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história

A ECONOMIA
&
O PODER NOS
ANOS 30

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V

ONOMIA
&
OPODERNOS
ANOSSO

1980
Série Documenta 5
Porto Alegre - RS

nmCADOÍM AbmiO
Capa e diagramaçao: Marco Cena
Revisão: Noelci R. Jacoby

CATALOGAÇÃO NAFONTE

P472 Pesavénto, Sandra Jatahy


RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1980.
192p. (Série Documenta, n. 5)

CDU 981.65"193''
338(816.5ri93''

ÍNDICES ALFABÉTICOS PARA O CATÁLOGO SISTEMÁTICO:


História: Rio Grande do Sul: Década de 30 981.65"193"
Rio Grande do Sul: História: Década de 30 981.65''193'*
Situação econômica: Rio Grande doSut Década de 30 338(816.5)"193*'
Rio Grande do Sul: Situação econômica: Década de 30 338(816.5)"193''

Bibliotecária responsável: Rejane Raffo Klaes - CRB- 10/586

1980

Todos os direitos reservados pela


MERCADO ABERTO - Editora e Propaganda Ltda.
Rua Santos Dumont, 1186 - Fone (0512)228822
90000 - P. Alegre - RS - Cx. Postal 1432
"Para Roberto,
companheiro de todos os momentos".
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9
1. A REALIDADE GAÚCHA EM 1930 11
2. O BRASIL PÓS-30: NOVAS DIRETRIZES NUM MOMENTO
DE TRANSIÇÃO 42
3. A CRISE DA PECUÁRIA GAÚCHA NO PERÍODO DISCRI
CIONÁRIO (1930-1934) 51
3.1 - As dimensões da crise (1930-1932) 51
3.2 —A cisão política: a "ala regional"e a"ala nacional"(1932) 86
3.3 —A "ala nacional" e as saídas para a crise da pecuária
gaúcha (1932-1934) 105
4. O PERÍODO CONSTITUCIONAL: ECONOMIA E PODER
(1935-1937) 142
5. CONCLUSÕES 184
BIBLIOGRAFIA 187
INTRODUÇÃO
SANDRA JATAHY PESAVENTO*

O momento histórico que se estende daRevolução de 1930 à ins


talação do Estado Novo, em 1937, reveste-se de singular importância,
uma vez quese trata de umaetapade transição relevante paraa História
do Brasil e, naturalmente, para a do Rio Grande do Sul. Transição de
uma forma de acumulação baseada na agroexportação, para aquela ba
seada na indústria; transição de uma estrutura de dominação baseada
na predominância absoluta das classes agrárias (cuja dimensão burguesa
é maior ou menor conforme o setorou a região) paraumarecomposição
da coalizão dominante de classes; transição de um Estado Oligárquico
para um Estado Corporativo.
Embora sendo um período crucial na realidade brasileira,marcado
pelo processo revolucionário de 1930, os "anos 30", conhecidos como
o momento da "República Nova", é tema ainda pouco estudado pela
historiografia gaúcha.

* Professora de História do Brasil e do Rio Grande do Sul da UniversidadeFederal


do Rio Grande do Sul —UFRGS. Este trabalho foi realizado dentro do projeto de
pesquisa "Análise da Economia Gaúcha de 1930 a 1960". Colaboraram para a
elaboração do mesmo Adolar Koch, Ema Massera Arostegui, Maria Elizabeth
Lucas e Teimo Moure.
Estado periférico, dependente do mercado nacional do país, pe
cuário por excelência, com forte tradição guerreira e acentuado nível
de politização, foco da dissidência oligárquica que conduziu à Revolu
ção de 30, como teria se comportado o Rio Grande do Sul na República
Nova?
Este trabalho não pretendeu levantar hipóteses, mas se inseriu na
linha exploratório-investigativa.
Procurou-se analisar a realidade rio-grandense dos "anos 30" a par
tir do ângulo das relações da economia pecuária e seus representantes
com o Estado gaúcho.
A partir daí, objetivou-se ter em vista algumas linhas de orienta
ção básica que nortearam as pesquisas feitas:

