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50 anos de ‘O Direito à Cidade’.

E como o conceito ganha novos contornos


Juliana Domingos de Lima

No aniversário de meio século da obra do filósofo francês, o ‘Nexo’ recupera seu sentido
original, a recepção brasileira e leituras surgidas a partir dela

NO ANIVERSÁRIO DE MEIO SÉCULO DA OBRA DO FILÓSOFO FRANCÊS, O


'NEXO' RECUPERA SEU SENTIDO ORIGINAL, A RECEPÇÃO BRASILEIRA E
LEITURAS SURGIDAS A PARTIR DELA
A onda de protestos de junho de 2013 no Brasil tomou proporções imprevistas, mas começou
com a mobilização do Movimento Passe Livre para barrar o aumento da tarifa de transporte
em várias cidades do país.

Na justificativa às reivindicações, a ideia de “direito à cidade” foi trazida à tona diversas


vezes, em cartas de manifestantes e posts na página do MPL no Facebook.

Desde então, apesar de já ser corrente no meio acadêmico brasileiro e no repertório do


movimento de moradia, a expressão ganhou maior projeção no vocabulário das lutas urbanas
por todo o país.
O conceito, empregado em 2013 para defender que o aumento no custo da tarifa reduzia o
acesso à cidade de uma parcela significativa da população, tem origem remota daquele mês de
junho. Foi formulado pelo filósofo francês Henri Lefebvre, em um livro curto publicado em
1968.

No Brasil e em outros países, a ideia cunhada pelo filósofo vem sendo apropriada, disputada e
transformada, ganhando novos sentidos.

“Acho que a força [do direito à cidade] está no fato de que tanta gente consegue ver nessa
expressão algo que é valioso e orientador de lutas concretas. É o que faz com que ele seja
discutido e interessante até hoje”, disse Bianca Tavolari, pesquisadora do Núcleo de Direito e
Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP, ao Nexo.

O sentido original

Embora tenha sido lançado em março de 1968, o livro foi escrito por Lefebvre para ser
publicado em 1967, em comemoração ao centenário do primeiro volume de “O Capital”, de
Karl Marx.

Concebido como homenagem e espécie de análise atualizada do livro de Marx, “O Direito à


Cidade” está, na verdade, mais próximo de um ensaio ou manifesto.

Inaugura uma série de escritos do autor, então professor da Universidade de Nanterre, sobre
cidades, tema até então inédito em sua produção. A universidade dos arredores de Paris foi o
berço do movimento de Maio de 68.

Em entrevista, a pesquisadora do Cebrap, Bianca Tavolari, resumiu algumas das ideias


presentes na obra de Lefebvre:

A RELAÇÃO ENTRE URBANIZAÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO MUDOU


Se antes a industrialização produzia a urbanização — uma fábrica traz a necessidade de
construir moradia para os trabalhadores, que por sua vez requer uma rede de infraestrutura —,
para Lefebvre, a urbanização no século 20 é mais importante que a industrialização, e passa a
ser, no lugar da industrialização, motor dos processos de transformação social.
“Isso tem consequências enormes”, disse Tavolari ao Nexo. “A principal é que, para ele,
pensar a alienação não é mais olhar para a fábrica, necessariamente. É olhar para a cidade. Ele
está tentando reestruturar uma tese marxista clássica em um livrinho bem pequeno e muito
pretensioso, de alguma maneira.”
A CIDADE INDUSTRIAL É UMA “NÃO-CIDADE”
Tornada a forma predominante de se viver, a cidade industrial é inautêntica. Tem um
cotidiano altamente regulado, está perdendo sua centralidade devido ao espraiamento. A
medida de comparação dessa autenticidade seriam, por exemplo, as cidades medievais
italianas: pensadas para o uso das pessoas, para a festa, para a obra e o encontro. Na não-
cidade criticada por Lefebvre, isso se perdeu.

A “NOVA MISÉRIA URBANA”


A miséria urbana descrita pelo autor, que escreve no contexto do Estado de bem-estar social
francês, não é a da precariedade, daqueles que não têm moradia ou emprego.
Trata-se da miséria sentida mais agudamente pela classe operária, que tem todo o seu tempo
tomado pelo trajeto entre casa e trabalho, sem nenhum espaço de lazer ou de criatividade
nessa cidade que, segundo Tavolari, “saqueia a possibilidade de encontro, de revolução, a
manifestação de desejo. Por isso, ele vai chamar o que seria o contrário disso de um direito à
cidade”.

O DIREITO À CIDADE AINDA NÃO EXISTE


Apesar de não formular claramente a definição de direito à cidade, o livro aponta não se tratar
de um direito de retorno ao passado da cidade medieval, cuja organização social era baseada
na opressão. Também não seria um direito à cidade do presente (de Lefebvre), definida por
ele como não-cidade.
O direito à cidade seria o direito a transformar e projetar uma nova cidade, na qual
predominassem o valor de uso — focada nas necessidades das pessoas — e a autogestão em
todos os âmbitos da vida.
“Podemos dizer, simplificando muito, que o direito à cidade é a construção dessa nova
sociedade”, disse Luciana Ferrara, professora da Universidade Federal do ABC, ao Nexo.
“Para ele, vivemos num período de transição, um momento crítico e com pontos cegos,
porque muitas vezes não enxergamos contradições da sociedade e não formulamos
coletivamente saídas para problemas sociais graves”, Ferrara completa.
Recepção no Brasil

“O Direito à Cidade” foi traduzido e publicado pela primeira vez no Brasil em 1969, no ano
seguinte ao de seu lançamento na França.

