ia o m e lh o r a m e n ­
to das condições d e v id a da p o p u la ç ã o e a a m p lia ç ã o da p a r tic ip a ç ã o p o líti­
ca. A reconstrução se a sso c ia v a à tra n sfo r m a ç ã o d a s estru tu ra s p o lític a s e s o ­
ciais em b e n e fíc io d o s e x c lu íd o s d o s o m o z is m o . O p o d e r era d iv id id o en tre a
democracia b u rgu esa e a p op u lar, c o m p r e d o m ín io d o s sa n d in ista s.
O g o v e r n o q u e se in sta lo u era h e te r o g ê n e o , r e fle tin d o a a lia n ç a m u lti-
classiita daT uta c o n tr a S o m o z a . M a s a d ir e ç ã o c o u b e a o s n o v e m e m b r o s d i­
retores d a F S L N , m a is p o p u la r e o rg a n iz a d a . A n u n c io u -s e a cr ia ç ã o d e u m a
“N o v a N ic a r á g u a ” . A s lib erd a d es civ is e p o lític a s fo r a m r e sp e ita d a s, m e s m o
para o s c r im in o so s d e gu erra e o s cú m p lic e s d e S o m o z a . A p en a d e m o r te foi
abolida. A lib erd a d e d e im p ren sa fo i resta b elecid a , e o s jo r n a is d e o p o s iç ã o ,
co m o o n o v o L a Prensa, fo ra m livres para criticar a r e v o lu ç ã o e m a n ifesta r
as p reo cu p a çõ es da e lite e c o n ô m ic a . N o v o s p e q u e n o s p a r tid o s rep resen ta n -
d o 'ê s sã ln in o r ia n ã o -sa n d in ista ta m b é m c o n tin u a r a m fu n c io n a n d o . A p o líti­
ca extern a era b a sea d a na a u to d e te r m in a ç ã o e n o n ã o -a lin h a m e n to .
Em m a io d e 1 9 8 0 , foi c r ia d o e a m p lia d o o C o n s e lh o d e E sta d o , c o m p o s ­
to d e rep resen tan tes d o s d iv e r so s g r u p o s so c ia is e d a s o r g a n iz a ç õ e s p o p u la ­
res ligadas a o s sa n d in ista s. M ilh a res d e c id a d ã o s se m o b iliz a v a m n e ssa s o r­
gan iza çõ es, q u e d a v a m a o p o v o a o p o r tu n id a d e d e p articip ar, e tra b a lh a v a m
volu n tariam en te em p ro jeto s g o v e r n a m e n ta is. A s fo r ç a s a rm a d a s sa n d in ista s
incluíam o e x é r c ito , as m ilícia s p o p u la r e s e o C o m itê d e D e fe s a Sandin ista:
elas se o r ien ta v a m p o litic a m e n te para p ro teg er o siste m a r e v o lu c io n á r io p o r ­
q ue um a b o a p arte d a G u ard a N a c io n a l p erm a n ecia em H o n d u r a s e R o n a ld
R ea g a n , e m su a c a m p a n h a , la m e n ta v a o g o lp e m a r x is t a - le n in is t a n a
N ica rá g u a . A s e le iç õ e s fo ra m c o n v o c a d a s para 1 9 8 5 , q u a n d o o p ro jeto e

83

k
O SÉCULO XX

r e c o n str u ç ã o e stiv e sse m a is a v a n ç a d o . O s p e q u e n o s p a r tid o s d e e lite protes­


taram c o n tr a essa s m e d id a s, q u e q u a lifica v a m d e tr a iç ã o a o s p rin cíp io s de
P u n ta A ren as.
O g o v e r n o c o n fis c o u as p ro p ried a d es d a fa m ília S o m o z a e se u s a ssocia­
d o s , n a c io n a liz o u b a n c o s e seg u ra d o ra s. E m p resas p rivad as h o n e sta s e efi­
c ie n te s, a ssim c o m o g ra n d es p ro p ried a d es rurais, p u d eram c o n tin u a r sendo
e x p lo r a d a s. F oram c o n c e d id o s em p r é stim o s para q u e as em p resa s agrícolas
e in d u stria is p u d e sse m se recuperar. P ro cu ro u -se a m p lia r o n ú m ero d e clien­
te s para o s p r o d u to s d a N ic a r á g u a , in c lu in d o n a ç õ e s n ã o -a lin h a d a s e socia­
listas. A s e x p o r ta ç õ e s eram fe ita s através d e o r g a n iz a ç õ e s g o v ern am en tais.
N a s te r r a s c o n f i s c a d a s , fo r a m in s ta la d a s C o o p e r a t iv a s d e P r o d u ç ã o e
U n id a d e s d e P r o d u ç ã o E statal. E sta b elecera m -se im p o sto s so b r e a renda e a
p r o p r ie d a d e . O p r o g r a m a s o c ia l in c lu ía le is d e p r o te ç ã o a o tra b a lh a d o r,
o b r a s p ú b lic a s, c a m p a n h a s d e a lfa b e tiz a ç ã o , d e v a c in a ç ã o , d e c r ia ç ã o de
a g e n te s d e sa ú d e , ta b e la m e n to d o s a lu g u éis refo rm a agrária c o m o objetivo
m a is geral d e r ed istrib u içã o d a renda.
I n ic io u - s e d e p r o n to a h o s t ilid a d e c o n tr a o p r o je t o r e v o lu c io n á r io .
In tern a m en te, h o u v e a a ç ã o d a s a n tig a s c la sse s d o m in a n te s. A tra v és d e seus
p a r tid o s, a s s o c ia ç õ e s d e c la s se , jorn ais e r á d io , critica v a m o s p rogram as do
g o v e r n o e p r e ssio n a v a m p e la r e a liza çã o im ed ia ta d e e le iç õ e s. A alta hierar­
q u ia c a tó lic a m a n ife sta v a su a p r e o c u p a ç ã o c o m o d e stin o d a Igreja em uma
N ic a r á g u a q u e p en sa v a ca m in h a r para o s o c ia lism o . M u ito s em p resá rio s li­
q u id a v a m se u s b en s e d e ix a v a m o país o u e n tã o se recu sa v a m a colab ora^
d e sc a p ita liz a n d o su a s em p resa s. E x tern a m en te, o g o v e r n o a m erica n o acusa­
v a a N ic a r á g u a d e se to m a r u m sa télite e c o n ô m ic o s o v ié tic o . In cid en tes na
fron teira d e H o n d u r a s e a so lid a r ie d a d e c o m a F rente F a ra b u n d o M arti de
L ib erta çã o N a c io n a l em El S a lv a d o r foram u sa d o s para ju stificar a a çã o do
g o v e r n o R ea g a n c o n tr a a N ic a r á g u a .
O g o v e r n o a m e r ic a n o c o m e ç o u a a ju d ar o s c o n tr a -r e v o lu c io n á r io s , a
q u em c h a m a v a d e “ lu ta d o res da lib e r d a d e ” , c o m a rm a s, d in h e ir o e treina­
m e n to . A C IA p rep arou m a n u a l para sa b o ta r a N ic a r á g u a . O s con tras reali*
z a v a m in cu rsõ es n o territó rio d a N ic a r á g u a a partir de H o n d u r a s e da C osta
R ic a , c o m a n tig o s e le m e n to s d a gu ard a e m e rcen á rio s a m e r ic a n o s, inclusive
a ssa ssin a n d o jo v e n s a lfa b e tiz a d o r e s. T am b ém se d e d ic a v a m à sa b o ta g e m , a °
terro rism o , à am ea ça a o s fu n c io n á r io s e le ito r a is, a o se q ü e str o , a ssa ssin a to ,
e m b o s c a d a s, a te n ta d o s, b o m b a r d e io d e a e r o p o r to s. Em 1 9 8 4 , m in aram
p o r to s d a N ic a r á g u a . Tal situ a ç ã o lev o u a o e sta d o d e s ítio , tr o u x e grandes

84
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

prejuízos e gastos. A e c o n o m ia d o p a ís e n tr o u em crise, a g ra v a d a p e la reces-

são mundial.
Fm 1 9 8 5 , foram rea liza d a s a s p rim eiras e le iç õ e s lim p a s d a h istó r ia da
Nicarágua, c o m o b se r v a d o r e s in tern a cio n a is. A F S L N o b te v e 6 7 % d o s v o to s
e a Presidência. C o m eça ria o p r o c e sso d e c o n so lid a r a r e v o lu ç ã o , q u e conti­
nuaria a ser im p e d id o p e la a ç ã o d o s con tras e d o s E sta d o s U n id o s.

4. MILITARISMO E POLÍTICA NO PERU: O GOVERNO REVOLUCIONÁRIO DAS


FORÇAS a r m a d a s

A recuperação d a e c o n o m ia e x p o r ta d o r a d e m a téria s-p rim a s n o Peru rece­


beu n o v o a le n to c o m a P rim eira G uerra M u n d ia l e a vin d a d e c a p ita is e x te r ­
nos: a lg o d ã o , açúcar, se d a , b orrach a, p rata, c o b r e e p e tr ó le o . A reto m a d a da
exp ortação c o n so lid o u u m a o lig a rq u ia c o ste ir a , m erca n til e fin a n ceira , p r o ­
dutora de a çú car e a lg o d ã o , m a s m a n te v e o s la tifu n d iá r io s tr a d ic io n a is da
serra (gam onales). C o m a p o io d e in v e s tim e n to s e s tr a n g e ir o s c o m e ç o u - s e
tam bém u m d e se n v o lv im e n to in d u strial. A o lig a r q u ia d e 5 5 fa m ília s, a s s o ­
ciada aos haciendados d a serra e a o ca p ita l e str a n g e ir o , d o m in o u o g o v e r n o
peruano até 1 9 6 8 .
O p rocesso d e m o d e r n iz a ç ã o a u m en ta v a a p r e ssã o so b r e a terra d a s c o ­
m unidades e so b re o c a m p o n ê s. A c a p ita liz a ç ã o d as m in a s d ep rim ia a e c o n o ­
mia das c o m u n id a d e s v iz in h a s e red u zia a s o p o r tu n id a d e s d e e m p r e g o . O d e ­
sen volvim en to d o c a p ita lism o n o Peru p r o v o c o u m o d ific a ç õ e s n o s m o d o s d e
vida, de tr a b a lh o e d e o r g a n iz a ç ã o d o c a m p o n ê s. A ltero u arran jos secu lares
entre latifú n d io e tr a b a lh a d o r rural. O term o “c a m p o n ê s ” e n g lo b a v a um a
serie de situ a çõ es d iferen tes n o c a m p o , q u e se ca ra cteriza v a m p ela c o n d iç ã o
•íw a lte m a , p ela su jeiçã o à v io lê n c ia p rivada d o la tifu n d iá r io . P or n ã o falar
^ p a n h o l, p or p erten cer a o u tr a c u ltu r a , p or ser ín d io o u m e s tiç o , o c a m -
Pones estava à m argem da vid a n a c io n a l. N ã o lhe era p erm itid a a o rg a n iza -
^ao para reivin d icar d ir e ito s d e n tr o d a s regras d o jo g o d e m o c r á tic o : sin d ica -
l0 s rurais eram c o n sid e r a d o s su b v ersã o .
A partir da d éca d a d e 1 9 2 0 , ap areceram o s m o v im e n to s d e contestação
orm aram n o v o s a g r u p a m e n to s p o lític o s d e o p o s iç ã o . Em 1 9 2 4 , foi fu n -
3 a A lian ça P op u lar R ev o lu c io n á r ia A m erican a (A P R A ) p o r Victor R aul
7a de la Torre, c o m um n a c io n a lis m o p o p u lista . Em fa c e d a s pressões dos

85
O SÉCULO XX

n o v o s g r u p o s c o n tr a a o lig a r q u ia e co n tra o c a p ita l e str a n g e ir o , o regim e se


fe c h a v a e d ita d u ra s m ilita res a lte r n a v a m -se a g o v e r n o s c o n se r v a d o r e s q Ue
a c e n a v a m c o m p e q u e n a s r e fo r m a s . N a d é c a d a d e 1 9 5 0 , s u r g iu a A ção
P op u lar (A P). T a m b ém n o s a n o s 5 0 e 6 0 , o s c a m p o n e s e s c o m e ç a r a m a se or­
g a n iz a r em c o m u n id a d e s e sin d ic a to s , c o m g rev es e in v a s õ e s, para recuperar
a s terras a n cestra is e a lca n ça r a verd ad eira c id a d a n ia .
A lu ta c a m p o n e s a este v e cen tra liza d a em d o is tip o s d e m o v im e n to s: or­
g a n iz a ç õ e s ru rais d e m a ssa e u n id a d e s d e g u e r r ilh a . P r o c u r o u ta m b é m se
c o o r d e n a r em esca la n a c io n a l e alargar seu s o b je tiv o s, a ss o c ia n d o -s e a gru­
p o s r e v o lu c io n á r io s u r b a n o s. A e str a té g ia fo i p r im e ir o a p a r tic ip a ç ã o em
larga e sc a la em to r n o d e d e m a n d a s im ed ia ta s e o u so d e a ç õ e s relativam ente
n ã o -v io le n ta s , c o m o a o c u p a ç ã o d as h actendas, r e v ita liz a n d o tr a d iç õ e s cole-
tiv ista s n o tra to c o m a terra reto m a d a . A p rin c íp io , o s g r u p o s a rm a d o s eram
su b o r d in a d o s e para a d efesa d o s in vasores.
A fo r m a ç ã o d e u n id a d es d e gu errilh a c o m e ç o u c o m a ch e g a d a d e H ugo
B la n c o , tr o ts k is ta q u e fa la v a q u é c h u a ; d o s e s tu d a n te s d a F r e n te O b rero
C a m p e sin o E stu d a n til P o p u la r c o m M a n u e l S corza; d e se to r e s d issid en tes
d o s p a r tid o s d e esq u erd a q u e e n x e r g a v a m as p o ssib ilid a d e s revolu cion árias I
d o s com u n eros da serra. O M 1R , em 1 9 6 5 , tin h a q u a tr o fren tes guerrilheiras. "
D e r r o ta d o , em 1 9 6 5 , o m o v im e n to gu errilh eiro , a p ó s in ten sa a ç ã o d as forças j
a rm a d a s, o c a m p e s in a to viveria em e sta d o d e in su rreição la ten te e se torna- J
ria a p r e o c u p a ç ã o c r e scen te d o s m ilitares.
N o P eru, o s se to r e s-c h a v e d a e c o n o m ia e sta v a m em m ã o s d o ca p ita l es­
tra n g eiro e c o m p a n h ia s a m erica n a s eram r e sp o n sá v e is p or 9 0 % da exp orta- !
ç ã o d e m in era is. A p o lític a e c o n ô m ic a e a lu ta c o n tr a a in fla ç ã o e o d éficit se­
g u ia m o s p r in c íp io s d o lib e r a lism o , so b a in sp ira çã o d e c o n se lh e ir o s am eri­
c a n o s. A crise e c o n ô m ic a se a g ra v o u em 1 9 6 5 , c o m a b a ix a n as ex p o rta çõ es
e d im in u iç ã o da en trad a m a ciça d e c a p ita is e x te r n o s . A m o e d a fo i d esvalori­
zad a e p ro c u r o u -se um a p o lític a d e e sta b iliz a ç ã o c o m restriçõ es a o g a sto pú- |
b lic o , c o m reform a fiscal e a c o r d o s c o m as c o m p a n h ia s d e p e tr ó le o .
O g o v e r n o da A P fo i m a rca d o p ela c o r r u p ç ã o , e sc â n d a lo s fin an ceiros,
p r o b le m a s e c o n ô m ic o s e c r is e p o lític a , c o m o b s t r u ç ã o n o C o n g r e s s o . A I
In tern ation al P etroleu m C o m p a n y (IPC) esg o ta ra o s c a m p o s , sem títu lo legal
e sem c o m p e n s a ç ã o para o s co fres p ú b lic o s, d e v id o à rem essa d e lu cros e isen­
ç õ e s de im p o sto s . D a í surgiu u m m o v im e n to p ela n a c io n a liz a ç ã o d a exp lora- '
ç ã o d o p e tr ó le o . Em tro ca d e n o v o s recu rsos da A g ên cia In tern a cio n a l para o
D e se n v o lv im e n to (A ID ), o g o v e r n o ch e g o u a um a c o r d o c o m a IPC , garantin* I

86
A M É R ' CA LATINA: DEPENDÊNCIA. DITADURAS E GUERRILHAS

J o seus a lto s lu cros e o m o n o p ó lio d o refin o e d istr ib u iç ã o e o u tra s v a n ta g en s


jn claúsulas secretas. O fa to foi en c a r a d o c o m o v erg o n h a n a c io n a l.
A p ersp ectiva d e am ea ça à ord em e às h ierarq u ias in s titu c io n a is m o b ili­
á r i a n o v a m en te, em 1 9 6 8 , o s m ilitares p eru an os. Para e le s, a s m ed id a s para
superar as p ressõ es p o p u la r e s, c o n tr o la r e p acificar o c a m p e s in a to e afastar
a p ossib ilid ad e in su rg en te só p o d ería m ser levad as a c a b o d e n tr o d e um a b ­
soluto c o n tr o le d o E sta d o p ela s forças arm ad as. A s refo rm a s para ev ita r a
desordem in stitu c io n a l d ev eria m ser im p o sta s d e cim a para b a ix o , d e n tr o d e
um projeto m ilitar, da ló g ica e da d iscip lin a ca stren ses. A reform a agrária foi
vista c o m o ú n ica m an eira d e d e sm o b iliz a r o s c a m p o n e s e s e d e e v ita r q u e , da
luta pela p o sse da terra, e le s p a ssa ssem à c o n te s ta ç ã o d o E sta d o .
Em o u tu b r o d e 1 9 6 8 , um g o lp e m ilitar, so b a lid era n ça d o g en era l-d e-d i-
visão Juan V ela sco A lv a r a d o , d e p ô s o g o v e r n o d e B e la u n d e Terry. O país
p a sso u a ser g o v e r n a d o p o r u m a ju n ta m ilita r , q u e se a u t o d e n o m in o u
G overno R e v o lu c io n á r io d a s F orças A rm ad as. V isavam a u m a r e v o lu ç ã o n a ­
cionalista para liq u id ar o su b d e s e n v o lv im e n to e a d e p e n d ê n c ia , g e r a d o r e s d e
m iséria, fo m e , d e s ig u a ld a d e s e in ju stiç a . C o n c e b ia m o d e s e n v o lv im e n t o
com o um p ro cesso d e tra n sfo r m a ç ã o estru tu ral. D e fe n d ia m u m a p o s iç ã o h u ­
m a n ista , o r e s g a te d a c u ltu r a p e r u a n a e u m a p o lít ic a a n t iim p e r ia lis t a .
Propunham m elh o ra r as c o n d iç õ e s d e vid a d a s c a m a d a s p o p u la r e s , q u e e sta ­
vam p erig o sa m en te p r e d isp o sta s a reagir d e form a v io le n ta à su a e x p lo r a ç ã o .
O la b o r a tó r io d e g e s t a ç ã o d o r e g im e fo i o C e n tr o d e A lto s E s tu d o s
M ilitares. R ecu sa v a m -se o s m o d e lo s e str a n g e ir o s, q u e stio n a v a -s e a efic á c ia
das lideranças civ is e d o s in stru m en to s d e m o c r á tic o s n o Peru. N a rep ressão às
guerrilhas, en traram em c o n ta to c o m a e x p lo r a ç ã o e m a r g in a liz a ç ã o d o in d í­
gena. A falta d e id en tid ad e n a cio n a l foi vista c o m d ific u ld a d e para c o n stitu ir
verdadeiros c id a d ã o s e so ld a d o s p eru an os e para p erp etu ar u m e sta d o d e in ­
surreição. A n te o c o m u n ism o in tern a cio n a l e o e x p a n sio n ism o c h ile n o , a sso -
ciavam -se segu ran ça n a cio n a l e d e se n v o lv im e n to . A d efesa n a c io n a l se ligava
« exigên cias d e b em -estar d o p o v o e a o p la n eja m en to e c o n ô m ic o , so c ia l e p o -
'tico, para o q u al o s m ilitares se viam m ais c a p a c ita d o s. A so b r e v iv ê n c ia da
corporação m ilitar d ep en d ería das m u d an ças fu n d a m en ta is n a so cied a d e.
Em 3 d e o u tu b r o d e 1 9 6 8 , a refinaria d e T alara e o s c a m p o s d e La Brea e
*tutas, da IPC, foram o c u p a d o s, d ecla ra n d o -se c a d u c a s as c o n c e ss õ e s p etro-
ras contrárias a o in teresse n a cio n a l ê reservan d o as áreas m a is im p ortan tes
Para a reorgan ização da estatal Petroperu. O u tras n a c io n a liz a ç õ e s em setores
« Ira tég ico s da e c o n o m ia se segu iram até 19 7 5 : m in a s, ferro v ia s, tran sp ortes

87
O SÉCULO XX AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

e c o m u n ic a ç õ e s, serv iço s p ú b lic o s. Em m u ito s c a so s fo ra m p a g a s in d en iza­


ç õ e s. F o rm o u -se o B a n co d a N a ç ã o , c o m a q u isiç ã o d a p a rticip a çã o estran gei­
ra n o s b a n co s p riv a d o s. E stab eleceram -se 2 0 0 m ilh as d e fron teiras m arítim as
e n a c io n a liz o u -se a in d ú stria d a p esca. N o v a s em p resa s esta ta is foram criadas.
P ro cu ro u -se d iversificar o s m erca d o s e as fo n te s d e fin a n c ia m e n to .
A s in s ta la ç õ e s a çu careiras fo ra m o c u p a d a s e tr a n sfo r m a d a s em co o p e r a ­
r im pediam o d e se n v o lv im e n to . E n q u a d ro u -se em u m p ro jeto m a io r d e d e se n ­
v o lv im en to ca p ita lista n a c io n a l. A reform a te v e o o b je tiv o d e in co rp o ra r o
^ m p o n ê s à e c o n o m ia de m erca d o , fa z e n d o d ele um p r o p r ie tá r io , de a u m e n ­
tar a p r o d u ç ã o e a p r o d u tiv id a d e , de elim in a r o la tifú n d io e tran sferir c a p i­
tais p rivad os da agricu ltu ra para o setor in d u strial. M a is rad ical e e x te n siv a
que em a lg u n s p a íses da A m érica L atin a, a reform a agrária p eru an a foi im ­
tiv a s, p r o c la m a n d o -se e n tã o a in u tilid a d e d o sin d ic a lism o n o n o v o sistem a. p osta de form a p atern alista e a u to ritá ria , sem a p a r tic ip a ç ã o ativa d o c a m ­
T e n to u -se estim u la r a in d u str ia liz a ç ã o e a a u to g e s tã o p e lo s o p e r á r io s, com ponês. T eve o se n tid o d e reduzir a m o b iliz a ç ã o p o lític a in d e p e n d e n te o u ra­
p r o je t o s d e p a r tic ip a ç ã o n o s lu c r o s . A in d ú s tr ia n a c io n a l f o i p r o te g id a dical d o c a m p o n ê s da serra.
c o m ta rifa s c o n tr a a c o n c o r r ê n c ia estran geira. O r g a n iz o u -se a C o r p o r a ç ã o A fra g m en ta çã o d o la tifú n d io e a red istrib u ição d e terras p rev ista s n ã o
F in an ceira d e D e se n v o lv im e n to . P ro m o v e u -se a reform a u n iv ersitá ria , para p rivilegiavam a a p r o p r ia ç ã o in d iv id u a l p or p e q u e n o s e m é d io s p ro p rietá rio s.
d e sp o litiz a r a U n iv e r sid a d e , fix a n d o u m a o r ie n ta ç ã o té c n ic a , p r o fissio n a l e N o ca so d as em p resa s a g ro in d u stria is, e sta b e le c e u -se o siste m a d e c o o p e r a ti­
a p o lític a . vas, ten d o o s a n tig o s e m p r e g a d o s c o m o d o n o s. N a serra, fo ra m cria d a s as
E x te r n a m e n te , o Peru a ssu m iu um a p o lític a te r c e ir o -m u n d ista e n ão -a li- Socied ad es A g ríco la s de In teresse S o cia l c o m o m eio de reso lv er o s c o n flito s
n h a d a . R o m p e u c o m o b lo q u e io a C u b a , rea to u r e la ç õ e s c o m a C h in a e ex ­ entre ca m p o n e se s d e sp o ja d o s d e su as terras, a rren d atários e c o m u n id a d e s v i­
p a n d iu o c o m é r c io c o m o b lo c o so c ia lista . P a rtic ip o u d o P a c to A n d in o , m er­ zinhas, to d o s r e iv in d ic a n d o as m esm a s terras u su rp ad as d u r a n te sé c u lo s. O s
c a d o c o m u m c o m B o lív ia , C o lô m b ia , E q u a d o r, V e n e z u e la e C h ile , c o m o arrendatários receb eríam a p ro p ried ad e e um a in d e n iz a ç ã o . T o d o s se to r n a ­
m e io para a u m en ta r su a s e x p o r ta ç õ e s . M a n te v e u m a rela ç ã o fo rm a l c o m os riam só c io s da c o o p e r a tiv a tra b a lh a d a p elo s a n tig o s e m p r e g a d o s p e r m a n e n ­
E sta d o s U n id o s, sem fech ar o s c a n a is d e n e g o c ia ç ã o e re a liz a n d o n o v o s co n ­ tes da haciencia, o q u e d e se n c a d e o u p ro testo s d o s c a m p o n e s e s. O s q u e rece­
tr a to s d e in v e r sã o c o m firm as estra n g eira s. R e n e g o c io u a s r e la ç õ e s c o m o im­ biam a terra tin h a m q u e p agar p o r ela.
p e r ia lism o . O s in v e stim e n to s e stra n g eiro s p erd eríam seu caráter d e enclave: A im p la n ta ç ã o da reform a agrária m o v e u -se le n ta m e n te e, a o fim d o g o ­
o c o b r e p r o d u z id o p o r c o n s ó r c io s in tern a cio n a is seria r e fin a d o p e lo E stad o, verno m ilitar, m e n o s de 1/4 da p o p u la ç ã o rural d ela se b e n e fic io u . H o u v e re­
c o m e r c ia liz a d o p ela M in eiro -P eru e as em p resa s c o m p r a r ia m se u s in su m os sistência, fraude e sa b o ta g e m d o s g ra n d es p ro p rietá rio s. O g o v e r n o fo i in c a ­
n o p a ís. O s E sta d o s U n id o s m a n tiv era m a titu d e c a u te lo sa p e la ex p eriê n c ia paz d e d e s e n v o lv e r u m a p o lític a a g r íc o la q u e b e n e fic ia s s e o a g r ic u lto r .
com C uba. D urante a reform a tev e lugar um im p o rta n te p r o c e sso de m o b iliz a ç ã o c a m ­
Em 2 4 d e ju n h o d e 1 9 6 9 , n o D ia d o ín d io , o g o v e r n o p r o m u lg o u a lei de p onesa, q u e reagiu à form a d e c o n stitu iç ã o d as c o o p e r a tiv a s, a o s a b u so s e
refo rm a agrária. A lei e sta b e le c ia a e x p r o p r ia ç ã o d e to d a s as g r a n d e s pro­ tentativas d e ev a sã o da reform a agrária; p r essio n o u p ela su a r a d ic a liz a ç ã o e
p r ie d a d e s e , n o c a s o d a a g r o in d ú s tr ia , d e to d o o c o m p le x o . C r io u -s e um pela o r g a n iz a ç ã o a u tô n o m a d o c a m p e sin a to . Em 1 9 7 4 , a r e g iã o a n d in a se
T rib u n al A g r á r io , cu jas se n te n ç a s seriam rá p id a s, sem a p e la ç ã o e e x ecu ta d a s viu n o v a m en te an te as in v a sõ e s de terras, c o m as c o m u n id a d e s e n fr e n ta n d o
im e d ia ta m e n te . P revia in d e n iz a ç ã o , p arte em d in h e ir o e p arte em b ô n u s da as em presas a sso c ia tiv a s.
d ív id a agrária, m a s se g u n d o o v a lo r d ec la r a d o p e lo s p r o p r ie tá r io s para efei­ N o s m e a d o s d o s a n o s 7 0 , a r e v o lu ç ã o p eru an a en fren ta ria a crise qu e
t o d e p a g a m e n to de im p o sto s . A n u la v a o s c o n tr a to s q u e lig a v a m a c o n c e ssã o d eixou para o s m ilitares a o p ç ã o de rad icalizar o p r o c e ss o d e reform a, co m
d e terra n o la tifú n d io à p r e sta ç ã o d e serv iço s p e ss o a is. E, 4 8 h o ra s d e p o is do aPOio popular, ou d e p rocu rar um a p o lític a e c o n ô m ic a m a is o r to d o x a , c o m
a n ú n c io , 6 0 % d a s terras a çu careiras já e sta v a m so b c o n tr o le g o v ern a m en ta l. poio da burgu esia e cla sse m éd ia. A s ten ta tiv a s de e x p a n s ã o d o regim e além
N o s E sta d o s U n id o s, a m ed id a foi en carad a c o m o p r o g r e ssista , d e acor­ as ^rças arm a d a s e a p o ssib ilid a d e da ra d ica liza çã o d a s r efo rm a s dividiram
d o c o m as r e c o m e n d a ç õ e s da A lia n ç a para o P r o g r e sso , sem características 0s militares. A d ireita se r e o r g a n iz a v a , so b a b an d eira d o a n tic o m u n is m o ,
p o lític a s e c o m seried a d e. S ig n ifica v a a r e m o ç ã o d as estru tu ras arcaicas que c°m a p o io d e e m p resá rio s, p ro d u to res a g r íc o la s, a s s o c ia ç õ e s profissionais, e

88 89

A
O SÉCULO XX

a c u sa v a o g o v e r n o d e a b a n d o n a r a livre em p resa e d e fa v o recer u m a e c o n o .


m ia d e E sta d o . A P R A e A P e x e r c ia m p r e ssõ e s para o r e to r n o a o govern o
c iv il, c o m o a p o io d e se to r e s da m a rin h a e fa c ç õ e s m ilita r e s p reo cu p a d o s
c o m o is o la m e n to d o p aís na A m érica L atin a. C o m o rea çã o à p r e ssã o , o go­
v ern o se to r n a v a c a d a v ez m ais d ita to ria l.
Em 1 9 7 5 , o g en eral M o r a le s B erm ú d ez, fo r m a d o em e c o n o m ia , liderou
o g o lp e co n tra A lv a r a d o e lo g o d e p o is a fa sto u d o g o v e r n o e d o c o m a n d o das
tro p a s o s o fic ia is p ro g ressista s. A n o v a junta m ilita r recu o u d o p r o c e sso re­
fo rm ista . A d o to u -s e um a p o lític a e c o n ô m ic a d e fla c io n á r ia e d e esta b iliza çã o
o r to d o x a , d e a c o r d o c o m o F u n d o M o n e tá r io In tern acion al: re d u ç ã o d o s sa­
lá rio s reais, d e sv a lo r iz a ç ã o da m o e d a , a b a n d o n o d o c o n tr o le d o s p reços, li­
b e r a ç ã o d a s rem essas d e lu cros p o r em p resas estra n g eira s. T am b ém se encer­
rou o p r o c e sso d e refo rm a agrária. A n u la ra m -se as c o n q u is ta s d o s trabalha­
d o res n a s c o o p e r a tiv a s. C o m o resu lta d o , fo m e e d e sn u tr iç ã o v o lta r a m a cres­
cer. O p r o te s to p o p u la r e n c o n tr a v a a rep ressã o . D e p o is da g r e v e geral de
1 9 7 7 , fo i c o n v o c a d a u m a A sse m b lé ia C o n stitu in te .
A s e le iç õ e s se fizeram em clim a d e rep ressão e tr o u x e r a m m a io ria d e cen-
tro -d ireita . O g o v e r n o a p lic o u o receitu ário n eo lib era l: d im in u iç ã o d o papel
d o E sta d o na e c o n o m ia ; tra n sferên cia d e recu rsos e d e e m p resa s para o setor
p rivad o; p r o m o ç ã o da c o n c o r r ê n c ia pela e lim in a ç ã o d e su b s íd io s e con troles
d e p reços; d e sm o n te d a s barreiras tarifárias q u e p r o te g ia m a in d ú stria n acio­
n a l, a fim d e e x p ô -la à co n c o r r ê n c ia extern a; e n c o r a ja m e n to d a s ex p o rta çõ es
d e m a téria s-p rim a s. N o c o m e ç o d o s a n o s 8 0 , a e c o n o m ia p eru an a afundou.
O e m p o b r e c im e n to , a c o n c e n tr a ç ã o d e renda e a d e sin te g r a ç ã o so c ia l avan­
çaram . A u m en ta ra m o crim e e a v io lê n c ia . O tr á fic o d e c o c a ín a se espalhou.
E m 1 9 8 0 , o S e n d e r o L u m in o s o , fu n d a d o d e z a n o s a n te s p o r fa c ç õ e s do
P artid o C o m u n is ta d o Peru (B an d eira V erm elh a), in icia v a su a a ç ã o arm ada,
s o b a lid eran ça d e A b im a el G u zm á n .

5. CONCLUSÃO

N a A m érica L atin a, a ord em e c o n ô m ic a , p o lític a e so c ia l e sta b e le c id a desde


o fim d o sé c u lo X IX m o d ific o u -se pela in teg ra çã o a o d e se n v o lv im e n to cap*'
ta lista , p ela m o d e r n iz a ç ã o e u r b a n iz a ç ã o , e p or um a certa industrialização-
A v a n ça n d o -se n o sé c u lo X X , e esp e c ia lm e n te a p ó s a crise d e 1 9 2 9 e depois

90
AMÉRICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

Segunda G uerra M u n d ia l, e ssa s m u d a n ça s se refletiríam na estru tu ra d e


cf^Ãc^T n ac rela ç õ es en tre o s g r u p o s so c ia is, na n atu reza d o E sta d o e n as p o -
iftjcflfTe c o n ô m ic a s. A o r g a n iz a ç ã o d o m o v im e n to o p e r á r io e su a m ilitâ n cia
ej£sceram , da m esm a m an eira q u e o s seto res in te r m e d iá r io s, d e m a n d a n d o o
é sp a ç o p o lític o e a m p lia n d o as su a s reiv in d ic a ç õ e s. A o lig a r q u ia ten d eu
a l e d iversificar e a a ceita r p a r c ia lm e n te s o lu ç õ e s r e fo r m ista s, r e d im e n sio -
— ndp as su as a lia n ça s. A A m érica L atin a, p o rém , ain d a c o n se r v a v a a fe iç ã o
de u m lo n tin e n t e c a m p o n ê s , ap esar d o c r e sc im e n to da p o p u la ç ã o u rb a n a , o
que con trib u ía para as p ressõ es d eriv a d a s da lu ta p ela m e lh o r d is tr ib u iç ã o d e
terra, p elo d ir e ito à sin d ic a liz a ç ã o e p ela reform a agrária.
M a n tin h a -se a A m érica L atin a s o b o s ig n o d a d e p e n d ê n c ia e d a s d e s i­
gualdades so c ia is, co n tra a s q u a is se ten ta ria m o b iliz a r a s fo r ç a s n a c io n a is.
O d e se n v o lv im e n to e a in d u s tr ia liz a ç ã o , e sp e c ia lm e n te a in d ú s tr ia b á sic a ,
foram v isto s c o m o o s m o to r e s d a in d e p e n d ê n c ia n a c io n a l, d a e lim in a ç ã o d a s
d esigualdades so c ia is e da p o b r e z a , d a p r o m o ç ã o da d e m o c r a c ia e d a su p e r a ­
ção das rep ú b lica s o lig á r q u ic a s. C o n stru ir a s b a ses e c o n ô m ic a s d a N a ç ã o e
am pliar a d e m o c r a c ia sig n ific a v a m ta m b ém a fa sta r o s tr a ç o s , a in d a e x is te n ­
tes, d e u m a e c o n o m ia e u m a so c ie d a d e c o lo n ia is q u e se c o n s titu ía m em o b s ­
táculos a o d e se n v o lv im e n to . Ig u a lm en te sig n ific a v a a in te g r a ç ã o d o s se to r e s
populares a o p r o je to d e d e se n v o lv im e n to n a c io n a l.
N e ste p r o c e sso d e m u d a n ça cresceram s ig n ific a tiv a m e n te o s p a p é is d o
Estado. A s s o lu ç õ e s n a c io n a is variaram : fo ra m d e sd e a m a n u te n ç ã o d o E sta ­
do burguês e d e a lg u n s p rin c íp io s d a d e m o c r a c ia rep resen ta tiv a e m regim es
autoritários, p a ss a n d o p e lo p o p u lism o e p ela d ita d u ra m ilitar, a té o e sta b e le ­
cim ento d o so c ia lism o . C o n stitu ír a m -se , e n tã o , na A m érica L a tin a , regim es
diversos, a q u e p o d e m o s ch a m a r d e n a c io n a l-e sta tiz a n te s, c o m o o p e r o n is m o
na A rgentina, o so c ia lism o c u b a n o , o sa n d in ism o na N ic a r á g u a e o G o v e r n o
R evolu cion ário d a s F orças A rm a d a s n o Peru.
A s id e o lo g ia s q u e a c o m p a n h a v a m a c o n stitu iç ã o d esses g o v e r n o s a p re­
sen tavam -se c o m o r e v o lu c io n á r ia s e p o p u la r e s , p r o p u n h a m u m a n o v a via
o d e se n v o lv im e n to , co n tra o e x p lo r a d o r estra n g eiro e c o n tr a a d e sig u a l-
Qa° e e a injustiça so c ia l. A lg u n s d esses regim es, fr a n ca m en te a u to ritá rio s e,
ernbora a p o ia n d o um p rojeto ca p ita lista , q u e fa v o recia m u m a elite b u rguesa,
* ‘© am -se a o p o v o e p ro p u n h a m u m a a m p lia ç ã o d a p a r tic ip a ç ã o d em o crá ti-
0 u t r ° s eram fran cam en te re v o lu c io n á r io s a o ten tarem e lim in a r a d ep en -
ocia pela su p era çã o d o c a p ita lism o q u e a criara: a R e v o lu ç ã o C u b an a ab a-
la ainda m ais o s sistem a s tra d icio n a is d e d o m in a ç ã o na A m érica L atin a.

91
O SÉCULO XX

Em c o m u m tin h a ainda o fa to d e q u e o E stad o se torn aria o ag en te d e coesão


n a c io n a l e de m ob ilização d a v o n ta d e n a c io n a l para o d e se n v o lv im e n to .

BIBLIOGRAFIA

1. G eral

Alexander, Robert J. 1967. A o r g a n iz a ç ã o d o tr a b a lh o n a A m é r ic a L a tin a . Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira.
Borda, Fals. s/d. A s re v o lu ç õ e s fra c a ssa d a s na A m é r ic a L a tin a . São Paulo, Global.
Bruit, Hector Perez. 1982. A c u m u la ç ã o c a p ita lis ta n a A m é r ic a L a tin a . São Paulo,
Brasiliense.
Cardoso, Ciro F. S. e Brignoli, Héctor. 1983. H is tó r ia e c o n ô m ic a d a A m é r ic a L a tin a . Rio
de Janeiro, Graal.
Cardoso, Fernando Henrique. 1965. M u d a n ç a s so c ia is n a A m é r ic a L a tin a . São Paulo,
Difusora Européia do Livro.
________• 1975. D e p e n d ê n c ia e d e s e n v o lv im e n to n a A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro,
Zahar.
Casanova, Pablo González (org.). 1988. A m é r ic a L a tin a : h istó r ia d e m e io sé c u lo . Brasília,
Ed. Universidade de Brasília, 2 vols.
Collier, David (org.). 1982. O n o v o a u to r ita r is m o n a A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro, Paz
e Terra.
Cueva, Agustín. 1983. O d e s e n v o lv im e n to d o c a p ita lis m o na A m é r ic a L a tin a . São Paulo,
Global.
Donghi, Tulio Halperin. 1976. H is tó r ia c o n te m p o r â n e a d a A m é r ic a L a tin a . Rio de
Janeiro, Paz e Terra.
Fernandes, Florestan. 1973. C a p ita lis m o d e p e n d e n te e cla sses so c ia is na A m é r ic a Latina.
Rio de Janeiro, Zahar.
Frei, Eduardo. 1973. O d e s tin o d a A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro, Ed. Gráfica Record.
Furtado, Celso. 1968. A h e g e m o n ia d o s E s ta d o s U n id o s e o s u b d e s e n v o lv im e n to da
A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
------------ 1968. S u b d e s e n v o lv im e n to e e sta g n a ç ã o n a A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira.
Ianni, Octavio. 1974. A f o r m a ç ã o d o E s ta d o P o p u lis ta n a A m é r ic a L a tin a . Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira.
------------- 1974. Im p e ria lism o n a A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira-
Kaplan, Marcos. 1974. F o r m a ç ã o d o E s ta d o N a c io n a l n a A m é r ic a L a tin a . Ri° de
Janeiro, Eldorado.

92
A M É R | CA L A T I N A : DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS

F-dwin e t a lii. 1968. M ilita r is m o e p o lític a na A m é r ic a L a tin a . Rio de Janeiro,


jjewen,
Zahar.
'Donnell e t a lii (ed.). 1988. T r a n s iç õ e s d o r e g im e a u to r itá r io . A m é r ic a L a tin a . São
® Paulo, Vértice, Ed. Revista dos Tribunais Ltda.
_ uqoié, Alain. 1984. O E s ta d o M ilita r n a A m é r ic a L a tin a . São Paulo, Ed. Alfa-ômega.
Sader Eder. 1982. A m ilita r iza ç ã o d o E s ta d o na A m é r ic a L a tin a . São Paulo, Ed. Polis.
Santos Theotonio dos. 1977. I m p e ria lism o e c o r p o ra ç õ e s m u ltin a c io n a is . Rio de Janeiro,
Ed. Paz e Terra.
Serra José (coord.). 1976. A m é ric a L a tin a , e n sa io s d e in te r p r e ta ç ã o e c o n ô m ic a . Rio de
Janeiro, Paz e Terra.
Sunkel, Oswaldo. 1971. O m a rc o h is tó r ic o d o p r o c e s s o d e d e s e n v o lv im e n to e s u b d e s e n ­
v o lv im e n to . Rio de Janeiro, Fórum Editora.
Touraine, Alain. 1989. P a la v ra e sa n g u e. P o lític a e s o c ie d a d e n a A m é r ic a L a tin a . São
Paulo, Trajetória Cultural (Campinas, SP).
Veliz, Cláudio (coord.). 1970. A m é r ic a L a tin a , estru tu ra s e m crise. São Paulo, IBRASA.
Zenteno, Raul Benetez (coord.). 1977. As c la s s e s s o c ia is n a A m é r ic a L a tin a . Rio de
Janeiro, Paz e Terra.