1) Análise da situação de crise da economia pecuária gaúcha, que


somou à herança de problemas não superados da República Velha os
efeitos da crise de 1929; basicamente procurou-se distinguir a problemá
tica dada ao nível da criação, da charqueada e do frigorífico, envolven
do, em seu conjunto, as condições de limitação da pecuária gaúcha em
termos de capitalização.
2) Análise das cisões intemas da classe dominante e suas formas
de atuação:
a) diferenciação em frações de classe (criadores e charqueadores);
nível de oposição entre elas; formas de reagir à crise e soluções propos
tas na instância econômica; seu relacionamento enquanto frações de
classe com o Estado (governo local e União);
b) diferenciação em facções políticas; seu posicionamento quanto
ao problema econômico e o poder; articulações políticas regionais e na
cionais.
3) Análise, se possível, da situação das classes dominadas rurais,
embora se tenham presentes as dificuldades inerentes à sua falta de or
ganização e carência de fontes escritas que expressassem seu pensamento.
Não se pretendeu, no caso, esgotar o tema, mas contribuir para a
pesquisa histórica regional, abordando, dentro de uma sistemática nova,
um período da história gaúcha carente de maiores estudos.

10
1. A REALIDADE GAÚCHA EM 1930

Ao aproximar-se o final da década de 20, a República Velha en


contrava-se em crise. O modo capitalista de produção já se constituíra
internamente, passada a sua fase de gestaçá^o. Inserida no contexto da
divisão internacional do trabalho, a economia brasileira vivenciava as
contradições eivadas de um capitalismo tardio, ou seja, aquele formado
dentro das condições de dependência e de umpassado colonial escravis
ta, induzido pelo centro, mas também respondendo às necessidades in
ternas.
O complexo cafeeiro, responsável pela dinamização intema havi
da, encontrava-se diante de um impasse: entraves se apresentavam à
continuidade do processo de acumulação, bem como antepunham-se
obstáculos à generalização do modo de produção por todo o contexto
brasileiro^.
Oproblema da intermediação externa da economia estava acaban
do por consumir todo o excedente produzido passível de ser captado
internamente. Sendo assim, a economia dominante da RepúblicaVelha
- a cafeicultura capitalista -, pela sua própria estrutura e funciona
mento, tanto possibilitava a acumulação quanto se apresentava como
um entrave à maior diversificação econômica do país nos moldes do ca
pitalismo.

i Oliveira, Francisco de. A emergencia do modo de produção de mercadorias,


InrPausto, Boris. O Brasil republicano. III. SãoPaulo, DIFEL, 1975.
Dentro deste quadro, o setor de classe dominante nacional que se
apresentava como hegemônico —a burguesia cafeeira —afirmava o seu
poder às custas dos demais setores e através do controle do Estado.
Segundo Rowland^, o predomínio da burguesia cafeeira dependia
doconsenso dos demais grupos oligárquicos, consenso este que se basea
va, por um lado, nas idênticas condições de posse da terra como basedo
poder econômico e político, gerando interesses semelhantes. Por outro
lado, a estrutura jurídico-administrativa da Primeira República garantia
uma boa margem de autonomia para os estados frente ao poder central.
Além disso, as oligarquias periféricas eram contempladas muitas vezes
com altos cargos no governo central. Com referênciaao Rio Grande do
Sul, tem-se como exemplo nâb somente a passagem de Ildefonso Si
mões Lopes pelo Ministério da Agricultura, como a do próprioGetülio
Vargas na pasta da Fazenda.
A dissidência oligárquica tornou-se mais clara, quando, através
da terceira operaçSb valorizadora, a práticada política de defesa perma
nente do café foi, na década de 20, estendida ao nível federal. O fato de
ficar claro queo ônus dasustentaçáb do produto seria pago pelas demais
oligarquias fez com que os seus interesses entrassem em conflito com o
centrohegemôitíco do país^.
Em especial, o processo era sentidoduramente pelosestados des
vinculados da economia agroeXportadora, fazendo com que o conflito
se precipitasse mediante uma cisáo no interior da classe dominante.
Embora a crise dos anos 20 apresente uma gama mais variada de
contradições e açáo de grupos de pressáo constituídos no decorrer da
República Velha, o problema básico que interessa analisar nos marcos
deste trabalho é a dissidência de cunho regional: o antagonismo de in
teresses entre os grupos no poder e as oligarquias periféricas, antagonis
mo esse que nSb mais encontrava saída dentro dos quadros institucio
nais vigentes.
Enquanto São Paulo se apresentava como o pólo nacional da acu
mulação e centro da economia dominante no país, o restante da nação
vivenciava um grau desigual de desenvolvimento docapitalismo^.
Desenvolvia-se em São Paulo um capitalismo induzido tanto pelas
condições externas (o sistema econômico no qual o Brasil se inseria)
quanto pela diferenciação da estrutura montada internamente.
Se é possível distinguir entraves e contradições neste processo ao

2 Rowland, Robeit. Classe operáriae estado de compromisso. EstudosCEBRAP 8.


São Paulo, Brasiliense, jan. fev. mar. 1974. p. 9.
3 Fausto, Boris. Expansão do café e políticacafeeira. In: -. OBrasil republicano.
III. São Paulo, DIFEL, 1975. p. 236 et. seq.
4 Rowland, op. cít. p. 13.

