Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CLAUDIO A. G. EGLER1
Resumo
A guerra comercial promovida pela administração republicana dos Estados Unidos,
principalmente contra a China, bem como a emergência de governos de retórica conservadora e de
política econômica neoliberal na América do Sul mostra uma nova face do processo de integração
regional onde o mercado como fonte de poder econômico passa a ser determinante.
As dificuldades geoeconômicas no processo de integração regional na América do Sul são de
diversas ordens. Dentre elas pode-se destacar a dependência da base agro minero exportadora, a
competição internacional por mercados, a carência de redes logísticas que facilitem a circulação de
mercadorias. Entretanto, apesar dessas barreiras, avanços importantes foram realizados na última
década, em grande parte a partir dos principais parceiros do Mercosul: Brasil e Argentina.
O complexo metalomecânico, principalmente no ramo automobilístico, foi responsável pela
integração, ainda em fase inicial, das cadeias produtivas entre as duas economias nacionais,
projetando sua área de mercado para o conjunto da América do Sul. Também no segmento de petróleo
e gás natural, a presença da Petrobras em distintos pontos do território sul-americano refletiam essa
busca de consolidação de uma estrutura produtiva supranacional.
No entanto, os impactos da crise econômica, intensos a partir de 2014, com a reversão do
super-ciclo de ‘commodities’ que alimentou a expansão econômica da primeira década do século XXI,
podem ser observados na forte retração da economia e no elevado nível de desemprego no Brasil e na
Argentina. Por outro lado, Paraguai e Bolívia, essa última membro associado do Mercosul, que
representam as economias mais frágeis do Cone Sul, manifestaram dinâmica econômica
completamente distinta, com taxas de crescimento do PIB superiores a 4 % ao ano, indicando que os
vetores de dinamismo ganharam certa autonomia em relação ao eixo São Paulo-Buenos Aires.
A crise incidiu diretamente sobre a Venezuela, seja pela queda dos preços do petróleo no
mercado internacional, seja pela incapacidade de diversificar sua matriz produtiva, fazendo com que o
PIB se contraísse a taxas negativas inferiores a -10% a partir de 2015. A situação da Venezuela serviu
de estopim para reverter o processo de formação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL),
vista como uma proposta cuja origem estaria vinculada ao bolivarianismo, fazendo com que países
como a Colômbia e o Brasil, já sob governos de tendência favorável à desregulamentação econômica
e liberalização do mercado de força de trabalho.
Com o desmonte da UNASUL, diversas iniciativas favoráveis a integração estão ameaçadas,
dentre elas destacam-se o Conselho de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) e o Instituto Sul
1
- Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFRJ, Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail de contato: egler@ufrj.br
Americano de Governo em Saúde (ISAGS), justamente em áreas críticas como energia e logística de
transportes e cooperação na área de saúde, com efeitos imediatos sobre a economia e a sociedade
sul-americanas. O recuo da ação estatal e a retirada de agentes econômicos de capitais
predominantemente nacionais, como a Petrobras, do cenário sul-americano abre espaço para novos
concorrentes que atuam em escala global, como é o caso de interesses oligopólicos norte-americanos
e chineses, o que é particularmente crítico diante do feixe de inovações que acompanha a disruptiva
Indústria 4.0.
Abstract
The commercial war promoted by the Republican administration of the United States, especially
against China, as well as the emergence of governments of conservative rhetoric and neoliberal
economic policy in South America shows a new face of the process of regional integration where the
market as a source of power become a determining factor.
The geo-economics difficulties in the process of regional integration in South America are of
several orders. Among them, we can highlight the dependence of the agricultural and mining export
base, the international competition for markets, the lack of logistic networks that facilitate the movement
of goods. However, despite these barriers, important advances have been made in the last decade,
largely from the main Mercosur partners: Brazil and Argentina.
The metal-mechanic complex, mainly in the automotive sector, was responsible for the
integration of the production chains between the two national economies, projecting its market area for
South America as a whole. Also, in the oil and natural gas segment, the presence of Petrobras in
different parts of the South American territory reflected this search for consolidation of a supranational
productive structure.
However, the impacts of the economic crisis, intense from 2014, with the reversal of the super-
cycle of commodities that fueled the economic expansion of the first decade of the 21st century, can be
observed in the strong contraction of the economy and in the high level of unemployment in Brazil and
Argentina. On the other hand, Paraguay and Bolivia, the latter associate member of Mercosur,
representing the most fragile economies of the Southern Cone, showed a completely different economic
dynamic, with GDP growth rates above 4% per year, indicating that the dynamism vectors gained some
autonomy in relation to the São Paulo-Buenos Aires axis.
The crisis had a direct impact on Venezuela, whether due to the fall in oil prices in the
international market or the inability to diversify its production matrix, causing GDP to contract at negative
rates of less than -10% from 2015 onwards. of Venezuela served as a trigger to reverse the process of
formation of the Union of South American Nations (UNASUR), seen as a proposal whose origin would
be linked to Bolivarianism, causing countries such as Colombia and Brazil, already under favorable
trend governments economic deregulation and liberalization of the labor force market.