2. A rgen tin a

Altman. Werner. Abril de 1979. “A versão argentina do populismo (1943-1955)”.


R e vista C iv iliz a ç ã o B ra sileira , 10. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
Beired, José Luis Bendicho. 1984. M o v im e n to o p e r á rio a rg e n tin o : d a s o rig e n s a o p e r o n is ­
m o (1 8 9 0 -1 9 4 6 ). São Paulo, Brasiliense, Coleção Tudo É História.
Cardoso, Fernando Henrique. 1971. P o lític a e d e s e n v o lv im e n to e m s o c ie d a d e s d e p e n d e n ­
tes (id e o lo g ia s d o e m p r e s a r ia d o in d u s tr ia l a r g e n tin o e b r a s ile ir o ). Rio de Janeiro,
Zahar.
Cavarozzi, Marcelo. 1988. “Ciclos políticos na Argentina a partir de 1955”. In 0 ’Donnell,
Guillermo e t alii. (ed.). T ra n siçõ e s d o re g im e a u to ritá r io . A m é r ic a L a tin a . São Paulo,
Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 37-75.
Cornblit, Oscar. 1970. “Os imigrantes europeus na indústria e política argentina”. In
Veliz, Cláudio (coord.). A m é r ic a L a tin a , estru tu ra s e m crise. São Paulo, IBRASA, pp.
232-259.
^ ay°n, Louise M. S/d. “Conflitos operários durante o regime peronista (1946-1955)”. In
Estudos C E B R A P 13. São Paulo, Brasiliense.
' J* r®ani, Gino. 1973. P o lític a e s o c ie d a d e n u m a é p o c a d e tr a n s iç ã o . São Paulo, Ed.
Mestre Jou.
P kn, Marcos. 1988. “Cinqüenta anos de história argentina (1925-1975): o labirinto
da frustração”. In Casanova, Pablo González (org.). A m é r ic a L a tin a : h is tó r ia d e
" to o sé cu lo . Brasília, Ed. Universidade de Brasília, vol. 1, pp. 19-99.

93
a M é RICA LATINA: DEPENDÊNCIA, DITADURAS E GUERRILHAS
O SÉCULO XX

Luna, Felix. 1974. A r g e n tin a d e P e r ó n a L a n u s s e ( 1 9 4 3 - 1 9 7 3 ) . Rio de Janeir0 Tribunál permanente i »< * * f r *y « . * U r M U U J rtU

Civilização Brasileira. São Pau*0’ Editora Hucitec.


Murmis, Miguel e Portantiero, Juan Carlos. 1973. E s tu d o s s o b r e a s o rig e n s d o peronis. Vilas, Carlos Maria. 1986. N ic a rá g u a h o je: a n á lise d a r e v o lu ç ã o s a n d in is ta . São Paulo,
m o . São Paulo, Brasiliense. Vértice.
Passos, José Meirelles. 1936. A n o ite d o s g e n e r a is: o s b a s tid o r e s d o te r r o r m ilita r na
A r g e n tin a . São Paulo, Brasiliense.
Perón, Eva. S/d. A ra z ã o d e m in h a v id a . Rio de Janeiro, Ed. Livraria Freitas Bastos. 5 . Peru
Sirkis, Alfredo. 1982. A g u e rra d a A r g e n tin a . Rio de Janeiro, Record.
Cotler, Julio. 1988. “Intervenções militares e ‘transferência de poder aos civis’ no Peru”.
In 0 ’Donnell, Guillermo e t a lii. (ed.). T r a n s iç õ e s d o r e g im e a u to r itá r io . A m é r ic a
L atina. São Paulo, Vértice, Ed. Revista dos Tribunais Ltda., pp. 222-264.
3. C uba
_______ 1988. “Peru: estado oligárquico e reformismo militar”. In Casanova, Pablo
Castro, Fidel. 1982. A H is tó r ia m e a b s o lv e r á . São Paulo, Alfa-Ômega. González (org.). A m é r ic a L a tin a : h istó r ia d e m e io sé c u lo . Brasília, Ed. Universidade
________. 1971. C u b a e o so c ia lis m o . Lisboa, Publicações D. Quixote. de Brasília, vol. 2, pp. 175-232.
Fernandes, Florestan. 1979. D a g u e rrilh a a o so c ia lis m o . A r e v o lu ç ã o c u b a n a . São Paulo, D’Horta, Arnaldo Pedroso. 1971. Peru: d a o lig a rq u ia e c o n ô m ic a à m ilita r . São Paulo, Ed.
Perspectiva.
T. A. Queirós Ed.
Guevara, Ernesto. 1982. A g u e rra d e g u errilh a s. São Paulo, Edições Populares, 3a ed. Delgado, Carlos. 1974. A re v o lu ç ã o p e r u a n a . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
________. 1982. S ierra M a e stra : d a g u e rrilh a a o p o d e r ; p a ss a g e n s d a g u e rra revolucioná­ Dos Santos, Ana Maria. 1990. “Reforma agrária e segurança nacional no Peru”. A n a is d a
ria. São Paulo, Edições Populares. X R eu n ião d a S o c ie d a d e B ra sileira d e P e sq u isa H is tó r ic a (SBPH). Curitiba.

Mills, C. Wright. 1961. A v e r d a d e s o b r e C u b a . Rio de Janeiro, Zahar. Mariátegui, José Carlos. 1975. S e te e n sa io s d e in te r p r e ta ç ã o d a r e a lid a d e p e r u a n a . São
Sader, Eder. 1985. A r e v o lu ç ã o cu b a n a . São Paulo, Ed. Moderna. Paulo, Alfa-Ômega.
Sartre, Jean-Paul. 1960. F u racão s o b r e C u b a . Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 3* ed. Moreira, José Neiva. 1975. O m o d e lo p e r u a n o . Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Sweezy, Paul e Huberman, Leo. 1960. C u b a : a n a to m ia d e u m a re v o lu ç ã o . Rio de Janeiro, Stepan, Alfred. 1980. E s ta d o , c o r p o r a tiv is m o e a u to r ita r is m o . Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
Zahar.
Thomas, Hugh. 1970. “A política da classe média e a revolução cubana”. In Veliz, Cláudio Villanueva, Victor. 1969. O g o lp e d e 6 8 n o P eru : d o c a u d ilh is m o a o n a c io n a lis m o . Rio
(coord.). A m é ric a L a tin a : estru tu ra s e m crise. São Paulo, IBRASA, pp. 260-289. de Janeiro, Civilização Brasileira.

4. N ic a r á g u a

Bond, Rosana. 1987. N ic a rá g u a : a b a la n a ag u lh a . São Paulo, ícone Editora.


Coletivo do Instituto Histórico Centro-Americano (Manágua). 1986. A m é r ic a C entral, o j
b e c o se m s a íd a d a p o lític a d o s E s ta d o s U n id o s n o T e rc e ir o M u n d o . Porto Alegre/SãOj
Paulo, L&PM Editores S.A.
Cortázar, Julio. 1987. N ic a rá g u a , tã o v io le n ta m e n te d o c e . São Paulo, Brasiliense.
Frei Beto. 1980. N ic a r á g u a livre: o p r im e ir o p a ss o . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira-,
Goldenberg, Miriam. 1987. N ic a rá g u a , N ic a ra g u ita : u m p o v o e m a rm a s c o n s tr ó i a dem o-j
cra cia . Rio de Janeiro, Revan. J
Marega, Marisa. 1981. A N ic a r á g u a sa n d in ista . São Paulo, Brasiliense, Coleção Tudo J
História.
Ortega Saavedra, Humberto, cmte. 1980. 5 0 a n o s d e lu ta sa n d in ista . Marta HarnecK I
entrevista Humberto Ortega. São Paulo, Editora Quilombo.

95
94
O mundo árabe e as guerras
árabe-israelenses
Keila G rinberg
Doutoranda em História Social
da Universidade Federal Fluminense
“Mesmo quando há duas partes que têm razão, a justiça é um jogo ilusório,
porque é sempre julgada pelo lado de quem vê.”
YORAM KANIUK, escritor israelense

introdução

A prim eira p alavra q u e vem à c a b e ç a d e q u a lq u er u m q u e p e n se em O rien te


M édio é c o n flito . R e g iã o q u e d eu o rig em à s g ra n d es c iv iliz a ç õ e s e a relig iõ e s
que ainda h o je en c o n tr a m se g u id o r e s n o s q u a tro c a n to s d o m u n d o , é triste
con statar q u e ela te n h a p a s s a d o a o c u p a r a s m a n c h e te s d o s jo r n a is c o m
tem as tã o sa n g ren to s c o m o e x p lo s õ e s d e c a r r o s-b o m b a , c a m p o s d e r efu g ia ­
dos, a ssa ssin a to s d e p o lític o s e a m ea ça s d e gu erras até n u clea res.
C om a p r o x im a d a m e n te 7 ,2 m ilh õ e s de q u ilô m e tr o s q u a d r a d o s situ a d o s
na encruzilhada d o s c o n tin e n te s a siá tic o , a frica n o e e u r o p e u , a r e g iã o d e n o ­
minada O r ie n te M é d io a b r a n g e o s p a ís e s A f e g a n is t ã o , A r á b ia S a u d it a ,
Barein, C atar, E g ito , E m ir a d o s Á ra b es U n id o s , Iê m e n , Irã, Ir a q u e , Isra el,
Jordânia, K u w a it, L íb a n o , O m ã , Síria, T urq u ia e T erritó rio s d a A u to r id a d e
Nacional P alestin a. O te r m o n ã o é tã o a n tig o q u a n to a p resen ça h u m a n a n o
local; cu n h a d o p or in g leses n o in íc io d o sé c u lo X X , ele fo i u s a d o p ara d esig -
nar as e x te n sõ e s d e terra e águ a a m e io c a m in h o en tre o m ar M e d ite r r â n e o e
f® fronteiras da ín d ia , r e g iã o c o n tr o la d a na é p o c a p e lo Im p é r io B ritân ico.
0 )e > e n g lo b a n d o e ste v a s t o c o n ju n t o d e p a ís e s q u e p o s s u e m m e n o s em
^onium d o q u e se im a g in a , s u a s b o r d a s g e o g r á f ic a s s ã o o s e s t r e it o s d e
~ * M a n e lo s e B ó sfo r o a n o r o e ste , o o c e a n o Ín d ico a su d e s te , o v a le d o rio
1 0 a su d o este e o A fe g a n istã o a n o rd este.
IKr^ a tu a l O rien te M é d io c o n ta c o m um a p o p u la ç ã o d e cerca de 2 3 0 m i-
■b de h a b ita n tes, q u e, d iv id id o s em várias e tn ia s, falam p e lo m e n o s seis
p ®*1®8 d iferen tes e p ro fessa m três relig iõ es d istin ta s, para c o n ta r s ó a s m a jo -

99
O SÉCULO XX o MUNDO ÁRABE E AS GUERRAS A RABE- 1SRAELENSES

ritárias. A í c o m e ç a m o s p ro b lem a s: para en ten d er o s c o n flito s d e ste s p ovos


d e sig n a d o s g en e r ic a m e n te c o m o árab es e ju d eu s, su a s a lia n ça s e d isp u ta s, é
p reciso c o n h e c ê -lo s d e fa to .
Q u a n d o M a o m é , n o s é c u lo V II, fu n d o u a re lig iã o m u ç u lm a n a , difícil-
m e n te se p o d e r ia im a g in a r q u e e la seria u m d ia a cren ça d e p ra tica m en te
to d o o O r ie n te M é d io , N o r te d a Á frica, S u d ã o , P a q u istã o , e d e parcelas da
ín d ia e da In d o n é sia . E sp rem id o s entre o s im p érios B iza n tin o e P ersa, o s ára­
bes d e e n tã o eram pura e sim p le sm e n te as p e sso a s q u e viviam na península
r no s sã o árab es. A ssim , d e u m m o d o g eral, sã o árab es a q u e le s q u e se id e n tifi­
cam co m a lín g u a , a cu ltu ra e o s v a lo res d o s árab es, e s ã o m u ç u lm a n o s a q u e ­
les q u e seg u em a r e lig iã o d o islã , fu n d a d a p or M a o m é .
Quase o m e sm o p o d e ser d ito d o s judeus: prim eira d as r elig iõ es m o n o -
teístas, o ju d a ísm o n a sceu na ch a m a d a terra d e C a n a ã , situ a d a en tre a m ar­
gem d ireita d o rio J o r d ã o e o m ar M ed iterrâ n eo , q u a n d o o s e n tã o c h a m a d o s
hebreus a d o ta ra m o s p receito s d ifu n d id o s p e lo s p r o fe ta s A b ra ã o e M o is é s e
consolidados n o s D ez M a n d a m e n to s e n o P en ta teu co , o s c in c o p rim eiro s li­
A ráb ica. A c r e d ita n d o q u e M a o m é lh es tin h a rev e la d o u m a n o v a fé, a d ota­ vros d o A n tig o T esta m en to . C o n sid e r a n d o Jeru salém sua c a p ita l sa g ra d a , o s
ram M e c a c o m o c a p ita l re lig io sa e o C o r ã o c o m o livro sa g r a d o , to m a n d o -se judeus p o sterio rm en te viveram na região so b o d o m ín io d e v á r io s p o v o s e
e n tã o m u ç u lm a n o s (cren tes, o u fiéis, em árabe) ou p a rtid á rio s d a religião do im p érios, nem to d o s to lera n tes. D e p o is das d e stru içõ es d o s d o is te m p lo s de
islã (ta m b ém em á ra b e, su b m iss ã o a D e u s). D e p o is da m o rte d o p r o fe ta , tro­ Jerusalém, um p e lo s n e o b a b ilò n io s e o o u tro p e lo s r o m a n o s , o s ju d eu s se d is­
p a s árab es d isp u se r a m -se a p ro p a g a r a r e lig iã o através d e e x p a n s ã o m ilitar e, persaram p elo m u n d o e, m e sm o q u e sem p re ten h a m e x is tid o c o m u n id a d e s
em r ela tiv a m en te p o u c o te m p o , c o n stitu ír a m um im p ério q u e a c a b o u se es­ judaicas na região, só em fins d o sé c u lo X IX g r u p o s d e ju d eu s e u r o p e u s c o ­
te n d e n d o p o r 6 m il q u ilô m e tr o s , d o o c e a n o Ín d ico a o A tlâ n tic o , d o m in a n d o m eçaram a se org a n iza r p o litic a m e n te para co n stitu ir um lar n a cio n a l ju d a i­
a p e n ín s u la I b é r ic a , o N o r t e d a Á fr ic a e p a r te d o s im p é r io s B iz a n tin o , c o , q ue — m ais tarde ficou d e c id id o — d everia ser lo c a liz a d o na P alestin a,
S assân id a e Persa, in d o a té as fro n teira s c o m a ín d ia e a C h in a , e te n d o com o naquela ép o c a parte d o Im p ério O to m a n o , o n d e viviam p e q u e n a s c o m u n id a ­
su c e ssiv a s c a p ita is as c id a d e s d e M e c a , D a m a sc o , B agdá e C a ir o .1 des de árab es a g r ic u lto r e s .2
N e s s e im p é r io , o isla m ism o era a r e lig iã o o fic ia l e a lín gu a árab e torn ou - O su r g im e n to d o s io n is m o , ou o m o v im e n to q u e p r e c o n iz a a v o lta a
se ra p id a m en te o p rin cip al m e io d e c o m u n ic a ç ã o . A ssim , o s p o v o s co n q u is­ Sion, c o lin a d e J eru sa lém q u e sim b o liz a a Terra P r o m e tid a , na d é c a d a de
ta d o s p e lo s á ra b es m u ç u lm a n o s foram a ra b iza d o s e isla m iz a d o s. C o m e x ce­ 1 8 9 0 , foi p ro fu n d a m e n te m a rca d o p e lo crescen te a n ti-se m itism o e u r o p e u . A
ç ã o d o s te r r itó r io s e u r o p e u s, d a Á sia M e n o r e d o Im p ério P ersa, to d o s os falência da p o lítica de in teg ra çã o d o s judeus à so c ie d a d e e u r o p é ia , p o sta em
p o v o s c o n q u is ta d o s a d o ta r a m o ára b e c o m o p rim eira lín g u a ; a lé m d isso, prática em vários p aíses d u ran te to d o o sé c u lo X IX , fico u e v id e n te q u a n d o
fora o s c r istã o s e ju d eu s — q u e tin h a m o d ir e ito d e ad m in istra r su a s co m u ­ m assacres de c o m u n id a d e s inteiras d e judeus — o s c h a m a d o s p o g ro m s — c o ­
n id a d es e b en eficia r-se d a lib erd ad e d e c u lto m ed ia n te o p a g a m e n to d e um m eçaram a a c o n te c e r na R ú ssia e q u a n d o o judeu fran cês A lfred D rey fu s foi
im p o sto esp e c ia l — , to d o s ta m b é m p assaram a p ro fessa r a r e lig iã o m uçul­ acusad o de p assar in fo r m a ç õ e s secretas de seu e x é r c ito para o in im ig o ale-
m a n a . T e m p o s m a is ta rd e, a lg u n s d e ste s m e sm o s g r u p o s c o n q u is ta d o s ex­ m ao. Este e p is ó d io , q u e p r o v o c o u in ú m eras m a n ife sta ç õ e s a n ti-se m ita s na
p an d iram a in d a m ais a fé islâ m ic a , c o m o o s berberes d o N o r te da Á frica, que França e é h oje c o n sid e r a d o um d o s m a io r e s erro s ju d ic iá r io s d a h istó ria
a p ro p a g a ra m a o su l d o Saara. É p or isso q u e , h oje em d ia , m e s m o n ã o fa­ francesa, im p ressio n o u v iv a m en te o jorn alista v ien en se T h e o d o r H erz l, q u e,
z e n d o p a r te d o O r ie n te M é d io , h a b ita n te s d e p a ís e s c o m o a A r g é lia e o t^robém judeu, escreveu o livro O E stado Judeu, p u b lic a d o em 1 8 9 6 , e orga-
M a r r o c o s a d o ta m a r e lig iã o m u ç u lm a n a e s ã o c o n s id e r a d o s á r a b e s. A o « tto u o p rim eiro c o n g r e sso sio n ista na B asiléia n o a n o s e g u in te .3
m e sm o te m p o , n em to d o s o s q u e se c o n v ertera m a o isla m ism o a d o ta ra m os Foi em c o n tr a p o siç ã o a o a n ti-se m itism o e u r o p e u , p o r ta n to , que a idéia
v a lo r e s, a cu ltu ra e a lín gu a ára b es, c o m o o s tu r c o s, q u e fa la m a lín gu a turca, con stru çã o d o E stad o Ju deu g a n h o u força. M o v im e n to n a c io n a lista c o m o
e o s ir a n ia n o s, q u e a té h o je u sam o persa. N ã o sã o ára b es, p o r ta n to . O con ­ mu,tos que sa cu d ia m a E uropa n a q u ele m o m e n to , a versã o p o lítica d o sionis-
trá rio ta m b é m a c o n te c e u : n em to d o s o s q u e p a ssa ra m a ser á ra b es co m o o pregava a cria ç ã o d e um E stad o laico (n ão n e c essa ria m en te na Palestina)
te m p o se c o n v ertera m a o isla m ism o , c o m o o s c a tó lic o s e o s ju d eu s já m en­ so lu cio n a sse o s p ro b lem a s de segu ran ça d o s judeus. M u ito influenciados
c io n a d o s . N e m to d o s o s á ra b es s ã o m u ç u lm a n o s, e n em to d o s o s muçulma- '• ■ ** 0 so c ia lism o e u r o p e u , a m a io ria d e seu s m ilita n tes p r e c o n iz a v a um a d i-

100

k
1
101
0 SÉCULO XX o MUNDO Á r a b e E AS GUERRAS A R A B E -I S R A E L E N S E S

m e n sã o so c ia liz a n te d o sio n ism o , q u e, através d e c o m u n id a d e s co letiv ista s-^ . Jjvidados o to m a n o s. A e ste m o v im e n to co r r e sp o n d e u u m o u tr o , in te r n o , d e


o s k ib u tzim — , p erm itisse a criação d e um a n o v a so c ie d a d e , b asead a em va­ igual ameaça à in te g r id a d e territo ria l. Eram o s m o v im e n to s n a c io n a lis ta s
lo r e s ig u a litá r io s , d ife r e n te s d a q u e le s h e g e m ô n ic o s em s u a s terra s natais. árabes, q u e, in flu e n c ia d o s p ela s m esm a s id éias q u e d eram o r ig e m a o s io n is ­
M e sm o a ssim , n essa é p o c a e até m ea d o s d o sécu lo X X , q u a n d o o sentim ento m o e im p u lsio n a d o s p e lo e x e m p lo d o s sérv io s e g r e g o s n o s B á lcã s, b u sca v a m
a n ti-sem ita já tin h a vira d o p olítica o ficia l na A lem a n h a n a z ista , a idéia sion is­ autonomia e in d e p e n d ê n c ia e m r e g iõ e s d e fa la á r a b e , c o m o a A r á b ia , o
ta fo i d e sc o n sid e r a d a p ela m aioria d o s ju d eu s, m u ito s a in d a c o n fia n te s na Iraque, o L íb a n o e o E gito. C o n ta n d o c o m ajuda e x te r n a , e ste s m o v im e n to s
e m a n c ip a ç ã o p e sso a l o u na in tegração so cia lista à so c ie d a d e e u r o p é ia , outros cresceram e aju d aram a m in a r ain d a m ais o im p é r io , q u e , a p ó s u m a n esg a de
p referin d o a d o ta r a s o lu ç ã o individ u al da im ig ra çã o p ara, p rin cip alm en te, as modernização c o m a R e v o lu ç ã o d o s J o v e n s T u rco s, te v e seu g o lp e fin al de­
A m éricas. N e m to d o s o s jud eu s, p o r ta n to , torn a ra m -se sio n ista s. pois da P rim eira G uerra M u n d ia l, a ú ltim a travad a p e lo Im p ério O to m a n o
como grande p o tê n c ia .4
O m ais im p o rta n te d estes m o v im e n to s foi o lid era d o p o r H u s se in , q u e,
além de h erd eiro da fam ília h a c h e m ita , d esc e n d e n te d e M a o m é , era ta m b ém
O FIM DO IMPÉRIO OTOMANO E A NOVA CONFIGURAÇÃO POLÍTICA DO ORIENTE
o guardião d a s reg iõ es m a is sa g ra d a s d o islã , as c id a d e s d e M e c a e M e d in a ,
MÉDIO situadas na p ro v ín cia árab e d o H ija z, na A ráb ia. H u sse in p reten d ia c o n s ti­
tuir um g r a n d e “ R e in o Á r a b e ” , q u e in c lu ir ía , a lé m d a p r ó p r ia A r á b ia , a
Q u a n d o ju d eu s sio n ista s co m eçaram a em igrar para a P a lestin a , o Império (
Síria, o Iraque e a P alestin a. Em 1 9 1 5 , ele in ic io u u m a c o r r e sp o n d ê n c ia c o m
O to m a n o estava em crise. T urcos origin ários da Á sia C en tral e co n v ertid o s ao
Sir H enry M c M a h o n , a lto c o m issá r io b ritâ n ico para o E g ito , c o m u n ic a n d o
isla m ism o , o s o to m a n o s reunificaram o m u n d o m u çu lm a n o n o sécu lo XVI,
suas p reten sões e b u sc a n d o a c o n c o r d â n c ia b ritân ica para a p r o c la m a ç ã o de
c o n stitu in d o um im p ério q u e duraria até a Prim eira G uerra M u n d ia l. Embora
um C alifad o Á rab e para o islã. E m b ora te n d o in ic ia lm e n te r e c u sa d o , o g o ­
o d e c lín io d o im p é r io te n h a c o m e ç a d o ain d a em m e a d o s d o sé c u lo XVII, 1
verno inglês a c a b o u d a n d o o aval para a revolta á rab e c o n tr a o s o to m a n o s ,
q u a n d o o e x é r c ito o to m a n o foi barrado às p ortas de V ien a, foi s ó n o século
iniciada em 1 9 1 6 c o m o a u x ílio d o c o r o n e l L a w ren ce, o fa m o s o L a w ren ce d a
X IX q u e ele realm en te en trou em crise, co m o in teresse d a s p o tên cia s euro­ Arábia .5
p éias em ex p a n d ir-se n aq u ela d ireção. Era a ép o ca da d isp u ta p or áreas estra­
A o m e sm o te m p o , a In glaterra p recisa v a a d m in istra r as p r e te n sõ e s da
tégicas n o m u n d o in teiro , e o território o to m a n o era p riorid ad e principalm en­
França, sua p rin cip al alia d a na gu erra, q u e esta v a in te r e ssa d a na S íria, n o
te para R ú ssia e Inglaterra. A prim eira, já d e p osse d e tra ta d o s com erciais que Líbano e na P a lestin a . A s n e g o c ia ç õ e s en tre o s d o is p a íse s re su lta r a m n o s
lhe d a v a m lib erd ad e d e n av eg a çã o e co m ércio n o m ar N e g r o e n o s estreitos de I BCordos de S yk es-P icot, a ssin a d o s secreta m en te, c o m a p r o v a ç ã o ru ssa, a in d a
B ó sfo ro e D a r d a n e lo s, visava au m entar su a in flu ên cia n o s territórios de popu­ no início da rev o lta árab e. N e s te a c o r d o , as d u as p o tê n c ia s realizaram a par-
la çã o eslava d o m in a d o s p elo s o to m a n o s e, co m isso , c o n so lid a r sua hegem o­ a d o O rien te M é d io e recon h eceram um p o ssív el E sta d o Á ra b e In d ep en -
n ia na região. O Im p ério B ritânico, por su a vez, p reten d ia c o n tro la r as rotas I aentf> m as nã o nas fron teiras d eseja d a s p e lo s árab es. N u m t e x t o r e c h e a d o d e
d e a c e sso às su a s áreas d e co n tr o le na Á sia e, a o m e sm o te m p o , im pedir o I ^®bigüidades, o s in g leses n ã o co n sid era ra m a Síria e a P a lestin a c o m o in clu í-
a v a n ço de o u tras p o tên cia s. In teressad os em co m é r c io e d ip lo m a c ia , estes pai j j nas areas p reten d id as p e lo s árab es, m as, in te r e ssa d o s n o a p o io d estes à
ses e sta v a m , so b r e tu d o , in vestin d o na rivalid ad e entre si m esm o s. ° Cac^a final d o s o to m a n o s , n u n ca se p reo cu p a ra m em escla recer c o m p le -
Em 1 8 5 4 , n o c o n flito que ficou c o n h e c id o c o m o G u erra da Criméia, 3 o s lim ites d e se u s a c o r d o s.
Inglaterra e su a a lia d a França ap o ia ra m o Im p ério O to m a n o na vitória con­ paj 01 t 0 <f as e s ta s n e g o c ia ç õ e s , a r e g iã o m a is p r o b le m á tic a era a d a
tra a R ú ssia , e p or isso c o n so lid a r a m d efin itiv a m en te seu p o d er na região, »* j te estlnai cobiçada ta n to pela França q u a n to pela Inglaterra; provisoriam en-
x a n d o as ta rifa s a d u an eiras e c o n tr o la n d o to d a s as tr o c a s co m e r c ia is d o s en I í v>da por um a d iv isã o en tre a Inglaterra e um a p ro p o sta d e ad m in istra-

102 103
O S ÉC UL O XX

ç ã o in tern acion al n o s lugares sa n to s, esta q u estã o foi a p ro fu n d a d a pela declg.


ração feita por L orde B alfour, em 1 9 1 7 , de q u e o Im pério B ritân ico “encara
fa v o ra v elm en te, c o m estim a , o e sta b elecim en to na P alestin a d e u m lar nacio. í
nal para o p o v o ju d e u ” . D e fa to , v isa n d o c o n seg u ir o a p o io d o s s io n is ta s —,
q u e já so m a v a m m ais de 7 0 m il p e sso a s n essa ép o c a — para salvagu ard ar seus
interesses na reg iã o , e d e v id o a in ten sas n e g o c ia ç õ e s d ip lo m á tic a s entre repre­
sen ta n tes sio n ista s e o fic ia is b ritâ n ico s, o s in gleses c o lo c a r a m -se em favor das
p reten sões sio n ista s. N o e n ta n to , m esm o e n fa tiz a n d o a n ecessid a d e d e respei­
t o a o s d ir e ito s c iv is e r e lig io s o s d a s c o m u n id a d e s n ã o -ju d a ic a s lo c a is, a
D e c la r a ç ã o B alfou r n ã o m e n c io n a esp ecific a m en te a ex istê n c ia da com u n id a­
d e árabe n o lo ca l, ca u sa n d o g ran d e in satisfação en tre o s m em b ro s desta.
A ssim , n o q u e se refere à P a lestin a , a p o lítica b ritân ica a c a b o u se n d o ex­
trem a m en te d úbia: n u m a su c e s sã o d e a co rd o s e d e c la r a ç õ e s secreta s (eles só
seria m to r n a d o s p ú b lic o s a lg u n s a n o s d e p o is ), o s in g le se s c o n se g u ir a m se
c o m p r o m e te r ta n to c o m H u sse in e seu s se g u id o r e s, q u a n to c o m o s sion istas,
a p o ia n d o as p r e te n sõ e s n a c io n a is d o s d o is sem , n o e n ta n to , en trar em deta­
lh es so b r e o s lim ites g e o g r á fic o s d as futuras n a ç õ e s. R e fo r ç a n d o a p o siç ã o de
árb itro n u m c o n flito la r g a m e n te a n te v isto , a In glaterra a in d a g a ra n tia , de
q u eb ra , o a c e ss o a o C an al d e Suez.
A s o u tra s reg iõ e s d o Im p ério O to m a n o foram d e sm e m b r a d a s a p ó s o fim
da P rim eira G u erra M u n d ia l, d a n d o origem a n o v o s p a íses e a regiões con ­
tr o la d a s d ireta m en te p or b ritâ n ico s e fran ceses, se g u n d o o s lim ites traçados
n o a c o r d o S y k es-P ico t e c o m a su p erv isã o da L iga d a s N a ç õ e s . A n o v a con­
fig u ra çã o g e o p o lític a d o O r ie n te M é d io , p o r ta n to , fic o u se n d o a seguinte: a
T urquia to r n a -se u m a R ep ú b lica N a c io n a l In d ep en d en te; a Síria p assa a ser
M a n d a to F rancês em 1 9 2 0 ; n o Iraque e na T ra n sjo rd â n ia , o s b ritâ n ico s co­
lo c a m , re sp e c tiv a m e n te , o s irm ã o s F aissal e A b d a lla h n o tr o n o , a m b o s filhos
d o líder H u sse in . E sta d iv isã o e o in teresse b ritâ n ico em c o n tr o la r as áreas i
p e tr o lífe r a s d a r e g iã o fizera m c o m q u e o s o n h o d a c r ia ç ã o d e u m R eino
Á rab e fo s se p or á g u a a b a ix o , ain d a m ais p o r q u e , a g o r a , H u s se in tem um
rival: é Ibn S au d , q u e , sem ter p a r ticip a d o d a s rev o lta s árab es e d a Primeira |
G uerra M u n d ia l, co n g r e g a v a 7 0 m il h o m e n s em um a fra tern id a d e religiosa,
p o lític a e m ilitar. Ibn Saud tin h a c o m o o b je tiv o u n ifica r a P en ín su la Arábica
e , a p r o v e ita n d o a fraq u eza d e H u sse in c o m a p artilh a d o O r ie n te M é d io , se
p r o c la m o u rei d o H ija z , fo r m a n d o a A r á b ia S a u d ita , n u m a a titu d e que
n u n ca seria b em a ceita p e lo s seg u id o res d e H u sse in .

104

o MUNDO ARABE E AS GUERRAS ARABE - 1SRAELENSES

E SIONISTAS NA PALESTINA: O INÍCIO DA CONVIVÊNCIA

ando fo i in icia d a a c o lo n iz a ç ã o ju d aica na P a lestin a , em fin s d o sé c u lo


X lX era m ra ra s a s c e n a s d e v io lê n c ia e n tr e á r a b e s e ju d e u s s i o n is t a s ,
ç o jn p r a n d o terras d e p r o p r ie tá r io s á ra b es a b s e n te ís ta s , e s ta b e le c id o s em
I rusalém o u em B eiru te, m u ito s ju d eu s ch e g a r a m im b u íd o s d o s id e a is de
cooperação m ú tu a e, b em a o e s t ilo da é p o c a , a c r e d ita v a m e sta r tr a z e n d o
progresso e c iv iliz a ç ã o para o s h a b ita n tes da região. E, d e fa to , in ic ia lm e n te ,
os árabes p a le stin o s se b en eficiaram b astan te c o m a n o v a s itu a ç ã o , d e sfr u ­
tando do a c e sso a o n o v o m erca d o d e tra b a lh o a b e r to c o m a c r ia ç ã o d e c o ­
munidades a g ríco la s c o le tiv ista s e a e x istê n c ia d e n o v a s c id a d e s , c o m o T el-
Aviv, fundada em 1 9 0 9 .
No in íc io d a d é c a d a d e 1 9 3 0 , v iv ia m c e r c a d e 8 4 0 m il á r a b e s na
Palestina; d e ste s, a p en a s 7 5 m il eram c r istã o s, q u e v iv ia m n a s á reas u rb a n a s,
eram a lfa b etiza d o s e tin h a m a c e sso a o s b a ix o s e m é d io s e s c a lõ e s d a a d m in is­
tração in g le sa . O s á r a b e s m u ç u lm a n o s , n o e n ta n t o , e sta v a m e m s itu a ç ã o
bem pior; 7 0 % d e le s v iv ia m d o c u ltiv o d e g r ã o s, v e g e ta is, a z e ite d e o liv a e ta ­
baco em terras q u e n ã o p o ss u ía m . Sem p re e n d iv id a d o s c o m se u s p a tr õ e s , a
quem d ev ia m o alu g u el d a s terras q u e o c u p a v a m , e ste s a g r ic u lto r e s v iv ia m
em estado d e g ra n d e p o b reza . M e s m o a ssim , a s itu a ç ã o d eles era m e lh o r d o
que a dos o u tr o s árab es m u ç u lm a n o s d o O rien te M é d io : e n tr e 1 9 2 2 e 1 9 4 6 ,
100 mil árab es en traram na área c o n tr o la d a p e lo m a n d a to b r itâ n ic o , b u sc a n ­
do as o p o r tu n id a d e s e c o n ô m ic a s c ria d a s c o m a c o lo n iz a ç ã o ju d a ica .
A té o c r e sc im e n to da im ig ra çã o ju d aica na r e g iã o , p o r ta n to , o s p a le sti­
nos n ão p o ssu ía m q u a lq u er re iv in d ic a ç ã o territorial d e c u n h o n a c io n a lista .
Foi só d e p o is d e as p o tê n c ia s estran geiras terem d iv id id o o O r ie n te M é d io ,
criando a rtific ia lm en te p a íses á rab es em o u tr a s áreas e fir m a n d o u m c o m ­
prom isso p e lo e sta b e le c im e n to d e um lar ju d eu , q u e o s p a le s tin o s fu n d aram
seu próp rio m o v im e n to n a c io n a l, b a se a d o s n o a r g u m e n to d e q u e , se o s ju­
deus tin h a m d ir e ito à q u ela terra, e les o tin h a m ta m b é m , e m a is a in d a p o r lá
estarem h á m a is te m p o d o q u e o s sio n ista s. P o d e-se dizer, p o r ta n to , q u e o
s*onismo m o tiv o u a fo r m a ç ã o d o n a c io n a lis m o p a le stin o . E m b o ra a lg u m a s
tentativas te n h a m s id o feita s n o se n tid o d e co n stru ir b ases p ara u m a p o ssív el
con vivên cia m ú tu a — foram cria d a s o r g a n iz a ç õ e s c o n ju n ta s, c o m o a U n iã o
"K ernacional d e O p erá rio s F erro v iá rio s, P o sta lista s e T eleg ra fista s, a U n iã o
0s T rab alh ad ores Á ra b es, c o m a p o io da H ista d r u t (cen tral sin d ica l ju d ai-
Ca), e a F ratern idad e O p erária — , d u ra n te as d é c a d a s d e 1 9 2 0 e 1 9 3 0 , ju d eu s

10S
O SÉCULO XX

e p a le s tin o s d eram in íc io a u m a d isp u ta q u e n ã o teria fim , já q u e seu s objeri 1


v o s eram se m e lh a n te s e e x c lu d e n te s; a m b o s q u eriam p ô r fim a o M andato I
B ritâ n ico e criar um a n a ç ã o in d ep en d en te n o m esm o lugar.
N e s te s e n tid o , a rev o lta p a lestin a o c o rrid a na cid a d e d e Ia ffo , em \9 2 \
fo i a p en a s a prim eira d e u m a série de c o n flito s , d ev id a m en te e x p lo r a d o s peU
g o v e r n o b r itâ n ic o , q u e, c o lo c a n d o em p rática um a p o lítica a m b íg u a e dualis.
ta , ora fa zia c o n c e ss õ e s a p a le stin o s, ora a ju d eu s, c o n tr ib u in d o para que a»
d u a s p artes u sa ssem ca d a vez m ais da v io lê n c ia c o m o form a de pressionar
p or se u s in teresses. U m d o s m ais graves in cid en tes foi o o c o r r id o em H ebron,
em 1 9 2 9 , q u a n d o ju d eu s fo ra m m a ssa cra d o s por árab es ex tr e m ista s. Tanto
p a le stin o s q u a n to ju d eu s fo rm a ra m , a ssim , su as o r g a n iz a ç õ e s d e autodefesa;
e ste s criaram a H a g a n a h , o r g a n iz a ç ã o q u e viria a ser a b ase d o e x é r c ito israe­
len se n o fu tu ro , além d e u n id a d es p aram ilitares c o m o o Irgun, ch efia d a pelo
fu tu r o p r im e ir o -m in istr o M e n a c h e m B egin . O s p a le s tin o s c o m p e n sa v a m a
falta d e o r g a n iz a ç ã o c o m o e x c e s s o d e c o n tin g e n te , d e se n c a d e a n d o ataques
em ig u a l in te n sid a d e a o s d o s ju d eu s.
E n q u a n to se a r m a v a m , o s ju d eu s ta m b é m tr a b a lh a v a m n o se n tid o de
co n str u ir a s b ases d e seu fu tu ro E sta d o , cr ia n d o in stitu iç õ e s, red es d e auto-
aju d a e, p rin c ip a lm e n te , b u sc a n d o fu n d o s para o in crem en to d a im igração.
O s p a le stin o s, n o e n ta n to , a g ia m d e form a diferente: n e g a n d o -se a criar uma
A g ên cia Á rab e (eq u ip a ra d a à A g ên cia J u d a ica , resp o n sá v el p ela im igração),
eles fech a ra m -se a o c o n ta to c o m o s b ritâ n ico s, qu e tin h a m a partir de então
a p e n a s n o m u fti d e J e r u s a lé m u m in t e r lo c u to r c o m q u e m n e g o c ia r . Ao
m e sm o te m p o , sem a p o io d o s o u tr o s p aíses árab es, q u e, já te n d o con segu id o
su a s in d e p e n d ê n c ia s, n ã o fa zem g ran d e e sfo r ç o p ela ca u sa p a lestin a , o s pa­
le stin o s se vêem p erd id o s en tre o a b a n d o n o d e seu s v iz in h o s e a p o siç ã o bri­
tâ n ic a . E sta situ a ç ã o s ó seria agravad a c o m o a u m e n to da im ig r a ç ã o judaica,
m o tiv a d o p e lo c r e sc im e n to de m ed id a s a n ti-se m ita s na E u rop a. A té então,
era p erm itid a a en trad a de 5 m il ju deus p or a n o . O in ício da p erseg u içã o na­
z ista , n o e n ta n to , fez c o m q u e a p o p u la ç ã o ju d aica da P alestin a aum entasse
m u ito r a p id a m e n te . A p e r sp e c tiv a d e u m a m a io r ia p o p u la c io n a l judaica,
p o r ta n to , a c a b o u se n d o a g o ta d ’á gu a para o in íc io , em 1 9 3 6 , da revolta pa­
lestin a g e n e r a liz a d a , q u e , te n d o o o b je tiv o d e in terrom p er a im ig ra çã o judai­
c a , d u ra três a n o s .6
A ssim , às vésp eras da S egu n d a G uerra M u n d ia l, b ritâ n ico s, ju d eu s e pa"
le stin o s e sta v a m em um a en cru zilh a d a , ain d a q u e d e d im e n sõ e s diferentes: o® 9
ju d eu s, p erseg u id o s na E urop a e p ro ib id o s d e im igrar para a m aioria d o s pai* I