12
nível central da economia brasileira, entraves ainda maiores apresenta
riam aquelas áreas subsidiárias da economia de exportaçáo, tais como
o Rio Grande do Sul. Na opinifo de Rowland,
... O que se contestava não era o capitalismo agrário em si,
mas a forma pela qual, através da estrutura política, o deseri-
volvimento do capitalismo no estado de São Paulo se fazia às
custas do sai desenvolvimento em outras regiões e com prejuí
zo da produto agrícola para o mercado interno. Ao nível da
oligarquia, a revolta era de cunho predominantemente regio
nalista^.
O Brasil, como um todo, na República Velha, vivenciava um mo
mento de transição para a generalização do modo capitalista de produ
ção. O Rio Grande do Sul, nesse período, já apresentava setores desua
economia com traços francamente capitalistas. A cultura do arroz, por
exemplo, apresentava-se com utilização de mão-de-obra assalariada, em
pregando técnicas de irrigação. A indústria gaúcha, por sua vez, já pos
suía empresas de porte, tais como as do ramo têxtil (Renner, Cia. Fia
çãoe Tecidos Porto-Alegrense, Cia. Industrial Rio-Guahyba) ou setor de
alimentícios (cerveja,vinho, conservas, banha).
O complexo pecuário —criação, charqueada e frigorífico —apre
sentava-se, contudo, como o setor de atividade que detinha a predomi
nância nos quadros da economia estadual, cujos produtos, em con
junto, obtinham mais valor na pauta das exportações.
Recolhendo os dados fornecidos pelas mensagens presidenciais®,
vê-se que, de 1912 a 1929, o charque manteve-se como o primeiro pro
duto de exportação do estado, com exceção dos anos de 1926 e 1927,
cedendo a primazia à banha. Dentre os produtos agrícolas, o arroz foi
0 que contribuiu com maior valor, ocupando o terceiro lugar desde
1922.
Na mensagem de 1930, Getúlio Vargas fornece dados em valor e
tonelagem para os produtos que mais contribuíram para a exportação
gaúcha nos anos de 1928 e 1929. Através deles, é possível ver que os
produtos do complexo pecuário sobrepujam os da agricultura "capi
talista" (arroz), da agricultura colonial e o conjunto dos demais pro
dutos industrializados (que envolvem diferentes graus de elaboração,
tecnologia, divisão social do trabalho, etc., mas cuja maior especificação
não cabe nos limites deste trabalho), noque diz respeito aovalor'.
Por exemplo, para o ano de 1929, os produtos pecuários adiante
relacionados apresentaram o valor de 213.947:465$000, enquanto
que os agrícolas (lavoura colonial e "capitalista": arroz, fumo em fo-
^ Ibidem, p. 13.
^ Mensagens presidenciais de 1913a 1930.
1 Mensagem presidencial de 1930.p. 150.

13
lha, feijão, batata) perfizeram 117.467:371 $000 e os demais, referidos
como "industrializados" (banha, vinho, farinha de mandioca, calçados,
tecidos), totalizaram 120.077:183$000.

1928 1929

PRODUTOS Peso (em Valor Peso (em Valor


toneladas (em réis) toneladas) (em réis)

Charque 53.836 97.220 B90$000 45.859 104.7142705000


Banha 12.694 82.871:3125000 41.617 77.771:0435000
Arroz 78.586 65.761.4345000 63.714 54.042:1865000
Couros vacuns salgados 24.482 59.368.0125000 17.228 40.025:8785000
Fumo em folha 9.632 26.003:6015000 14.539 30.614:3675000
Feijão 39.776 24.596:9185000 35.925 26.803:3135000
Lã 5.998 23.672:4285000 5.691 24.216.-9845000
Vinho 26.191 21.040:1745000 22.567 17.862:4735000
Produtos animais 6.351 10.854:7825000 15.511 17.708:3115000
Madeiras 41.664 8.809:1235000 58.487 14.002:0145000
Carnes congeladas 19.049 26.533:6925000 7.822 10.962:6115000
Farinha de mandioca 37.300 11.182:7275000 33.426 8.686:537 5000
Couros vacuns secos 3.104 13.876:7315000 2.692 8.557:8355000
Calçados 370 2.683:1195000 803 8.348:8615000
Sebo 15.549 16..962:9035000 7.265 7.761:5765000
Tecidos diversos 428 3.426:1055000 712 7.408:2695000
Batatas 27.289 6.781269 5000 10.201 6:007:505 5000