A princípio, a recepção da obra ficou restrita ao meio acadêmico, citada em dissertações e


teses.

“É uma espécie de mistério: como um livro de um filósofo francês, um livro difícil, pouco
claro — não no sentido de impreciso, mas porque o estilo é poético e não sistemático —,
pensado para um Estado de bem-estar social europeu, é recebido no Brasil na época da
ditadura militar?”.

Bianca Tavolari

Em entrevista ao Nexo

A partir dessa crítica e do contexto social e político local, a ideia de direito à cidade passou a
abarcar, no Brasil, reivindicações por educação, moradia, saúde e equipamentos coletivos
providos pelo Estado.

“A ideia do direito à cidade é muito forte. O termo tem uma ideia de cidadania,
pertencimento, de alguma maneira vinculado à democracia, ainda que o Lefebvre não explore
essa ideia”, disse Tavolari. “Quando chega aqui, durante a ditadura militar, a ideia de que
você pode ter direito à cidade, a pertencer, a transformar, é muito potente.”

Com o tempo, o direito à cidade deixou de fazer parte apenas das discussões acadêmicas no
Brasil e foi também apropriado pelos movimentos sociais urbanos.

De acordo com Tavolari, movimentos organizados passaram também a falar e reivindicar


nesses termos, a partir do contato com intelectuais engajados de disciplinas como urbanismo e
geografia, que estavam lendo Lefebvre.

No debate da comissão da questão urbana na Assembleia Constituinte de 1987, para a


elaboração da Constituição de 1988, representantes de movimentos falaram em direito à
cidade.

E o fizeram, segundo observa Tavolari, com uma amálgama de sentidos, que abarca tanto o
aprofundamento da democracia quanto a reivindicação de direito a serviços e equipamentos
concretos “tentando apontar quantas pessoas estavam excluídas de serviços básicos ou da
propriedade na cidade, o que nega o direito à cidade, mas também pedindo mecanismos
participativos”, disse.

Leituras a partir do trabalho

Moradia

O movimento de moradia e reforma urbana nas cidades brasileiras reivindica o direito à


cidade desde a década de 1980. A demanda por habitação — e por habitar uma centralidade,
demanda histórica dos movimentos — está vinculada a esse direito, por apontar a casa não só
como um teto ou endereço. Não ter moradia é não poder permanecer na cidade e, com
frequência, significa não ter acesso a emprego e a serviços.

Mobilidade

Uma das frases usadas como slogan pelo Movimento Passe Livre na reivindicação de tarifa
zero foi “uma cidade só existe pra quem pode se movimentar por ela”.

Colocavam em discussão, assim, não somente o direito ao transporte, previsto na


Constituição, mas o direito à cidade — a mercantilização de um serviço que, na visão do
movimento, deveria ser gratuito, estaria impedindo cidadãos de fazer parte da experiência da
cidade, uma questão mais grave do que o simples deslocamento.

Meio Ambiente

Na lei federal do Estatuto da Cidade, de 2001, a ideia de direito à cidade aparece como
“garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

“Uma questão central da crítica de Lefebvre sobre a sociedade industrial capitalista é que o
espaço e a natureza são instrumentalizados pela racionalidade econômica para a geração,
reprodução e acumulação do valor”, disse a professora da UFABC, Luciana Ferrara, ao Nexo.
“Os espaços e a vida cotidiana ficam subsumidos a essa racionalidade, e as condições de
desigualdade decorrentes da exploração do trabalho se reproduzem no espaço.”
Gênero

Embora o autor de “O Direito à Cidade” não tenha escrito sobre as contradições de gênero na
cidade, a arquiteta, urbanista e professora da Universidade Federal Fluminense Rossana
Tavares têm estabelecido um diálogo entre a perspectiva do direito à cidade e o gênero desde
2004.

“As mulheres cotidianamente enfrentam a indiferença quanto ao modo de produção do espaço


urbano que as coloca numa situação de vulnerabilidade ou até de marginalidade, onde é
preciso resistir para estar, se apropriar e lutar pelo direito à cidade”, disse a pesquisadora
ao Nexo.

Caminhar com segurança pelo espaço público é uma das demandas levantadas recentemente
por movimentos feministas com relação à cidade, e pode ser vista como uma reivindicação de
direito à cidade.

“Elas ressignificam esse direito ainda bastante frágil para nós, todos os dias. A rua, que é o
lugar da desordem para Lefebvre, permite a produção ao mesmo tempo de uma outra ordem
que informa e surpreende, que permite a apropriação do espaço e, por sua vez, a construção de
lugares com significado”, complementou.

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