106
Em 1 9 3 7 , um rela tó rio fe ito p ela C o m is sã o P eel, g r u p o in g lê s r e sp o n s á ­
vel por in vestigar o s c o n flito s na P a lestin a , p r o p õ e , p ela p rim eira v e z , a p ar­
tilha da reg iã o , v e e m e n te m e n te recu sad a p e lo s á rab es r e u n id o s n a Síria n o
C ongresso P an -Á rab e, em 1 9 3 8 (“ A P alestin a é á rab e, e p reserv á -la c o m o tal
é dever de to d o s o s á r a b e s” ), m a s a ceita c o m reservas p ela c o m is s ã o e x e c u ti­
va sionista. A situ a ç ã o é co m p r e e n sív e l — para q u e m n ã o tin h a n a d a , q u a l­
quer p rop osta é u m a v itó r ia , m as para q u em o c u p a v a o te r r itó r io in te ir o , a
mínima c e ssã o já sig n ifica ria u m a d errota — , m as e la s ó p r o v o c o u o a u m e n ­
to da revolta p a lestin a . A ssim , rev en d o su a p o siç ã o , o s b r itâ n ic o s o p ta r a m
por restringir r a d ica lm en te a en tra d a d e ju d eu s n a P a lestin a e m 1 9 3 9 , ju sta ­
mente o a n o em q u e H itler d á in íc io à guerra q u e a ca b a ria p o r ex te r m in a r 6
milhões d e judeus.
O s in gleses e n tã o a d o ta m a p o lítica d o L ivro B ranco, lim ita n d o a im ig ra ­
ção de judeus a 5 0 m il p or c in c o a n os; d e p o is d is to , a r e to m a d a d o p r o c e sso
imigratório fic a r ia c o n d ic io n a d a à c o n c o r d â n c ia d o s á r a b e s . D e s ta v e z ,
foram os ju d eu s q u e o p ta r a m p ela via d a v io lê n c ia p ara rech a ça r a d e c is ã o
britânica: em 1 9 4 5 , m e sm o c o n tr a a p o siç ã o d a A g ê n c ia J u d a ic a , se g m e n to s
extremistas m in o r itá r io s d a c o m u n id a d e ju d a ica d ã o in íc io à lu ta a rm ad a
que vai resultar, en tre o u tr a s a ç õ e s , n a e x p lo s ã o d o H o te l K in g D a v id em
Jerusalém, sed e d o g o v e r n o in g lê s, p e lo Irgun. D e fa to , a p o s iç ã o d o s ju d eu s
P alestina era d ifíc il e d ú b ia , p o r c o n ta d a n e c e ss id a d e d e c o n tin u a r a o
ado d o s in g leses na d isp u ta e u ro p éia c o n tr a o s n azistas: “ C o m b a te r e m o s a o
a o da Inglaterra c o m o se o L ivro B ran co n ã o e x is tis se , e c o m b a te r e m o s o
Jvro B ranco c o m o se a gu erra n ã o e x is tis s e ” , d izia o líd er B en -G u rio n , d a
" 8encia Ju d aica.
M as tal se p a r a ç ã o d e p ersp ectiv a s já n ã o seria p o ssív el: a n te o d e sfe c h o

107
O MUNDO ÁRABE E AS GUERRAS A R A B E - 1S R A E L E N S E S
O SÉCULO XX

d a gu erra e as n o tíc ia s so b r e o g e n o c íd io d e ju d eu s, a u m e n ta v a a p ressão pú_ pari e j o s te rritó rio s d e stin a d o s a o s p a le s tin o s , o E g ito p r e o c u p a v a -s e em n ã o
deixar q u e a T ran sjord ân ia tiv e sse ê x ito , e o L íb a n o p reten d ia a p en a s reafir-
b lica p ela a c e ita ç ã o d a en trad a d a q u e le s 10 0 m il q u e a in d a a g u ard avam , na 1
0iar sua recen te in d ep en d ên cia .
E u r o p a o u em n a v io s c la n d e s tin o s , u m a s o lu ç ã o p ara o seu d e s tin o . Em
A recém-criada Liga Á rab e e sc o n d ia em seu n o m e as p r o fu n d a s d iver-
1 9 4 7 , e ste e sta d o d e c o is a s c h e g a a o c lím a x : o n a v io E x o d u s, q u e aportou
ências d e o b je tiv o s q u e a ca racterizariam a p artir d e e n tã o , e o r e su lta d o
em H a ifa c o m 4 ,5 m il ju d eu s so b r e v iv e n te s d e c a m p o s d e e x te r m ín io , é ex­
disto p o d e ser p er c e b id o através da d iv isã o territorial o c o r r id a c o m o a r m is­
p u lso p e la s a u to r id a d e s b r itâ n ic a s, e é o b r ig a d o a v o lta r para a A lem an h a. A
tício de 1 9 4 9 : além d e Israel p assar a o cu p a r um te r r itó r io 2 1 % m a io r d o
partir d a í, te n d o p e r d id o o c o n tr o le da situ a ç ã o — ta m b é m p r o v o c a d a pelo
que a q u e le d e s ig n a d o p e la O N U , o rei A b d a lla h c o n s e g u e a n e x a r a
a u m e n t o d a b e lig e r â n c ia d e p a le s t in o s e ju d e u s c o n tr a b r it â n ic o s — a Cisjordânia a seu territó rio (q u e, a partir d e e n tã o , p a ssa a ser o R e in o d a
Inglaterra leva o p r o b le m a à s N a ç õ e s U n id a s, q u e , na co n tu r b a d a sessã o de Jordânia), o E g ito to m a c o n ta d a fa ix a d e G a za e Jeru sa lém é d iv id id a . O E s­
2 9 d e n o v e m b r o d e 1 9 4 7 , d e c id e p e lo fim d o M a n d a to B ritâ n ico e p ela par­ tado P alestin o n ã o ch e g a a sair d o p a p el, e o lem a “ O c a m in h o d e Jeru salém
tilh a d a P a lestin a e m d o is E sta d o s a u tô n o m o s e in d ep en d en tes: u m árabe pa­ passa pela u n id a d e á r a b e ” é b a sta n te r ev ela d o r d o se g u n d o p la n o o c u p a d o
le stin o e u m ju d eu . E ste teria 1 4 m il q u ilô m e tr o s q u a d r a d o s, e n g lo b a n d o as pela q u estã o p a le stin a en tre a s p r io rid a d es árabes: p r im e ir o a u n id a d e , d e ­
áreas en tre o d e se r to d o N e g u e v e o g o lf o d e Á c a b a , o la d o e sq u e r d o d o lago pois o E stad o P a lestin o .
T ib ería d es e a z o n a c o m p r e e n d id a en tre T el-A viv e H a ifa , e n q u a n to o pales­ O s principais p erd ed ores desta guerra, p o rta n to , n ã o sã o o s países árabes,
tin o , c o m 11 m il q u ilô m e tr o s q u a d r a d o s, esta ria situ a d o n a C isjord ân ia e na que vêem a c r ia ç ã o d o E sta d o d e Israel c o m o u m “ e n c la v e o c id e n t a l” n o
fa ix a d e G aza; a c id a d e d e J eru sa lém , c o b iç a d a p or a m b o s o s la d o s, seria in­ Oriente M é d io , e sim o s p a lestin o s, fo rça d o s a se ex ila r fora d o n o v o território
te r n a c io n a liz a d a . N o v a m e n te , o s sio n ista s a c e ita m a p artilh a e o s palestinos israelense. A q u estã o é con troversa: a h istória oficial israelen se d efen d e q u e o s
a recu sa m , se g u in d o o m e s m o r a c io c ín io d e q u e seria u m a d errota permitir cerca de 7 5 0 m il p a lestin o s q u e d eixaram su as terras — m eta d e d a p o p u la ç ã o
q u e o s ju d eu s le g itim a sse m su a p resen ça n a P a le stin a .7 palestina local — o fizeram in stigad os p elo s seu s v iz in h o s árab es, q u e p reten ­
L o g o q u e o p la n o d a p artilh a foi to r n a d o p ú b lic o e a d ata para o fim do diam usá-los na luta co n tra Israel, en q u a n to q u e a e x p lic a ç ã o á rab e d efe n d e a
M a n d a to B ritâ n ico m a rca d a , o s c h o q u e s en tre p a le stin o s e ju d eu s intensifica­ tese da ex p u lsã o p elas forças arm ad as israelenses. A té h o je o b je to d e p o lê m ic a ,
ram -se. M a ssa cres de la d o a la d o , c o m o o da p o p u la ç ã o árabe da aldeia de principalm ente entre o s representantes da m ais recen te h isto rio g ra fia israelen ­
D e ir Y assin e o d o s h a b ita n tes d o k ib u tz Kfar E tz io n , se su ced ia m . A o mesmo se, que en fatiza a gran d e resp o n sa b ilid a d e d e Israel n o ê x o d o d o s refu g ia d o s
te m p o , a s fo r ç a s a r m a d a s ju d a ic a s o r g a n iz a v a m -se p ara um p ro v á v el con­ palestinos, o fa to é q u e, em 1 9 5 0 , 9 5 7 m il p esso a s — cerca d e m eta d e d a p o ­
fr o n to d e m a io res p r o p o r ç õ e s, e n q u a n to tr o p a s d o s p a íses árab es vizin h o s ini­ pulação palestina — viviam n o s c a m p o s criad os p ela U N R W A (agên cia criada
cia v a m m o v im e n ta ç õ e s. O s b ritâ n ico s a p en a s o b serv a v a m d e lo n g e e, n o dia pela O N U em 1 9 4 9 para tratar d o s p rob lem as d o s p a le stin o s refu g ia d o s da
1 4 d e m a io d e 1 9 4 8 , retiraram -se d e Jeru salém . N ã o h a v ia q u alq u er represen­ guerra), sem o d ireito d e re to m a r às su as ca sa s, n em d e , à e x c e ç ã o da Jord ân ia,
ta n te da O N U para su b stitu í-lo s. E stava d a d o o sin al para o in ício da guerra. estabelecer residência n o s p aíses árabes v izin h o s. A o m e sm o te m p o , a Lei d o
À p r o c la m a ç ã o o fic ia l d a c r ia ç ã o d o E sta d o d e Israel, feita p or D avid R etom o, ap rovad a em 1 9 5 0 p e lo P arlam ento d e Israel, c o n c e d e cid ad an ia is­
B en -G u rion em T el-A viv, c o r r e sp o n d e u o a ta q u e d o s p a íses árab es a o redor. raelense a to d o s o s judeus q u e desejarem im igrar para o n o v o p aís, assim c o m o

C o m u m e x é r c ito m a is b em a r m a d o , o su p o r te d o a r m a m e n to tc h e c o e o au­ aos 160 m il árabes p a lestin o s q u e perm an eceram em seu s lo c a is d e origem . É
un que o m o m e n to de fu n d a çã o d o E stado d e Israel, so lu ç ã o d o s p rob lem as
m e n to c o n tín u o n o c o n tin g e n te d e p e ss o a l, p or c o n ta da c h eg a d a d e imigran­
refugiados judeus da S egunda G uerra M u n d ia l, está in d elev elm en te ligad o
tes e u r o p e u s, Israel le v o u a m elhor. A su p e r io r id a d e d o s isra elen ses também
5 riaÇão d o p ro b lem a d o s refu giad os p a le stin o s q u e, p a ssa d o s m ais d e cin -
era p o lític a , já q u e se u s in im ig o s c o m p u n h a m um b lo c o n ad a c o e so : o muR*
<*benta a n o s, ain d a p ersiste .8
d e Jeru sa lém p reten d ia “ jo g a r o s ju d eu s a o m a r ” , a Síria p en sa v a na funda
ç ã o d a “ G r a n d e S ír ia ” (q u e in c o r p o r a r ia a T r a n sjo r d â n ia , o L íb a n o e
P a lestin a ), a T ran sjord ân ia a c e ita v a a c r ia ç ã o d e Israel d esd e q u e a n e x a s #

109
108
n* o mundo Arabe e as guerras Ar a b e -i s r a e l e n s e s
O SÉCULO XX

jjes. A p o ia n d o -s e n o s p rin c íp io s d o r e e n c o n t r o d a d ig n id a d e árab e e da


A BUSCA DA IDENTIDADE ÁRABE ^ s id a d e d o p r o g r e sso e c o n ô m ic o , N a s s e r se c o n s t i t u i u n u m s ím b o lo p o -
°u la r d a u n id a d e e d o n ã o -a lin h a m e n to à s p o t ê n c i a s e str a n g e ir a s, q u e se m a -
A d errota da Liga Á rab e n o c o n flito q u e resu ltou na in d ep en d ên cia d o Estado
'iz o u na c o n s t r u ç ã o d a b a r r a g e m d e A s s u ã e n a n a c io n a l iz a ç ã o d a
d e Israel d e ix o u m arcas p ro fu n d a s na cu ltu ra p o lític a árab e. Para m u ito s, o
npanhia d o C a n a l d e S u ez em 1 9 5 6 .
sio n is m o era um a n o v a versão d o c o lo n ia lism o d a s gran d es p o tên cia s m un­
Esta ú ltim a fo i a g o ta d ’á g u a para o in íc io d e u m c o n flito q u e e n v o lv e u
d ia is, e s ó u m a u n iã o n a c io n a l á rab e p od eria lib ertá -lo s d o d o m ín io estrangei­
as principais p o tê n c ia s m u n d ia is. D is p o s t a s a a p la c a r a in d e p e n d ê n c ia p o líti­
ro. D e fa to , d e sd e a d is so lu ç ã o d o Im p ério O to m a n o q u e o m u n d o árabe está
cade N a sser, e ssa s p o tê n c ia s c a n c e la r a m u m e m p r é s t im o d o B a n c o M u n d ia l
à b u sc a d e su a id en tid a d e, p erd id a q u a n d o a u n id a d e m u çu lm a n a garantida
para a c o n str u ç ã o d a b arragem d e A s s u ã . O líd er e g í p c i o r e v id o u im e d ia ta -
p ela s a u to rid a d es o to m a n a s d e ix o u d e existir. À o c id e n ta liz a ç ã o trazid a pelas
mente, n a c io n a l iz a n d o a c o m p a n h ia q u e g e r e n c i a v a o C a n a l d e S u e z .
p o tê n c ia s e u r o p é ia s, o s árab es n ã o tin h am n en h u m p rojeto a contrapropor.
Construído em 1 8 6 9 , o c a n a l e sta v a a b e r to a to d a s a s n a ç õ e s , m a s era a d m i­
D e sd e e n tã o , para su p erar o se n tim e n to d e d erro ta h istó rica para valores e
p r in cíp io s d o s q u a is n ã o c o m p a r tilh a m , m u ito s árab es v o lta m -s e para o pas­
nistrado p e lo s b r itâ n ic o s, q u e o c o n s id e r a v a m v i t a l p a ra a m a n u te n ç ã o d e
seu poder m a r ítim o e in teresses c o lo n ia is . A g o r a , N a s s e r a c u sa v a o b lo c o c a ­
s a d o , b u sc a n d o n a “Id ad e d e O u r o ” , o u seja, n a é p o c a d e M a o m é , a solu ção 1
pitalista d e b o ic o t á -lo , p o r c o n ta d a s r e la ç õ e s e n tr e o E g ito e o b lo c o s o v ié ti­
p a r a o s p r o b le m a s c o n t e m p o r â n e o s . A s s im , m o v im e n t o s c o m o o da
Irm an d ad e M u ç u lm a n a , fo r m a d o em 1 9 2 8 n o E g ito , d efen d ia m o u so d o islã
co, e a m e a ç a v a b u sca r fu n d o s d e r e c u p e r a ç ã o e c o n ô m i c a n a U R S S . A r e sp o s­
para a lca n ça r o p r o g r e sso , p r e ten d en d o q u e a o b serv â n cia d o s p receitos reli­
ta foi rápida: c o m a p o io b r itâ n ic o e fr a n c ê s , e p r e o c u p a d o c o m a a lte r a ç ã o
no equilíbrio d e fo r ç a s d a r e g iã o , Israel rea liza p e q u e n o s a ta q u e s n o E g ito ,
g io s o s ab rissem as p ortas para a m o d ern id a d e. O u tr o s m o v im e n to s , c o m o o
a r a b ism o , d efen d ia m o o p o sto : q u e a base d e u n iã o d o s árab es fo s se a criação
na região d a fa ix a d e G a z a , a d o ta n d o a d o u tr in a m i li t a r d o a ta q u e p re v e n ti­
vo. Em r e ta lia ç ã o , e ste p aís fe c h o u o C a n a l d e S u e z e o a c e s s o a o g o lf o d e
d e u m a n a ç ã o ú n ica , q u e u n isse a cu ltu ra e a ex p e r iê n c ia h istórica árabes e
Acaba a o s n a v io s is r a e le n se s . E ste é o m o t iv o im e d ia t o p ara a in v a s ã o d e
se u s in teresses em c o m u m .9
A té o fim d a gu erra d e 1 9 4 8 , p o r ta n to , o n a c io n a lis m o árab e n ã o passa­
Israel, q u e em p o u c o te m p o to m a o d e s e r t o d o S in a i e c h e g a à s p o r ta s d a c i­
va d e u m p r o je to fr a g m e n ta d o . A partir d e sse m o m e n to , a lé m d o sion ism o,
dade do C a ir o . A in te r v e n ç ã o d a O N U n ã o d e m o r o u a r e so lv e r o c o n flito ,
a G u erra Fria viria d ar fo rte im p u lso a e ste m o v im e n to , c o n fe r in d o -lh e um
mas ele d e ix o u m a rca s p o r to d a p arte.
In ic ia lm e n te , fic o u c la r o p ara as p o t ê n c ia s e u r o p é i a s , p r in c ip a lm e n te
c u n h o p o p u la r in e x iste n te a té e n tã o . A u n id a d e ára b e era fo r ta le c id a pela
id éia d e T erceiro M u n d o , a partir da q u a l o s p a íse s em p r o c e ss o d e d esenvol- _
para a G rã -B re ta n h a , q u e a era d o s im p é r io s c o lo n i a is e sta v a d e fin itiv a m e n ­
v im e n to , m a n te n d o o d e sc o m p r o m is so c o m o s b lo c o s a m e r ic a n o e so viético,
te sepultada. C erta s d o a p o io a m e r ic a n o à o f e n s iv a , e la s n ã o s ó fo r a m in c a ­
e x e r c e r ía m u m a a ç ã o c o n j u n t a , e s p e c ia lm e n t e n a A s s e m b lé ia G era l das
pazes de a d m in istra r o c o n flito , n ã o c o n s e g u in d o d e r r u b a r N a s s e r o u r e v o ­
gá-lo da in te n ç ã o d e fech ar o S u ez, c o m o fo ra m o b r ig a d a s a a c a ta r a d e c isã o
N a ç õ e s U n id a s.
É n e ste c o n te x t o q u e su rg e a lid eran ça p o lític a d o o fic ia l e g íp c io G am ai
das Nações U n id a s d e in te r r o m p ê -lo . P o r o u tr o la d o , e ste a c o n te c im e n to fo i
A b d el N a sser. R e v o lta d o c o m a d errota para Israel e c o m a c o r r u p ç ã o d o alto
decisivo na d isp u ta d e áreas e str a té g ic a s e n tr e E U A e U R S S . A p r o v e ita n d o o
e sc a lã o d e seu p ró p rio p a ís, N a s s e r to m a o p o d er n o E g ito , em 1 9 5 2 , com
vacuo de p o d e r c r ia d o p ela d e c a d ê n c ia b r itâ n ic a , o s E U A to m a r a m a p o siç ã o
u m p e q u e n o g r u p o c la n d e s tin o d e o fic ia is, o s c h a m a d o s o fic ia is livres, apos
de não d e fe n d e r as a ç õ e s d a s p o tê n c ia s e u r o p é ia s , p a r a im p e d ir u m a p o la ri-
^Ç ão na q u a l a U R SS a ca b a ria p o r c o n s o lid a r a s im p a tia d e q u e já d isp u n h a
o a s s a s s i n a t o d o p r im e ir o - m in is tr o e d o g u ia s u p r e m o d a Irm an d ad e
M u ç u lm a n a . E m b ora n ã o te n h a c o n se g u id o c a n a liza r to d a s as fo r ç a s políti­ n° mundo árab e. M e s m o a ssim , o s a m e r ic a n o s n ã o p e r m itir a m q u e a s a m ea -
S*8 so v ié tic a s d e u m a ta q u e n u c le a r à In g la terra e F r a n ç a g a n h a ss e m fo r ç a ,
c a s e g íp c ia s e tiv e sse u m a id e o lo g ia v a g a m e n te c o n stitu íd a c o m o “ socialism o
á r a b e ” , q u e o sc ila v a en tre a sim p a tia à Irm an d ad e M u ç u lm a n a e a a d e sã o a ° Ptometendo d e v o lv e r na m e sm a m o e d a s e tal fa to s e r e a liz a sse .
D e diferentes formas, foram os próprios países do O riente Médio q u e
P a rtid o C o m u n is ta , o n a ss e r ism o fo i a m p la m e n te a c e ito n o s o u tr o s pa*seS

110
111
O SÉCULO XX

sa íra m fo r ta le c id o s c o m o c o n fr o n to . Israel lid ero u a in v a sã o e a c a b o u con


q u is ta n d o to d a a p e n ín su la d o S in ai, s ó c o n c o r d a n d o em se retirar c o m a pre;
sen ça d e tr o p a s d a O N U n o lo c a l. Sua alia n ça c o m a F rança e a Inglaterra re.
força o m ito árab e d e serem o s israelen ses o tr a m p o lim d o im p eria lism o ocü
d en ta l. N a sse r tira p r o v e ito d e sta situ a ç ã o e, p or ter e n fr e n ta d o c o m ê x ito o s~
fo rtes p a íse s estr a n g e ir o s — o c a n a l é reab erto em 1 9 5 7 , já so b adm inistra­
ç ã o e g íp c ia — , a c a b a c o n s o lid a n d o seu n o m e c o m o a m a io r lid era n ça do
m u n d o á rab e, d a n d o im p u lso a o p rojeto d e u n ific a ç ã o d e u m a ú n ica nação
p r in c ip a lm e n te c o m a c r ia ç ã o d a R e p ú b lic a Á r a b e U n id a , q u e en g lo b a v a
Síria e E g ito .
E ste c o n s e n s o , n o e n ta n to , n ã o duraria p o r m u ito te m p o ; a partir da dé­
c a d a d e 1 9 6 0 , o s recu rsos p etro lífe ro s d o O rien te M é d io , p rin cip alm en te do
Iraque, K u w a it, A rá b ia S a u d ita , L íbia e A rgélia, p a ssa m a ser efetivam en te
im p o rta n tes para a e c o n o m ia m u n d ia l. A ssim , se N a sse r p reten d ia usar a ri­
q u eza d o s E stad os p r o d u to r e s d e p e tr ó le o c o m o u m in stru m en to para criar
um b lo c o árabe s o b lid eran ça eg íp c ia , a A rábia S au d ita e o s o u tr o s países do
G o lfo P érsico q u eria m usar su a p róp ria riq u eza para a lcan çar m a io r influên­
c ia n o s a ssu n to s á ra b es. E stas d iv erg ên cia s d em o n stra m q u e as p reten sões do
n a sse r ism o tin h a m lim ite s cla ro s. E m 1 9 6 1 , o s sír io s ro m p em c o m o s egípcios,
o p o n d o -s e à su p rem a cia d o s n asseristas em seu p a ís. N o Iraq u e, a d ireçã o do
m o v im e n to p e la u n iã o árab e é d isp u ta d a p or K a ssem , n o v o líder lo c a l. Apesar
d e to d a s as d iv erg ên cia s, u m p o n to é co m u m : o a p o io da U R SS à ca u sa árabe,
o q u e in ten sifica o s c o n ta to s e o a p o io en tre Israel e o s E sta d o s U n id o s.
A p o lític a d e fe n d id a p o r N a s s e r fez c o m q u e o E g ito o c u p a ss e a p osição
d e p r in c ip a l d e fe n s o r d o s in te r e sse s á rab es n a s r e la ç õ e s c o m Israel. N esse
m o m e n to , a fid e lid a d e à c a u sa árab e e x ig ia a to m a d a d e p o s iç ã o co n tra o
E sta d o d e Israel. Is to in clu ía , e v id e n te m e n te , o s p a le s tin o s , q u e a té 1 9 6 4 ti­
n h a m n a lid era n ça e g íp c ia seu p rin cip a l p o r ta -v o z . N e s s e a n o , u m a con ferên ­
c ia d a c ú p u la d o s líd e r e s á r a b e s c r io u a O r g a n iz a ç ã o p e la L ib e r ta ç ã o da
P a le stin a (O L P ), q u e fic a r a s o b c o n tr o le d o E g ito e d e fo r ç a s lig a d a s aos
e x é r c ito s á ra b es v iz in h o s a Israel. A o m e s m o te m p o , g r u p o s d e p a lestin o s
e d u c a d o s n o e x ílio c o m e ç a r a m a agir n o se n tid o d e o r g a n iz a r m o v im en to s
g e n u in a m e n te p a le s t in o s : a s s im fo i c r ia d o o F a ta h , lid e r a d o p o r Iasser
A ra fa t, q u e d e fe n d ia o c o n fr o n to d ir e to c o m Israel e a in d e p e n d ê n c ia em re­
la ç ã o a o s o u tr o s p a íse s árabes; e o u tr o s m o v im e n to s n a c io n a lis ta s m en ores,
ig u a lm e n te d e fe n s o r e s da luta a rm ad a e da u tiliz a ç ã o d a s tá tic a s terroristas.
Em 1 9 6 7 , a lg u n s g r u p o s c o m e ç a r a m a em p reen d er a ç õ e s d ireta s contra

112
o MUNDO ÁRABE E AS G U E R R A S A R A B E - 1S R A E L E N S E S

e| q Ue, p or su a v ez, retaliava con rra a Jo rd â n ia e a Síria. C o m in fo rm a -


nunca c o n fir m a d a s d e q u e Israel p la n eja v a u m a ta q u e à s fro n teira s sí-
"as o E gito faz um a c o r d o d e d efesa m ú tu a c o m e ste p a ís, m a is c o m o um a
form a d e c o n tr o la r o c o n flito — n ã o p e r m itin d o q u e o u tr a s lid era n ça s a m e a -
sem a p o s iç ã o e g íp c ia — d o q u e c o m v is ta s a e s t e n d ê - lo . A o m e s m o
Mfnpo, e n te n d e n d o q u e a in te r n a c io n a liz a ç ã o d o g o lf o d e A c a b a e a p resen ­
ça de tro p a s d a O N U na p e n ín su la d o S in ai eram u m a a fr o n ta à su a so b e r a ­
nia, N a sser p ed e a retirada d essa s tr o p a s, e n q u a n to fe c h a n o v a m e n te o g o lf o
Je A cab a à n a v e g a ç ã o israelen se. É d ifíc il ter a d im e n sã o d a s p r eten sõ es d e
Nasser; a o q u e p arece, e le n ã o d esejava a gu erra, m a s sim criar u m a situ a ç ã o
que, o b rig a n d o a in te r v e n ç ã o d o s E sta d o s U n id o s, resu lta sse e m um arran jo
político em seu favor. A o m e sm o te m p o , ta lv e z c o n ta s se q u e , n o c a so d e u m a
guerra, o a p o io da URSS fo sse su fic ie n te para q u e sa ísse v ito r io s o . M a s n ã o
aconteceu u m a c o isa n em o u tra .
Para Israel, to d a esta situ a ç ã o foi co n sid e r a d a u m a d e c la r a ç ã o d e guerra.
N ã o d is p o s to a n e g o c ia r u m a c o r d o q u e r e su lta sse na p r e p o n d e r â n c ia d o
Egito, a p o sta v a na su p erio rid a d e d e seu e x é r c ito . A o m e s m o te m p o , n o c a so
de um c o n flito a r m a d o , c o n ta v a c o m a ajuda a m erica n a . E fo i d e fa to o q u e
aconteceu: n o d ia 5 d e ju n h o d e 1 9 6 7 , Israel d estru iu a fo r ç a aérea egíp cia;
em p o u c o s d ia s, o s isra elen ses o cu p a ra m to d a a p e n ín su la d o S in a i, a C isjor-
dânia, as c o lin a s d o G o la n (e n tã o p e r te n c e n te s à Síria) e , p r in c ip a lm e n te ,
an ex a ra m J e r u s a lé m , n o c o n f lit o - r e lâ m p a g o q u e f ic o u c o n h e c id o c o m o
Guerra d o s Seis D ia s.
E sta gu erra m u d o u d e fin itiv a m e n te o e q u ilíb r io d e fo r ç a s n o O r ie n te
M édio. A partir d e e n tã o , fic o u c la r o q u e Israel era o p a ís m ilita r m e n te m ais
p od eroso da r e g iã o , o q u e a u m en ta v a se u s a tr a tiv o s p a ra o s E sta d o s U n id o s.
Por isso m e s m o , Israel p reten d e c o n se r v a r su a s c o n q u is ta s , q u e lh e trariam
fronteiras segu ras e d e fe n sá v e is. A q u e stã o é q u e a s n o v a s fro n te ir a s lh e tra­
riam o c o n tr o le so b r e u m n ú m e r o m u ito m a io r d e p a le s tin o s , m a jo rita ria -
® ente a lo c a d o s em c a m p o s de refu g ia d o s. Isto fez c o m q u e o se n tim e n to d e
identidade p a lestin a se fo rta lecesse e co n tr ib u iu para q u e fo s se m in te n sific a ­
dos o s a ta q u es terroristas c o n tr a Israel. T am b ém para o s E sta d o s ára b es, a
fápida v itória isra elen se rep resen to u u m a g ra n d e h u m ilh a ç ã o e a u m e n to u a
h ostilid ad e árab e geral co n tra Israel. D iv id id o s en tre a p o ss ib ilid a d e d e reta­
liação e a so lu ç ã o d o s p ro b lem a s p ela viã p o lític a , o s p a íse s á ra b es aceitaram
a R e so lu ç ã o 2 4 2 da O N U , q u e previa a retirada p ro g ressiv a d a s tro p a s israe­
lenses d o s te rritó rio s o c u p a d o s. E n ca stela d o s em su a s p o s iç õ e s , o s d o is la d o s

11 3
O SÉCULOXX

a g o r a n e g a v a m -se à n e g o c ia ç ã o : s e to r e s J o g o v e r n o isr a e le n se d iv erg ia m


q u a n to a o futu ro d o s te r r itó r io s, alegan d oa n e c e ssid a d e da e x is tê n c ia d e um
c o r d ã o d e iso la m en to q u e o s p r o te g e sse (os in im ig o s v iz in h o s, e o s árabes
u n ira m -se n o s três “ n ã o s ” , p r o fe r id o s na C on ferên cia d e C a rtu m , ain d a no
a n o d e 1 9 6 7 : “N ã o à p a z c o m Israel, n ã o t q u a lq u er n e g o c ia ç ã o c o m Israel,
n ã o a o rec o n h e c im e n to d e Isr a e l” . 10
M a s u m n o v o fator v e io co n tr ib u ir p^-a o d esen ro la r d o s a c o n te c im e n ­
tos: a p e la n d o para a luta a rm a d a , g r u p o sJ e fed a yim (gu errilh eiros) e m em ­
b ros d a o r g a n iz a ç ã o p a lestin a F atah v o taram a a tacar Israel. A lo c a d o s na
fro n teira en tre Israel e a J o r d â n ia , estes g n p o s c o n stitu ía m -s e ca d a v ez mais
em u m fa to r de d e se sta b iliz a ç ã o da regiãt, p ela fo rça d e seu s a ta q u e s, e em
um a n o v a lid eran ça, já q u e, a c a d a a te n n d o , d isp u n h a m d e m a is p op u lari­
d a d e en tre a p o p u la ç ã o árab e. C o m o IsraJ revid asse a o s a ta q u e s, a u m en ta­
vam ta m b é m as p ressõ es p o lític a s so b re Casser d e q u e a ssu m isse u m a p osi­
ç ã o d e c o n tr o le d o c o n flito . M a s n ã o fo is to o q u e a c o n te c e u : e m 1 9 7 0 ,
N a s s e r m o rre d e um s ú b ito a ta q u e c a rd íico , s e n d o su b s titu íd o p o r A nuar
S ad at, m a s d e ix a n d o vazia a lid era n ça d o n u n d o árab e. E n q u a n to is s o , o ter­
r o r ism o cresce: a v iõ e s isr a e le n se s s ã o se^ ü estrad os, a tle ta s isr a e le n se s são
m a ssa c r a d o s na O lim p ía d a d e M u n iq u e cê 1 9 7 2 . O p o d e r e a p o p u larid ad e
d o s p a le s tin o s e n v o lv id o s em a ç õ e s te r n r is ta s c h e g a m a ta n to q u e , on d e
q u er q u e e stiv e sse m , c o n stitu ía m um podtr à p arte, q u a se u m E sta d o dentro
d o E sta d o . Sua a u to n o m ia em territó rio jird a n ia n o c h e g o u a ta l p o n to que,
e m 1 9 7 0 , o rei H u s se in d e c id e reprim i-U s, já q u e e sta v a s e n d o im p o ssív el
c o n tr o lá -lo s . Para m an ter a so b e r a n ia e i g o v e r n a b ilid a d e em se u próp rio
r ein o , o m o n a rca d esfere um a in ten sa a ç io rep ressiva c o n tr a o s p a lestin o s,
q u e resu lta em 4 m il m o r to s e u m se m -n ú n e r o d e e x p u ls õ e s , n o e p is ó d io que
fic o u c o n h e c id o c o m o S etem b ro N e g r o , cêp ois r e p e tid o n o L íb a n o .
A s r e ta lia ç õ e s de Israel, o d e se jo d e revidar a o s a c o n te c im e n to s d e 1 9 6 7
e a esc a la d a d o terro rism o p recip itaram m ais u m c o n fr o n to d ir e to c o m Is­
rael. N a te n ta tiv a d e recu p erar o s te r r itó r o s p e r d id o s, o E g ito e a Síria inva­
d em Israel n o Y om K ip p u r (D ia d o Perdão, em q u e o s ju d eu s fica m em jejum)
d o a n o d e 1 9 7 3 ; ap esar d as m u ita s perd as Israel c o n se g u e rech açar o a t a q u e ^
a v a n ç a n d o em territó rio e g íp c io até a entrada d a c id a d e d o C a iro . O provi- ,
só r io a c o r d o d e p az d e te r m in a d o p elas su p erp otên cias ga ra n te a sa íd a das
tr o p a s isra elen ses. Sem v itó r ia s esp eta cu U res d e n en h u m a p a rte, esta guerra
v e io c o n s o lid a r o p o d e r io m ilita r israeler&e, o a p o io d o s E sta d o s U n id o s ao
E sta d o d e Israel, m a s a o m e s m o te m p o representou u m b a q u e n o m ito d e in­

114
O MUNDO ÁRABE E AS GUERRAS Á R A B E -1S R A E L E N S E S

vencibilidade d e Israel: p e g o s d e su rp resa, e les n ecessita ra m d o a p o io ameri­


cano para en fren tar o a ta q u e d o s árab es, e su a s p erd as h u m a n a s foram tais
que ab alaram a a u to c o n fia n ç a israelen se. A o m e sm o te m p o , essa foi a p ri­
meira guerra em q u e o s p a íses árab es u saram o p e tr ó le o c o m o arm a p olítica:
ameaçando reduzir a p r o d u ç ã o e n q u a n to Israel c o n tin u a sse o c u p a n d o terras
árabes, a tática tev e s u c e s so , a in d a m ais p o r q u e , e x a ta m e n te n e ssa é p o c a , um
aumento n as n ec e ssid a d e s d o s p a íse s in d u stria is to r n a v a a O r g a n iz a ç ã o d o s
países E x p o r ta d o r e s d e P etró leo (O PE P) m ais p o d e r o sa , ta n to q u e , em fins
de 1 9 7 3 , au m en ta ra m em 3 0 0 % o p reço d o p r o d u to .
A p o lític a d e usar o p e tr ó le o c o m o arm a te v e , n o e n ta n to , um a o u tra
co n seq ü ên cia: a in te r v e n ç ã o a m erica n a , q u e fo i fe ita para sa lv a g u a r d a r seu s
próprios in teresses, p a sso u a ser p erm a n en te, a u m e n ta n d o in c lu siv e a d e p e n ­
dência d o s p a íse s á rab es em re la ç ã o a e ste p a ís. F o i a ss im q u e o s E sta d o s
U n id os p a ssa ra m a o c u p a r o p a p el d e m ed ia d o res n o c o n flito , te n ta n d o fo r­
mular, a partir da g e s tã o d o p resid en te Jim m y C arter, u m a p o lític a c o n ju n ta
com a U R S S para r e so lu ç ã o d o s c o n flito s n o O r ie n te M é d io . E m b o ra esta
persp ectiva n ã o ten h a s id o d e t o d o b em -su c e d id a , a p a z e n tre Israel e o E gito
acab ou se n d o feita so b o s a u sp íc io s d o s E sta d o s U n id o s , a tra v és d o h istó r ic o
acord o d e C a m p D a v id , em 1 9 7 8 . S eg u n d o o a c o r d o , a lé m d a fo r m a liz a ç ã o
da p a z , o s isra elen ses se retirariam d o S inai e seria m in ic ia d a s n e g o c ia ç õ e s
n o s p r ó x im o s c in c o a n o s para d iscu tir a c o n c e s s ã o d e a u to n o m ia às c o lô n ia s
de G aza e d a C isjo rd â n ia , o n d e v ivia a m a io ria d o s p a le s tin o s .
E m b ora sa u d a d a n o m u n d o in teiro c o m o o in íc io da a p r o x im a ç ã o q u e
poria fim a o c o n flito já q u a se c e n te n á r io , o a c o r d o d e C a m p D a v id fo i m a r­
cad o p or m a n ife sta ç õ e s h o stis em to d o s o s p a íses árab es. O s p a le s tin o s o re­
jeitaram , p or seq u er terem sid o c o n su lta d o s so b r e o d e s tin o d o s te rritó rio s
o n d e v iv ia m , e a Síria e a L íbia o c o n sid era ra m u m a tr a iç ã o , p a s s a n d o a lid e ­
rar um m o v im e n to q u e co n d e n a r ia o E gito a o o str a c ism o . N ã o fo i à to a q u e,
três a n o s d e p o is , S ad at fo i a ss a ssin a d o p or m ilita n tes q u e se o p u n h a m à su a
p o lítica d e a p r o x im a ç ã o c o m Israel e o O c id e n te . M e s m o a ss im , as lin h as
principais d e su a p o lític a foram m a n tid a s p or seu su cesso r, H o s n i M u b a ra k .
A partir d e e n tã o , o m u n d o árab e se veria g e n e r ic a m e n te d iv id id o en tre a q u e ­
les p aíses c h a m a d o s “ p r ó -O c id e n te ” , cu ja p o lític a a ce ita v a a in gerên cia a m e ­
ricana e a n e g o c ia ç ã o c o m Israel, c o m ô o E g ito , e o s o u tr o s , q u e ten ta v a m
M anter u m a p o lític a in d e p e n d e n te , ca racterizad a p or r e la ç õ e s em d iferen tes
níveis c o m a U R SS, c o m o a Síria, o Iraque e a L íbia.