Como atividade dominante, contudo, a pecuária não se compor


tou, tal como o café no contexto paulista, num mecanismo de acumula
ção e diversificação de capitais, irradiando para o restante da estrutura
econômica gaúcha inovações no sentido do capitalismo.
Importa, mesmo, tentar verificar até que ponto o capital se apo
derara do campo no contexto da pecuária sulina.
Fioravanti caracteriza o capitalismo agrário,
[...] donde toma forma el latifúndio que empleaa gran
número de obreros asalariados que hacen el mismo papel que
un obrero industrial, pues venden sufuerza de trabajo a un ter-
rateniente que es el proprietário de los médios de producción
agrícolas y que obtiene en'esteprocesso una plusvalia que es Ia
base de suganancia f,.,) En el modode producción capitalista,
el trabajadoragrícola está desprovisto de todos los médios de
producción (, . .) Es de esta manera como el capital se ha apo
derado dei campo [.. .]®

8 Fioravanti, Eduardo. El concepto de modo de producción. Barcelona, Ed. Pe


nínsula, 1974. p. 152-3.

14
o dono da terra, no caso, não se limita a ser o proprietário da ter
ra, meio de produção fundamental, mas também a utilizá-la como capi
tal, isto é, fator gerador de sobretrabalho e de valor excedente sobre o
valor primitivo.
Ao analisar a realidade da pecuária gaúcha, se bem que para um
período mais recente (década de 40), Limeira Tejo assinalava a perma
nência de critérios extensivos, impedindo a circulação da riqueza:
Dessa maneira, realizou-se uma riqueza estanque na nos
sa fronteira, uma vez que no seu "processus" o fator terra - is
to é, o capital territorial - é quase tudo, enquanto o fator tra
balho é quase nada [...] na criação de gado, a participação da
mão-de-obra é quase nula[...] Não estando, pois, a terra distri
buída e não havendo, também, distribuição do trabalho, a rique
za realizada não possui senão meios precários de circulação.
Realmente, o gado pode subir de preço, que os efeitos dessa
melhoria não se farão sentir na economia geral, pois não exis
te na zona um comércio baseado na produção pecuária, nem a
capacidade de aquisição se funda no salariado que essaprodu
ção engendra.'
São colocados pelo autor, como traços distintivos do atraso da
pecuária sulina, a estrutura da propriedade da terra e a relação específi
ca de produção existente, o quelimitava os efeitos internos sobre a eco
nomiario-grandense que uma elevação do preço da mercadoria produzi
da viria ocasionar.
Para efeitos de análise, será enfocado primeiramente o setor da
criação em sua estmtura interna, para depois interligá-lo à atividade
da charqueada e do frigorífico.
A criação desenvolvia-se de forma extensiva, processando-se o au
mento da produção através do incremento dos fatores terra e gado.
A propriedade da tena, altamente concentrada, apresentava-se
como umlimite paraa modernização da pecuária em moldes capitalistas.
A terra, no caso, era utilizada segundo o seu tamanho, verificando-se
um mínimo de inversão de capital que permitisse, sem a incorporação
de novas áreas, aumentar a produtividade. Processava-se, ainda, predo
minantemente, a criação de gado em campo nativo, ou seja, o sistema
mediante o qual era colocado no campo tanto gado quanto este pudesse
suportar. Acontecendo uma invemia rigorosa verificava-se a morte de
muitos animais, passando os sobreviventes muitos meses para recuperar
o peso perdido. O resultado básico deste processo era que o gado rio-
^ Tejo, Limeira. Contribuição à crítica da economia rio-grandense. 1.A fisiono
mia agropecuária. Profíncm de SãoPedro, Porto Alegre, Globo, 1945(1): 4.