With the dismantling of UNASUR, several initiatives favorable to integration are under threat,
including the Infrastructure Planning Council (COSIPLAN) and the South American Institute of Health
Government (ISAGS), in critical areas such as energy and logistics transport and cooperation in health,
with immediate effect on the South American economy and society. The withdrawal of state action and
the withdrawal of economic agents from predominantly Brazilian capitals, such as Petrobras, from the
South American scene, opens space for new competitors that act on a global scale, as is the case with
US and Chinese oligopolistic interests. which is particularly critical in the face of the bundle of
innovations accompanying the disruptive Industry 4.0.
1. Introdução
O presente trabalho é resultado preliminar da pesquisa “Crise e Integração regional
na América do Sul” sob apoio do CNPq cujo principal objetivo é analisar os impactos
geoeconômicos e geopolíticos da crise financeira global sobre as economias sul-
americanas, com especial atenção aos países integrantes do Mercosul.
O principal referencial teórico está na aplicação da geoeconomia como prática
estratégica e estrutura analítica. Como estrutura analítica, reconhece que as
“características geográficas específicas de lugares e espaços moldam as relações
internacionais (e as políticas externas) - não apenas a distribuição de poder entre os
estados.” Como prática estratégica - ou geoeconomia prática – “refere-se à aplicação
dos meios econômicos de poder pelos estados, de modo a realizar objetivos
geoestratégicos”. Em outras palavras, significa o uso geoestratégico do poder
econômico (SCHOLVIN; WIGELL, 2019, p. 9).
Em função dessa interface entre instrumento analítico e prática estratégica é
possível entender o que Ventura (2017) denomina de “transição geoeconômica da
América Latina” visto a opção norte-americana de impor negociações bilaterais e
medidas protecionistas seletivas sobre determinadas linhas de produção, como, por
exemplo, aço e alumínio, fazendo com que as principais potências econômicas latino-
americanas busquem consolidar suas relações com a China.
Nesse sentido, além de fornecer matérias-primas agrícolas e minerais para a
China, “a América Latina se tornaria um importante ponto de acesso e âncora para os
fluxos financeiros e comerciais asiáticos, bem como para suas cadeias produtivas.”
Em síntese, segundo Ventura, “a função da região seria, então, facilitar e aumentar a
conectividade entre a região mega-atlântica (Europa, África) e o Pacífico (Ásia)”
(VENTURA, 2017, p. 6).
2. O espaço geográfico como força produtiva social
Do ponto de vista geoeconômico, as forças produtivas, no sentido dinâmico,
compreendem além do progresso da técnica e da ciência; incluindo acima de tudo a
própria organização social ou as forças “sociais” criadas pela cooperação e divisão do
trabalho. Assim, como enfatiza Adam Smith, representa o aumento proporcional das
potências produtivas do trabalho ocasionado pela divisão social do trabalho sob as
condições da indústria moderna. (KORSCH, 2016, p. 145)
Em trabalho anterior, mostrou-se que a estruturação da rede urbana sul-
americana é um processo territorial que se encontra em desenvolvimento, apesar das
disparidades existentes na escala nacional. Tal dinâmica territorial se manifesta
prioritariamente em dois eixos fundamentais: O eixo Pacífico, apoiado prioritariamente
em três metrópoles Santiago, Lima e Bogotá, e o eixo Atlântico, onde destacam-se
São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires (EGLER, 2011).
Esses eixos assumem expressão geoeconômica em dois pactos comerciais
que adquiriram protagonismo no continente sul-americano no período recente: o
Mercosul e a Aliança do Pacífico. O Mercado Comum do Sul (Mercosul), formado pelo
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, foi instituído através do Tratado de Assunção
em 1991. Desde então, pouco se avançou quanto à profundidade do efetivo processo
de integração regional, que ainda está muito longe da União Aduaneira prevista para
ser consolidada ainda no século passado. O ingresso da Venezuela, e posterior
suspensão por tempo indeterminado em 2016, reflete o ascenso e o refluxo da onda
progressista na América do Sul (SANTOS, 2018).
A Aliança do Pacífico é bem mais recente, iniciada em abril de 2011 com a
reunião dos presidentes da Colômbia, Peru, Chile e México em Lima, foi efetivada
como tratado de livre-comércio em junho de 2012 com três objetivos principais: 1.
Construir uma área de livre circulação de bens, capitais, serviços e pessoas, 2.
Impulsionar o desenvolvimento econômico e social dos países membros e 3.
Converter-se em plataforma de articulação política, integração econômica e comercial
com o mundo e em particular com a Ásia-Pacífico (PASTRANA BUELVAS, 2015, p.
15).
3. Os impactos diferenciados da crise econômica
Do ponto de vista da dinâmica econômica, a Tabela 1 mostra a trajetória
recente da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto dos países da América do
Sul e dos pactos comerciais que se estruturaram no subcontinente: o Mercosul e a
Aliança do Pacífico. É notório o efeito da crise econômica que atinge a região após o
final do super-ciclo de comodities alimentado pela rápida industrialização e crescente
urbanização na China que ocorreu na primeira década do século XXI.
Mercosul (1) 8,0 4,3 1,4 3,0 0,1 -2,5 -2,9 1,4
Al. do Pacífico (2) 5,3 4,8 4,1 2,6 3,0 3,1 2,6 2,0
(1) Excluindo a Venezuela (2) Incluindo o México
Fonte de dados básicos: CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe, 2019