115
O SÉCULO XX

N e s s e p rin cíp io da d éca d a d e 1 9 8 0 , n o e n ta n to , o u tr o s fa to res p assaram


a in flu en ciar a arena p o lític a d o O rien te M é d io , c r ia n d o n o v o s fo c o s d e c o n ­
flito: a o im p a sse en tre Israel e o s p a le stin o s (a c r e sc id o , lo g o d e p o is , d a p r o ­
b lem ática d o L íb a n o ) vieram se so m a r o s p ro b lem a s n o G o lfo P érsic o , c o m
a r e v o lu ç ã o islâ m ic a , a G u erra Irã-Iraque e , p o ste r io r m e n te , a in v a s ã o d o
K u w a it p e lo Iraq u e e a G u erra d o G o lfo .
A p esar d e n ã o ser u m p aís á rab e, o s a c o n te c im e n to s q u e rev o lu cio n a ra m
o Irã em 1 9 7 9 a b alaram to d a a reg iã o . D e sd e o s a n o s 2 0 g o v e r n a d o p ela d i­
n astia P ah levi, o Irã vin h a se n d o m o d e r n iz a d o e o c id e n ta liz a d o p elas su ces­
siv a s g e r a ç õ e s d e x á s, q u e v iam n a o b serv â n cia estrita d a re lig iã o um atraso
a ser su p era d o . P aís d e n u m ero sa p o p u la ç ã o x iita , n o e n ta n to , o reg im e m o -
d ern iza n te sem p re p recisou c o n ta r c o m u m a g ran d e d o se d e r e p ressã o , para
c o n te r a o p o s iç ã o d o s g r u p o s r e lig io s o s, q u e se fazia c a d a v ez m a is popular.
N a d éca d a de 1 9 7 0 , e ste m o v im e n to c o n h e c e u um líder, q u e , re fu g ia d o na
F ran ça, p rep a ra v a -se para v o lta r a o país: era o a ia to lá K h o m e in i, q u e a p e la ­
va a o s m u ç u lm a n o s para q u e restau rassem a a u to r id a d e d o islã n a so c ie d a ­
d e. Para K h o m e in i e seu s se g u id o r e s, a relig iã o p o d eria fo rn ecer as r eso lu ­
ç õ e s d o s p ro b lem a s d e form a q u e o E stad o m o d e r n o fora in c a p a z d e fazen
I n c e n t iv a n d o a s o lid a r ie d a d e a tr a v é s d a o r g a n iz a ç ã o d e r e d e s d e a ju d a
m ú tu a , d e e sc o la s e p o sto s d e sa ú d e , e les m o b iliz a m m ilh ares d e fié is, d a n d o
in íc io à r e v o lu ç ã o is lâ m ic a , e m 1 9 7 9 , q u e r e s u lta n a p r o c la m a ç ã o da
R ep ú b lica Islâm ica n o a n o s e g u in te .11
E m b ora esta n ã o ten h a sid o a ú n ica ra zã o , fo i a g o ta d ’á gu a p ara q u e o
Iraque in v a d isse o Irã em 1 9 8 0 . M e sm o te n d o u m a q u e stã o d e fron teira m al
re so lv id a d e sd e 1 9 7 5 , o g o v e r n o la ic o d e S a d d a m H u s s e in p r e o c u p a v a -se
c o m a g r a n d e p o p u la r id a d e q u e o n o v o reg im e is lâ m ic o p o d e r ia alcan çar
en tre a su a p o p u la ç ã o , cu ja m a io ria ta m b ém era x iita . A ssim , a gu erra tem o
o b je tiv o d e, além d e o b ter u m a c o r d o so b re a q u e stã o d as fro n teira s, destruir
o regim e d e K h o m e in i e c o n q u is ta r a c h e fia m o ra l d o m u n d o á r a b e , vaga
d esd e a e x c lu s ã o d o E g ito da L iga Á rab e. Se a guerra n ã o p r o v o c o u m aiores
c is õ e s n a so c ie d a d e ira q u ia n a , ela o fez n o m u n d o árabe: a Síria a p o io u o Ira
p or c o n ta d e su a p róp ria riv a lid a d e co m o Iraq u e, e o s o u tr o s p a íses ficaram
d o la d o d e ste , n a esp era n ça d e q u e a d errota d o Irã p u d e sse c o n te r a am eaça
a o s seu s p ró p rio s regim es p o lític o s.
A guerra dura o it o a n o s e s ó aca b a c o m o c e ssa r -fo g o p r o c la m a d o pelas
N a ç õ e s U n id a s, sem q u e n en h u m d o s la d o s p o ssa p ro cla m a r-se ven ced o r; n e­
n h u m d o s d o is c o n q u is to u te r r itó r io s, e a s p erd as e m v id a s fo r a m m o n u m en -

116
O MUNDO ÁRABE E AS GUERRAS A R A B E - 1S R A E L E N S E S

ta is para o s d o is la d o s. A o m e sm o rem po, p o d e -se d izer q u e o s o b je tiv o s de


a m b o s foram a lca n ça d o s: o regim e islâ m ico n ã o caiu (a o c o n tr á r io , c o n s o li­
d o u -se , p rin cip a lm en te d e p o is da c o m o ç ã o ca u sa d a pela m o r te d e K h o m ein i
em 1 9 8 9 ), n em a r e v o lu ç ã o iran ian a se e sp a lh o u p e lo G o lfo P é r sic o , p e lo
m en o s até e n tã o .
O c o n fr o n to en tre Irã e Iraque tam b ém revelou a o m u n d o a c r e scen te im ­
p ortân cia d o p e tr ó le o na região; as gran d es p o tê n c ia s s ó in tervieram q u a n d o
foram a tin g id o s n a v io s p etro leiro s q u e, se d e str u íd o s, p o d e r ía m p reju d icar o
su p rim en to d o c o m b u stív e l a o O cid en te. A lém d is so , c o m o fim da g u erra, o
Iraque d e sp o n to u c o m o o p ro teto r d o s regim es d o s p a íse s d o G o lfo P érsico,
em lugar da A rábia S a u d ita , q u e até e n tã o o c u p a v a esta p o siç ã o . A fin a l, este
país d o m in a v a o C o n se lh o d e C o o p e r a ç ã o d o G o lfo , c r ia d o em 1 9 8 1 , em d e ­
trim en to d o Irã, fa v o rá v el a u m a o r g a n iz a ç ã o islâ m ica , e d o Iraq u e, p a rtid á ­
rio d e u m c o n s e lh o geral árabe; a ssim , fa zen d o um a p o lític a q u e fa v o r e c e o s
países d o g o lfo em p reju ízo d a s o u tra s reg iõ es árab es d o O r ie n te M é d io , a
A rábia S au d ita co n trib u i para o acirr a m en to d as riv a lid a d e s, além d e p erm i­
tir o a u m e n to d a s d esig u a ld a d e s so c ia is en tre o s p a íses d e m a io r e s e m en o res
reservas p etrolíferas. P aíses c o m o o K u w ait tin h a m u m a ren d a p e r c a p ita d e
13 m il d ó la r e s p or a n o , a o p a sso q u e o s m ais p o b r e s, c o m o o E g ito , c o n ta ­
vam a p e n a s c o m 6 5 0 d ó la res.
E sta situ a ç ã o d e riv a lid a d es e te n s õ e s é agravad a c o m a crise e c o n ô m ic a
do Iraque, q u e, d e v e n d o 7 0 b ilh õ e s d e d ó la r e s a o fim da gu erra c o m o Irã,
busca um a saíd a q u e, a o m e sm o te m p o , s o lu c io n e se u s p r o b le m a s in tern o s e
c o n s o lid e su a lid e r a n ç a n o m u n d o á r a b e . E sta s o lu ç ã o fo i a in v a s ã o d o
Kuwait, o c o r r id a em a g o sto d e 1 9 9 0 . U sa n d o c o m o a r g u m e n to a d iv isã o ar­
tificial en tre o s d o is p aíses feita p e lo s in g leses e a c u sa n d o o K u w a it d e cau sar
b aixa n o p reço d o p e tr ó le o , p or ven d er m ais d o q u e a c o ta e sta b e le c id a pela
OPEP, S ad d am H u ssein p ro v o ca a prim eira g ra n d e crise in te r n a c io n a l a p ó s o
& n da G uerra Fria, q u e realiza a lia n ç a s a n te s im p e n sá v e is , c o m o e n tre o s
EUA , U R SS e a Síria, sem c o n ta r c o m a o p o s iç ã o da A rá b ia S a u d ita , a m e a ç a -
d ireta m en te p ela agora m aior p o tê n c ia m ilitar d a reg iã o .
L iderada p e lo s E sta d o s U n id o s e c o m a u to r iz a ç ã o d a O N U , u m a gra n d e
c o a liz ã o in tern a cio n a l a taca o Iraque em 1 9 9 1 . T e n ta n d o e n v o lv e r se u s tra-
c io n a is a lia d o s d ireta m en te n o c o n flito para rachar a a lia n ç a da O T A N , o
a q u e lan ça a lg u n s m ísseis em Israel, na e sp era n ça d e q u e e ste d ecla re g u er-
ta e force a en trad a d o s o u tr o s p aíses da reg iã o . M a s seu c á lc u lo n ã o fu n c io -
®í o r ie n ta d o p e lo s E sta d o s U n id o s, Israel n ã o se e n v o lv e n o c o n flito , e o

117
O S É C U L O XX

ú n ic o a a p o ia r H u s s e in é Ia sser A ra fa t. C om is s o , a s fo r ç a s m ilita r e s d o
Iraq u e s ã o ra p id a m e n te d estru íd a s. O poder a m e r ic a n o , n o e n ta n to , n ã o é
su fic ie n te para d erru b ar o regim e d e Saddam H u s se in , q u e , m e sm o so fr e n d o
o em b a r g o e c o n ô m ic o im p o s to p ela s grandes p o tê n c ia s, c o n tin u a se su ste n ­
ta n d o n o Iraque.
A o fim da g u erra , a r e sp o n sa b ilid a d e m a io r so b re a a d m in istr a ç ã o d o
c o n flito recai so b r e o s E sta d o s U n id o s; por c o n ta da crise d a U R S S , d e s p o n ­
ta m fin a lm e n te c o m o o ú n ic o m e d ia d o r p ossível p ara garan tir a esta b ilid a d e
n o O rien te M é d io , e ela d e p e n d e , n esse m o m e n to , b a sica m en te d a b u sca de
u m a so lu ç ã o para a q u e stã o p alestin a.

A QUESTÃO PALESTINA

D e sd e o in íc io d a d é c a d a d e 1 9 7 0 , c o m a esc a la d a d o ter r o r ism o p a le s tin o ,


fica c la r o q u e u m a s o lu ç ã o d ev e ser e n co n tra d a para o p r o b le m a d o s refu gia­
d o s p a le stin o s. A lém d is s o , c o m o reza a cartilh a d o d ir e ito in te r n a c io n a l, a
c o n d iç ã o d e re fu g ia d o é p r o v isó r ia , n ã o p erm a n en te, e o fo r ta le c im e n to d e li­
d era n ça s c o m o Iasser A ra fa t fa zia q u e stã o d e lem b rar a o m u n d o to d o , e em
esp e c ia l a Israel, q u e o c u s to a p a g a r p e lo d e sp r e z o à situ a ç ã o d o s p a le stin o s
seria a lto para a m b o s o s la d o s.
A q u e stã o é q u e n em to d o s c o n c o r d a v a m c o m isso . Em Israel, d e sd e as
c o n q u is ta s d a s terra s c o n s id e r a d a s b íb lic a s na G u erra d o s S eis D ia s — a
S am aria e a J u d é ia (q u e c o m p õ e m a C isjo r d â n ia ), o S in a i e a s c o lin a s d o
G o la n s ã o tr a n sfo r m a d o s em territó rio s o c u p a d o s , e n q u a n to q u e a C id ad e
V elha d e J eru salém é a n e x a d a p e lo E sta d o d e Israel — , a in terp reta çã o d e q ue
a era m essiâ n ica esta v a para c o m e ç a r to r n a -se p o p u la r en tre o s ju d eu s ultra-
o r to d o x o s q u e , lid era d o s p e lo ra b in o K o o k , d efen d em a a n e x a ç ã o d e to d o s
e sses territórios. Para esta s p e ss o a s, o s p a le stin o s n ã o tin h a m q u a lq u er d irei­
to à q u ela s terras, q u e p erten ceríam a o s ju d eu s p or d ir e ito d iv in o e h istó r ic o .
D ia n te da recu sa d o g o v e r n o isr a e le n se e m a u to r iz a r a c o lo n iz a ç ã o d essas
áreas, fo ra m c o n stitu íd o s g r u p o s, c o m o o G u sh E m u n im (B lo c o d o s F iéis),
q u e p assaram a fa z ê -lo d e form a c la n d e s tin a , a o m e sm o te m p o q u e p a rticip a ­
v am d e u m a a rtic u la ç ã o d e d ireita , fo rm a d a ta m b é m p o r M e n a c h e m Begin
(e x -m ilita n te d o Irgun) e p or m ilitares q u e d e fe n d ia m a m a n u te n ç ã o d e um
e sc u d o territorial co n tra a ta q u es árab es, p ara to m a r o poder.

118
0 MUNDO ÁRABE E AS GUE R RA S Á R A B E - I S R A E L E N S E S

Isto a c o n te c e u em 1 9 7 7 , q u a n d o Begin to r n o u -s e p r im e ir o -m in istr o à


frente d o p a rtid o L ik u d , e a partir d a í a c o lo n iz a ç ã o d o s te r r itó r io s o c u p a d o s
rorn ou -se p o lític a o fic ia l d o n o v o g o v tr n o . A ssim , fo i o r g a n iz a d a u m a rede
d e a ss e n ta m e n to s , lo c a liz a d o s princip alm en te na C isjo r d â n ia , em q u e eram
o ferecid a s v a n ta g en s e c o n ô m ic a s para a q u eles q u e , n ã o n e c e ssa r ia m e n te re­
lig io s o s, d eseja ssem m u d ar-se para lá. L ogo, d ar-se-ia o p a ss o p ara a a n e x a ­
ç ã o futura d o s territó rio s e, n o c a so dos u ltr a -o r to d o x o s , e sta r ia m a b e r to s o s
c a m in h o s d a r e d e n ç ã o m essiâ n ica .
E sta p o lític a isra elen se era fortalecid a p ela a tu a ç ã o d a gu errilh a p a le sti­
n a, lid erad a p ela OLP. D e sd e o in íc io da d éca d a d e 1 9 7 0 , o s a ta q u e s terro ris­
ta s m u ltip lic a v a m -se , o q u e reforçava o a r g u m e n to d a im p o s s ib ilid a d e d e
q u alq u er n e g o c ia ç ã o . C o m o s a c o r d o s d e C a m p D a v id , a s itu a ç ã o da O L P
c o m p lic a v a -se , já q u e o E gito n ã o era m ais u m a lia d o . A ssim , a d ir e ç ã o da
o r g a n iz a ç ã o d e c id e pela m u d a n ça de o r ie n ta ç ã o p o lític a , p a ss a n d o a bu scar
so lu ç õ e s d ip lo m á tic a s para a lu ta p e lo re c o n h e c im e n to d a a u to d e te r m in a ç ã o
d o s p a lestin o s.
E sta o p ç ã o n ã o é feita sem d ificu ld a d es; m u ito s p a le s tin o s , a essa altu ra,
n a scid o s e c r ia d o s em c a m p o s d e r efu g ia d o s, relu tam em d e sistir d a lu ta ar­
m ad a. É a ssim q u e n o v o s g r u p o s, c o m o a F rente P o p u la r d e L ib erta çã o da
P alestin a e fu tu r a m e n te o H a m a s, v ã o c r ia n d o d is s e n s o s q u e te n d e m a se
a p ro fu n d a r c o m o te m p o . A p e g a d a a um a ca rta d e in te n ç õ e s m a is rad ical
q u e seu s p r ó p r io s líd eres, a O L P se vê c o n tin u a m e n te id e n tific a d a c o m su a
fa cçã o e x tr e m ista , já q u e, para ter s o b seu c o m a n d o o c o n ju n to d o s v á rio s
p eq u en o s g r u p o s p a le stin o s, é o b r ig a d a a a p o ia r a to s d o s q u a is n e m sem p re
está a favor. É n este c o n te x to , d e a to s terroristas p a le s tin o s e in c r e m e n to na
c o lo n iz a ç ã o d o s te r r itó r io s, q u e se d á a in v a s ã o d o L íb a n o p o r Israel em
1 9 8 2 . U m d o s m ais fra co s E sta d o s d o m u n d o á ra b e, h á a n o s q u e o L íb an o
vin h a se n d o p a lc o d e um a guerra civ il en tre cr istã o s e m u ç u lm a n o s q u e n ã o
via fim; além d is so , o d e se jo d e ver e ste territó rio a n e x a d o a o seu E sta d o faz
co m q u e a Síria se a p r o x im e m ais e m a is d o L íb a n o , c h e g a n d o a intervir e fe ­
tiv a m en te em 1 9 7 6 . D e p o is d o s a c o r d o s d e C a m p D a v id , o s p a le s tin o s c o n ­
cen tram -se m a is e m ais n a q u ela r e g iã o , a lia n d o -se a o s sír io s. C o m o in íc io
das o fe n siv a s d e Israel a o sul d o L íb a n o , o n d e se lo c a liz a m a s b a ses d a OLP,
0 c o n flito se acirra.
Em 1 9 8 2 , Israel inicia um a o fe n s iv a n o L íb a n o , c o m a ju stifica tiv a d e re-
ch açar fo c o s d e gu errilh a a o n o rte d o p a ís , m a s, na v erd a d e, c o m o o b je tiv o
de elim in a r “ q u a lq u er presen ça física o>u sim b ó lic a , s o b fo rm a m ilitar o u or-

11 9
O SÉCULO XX o M U N D O Á R A B E E A S G U E R R A S Á R A B E - 1S R A E L E N S E S

g a n iz a c io n a l” d o s p a le stin o s n o L íb a n o , além d e g aran tir n o p o d e r o presi­ A m u d a n ça d e o r ie n ta ç ã o da O L P rep resen to u u m sério p r o b le m a p ara o

d e n te c r istã o B achir G e m a y e l, a lia d o d e Israel. In d o m a is lo n g e d o q u e acon­


governo isra elen se. C o m o e ste c o n tin u a sse a se recu sar a n e g o c ia r c o m a q u e ­
les com q u em a té o s E sta d o s U n id o s já c o n v e r sa v a m , c o m e ç a r a m a s p r e ssõ e s
se lh a v a a p ru d ên cia , Israel in v a d e a c id a d e d e B eiru te, m a ta n d o civ is e au­
para q u e e sta p o lític a fo s s e m o d ific a d a , a in d a m a is d e p o is d a G u erra d o
m e n t a n d o a in d a m a is o n ú m e r o d e r e fu g ia d o s q u e e x is t ia m n a reg iã o .
Golfo, na q u a l este p aís c o n s o lid o u su a p o siç ã o d e g ra n d e m e d ia d o r d o s c o n ­
M e s m o a ssim , c o m o era g ra n d e a ca p a c id a d e de resistên cia d o s p a le stin o s, o s
flitos lo c a is e m o s tr o u ser, m a is u m a v e z , q u em g a ra n tia em ú ltim a in stâ n c ia
c h o q u e s c o m o e x é r c ito isr a e le n se c a u sa v a m g r a n d e n ú m e r o d e b a ix a s de
a segurança d e Israel. A lé m d is s o , a O L P h a v ia s a íd o e x tr e m a m e n te e n fr a ­
a m b a s a s p artes, o q u e c o m e ç o u a gerar ce r to d e sc o n te n ta m e n to p o r parte da
quecida d o s c o n flito s n o G o lfo , p or ter sid o a ú n ica in s titu iç ã o a a p o ia r o
p o p u la ç ã o isr a e le n se , q u e p a ss o u a criticar o afã d e seu E sta d o em p rosseguir
Iraque, e p r e c isa v a r e c o n q u ista r e sp a ç o s p o lític o s; Israel, p o r su a v e z , p o r
n o s a ta q u es.
conta d a s riv a lid a d es p r o d u z id a s p e lo m e sm o c o n fr o n to , d e ix o u su a p o s iç ã o
E sta p o s iç ã o fo i c o n so lid a d a a partir d o s m a ssa cres d o s c a m p o s de refu­
de isolamento, a p r o x im a n d o -se d a J o rd â n ia e d a A rá b ia S a u d ita . H o r a m e ­
g ia d o s d e Sabra e C h a tila , q u a n d o m a is d e m il c iv is fo ra m m o r to s p or uma
lhor n ã o h a v ia p ara o in íc io d o p r o c e ss o d e p az.
fa c ç ã o cristã trein a d a e m a n tid a p o r Israel, em área c o n tr o la d a p o r e ste país.
A prim eira c o n fe r ê n c ia d e p a z, p o r ta n to , sairia em 1 9 9 1 , m e sm o c o m a
C a in d o c o m o u m a b o m b a n a o p in iã o p ú b lic a isra elen se, a n o tíc ia d o acon te­
má v o n ta d e d o p rim e ir o -m in istr o isra elen se Itzh ak S ham ir; m a is ra d ica l d o
c im e n to r a ch o u a so c ie d a d e a o m eio: o m o v im e n to P az A gora c o n se g u iu reu­ que B egin , q u e já h a v ia a c e ita d o n e g o c ia r c o m S ad at n o s a n o s 7 0 , S h am ir s ó
n ir 4 0 0 m il p e ss o a s (1 0 % d a p o p u la ç ã o israelen se) em u m a m a n ife sta ç ã o gi­ cedeu q u a n d o o s E U A a m e a ç a r a m c o n g e la r e m p r é s tim o s a Israel. M e s m o
g a n te sc a p e lo fim d a g u erra , c o n sid e r a d a “o V ietn ã d e Isr a e l” . P ela prim eira assim , a s c o n v e r sa ç õ e s n ã o a v a n ça ra m m u ito . Is to s ó fo i a c o n te c e r q u a n d o ,
v e z , s o ld a d o s recu sa v a m -se a ir para o s c a m p o s d e b a ta lh a , a le g a n d o razões en v o lv id o s na c a m p a n h a ele ito r a l isra elen se d e 1 9 9 2 , o p a r tid o A v o d á (tra­
d e c o n s c iê n c ia . E sta v a r a c h a d o o c o n s e n s o sio n is ta . P o u c o te m p o d ep o is, balhista) e n c a m p o u a p az em seu d isc u r so p o lític o , c o n s e g u in d o , p o r is s o , a
c a ía A riel S h a ro n , m in istr o d a D e fe sa d e Israel, e , a p esa r d a v itó ria israelen­ vitória c o n tr a o L ik u d , te n d o Itzh ak R a b in , a n tig o m e m b r o d a lin h a d u ra d o
se n o s c a m p o s d e c o m b a te — a lid eran ça d a O L P rea lm en te d e ix o u o país, exército isr a e le n se , c o m o p rim eiro -m in istro . A partir d a í, as in te n ç õ e s c o m e ­
m u d a n d o -se para a T u n ísia — , as p ressõ es in tern as o b rig a ra m o prim eiro- çam a d ar fru tos: o s p a le s tin o s c o n c o r d a m c o m o s p la n o s d e a u to n o m ia gra ­
m in istr o B egin a renunciar. dual para o s te r r itó r io s, c o m e ç a n d o p o r G a z a , e , em 1 9 9 3 , d e p o is a c e ito s p o r
A m a r g a n d o m a is u m a d e r r o ta , a O L P en tra em crise; su a s tá tic a s d e ne­ am bas a s p artes o s te r m o s d o s a c o r d o s d e O s lo , A ra fa t e R a b in rea liza m o
g o c ia ç ã o n ã o m a is se d u z ia m su a s b ases, p rin c ip a lm e n te a q u e le s 2 ,5 m ilh ões h istó rico a p e r to d e m ã o s n a C asa B ran ca, s o b o o lh a r a p r o v a d o r d o p r e si­
d e h a b ita n te s d a C isjo rd â n ia e d a fa ix a d e G a za . O d e se sp e r o d esta p o p u la ­ dente a m e r ic a n o Bill C lin to n (ver q u a d ro 2: a d isp e r sã o d o s r e fu g ia d o s p a le s­
ç ã o fo i o q u e le v o u à in tifada (ressu rreiçã o ), o u “ r e v o lu ç ã o d as p e d r a s” , que tinos [1 9 9 6 ] ) .12
c o m e ç o u e sp o n ta n e a m e n te em 1 9 8 7 e to m o u d e su rp resa ta n to Israel qu an ­ O a c o r d o p revia a a u to n o m ia p a le stin a so b re G a z a e a c id a d e d e J eric o ,
t o a OLP. A r m a d o s c o m p a u s e p ed ra s, jo v e n s p a le s tin o s a ta c a v a m so ld a d o s na C isjo rd â n ia , c o m a retirad a d o e x é r c ito d e Israel e a s u b s titu iç ã o p o r u m a
isra elen ses, q u e rea g ia m à b ala. M a is d o q u e ra p id a m e n te , g r u p o s islâm icos polícia p a lestin a ; a o s p o u c o s , a a u to n o m ia en g lo b a r ia o u tr a s á rea s, fo r m a n ­
e x tr e m ista s c o m o o H a m a s , q u e p reg a v a m a d e str u iç ã o d e Israel e n ã o reco­ d o , p o r fim , a A u to r id a d e N a c io n a l P a lestin a , q u e o g o v e r n o isr a e le n se a in d a
n h ecia m a lid eran ça d a O LP, co m e ç a r a m a p articip ar d o s a ta q u e s. A ssu sta d o n ão tin h a c o r a g e m d e ch a m a r d e E sta d o . O clim a b o m c r ia d o p e la s n e g o c ia ­
c o m a p o s s ib ilid a d e d e p erd er d e v ez a lid era n ça d a p o p u la ç ã o p a lestin a , ções fo i a lim e n ta d o p e lo a c o r d o d e p az c o m a J o r d â n ia , e m 1 9 9 4 ; ele d eu in í-
A ra fa t u sa a in tifada c o m o in str u m e n to d e p r o p a g a n d a , a n g a r ia n d o a sim p a­ C1° a u m a fase d e c o o p e r a ç ã o e c o n ô m ic a en tre Israel e v á r io s p a íse s ára b es,
tia m u n d ia l a o s r e v o lt o s o s . A o m e s m o te m p o , n a r e u n iã o d o C o n s e lh o co m o o M a r r o c o s, a T u n ísia e a p róp ria J o rd â n ia .
A s itu a ç ã o n ã o e sta v a tã o b o a para A rafat, q u e c o n tin u a v a e n fr e n ta n d o
N a c io n a l P a le stin o d e 1 9 8 8 , e le ren u n cia d e v e z a o te r r o r ism o , a o m esm o
a o p o s iç ã o d e g r u p o s fu n d a m e n ta lista s c o m o o H iz b o lá , q u e n ã o a c e ita v a m
te m p o q u e p r o c la m a o r e c o n h e c im e n to d o d ir e ito d e Israel à e x is tê n c ia e en ­
0 a c o r d o d e p a z e c o n tin u a v a m a s s a ssin a n d o ju d eu s in d isc r im in a d a m e n te
fa tiza a n e c e ssid a d e p r ó x im a d e cria ç ã o d o E sta d o P a le stin o .

120 121
O SÉCULO XX

n o s te r r itó r io s, e p ara R a b in , q u e tin h a q u e en fren tar a o p o s iç ã o in tern a d o s


fu n d a m e n ta lista s ju d eu s, o s c o lo n o s u ltr a -o r to d o x o s q u e h a b ita v a m o s terri­
tó r io s e se recu sa v a m a d e ix á -lo s , p a r tic ip a n d o ta m b é m e les d e m an ifesta­
ç õ e s v io le n t ís s im a s c o n tr a a q u e le s q u e c o n s id e r a v a m s e u s in im ig o s : em
1 9 9 4 , o c o lo n o a m e r ic a n o B aruch G o ld ste in m a to u 2 9 m u ç u lm a n o s q u e re­
za v a m na T u m b a d o s P atriarcas, em H e b r o n , lu gar sa g r a d o p ara m u çu lm a­
n o s e ju d eu s. M o r to a p ó s o a te n ta d o , a a titu d e d e G o ld ste in fo i d uram ente
critica d a p e lo g o v e r n o isr a e le n se , m as e le fo i en terra d o c o m o h eró i p or seus
co r r e lig io n á r io s. A esc a la d a d e v io lê n c ia p arecia n ã o ter lim ite s, e realm ente
n ã o tin h a: em n o v e m b r o d e 1 9 9 5 , fo i a vez d o p r im e ir o -m in istr o R a b in ser
a ss a ssin a d o p e lo fu n d a m e n ta lista re lig io so ju d eu Y gal A m ir, a o fim d e uma
m a n ife sta ç ã o d e p a z em T el-A viv.13
O a ss a ssin a to d e R ab in ab riu um a g ran d e ferid a na so c ie d a d e israelense:
p e la p r im e ir a v e z , u m a te n t a d o d e ss a s p r o p o r ç õ e s era c o m e t id o p o r um
ju d eu , q u e a le g a v a q u e R ab in estava im p e d in d o a c o n tin u a ç ã o d o p rocesso
m e ssiâ n ic o . M e s m o q u e a d e m o r a em im p lem en ta r o s a c o r d o s, o a u m e n to de
a to s terroristas n a s cid a d e s d e J eru salém e T el-A viv e o v io le n to d iscu rso do
L ik u d co n tra a p az c o n tr ib u ísse m para a q u ed a d e p o p u la r id a d e d e R ab in , a
m a io r ia d a p o p u la ç ã o n ã o e sp era v a tal a titu d e . U m a se m a n a a p ó s o atenta­
d o , 7 4 % da p o p u la ç ã o p a ssa v a m a a p o ia r o p r o c e ss o d e p az. M a s is to não
seria su fic ie n te para q u e o p a r tid o A vod á v o lta sse a v en cer a s e le iç õ e s, repre­
se n ta d o p o r S h im o n Peres; o s n u m e r o so s a te n ta d o s terro rista s p a le s tin o s que
v o lta r a m a ser p erp etra d o s em Israel aca b a ra m p o r fazer p en d er a balança
para o la d o d o L ik u d , e B en jam in N e ta n y a h u a ssu m iu o g o v e r n o israelense
e m 1 9 9 6 c o m a p r o m e ssa d e frear to d a s a s n e g o c ia ç õ e s p o ssív e is c o m o s pa­
le s tin o s . A p r e ssã o a m erica n a , n o e n ta n to , o o b r ig o u a fazer a lg u m a s c o n ces­
s õ e s , q u e resu ltaram n o s a c o r d o s d e W y e , em 1 9 9 8 , q u e , p o r su a v ez, leva­
ram à crise d e seu g o v e r n o d e c o a liz ã o d e d ireita , o b r ig a n d o -o a antecipar
e le iç õ e s gerais p ara 1 9 9 9 , u m a n o a n tes d o p rev isto .

CONCLUSÃO

H a verá p az n o O rien te M éd io ? O im p asse n as n e g o c ia ç õ e s en tre p alestin os e


israelen ses, a p o b reza da p o p u la ç ã o d o s territórios da A u to r id a d e N a cio n a l
P a lestin a , as ten ta tiv a s d e c o n tin u a ç ã o d a c o n str u ç ã o d e b airros israelenses
em áreas d estin a d a s à d e v o lu ç ã o a o s p a lestin o s e as d en ú n c ia s d e corrupÇ30

122
O MUNDO ÁRABE E AS G UE RRA S Á R A B E - 1S R A E L E N S E S

que m arcam o g o v e r n o d e A ra fa t sã o u m a so m b ra n o a n d a m e n to d o p r o c e s­
so de Pa z’ Que a ‘nc^a esta lo n g e d e acabar. M e sm o a ssim , a e sta b iliz a ç ã o da
Autoridade N a c io n a l P alestin a fa z c o m q u e, h o je, p o u c o s se rec u se m a a d m i­
tir q ue a fu n d a ç ã o o ficia l d o E sta d o P a lestin o é ap en a s u m a q u e stã o d e te m p o .
S im u lta n e a m e n te , o s a n o s 9 0 fo ra m te s te m u n h a d o a g r a v a m e n to d a s
condições só c io -e c o n ô m ic a s da m a io ria da p o p u la ç ã o á ra b e. O c r e sc im e n to
econômico p r o p ic ia d o p e la p r o d u ç ã o p etro lífe ra n ã o c o r r e sp o n d e u a u m a
elevação n o p a d rã o d e vid a g e r a l, a in d a m ais p o r q u e a p o p u la ç ã o árab e c o n ­
tin u a c r e s c e n d o m u ito e o s s is te m a s p o lít ic o s d a m a io r ia d o s p a ís e s d o
Oriente M é d io n ã o têm c o m o o b je tiv o u m a d istr ib u iç ã o m a is ju sta d a r iq u e ­
za. Com is s o , v e m a u m e n ta n d o o fo s s o en tre o s p o u c o s r ic o s e o s m u ito s p o ­
bres da r e g iã o , o q u e c o n tr ib u i para a m a io r d escren ça n a s fo r m a s tr a d ic io ­
nais dese fazer p o lític a e, c o n se q u e n te m e n te , n o fo r ta le c im e n to d o s m o v i­
mentos fu n d a m e n ta lista s.
D e fa to , e m b o r a n ã o se p reten d a reduzir um fe n ô m e n o r e lig io s o a su a s
causas só c io -e c o n ô m ic a s , é d e a ssu sta r o n ú m ero d e p a r tid o s q u e v ê m se fo r­
talecen d o e g a n h a n d o a p o io p o p u la r em d iv erso s p a íse s m u ç u lm a n o s , u sa n ­
do m u ita s v e z e s a v io lê n c ia p a ra a lc a n ç a r s e u s o b j e t iv o s . A A r g é lia e o
A fegan istão s ã o a p e n a s o s e x e m p lo s m a is ev id e n te s d esta s itu a ç ã o , e a c o n tí­
nua e x is tê n c ia d e g r u p o s fu n d a m e n ta lis ta s e n tr e a p o p u la ç ã o p a le s tin a é
prova d a v ita lid a d e d e su a s id é ia s .14
D a m esm a fo rm a , Israel, h o je, vive as co n se q ü ê n c ia s d o p r o fu n d o d issen -
so id eo ló g ico e cu ltu ral en tre ju d eu s secu lares e fu n d a m e n ta lista s. A cirra n d o
um c o n flito q u e te v e o rig em n o p r ó p r io m o m e n to d e fu n d a ç ã o d o E sta d o ,
op ostos à p a z c o m o s árab es e à p lu ralid ad e p o lític a e r e lig io s a , o s ju d eu s fu n -
dam entalistas s ã o a m a io r a m ea ça à c o n so lid a ç ã o d a d e m o c r a c ia e m Israel.
É um q u a d r o de p e r p le x id a d e , e ste p in ta d o n o lim ia r d o s é c u lo X X I: n a s­
cidos so b o sig n o d a m o d e r n iz a ç ã o o c id e n ta liz a n te , o s E sta d o s n a c io n a is d o
Oriente M é d io se d ep a ra m , ca d a v ez m a is, c o m m o v im e n to s q u e u n em p o lí-
^ca à relig iã o , c r ia n d o fu n d a m e n to s h is tó r ic o s em a c o n te c im e n to s o c o r r id o s
a sécu lo s e sé c u lo s para as o p ç õ e s q u e d e fe n d e m , q u a se n u n c a p e la via d a
neg o c ia ç ã o e d o d ireito . Isto m u d a c o m p le ta m e n te a s itu a ç ã o c o m a q u a l is-
faelenses e á rab es e sta v a m a c o stu m a d o s a lid ar há q u a se u m s é c u lo , q u a n d o
0 U iim igo era o v iz in h o . A g o r a , o p e r ig o está n o la d o d e d e n tr o .

123
O SÉCULO XX

QUADRO 1
A s principais on d as de im igração judaica para a Palestina

PERlODO NÚMERO ORIGEM


1882-1903 (V a liá ) 20/30.000 Rússia
1904-1923 (2"-3“ a liá s) 35/40.000 Rússia e Europa Oriental
1932-1938 (5* a liá ) 217.000 Alemanha e Polônia
1939-1948 (6* a liá ) 153.000 Refugiados dos campos de
concentração europeus
1948-1951 687.000 Países árabes e Europa Central
1952-1960 54.000 Norte da África
165.000 Egito (1956)
75.000 Europa Central
1961-1964 228.000 Marrocos

1965-1971 81.000 EUA e Europa Ocidental


116.000 América Latina
1972-1974 143.000 URSS
1975-1989 230.000 EUA, Europa Ocidental,
América Latina, Irã (1979),
Etiópia (1985-1986)
a partir de 1989 450.000 Ex-URSS

Fonte: François Massoulié. Os c o n flito s d o O r ie n te M é d io . São Paulo, Ática, 1994, p. 64.

QUADRO 2
A d ispersão d e refugiados p alestin os (1 9 9 6 )

PAÍS NÚMERO
Jordânia 1.358.706
Cisjordânia 532.438
Gaza 716.930
Líbano 352.668
Síria 347.391
Total 3.308.133
Fonte: Rosemary Sayigh. “L’avenir brouillé des réfugiés”, in L e M o n d e D ip lo m a tiq u e ;
m a n iè re d e v o ir 3 4 ,
maio 1997, p. 24.

124
o MUNDO ÁRABE E AS G UE R RA S Á R A B E - 1S R A E L E N S E S

NOTAS

j O islomismo e J e ru sa lé m — A relação entre Jerusalém e o islamismo começou quando,


tendo conquistado a cidade durante a expansão imperial, os muçulmanos construíram
o Domo da Rocha e a Mesquita Aqsa, o primeiro complexo de prédios religiosos do
islã, em cima do Monte do Templo. A escolha da cidade foi importante; por ser a mais
sagrada para o judaísmo e o cristianismo, ela fez parte da estratégia de legitimar a nova
religião e o novo império que então nasciam. O local selecionado foi a rocha sobre a
qual Abraão ter-se-ia disposto a sacrificar seu filho Isaac em nome da fé monoteísta, e
onde mais tarde teria repousado a Arca do Templo. Para os muçulmanos, a cidade pas­
sou a ser sagrada porque nela foi construído o santuário da “revelação final”, que,
substituindo o Templo judaico de Salomão, continuava as revelações feitas a judeus e
cristãos mas corrigia os erros nos quais estes haviam incorrido. Além disso, mesmo que
a palavra “Jerusalém” nunca tenha sido mencionada no Corão, o versículo 17:1 conta
que Deus teria levado Maomé em uma jornada, à noite, da mesquita sagrada, em Meca,
para a mesquita mais distante (em árabe, a l-M a s jid a l-A q sa ). Embora uma interpreta­
ção considere que essa mesquita seja no céu, a interpretação contemporaneamente acei­
ta pelos muçulmanos entende que a mesquita distante localizava-se em Jerusalém.
2 O ju d a ís m o e J e ru sa lé m — De acordo com o Antigo Testamento, Jerusalém passou a
ser sagrada para os judeus quando o rei Davi trouxe a Arca Sagrada para esta cidade,
construindo um palácio real, fortalecendo suas fortificações e fazendo de Jerusalém a
capital do Reino de Israel. Durante o reinado de seu filho Salomão, um grande templo
foi construído no Monte do Templo, no lugar onde Abraão teria levado seu filho Isaac
para o sacrifício. A partir de então, ela passou a ser o centro da vida judaica. Mesmo com
a destruição deste templo e do seguinte que o substituiu, e com a dispersão dos judeus
pelo mundo, Jerusalém continuou sendo a direção para onde os judeus se voltavam em
suas orações. Para estes, a peregrinação a Jerusalém é considerada uma a liá (subida, em
hebraico), por ser o lugar espiritualmente mais elevado passível de ser alcançado.
Jerusalém permanece também como o símbolo da fidelidade dos judeus à religião, ex­
pressa no salmo “Se eu esquecer de ti, ó Jerusalém, que a minha mão destra perca a sua
destreza...".
3 Os v á r io s sio n is m o s — A palavra “sionismo” esconde várias correntes distintas. Embora
todas tenham em comum o objetivo de criar um lar judaico, não havia consenso quanto
à forma, os motivos, nem ao local onde isto deveria acontecer. Ainda antes de Theodor
Herzl escrever seu O E s ta d o J u d e u , alguns religiosos já proclamavam a necessidade do
retorno dos judeus a Sion, formando a corrente do sionismo religioso. Para Herzl e seus
seguidores, o sionismo devia visar, através da ação política e diplomática, à fundação de
um Estado “normal”, não necessariamente na Palestina — chegaram a considerar a pro­
posta britânica de migrarem para Uganda —,‘onde os judeus estivessem livres das perse­
guições anti-semitas; para Ahad Ha’am, adepto do sionismo cultural, Israel deveria se
tornar um refúgio para a preservação da cultura e identidade judaicas, que cornam o

125
O SÉCULO XX

risco de se perder com a assimilação existente nos países ocidentais da Europa. Há ainda
os sionistas práticos, como David Ben-Gurion, que, depois da derrota da via diplomáti
ca, optam pela infiltração na Palestina, mesmo ilegalmente, e os “revisionistas”, que ^
derados por Zeev Jabotinski, pretendem conquistar toda a Palestina e a Transjordânia
mesmo que à força. Unidos pelo objetivo comum da criação do Estado até 1948 (à exce­
ção dos “revisionistas”, os únicos a não aceitarem o plano de partilha da ONU), estas
correntes demonstraram suas profundas divergências após a fundação do Estado de
Israel, quando tornaram explícitos os seus distintos projetos para o país.
r. Cf
o MUNDO ÁRABE E AS GUERRAS A R A B E - 1S R A E L E N S E S

árabe. Em 1959, sem qualquer crédito entre os líderes árabes, Amin al-Husseini retirou-
se da vida pública, indo residir no Líbano, onde faleceu quinze anos depois.
7 O Holocausto e a cria ç ã o d o E s ta d o d e Isra e l — Ainda hoje, é difícil determinar a in­
fluência tida pelo Holocausto na decisão da ONU. Não fosse a comoção pública gera­
da pel° extermínio em massa de milhões de judeus, talvez os países não se decidissem
em favor da criação de Israel; por outro lado, com ou sem massacre, a situação na
Palestina já havia se tornado insustentável, e a decadência do Império Britânico era uma
realidade nos quatro cantos do mundo. O fato é que, com aqueles que pereceram no
4 Os J o v e n s T u r c o s — Em fins do século XIX, desenvolveram-se no Império Otomano
Holocausto, morreram também as outras correntes políticas judaicas existentes antes
vários grupos de oposição ao sultão e seu governo. O mais importante deles foi o do
da guerra. Boa parte daqueles que haviam optado por ficar na Europa o fizeram na es­
conjunto de oficiais chamados “Jovens Turcos”, organizado no Comitê para a União e
perança da integração ou, principalmente, da erradicação do anti-semitismo através da
o Progresso. Em uma grande revolta em 1908, forçaram o sultão a instituir um gover­
instauração da sociedade socialista, onde as diferenças — fossem quais fossem — não
no parlamentar constitucional. Prometendo igualdade étnica e religiosa, os Jovens
Turcos levaram adiante o programa de reforma e modernização do império, abrindo es­
teriam razão de ser. Ao fim da guerra, estavam quase todos mortos, e com eles os vá­
colas femininas e discutindo a extensão dos direitos de cidadania às mulheres. Esse pro­ rios e populares partidos socialistas judaicos. Embora alguns tenham sido recriados
jeto, no entanto, durou pouco: assolado pelas dívidas e pela Primeira Guerra Mundial, posteriormente, nenhum logrou obter a pujança de antes; ao mesmo tempo, aqueles ho­
o ministro da Guerra, Enver Pasha, adotou uma política austera, justificando-a pela mens que sobreviveram — e talvez justamente por isto — ficaram mais e mais simpáti­
manutenção da ordem e da segurança nacional, que resultou inclusive na repressão a cos ao sionismo, o que, sem dúvida, contribuiu para o fortalecimento da causa.
várias minorias nacionais, como os armênios e os curdos. 8 A D e c la ra ç ã o d e In d e p e n d ê n c ia d o E s ta d o d e Isra e l — País até hoje sem Constituição,
5 L a w re n c e d a A r á b ia — Thomas Edward Lawrence, coronel britânico, era o encarrega­ por conta das divergências entre seus fundadores, Israel tem na sua Declaração de Inde­
do de representar o Foreign Office (Assuntos Exteriores) junto a Hussein, negociando pendência, lida por Ben-Gurion em Tel-Aviv no dia 14 de maio de 1948, seu documen­
com ele a implementação do “Reino Árabe”, tão logo a guerra acabasse. Confidente de to fundador. Ele explicita os diferentes projetos concomitantes naquele momento,
Faissal, filho de Hussein, Lawrence participou da revolta árabe contra o Império quando, para alguns, Israel devia ser um Estado nacional moderno e laico, aberto às di­
Otomano em 1916, o que lhe valeu glória, a fama de “rei não-coroado dos árabes” e a ferenças étnicas e religiosas e, para outros, devia ser regido pela Halachá, as leis religio­
alcunha “Lawrence da Arábia”. Como o grande “Reino Árabe” prometido nunca sas escritas e aplicadas para judeus. Seguem trechos: “A Terra de Israel foi o lugar de
tivesse saído do papel, apesar de seu envolvimento, Lawrence resolveu desaparecer da nascimento do povo judeu. Aqui se formou sua identidade nacional, espiritual e religio­
cena política. Com um pseudônimo, tornou-se soldado raso da força aérea britânica e sa. Aqui os judeus conquistaram independência e criaram uma cultura de importância
acabou morrendo em 1935, num acidente de moto. nacional e universal. Aqui escreveram a Bíblia e ofereceram-na ao mundo. Exilado da
6 O m u fti d e J eru sa lé m — Amin al-Husseini (1893-1974) foi a maior autoridade árabe sob Terra de Israel, o povo judeu conservou-se fiel a ela durante os séculos de sua dispersão,
mandato inglês. Descendente de uma importante família de Jerusalém, Husseini comple­ nunca deixando de rezar e esperar por sua volta e pela restauração da liberdade nacio­
tou seus estudos na Faculdade de Teologia egípcia de Al Azhar. Após ter servido no exér­ nal. [...] O Estado de Israel será aberto à imigração de judeus de todos os países onde
cito otomano durante a Primeira Guerra, Husseini tornou-se presidente do Clube estão dispersos; ele desenvolverá o país, para benefício de todos os seus habitantes; será
Nacionalista Árabe, onde começou a desenvolver suas atividades anti-sionistas. Desde a fundado sobre os princípios de Überdade, justiça e paz ensinados pelos profetas de
década de 1920, participou de violentos ataques contra judeus; condenado à prisão pelos Israel; assegurará uma completa igualdade dos direitos sociais e políticos a todos os
ingleses, recebeu anistia e foi escolhido o Grande Mufti de Jerusalém pelas autoridades seus cidadãos, sem distinção de credo, raça ou sexo; garantirá a plena liberdade de
mandatárias, além de presidente do Conselho Supremo Muçulmano, passando a ser, si­ consciência, culto, educação e cultura; assegurará a salvaguarda e a inviolabilidade dos
multaneamente, o representante oficial e religioso da população árabe. Durante a revol­ lugares santos e dos credos de todas as religiões e respeitará os princípios da Carta das
ta de 1936, foi obrigado a fugir para o Iraque; de lá, apoiado pela Alemanha nazista, Nações Unidas. [...] Nós lançamos um apelo ao povo judeu de todo o mundo para se
participou de um golpe de Estado contra os ingleses. Aliado dos alemães, apoiou o recru­ ligar a nós na tarefa da imigração [...], e a nos assistir no grande combate a que nos en­
tamento de voluntários muçulmanos para lutar no exército nazista nos Bálcãs. Depois do tregamos, para realizar o sonho perseguido de geração em geração: a redenção de
fim da guerra, Husseini participou da criação da Liga Árabe no Egito e, a partir de então, Israel. Confiantes no Eterno Todo-Poderoso, assinamos esta declaração sobre o solo da
tentou criar governos árabes na Palestina, sem ter obtido sucesso nem apoio do mundo pátria, na cidade de Tel-Aviv, nesta sessão da assembléia provisória do Estado, realiza­
da na véspera do shabat, 5 Iyar, 5708, 14 de maio de 1948.”