15
-grandense levavacerca de dnco anos para chegar ao ponto de abate, en
quanto que no Prata, por exemplo, muito mais cedo o novilho (com 2
anos, 2 anos e meio) podia ser sacrificado. Tal mecanismo implicava
uma demora do retomo do capital para o fazendeiro —uma vez que o
rebanho constituía-se, dentro dos critérios da pecuária extensiva, na
maior parte do capital do estancieiro.
Por outro lado, a oconência de uma alta taxa de desfmte sem
preocupação com a preservação do rebanho implicava, igualmente, uma
forma de descapitalização para o criador.
Expressão máxima da concentração da propriedade, o latifúndio
pecuarista atravessara todo um movimento de renovação vivido pela pe
cuária gaúcha ao longo da República Velha, sem, contudo, apresentar
alterações fundamentais na estmtura dapropriedade da tena.
A preocupação com a fraca utilização do potencial produtivo da
terra era sentida pelas autoridades no final da 1?República. Referindo-
-se a esta questão, o então Presidente do Estado, Getúlio Vargas, assim
se pronunciavaem 1929, por ocasiãoda abertura do III Congresso Rural:
As grandes extensões territoriais, onde apascenta o gado,
atendido por um reduzidíssimo pessoal jomaleiro, às vezes mal
alimentado e mal pago, contribuem para aumentar o pauperis-
mo das cidades, É preciso retaliar os latifúndios, dividi-los em
pequenas glebas e cuidar da cultura intensiva dos campos.'"
As extensas propriedades de terra, onde se verificava fraca utiliza
ção de mão-de-obra na pecuária, achavam-se na fase final do cercamento
dos campos.
Todavia, tanto no que diz respeito ao cercamento das proprie
dades, quanto no que toca à formação de potreiros, dividindo os cam
pos em pastagens para rotação dos gados, os pecuaristas utilizavam ara
me importado, o que aumentava o custo de produção do gado.
No IV Congresso Rural, o adiantado ruralista MarcialTerra apre
sentou a tese "A importância dos aramados", na qual pedia o abandono
do arame farpado pelo arame liso (para garantir a boa qualidade dos
couros), assim como solicitava ao governo a livre entrada do arame nas
alfândegas e a garantia de um preço mínimo de vendas e baixos fretes.
Num Estado iminentemente criador como é o nosso, o
arame é material indispensável, de primeira necessidade (...)
É com ele que são protegidas as propriedades rurais, a riqueza
que influi poderosamente na riqueza pública, pois é do campo
que, na maioria dos municípios rio-grandenses, vivem as rendas
10o Discurso do Presidente do Estado. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 maio
1929. p. 5.

16
municipais, pelo imposto pecuário, e para oEstado através do
imposto territorial, nas taxas de transmissão dapropriedade e
noutras. ^ ^
Ocercamento, em si, era um processo que, pelo ponto de vista do
proprietário, convertia-se numa maneira de consolidar olatifúndio. Por
outro lado, dentro de uma perspectiva mais modemizante, afigurava-se
como instrumento necessário para propiciar o avanço do capitalismo na
pecuária, valorizando oscampos e garantindo o retomo dos capitais em
pregados pela preservação dos rebanhos.
Cabe registrar, ainda, que um incremento fora dado à criação de
ovinos, desde ainstalação dos frigoríficos estrangeiros no Estado, confe
rindo um novo valor econômico a esta espécie de gado que não era
aproveitado pela charqueada. Acriação de ovinos, nocaso, representava
um verdadeiro "achado" para a pecuária rio-grandense, não só por con
verter a came de ovelha em matéria-prima para o frigorífico, como por
não alterar a capacidade de lotação em bovinos nos campos.^ ^
Dentro da sua visão própria, o estancieiro, proprietário da terra e
do gado, operava segundo olucro mercantil, ou seja, aquele obtido pela
venda do gado no mercado. O que lhe importava, basicamente, era ga
rantir para si uma renda monetária que lhe permitisse manter ocusto da
produção e comprar outros produtos de que necessitava. Considerando,
contudo, as condições dadas, de monopólio privado da terra edo gado,
a diferença entre o valor da produção pecuária e o preço da produção
social média aparecia como renda da tena.
A partir da Lei de Terras de 1850, a terra no Brasil foi elevada à
condição de mercadoria, institucionalizando-se a propriedade privada
do solo, adquirido através da compra. Como mercadoria, a terra tinha
um valor determinado. Oindivíduo, no caso, precisava pagar o preço da
terra (renda territorial capitalizada) para se converter no seu proprietá
rio privado. Terra e gado constituíam oinvestimento inicial e represen
tavam o capital propriamente dito nos quadros da pecuária extensiva.
Todavia, um estudo sobre a bovinocultura rio-grandense, publica
do pelo Banco Nacional do Comércio,^ ^ alerta para o fato de que gran
de parte do capitalismo agropecuário não tem custo monetário de aqui
sição (pelo processo de herança) nem custo de reposição (pela reprodu-

li Anais do IV Congresso Rural, 1930. Porto Alegre, Tip. Thurmann, 1930.


