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No aniversário de meio século da obra do filósofo francês, o ‘Nexo’ recupera seu sentido
original, a recepção brasileira e leituras surgidas a partir dela
No Brasil e em outros países, a ideia cunhada pelo filósofo vem sendo apropriada, disputada e
transformada, ganhando novos sentidos.
“Acho que a força [do direito à cidade] está no fato de que tanta gente consegue ver nessa
expressão algo que é valioso e orientador de lutas concretas. É o que faz com que ele seja
discutido e interessante até hoje”, disse Bianca Tavolari, pesquisadora do Núcleo de Direito e
Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP, ao Nexo.
O sentido original
Embora tenha sido lançado em março de 1968, o livro foi escrito por Lefebvre para ser
publicado em 1967, em comemoração ao centenário do primeiro volume de “O Capital”, de
Karl Marx.
Inaugura uma série de escritos do autor, então professor da Universidade de Nanterre, sobre
cidades, tema até então inédito em sua produção. A universidade dos arredores de Paris foi o
berço do movimento de Maio de 68.
“O Direito à Cidade” foi traduzido e publicado pela primeira vez no Brasil em 1969, no ano
seguinte ao de seu lançamento na França.
“É uma espécie de mistério: como um livro de um filósofo francês, um livro difícil, pouco
claro — não no sentido de impreciso, mas porque o estilo é poético e não sistemático —,
pensado para um Estado de bem-estar social europeu, é recebido no Brasil na época da
ditadura militar?”.
Bianca Tavolari
Em entrevista ao Nexo
A partir dessa crítica e do contexto social e político local, a ideia de direito à cidade passou a
abarcar, no Brasil, reivindicações por educação, moradia, saúde e equipamentos coletivos
providos pelo Estado.
“A ideia do direito à cidade é muito forte. O termo tem uma ideia de cidadania,
pertencimento, de alguma maneira vinculado à democracia, ainda que o Lefebvre não explore
essa ideia”, disse Tavolari. “Quando chega aqui, durante a ditadura militar, a ideia de que
você pode ter direito à cidade, a pertencer, a transformar, é muito potente.”
Com o tempo, o direito à cidade deixou de fazer parte apenas das discussões acadêmicas no
Brasil e foi também apropriado pelos movimentos sociais urbanos.
E o fizeram, segundo observa Tavolari, com uma amálgama de sentidos, que abarca tanto o
aprofundamento da democracia quanto a reivindicação de direito a serviços e equipamentos
concretos “tentando apontar quantas pessoas estavam excluídas de serviços básicos ou da
propriedade na cidade, o que nega o direito à cidade, mas também pedindo mecanismos
participativos”, disse.
Moradia
Mobilidade
Uma das frases usadas como slogan pelo Movimento Passe Livre na reivindicação de tarifa
zero foi “uma cidade só existe pra quem pode se movimentar por ela”.
Meio Ambiente
Na lei federal do Estatuto da Cidade, de 2001, a ideia de direito à cidade aparece como
“garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.
“Uma questão central da crítica de Lefebvre sobre a sociedade industrial capitalista é que o
espaço e a natureza são instrumentalizados pela racionalidade econômica para a geração,
reprodução e acumulação do valor”, disse a professora da UFABC, Luciana Ferrara, ao Nexo.
“Os espaços e a vida cotidiana ficam subsumidos a essa racionalidade, e as condições de
desigualdade decorrentes da exploração do trabalho se reproduzem no espaço.”
Gênero
Embora o autor de “O Direito à Cidade” não tenha escrito sobre as contradições de gênero na
cidade, a arquiteta, urbanista e professora da Universidade Federal Fluminense Rossana
Tavares têm estabelecido um diálogo entre a perspectiva do direito à cidade e o gênero desde
2004.
Caminhar com segurança pelo espaço público é uma das demandas levantadas recentemente
por movimentos feministas com relação à cidade, e pode ser vista como uma reivindicação de
direito à cidade.
“Elas ressignificam esse direito ainda bastante frágil para nós, todos os dias. A rua, que é o
lugar da desordem para Lefebvre, permite a produção ao mesmo tempo de uma outra ordem
que informa e surpreende, que permite a apropriação do espaço e, por sua vez, a construção de
lugares com significado”, complementou.