L
O SÉCULO XX

9 A Ir m a n d a d e M u ç u lm a n a — “Estabelecidos desde o inicio do movimento, estes prin­


cípios continuam em vigor. 1. Creio que tudo está sob a ordem de Deus; que Maomé
assegura a veracidade de toda profecia dirigida a todos os homens, (...) que o Corão é
o livro de Deus, que o islã é uma lei completa para dirigir esta vida e a próxima. (...) 2.
Creio que a ação correra, a virtude e o conhecimento estão entre os pilares do islã.
Prometo agir corretamente, realizando as práticas do culto e evitando as coisas más;
terei prazer nos bons costumes, abominarei os maus, difundirei ao máximo os hábitos
muçulmanos [...], reforçarei os rituais e o idioma do islã e trabalharei para difundir as
ciências e os conhecimentos úteis em todas as classes da nação. (...) 4. Creio que o mu­
çulmano é responsável por sua família, que ele tem o dever de conservá-la em boa
saúde, na fé e nos bons costumes. Prometo fazer o possível para tanto e insuflar os en­
sinamentos do islã nos membros de minha família. Não deixarei meus filhos entrarem
numa escola que não preserve as suas crenças e os seus bons costumes. Suprimirei deles
todos os jornais, livros e publicações que negam os ensinamentos do islã, assim como
as organizações, grupos e clubes desse tipo. 5. Creio que o muçulmano tem o direito
de fazer reviver o islã pela renascença dos seus diferentes povos, que a bandeira do islã
deve cobrir o gênero humano e que cada muçulmano tem por missão educar o mundo
segundo os princípios do islã. Prometo ainda lutar para realizar essa missão enquanto
eu viver, e para isso sacrificar tudo o que eu possuo.”
François Massoulié. O s c o n flito s d o O r ie n te M é d io . São Paulo, Ática, 1994, p. 29.
10 A R e so lu ç ã o 2 4 2 d o C o n s e lh o d e S eg u ra n ça d a O N U — “O Conselho de Segurança
da ONU, expressando a inquietude que continua a causar-lhe a grave situação no
Oriente Médio, (...) 1. Afirma que a obediência a sua Carta de Princípios exige a ins­
tauração de uma paz justa e duradoura no Oriente Médio, que deverá compreender a
aplicação dos dois princípios seguintes: I. Retirada das forças israelenses dos territó­
rios ocupados no recente conflito; II. Cessação de todas as declarações de beligerância
e de todos os estados de beligerância; respeito e reconhecimento pela soberania, inte­
gridade territorial e independência política de cada Estado da região e pelo seu direito
de viver em paz dentro de fronteiras seguras e reconhecidas, protegido contra ameaças
de força; 2. Afirma ainda a necessidade: a) De garantir a liberdade de navegação pelas
vias navegáveis internacionais da região; b) De se alcançar uma solução justa para o
problema dos refugiados; c) De garantir a inviolabilidade territorial e a independência
política de cada Estado da região, através de medidas que compreendem a criação de
zonas desmilitarizadas [...).”
11 Os x iita s — Do árabe sh ia (partido), são os muçulmanos partidários de Ali, primo e
genro de Maomé, que sustentam que só as tradições do Profeta transmitidas através de
membros de sua família podem ser aceitas. O grupo a que se opõem é o dos sunitas,
que seguem também a su n a (lei, regra tradicional, em árabe) e os ensinamentos dos
quatro primeiros califas (soberanos sucessores de Maomé). Usualmente identificados
com a ala radical do islamismo, esta definição não é necessariamente correta, já que os

128
O MUNDO ÁRABE E AS G U E R R A S A R A B E - 1S R A E L E N S E S

sunitas também adotaram atos de extremismo, como o assassinato do presidente egíp­


cio Anuar Sadit. Mesmo assim, apoiando o regime fundam entalista do aiatolá
Khomeini, os xitas reviveram a jih a d (guerra santa), que proclama o combate do islã
contra todos os inimigos, heréticos e “corruptores da terra”, como o escritor Salman
Rushdie, que, par ter utilizado elementos da tradição muçulmana em seu livro Versos
sa tâ n ic o s , foi condenado à morte através da fa tw a (julgamento religioso emitido pelo
aiatolá).
12 A lite ra tu r a d a f a z — “Fui escolhido, junto com meu colega e amigo Yoram Kaniuk,
como co-presidente do comitê [misto de intelectuais — israelenses e palestinos — con­
tra a ocupação epela paz e a liberdade de expressão). Cada um de nós se esforçou em
compreender as dificuldades que o outro encontrava, as pressões que sofria por parte
de sua sociedade, e respeitar suas dificuldades. [...] Estou comovido por constatar que
essa amizade tardia que me une a esses colegas judeus ressuscita em mim as lembran­
ças de juventude, do tempo em que eu era aluno da escola em Haifa, minha cidade
natal. A política não existia para nós, nessa época, e sólidos vínculos de camaradagem
e de amizade nos uniam a nossos companheiros judeus: freqiientávamos a mesma es­
cola e morávamos na mesma rua.”
Emil Habibi, escritor palestino, primeiro árabe israelense a ocupar uma cadeira
na Knesset (Parlamento) de Israel.
13 O fu n d a m e n ta lis m o re lig io so — Movimento que usa a religião como fundamento de
posições políticas, o fundamentalismo (ou integrismo) é também uma tentativa de con­
servar as tradições, opondo-se a qualquer tipo de modernização. Embora todos os fun-
damentalistas sejam fervorosos adeptos de suas religiões, nem todos os religiosos orto­
doxos são fundamentalistas. Em Israel, por exemplo, são fundamentalistas aqueles ju­
deus que justificam a violência contra os palestinos através do suposto direito bíblico
de propriedade das terras da Cisjordânia. Os muçulmanos fundamentalistas, por sua
vez, são aqueles que concordam em matar os considerados infiéis, usando a jih a d
(guerra santa) em nome da defesa dos princípios do islã.
14 A c o n d iç ã o fe m in in a n o is la m is m o — “A imagem de mulheres cobertas da cabeça aos
pés, fugindo da fúria dos estudantes da milícia talibã [alunos do islã], que tomou o
poder no Afeganistão, chocou o mundo. [...] Às vésperas do século XXI, os talibãs
exigem que as mulheres restrinjam seus movimentos ao espaço interno do lar e cu­
bram totalmente o corpo. Proíbem-nas de trabalhar fora e ir à escola, ao menos en­
quanto os líderes religiosos [mulás] analisam o que devem aprender. Andar na rua, so­
mente acompanhada de um parente do sexo masculino. De ônibus, só respeitando a
divisão feita com uma corrente para que homens e mulheres não se sentem próximos
uns dos outros. Aquelas que ousam desobedecer são severamente punidas. Há diver­
sos relatos de espancamento de mulheres na rua por não estarem adequadamente ves­
tidas. [...] Confusão semelhante vivem as mulheres da Arábia Saudita, especialmente
depois que a Guerra do Golfo levou para seu país centenas de militares americanas

129
m
O SÉCULO XX

que fazem tudo o que elas nunca sonharam. [...] [Lá], as mulheres que mostram ■
mais o corpo podem ser castigadas pela polícia religiosa, e vídeos, livros e publicaçgj, I
são censurados. Como no Afeganistão, cinema, música, álcool, pornografia e jogo são 1
expressamente proibidos. Apesar disso, com um número cada vez maior de mulheres 1
chegando às universidades e viajando para estudar no exterior, as reivindicações co- 1
meçam a crescer. Sabe-se que muitas delas usam roupas ocidentais e até jeans por I
baixo das túnicas. As jovens recém-formadas queixam-se da falta de oportunidades de
trabalho.”
Sonia de Souza Costa, “Mulher invisível: a revolução no Afeganistão reabre o de­
bate sobre a condição feminina no islam ism o” , Revista M anchete, 12/10/1995
pp. 14-19.

BIBLIOGRAFIA

Akcelrud, Isaac. 1986. O Oriente Médio. São Paulo, Atual; Cam pinas, Editora da
Universidade Estadual de Campinas.
Brener, Jayme e Camargo, Cláudio. 1995. Guerra e paz no Oriente Médio. São Paulo,
Contexto.
Brener, Jayme. 1993. Ferida aberta: o Oriente Médio e a nova ordem mundial. São Paulo,
Atual.
Chouraqui, André. 1971. O Estado de Israel. Lisboa, Arcádia.
Habibi, Emil e Kaniuk, Yoram. 1997. A terra das duas promessas. Rio de Janeiro, Imago.
H ourani, Albert. 1994. Uma história dos povos árabes. São Paulo, Companhia das
Letras.
Johnson, Paul. 1989. História dos judeus. Rio de Janeiro, Imago.
Lewis, Bernard. 1996. O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
Linhares, M aria Yedda. 1982. O riente M édio e o m undo dos árabes. São Paulo,
Brasiliense.
Lobianco, Luís Eduardo. 1996. A política britânica para o Oriente Próximo durante a ^
Primeira Guerra Mundial: as origens do conflito árabe-israelense na Palestina.
Monografia apresentada ao Departam ento de História da Universidade Federal
Fluminense, Niterói.
Massoulié, François. 1994. Os conflitos do Oriente Médio. São Paulo, Ática.
Pinsky, Jaime. 1978. Origens do nacionalismo judaico. São Paulo, Hucitec.
Salem, Helena. 1990. O que é a questão palestina. São Paulo, Brasiliense.
Scliar, Moacyr. 1994. Judaísmo: dispersão e unidade. São Paulo, Ática.

130
o MUNDO ÁRABE E AS G U E R R A S Á R A B E - 1S R A E L E N S E S

Jurandir. 1991. Israel x Palestina: as raízes do ódio. Porto Alegre, Editora da


^^U niversidade do Rio Grande do Sul.
. 1991. Oriente Médio: de M aoméà Guerra do Golfo. Porto Alegre, Editora da
----- jjíüvêrsidade do Rio Grande do Sul.
•rt,e Jerusalem Report. 1996. Yitzbak Rabm, o soldado da paz. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira.

131
1968: rebeliões e utopias
Marcelo Ridenti
P rofessor livre-d ocen te d o In stitu to de F ilosofia
e C iências H u m a n a s da U n icam p
IN T RO D U Ç Ã O

A s n o v id a d e s d o s m o v im e n to s so c ia is e cu ltu r a is d e 1 9 6 8 le v a r a m o jo r n a lis­
ta Z u e n ir V en tu ra a c h a m á -lo “ o a n o q u e n ã o te r m in o u ” , p o is as b a ses em
q u e se a p o ia m as s o c ie d a d e s d o p r esen te te r ia m u m fo r te la ç o d e c o n tin u id a ­
d e c o m a q u e le a n o d e ru p tu ra c o m o p a s s a d o . C o n tu d o , a ss im c o m o n e n h u m
ra io c a i c o m céu a z u l, o s e v e n to s m a r c a n te s de 1 9 6 8 fo r a m g e sta d o s n a s c o n ­
d iç õ e s h is tó r ic a s p r e c e d e n te s . E m o u tr a s p a la v r a s , o s a c o n te c im e n to s e x ­
tr a o r d in á r io s d e 1 9 6 8 d e v e m ser p‘e n sa d o s c o m o u m a c o n d e n s a ç ã o d a e x p e ­
r iên cia h is tó r ic a p a ssa d a e p r e n u n c io da H istó r ia fu tu ra.
N o s a n o s im e d ia ta m e n te a n te r io r e s a 1 9 6 8 , fo r a m v ito r io sa s o u e sta v a m
o c o r r e n d o in ú m era s r e v o lu ç õ e s d e lib e r ta ç ã o n a c io n a l: a r e v o lu ç ã o c u b a n a
d e 1 9 5 9 , a in d e p e n d ê n c ia d a A rg é lia e m 1 9 6 2 , e a G u erra d o V ie tn ã . O su ­
c e s s o d e s s a s r e v o lu ç õ e s é fu n d a m e n ta l p a ra a c o m p r e e n s ã o d a s lu ta s e d o
id e á r io c o n te s ta d o r de 1 9 6 8 : h a v ia p o v o s s u b d e s e n v o lv id o s q u e se r e b e la ­
v a m c o n tr a as g ra n d es p o tê n c ia s, p ara criar u m s o n h a d o m u n d o n o v o .
P o r o u tr o la d o , o s r e v o lto s o s d e 1 9 6 8 c r itic a v a m o m o d e lo s o v ié tic o d e
s o c ia lis m o , tid o c o m o b u r o c r á tic o e a c o m o d a d o à o r d e m in te r n a c io n a l e s ta ­
b e le c id a p e la G u erra Fria, se m in teresse em in c e n tiv a r as tr a n s fo r m a ç õ e s s o ­
c ia is , p o lític a s e e c o n ô m ic a s n e c e ss á r ia s p ara c h e g a r a o c o m u n is m o . E sse
m o d e lo s ó ruiria d e v e z c o m a d e sa g r e g a ç ã o d a U n iã o S o v ié tic a , e m 1 9 9 1 ,
m a s já e r a c o n t e s t a d o e m 1 9 6 8 , p o r e x e m p l o , n o in t e r io r d o P a r t id o
C o m u n is ta n a T c h e c o s lo v á q u ia , cu ja P rim avera d e P raga fo i d e str u íd a p e la
in te r v e n ç ã o m ilita r s o v ié tic a . A revo lu ç ã o cu ltu ra l p ro le tá ria , e m c u r s o na
C h in a a p artir d e 1 9 6 5 — q u e m a is ta rd e v iria a rev e la r se u la d o tr á g ic o — ,
ta m b é m p a r e c ia a seto res jo v e n s d o m u n d o t o d o u m a r e sp o s ta a o b u r o c r a tis-
m o d e in s p ir a ç ã o so v ié tic a .
M o v im e n to s d e p r o te s to e m o b iliz a ç ã o p o lític a su r g ir a m p o r to d a p a r te
em 1 9 6 8 : d as m a n ife sta ç õ e s n o s E sta d o s U n id o s co n trá*a G u erra d o V ie tn ã

135
O SÉCULO XX

à P r im a v e r a d e P raga; d o m a io lib e r tá r io d o s e s tu d a n te s e tr a b a lh a d o r e s
fr a n c e se s a o m a ssa c r e d e e s tu d a n te s n o M é x ic o ; d a a lte r n a tiv a p a c ifis ta d o s
h ip p ies, p a s s a n d o p e lo d e sa fio e x is te n c ia l d a c o n tr a c u ltu r a , a té o s g r u p o s d e
lu ta a r m a d a , e sp a lh a d o s m u n d o a fo ra .
O c o m p o r ta m e n to d as p e ss o a s ta m b é m m u d a v a , p o r e x e m p lo , n a s r e la ­
ç õ e s e n tr e o s s e x o s (e m a n c ip a ç ã o fe m in in a c r e sc e n te ), n o u so d e a n tic o n c e p ­
c io n a is e d e d r o g a s, n a c o n s o lid a ç ã o d a te le v is ã o c o m o p r in c ip a l m e io d e c o ­
m u n ic a ç ã o d e m a ssa s, o c u p a n d o lugar ca d a v e z m a io r n o c o tid ia n o d a s p o ­
p u la ç õ e s e tc . T r a v a v a m -se lu ta s r a d ica is d e n e g r o s, m u lh e r e s e o u tr a s m in o ­
rias p e lo r e c o n h e c im e n to de se u s d ir e ito s. G r u p o s da c h a m a d a n o v a e sq u e r­
da s o n h a v a m c o m a c o n s tr u ç ã o d e u m a so c ie d a d e a lte r n a tiv a , d e u m h o m e m
n o v o , n o s te r m o s d e C h e G u e v a r a , r e c u p e r a n d o o jo v e m M a r x . E n fim , o s
s e n tim e n to s e a s p rá tica s d e reb e ld ia c o n tr a a o r d e m e d e r e v o lu ç ã o p o r u m a
n o v a o r d e m fu n d ia m -se c r ia tiv a m e n te .

GUERRA DO VIETNÃ E SUAS REPERCUSSÕES EM 1968

O a n o d e 1 9 6 8 in ic io u - s e c o m u m a v ir a d a n o a n d a m e n t o d a G u e r r a d o
V ie tn ã , c o n h e c id a c o m o o fen siva d o Tet: a p artir d e 3 0 d e ja n e ir o , p o r o c a ­
s iã o d o s fe r ia d o s d o A n o N o v o lu n a r (T e t), o s c o m u n is ta s d o V ie tn ã d o
N o r t e a ta c a r a m m a c iç a m e n te o V ie tn ã d o Sul e as fo r ç a s a m e r ic a n a s a li s e ­
d ia d a s . O s c o m u n is ta s p e r d e r a m d e 3 0 a 4 0 m i! h o m e n s , se m c o n s e g u ir m a n ­
ter as p o s iç õ e s in ic ia lm e n te c o n q u is ta d a s , o q u e fe z o s a n a lis ta s e m g e r a l
a b o r d a r e m a o fe n s iv a c o m o u m a d erro ta m ilitar. C o n tu d o , p o d e -s e c o n s id e ­
rá-la c o m o u m a v itó r ia p o lític a , p o is a o u s a d ia d a o fe n s iv a e as b a ix a s a m e ­
r ic a n a s p r o v o c a r a m im p a c to n o g o v e r n o e n a o p in iã o p ú b lic a d o s E sta d o s
U n id o s , q u e a té e n tã o p a r e c ia m esta r v e n c e n d o a gu erra se m m a io r e s d ific u l­
d a d e s, d e p o is d e três a n o s d e p r e se n ç a a tiv a n a r e g iã o . E les e sta v a m lá p ara
im p e d ir a q u e d a d o g o v e r n o c a p ita lis ta d o V ie tn ã d o S u l, a c o s s a d o p e lo s
g u e r r ilh e ir o s c o m u n is ta s d a F ren te N a c io n a l p ara a L ib e r a ç ã o d o V ie tn ã d o
Sul — c h a m a d a p e jo r a tiv a m e n te p e lo s a m e r ic a n o s d e V ietcon g.
O V ie tn ã era p a lc o d e u m a d a s r e v o lu ç õ e s d e lib e r ta ç ã o n a c io n a l d a
é p o c a , q u e ta n to e m p o lg a r a m m ilita n te s d o m u n d o t o d o , c o n ta g ia d o s ta m ­
b ém p e lo ê x i t o d a r e v o lu ç ã o c u b a n a d e 1 9 5 9 e p ela in d e p e n d ê n c ia d a A r g é lia
d e 1 9 6 2 , d e n tr e o u tr o s e x e m p lo s d e c o m b a te s d e p o v o s p a ra su p e r a r o su b -

136
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

d e s e n v o lv im e n to e livrar-se d e d o m in a ç õ e s im p e r ia lista s o u a in d a c o lo n ia lis ­


ta s (c a s o s o b r e tu d o d e a lg u n s p a íse s d a Á frica ).
D e s d e o in ício d o s a n o s 6 0 , o s E U A p a ssa ra m a m a n d a r c o n se lh e ir o s m ili­
tares a o V ietn ã d o Sul; já esta v a m lá 1 6 .3 0 0 so ld a d o s em 1 9 6 3 , m a s n ã o d e v e ­
ríam en trar e m c o m b a te , a p rin cíp io . O s u p o s to a ta q u e, n u n ca c o m p r o v a d o , a
d o is d estró ieres a m e r ic a n o s n o G o lfo d e T o n q u im , em a g o sto d e 1 9 6 4 , serviu
d e p r e te x to para o e n v o lv im e n to m ilita r d ir e to d o s E sta d o s U n id o s n a gu erra.
O V ie tn ã d iv id ir a -se e m d o is a p ó s a lib e r ta ç ã o d o ju g o c o lo n ia l fr a n c ê s,
u m a m e ta d e c o m u n is ta , a o u tr a c a p ita lis ta , n o in tr in c a d o j o g o p o lític o da
é p o c a d a G u erra F ria, e m q u e a U n iã o S o v ié tic a e o s E sta d o s U n id o s d is p u ­
t a v a m p a lm o a p a lm o a h e g e m o n ia p o lí t i c a n o c e n á r io in t e r n a c io n a l .
E n q u a n to s o v ié tic o s e c h in e s e s fo r n e c ia m a rm a s e a p o io lo g ís tic o a o s c o m u ­
n is ta s , o s a m e r ic a n o s r e so lv e r a m in terv ir d ir e ta m e n te n a g u e r r a , e n v ia n d o
tr o p a s . S u c e d e q u e eles n ã o e sp e r a v a m e n c o n tr a r lá ta n ta s d ific u ld a d e s: o s
v ie tn a m ita s — a p esa r d e se r e m u m p o v o p o b r e , a g r ic u lto r e s u b d e s e n v o lv id o
— tê m u m a tr a d iç ã o guerreira-Tnilenar, q u e h a v ia s id o r e c e n te m e n te p r o v a d a
n a lu ta fe r o z d e in d e p e n d ê n c ia c o n tr a a F ran ça ( 1 9 4 5 - 5 4 ) . T r a n sfo r m o u -se
n u m p e s a d e lo o q u e in ic ia lm e n te se a n u n c ia v a c o m o m a is u m p a s s e io d a s
fo r ç a s a r m a d a s a m e r ic a n a s n u m p a ís e s tr a n g e ir o , para s a lv á -lo d o im p é r io
c o m u n is ta d o m a l e g a ra n tir o s v a lo r e s d e m o c r á tic o s da “ c iv iliz a ç ã o o c id e n ­
t a l ” : e m 1 9 6 8 , já h a v ia m m o r r id o 1 4 .6 9 2 a m e r ic a n o s n o V ie tn ã , a lé m d e
9 2 .8 2 0 fe r id o s.
A té a o fe n siv a d o T et, a m a io r ia d a im p r e n sa e da p o p u la ç ã o d o s E U A
a p o ia r a a gu erra. E ssa situ a ç ã o fo i m u d a n d o c o m as crescen tes b a ix a s n a s p r ó ­
p rias fileira s, a o u sa d ia gu erreira d o s v ie tn a m ita s e o e n v o lv im e n to b é lic o c r e s­
c e n te d o s E U A . F o i-se to r n a n d o in a c e itá v e l p ara seu s p r ó p r io s c id a d ã o s ver
to d o s o s d ia s na te le v isã o o s h o rro res d e u m a lu ta e m q u e a m a is rica p o tê n c ia
m u n d ia l d esp eja v a to n e la d a s d e b o m b a s n u m d o s p a íse s m a is a tr a s a d o s d o
m u n d o e, m e s m o a ssim , ia p e r d e n d o a g u erra , c o m a lto c u sto e m v id a s d e
a m e r ic a n o s. D e r r o ta d o s m ilita r e m o r a lm e n te , e les só v o lta r ia m p ara c a sa em
m a r ç o d e 1 9 7 3 , c o m o s a ld o de 5 7 .6 0 5 m o r to s e m c o m b a te .
O e v e n to s h is tó r ic o s d ife r e n c ia d o s d e 1 9 6 8 e m to d o o m u n d o e stiv e r a m
d ir e ta m e n te m a r c a d o s p e la s r e p e r c u ssõ e s d a G u erra d o V ietn ã: d o B rasil a o
J a p ã o , d a T c h e c o s lo v á q u ia a o M é x ic o , d a Itá lia à A u str á lia , d a F ra n ça a o s
E sta d o s U n id o s. E ssas r e p e r c u ssõ e s g a n h a v a m s e n tid o u m p o u c o d ife r e n te ,
c o n fo r m e a c o n ju n tu r a lo c a l d e c a d a p a ís o u r e g iã o em q u e se e s p a lh a v a m o s
p r o te s to s c o n tr a a g u erra , o u a in d a d e a c o r d o c o m se to r e s d is tin to s d a p o p u -

137
O SÉCULO XX

la ç ã o d e c a d a p aís. P or e x e m p lo , n a A m é r ic a L a tin a , in c lu siv e n o B ra sil, r e ­


p e r c u tia s o b r e tu d o e m se to r e s d a ju v e n tu d e o c h a m a m e n to d e C h e G u e v a r a
para q u e se c o n s titu ís s e m n o c o n tin e n te n o v o s V ie tn ã s c o n tr a o d o m ín io im ­
p e r ia lista d o s E U A . A id éia d e se g u ir o e x e m p lo r e v o lu c io n á r io v ie tn a m ita
te v e m u ito s a d e p to s n a E u r o p a e até m e s m o n o s E sta d o s U n id o s; c o n t u d o ,
n e sse s p a ís e s , en tre o s c id a d ã o s q u e se o p u n h a m à g u erra , p r e d o m in a v a m o s
a r g u m e n to s p a c ifista s e lib e r a is, d e r e sp e ito a o s d ir e ito s h u m a n o s e d e a u t o ­
d e te r m in a ç ã o d o s p o v o s .
S eria p r e c is o fazer e stu d o s e s p e c ífic o s so b r e a r e p e r c u ss ã o p a r tic u la r da
G u erra d o V ie tn ã n a s lu ta s d e 1 9 6 8 em c a d a p a ís. M a s é u m fa to q u e e m p r a ­
tic a m e n te to d o s o s c a n to s d a T erra le v a n ta r a m -se o n d a s d e in d ig n a ç ã o c o n ­
tra a g u erra .
E v id e n te m e n te , a gu erra m a r c o u o a n o d e 1 9 6 8 c o m m a is in te n s id a d e n o
p a ís e m q u e ela se d e u , o V ie tn ã , o n d e c a d a m o m e n to da v id a d e se u s h a b i­
ta n te s tin h a lig a ç ã o c o m as c o n s e q ü ê n c ia s e h o r r o r e s d a s b a ta lh a s. Já p a ra a
p o p u la ç ã o d o o u tr o c o n te n d o r , o s E U A , a g u erra e sta v a fis ic a m e n te d is ta n te ,
m a s n ã o d e ix a v a d e im p o r su a p r e se n ç a a o lo n g o d e 1 9 6 8 : n a s te le v is õ e s , n o s
jo r n a is, n a s fa m ília s q u e e n v ia v a m seu s filh o s p ara a gu erra e p o r v e z e s o s
p e r d ia m , n a s v id a s d o s v e te r a n o s q u e r e to r n a v a m c o m tr a u m a s e d if ic u ld a ­
d es d e r e in te g r a ç ã o so c ia l, n a s c a n ç õ e s e o u tr a s o b r a s d e a rte, n o s p r o te s to s
d e ru a , n o s m o v im e n to s p a c ifista s, n o s jo v e n s q u e d e se r ta v a m o u se r e c u s a ­
v a m a serv ir o e x é r c ito etc.
S e, e m m o v im e n to s c o n te s ta d o r e s d e o u tr o s p a ís e s, a G u erra d o V ie tn ã
fo i u m d o s a s p e c to s p r e se n te s, n o s E U A ela se c o n s titu iu n o a s p e c to c e n tr a l.
A e la e s tiv e r a m lig a d o s e v e n to s m a r c a n te s d e 1 9 6 8 , c o m o o s d is tú r b io s e
p r o te s to s r a d ic a is d o s n e g r o s e d e o u tr a s m in o r ia s, a c a m p a n h a p o lític a p a ra
a P r e sid ê n c ia , a r e v o lta d o s e stu d a n te s e a e m e r g ê n c ia d a c o n tr a c u ltu r a . N o s
E sta d o s U n id o s , 1 9 6 8 r e p r e se n to u o s e ste r to r e s d e m o v im e n to s s o c ia is a n te ­
r io re s, c o m o o d o s d ir e ito s c iv is , e o e s g o ta m e n to d a v is ã o lib e r a l-s o c ia l-d e -
m o c r á tic a , h erd eira d o N e w D e a l d e R o o s e v e lt. P or o u tr o la d o , 1 9 6 8 a n u n ­
c io u m o v im e n t o s q u e se d e s e n v o lv e r ia m n o s a n o s s e g u in te s , c o m o o s d a s
m u lh e r e s, d o s h o m o s s e x u a is , d o m e io a m b ie n te etc.
A p a rtir d e m e a d o s d o s a n o s 5 0 , flo r e sc e r a n o s E U A u m im p o r ta n te m o ­
v im e n to p e lo s d ir e ito s c iv is d o s n e g r o s , q u e so fr ia m fo r te se g r e g a ç ã o . A lid e ­
r a n ç a n e g r a m a is im p o r ta n te n e s s e p e r ío d o fo i a d o p a s to r M a r tin L u th er
K in g , g r a n d e ora d o r, p a c ifista , q u e te v e se u a u g e p o lític o n a s g r a n d e s m a n i­
fe s ta ç õ e s n e g r a s d e B ir m in g h a m , n o A la b a m a , e m 1 9 6 3 . G a n h a d o r d o P rê-

138
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

m io N o b e l d a P az e m 1 9 6 4 , ele fo i u m d o s r e sp o n s á v e is p e la s c o n q u is ta s h is ­
tó r ic a s d a s leis d e 1 9 6 4 - 6 5 , q u e g a r a n te m fo r m a lm e n te a o s n e g r o s o s m e s ­
m o s d ir e ito s c iv is d e q u a lq u e r c id a d ã o a m e r ic a n o . P o r e x e m p lo , a n o v a le g is ­
la ç ã o p r o ib ia q u e e s c o la s n ã o a d m itis se m n e g r o s, in c e n tiv a n d o a e d u c a ç ã o
p ú b lic a in ter-racial.
E m 1 9 6 8 , c o n tu d o , as c ir c u n s tâ n c ia s h a v ia m m u d a d o . C o m o s u r g im e n ­
to d e v á r io s g r u p o s r a d ic a is n e g r o s — a a fir m a r o b la ck p o w e r , o p o d e r
n e g r o , c o n tr a a s o c ie d a d e e x c lu d e n te d o s b r a n c o s — p a ss a v a m a ser c o n t e s ­
ta d a s as p r o p o s ta s d e K in g , d e in te g r a ç ã o ra cia l e d e n ã o -v io lê n c ia . N o p r in ­
c íp io d e 1 9 6 8 , K in g já h a v ia p e r d id o m u ito d e su a in flu ê n c ia so b r e as n o v a s
g e r a ç õ e s. N ã o o b sta n te , e m ab ril, ele fo i v ítim a d e u m a te n ta d o r a c ista q u e o
m a to u , em M e m p h is , tr a n s fo r m a n d o -o e m m á rtir d a c a u sa n eg ra . A r e a ç ã o
d o s n e g r o s d ia n te d o a s s a ssin a to fo i variad a: da p r o str a ç ã o a té e x p lo s õ e s e s ­
p o n tâ n e a s d e v io lê n c ia r e v a n c h is ta . G r u p o s r a d ic a is — c o m o o s P a n te r a s
N e g r a s — , p r o c u r a r a m c o n te r o s â n im o s p o p u la r e s , te m e n d o q u e r e v o lta s
d e so r g a n iz a d a s p u d e sse m d ar a o g o v e r n o o p r e te x to q u e e sp e r a v a p a r a liq u i­
d á -lo s . D e fa t o , c o n s e g u ir a m m a n te r a c a lm a e m m e t r ó p o le s c o m o N o v a
Y o r k , L o s A n g e le s, C le v e la n d e D e tr o it. M a s o s d istú r b io s r a c ia is e s p a lh a ­
r a m -se p o r m a is d e 1 5 0 c id a d e s , c o m o W a sh in g to n , S ea ttle e S ã o F r a n c isc o ,
g e r a n d o in ú m era s m o r te s, fe r im e n to s e p r is õ e s.
A p e sa r d a s d iv e r g ê n c ia s , t a n t o o s a d e p to s d e K in g c o m o o s d o b la ck
p o w e r p o s ic io n a v a m -s e c o n tr a a G u erra d o V ie tn ã , a té p o r q u e o s n e g r o s e s ­
ta v a m n a lin h a d e fren te n o s c a m p o s d e b a ta lh a e o b e lic is m o era id e n tific a ­
d o c o m o s se to r e s b r a n c o s m a is r e tr ó g r a d o s. A s p o s iç õ e s d o s m o v im e n to s
n e g r o s v a r ia v a m d a m o d e r a ç ã o d e K in g — q u e em 1 9 6 5 já se d e c la r a r a c o n ­
tr á r io a “ u m a d a s gu erras m a is se m s e n tid o d a H is tó r ia ” — a té o te r c e ir o -
m u n d is m o ra d ic a l (e m in o r itá r io ) d e líd eres c o m o S to k e ly C a r m ic h a e l, q u e
e m 1 9 6 7 fizera u m d isc u r so e m H a v a n a p e la r e v o lu ç ã o to ta l, in s e r in d o as
r e iv in d ic a ç õ e s a fro -a m erica n a s c o m o p a rte d a s lu ta s p ara “ m u d a r a s e str u tu ­
ras im p e r ia lista s, c a p ita lista s e r a c ista s d o s E sta d o s U n id o s ” .
E m 1 9 6 8 ta m b é m se d e se n v o lv e u n o s E U A u m c a p ítu lo im p o r ta n te d a
b u sc a d a s m u lh e r e s p e la ig u a ld a d e en tr e o s s e x o s . Elas p a r tic ip a r a m a tiv a ­
m e n te d a lu ta c o n tr a a G u erra d o V ie tn ã , im p o s ta p e la s o c ie d a d e “ fá lic a e
im p e r ia lis ta ” . O m e s m o o co r r e r ía e m se g u id a c o m m o v im e n to s d e h o m o s s e ­
x u a is , g a y s e lé sb ic a s.
N o c a m p o da p o lític a in s titu c io n a l, o s e v e n to s lib ertá rio s d e 1 9 6 8 — n o -
ta d a m e n te o c o m b a te à G u erra d o V ie tn ã — ta m b é m tiv e r a m fo r ç a sig n ific a -

139
O SÉCULO XX

tiv a . 1 9 6 8 fo i u m a n o d e e le iç õ e s p r e sid e n c ia is n o s E U A . A s e n g r e n a g e n s d o
siste m a p o lític o tr a d ic io n a l c o n tin u a v a m a fu n cio n a r. A té p o r q u e , c o m o b em
já se o b s e r v o u , o 1 9 6 8 a m e r ic a n o fo i m a is a c a p ita lista d o q u e a n tic a p ita lis -
ta . O P a r tid o R e p u b lic a n o , m a is c o n se r v a d o r , in d ic o u R ic h a r d N i x o n p a ra
c o n c o r r e r à P re sid ê n c ia . Era o h o m e m fo r te , q u e p r o m e tia d e fe n d e r o so n h o
a m erica n o p a ra ag ra d a r à m a io r ia sile n c io s a , c h o c a d a c o m as o n d a s d e r e b e l­
d ia q u e in v a d ia m as ru as e c o m as m u d a n ç a s d e c o m p o r ta m e n to d a ju v e n tu ­
d e e d a s m in o r ia s , e s p e c ia lm e n te d o s n e g r o s. A p e sa r d e c o n se r v a d o r , N i x o n
d e te c ta v a o m a l-e sta r c o m a G u erra d o V ie tn ã e p r o m e tia e n c o n tr a r u m a s o ­
lu ç ã o p a r a retirar o s E U A d o c o n flito — p r o m e s sa q u e , d e p o is d e e le ito , n ã o
c u m p r ir ía n e ss e m a n d a to .
N o P a r tid o D e m o c r a ta , a lu ta in tern a p e la c a n d id a tu r a à P r e sid ê n c ia fo i
d u ra , e s p e c ia lm e n te d e p o is q u e o d e s g a s ta d o c a n d id a to n a tu ra l d o p a r tid o , o
p r e sid e n te L y n d o n J o h n s o n , d e sistiu d e p le ite a r a r e e le iç ã o . C o n c o r r ia m : o
v ic e -p r e s id e n te H u b e r t H u m p h r e y — h o m e m d a m á q u in a p a r tid á r ia — , o
h e r d e ir o p o lític o d o p r e sid e n te J o h n K en n ed y , seu ir m ã o R o b e r t K e n n e d y , na
é p o c a d e f e n s o r d e u m a p la ta fo r m a d e a b e r tu r a p a r a o s d ir e ito s s o c i a is e
E u g e n e M c C a r th y , c o m u m p r o g r a m a p r ó x im o d o d e K en n ed y , p o r é m m a is
e x p lic ita m e n te c o m p r o m e tid o c o m a r etira d a d o s a m e r ic a n o s d o V ie tn ã , o
q u e lh e v a lia m a io r a p o io d a s b a se s u n iv e r sitá r ia s. A d is p u ta p e la in d ic a ç ã o
d e m o c r a ta era a cirr a d a , c o m lig e ir a v a n ta g e m p ara K en n ed y , q u a n d o e le fo i
a s s a s s in a d o n u m a te n ta d o , e m L o s A n g e le s, n o d ia 5 d e ju n h o .
O a te n t a d o fo i u m r e fle x o d a p o lític a d o s E U A , p r ó -Isr a e l, n o s c o n flito s
q u e a g it a v a m o O r ie n te M é d io , e sp e c ia lm e n te d e sd e a G u erra d o s S eis D ia s ,
q u e e s ta v a c o m p le ta n d o u m a n o n a d a ta d o a te n ta d o a K en n ed y . E le fo i b a ­
le a d o p o r u m p a le s tin o q u e m o r a v a n a C a lifó r n ia . R o b e r t K e n n e d y — tã o
p r ó -I s r a e l q u a n to o s d e m a is c a n d id a t o s — era a lv o p r e fe r e n c ia l p e lo se u
p r e s tíg io p e s s o a l e d e su a fa m ília .
A C o n v e n ç ã o d o P a r tid o D e m o c r a ta , r e a liz a d a e m C h ic a g o , n o fim d e
a g o s t o , a c a b o u in d ic a n d o H u m p h r e y c a n d id a to , tid o c o m o c o n tin u a d o r d a
p o lític a já d e s g a s ta d a d o p r e s id e n te J o h n s o n , e s p e c ia lm e n t e e m r e la ç ã o à
G u erra d o V ie tn ã . O p a r tid o saiu d iv id id o d a c o n v e n ç ã o , e s tr e ita n d o d e m a is
su a s p o s s ib ilid a d e s d e v itó r ia n a s e le iç õ e s , v e n c id a s p o r N ix o n e m n o v e m b r o .
P a r a a g r a v a r a s itu a ç ã o d o s d e m o c r a t a s , n o s d ia s d e su a c o n v e n ç ã o ,
C h ic a g o fo i p a lc o d e v e r d a d e ir a b a ta lh a c a m p a l en tr e a p o líc ia e o s m a n ife s ­
ta n te s c o n tr a a G u erra d o V ietn ã — c o m p o s to s p o r p a c ifis ta s d o m o v im e n to
h ip p y e p o r jo v e n s o r g a n iz a d o s e m a g r u p a m e n to s d e e sq u e r d a . T r a n sm itid o s

140
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

p e la te le v is ã o , e sse s c o n flito s c h a m a r a m m a is a a te n ç ã o d o p ú b lic o d o q u e a


C o n v e n ç ã o D e m o c r a ta (a in d a em 1 9 6 5 , cerca d e 9 3 % d o s lares a m e r ic a n o s
tin h a m te le v is ã o , e c a d a a m e r ic a n o a ssistia e m m é d ia a c in c o h o r a s d iá r ia s da
p r o g r a m a ç ã o , o q u e fa z ia d e ss e v e íc u lo o p r in c ip a l m e io d e c o m u n ic a ç ã o ,
c o m r e p e r c u ssõ e s p o lític a s e v id e n te s). A r e a ç ã o d a im p r e n sa e d a m a io r ia da
p o p u la ç ã o fo i d e in d ig n a ç ã o c o m a v io lê n c ia p o lic ia l, m a s ta m b é m d e te m o r
e m r e la ç ã o às a titu d e s d o s jo v e n s , v is to s c o m o d r o g a d o s , lib e r tin o s e a rru a­
c e ir o s q u e b u sc a v a m d e se s ta b iliz a r o siste m a p o lític o c o n s titu íd o .
O te r r e n o e sta v a a p la in a d o p ara N ix o n . G u a r d a d a s as d e v id a s p r o p o r ­
ç õ e s , e le s ig n ific o u p ara o s E U A da é p o c a a lg o p a r e c id o c o m D e G a u lle na
F ran ça: o p u ls o firm e c a p a z d e m a n te r a lei e a o r d e m c o n tr a as a m e a ç a s d o s
m o v im e n to s lib ertá rio s d e 1 9 6 8 . N ix o n fo i a p o ia d o n a s u rn a s p e la m a io r ia
d a p o p u la ç ã o , te m e r o sa d e e v e n tu a is m u d a n ç a s , s im b o liz a d a s n o im a g in á r io
d o c id a d ã o m e d ia n o p e la d e so r d e m d a c o n tr a c u ltu r a .
A G u erra d o V ietn ã ta m b é m fo i o e ix o e m to r n o d o q u a l se a r tic u lo u o
m o v im e n to d e c o n t r a c u lt u r a /p r e g a n d o p a z e a m o r , c o n v o c a n d o o jo v e m
p ara q u e “ fa ç a am or, n ã o fa ç a g u e r r a ” . N o c a m p o m u s ic a l, e ss e m o v im e n to
fo i e s p e c ia lm e n te s ig n ific a tiv o , n a s c a n ç õ e s d e J a n is J o p lin , J im i H e n d r ix ,
T h e M a m a s a n d th e P a p a s, S im o n & G a r fu n k e l, en tr e o u tr o s , c u jo s p r e c u r ­
so r e s fo r a m B ob D y la n e J o a n B a ez, q u e c a n ta v a m d e n ú n c ia s a o r a c is m o e à
G u e r r a d o V ie tn ã , e m 1 9 6 8 . B a n d a s in g le s a s fa m o s a s in te r n a c io n a lm e n te ,
c o m o o s B ea tles e o s R o llin g S to n e s , ta m b é m e sta v a m a fin a d a s c o m a c o n tr a ­
c u ltu r a . P a r a le la m e n te , d e s e n v o lv ia -s e a p o p a r t, c o m A n d y W a r h o l, R o y
L ic h te n s te in o u Jasp er J o h n s. N a litera tu r a d e s ta c a v a m -s e n o v o s te m a s , in ­
t r o d u z i d o s p o r e s c r it o r e s c o m o N o r m a n M a il e r e J o h n U p d ik e . N a
B r o a d w a y en tra v a em c a r ta z a p eça H a ir, a b o r d a n d o o c o tid ia n o d a ju v e n ­
tu d e e a c o n te s ta ç ã o d o s v a lo r e s tr a d ic io n a is.
A lé m d a n o v a m ú s ic a e d o p a r e n te s c o c o m m a n ife s ta ç õ e s e m to d a s as
a r te s , a c o n tr a c u ltu r a c a r a c te r iz a v a -se p o r p reg a r a lib e r d a d e s e x u a l e o u so
d e d r o g a s — c o m o a m a c o n h a e o L S D , c u jo u s o era c o n s id e r a d o u m a fo r m a
d e p r o te s to c o n tr a o siste m a . O a m o r livre e as d r o g a s se r ia m lib e r a d o r e s d e
p o te n c ia lid a d e s h u m a n a s e s c o n d id a s s o b a c o u r a ç a im p o s ta a o s in d iv íd u o s
p e lo m o r a lis m o d a c h a m a d a so c ie d a d e d e c o n su m o . A liá s , c o n tr a o s v a lo r e s
d e ss a s o c ie d a d e , c o m e ç a r a m a se fo rm a r c o m u n id a d e s a lte r n a tiv a s , c o m e c o ­
n o m ia s d e su b s istê n c ia n o c a m p o e u m m o d o d e v id a in o v a d o r , c o m o as d o
m o v im e n to b ip p y .
A c o n tr a c u ltu r a era p a r tic u la r m e n te d ifu n d id a n o s m e io s u n iv e r s itá r io s,

141
O SÉCULO XX

c a s o d e C o lu m b ia e m N o v a Y ork e B erk eley n a C a lifó r n ia . F ica ria fa m o s a a


frase “ n ã o c o n fie e m n in g u é m c o m m a is d e tr in ta a n o s ” — a fin a l, a t a x a d e
n a ta lid a d e crescera c o n s id e r a v e lm e n te n o s E U A , d o p ó s-g u e r r a a o fim d o s
a n o s 5 0 e in íc io d o s 6 0 , fe n ô m e n o c o n h e c id o c o m o b a b y b o o m , d e o n d e p r o ­
v in h a m o s jo v e n s u n iv e r sitá r io s d e 1 9 6 8 .
O m o v im e n to e s tu d a n til a m e r ic a n o fo i m u ito s ig n ific a tiv o d e 1 9 6 4 a
1 9 7 0 . D ife r e n te m e n te da F ran ça e d o B rasil, 1 9 6 8 n ã o fo i o á p ic e d o m o v i­
m e n to e stu d a n til n o s E U A , a p e n a s u m m o m e n to s ig n ific a tiv o d a s lu ta s q u e
se a r tic u la v a m e m to r n o d o c o m b a te à G u erra n o V ie tn ã e a o se r v iç o m ilita r
o b r ig a tó r io , m o b iliz a n d o o s jo v e n s m u ito a lé m d a m in o r ia m a is id e n tific a d a
c o m a c o n tr a c u ltu r a . M a s e le s ja m a is c o n se g u ir a m r o m p e r o is o la m e n to d o s
c a m p i u n iv e r s itá r io s, te n d o s id o se m p r e v is to s à d is tâ n c ia e c o m d e s c o n f ia n ­
ça p e lo r e sta n te da p o p u la ç ã o — a o c o n tr á r io d o q u e o c o r r e u n a F ra n ça , p o r
e x e m p lo . D e m o d o q u e é p r e c is o a te n ta r p a ra as e s p e c ific id a d e s d a s lu ta s de
jo v e n s e e stu d a n te s e m ca d a u m d o s p a ís e s etj};q u e e la s s e d e r a m , c o m o será
e x p o s t o a seguir.