D. 366-8.
A2 Delgado, Benetti et alii. Projeto evolução recente e situação atual da agri
cultura brasileira (1930-1975). Região Sul. Rio de Janeiro, MEC-FGV, 1978.
V. 5. tomo 4. p. 43.
13 Estudo econômico da bovinocultura gaúcha. Banco Nacional do Comércio.
Porto Alegre, 1968. Ap. Projeto evolução recente. Op. cit.

17
ção natural do gado). Tais elementos representariam uma redução dos
custos de produção e permitiriam que a pecuária extensiva pudesse re
sistir às crises do mercado. O processo instalado, entretanto, é em si
mesmo contraditório, na medida em que fatores apontados anterior
mente, tais como o descuido com a reposição do rebanho e a técnica
da criação em campo nativo implicavam descapitalização maior. A im
portação do arame para cercamento, por seu tumo, onerava os custos
da unidade produtora.
Dentro da realidade da estância de criação de gado rio-grandense,
era possível distinguir a obtenção da renda diferencial I (RDI).
Esta renda é dada em função de diferenças de produtividade das
terras. A RDI manifesta-se naquelas tenas mais apropriadas à criação
em função de fatores naturais (qualidade das pastagens, aguadas abun
dantes) ou mesmo localização privilegiada (proximidade de centros con
sumidores, vias férreas, portos). Em decorrência destes fatores, a produ
tividade é maior nestas propriedades, garantindo-se um sobrelucro para
os sexis proprietários, obtido através da diferença que se estabelece entre
o seu preço de produção e o preço de venda dos produtos, uma vez que
este é dado pelas condições de produção dos campos menos rentáveis.^"*
Quando o latifundiário arrenda suas propriedades (parte delas ou
mesmo todas) a outrem, a ele cabe, como proprietário da terra, a RDI
e ao arrendatário o lucro médio (taxa média de lucro sobre o capital
investido).
Quando os dois processos se acumulam no mesmo agente social,
ou seja, quando o proprietário da terra e o que investe capital na sua
exploração são a mesma pessoa, ele recebe tanto o lucro médio quanto
a renda da terra.
A renda diferencial II (RDII) seria aquela obtida através da inver
são de capital em tecnologia no campo paraobter maior produtividade.
Agindo desta forma, o arrendatário capitalista estaria tentando aumen
tar o seu lucro médio, buscando conservar esta renda para si, ao mesmo
tempo que o proprietário buscarià incorporá-la também, por ocasião da
renovação do contrato de arrendamento.
14"Em condições iguais de aplicação de capital, as várias classes de terreno pro
porcionam rendimentos diferentes, de acordo com dois fatores —a fertilidade
natural e a localização. O valor e o preço de produção dosprodutos agrícolas,
em virtude do monopólio da propriedade da terra, nãosedeterminam pelaprodu
tividade média do trabalho socialmente necessário, mas pela produtividade mais
baixa, isto é, pela produtividade da pior classe de terreno em cultivo, quanto a
fertilidade ou à localização ou a ambas conjuntamente. Em conseqüência, o
trabalho aplicado a todas as classes de terrenos melhores que o pior terreno em
cultivo cria um superlucro ou lucro excedente ao lucromédio, resultante precisa
mente da produtividade diferencial**. Gorender, Jacob. O escravismo colonial.
São Paulo, Ática, 1978. p. 402.

18
Contrariamente a Ia renta diferencial dei primer tipo, Ia
renta de segundo tipo es menos aparente y en consecuencia
menosdiretamenteapropriable por el terrateniente, ^^
Entretanto, no caso rio-grandense, o que se verifica no comum
dos casos é tanto o arrendatário quanto o proprietário da tena (quando
for ele também o explorador do campo) nSo atuarem de forma nitida
mente capitalista, ou seja, nafo investirem capital no campo para obte
rem maior produtividade. Nas condições específicas da pecuária sulina,
elementos indicativos desta atitude seriam a utilizaçâ:o de aramados pa
ra cercamento, pastagens artificiais, o uso de vermífugos, banheiros car-
rapaticidas, cruzamento racional do rebanho, importação de reproduto
res selecionados. Tais medidas, embora presentes no Rio Grande do Sul
durante a Primeira República, nSo eram difundidas por toda a classe ru
ral uniforme e generalizadamente.
Marcial Tena, Pedro Osório, Assis Brasil seriam elementos pro
gressistas, verdadeiros empresários capitalistas, mas também náo podem
ser tomados como exemplo do comportamento da classe em seu con
junto.
Grande parte das vezes, o proprietário náo repassava para a moder
nização da própria pecuária aquilo que auferia com o arrendamento de
suas terras.
A RDI, quando obtida, não dava um cimho de capitalismo pleno
à estância enquanto unidade de produção, porque apenas consagrava o
tipo característico de criação desenvolvido no Estado, ou seja, o exten
sivo, onde apenas as condições naturais mais propícias - os chamados
campos superiores, na fronteira com o Uruguai^^ — oportunizavam
uma rentabilidade maior. O arrendatário, por sua vez, se não investia
capital, transformando o processo criatório, e se não estava localizado
em campo de qualidade superior, ia ter que retirar parte do seu lucro
médio para passá-la ao proprietário da terra. Por outro lado, na dimi
nuição dos seus rendimentos devem ser levados em conta fatores tais
como uma invernia rigorosa ou a queda do preço dos produtos, provo
cada pelas manobras baixistas dos frigoríficos e das charqueadas.
Este duplo ônus — pagamento pelo arrendamento e rebaixa do
preço do gado —explica aquilo que seria noticiado pelos jornais no pós-
-30: o desinteresse pelos negócios do gado e pelo arrendamento de
terras na pecuária.
No que toca ás relações de produção que se desenvolviam neste
processo produtivo, a questão básica é verificar até que ponto elas se
Mandei, Emest. Tratado de Economia Marxista. México, Era, 1962. p. 256.
16 Lassance Cunha, Ernesto A. O Rio Grande do Sul Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1908. p. 35.

19
constituíam em assalariadas. Quanto aos salários pagos no Rio Grande
do Sul, Souza Brandão referia os seguintes para o final da República
Velha, no ano de 1927:
[.. .] o profissional mais bem remunerado é o marceneiro, a
retribuição diária oscila de 12$200 a 17$000. O peão de es
tância é o que recebe menos por serviços prestados na região
da fronteira, onde diariamente lhe pagam na média 3$000; é
o tipo mais rude entre os analfabetos do Estado, todavia é pe
rito no desempenho de suaprofissão. ^^
Mais adiante, o autor acrescenta, emitindo um juízo de valor a
respeito da disparidade:
A diversidade da paga, quando se passa de uma região
para outra, resulta de condições especiais que o meio impõe.
Preferir aqui, por ganhar mais, e ali, por ganhar menos, nem
sempre o saldo das retribuições é mais compensador na primei
ra condição [...] Admira-me a resistência dos rústicos que
desprovidos de alimentação variada, de vivenda confortável, e
de vestuário apropriado às alternativas por que passa a sua
vida, ora suportando o frio que gela e racha, ora expondo-se
aos rigores do calor, que esbraseia superfícies imensas, onde
não se vê uma árvore, mantêm o mesmo vigor no decurso da
existência fadigosa do campo. ^®
Entretanto, a remuneração do peão implicava outras formas
que não o recebimento de um salário monetário fixo. Como refere
MüUer, seu pagamento constituía-se em "teto, comida e alguma pra-
ta".^^
O fato de ter, com isso, outras formas de remuneração que per
mitam a reprodução da força-trabalho, implica a existência de rela
ções de produção não-capitalistas na estância. O peão,no caso, poderia
ser considerado força de trabalho livre nãoassalariada, fornecendo, por
tanto, sobretrabalho mas não mais-valia.
Tal fato, em associação com os demais fatores aqui colocados, li
mitaria a caracterização do processo de trabalho na estância como niti
damente capitalista. Marcial Terra, no caso, pode ser considerado como
um empresário capitalista, mas coexistia com relações de produção não-
-capitalistas.
Extremamente dependente do proprietário da terra,as condições
de vida do peão de estância, do "proletário rural" se agravariam com o
final do processo de cercamento dos campos. Sem encontrarmuitasal-
17 Souza Brandão. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Grafica Sauer, 1930.
p. 96-7.
íbidem, p. 97-8.
l^Müller, Geraldo. Periferia e dependência nacional. São Paulo, USP, 1972.
p. 23 (xerografado)