1968 ESTUDAN TIL E O PERÁ RIO N A FRANÇ A

Se é le g ítim o d izer q u e h o u v e u m m o v im e n to s o c ia l m a is d e s ta c a d o n o a n o
d e 1 9 6 8 , se m d ú v id a fo i o d o s e stu d a n te s, q u e se m o b iliz a r a m e m t o d o s o s
c a n to s d o g lo b o , n o s p a íse s a v a n ç a d o s e n o s s u b d e s e n v o lv id o s , n o s c a p ita lis ­
ta s e n o s c o m u n is ta s . O s m o v im e n to s e stu d a n tis tiv e r a m su a s e s p e c ific id a ­
d e s, p o is o c o r r e r a m em p a ís e s d ife r e n te s, c a d a u m d o s q u a is c o m su a p r ó p r ia
o r g a n iz a ç ã o s o c ia l e e d u c a c io n a l, p a s s a n d o p o r d iv e r sa s c o n ju n tu r a s p o lít i­
c a s. T o d a v ia , eles ta m b é m a p r e se n ta r a m s ig n ific a tiv o s p o n to s d e id e n tid a d e ,
n a m e d id a e m q u e h a v ia v á r io s a sp e c to s h is tó r ic o s su p r a n a c io n a is , is to é , c o ­
m u n s a o s v á r io s E sta d o s o n d e h o u v e a g ita ç ã o e s tu d a n til. P o r is s o , a lg u n s
c h e g a m a fa la r n u m a In tern a cio n a l E stu d a n til e s p o n tâ n e a , m o v im e n to n ã o
o r g a n iz a d o p o litic a m e n te e m te r m o s in te r n a c io n a is, m a s c o m in ú m e r a s a fi­
n id a d e s e n tr e se u s c o m p o n e n te s .
C a d a u m d o s m o v im e n to s e s tu d a n tis d e 1 9 6 8 m e r e c e r ía d e s ta q u e . N a
im p o s s ib ilid a d e d e tra ta r d e t o d o s e le s , v a le a p e n a d e te r -se u m p o u c o n o
m a is c o n h e c id o de 1 9 6 8 : o d e m a io , n a F ra n ça , q u e c o s tu m a ser t o m a d o c o ­
m o r e fe r e n c ia l para o e s tu d o d a é p o c a . Is so n ã o sig n ific a q u e o s m o v im e n to s

1 42

L.
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

d e o u tr o s p a íse s te n h a m s id o m e r o r e fle x o d o fra n cês. A p ró p ria c r o n o lo g ia


d e 1 9 6 8 a te sta q u e m o v im e n to s e stu d a n tis im p o r ta n te s — c o m o o b r a sile ir o
— p r e c e d e r a m o m a io fr a n c ê s, a in d a q u e p o ste r io r m e n te te n h a m s o fr id o su a
in flu ê n c ia .
D u r a n te a S e g u n d a G u erra M u n d ia l, p arte d a F ran ça fo i o c u p a d a p e la
A le m a n h a n a z is ta , q u e ta m b é m in s ta lo u a o su l, e m V ich y, u m g o v e r n o fr a n ­
c ê s c o la b o r a c io n is ta , lid e r a d o p o r P é ta in , q u e h a v ia s id o h e r ó i n a c io n a l da
P rim eira G ra n d e G u erra. C o m a lib e r a ç ã o d a F ran ça e o fim da g u erra , in s ­
titu i-se a Q u a rta R e p ú b lic a , n a q u a l o p a ís fo i d ir ig id o p o r p a r tid o s d e c e n ­
tr o e sq u e r d a , q u e p r o m o v e r a m a m o d e r n iz a ç ã o da s o c ie d a d e , a c o m p a n h a d a
d e d ir e ito s s o c ia is e lib e r d a d e s d e m o c r á tic a s, c o m a ju d a fin a n c e ir a d o P la n o
M a r s h a ll, b a n c a d o p e lo s E U A , te m e r o s o s d e p o ss ív e is a v a n ç o s c o m u n is ta s
n a E u r o p a . M a s o s g o v e r n o s de o r ie n ta ç ã o s o c ia l-d e m o c r a ta tiv e r a m d e c o n ­
v iv e r c o m o s p r o b le m a s g e r a d o s p e lo s r e sq u íc io s c o lo n ia is fr a n c e se s: e s p e ­
c ia lm e n t e a p a r tir d e 1 9 5 4 , in t e n s if ic o u - s e a lu ta p e la in d e p e n d ê n c ia d a
A r g é lia , q u e viria a d iv id ir a o p in iã o p ú b lic a fra n cesa até 1 9 6 2 , q u a n d o se
e fe tiv o u a in d e p e n d ê n c ia .
A crise g e r a d a p e la g u erra n a A rg élia a c a b o u r e c o n d u z in d o a c e n tr o d i­
reita a o p o d er, e m ju n h o d e 1 9 5 8 , so b o c o m a n d o d o g en e r a l D e G a u lle , líd er
c a r is m á tic o q u e c o m a n d a r a a r e s is tê n c ia n o e x te r io r , d u r a n te a S e g u n d a
G u erra M u n d ia l, e d irig ira o g o v e r n o p r o v is ó r io , n o p ó s-g u e r r a . A p a rtir de
1 9 5 8 , o p o d e r E x e c u tiv o g a n h o u fo r ç a , n o p e r ío d o q u e se c o n v e n c io n o u c h a ­
m a r d e Q u in ta R ep ú b lica , c o m a e n tr a d a e m v ig o r d e n o v a C o n s titu iç ã o , q u e
d a v a p o d e r e s m a io r e s a o p r e sid e n te , e m d e tr im e n to d o p o d e r L e g isla tiv o . D e
G a u lle , a p r in c íp io fa v o r á v e l a m a n ter tr o p a s n a A r g é lia , m u d o u d e r u m o e
c o m b a t e u a e x tr e m a d ir e ita , b e m -o r g a n iz a d a e c o lo n i a li s t a , c o n s e g u in d o
le v a r a b o m te r m o a cr ise d a A rg élia . Ele c o m a n d a r ia a F ran ça c o m p u ls o
fir m e e se m m a io r e s p r o b le m a s até 1 9 6 8 .
O s e v e n to s d e m a io v iria m a c o n stitu ir -se n u m a su rp resa , p o is a e c o n o ­
m ia e sta v a e sta b iliz a d a e p r e d o m in a v a c e r to m a r a s m o p o lític o ta m b é m n o
p ó lo m a is fo r te à e sq u e r d a , o P a rtid o C o m u n is ta F ran cês (P C F ). C h o c a d o
p e la crise d o s ta lin is m o a p ó s 1 9 5 6 , e m u ito b u r o c r a tiz a d o , e le n ã o se m o s tr a ­
v a c a p a z de a m ea ça r a o r d e m e sta b e le c id a .
A F ran ça m u d a ra e as in s titu iç õ e s já n ã o d a v a m c o n ta d e re p r e se n ta r a
s o c ie d a d e — fo i o q u e se d e sc o b r iu e m m a io d e 1 9 6 8 , q u a n d o o p a ís e n tr o u
e m e b u liç ã o a p artir da m o b iliz a ç ã o e stu d a n til.
O s e s tu d a n te s tin h a m tr a d iç ã o d e lu ta , in c lu siv é n o p e r ío d o m a is recen -

143
O SÉCULO XX

te , q u a n d o se p o sic io n a r a m p e la retira d a fra n cesa d a A r g é lia , c o m in ú m era s


m a n ife s ta ç õ e s d e rua até 1 9 6 2 . A p artir d o fim d o s a n o s 5 0 , fo r m a r a m -se o r ­
g a n iz a ç õ e s d a ju v e n tu d e à e sq u e r d a d o PCF, q u e g a n h a v a m fo r ç a c r e sc e n te .
E m 1 9 6 8 , h a v ia n o m e io e s tu d a n til c o r r e n te s tr o tsk is ta s, m a o ís ta s e a n a r ­
q u is ta s. E las tiv e r a m im p o r tâ n c ia n o m o v im e n to , m a s e stiv e r a m lo n g e d e d i­
rig i-lo : as m a n ife sta ç õ e s d e m a s sa s fo r a m a u tô n o m a s e e s p o n tâ n e a s , m a r c a ­
d a s p e la r e c u sa d e q u a lq u e r o r g a n iz a ç ã o n o s m o ld e s tr a d ic io n a is e p r o fu n d a ­
m e n te c r ític a s d o b u r o c r a tism o , d a h ie r a r q u ia e da c is ã o q u e c o s tu m a ser g e ­
ra d a n a r e la ç ã o en tre d ir ig e n te s e d ir ig id o s .
E m 2 2 d e m a r ç o d e 1 9 6 8 , o s e s tu d a n te s o c u p a r a m a U n iv e r s id a d e d e
N a n te r r e , n o s a rred ores d e P aris, e m p r o te s to c o n tr a a p r isã o d e se is e s tu d a n ­
te s d o C o m itê V ie tn ã n a c io n a l. E m h o m e n a g e m a e sse d ia — q u e c o s t u m a ser
c a r a c te r iz a d o c o m o o m a r c o in ic ia l d o m o v im e n to q u e se e s t e n d e r ía a té
ju n h o — , fo r m o u -se o g r u p o 2 2 de M a r ç o , c r ític o d o s m é to d o s o r g a n iz a c io ­
n a is m a r x is t a s - le n in is t a s ; s e u m e m b r o m a is d e s t a c a d o fo i D a n ie l C o h n -
B e n d it, e stu d a n te d e n a c io n a lid a d e a le m ã r a d ic a d o n a F ra n ça , q u e p a s s o u a
ser p r o c e s s a d o . Em m a io , a a g ita ç ã o a tin g ir ía a tr a d ic io n a l S o r b o n n e , q u e
a c a b o u s e n d o o c u p a d a p e la p o líc ia , g e r a n d o r e v o lta d o s e s t u d a n te s , q u e
fo r a m p a ra as ru as p r o te sta r e e n fr e n ta r a p o líc ia n o Q u a r tie r L a tin (b airro
u n iv e r s itá r io n o c o r a ç ã o d e P a ris). O s e v e n to s g era ra m p r is õ e s e c r e sc e n te s
o n d a s d e p r o te s to e stu d a n til p ara lib erta r o s c o le g a s .
N o d ia 1 0 d e m a io , c erca d e 1 5 m il m a n ife sta n te s s ã o im p e d id o s d e e n ­
trar n o Q u a r tie r L a tin , c u jo s p r in c ip a is p o n to s h a v ia m s id o fe c h a d o s p e la
p o líc ia . M e s m o a ss im , o s e stu d a n te s r e so lv e m o c u p a r o b a ir r o , s ã o a ta c a d o s
p e la p o líc ia e a c o n te c e v e r d a d e ir a b a ta lh a , d e m a is de q u a tr o h o r a s. A v io ­
lê n c ia d o c o m b a te in c e n d e ia a F rança: o s e stu d a n te s o c u p a m to d a s as fa c u l­
d a d es; v ã o se s u c e d e n d o p a ss e a ta s e e n fr e n ta m e n to s c o m a p o líc ia . O g o v e r ­
n o c e d e , lib era a S o r b o n n e e t o d o o Q u a r tie r L atin n o d ia 1 3 . I m e d ia ta m e n te ,
o s e s tu d a n te s o c u p a m a u n iv e r s id a d e e tr a ta m d e le v a n ta r b a r r ic a d a s p ara
d e fe n d ê -la , n o s m o ld e s d a tr a d iç ã o re p u b lic a n a fra n cesa . F o r m a -se u m a c o ­
m u n a e s tu d a n til n o b a ir r o , q u e p r o m o v e c o m íc io s , d e b a te s e fe s ta s, se m q u e
se d e s ta c a s s e m líd eres e s p e c ífic o s , n u m c lim a d e to ta l lib e r d a d e , r e c u sa e m
r e la ç ã o à o r d e m e sta b e le c id a e su a s in s titu iç õ e s , in c lu siv e o s p a r tid o s d e e s ­
q u e r d a c o n s o lid a d o s , n o ta d a m e n te o PCF. E ste, p o r su a v e z , v ia n o m o v i­
m e n to u m e sq u e r d ism o ju v e n il estéril.
O m o v im e ftto d e m a io in a u g u r a v a n o v o e s tilo d e a ç ã o e m a n ife s ta ç ã o ,
fo r a d e p a r tid o s o u s in d ic a to s , r e c u sa n d o q u a lq u e r tip o d e tu te la p o lític a ,

144
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

e m b o r a e stiv e ss e m m u ito a tiv o s n o m o v im e n to p e q u e n o s g r u p o s d e e sq u e r ­


d a e , p r in c ip a lm e n te , a U n iã o N a c io n a l d o s E stu d a n te s d a F ran ça (U N E F ), o
S in d ic a to N a c io n a l d o E n s in o S u p e r io r (S N E S u p ), e n tid a d e d o s d o c e n te s
u n iv e r s itá r io s, en tre o u tr o s ó r g ã o s de e stu d a n te s e p r o fe s so r e s, in c lu s iv e se-
c u n d a r ista s.
N o d ia 13 d e m a io , a situ a ç ã o a g r a v o u -s e p ara o s p a r tid á r io s d a o rd em :
p e r c e b e n d o o â n im o d o s o p e r á r io s d e su a s b a se s, a C o n fe d e r a ç ã o G era l d o
T r a b a lh o (C G T ), ce n tr a l sin d ic a l lig a d a a o PCF, e a C o n fe d e r a ç ã o F ra n cesa
D e m o c r á tic a d o T r a b a lh o (C F D T ), p r ó x im a d o s s o c ia lis ta s , d e c la r a r a m u m a
g rev e d e 2 4 h o ra s e m so lid a r ie d a d e a o s e s tu d a n te s e fizera m u m a m a n ife s ta ­
ç ã o d e c e n te n a s d e m ilh a r e s d e p e s s o a s . C o m e ç a r a m a su c e d e r -se g r e v e s e
o c u p a ç õ e s e sp o n tâ n e a s d e fá b rica s, q u e lo g o p a r a lisa r ia m a F ran ça.
O s e s tu d a n te s fr a n c e s e s c o n s e g u ir a m o q u e q u e r ia m : s o lid a r ie d a d e e
a ç ã o c o n ju n ta c o m o s tr a b a lh a d o r e s, cu ja a tiv id a d e p o lític a já n ã o era c o n ­
tr o la d a p o r q u a lq u e r o r g a n iz a ç ã o . N ã o o b s ta n te , e ssa so lid a r ie d a d e n a s ruas
n ã o s ig n ific o u a c o n s titu iç ã o d e u m c o m a n d o o r g a n iz a d o o p e r á r io -e s tu d a n -
til d e n o v o tip o , m e s m o p o r q u e a in s u r r e iç ã o e stu d a n til, e s p o n tâ n e a e c o m ­
b a tiv a , n ã o tin h a u m a p r o p o s ta d e o r g a n iz a ç ã o p o lític a o u s in d ic a l — a o
c o n tr á r io , u m a ca ra c te r ístic a d o m a io u n iv e r s itá r io era a r e c u sa a q u a lq u e r
o r g a n iz a ç ã o , a p e sa r d o s e s f o r ç o s d o s g r u p o s d e v a n g u a r d a t r o t s k is t a s e
m a o ís ta s . N a q u e le m o m e n to , tr a ta v a -se m a is d e n eg a r o s v a lo r e s e a o r d e m
e sta b e le c id o s d o q u e d e p r o p o r q u a lq u e r a lte r n a tiv a c o n c r e ta . N e s s a m e d id a ,
era d e esp erar q u e , c e d o o u ta rd e, a p esa r d e a b a la d a , a C G T r e to m a s s e su a
h e g e m o n ia so b r e a m a io r ia d o s o p e r á r io s d e esq u e r d a .
N o s m e io s o p e r á r io s e e stu d a n tis , m istu r a v a m -se o s p r o p ó s ito s , q u e v a ­
r ia v a m d e sd e o d esejo d e m e lh o r ia s sa la r ia is e tr a b a lh ista s d e n tr o d a o r d e m
r e fo r m a d a , p a ss a n d o p e la c o n te s ta ç ã o ra d ic a l d a s o c ie d a d e d o b e m -e sta r e
d o c o n s u m o , a té as p r o p o sta s r e v o lu c io n á r ia s a n tic a p ita lis ta s. B a n d e ir a s v e r ­
m e lh a s (m a r x ista s) e p retas (a n a rq u ista s) e sp a lh a v a m -s e p e la s ru as e m o n u ­
m e n to s ; fr a se s lib ertá ria s e c r ia tiv a s er a m p ic h a d a s n o s m u r o s ; r e v o lt o s o s
o c u p a v a m b a rrica d a s e m c lim a d e fe sta e prazer, a b r a ç a v a m -se e b e ija v a m -s e
e m p ú b lic o ; a p a recia m d e c la r a ç õ e s d e a p o io às lu ta s d e lib e r ta ç ã o n a c io n a l
n o T erceiro M u n d o , e sp e c ia lm e n te n o V ie tn ã ; o r o s to d e C h e G u e v a r a , a s s a s ­
sin a d o e m 1 9 6 7 , ressu rg ia e m b a n d eira s e ca r ta z e s; m a n ife sta n te s e n to a v a m
a In te r n a c io n a l.
V á r io s artistas a d eria m a o m o v im e n to , q u e in te r r o m p e u o F e stiv a l d e C i­
n e m a d e C a n n e s e o c u p o u o tr a d ic io n a l T ea tro O d é o n . Em 2 0 d e m a io , h a v ia

145
O SÉCULO XX

1 0 m ilh õ e s d e tr a b a lh a d o r e s e m g r e v e , a lé m d e t o d o o siste m a u n iv e r s itá r io .


A F ran ça p a r o u de trab alh ar: m e ta d e d o p a ís s o n h a v a c o m tr a n s fo r m a ç õ e s ,
a o u tr a m e ta d e as te m ia , r e sg u a r d a n d o -se , in tim id a d a , p ara d a r o tr o c o n a
p rim eira o p o r tu n id a d e . O filó s o f o J e a n -P a u l Sartre d e c la r a v a q u e o m o v i­
m e n to e s tu d a n til esta ria p r e p a r a n d o a v e r d a d e ir a v ia a o s o c ia lis m o e à lib e r ­
d a d e , q u e se r ia m in se p a r á v e is. S u c e d ia m -se d e c la r a ç õ e s d e a p o io d e e x p r e s ­
s i v o s i n t e le c t u a i s d e e s q u e r d a , n a F r a n ç a e n o e x t e r io r , c o m o H e r b e r t
M a r c u s e , a u to r d e liv ro s a fin a d o s c o m o id e á r io d o m o v im e n to , a in d a a n te s
d e se u s u r g im e n to .
M e s m o se m ja m a is terem o b tid o c o n tr o le so b r e o c o n ju n to d o s r e v o lt o ­
s o s , flo r e sc e r a m p e q u e n o s e v a r ia d o s g r u p o s c o n te s ta d o r e s: tr o ts k is ta s , a n a r ­
q u is ta s, m a o ís ta s e o u tr o s , c o m o o s situ a c io n is ta s , a u to r e s d e m u ita s d a s fr a ­
ses m a is c r ia tiv a s p ic h a d a s n o s m u r o s d e P aris e o u tr a s c id a d e s . O s s it u a c io ­
n ista s er a m h e r d e ir o s e d issid e n te s d o su r r e a lism o , p r o p u n h a m u m a fu s ã o
en tre a p o lític a e a arte, b em c o m o a “ r e v o lu ç ã o in te g r a l n a v id a c o t id ia n a ” .
Em 1 9 5 7 , e le s h a v ia m c r ia d o u m a In te r n a c io n a l S itu a c io n ista , q u e a p r in c í­
p io era m a is a r tístic a q u e p o lític a , in v e r te n d o e ss e s p ó lo s e m m e a d o s d o s
a n o s 6 0 , a o d e fe n d e r a a u to g e s tã o e a r e v o lu ç ã o p r o le tá r ia c o m o u m a fe s ta ,
em q u e a regra é g o z a r a v id a . A s id é ia s d e fe sta d e lib e r ta ç ã o c o le tiv a e d e
fr u iç ã o d o s p ra zeres p e s s o a is fo i m u ito m a r c a n te n a F ran ça d e 1 9 6 8 .
S itu a c io n is ta s e screv era m a lg u n s d o s liv r o s m a is s ig n ific a tiv o s e in flu e n ­
tes n o p e r ío d o , c o m o A so c ie d a d e d o esp e tá c u lo , d e G u y D e b o r d , e T ra ta d o
d e sa b e r -v iv e r p a ra o u so das n o v a s g era ç õ e s, d e R a o u l V a n e ig e m . A m b o s
fo r a m p u b lic a d o s e m 1 9 6 7 , a n o d o film e A ch in esa, d e J e a n -L u c G o d a r d ,
q u e p r o fe tiz a r a o m a io d e 6 8 e a in flu ê n c ia so b r e se to r e s d a ju v e n tu d e d a re ­
v o lu çã o cu ltu ra l, em c u r so n a C h in a a p artir d e 1 9 6 6 . E ssa in flu ê n c ia b a se a -
v a -s e e m im a g e n s id e a is lib e r tá r ia s, p r o je ta d a s n o e x te r io r p e la r e v o lu ç ã o
c u ltu r a l — im a g e n s q u e ta lv e z tiv e sse m tê n u e lig a ç ã o c o m se u rea l s ig n ific a ­
d o n a p á tr ia d e M a o .
A id e n tid a d e d e a lg u n s jo v en s r e v o lto s o s fra n ceses d e 1 9 6 8 c o m a r e v o lu ­
ç ã o c u ltu r a l c h in e s a d a v a -se p o r q u e v ia m nela: o c o m b a te a o p r o c e ss o d e b u -
r o c r a tiz a ç ã o n o s p a íses so cia lista s; u m a p o lític a e x te r n a d e so lid a r ie d a d e c o m
as n a ç õ e s d o T erceiro M u n d o ; a ê n fa se na a ç ã o e s p o n tâ n e a d a s m a ssa s n o p r o ­
c e ss o d e ru p tu ra d a d iv isã o en tre c a m p o e c id a d e , tr a b a lh o in te le c tu a l e tr a b a ­
lh o m a n u a l; ig u a lita r ism o so c ia l, e m d e tr im e n to d as fo r ç a s d o m erca d o ; a d m i­
n istr a ç ã o p o p u la r direta; u so da en ergia e d o e n tu s ia sm o da ju v e n tu d e etc.
N a s c ir c u n s tâ n c ia s d e sc r ita s, a in s u b o r d in a ç ã o e a s g r e v e s e s tu d a n til e

<46
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

o p erá ria lev a ra m a u m a crise g era l d e a u to r id a d e n a F ra n ça , p r o p a g a d a a o s


q u a tr o c a n to s p ela im p r e n sa e sc r ita , p e lo r á d io e p e la te le v is ã o , q u e le v a v a m
a o m u n d o p a la v ra s, so n s e im a g e n s d a c o n te s ta ç ã o . O g o v e r n o se n tia -s e p o ­
litic a m e n te frágil para e n fren ta r a r e v o lta e te m ia la n ç a r m ã o d e a rm a s c o n ­
tra o m a n ife sta n te s, o q u e p o d e r ia levar a u m a g u erra c iv il, r ecu rso a q u e r e ­
co rrería a p e n a s em ú ltim o c a s o . P or o u tr o la d o , a té m e s m o in s titu iç õ e s c o n ­
so lid a d a s d e esq u e r d a , c o m o o P C F e a C G T , se n tia m q u e stio n a d a su a a u to ­
rid a d e so b r e o s tr a b a lh a d o r e s. O p r e sid e n te D e G a u lle m a n tin h a n e g o c ia ç õ e s
c o m o s c o m u n ista s para a ru p tu ra d o im p a sse , q u e su r p r e e n d ia e a m e a ç a v a
o s d o is la d o s . E s b o ç o u - s e o a c o r d o d e G r e n e lle (r u a d o M in i s t é r i o d o
T r a b a lh o ), en tre g o v e r n o , p a tr õ e s e o p e r á r io s , fa z e n d o c o n c e s s õ e s tr a b a lh is ­
ta s. M a s o m o v im e n to g r e v ista n ã o a rre fe c e u d e im e d ia to .
E m 2 9 d e m a io , D e G a u lle c h e g o u a sair su b ita m e n te d e P aris p ara m a n ­
ter c o n v e r s a ç õ e s secreta s c o m g e n e r a is d o e x é r c ito n o e x te r io r , p a r tic u la r ­
m e n t e M a s s u , c o m a n d a n t e d a s f o r ç a s f r a n c e s a s s e d ia d a s n a A le m a n h a
O c id e n ta l. R e a r tic u la v a m -se o s c o n se r v a d o r e s : o s g e n e r a is g a r a n tir a m a p o io
a D e G a u lle , se p r e c iso , u s a n d o a fo r ç a p ara r e sta b e le c e r a o r d e m . E m c o n ­
tr a p a r tid a , o p r esid en te c o m p r o m e te u -s e a lib erta r o s ú ltim o s m ilita r e s a in d a
p r e so s , d e v id o a su a s a ç õ e s terro rista s na F ra n ça , c o n tr a a in d e p e n d ê n c ia d a
A rg élia .
D e G a u lle reto rn o u d e c id id o a, m a is u m a v e z , c o lo c a r o r d e m n a c a sa fr a n ­
cesa: n o d ia 3 0 d e m a io , d is so lv e u o P a rla m e n to e c o n v o c o u e le iç õ e s gerais.
A m e a ç a d a p e lo d esen ro la r d o s a c o n te c im e n to s , a m a io r ia sile n c io sa c o n s e r v a ­
d ora a b a n d o n a v a su a s to c a s , ia às ruas de Paris e m a p o io a o p r e sid e n te , fa z e n ­
d o m a n ife sta ç õ e s de c e n te n a s d e m ilh a res d e p e sso a s. R ev e r tia -se a situ a ç ã o . A
p róp ria esq u erd a in stitu c io n a liz a d a , e sp e r a n ç o sa d e v en cer n a s u r n a s, tra ta v a
d e g a ra n tir u m d esen ro la r n o r m a l d o p le ito , p r e p a r a n d o o fim d a grev e. Isso
valia ta n to para o s c o m u n ista s, lid era d o s p o r G e o r g e s M a r c h a is, c o m o p ara o s
s o c ia lista s, c a p ita n e a d o s p o r F ra n ço is M itte r r a n d e M e n d è s-F r a n c e .
E m se g u id a , o g o v e r n o im p le m e n ta r ia m e d id a s d o a c o r d o d e G r e n e lle e,
p o r o u tr o la d o , m a n d a ria a p o líc ia recu p era r fá b r ic a s, r e p a r tiç õ e s p ú b lic a s e
e s ta b e le c im e n to s e sc o la r e s o c u p a d o s p o r r e v o lto s o s . E n c o n tr o u p o u c a r e s is ­
tê n c ia , q u e se e ste n d e u n u m o u o u tr o lo c a l is o la d o a té o fim d e ju n h o . N o d ia
1 2 , o g o v e r n o c o lo c o u na ile g a lid a d e 11 g r u p o s r e v o lu c io n á r io s e s tu d a n tis ,
p r o ib iu m a n ife s ta ç õ e s e p r e n d e u m ilita n te s . N o d ia 2 3 , a d ir e ita fr a n c e s a
v e n c e u o p r im e ir o tu r n o d a s e le iç õ e s g e r a is, c o m 4 3 ,6 5 % d o s v o t o s p a ra c a n ­
d id a t o s g a u llis ta s . A v itó r ia f o i c o n fir m a d a n o s e g u q d o t u r n o , e m 3 0 d e

147
O SÉCULO XX

ju n h o : o c e n tr o e a d ireita c o n se g u ir a m 3 5 8 c a d e ir a s n o P a r la m e n to , d e u m
to ta l d e 4 8 5 .
D e r r o ta d o o m o v im e n to d e m a io , in te le c tu a is e m ilita n te s fr a n c e s e s b u s ­
c a r a m e x p lic á -lo . A té h o je n ã o h á c o n s e n s o n a s in te r p r e ta ç õ e s, m u ita s v e z e s
c o n tr a d itó r ia s en tre si. P or e x e m p lo , a lg u n s p e n s a m q u e o s e v e n to s d e m a io
n a F ra n ça fo ra m u m fe n ô m e n o e ss e n c ia lm e n te e s tu d a n til e d e ju v e n tu d e , a
c o m p r o v a r q u e a lu ta d e c la sse s já n ã o seria a d e q u a d a p ara c o m p r e e n d e r o s
m o v im e n to s so c ia is c o n te m p o r â n e o s ; a o p a s s o q u e o u tr o s e n te n d e m q u e o
ca r á te r d is tin tiv o d o m o v im e n to fo i a g rev e g e r a l d o s tr a b a lh a d o r e s , q u e lh e
d eu o c o n te ú d o fu n d a m e n ta l d e c la s se . A lg u n s v ê e m o s m o v im e n to s e s t u d a n ­
tis d e 6 8 c o m o u m p a ss o im p o r ta n te para a d a p ta r a U n iv e r sid a d e à v id a m o ­
d e r n a , p o is até e n tã o ela e sta r ia u ltr a p a ssa d a , e m d e s c o m p a s s o c o m a s n o v a s
n e c e s s id a d e s d o m e r c a d o d e tr a b a lh o . O u tr o s c o n te s ta m essa in te r p r e ta ç ã o :
o s e s t u d a n t e s d e 6 8 n ã o e s t a r ia m à p r o c u r a d e u m a c a r r e ir a d e n t r o d a
o r d e m , m a s b u sc a v a m c o n te s tá -la r a d ic a lm e n te , p r o m o v e n d o u m a g r a n d e
r e c u sa d e to d o s o s a sp e c to s d a o r d e m e s ta b e le c id a . S e g u n d o c e r to s a u to r e s ,
1 9 6 8 é u m m ito e m g r a n d e p a rte c r ia d o p e la m íd ia ; p a r a o u tr o s , é o a n o fu n ­
d a d o r d e u m a fo r m a in o v a d o r a d e fa zer p o lític a , q u e te r ia a b e r to u m n o v o
p e r ío d o na H istó r ia . Para u n s, m a io fo i u m a r e v o lta in d iv id u a lis ta , o a d v e n ­
to a tr a s a d o n a F ran ça d e u m c o n s u m is m o p e r m is s iv o , q u e a n u n c ia r ia o f l o ­
r e s c im e n to s u b s e q ü e n te d a id e o lo g ia c a p ita lis ta , a o c o m b a te r as n o ç õ e s d e
p r o le ta r ia d o e d e n a ç ã o c o m o s u je ito s c o le t iv o s . P ara o u tr o s , s ig n ific o u a
a b e r tu r a d e u m a b rech a n o siste m a , u m v islu m b r e d e q u e a r e v o lu ç ã o s o c ia ­
lista e lib ertá ria seria p o s s ív e l n a E u ro p a .
P h ilip p e B é n é to n e J ea n T o u c h a r d c h e g a r a m a té a c o n str u ir u m a c la s s if i­
c a ç ã o d e o it o tip o s d ife r e n te s de in te r p r e ta ç õ e s so b r e m a io d e 6 8 n a F ra n ça
tip o s q u e ta lv e z ta m b é m p o s s a m ser v á lid o s p a ra p e n sa r o u tr o s m o v im e n ­
to s d a q u e le a n o . M a io d e 6 8 seria v is to c o m o : 1. c o m p lô a n tic a p ita lis ta p ara
su b v e r te r a o rd em ; 2 . cr ise d a U n iv e r sid a d e , lig a d a e ss e n c ia lm e n te à m a r g i-
n a liz a ç ã o s o c ia l d o s e stu d a n te s; 3 . r e v o lta d a ju v e n tu d e ; 4 . crise d a c iv iliz a ­
ç ã o , g e r a d o r a de c o n s u m is m o n u m a s o c ie d a d e te c n ific a d a ; 5 . c o n f l it o d e
c la s s e d e um n o v o tip o , m a is c u ltu r a l e p o lític o d o q u e e c o n ô m ic o ; 6 . c o n f l i­
to d e c la s s e d e tip o tr a d ic io n a l; 7. crise p o lític a , d a d a a a u sê n c ia d e a lte r n a ­
tiv a s v iá v e is; 8 . e n c a d e a m e n to d e c ir c u n s tâ n c ia s . K e ith R e a d e r a u m e n t o u
e ssa tip o lo g ia : 9. e x e r c íc io d e m o d e r n iz a ç ã o s o c ia l, p r e fig u r a n d o o r e ss u r g i­
m e n to d o in d iv id u a lis m o n o s a n o s 7 0 e 80; 1 0 . o p o r tu n id a d e r e v o lu c io n á r ia
p e r d id a o u traíd a; 1 1 . in te r p r e ta ç õ e s cu ltu r a is.
A d e s p e ito d e to d a s e ss a s in te r p r e ta ç õ e s, e stá lo n g e d e fech a r-se o le q u e

148
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

d e h ip ó te s e s p ara c o m p r e e n d e r o fe n ô m e n o . Is so ta lv e z seja in d ic a tiv o d e q u e


m a io d e 1 9 6 8 n a F ran ça e o c o n ju n to m u n d ia l d o s m o v im e n to s d a q u e le a n o
a in d a e s tã o c a r r e g a d o s d e a tu a lid a d e .

1968 NO BRASIL

N o B rasil, a c im a da in flu ê n c ia d o s fa to r e s in te r n a c io n a is e da id e n tid a d e c o m


m o v im e n to s c o n te s ta d o r e s d e o u tr o s p a íse s, 1 9 6 8 te v e e s p e c ific id a d e s lo c a is
d e te r m in a n te s . O m o v im e n to e stu d a n til d a q u e le a n o , p o r e x e m p lo , n a sceu
de u m a d in â m ic a d e lu ta p r ó p r ia , a n te r io r a m a io d e 1 9 6 8 .
Em 31 d e m a r ç o d e 1 9 6 4 , u m g o lp e m ilita r in te r r o m p e r a o p r o c e s s o d e
d e m o c r a t iz a ç ã o p o lític a e s o c ia l, m a r c a d o p e la m o b iliz a ç ã o p o p u la r e m
b u sca d a s refo rm a s d e ba se, q u e p erm itir ía m m e lh o r d is tr ib u iç ã o d a r iq u eza
e d e d ir e ito s. O g o lp e d e u fim às c r e sc e n te s r e iv in d ic a ç õ e s d e tr a b a lh a d o r e s
u r b a n o s e ru rais, e s tu d a n te s , in te le c tu a is e m ilita r e s d e b a ix a p a te n te , cu ja
p o litiz a ç ã o a m e a ç a v a a o r d e m e sta b e le c id a .
A fa lta d e r e sistê n c ia a o g o lp e g e r o u su rp resa e fo i a tr ib u íd a p o r m u ito s

1
a o s er r o s d o s d ir ig e n te s d o s p a r tid o s d e e sq u e r d a , q u e n ã o se p rep a ra ra m
para resistir, n o ta d a m e n te o P a rtid o C o m u n is ta B ra sileiro (P C B ). F o rm a ra -se
u m a c o r r e n te d e o p in iã o fa v o r á v e l à c r ia ç ã o d e u m a v a n g u a r d a r e a lm e n te re ­
IP 1
v o lu c io n á r ia , para o p o r u m a resistên cia a rm a d a à d ita d u r a e a v a n ç a r e m d i­
m * .

r e ç ã o à su p e r a ç ã o d o c a p ita lism o .
E m o u tu b r o d e 1 9 6 5 , o reg im e e x tin g u iu o s p a r tid o s c o n s titu íd o s . Im p ô s
n o r m a s q u e lev a ria m à e x is tê n c ia legal d e a p e n a s d o is p a rtid o s: a s itu a c io n is ­
ta A lia n ç a R e n o v a d o r a N a c io n a l (A r e n a ) e a o p o s i ç ã o m o d e r a d a d o
M o v im e n to D e m o c r á tic o B ra sileiro (M 1 )B ), q u e viria a ser c a la d a c o m c a s-
sa ç õ e s de p o lític o s e o u tr o s m e c a n is m o s , sem p re q u e se e x c e d e s s e a o s o lh o s
d o s g o v e r n a n te s .
F o ra d o c a m p o in s titu c io n a l, v á r io s g r u p o s p r o c u r a v a m c o m b a te r a d it a ­
d u ra c o r g a n iz a r o s m o v im e n to s p o p u la res: a lém d o P C B , a A ç ã o P o p u la r
(A P ), o P a r tid o C o m u n is ta d o Brasil (PC d o B), a P o lític a O p e r á r ia (P o lo p ) e
d e z e n a s d e p e q u e n o s g r u p o s q u e c o m p o r ia m a “ n o v a e sq u e r d a r e v o lu c io n á ­
r ia ” — c a s o da A ç ã o L ib erta d o ra N a c io n a l (A L N ) e d a V a n g u a rd a P o p u la r
R e v o lu c io n á r ia (V P R ). D a d a a r ep ressã o q u e p r a tic a m e n te d iz im o u o s s e t o ­
res c o m b a tiv o s d o s in d ic a lis m o e d e o u tr o s m o v im e n to s p o p u la r e s , a p r in c i­

149
O SÉCULO XX

p a l fo n te d e r e c r u ta m e n to d e m ilita n te s esta v a n o m e io e s tu d a n til, b e r ç o d o


ú n ic o m o v im e n to d e m a s sa s q u e se r e a r tic u lo u n a c io n a lm e n te n o s p r im e ir o s
a n o s d o p ó s - 6 4 , la n ç a n d o -s e e m sig n ific a tiv o s p r o te s to s d e ru a e m 1 9 6 8 .
1 9 6 8 in ic io u n o B rasil c o m m a n ife s ta ç õ e s d e e s tu d a n te s. P o r u m la d o
eles r e iv in d ic a v a m e n s in o p ú b lic o e g r a tu ito p ara to d o s , u m a r e fo r m a q u e
d e m o c r a t iz a s s e o e n s in o s u p e r io r e m e lh o r a s s e su a q u a lid a d e , c o m m a io r
p a r tic ip a ç ã o e stu d a n til n a s d e c is õ e s , m a is v erb a s p ara p e sq u isa — v o lta d a
p a ra r e so lv e r o s p r o b le m a s e c o n ô m ic o s e s o c ia is d o B rasil. P or o u tr o la d o , o s
e stu d a n te s c o n te s ta v a m a d ita d u r a e o c e r c e a m e n to às lib e r d a d e s d e m o c r á ti­
c a s. N a q u e la é p o c a , a m a io r ia d o s u n iv e r sitá r io s e stu d a v a e m e s c o la s p ú b li­
c a s e o a c e s s o a o e n s in o su p e r io r era b em m a is restrito q u e n o s d ia s d e h o je ,
h a v e n d o u m a d e m a n d a m u ito m a io r q u e a o fe r ta d e v a g a s.
A s m a n ife s t a ç õ e s e s tu d a n tis d e ru a v in h a m a c o n te c e n d o d e s d e 1 9 6 6 ,
c o m r e p r e ss ã o p o lic ia l, m a s fo i e m 1 9 6 8 q u e a m a d u r e c e u a r e b e liã o e s tu d a n ­
til. N o in íc io d o a n o , m o b iliz a r a m -se p o r m a is v a g a s o s e x c e d e n te s (e s tu d a n ­
tes q u e o b tin h a m m é d ia n o s v e stib u la r e s , m a s n ã o e n tr a v a m n a U n iv e r sid a d e
p o r q u e o n ú m e r o d e a p r o v a d o s e x c e d ia o n ú m e r o d e v a g a s d is p o n ív e is ); e n ­
q u a n to o s fr e q ü e n ta d o r e s d e u m r e sta u r a n te e stu d a n til c a r io c a , c o n h e c id o
c o m o C a la b o u ç o , p le ite a v a m su a a m p lia ç ã o e m e lh o r ia . E ssa s r e iv in d ic a ç õ e s
e s p e c ífic a s a s s o c ia v a m -s e à lu ta m a is g e r a l c o n tr a a p o lític a e d u c a c io n a l e
c o n tr a a p r ó p r ia d ita d u ra .
O p r im e ir o g r a n d e c o n flito d e rua d e 1 9 6 8 su rg iu em to r n o d o r e sta u r a n ­
te C a la b o u ç o , q u e fo i in v a d id o a tir o s p e la p o líc ia e m 2 8 d e m a r ç o . R e s u l­
ta d o : v á r io s fe r id o s e u m m o r to , o se c u n d a r ista E d so n L u ís d e L im a S o u to .
O c o r p o fo i le v a d o p ara a A s se m b lé ia L e g isía d v a . C o m p a r e c e r a m a o e n te r r o
m ilh a r e s d e p e s s o a s , e n q u a n to n o r e sto d o p a ís h o u v e p a ss e a ta s d e p r o te s to .
N u m a d e la s , e m G o iâ n ia , a r e p r e ss ã o p o lic ia l m a to u m a is u m e stu d a n te .
E m ab ril e m a io , o c o r r e r a m n o v a s m a n ife sta ç õ e s p ú b lic a s, m a s o s e s tu ­
d a n te s e m gera l rec o lh e r a m -se n o in terio r d as fa c u ld a d e s, para refazer fo rça s.
E n q u a n to is so , n o s sin d ic a to s d e tr a b a lh a d o r e s, e sb o ç a v a m -se m o v im e n to s de
c o n te s ta ç ã o , d o s m a is m o d e r a d o s a o s m a is rad icais. E m abril, e ste s ú ltim o s li­
d e r a r a m u m a g r e v e e m C o n ta g e m , c id a d e in d u s tr ia l p r ó x im a a B e lo H o ­
rizo n te: a b a la d o p e lo su r g im e n to in e sp e r a d o d o m o v im e n to o p e r á r io , o g o v e r ­
n o fe z c o n c e s s õ e s . Já o s se to r e s m a is m o d e r a d o s c o n stitu ír a m o M o v im e n to
In tersin d ica l A n tia r r o c h o (M IA ), lo g o a b o r ta d o . A e n tid a d e c h e g o u a c o n v i­
dar o g o v e r n a d o r d e S ã o P a u lo , A b reu S od ré, p ara o c o m íc io d e I o d e M a io na
P raça da Sé. E sp e r a n ç o so d e c o n se g u ir a lg u m r e sp a ld o p o p u la r para seu p r o ­
je to d e vir a to rn a r-se p r esid en te d a R e p ú b lic a , in d ic a d o p e lo r eg im e, S od ré 1

1 50
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

compareceu ao ato. Arrependeu-se: grupos operários de Osasco e do ABC, es­


tudantes e militantes da nova esquerda resolveram expulsar do palanque o go­
vernador e os dirigentes sindicais considerados pelegos, que tiveram de refu­
giar-se na Catedral. Depois de queimar o palanque, a pequena multidão de re­
voltosos saiu em passeata, gritando: “Só a luta armada derruba a ditadura.”
Em junho, o movimento estudantil ganharia novamente as ruas, atingin­
do seu ápice em todo o país. Ocorriam greves, ocupações de faculdades, pas­
seatas etc. Os estudantes exploravam as divergências na cúpula do regime,
indecisa entre a abertura e o fechamento político nacional. O palco principal
era o Rio de Janeiro, onde os estudantes conseguiam adesão popular a suas
manifestações: no dia 19 de junho, mais de cem pessoas foram presas após
sete horas de enfrentamento nas ruas; no dia 21, as cenas repetiram-se, ainda
mais agravadas, com quatro mortos, dezenas de feridos e centenas de presos
durante a sexta-feira sangrenta. No dia 22, ocorreu a primeira de uma série
de ocupações de escolas pelo país afora, na tradicional Faculdade de Direito
de São Paulo, logo seguida pela Faculdade de Filosofia. Sucediam-se protes­
tos, manifestações, ocupaçõés e passeatas também em Belo Horizonte,
Curitiba, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Porto Alegre, João Pessoa,
Florianópolis, Natal, Belém, Vitória, São Luís e outros centros universitários.
No dia 26 de junho, teve lugar a Passeata dos Cem Mil, em que estudan­
tes, intelectuais, artistas, religiosos e populares tomaram as ruas do Rio de
Janeiro para protestar contra a repressão policial às manifestações e contra a
ditadura. Dada a pressão da opinião pública, o governo não reprimiu a pas­
seata, na qual foi escolhida uma comissão ampla para iniciar um diálogo
com o governo, que não prosperou. O movimento estudantil entrava num
impasse: as autoridades não faziam concessões e intensificavam a repressão.
Paralelamente, uma organização paramilitar de extrema direita, o Comando
de Caça aos Comunistas (CCC), composto por estudantes e policiais, reali­
zava uma série de atentados terroristas.
Em julho, operários fizeram uma greve em Osasco, cidade da Grande
São Paulo. Na época, Osasco foi chamada “a Meca das esquerdas”, devido
à atração exercida pela combatividade do Sindicato dos Metalúrgicos — em
contraste com a mobilização operária escassa em quase todo o país. José
Ibrahim, presidente do Sindicato, e os principais líderes do movimento eram
também estudantes, muito influenciados pelo exemplo da revolução cubana.
Decidido a não fazer mais concessões, o governo reprimiu duramente a
greve. A maioria de seus líderes caiu na clandestinidade; os que ainda não
eram militantes de organizações de esquerda passaram a sê-lo.

151
O SÉCULO XX

Em 3 de agosto de 1968, foi preso o principal líder estudantil carioca,


Vladimir Palmeira. No dia 29, a Universidade de Brasília foi violentamente
invadida pela polícia. O número de passeatas e de participantes ia diminuin­
do drasticamente. Em 3 de outubro, morreu um estudante na Faculdade de
Filosofia da USP, em ataque de estudantes de direita abrigados na Univer­
sidade Mackenzie, na rua Maria Antônia, em São Paulo. Nos dias seguintes,
houve passeatas e choques com a polícia. Esta, no dia 15 de outubro, des­
mantelou o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna,
prendendo todos os presentes, cerca de 700 universitários. Era o fim do mo­
vimento estudantil de 1968. Muitos de seus integrantes passariam a concen­
trar suas atividades na militância política clandestina contra a ditadura, em
organizações de esquerda — algumas delas já começavam a fazer uma ou
outra ação armada em 1968.
A contestação radical à ordem estabelecida difundia-se socialmente na
música popular, na literatura, no teatro, no cinema e nas artes plásticas.
Romances como Q u a ru p , de Antonio Callado; filmes como Terra em tra n se,
de Glauber Rocha, e O s fu zis, de Ruy Guerra, entre outros do Cinema Novo;
peças encenadas no Teatro de Arena e no Oficina; canções como Pra n ã o d ize r
q u e n ã o fa le i d a s flo re s (C a m in h a n d o ), de Geraldo Vandré, P ro c is sã o , de
Gilberto Gil, S o y loco p o r ti, A m érica , de Capinam e Gil, e outras de compo­
sitores como Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento
e seus parceiros; as exposições de artes plásticas, caso da N o v a O b je tiv id a d e
B rasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; enfim, inúmeras
manifestações culturais diferenciadas, entre 1964 e 1968, cantavam em verso
e prosa a esperada revo lu çã o brasileira — com base principalmente na ação
das massas populares, em cujas lutas a intelectualidade de esquerda estaria or­
ganicamente engajada.
Em 1968, os setores artísticos críticos da ordem estabelecida estavam di­
vididos, g ro s so m o d o , em dois grandes campos: o dos nacionalistas e o dos
vanguardistas. Os primeiros procuravam usar uma linguagem autenticamen­
te brasileira, na luta pela afirmação de uma identidade nacional-popular que
seria, no limite, socialista. Já os vanguardistas — capitaneados pelo movi­
mento tropicalista de Caetano Veloso e Gilberto Gil — criticavam o nacio­
nal-popular, buscando sintonizar-se com as vanguardas européia e america­
na, particularmente com a contracultura, incorporando-as criativamente à
cultura brasileira. Apesar das divergências e das rivalidades entre eles, os ar­
tistas engajados nos dois campos viriam a sofrer perseguições, censura a suas
obras e até mesmo prisão e exílio.

152
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

O ano de 1968 encerrou-se no Brasil sob o signo da repressão: em 13 de


dezembro, o regime civil-militar baixara o Ato Institucional número 5 (AI-
5), conhecido como “o golpe dentro do golpe”. Com ele, os setores militares
mais direitistas oficializaram o terrorismo de Estado, que passaria a deixar
de lado quaisquer pruridos liberais, até meados dos anos 70. Agravava-se o
caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional
e as Assembléias Legislativas estaduais, passando a ter plenos poderes para:
cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir
ou aposentar juizes e outros funcionários públicos, suspender o h a b ea s cor-
p u s em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar cri­
mes políticos em tribunais militares, entre outras medidas autoritárias.
Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do as­
sassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da segu ran ça n a c io n a l , tida
como indispensável para o d e se n v o lv im e n to do posteriormente denominado
m ilagre brasileiro na economia.
Com o AI-5, foram presos, cassados, torturados, mortos ou forçados ao
exílio inúmeros estudantes, intelectuais, políticos e outros oposicionistas. O
regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação e manifesta­
ções artísticas, colocando um fim à agitação política e cultural do período.
Não seria tolerada qualquer oposição ao governo. O a n o re b e ld e de 1968
seria sucedido por an os d e ch u m b o .

OUTROS 1968s

1968 foi um ano de agitação e protesto em países do mundo todo: México,


Itália, Alemanha, Japão, Egito, Senegal, Suécia, Bélgica, Holanda, Inglaterra
etc. Para dedicar algumas palavras a mais à América Latina, vale destacar o
movimento estudantil do México.
De 26 de julho a 2 de outubro de 1968, o México viveria dias de protes­
tos, passeatas, repressão e luto nas ruas, tomadas por estudantes e professo­
res. Eles desafiavam o poder do Partido Revolucionário Institucionalizado
(PRI), condutor de um sistema político autoritário, fechado e corrupto, vi­
gente há décadas. Setores das classes médias opositoras do regime conse­
guiam conviver com ele, em parte, pela autonomia concedida pelo governo à
maior universidade do país — a Universidade Autôno,ma do México (Unam),
escola pública, respeitada como intocável te m p lo d o sa b er. Essa autonomia

153
O SÉCULO XX

foi ameaçada quando a polícia ocupou a Unam, no dia 18 de setembro de


1968, em resposta a protestos e a uma greve. Encabeçados pelo reitor, pro­
fessores, funcionários e estudantes saíram em defesa da universidade.
A partir daí, ocorreu nova série de atos públicos duramente reprimidos,
que deixaram vários mortos e feridos. O mais trágico deles foi o de 2 de ou­
tubro. Às vésperas dos Jogos Olímpicos do México, sequioso por garantir a
lei e a ordem para o evento, o governo — articulado com a Central de
Inteligência Americana (CIA) — mandou a polícia abrir fogo contra os ma­
nifestantes na Praça das Três Culturas, Tlatelolco. No massacre, morreram
centenas de pessoas, cerca de 1,5 mil foram presas, outras tiveram de se es­
conder. Com isso, o governo logrou desarticular o movimento universitário.
No âmbito da América Latina, também é essencial observar que 1968 foi
um ano importante para a mudança de postura de setores significativos de
uma das instituições mais importantes: a Igreja Católica. Em agosto, foi rea­
lizada em Medellín, na Colômbia, a Conferência Episcopal Latino-America­
na (Ceiam), na qual se esboçaram a opção preferencial pelos pobres e a defe­
sa dos direitos humanos, constantemente violados pelas ditaduras que domi­
navam a região.
Não foi, contudo, apenas nos países capitalistas que tiveram lugar as ma­
nifestações de 1968. Também em sociedades ditas socialistas — como
Polônia, Iugoslávia e Tchecoslováquia — estudantes e outros setores sociais
ganharam as ruas para expressar sua insatisfação com regimes burocratiza-
dos e autoritários, com raízes stalinistas, muito distantes das promessas li­
bertárias da tradição de pensamento marxista, inclusive da experiência dos
primórdios da revolução soviética.
Um dos eventos mais significativos de 1968 foi a Primavera de Praga. Em
janeiro, o reformador Alexander Dubcek foi escolhido primeiro-secretário do
Partido Comunista (PC), o cargo mais alto na direção do país. Iniciava-se a
breve experiência que eles chamaram de socialismo democrático, ou “socialis­
mo de face humana”. O planejamento econômico ficava a cargo de Ota Sik,
que inovava, ao flexibilizar o controle econômico estatal centralizado. De ja­
neiro a agosto de 1968, a Tchecoslováquia conheceu extraordinário floresci­
mento cultural e político. Abriu-se espaço para a discussão política ampla,
houve descentralização das decisões, criaram-se conselhos de trabalhadores, a
história recente do país era debatida e as artes ganharam impulso.
O estopim do processo que conduziu à Primavera de Praga foi a posição
assumida, em julho de 1967, por alguns autores presentes ao 4° Congresso
da União dos Escritores Tchecoslovacos, que reivindicavam o fim da censu-

i 54
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

ra, novas relações entre política e cultura, entre os cidadãos e o Estado. A in­
satisfação nos meios intelectualizados foi-se avolumando, inclusive na dire­
ção do PC, que afastou o até então todo-poderoso Novotny. A luta contra as
velhas estruturas ganhou a adesão sobretudo dos jovens, afinados com a
onda juvenil libertária internacional.
Sentindo-se ameaçadas pelos ventos liberalizantes, as burocracias no
poder nos demais países do Leste europeu trataram de reprimir o mau exem­
plo: em 20 de agosto de 1968, tropas do Pacto de Varsóvia — lideradas pelas
forças armadas da União Soviética — invadiram a Tchecoslováquia para re­
colocar no poder gente de sua confiança. Houve protestos e escaramuças que
deixaram cerca de 30 mortos e centenas de feridos ao longo da ocupação de
um mês. Contudo, predominou a resistência passiva, estampada, por exem­
plo, em frases criativas pichadas nos muros de Praga, com espírito irônico
próximo daquele de maio de 68 em Paris: “circo russo na cidade: não ali­
mentem os animais”; “Ivan, pense na tensão sexual de Lena”; “grande expo­
sição de armas soviéticas na praça Venceslau: entrada franca, saída difícil”.
O exército tchecoslovaco-‘ficou nos quartéis, devidamente instruído por
generais locais, inimigos das reformas. A população saiu às ruas para protes­
tar, houve uma greve geral, o PC realizou um congresso clandestino, mas os in­
vasores mantiveram o controle da situação. Após instalar no comando do PC
homens de sua confiança, os invasores deixaram o país; então, caberia à polí­
cia política da própria Tchecoslováquia fazer o trabalho sujo da repressão.
Talvez tenha sido a última oportunidade perdida para reformar o socialismo
real: os documentos da época atestam que a ideologia do movimento tchecos-
lovaco era de avanço socialista, não de retorno ao capitalismo. O socialismo
real no Leste europeu, apodrecido em suas estruturas internas, viria a ruir
como um castelo de cartas, mais de vinte anos depois, em outra conjuntura in­
ternacional, dando lugar ao retorno do capitalismo, cujos novos capitães de
empresa seriam os mafiosos que operavam no câmbio negro durante o socia­
lismo e os próprios burocratas que tanto haviam defendido o comunismo...

CONCLUSÃO

Em 1968, o mundo já seria uma aldeia global, na expressão célebre da época,


do sociólogo canadense Marshall McLuhan, que anunciava o fim da era da
imprensa escrita e sua substituição pela era da comunicação audiovisual ime-

155
O SÉCULO XX

diata em todo o mundo. A rápida difusão das notícias pela aldeia global po­
de ser considerada um dos aspectos para compreender a generalização inter­
nacional de eventos como os protestos estudantis de Paris ou a Guerra do
Vietnã. A influência da televisão na França, no Brasil e em outros países,
seria maior nos anos 70, mas já era considerável no fim da década de 1960.
Nos EUA, ela já era enorme em 1968.
Contudo, se os meios de comunicação de massa tiveram um papel consi­
derável para informar os agentes sociais das agitações que se iam sucedendo
em todas as partes do mundo, isso não significa que os protestos se espalha­
ram como reflexo do fenômeno da televisão, ou como mera imitação, mas
porque estavam dadas as condições para que as notícias recebidas tivessem
repercussão e as informações incorporadas colaborassem na construção de
novas ações criativas, política e culturalmente.
Algumas condições materiais eram compartilhadas pelas diversas socie­
dades em que houve o florescimento cultural e político de 1968 — além das
especificidades locais. Essas condições eram.tuais significativas nos países
centrais, mas importantes também em países em desenvolvimento, como o
México e o Brasil: crescente urbanização, consolidação de modos de vida e
cultura das metrópoles, aumento quantitativo das classes médias, acesso cres­
cente ao ensino superior, peso dos jovens na composição etária da população,
incapacidade do poder constituído para representar sociedades que se reno­
vavam, avanço tecnológico (por vezes ao alcance das pessoas comuns, que
passaram a ter cada vez mais acesso, por exemplo, a eletrodomésticos, nota-
damente aparelhos de televisão, além de outros bens, como a pílula anticon­
cepcional — o que possibilitaria mudanças consideráveis de comportamento)
etc. Essas condições materiais não explicam por si sós as ondas de rebeldia e
revolução, apenas abriram possibilidades para que frutificassem ações políti­
cas e culturais inovadoras, buscando colocar a imaginação no poder.
Foram características dos movimentos libertários de 1968 no mundo
todo: inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica;
crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução; busca
do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacre­
ditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo
soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade
de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos de desobe-
diencia civil; ansia de libertação pessoal das estruturas do sistema (capitalis­
ta ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre

1 56
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

lutas sociais amplas e interesses imediatos das pessoas; aparecimento de as­


pectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminis­
mo, de movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros que vi­
ríam a desenvolver-se nos anos seguintes.
Já se disse, com propriedade: o ano de 1968 não deve ser mitificado, mas
sua importância não pode tampouco ser minimizada. As contestações de
1968 marcaram a História contemporânea. A profundidade e a extensão des­
sas marcas são até hoje objeto de muita discussão. Talvez o fascínio de 1968
venha de sua ambigüidade na promessa de construir formas de futuro reno­
vadas, quer de um novo tipo de capitalismo, quer de socialismo. No entanto,
o peso do passado viria a provar-se muito maior do que os militantes de 1968
supunham — tão grande que muitos militantes da época viriam a passar para
o campo conservador vitorioso, chegando até mesmo a ocupar cargos como
os de primeiros-ministros e presidentes da República de governos que adotam
medidas neoliberais em todo o mundo de hoje. Em que medida as promessas
libertárias de 1968 foram, nãq foram, estão sendo ou ainda poderão ser cum­
pridas? As interrogações sobre 1968 permanecem em aberto.

FRASES PICHADAS NOS MUROS FRANCESES EM MAIO DE 1968

“É proibido proibir”; “a imaginação no poder”; “sejamos realistas, peçamos


o impossível”; “a mercadoria, nós a queimaremos”; “a barricada fecha a rua
mas abre o caminho”; “a palavra é um coquetel molotov”; “a humanidade
nunca será feliz até o último capitalista ser enforcado nas tripas do último
burocrata”; “o homem [...] é violento quando oprimido, doce quando é
livre”; “nosso modernismo não passa de uma modernização da polícia”;
“limpeza = repressão”; “as fronteiras que se danem”; “corra, camarada, o
velho mundo está atrás de você”; “a felicidade é uma idéia nova na Escola de
Ciência Política”; “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”;
“você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; “estamos
tranqüilos: 2 + 2 não são mais 4”; “a liberdade do outro amplia a minha ao
infinito” (frase original do anarquista clássico, Bakunin); “abrir as portas
dos asilos, das prisões e outros liceus”; “acho que meus desejos são realida­
de porque acredito na realidade de meus desejos”; ‘!faça amor, não faça guer­
ra ”; “inventem novas perversões sexuais”; “aquéje que fala de revolução
O SÉCULO XX

sernVnudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver”; “quanto ma>s eu faço


amor^ynais eu tenho vontade de fazer a revolução; quanto ma:s eu faço a re­
volução, mais eu tenho vontade de fazer amor”; “o sexo da noite sorriu ao
olho unânime da revolução”; “levemos a revolução a sério, mas não nos le­
vemos a sério ; revolução, eu te amo”; “a morte é necessariamente uma
contra-revolução”.

BIBLIOGRAFIA

i Anderson, Perry. 1985. A crise da crise do marxismo. T. ed. São Paulo, Brasiliense.
Ains, Paulo E. (pref.). 1985. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes.
Callado, Carlos. 199 . Tropicália. São Paulo, ed. 34.
Cardoso, Irene. 1988. “Os acontecimentos de 1968 — notas para uma interpretação”, in
Santos, M.C.L. dos (org.). Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo, Nobel.
Debord, Guy. 1997. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto.
Favaretto, Celso. 1996. Tropicália alegoria alegria. 21 ed. revista. São Paulo, Ateliê Ed.
Perry, Luc e Repaut, Alain. 1985. Pensamento 68. São Paulo,-Ensaio.
Garcia, M arceiAurélio e Vieira, Maria Alice (org.). 1998. Rebeldes e contestadores —
1968, Brasil, França, Alemanha. São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo.
Goldfelder, Soma. 1981. A Primavera de Praga. São Paulo, Brasiliense. Coleção Tudo É
História.
Gc.ender, Jacob. 1987. Combate nas trevas — a esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada. São Paulo, Ática.
Maciel, Luiz Carlos. 1987. Anos 60. Porto Alegre, LP&cM.
Martins Filho, João Roberto. 1987. Movimento estudantil e ditadura militar, 1964-1968.
Campinas, Papirus.
-------------- 1996. Rebelião estudantil: 1968 — México, França e Brasil. Campinas,
Mercado das Letras.
-------- — ■<orS-)- 1998- /áz 30 anos. Campinas, Mercado das Letras; São Carlos
ed. da UFSCar.
i
Matos, Olgárta. 1981. Paris 1968 — as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense.
Coleção Tudo É História.
i
Perrone, Fernando. 1988. ’68 relatos de guerra: Praga, São Paulo, Paris. São Paulo, Busca
Vida.
Reis Filho, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de (org.). 1988 — reeditado em 1998. 1968, a
paixão de uma utopia. Rio de Janeiro, Espaçe e Tempo.
Ridenti, Marcelo S. 1993. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo, ed. Unesp/FA-

158

I
1968: REBELIÕES E UTOPIAS

------------2000. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.


Rio de Janeiro, Record.
Valle, Maria Ribeiro do. 1999. 1968: o diálogo é a violência: movimento estudantil e di­
tadura militar no Brasil. Campinas, ed. da Unicamp.
Veloso, Caetano. 1997. Verdade tropical. São Paulo, Companhia das Letras.
Ventura, Zuenir. 1988. 1968, o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Crise e desagregação do socialismo
Daniel Aarão Reis Filho
Professor titular de História Contemporânea
da Universidade Federal Fluminense
---------- ---- ......... -
------------- ------------- -------- —


.

Desde meados do século XIX, quando se estruturou como teoria da História,


o socialismo contem porâneo sempre se caracterizou p o r uma grande
íàutoconfiança, manifestando a certeza de que suas propostas tenderíam a se
impor, mais cedo ou mais tarde, não principalmente pelo poder de convenci­
mento de seus argumentos, embora isto também contasse, mas porque forças
econômicas, sociais e políticas, de modo objetivo, trabalhavam em favor de
sua vitória.
Assim como os iluministas haviam imaginado a sociedade humana numa
espécie de ascensão linear, expressa na crescente afirmação da razão e dos di­
reitos humanos, e no triunfo das luzes sobre as trevas, e do progresso como
uma espécie de fatalidade, da mesma forma, os socialistas, que se considera­
vam, e com razão, herdeiros dos ideais da Grande Revolução Francesa, acre­
ditavam no triunfo certo da justiça e da igualdade. E extraíam alento, mesmo
em meio a eventuais derrotas políticas, da convicção, profundamente enrai­
zada, de que a História apontava para a alternativa socialista. Eles cultiva­
vam um aforismo, muito comum entre todas as correntes socialistas, que lhes
|dava energia e determinação: o m u n d o m a r c h a p a r a o s o c ia lis m o . N ão se
tratava de uma conclusão derivada de sonhos, ou de desejos, mas de uma
iprevisão científica. Esta era, com efeito, uma novidade — poderosíssima —
aportada pelo socialismo teorizado por K, M arx e F. Engels — a sociedade
socialista não era fruto de uma construção baseada na imaginação, mas uma
certeza baseada no, e autorizada pelo, conhecimento de leis científicas que
regiam o movimento da sociedade. Cabia aos seres humanos apenas adaptar-
se a estas leis, ou, no máximo, propiciar sua realização. A metáfora da revo­
lução como a p a r te ir a d a H is tó r ia era perfeitamente cabível nesta formula­
ção. A sociedade hum ana estava grávida de seu futuro — o socialismo.
Restava aos revolucionários apenas promover as condições para que o parto
pudesse acontecer da melhor forma.
O desdobramento da H istória, até avançado o século XX, apesar de

163

J
0 SÉCULO XX
;
muitos percalços, de sucessos imprevistos e de interpretações inusitadas do
pensamento dos teóricos fundadores, parecia dar foros de verdade a estas
propostas. Vozes mais críticas, certamente, poderíam argumentar que era
cada vez mais difícil conseguir um consenso, entre os próprios m a r x is ta s , a
respeito do verdadeiro sentido das palavras e das previsões de M arx. Elas ha­
viam passado por tantas adaptações, releituras e redefinições, na longa via­
gem da Europa Ocidental à Ásia Oriental, passando pelas Rússias e pelo
Caribe, que se tornara praticamente impossível almejar uma ortodoxia reco­
nhecida por todos os adeptos do socialismo marxista. A partir de certo mo­
mento, houve, inclusive, enfrentamentos armados, de alguma envergadura,
entre Estados socialistas (URSS X China; China X Vietnã; Vietnã X Cam­
boja), sem contar experimentos socialistas esmagados a ferro e fogo... por
outros socialistas... em nome do socialismo, naturalmente (Hungria/1956 e
TchecosIováquia/1968, entre outros). Diante de tal diversidade de pontos de
vista, alguns chegaram a propor uma expressão algo tautológica que ga­
nhou, contudo, muita notoriedade: o s o c ia lis m o r e a lm e n te e x is te n te não fora
previsto, nem talvez desejado, m uito menos correspondia- às elaboradas
construções teóricas do século XIX, mas estava lá, teimoso como os fatos,
como gostava de dizer um grande revolucionário, V. Lenin. ■

Assim, apesar de constituído por propostas muito distintas, e, com fre-


qüência, mutuamente hostis, o socialismo r e a lm e n te e x is tia — e se expandia.
De sorte que, até meados dos anos 70 do século XX, partidários e inimigos
das formulações de K. M arx, os primeiros com esperança, os segundos com *
receio, ainda podiam dizer — e diziam: o m u n d o m a r c h a — e s tá m a r c h a n d o I r
— p a r a o s o c ia lis m o .
Ao longo dos anos 70, contudo, e sobretudo na virada para os anos 80, si­
nais precursores de uma crise maior começaram a ser observados e apontados.
Em primeiro lugar, entrou em questão a capacidade dos países socialistas
em garantir taxas crescentes de desenvolvimento econômico. Tal fora o gran­
de trunfo do socialismo soviético nos anos 30, quando a URSS, impulsiona­
da pelos Planos Qüinqüenais, e ignorando a crise que abalava as economias
liberais, avançara celeremente em direção à sua modernização, em ritmos
alucinantes, queimando etapas. Depois da Segunda Guerra Mundial, e ape­
sar de devastada, surgira no cenário internacional como uma grande super­ í

potência, rivalizando econômica e militarmente com a maior potência mun­


dial — os EUA.
Mais tarde, as demais economias socialistas — na Europa Central, na
r-

p - I
164

i
r
CRI S E E D E S A G R E G A Ç Ã O DO S O C I A L I S M O

t Ásia Oriental, no Caribe — apresentariam, sobretudo nos anos imediata-


' mente posteriores à conquista revolucionária do poder, estas mesmas carac-
? terísticas virtuosas, atribuídas por muitos à estatização da economia e ao
planejamento centralizado — grande dinamismo econômico e invulgar capa­
cidade de automodernização.
■-.! Ora, a partir dos anos 70, justamente, começaram a surgir novos e im­
previstos indícios, como se estivesse havendo uma espécie de inversão de
U temperatura e pressão. A princípio, de uma forma quase que sub-reptícia,
apenas do conhecimento dos serviços de espionagem e de contra-espionagem
' ou de alguns especialistas refinados. Depois, cada vez mais claramente, apa-
recendo em conferências acadêmicas, transbordando para os veículos de co-
t|g municação de massa: os países socialistas já não estavam mais conseguindo
’ fazer avançar a economia nos ritmos anteriores. O mais grave é que o pro-
, i cesso não se referia apenas a ín d ic e s q u a n t i ta t i v o s — que declinavam de
forma visível, embora ainda fossem positivos — mas, principalmente, a ín d i-
.ig ces q u a lita tiv o s — relativos aos produtos, aos procedimentos tecnológicos
* adotados, aos métodos de organização da gestão administrativa e do traba­
lho. Enquanto os grandes países capitalistas, sobretudo os EUA, até como
resposta à crise econômica dos anos 70, ingressavam firmemente numa nova
.íi revolução científico-tecnológica, descobrindo novas fronteiras econômicas
—a informática, as telecomunicações, a robótica, a biotecnologia, a produ-
Ção de novos materiais —, transformando a produção e a sociedade, anun-
dando m u ta ç õ e s c iv iliz a tó r ia s (Dreifuss, 1997), os Estados socialistas pare-
ciam incapazes de sequer acompanhar o processo.
As contradições — alguns já falavam em impasses — não se limitavam ã
economia. Cada vez se tornava mais difícil manter padrões centralistas e di-
KÍi tatorials de dominação — dos partidos comunistas e/ou de líderes carismáti­
cos— sobre sociedades crescentemente urbanizadas, instruídas e informadas
á (Lewin, 1988). O discurso igualitário transmudava-se em retórica vazia em
,, face das desigualdades gritantes que separavam os membros do partido e das
, elites políticas e econômicas e o resto da população. Instaurava-se uma ptO'
funda crise de referências, o desinteresse, a apatia e o cinismo num contexto
de defasagem entre valores proclamados — nos quais as próprias elites, visi-
, velmente, já não acreditavam mais — e valores reconhecidos e praticados.
Mesmo entre os países socialistas, para além dos conflitos ideológicos,
i políticos e armados, já referidos, reproduziam-se, na n o r m a lid a d e de suas re-
i lações, mecanismos de subordinação estranhos à teoria do in te r n a c io n a lis m o

I
V 1

J
O SÉCULO XX CRISE E DESA

e típicos dos laços estabelecidos entre potências capitalistas e pai:


p r o le tá r io m ilitá
ses ditos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. manq
Assim, o mundo socialista surpreendeu-se em profunda crise interna, se és
agravada pelas pressões agressivas do mundo capitalista, animado por seus Gorbi
t
I êxitos econômicos e pela renascente onda neoliberal, nucleada pela Ingla­ ções o
|
terra de M argaret Thatcher e pelos EUA de Ronald Reagan. este ú
Tal é o contexto em que se desdobram as tentativas de reforma empreen­ quida
didas pelo socialismo contemporâneo que passaremos agora a narrar: a as­ E
. I
censão de M. Gorbachev e a política da p e r e s tr o ik a (reestruturação) soviéti­ ciona
ca; os estremecimentos e a derrocada do socialismo na Europa Central e, um tandJ
pouco mais tarde, da própria URSS, a política das Q uatro Modernizações na ções i
China e, finalmente, as tentativas desesperadas de Cuba e demais periferias
do mundo socialista, incluindo-se aí o e u r o c o m u n is m o . na, aj
I
pesad
vernc
nie).
A URSS E A PERE5TRO IKA tagin
Breji
A eleição de M . Gorbachev para o cargo de secretário-geral do Partido f
Comunista da União Soviética, em março de 1985, exprimiu um consenso ge­ d ia iií
nérico favorável a reformas, embora ainda não houvesse um programa clara- , recoi;
mente definido em relação a metas, prazos e ritmos. Uma coisa era certa: a j; do q|
URSS não poderia mais continuar sendo governada por aquela gerontocracia dens
que se havia constituído nas altas cúpulas do Estado e do partido e da qual trutri
eram genuínos representantes os antecessores imediatos do novo secreta rio-gfr :i <
ral: L. Brejnev, I. Andropov e K. Chernenko, aptos, no melhor dos casos, ape- | Fere
nas a tocar os negócios correntes, mas incapazes de enfrentar os grandes di. -?- omi
fios, internos e externos, colocados pelos sinais críticos que se multiplicavam. nom.
M. Gorbachev surpreendería o mundo com propostas inesperadas, so­ res,
bretudo em relação à c o r r id a a m t a m e n ti s t a : moratória unilateral dos testes í; qual
nucleares, redução de 50% dos armamentos estratégicos, diminuição dos ; socíe
mísseis intermediários, destruição dos arsenais nucleares até o ano 2000, í i pros
controles estritos sobre as armas convencionais. Por outro lado, advogava a ■ú J
desativação dos conflitos regionais, inclusive levantando, sem constrangí- r para
mentos, a delicada questão do Afeganistão. dadc
N o m undo capitalista houve espanto e incredulidade. Sabia-se que a f toda
URSS estava disposta a fazer concessões para se aliviar do chamado fan. ■ 1 181
Pf
CRISE E DESAGREG AÇÃO DO SOCIALISM O

ulitar, que era de seu mteiesse concentrar recursos no atendimento das de­
bandas de sua população cada vez mais urbanizada e sofisticada. Mas não
■e esperava tan ta ousadia. Alguns críticos, inclusive, denunciariam
Gorbachev como um perigoso farsante, prometendo o que não tinha condi-
: ções de cumprir. As comparações com N. Kruchev eram inevitáveis. Também
ste último pretendera inovar, mas acabara preso nas malhas do sistema e li­
quidado por ele.
Entretanto, e rapidamente, o líder soviético afirmou-se na cena interna­
cional, ganhando simpatias, quebrando resistências e preconceitos, conquis-
: tando, com suas propostas e seu charme, a atenção dos líderes e das popula-
. çÕes dos principais países capitalistas, assim como do resto do mundo.
No plano interno, porém, prevaleciam os apelos tradicionais à discipli-
na, ao trabalho e à necessidade de se conseguir um novo equilíbrio entre o

I pesado centralismo estatal e a autonomia das empresas. O mote do novo go­


verno, num primeiro momento, resumia-se numa palavra: a c e le r a r (tts k o r ie -
5 ftíc). Acelerar a produção (Féron, 1995), romper a pasmaceira, superar a es-
} tagnação, termo inventado para designar os regimes anteriores e a era de L.
Brejnev, em particular
Em outubro de 1985 apareceu uma nova palavra, que se tornaria mun-
idialmente conhecida: p e r e s tr o ik a , ou seja, recolocar as coisas em construção,
reconstruir, r e e s tr u tu r a r . Tratava-se, portanto, de algo bem mais profundo
Ido que apenas pôr o pé no acelerador, era preciso considerar fatores de or­
dens diversas, estruturais, imaginar reformas que pusessem em questão as es-
^

truturas econômicas do país.


----

t O livro escrito p o r M. Gorbachev, com o título, justam ente, de


Perestroika (Gorbachev, 1987), virou campeão de vendas na URSS e em todo

omundo. Fazia uma análise sem concessões dos males mais evidentes da eco­
---— -

nomia soviética: desperdícios, negligência ante as demandas dos consumido-


:

i res, preocupação exagerada com a quantidade e subestimação de critérios


qualitativos, centralismo excessivo. E apontava para novos horizontes: uma
t sociedade produtiva, autônoma, harmônica, comprometida com a paz e a
prosperidade.
A questão era saber como transitar do s o c ia lis m o r e a lm e n te e x is t e n te
para a nova sociedade que se almejava construir. Do homem velho, empare-
. dado nos métodos e conceitos superados, para o Homem Novo, portador de
todas as virtudes. Em suma, como sair do Presente para o Futuro.
I O XXVII Congresso do Partido Comunista, reunido em fevereiro de

167
0 SÉCULO XX <“ b i

1986, quase um ano depois da eleição de M. Gorbachev, pouco avançou En


neste sentido, indicando a existência de indecisões, dúvidas, diverge ncia>. mas se
Enquanto uns preferiam denunciar as carências do sistema, mas reconhecen­ ma de
do os aspectos positivos, outros, ao contrário, defendiam as conquistas, res­ gislaçã
salvando a existência de contradições. N o conjunto, porém, os debates per­ falênci
maneciam num plano geral, não tendo sido possível definir programas con­ das en
cretos de enfrentamento e superação dos problemas. Todos eram a favor de uma p
acelerar ( u s k o r ie n ie ). Ninguém era contra reestruturar ( p e r e s tr o ik a ) . Mas as se rees
coisas não saíam do lugar. Como se houvesse ali resistências que não ousa­ M
vam aparecer claramente. das m
Houve então o desastre da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia. Pela crítica
primeira vez, desde a revolução pelo alto em fins dos anos 20, a URSS expu­
perta.
nha de modo tão evidente suas feridas. Para os soviéticos e para todo o
predai
mundo. Os partidários das reformas utilizaram-se então do acontecimento
sumo
para reforçar as críticas às mazelas do sistema. E fizeram surgir um outro
sumid
termo russo, que também daria a volta ao mundo: g la s n o s t , ou seja, publici­
todos,
dade dos atos de interesse público ou, numa outra versão, tr a n s p a r ê n c ia . Se
diçõei
tivesse havido transparência na gestão da usina, argumentaram os reformis­
tas, o desastre teria sido certamente evitado. fora c
As reformas pareceram ganhar alento. Em novembro de 1986, aprovou- dos el
se uma lei sobre o trabalho individual privado. Em maio de 1987, um novo filas (
estatuto para as cooperativas. Em ambas as iniciativas, a intenção de auto- ainda
nomizar as atividades econômicas, enfraquecendo os controles centralistas métoi
tradicionais. Mas os receios ainda eram muito grandes, de modo que a nova fato d
legislação veio marcada por uma série de restrições e sanções, desestimulan- gistra
do, na prática, aquilo que se queria, na teoria, encorajar. Em meados di Saúdi
1988, não havia mais do que 370 mil pessoas legalmente habilitadas para o dez vi
trabalho individual, autônomo, e mais 246 mil nas cerca de 20 mil coopera­ sider;
tivas em funcionamento. Para um país de 280 milhões de habitantes, não das, i
fazia muita diferença. desig
Em junho de 1987, mais um avanço formal: aprovou-se uma lei sobre a gente
a u t o n o m i a d a e m p r e s a , para vigorar a partir de janeiro do ano seguinte. M. F
Gorbachev dizia que era preciso substituir métodos essencialmente adminis­ bord
trativos por métodos essencialmente econômicos, conferindo às empresas § (
autonomia para estabelecer contratos com fornecedores e clientes, admitir e 1 a soc
demitir funcionários, estabelecer metas e beneficiar-se com os ganhos obti- 7 dos.
dos. O Plano Qüinqüenal tendería a assumir caráter indicativo, limitando-se ;
va m
a fixar índices de produtividade a serem considerados pelas empresas. }1
Na V

168
Entretanto, como pretender que as empresas pudessem se tornar autôno- 1
mas sem haver um sistema bancário definido para apoiá-las, sem uma refor­
ma de preços, até então fixados arbitrária e administrativamente, sem uma le- ; /'
gislação prevendo — e regulando — a demissão dos trabalhadores, sem lei de 4, ,
falências? Ora, nada disso fora debatido ou votado, de sorte que a autonomia
das empresas ficava suspensa no ar, expressão mais de um desejo, do que d e / 1'' . ,
uma política, sem condições de fixar-se na realidade. E assim a economia não
se reestruturava. ^ A ;U'
Mas a g la s n o s t fazia progressos. Aproveitando-se das brechas abertas, e j
das margens de liberdade garantidas, começou um processo impiedoso de
críticas ao sistema. N ada parecia escapar àquela sociedade subitamente des- ..
perta. O arco das denúncias não podia ser mais amplo. O meio ambiente de- , | q '
predado, comprometendo a atual e as futuras gerações; o alcoolismo e o con­
sumo de drogas em geral; a má qualidade dos produtos oferecidos aos con­
sumidores, evidenciando a subestimação dos interesses dos cidadãos; os mé­
todos burocráticos e autoritários de gestão e administração; as penosas con- .
dições das mulheres, obrigadas a cumprir estafantes jornadas de trabalhar!'
fora do lar, e ainda a desincumbir-se do trabalho doméstico (sem o auxílio
dos eletrodomésticos, caros e de baixa qualidade), e aturar as intermináveis
filas e o machismo renitente do homem soviético. Como se não bastasse,
ainda eram carentes de educação sexual e/ou de suficiente disponibilidade de
;métodos anticoncepcionais. Entre outras estatísticas alarmantes, citava-se o
fato de que a URSS, com o equivalente a 5 ou 6% da população mundial, re­
gistrava 25% dos abortos no mundo, segundo a Organização M undial da
Saúde, duas a quatro vezes mais do que nos demais países socialistas, seis a
dez vezes mais do que nos países capitalistas. Nem a educação e a saúde, con­
sideradas até então setores modelares do socialismo soviético, eram poupa­
das, acusadas de equipamento obsoleto e pessoal mal treinado. Sem falar nas
desigualdades irritantes que privilegiavam os comunistas, sobretudo os diri­
gentes, estes seres m a is ig u a is e?itre o s ig u a is (Orwell, 1984).
Finalmente, mas não menos importante, a corrupção, invadindo e trans­
bordando por todos os poros da sociedade.
O escândalo do tráfico do algodão no Usbequistão, entre outros, chocou
a sociedade: 4 milhões de toneladas em cerca de dez anos haviam sido desvia­
dos. A fraude envolvia altas autoridades, inclusive em Moscou, mas implica­
va milhares de pessoas. Não havia como colocar toda aquela gente na cadeia.
Na verdade, tratava-se de uma prática largamente disseminada, Para escapar

169
O SÉCULO XX

' dos rigores e da ineficácia do centralismo excessivo, constituíam-se na URSS cons


redes autônomas de poder para impulsionar atividades, negócios, autoprote- avol
ção, como se fossem f e u d o s , embora o conceito fosse impróprio. N a própria
cúpula do poder não existira durante anos o grupo (que as más línguas cha­ rênc
mavam de m á fia ) de D n ie p r o p e tr o v s k (formado em tom o da construção da gadi
grande hidrelétrica do mesmo nome), cujo chefe era o próprio L. Brejnev? men
Voltara também com grande ênfase o debate sobre o stalinismo, agora não timi
mais restrito, como nos tempos de N. Kruchev, aos anos 30 e ao âmbito do
partido. Questionava-se agora a coletivização forçada. A questão dos campos lisir
de trabalho. As antigas dissidências, os líderes apagados da memória como rios
Bukharin e Zinoviev. O próprio Trotski, figura maldita, emergia do passado. con
Solicitava-se, agora, sua reinclusão no panteão das lideranças revolucionárias. gre!
Um grupo de jornais e revistas, entre os quais se destacavam O g o n i o k (V. um
Korotitch) e N o tíc ia s d e M o s c o u (E. Iakovlev), abria espaço para denúncias, que
^ críticas e artigos heréticos. As edições e reedições esgotavam-se, disputadas poc
nas ruas. Havia uma atmosfera de ajuste de contas. Uma ânsia de tábula ra­
sa, como um messianismo às avessas. Em parte alguma, argumentava-se, va j
houvera tantos desastres e tanta ignomínia como na URSS. Os chefes, tira­ rur
nos. Os gênios, imbecis. O paraíso socialista, um inferno. O Homem Novo, pai
uma farsa. P«j
j y ‘ A resistência começou a se explicitar, rejeitando com violência as críticas, apí
' numa reação de ex-combatentes. O receio da mudança: aonde aquilo tudo
iria parar? Afinal, tratava-se de renovar ou de destruir o socialismo? Todoi dos
ainda se diziam favoráveis à p e r e s tr o ik a e à g la s u o s t, mas o que significavam àct
exatamente aquelas palavras? Ni
N a alta cúpula, sob o fogo contraditório de reformistas (partidários de ra­ rát
dicalizar a p e r e s tr o ik a ) e conservadores (receosos de que o processo pudessi no
perder o rumo), instalava-se a dúvida. Duas reuniões do Comitê Central, rea­ or|
lizadas em junho e outubro de 1987, evidenciaram uma atmosfera de oscila­ sei
ções. N a primeira, efetuaram-se mudanças importantes, reforçando as corren­ CO
tes reformistas. Contudo, na segunda, demitiu-se B. Yeltsin, que dirigia então ric
o partido em Moscou e que se notabilizara na denúncia às resistências a pe- ba
r e s tr o ík a , convertendo-se, em função de sua ação e de seus discursos, numa gr
espécie de líder da corrente reformista. Nas duas reuniões, como se fosse i ac
pêndulo, dando no cravo e na ferradura, fortalecia-se, sempre, M. Gorbachev, Il£
numa posição de liderança, distante de extremos considerados igualmente m
equivocados. Internacionalmente, seu prestígio continuava alto, ascendendo,

170
CRISE E D ESAGREG AÇÃO DO 50 C IA L ISM 0

; consagrado como o T h e m a n o f t b e y e a r , da revista T im e . N a URSS, porém,


avolumavam-se as contradições.
,; Convocou-se, então, no intuito de resolver os impasses, a XIX Confe-
[ rência Pan-Soviética do Partido Comunista. Congregando milhares de dele­
gados, eleitos num processo de grandes debates a respeito de teses previa-
■;'! mente publicadas, esperava-se que dali pudesse se constituir a requerida legi-
■ timidade democrática para fixar rumos e avançar na sua consecução.
Mais uma vez, fez-se o consenso sobre generalidades: críticas ao centra-
_______________ I

lisrao, ao quantitativismo, ao autoritarismo, elogio da autonomia, dos crité-


Jrios qualitativos, da democracia. A principal decisão, contudo, foi a de...
[convocar uma outra assembléia, a ser eleita por toda a sociedade, um Con­
gresso dos Deputados do Povo, formado por 2.250 eleitos. Eles debateríam
......................... .................. -

Suma agenda e elegeríam um Soviete Supremo, com cerca de 500 deputados,


[que, por sua vez, através do voto secreto, elegería um presidente com amplos
poderes para implementar as deliberações tomadas.
[ Mudanças políticas importantes, sem dúvida. N a prática, o partido esta­
va passando à sociedade os poderes para eleger deputados que decidiríam o
rumo do país. O presidente a ser eleito não seria mais responsável perante o
............

[partido, mas perante a assembléia que o elegera. N o entanto, em termos de


[programas concretos para fazer avançar a p e r e s tr o ik a , salvo a legislação já
.......

aprovada, de efeitos escassos, as coisas continuavam empacadas.


Seguiu-se a campanha para a eleição do Congresso. Os debates, acalora­
— ■---------- ■■■■■ .....................................................

dos, contraditórios, públicos, mobilizaram intensamente um a sociedade


acostumada ao silêncio, mas que parecia tom ar gosto por aquela agitação.
Nunca jornais e revistas venderam tanto suas edições, nem as emissões de
rádio e televisão foram tão ouvidas e vistas quanto naqueles meses do inver­
no de 1988-89. Todos os termas foram debatidos: desde questões relativas à
organização geral da sociedade, como, por exemplo, de que modo poderíam
ser combinadas as virtudes do mercado e do plano, até assuntos atinentes ao
-> .....

cotidiano, como as questões do aborto, das drogas, dos hospitais, dos salá­
. .............

rios. M. Gorbachev aparecia em toda a parte, incentivando, suscitando o de­


bate e a crítica, visitando minas, fábricas e k o l k h o z e s . Permanecia como o
grande líder do processo, galvanizando as vontades, consagrando-se. Tudo
aquilo começara em 1985, há quase quatro anos, mas, agora, finalmente,
havia a esperança de que as reformas, devidamente respaldadas por amplas
. 'A

maiorias, se convertessem em realidade palpável.


Entretanto, certas dissonâncias começaram a surgir, formuladas, com
d
;I

1 71
I *=•
"
freqüência, pelas pessoas comuns. Corria a anedota de que as pessoas, ao;
abrirem a geladeira, não encontravam a p e r e s tr o ik a . As filas aumentavam de;
tamanho. Reapareceu o racionamento de alguns produtos, como a gasolina,
a manteiga, a carne e o açúcar. A colheita de cereais, em 198S, fora um fra-í
casso, quase 20% a menos do que o patamar alcançado dez anos antes. Gor-
bachev responsabilizava o passado, naturalmente. Mas aquele passado esta-;
va custando a passar Afinal, a p e r e s tr o ik a viera para melhorar ou para pio­
rar a vida das pessoas?
Uma outra catástrofe, um terremoto na Armênia, em dezembro de 1.9SS,
uma espécie de novo Chernobyl, contribuiu para estimular as incertezas, evi­
denciando as carências técnicas, a precariedade do socorro, a falta de medí-;
camentos, os erros grosseiros no planejamento da construção dos prédios. A:
URSS, superpotência, mostrava, mais uma vez, suas chagas e elas pareciam,
estranhamente, com as dos países subdesenvolvidos.
Apesar de tudo, a participação nas eleições foi maciça. Contudo, os re-
psultados geraram apreciações diversas. De um lado, os partidários da acele-
fração das reformas foram vitoriosos nos grandes centros urbanos. B. Yeltsin,
por exemplo, embora tendo sido expurgado do Bureau Político em fins de
1987, teve quase 90% dos votos em Moscou. De outro lado, na URSS pro-
f u n d a , em 25% das circunscrições, houve candidaturas únicas, embora a lei
facultasse múltiplos candidatos. Nas 17 regiões do Casaquistão, república
soviética da Ásia Central, os primeiros-secretários do partido foram candidâ?
tos únicos e, naturalmente, vencedores.
Um outro aspecto que se evidenciou no processo eleitoral: o reforço das
identidades nacionais, sobretudo nos chamados p a ís e s b á ltic o s (Lituânia,
Letônia e Estônia), onde se constituíram, e foram vitoriosas, as autodenonii-
' nadas fr e n te s p o p u la r e s , que já começavam a advogar a separação da URSS,1
”, , q A q u e s tã o n a c io n a l, largamente subestimada pelas elites dirigentes sovié­
ticas, tendería, desde então, a se afirmar no centro da cena política. %
O primeiro alarme soara em dezembro de 1986, no Casaquistão. A ten­
tativa, contrariando as tradições, de impor um russo como primeiro-secretá*
^•rio do partido desencadeara a cólera popular na capital do país, Alma-Ata,
obrigando Moscou a recuar. No ano seguinte, no centro do sistema, na praj
pria Rússia, surgira uma organização ultranacionalista, P a m ia t (Memora),
Poucos meses depois, ainda em 1987, uma grande manifestação nacionalista
em Riga, capital da Letônia, reivindicou autonomia e respeito pela identid|
de do país. Ainda naquele ano, em Kiev, na Ucrânia, houve uma verdadeij
CRISE E DESAGREG AÇÃO DO SOCIALISM O

batalha campal entre russos e ucranianos. O estopim fora um banal jogo de


futebol, mas foi possível perceber a força dos ódios nacionais latejando.
Como se o vírus do nacionalismo estivesse à solta. '
Em fevereiro de 1988, veio à luz o conflito entre armênios e azerbaijanos^*-' ,
em torno da região do Alto Karabach. Tratava-se de um território m ajo rita--^^ '
riamente povoado de armênios encravado na República do Azerbaijão. O im­
bróglio fora criado ainda no período de Stalin. Ora, os armênios queixavam-
se de discriminação e de perseguições. E solicitavam a transferência do terri-
: tório para a jurisdição da República da Armênia. N o Azerbaijão, a popula­
ção sentiu-se ameaçada e reagiu com massacres { p o g r o m s ), a arma tradicio­
nal do nacionalismo exacerbado. Os armênios deram o troco e se instaurou
í uma verdadeira guerra civil, que não foi possível debelar até o fim da URSS.
Assim, desenharam-se múltiplos focos de tensão. N o Extremo Ocidente,
■os países bálticos e a Moldávia. Em novembro de 1988, o Parlamento esto-
I níano proclamou o primado das leis da república sobre as leis soviéticas. Em
; fevereiro do ano seguinte, a Lituânia anunciou seu direito a autodetermina-
ção. No Cáucaso, as nacionalidades não paravam de se engalfinhar, suceden-
i^do-se grandes manifestações nacionalistas nas capitais da região. N um a
A delas, em Tbilissi, na Geórgia, em abril de 1989, o exército soviético abriu
lv fogo contra os manifestantes, matando 16 pessoas. N a Ásia Central, a iden­
tidade muçulmana surgia das sombras. Até os ucranianos e bielo-russos, es­
tes últimos sem nenhuma tradição estatal nacional, formulavam programas
nacionalistas. Entre os próprios russos apareciam vozes pregando a idéia de
que talvez fosse o caso liquidar com aquele império, que cada um seguisse o
seu caminho.
Entretanto, o Congresso dos Deputados do Povo instalara-se. Grandes
maiorias aprovaram todas as reformas propostas por Gorbachev, elegendo-o
presidente do Parlam ento com 94,35% dos votos. Todos os poderes lhe
foram concedidos. Aparentemente, contudo, as coisas não melhoravam. Em
julho, um amplo movimento grevista nas minas de carvão espalhou-se pela
Ucrânia, Durou duas semanas e estimulou uma série de outras manifestações X f '
por toda a URSS. As prateleiras das lojas continuavam vazias. A escassez e as jcS-! iy

filas, o racionamento e o mercado negro atormentavam o cotidiano das p e s-, -


L "r-
soas comuns. Até os preços do petróleo, principal produto de exportação e
gerador de divisas, despencavam nas cotações internacionais, aumentando
os déficits e provocando inflação. A im pressionante popularidade de
Gorbachev no mundo, que, em toda uma primeira fase, legitimara com o
C* ■
" p~!

173
0 SÉCULO XX

selo internacional suas promessas e ousadias, pesava cada vez menos em face fa g ir
do descalabro que passara a dominar a sociedade e a economia soviéticas. De pectii
que adiantava todo o prestígio do líder da p e r e s tr o ik a , se os capitais interna­ entrai
cionais teimavam em não afluir? Quanto aos empréstimos e aos financia­ cesso
mentos das agências internacionais, aportavam a conta-gotas, não conse­ dênci
guindo alterar o quadro crítico. tes a j
Sucediam-se as equipes econômicas e as propostas mais originais e inte­ D
ressantes. Contudo, nada, ou quase nada, funcionava. As reformas, os decre­ das aj
tos e as leis eram anunciados, mas não passavam à realidade, como se traga­ vam f
dos por mal definidas resistências. teB .I
Em 1989, o socialismo desapareceu na Europa Central. Um prenuncio? ■seguir
N a Polônia, o Solidariedade assumira o poder. N a República Democrática maior
Alemã, apresentada como o mais próspero país socialista do mundo, grandes .... JM
manifestações tinham levado à queda do todo-poderoso E. Honecher e, um troles
pouco mais tarde, à do M uro de Berlim, erguido em 1961, e que parecia eter­ nista,
no. N a Hungria, eleições livres eram convocadas e nenhum analista previa a ano, c
vitória dos comunistas locais. Pouco depois, uma revolução pacífica, dita de imple;
v e lu d o , na Tchecoslováquia e uma outra, violenta, na Romênia, apearam os lhe se
comunistas do poder. Indagado sobre como a URSS reagiría a esta debanda­ Não c
da, o porta-voz de Gorbachev cantarolou os versos de M y w a y , ou seja, como re fo ru
na canção, cada um seria livre para traçar o próprio destino. Desta vez os tan­
§ § N!
ques permaneceríam tranqüilos nos quartéis. mais d
Como não poderia deixar de ser, o processo fulminante de desmantela­ sagreg
mento das mal chamadas d e m o c r a c ia s p o p u la r e s reforçou as correntes que que nii
estavam apostando na desagregação da URSS. Os parlamentos dos países Kriucl
bálticos, eleitos em 1989, aprovavam leis que apontavam para a secessão. De laçõey
um lado, criavam símbolos típicos de estados-nações, como bandeiras e URSS!
hinos próprios. De outro lado, estabeleciam legislações que garantiam auto­ p e r e s t,
nomia em assuntos fiscais e culturais, enfatizando sempre que as leis das re­ Cheval
públicas deveríam primar sobre as da União, num desafio claro às tradições sável p
centralistas soviéticas. N a Lituânia, num gesto ousado, em março de 1990, o tro do
Parlamento local proclamou a independência do país. M. Gorbachev reagiu da dita
com dureza ao ato e até mesmo líderes políticos ocidentais, como F. ; A i
M itterrand e H. Khol, aconselharam prudência aos lituanos. derativ
N o Cáucaso, assim como na Ásia Central, generalizava-se uma situação referen
de guerra civil. As tentativas conciliatórias eram recusadas num contexto de As
massacres de caráter étnico. As contradições radicalizavam-se e pareciam recusai

174
CRISE E D ESA G R EG AÇ Ã O DO SOCIALISM O

enos era face fugir do controle. Em toda a parte, os parlamentos locais proclamavam a res-
ovíéticas. De pectiva soberania, ou seja, somente admitiam as leis da União quando não
itais interná- í entrassem em desacordo com a própria legislação. N a prática, era um pro-
los financia- j cesso de secessão que ainda não dizia o seu nome. Contudo, e apesar das evi-
, não conse- í dências, quase ninguém ainda ousava dizer o indizível: a URSS estava pres-
'■| . tes a desaparecer.
;inais e inte- j Das próprias nações eslavas (Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia), considera-
as, os decre- : das até então como os mais sólidos baluartes da União Soviética, desponta­
mo se traga- vamforças desagregadoras. Em junho de 1990, depois de eleger triunfalmen-
| teB. Yeltsin seu presidente, o Parlamento russo aprovou a soberania. N o mês
prenúncio? seguinte, os parlamentos da Ucrânia e da Bielo-Rússia tomaram, por ampla
)emocrática ,.á maioria, a mesma decisão política.
do, grandes M. Gorbachev, apoiando-se na tradição, aparentava ainda estar nos con-
echer e, um ■i troles. Em julho de 1990, quando do XVIII Congresso do Partido Comu-
larecia eter- nista, conseguiu aprovar todas as suas propostas. Em setembro do mesmo
sta previa a í ano, o Soviete Supremo voltou a lhe conferir poderes extraordinários para
íica, dita de implementar as reformas consideradas necessárias por decreto. Mas de que
apearam os lhe servia concentrar poderes, se, visivelmente, não sabia como exercê-los?
a debanda- ^ Não definia um programa claro de enfrentamento das crises. Oscilava entre
seja, como reformistas e c o n s e r v a d o r e s .
vez os tan- ■. No segundo semestre de 1990, passou a chamar para o governo homens
;-.j mais decididos a preservar, a qualquer custo, a URSS de um processo de de-
esmantela- ■: sagregação, do que conduzi-la no rumo das reformas tão anunciadas mas
:rentes que '] que não se concretizavam. N o Ministério do Interior (B. Pugo), no KGB (V.
dos países 1 Kriuchkov), no cargo de primeiro-ministro (V. Pavlov), no comando das re-
cessão. De ; tações externas (A. Bessmertnykh), no novo posto de vice-presidente da
andeiras e URSS (G. Ianaev), instalavam-se personagens estranhos às perspectivas da
tiam auto- í p e re stro ik a /g la sn o st. Ao mesmo tempo, seus aliados mais fiéis, como E,
leis das re- \ Chevarnadze, ex-ministro de Relações Exteriores, e A. lakovlev, ex-respon-
i tradições | sável pelas questões ideológicas no Partido Comunista, afastavam-se do cen-
ie 1990, o á tro do palco, denunciando conspirações golpistas, favoráveis à restauração
hev reagiu :! da ditadura do Partido Comunista.
, com o F. i A muito custo, conseguiu-se formular a proposta para um novo pacto fe-
í derativo. Teria o nome de União das Repúblicas Soberanas e seria levado a
a situação 3 referendo em todas as repúblicas soviéticas.
intexto de ] As correntes mais radicais, porém, sobretudo entre as nações não-russas,
pareciam :ii recusavam-se sequer a participar do referendo, preferindo a solução do des-

175
m

h
O S É C U L O XX

compromisso total com a URSS. Na Lituânia, onde o processo independeu-


tista fora mais longe, sucediam-se as manifestações. Em janeiro, choques
com tropas especiais enviadas por Moscou resultaram em mortes de manifes­
tantes, radicalizando os antagonismos. Gorbachev desautorizou os coman­
dantes locais, deplorou os e x c e s s o s e mandou instaurar inquéritos.
A p e r e s tr o ik a aproximava-se do fim?
Em 17 de março de 1991, afinal, houve o referendo tão anunciado. Mais
uma consulta à população. Seis repúblicas não participaram do vota
(Lituânia, Letônia, Estônia, Geórgia, Moldávia e Armênia). A grande maio­
ria, 76,4% , votara pela manutenção da União. Mas o voto era carregado de
ambigüidades porque, no âmbito de várias repúblicas, como na Ucrânia,
votou-se também, e também por ampla maioria, em favor da soberania local
IvvV
e regional, o que relativizava em muito o s im dado à União Soviética.
De sorte que, uma vez mais, todas as ilações eram possíveis.
A Geórgia, por exemplo, proclamou sua independência, em abril de
1991. O mesmo já fizera a Lituânia, reafirmando sua independência em fe­
vereiro, através de um referendo, com 90,5% dos votos favoráveis.
Foi nesta atmosfera oscilante que se abriram as conversações a respeito
de um novo Tratado da União. Um novo pacto, capaz de reconhecer a auto­
nomia das repúblicas, porém, mantendo a União.
Foi uma barganha dura. Participaram as três repúblicas eslavas (Rússia,
Ucrânia e Bielo-Rússia), as cinco da Ásia Central (Turcomenistão, Tadjiquis­
tão, Casaquistão, Usbequistão e Quirguistão) e a do Azerbaijão, no Cáucaso.
Formulou-se um texto que agradou a todos mas completamente inócuo. Não
seria possível reconstruir uma União em bases tão indefinidas.
Nessa ocasião, em eleições diretas, inéditas na história da URSS, realizados
em junho de 1991, B. Yeltsin foi eleito presidente da República da Rússia, logo
no primeiro turno, com 57,3% dos sufrágios. Ao mesmo tempo, aliados setis
foram eleitos, também pelo voto direto, prefeitos das principais cidades russas,
como Leningrado e Moscou. Rapidamente, B. Yeltsin e seus simpatizantes, em
decorrência da legitimidade democrática adquirida, começaram a radicalizar
seus propósitos favoráveis à soberania da Rússia. Neste sentido, cabia ao novo
governo russo exercê-la, em todos os níveis (controle das riquezas, arrecadação
de impostos, política externa, organização das forças armadas etc.). Se o fizes­
se, de fato, que poder restaria à União e a M. Gorbachev?
Em agosto de 1991, afinal, foi possível chegar a um texto de compromisso
sobre uma nova União, renovada. Mais uma vez, contudo, nada ficava clara-

176

HMi
Wkp
!
CRISE E DESAGREG AÇÃO DO SOCIALISMO

penden- | mente definido: impostos, jurisdições respectivas, forças armadas, diplomacia,


:hoques prevaleciam as declarações genéricas, exprimindo indecisões, divergências.
nanifes- M. Gorbachev parecia desorientado. N o plano internacional, seu prestí-
coman- | gio não mais rendia dividendos para seu país. Os investimentos tardavam.
Os empréstimos pingavam devagar. A ida de Gorbachev à reunião do Grupo
dos 7, reunindo os principais capitalistas do mundo, em julho, foi patética.
o. M ais Inquirido por G. Bush, presidente dos Estados Unidos, como um mau aluno
lo v o to por um severo mestre-escola, não teve forças para se impon Como se os paí-
e maio- | ses mais ricos do planeja já estivessem desconfiando de seu poder real, apos­
gado de sando numa outra alternativa (B. Yeltsin). c. . . i
ícrânia, j|\ Foi então que sobreveio o golpe r e s ta u r a d o r . À , - " r ’v
ia local '% Aproveitando-se da ausência de M. Gorbachev, em férias no M ar Negro,
os golpistas o prenderam em sua casa de veraneio, anunciaram que estava
enfermo e desferiram o movimento de sua deposição. Em suas declarações,
ibril de não falavam em nome do socialismo, nem do comunismo, mas na necessida-
i em fe- i|de de salvar a União.
Faltou-lhes, contudo, força para alcançar seus objetivos. A cadeia de co-
espeito mando simplesmente não funcionou. As ordens, recebidas, não eram cum­
a auto- pridas. B. Yeltsin tomou o comando da oposição, mas nem foi necessário
lutar porque o golpe desagregou-se por si mesmo, sem alento, sem organiza­
Rússía, ção e sem consistência. Um fiasco.
djiquis- M. Gorbachev, liberado, ainda tentou se equilibrar, mas era terrível seu
íucaso. desgaste, inclusive porque todos os golpistas eram s e u s homens de confian­
o. N ão ça, ocupando altas posições de mando, nomeados por ele.
Acelerou-se o desmoronamento.
Jizadas Às duas repúblicas, que já haviam proclam ado a independência (Li­
ia, logo tuânia e Geórgia), se seguiram as demais: Estônia (20 de agosto), Letônia (21
os seus de agosto), Ucrânia (24 de agosto), Bielo-Rússia (25 de agosto), Moldávia
russas, |(27 de agosto), Casaquistão e Quirguistão (28 de agosto), Azerbaijão (30 de
tes, em agosto), Usbequistão (31 de agosto), Tadjiquistão (9 de setembro), Armênia
icalizar |;(21 de setembro) e Turcomenistão (26 de outubro).
o novo Em rápidos movimentos, B. Yeltsin dissolveu o Partido Comunista e o
adação KGB, recebendo do Parlamento russo plenos poderes para implementar as
0 fizes- decantadas reformas.
No começo de dezembro, os dirigentes das três repúblicas eslavas, reuni-
omisso dos em M insk, capital da Bielo-Rússia, anunciaram a fundação de uma
1clara- Comunidade de Estados Independentes, aberta às repúblicas que formavam

177
O SÉCULO XX

a URSS, sem sequer consultar M. Gorbachev. Em 21 de dezembro de 1991,


em AJma-Ata, capital do Casaquistão, formou-se a Comunidade com 11 ex-
repúblicas soviéticas. Um comunicado reiterou que a União Soviética deixa­
ra de existir. Foram ainda necessários quatro dias para Gorbachev assumir a
nova realidade e assinar sua renúncia.
O verdadeiramente inacreditável acontecera: a União Soviética deixara
de existir.

A CRISE D O SO C IA L ISM O C O N T E M P O R Â N E O

A desintegração da União Soviética, que acompanhou a do socialismo na


Europa Central, pôs em evidência uma crise maior: a do socialismo contem­
porâneo.
Ela teria outras incidências, afetando as principais propostas e experiên­
cias revolucionárias que surgiram no século XX.
N a China, desde os anos 70, e sobretudo após a morte de M ao Tsé-tung,
em 1976, a preocupação e os debates a respeito do socialismo tenderam a
dar lugar à preocupação e aos debates a respeito da m o d e r n iz a ç ã o e do enri­
q u e c im e n t o do país.
A política dita das Q u a t r o M o d e r n iz a ç õ e s (da indústria, da agricultura,
da ciência e da tecnologia e das forças armadas), sob a direção de Deng Xiao
Ping, embora mantendo uma retórica de adesão ao socialismo, e mesmo ao
comunismo, e apesar de reverenciar a pessoa do próprio M ao, na prática, eli-,
minou gradual e firmemente todo o legado do m a o í s m o , enquanto estratégia
de luta revolucionária pela tom ada do poder político e enquanto tentativa de
construção de um padrão próprio de socialismo.
O fracasso do G r a n d e S a lto p a r a a F r e n te (1958-1959) — na verdade,
um salto para trás — e as enormes frustrações associadas â G r a n d e R e v o ­
lu ç ã o C u ltu r a l P r o le tá r ia (1965-1969) prepararam um terreno fértil para a
descrença nas utopias socialistas e, no mesmo movimento, para o investi­
mento em métodos e processos unicamente voltados para o desenvolvimen­
to econômico e para o reforço do Estado nacional.
Assim, desde 1979, liquidaram-se as c o m u n a s p o p u la r e s , restabelecen-
do-se a família nuclear como unidade de produção básica, com a qual são as­
sinados c o n tr a to s d e r e s p o n s a b ilid a d e de arrendamento e gestão de peque-

178
CRISE E D E5A G R EG A Ç A 0 DO SOCIALISMO

nos lotes, válidos por quinze anos, prorrogáveis (segundo dados oficiais, 220
milhões de contratos, num universo de 900 milhões de pessoas). Um novo
processo de reforma agrária d e s c o le tiv iz o u o campo chinês, apostando na
ambição de lucro e de realização pessoal e familiar dos pequenos campone­
ses, ainda viva, apesar, ou por causa, dos experimentos (na maior parte, de­
sastrados) de coletivização empreendidos (Pomar, 1987).
Como resultado, houve um gigantesco crescimento da produção agríco­
la, de 240 milhões de toneladas de cereais, em 1979, para quase 500 milhões
de toneladas (dados de 1997), dinamizando o conjunto da economia. Por
outro lado, e de forma controlada pelo Estado, abriram-se z o n a s e c o n ô m ic a s
especiais para o ingresso seletivo de capitais internacionais, promovendo-se
o crescimento industrial e as exportações, além de importação de tecnologia.
Um ritmo febril de negócios tom ou conta do país, acentuado recente­
mente pela incorporação de Hong Kong, onde se mantiveram intactas as
bases do desenvolvimento econômico anterior, do qual, aliás, já fazia parte,
em larga medida, o Estado chinês.
No plano político, o Partido Comunista manteve firme o comando do
Estado e da sociedade. Os sucessivos movimentos que pretenderam questio­
nar esta Ordem foram reprimidos com violência, notadamente o processo
que levou, em 1989, ao massacre da Praça da Paz Celestial, quando, em
nome do socialismo, mais uma vez, lutas pela liberdade e pela democracia
foram silenciadas com tiros e tanques (Andrade e Favre, 1989).
A repressão, passado um momento de constrangimento, quando se fize­
ram ouvir os protestos de praxe, não inibiu os negócios; ao contrário, eles
fenderam a crescer e seguem em ritmo ascendente, constituindo a China uma
fronteira econômica e geográfica crucial para a atual prosperidade do capi­
talismo internacional.
O interessante é que o marxismo e o socialismo continuam sendo ritual­
mente invocados por um partido comunista que, na prática, rege o mais fre­
nético desenvolvimento capitalista. A isto as autoridades chamam o s o c ia lis ­
mo c o m c a r a c te r ís tic a s c h in e sa s.
As duas outras experiências socialistas da Ásia Oriental — a Coréia e o
Vietnã — também não conseguiram afirmar-se como focos de irradiação de
propostas inovadoras. Na Coréia, a longa ditadura pessoal de ICim Il-Sung,
transmitida a seu filho, apresenta como saldo um país faminto e com reduzi­
díssima capacidade de sedução política. Já o Vietnã, que galvanizou imensas
esperanças, mobilizando em seu favor a opinião pública internacional duran-

179

ro Rageau

_ ,_
0 SÉCULO XX

te mais de uma década, até a vitória da guerra de libertação nacional, em drást


1975, não soube, ou não pôde, manter o mesmo nível de solidariedade. Ao viétic
contrário, nas guerras travadas contra os vizinhos próxim os (China e atuali
Camboja), ou na manutenção de um regime alérgico à democracia, perdeu pondi
progressivamente a capacidade de entusiasmar, que era sua marca registrada tende
enquanto viveu o grande líder revolucionário nacional H o Chi Minh. onde
N o outro extremo do mundo, a revolução cubana, depois de incendiar as F]
imaginações, e de ter se convertido num território onde disputavam-se a ou­ 20, se
sadia e a originalilidade, sobretudo ao longo dos anos 60, tendeu a perder au­ ram j
tonomia no quadro de uma aliança cada vez mais dependente com a URSS. (Przev
Nos anos da p e r e s tr o ik a , percebendo a hipótese da falência que se avizi­ anand<
nhava, o socialismo cubano recobrou uma certa vitalidade, enfatizando as polític
tradições e as características nacionais (Bandeira, 1998). Entretanto, num q u ais:
quadro de circunstâncias extremamente desfavoráveis, o país teve que se cendo
abrir para o capital internacional, para o turismo e para o dólar, e para as praticí
práticas e os valores associados — o câmbio paralelo, a prostituição, o arri- E:
vismo e os pequenos tráficos. Como na China, o Partido Comunista tenta se­ que a;
gurar o rumo, mantendo e reforçando a estrutura centralizada e ditatorial do truçãc
poder, apesar de algumas aberturas parciais. evocas
A resistência cubana tem algo de patético, consideradas as desproporção tameri
de forças e falta de alternativas imediatas. Mas conserva também um caráter trara-í
épico, a dignidade desse pequeno povo, muito maior do que as suas circuns­ cia na
tâncias, desafiando as armadilhas do destino. N
N ão escaparam do terremoto que desagregou o socialismo soviético m ::: manai
mesmo as correntes socialistas que lhe moviam oposição. suas d
As mais radicais, decididas a um enfrentamento aberto contra o capita­ vas e i
lismo, como os t r o ts k is ta s e os c o n s e lh is ta s , sem falar das diversas tendências
anarquistas, esperavam prosperar à sombra da crise, ou do fim, do socialis­
mo soviético. Nunca imaginaram, na perspectiva de que o mundo marchava
para a frente, e para o auto-aperfeiçoamento, que o socialismo soviético pu­ ASAM
desse e v o lu ir para o capitalismo. Entretanto, no contexto da crise geral de
confiança na alternativa socialista, viram os seus já reduzidos contingentes ’ O SOC:
estreitarem-se ainda mais. tória í
N um outro extremo, os e u r o c o n u m is ta s , que defendiam propostas de mente
uma transição pacífica e institucional para o socialismo, e que chegaram, ; Pt
num certo momento, a ganhar projeção, sobretudo em alguns países da soviéti
Europa Ocidental (Itália, Espanha e França), também registraram queda : gaçãoi

180

>
1
CRISE E D ESA G R EG AÇ Ã O DO SOCIALISM O

■drástica de influência. Longe de se beneficiarem da derrota do socialismo so-


- fiédco, centralista, estatista e ditatorial, e apesar de todo o esforço em se
balizarem (a tentativa de a g g io r n a m e n to dos comunistas italianos), pro-
■*jondo-se a encarnar um socialismo plural e democrático, os eurocomunistas
' ienderam a se enfraquecer, e até mesmo a desaparecer como alternativa ali,
, onde chegaram a adquirir força nos anos 60 e 70.
Finalmente, as correntes social-democratas, antigas rivais, desde os anos
í 20, sempre denunciando as derivas ditatoriais do socialismo soviético, passa-
’ ram por um processo de crescente dissociação em relação ao socialismo
(Przeworski, 19S9). N a prática, abandonaram-no como perspectiva, aproxi-
mando-se, gradativamente, das correntes liberais, adotando seus padrões de
i política econômica, formando com elas alianças que até hoje perduram e das
j quais são expressão todos estes partidos social-democratas atualmente exer-
1 cendo o poder em países europeus, mas que não ameaçam, nem teórica, nem
jj praticamente, a ordem capitalista.
E assim, neste fim de século XX, inícios de um novo século, as revoluções
’ que assaltaram os céus, e desafiaram o capitalismo, empreendendo a cons-
Erução de modelos alternativos, desagregaram-se (URSS e Europa Central),
jpevocam apenas ritualmente o socialismo (China), abandonaram-no comple-
1 lamente como proposta (correntes social-democráticas) ou, no limite, encon-
|ifram-se numa resistência desesperada, mais associada à luta pela sobrevivên-
||cia nacional-estatal (Cuba) do que a efetivas promessas socialistas.
Não é possível, entretanto, negar o impacto que tiveram na aventura hu-
1 mana do século que está terminando. E talvez a melhor maneira de avaliar as
1 suas chances de futuro seja efetuar um balanço de suas heranças, construti-
I Ivas e destrutivas.

; ASAM BÍGUAS H ERA N ÇA S D O SO C IA L ISM O Q U E REALM ENTE EXISTIU

I 0 socialismo foi decisivo para a destruição do nazismo. Sem a URSS, a his-


tôria da humanidade, dominada pela besta nazista, poderia ter sido radical-
I I mente diferente.
í Pode-se dizer o mesmo dos impérios coloniais europeus. Sem a retaguarda
: i soviética, política, militar, diplomática, moral, seria impensável a sua desagre-
j: gação, pelo menos na velocidade em que se verificou.

181
O SÉCULO XX

As referências socialistas também seriam de capital importância para a


constituição das correntes nacional-estatistas na América Latina, na Ásia e
na África. Mais ou menos revolucionárias, elas foram muito importantes na
afirmação das soberanias nacionais, na modernização das economias e no es­
tabelecimento de alianças com os interesses dos trabalhadores urbanos.
O Estado do bem-estar social (w e lfa re S ta te), basicamente construído após
a Segunda Guerra Mundial, embora já esboçado no período entre as duas
Guerras (Constituição de Weimar, Frente Popular na França etc.), e que aten­
deu às demandas históricas dos trabalhadores, sobretudo na área da Europa
Ocidental, deveu-se também, e amplamente, à existência do socialismo soviéti­
co e seus congêneres. A ameaça v e r m e lh a aconselhava à prudência e às conces­
sões. Em determinadas circunstâncias, mais valia perder os anéis do que os
dedos, ou a cabeça.
Finalmente, e apesar de todos os pesares, os regimes socialistas, freqüen-
temente, foram capazes, internamente, de afirmar a soberania das sociedades
sob sua orientação, de modernizar as respectivas economias e de melhorar, às
vezes substancialmente, os padrões das condições de vida e de trabalho de
seus habitantes.
Como heranças destrutivas, o socialismo deixou, sem dúvida, um rastro
de intolerância. A negação das liberdades e do pluralismo, a cultura do cen-
tralismo e da ditadura, se, por vezes, pôde ser legitimada em face do cerco e
das ameaças dos países capitalistas, nem sempre correspondeu a situações de
perigo iminente. Ao contrário, o que se verificou, constantemente, foi que o
socialismo tendeu a apertar os laços do constrangimento e da repressão na
medida mesma da força que adquiria. O que autoriza a hipótese de que a in­
clinação ditatorial-repressiva esteja ligada, de certo modo, a algumas de suas
referências fundadoras (a política como ciência, o messianismo operário, r.s
vanguardas iluminadas etc.).
O fato é que as ditaduras passaram a ser consideradas intoleráveis, prin­
cipalmente ali, onde o socialismo formou sociedades mais complexas, ins­
truídas e urbanizadas, como no caso da URSS.
Do mesmo modo, se o estatismo centralista jogou papel dinâmico no
processo da d e c o la g e m m o d e r n iz a n te , ele se revelaria particularmente inca­
paz de assegurar ritmos ascendentes de desenvolvimento em sociedades mais
sofisticadas.
Num plano mais geral, o socialismo que realmente existiu não foi capaz,
historicamente, de construir e de gestar uma alternativa ética, convincente, ao

182
CRISE E DESAGREG AÇÃO DO SOCIALISM O

capitalismo. Seus valores mais centrais — igualitarismo, solidariedade, coope­


ração, coletivismo —, além do fato de que não eram levados a sério pelas pró­
prias elites socialistas, acabaram associados à ineficiência e à ditadura.
Talvez esteja aí — no enfraquecimendo de seus valores — um dos aspec­
tos centrais do declínio do socialismo neste fim de século. Enquanto não for
possível extrair de suas ambíguas heranças uma reatualízação destes valores,
será difícil imaginar o renascimento do socialismo.

B IB L IO G R A F IA

Andrade, M . e F avre, L. 1 9 8 9 . A C o m u m de Pequim , São P au lo, Busca V id a.


Bandeira, L. A . M . 1 9 9 8 . D e M a rti a Fidel. A R evolução Cubana e a A m érica L atina. R io
de Janeiro, C iv iliza çã o B rasileira.
Blackburn, R. (org.). 1 9 9 2 . D ep o is d a queda. São P au lo, Paz e Terra.
Dreifuss, R. 1 9 9 7 . A época das perfilexidades. P etróp olis, V o zes.
Fêron, B. 1 9 9 5 . L a Russie, espoirs et dangers. Paris, Le M o n d e /M a r a b o u t.
Gorbachev, M . 1 9 S 7 . P erestroika. R io d e Jan eiro, Best-Seller.
Gorender, J. 1 9 9 2 . O rigens e fracasso da p erestroika. S ão P a u lo , A tual.
Levvin, M . 1 9 S 8 . O fenôm eno G orbach ev. R io de J an eiro, Paz e Terra.
Orwell, G. 1 9 S 4 , 19S 4, São P au lo, Á tica.
Pomar, V . 1 9 8 7 . O enigm a chinês: capitalism o ou socialism o. São P a u lo , A lfa -Ô m eg a .
Przeworski, A. 1 9 8 9 . C apitalism o e social-dem ocracia. S ão P au lo, C o m p a n h ia das Letras.
Reis Filho, D . 1 9 9 7 . U m a revolução perdida. São P a u lo , F u n d ação P erseu A b ram o.

183

Você também pode gostar