20
temativas de trabalho na zona rural sulina (criaçâfo, charqueada, arroz),
tais elementos, na sua demanda pelos centros urbanos, nSo encontravam
uma indústria em suficiente desenvolvimento para absorvê-los. Por ou
tro lado, embora muito hábeis nas lides do campo, convertiam-se, nos
centros urbanos, em mão-de-obra não especializada, sem habilitação
profissional. No final da década de 20, processava-se, portanto, um êxo
do rural cujos efeitos começavam a se fazer sentir no aumento das ca
madas marginais na periferia dos centros urbanos deentão.^®
No que toca à charqueada sulina, é possível categorizá-la como
manufatura, constituindo-se, portanto, em forma histórica de produção
capitalista. A manufatura representaria a fase do desenvolvimento capi
talista em que se verifica a submissão formal do trabalho ao capital.^ ^
Na charqueada, as relações de produção seriam mais nitidamente
assalariadas, produzindo a força-trabalho, em condições de alta taxa de
exploração, mais-valia absoluta. Contudo, mesmocom referência ao tra
balhador de charqueada, seu pagamento era algumas vezes absorvido pe
lo "armazém", pertencente ao dono do estabelecimento saladeiril, onde
o pessoal empregado satisfazia as suas necessidade básicas.Mediante um
mecanismo de alta taxa de exploração de mão-de-obra, com jornadas de
trabalho que se estendiam por 12 a 18 horas na época da safra,em con
dições de absoluta falta de higiene, o trabalhador permanecia algumas
vezes "empenhado" com o patrão dono do armazéme, desta forma, via
diminuídos os seusrendimentos monetários.^ ^

20 A obra de Cyro Martins, Sem Rumo, escrita em 1935, é rica em informações


sobre este processo. Embora se trate de uma obra literária, é de um testemunho
que pode servir como exemplificação do fenômeno que ocorria na campanha
gaúcha, no final da República Velha e no transcurso da República Nova. Trata-se,
contudo, ainda de uma visão "desde cima" do problema dos marginais do campo,
por mais consciente que possa se apresentar a respeito da situação da classe domi
nada. O autor, natural da zona da campanha, inicia com esta obra a trilogia do
ciclo do "gaúcho a pé", processo mediante o qual analisa a marginalização do
homem do campo. Completam o quadro as duas obras que se seguiram. Porteira
fechada, editada em 1944, e Estrada nova, publicada pela primeira vez em 1954.
Cita o autor: (...) "colaboraram, agindo como elementos primários do drama a
que assistimos, a subdivisão dos campos e a mestiçagem dos rebanhos (. ..)
Privado das condições de vida que lhe modelaram o caráter, o gaúcho, não dis
pondo mais da fartura, do cavalo e da distância, decaiu como tipo representativo
de um padrão de existência (...) Na verdade, as massas campeiras foram sendo
pouco a pouco dig)ensadas - por que não dizer, excluídas? - por desnecessárias,
numa decorrência lógica do rumo que tomavam as lidas campeiras." Martins,
Cyro. Sem Rumo. PortoAlegre, Movimento, 1977. p. 22-3.
21 Marx, Karl. O Capital São Paulo, Ciências Humanas, 1978. livro 1. cap. 6
(inédito).
22 Mesmo se tratando de uma obra literária e referindo-se a um período mais
recente, o livro de Pedro Wayne, Charqueada (Rio de Janeiro, Guanabara Koogan,
1937) é rico em informações a respeito das condições de trabalho nos estabeleci-

21
Sem garantias de espécie alguma, ferindo-se e infeccionando-se na
tarefa diária, este elemento ficava desocupado na entre-safra,gravitando
em tomo do estabelecimento saladeiril paralisado, sem muitas opções
de trabalho na zona mral.
Na charqueada, observa-se o controle parcial dos meios de pro
dução pelo saladeirista, uma vez que certos instrumentos simples, como
faca, podem pertencer ao trabalhador.
O processo de trabalho manufatureiro envolve uma ênfase toda
especial no relacionamento da fQrça-trabalho com os meios de trabalho,
na medida em que se destaca a habilidade manual do trabalhador com o
seu instrumento, a ferramenta de trabalho. É essencial a destreza
pessoal na realização das várias tarefas (o "desnucador", o "despos-
tador", o "salgador"), mas igualmente importante é o fato de que o
indivíduo isolado com o seu instrumento de trabalho nada vale. A ma
nufatura imphca um conjunto de fases parciaise complementaresumas
das outras na produção de uma mesma mercadoria, que é obtida através
do encadeamento destas várias etapas.^ ^
Portanto, a destreza e especialização do indivíduo na realização
de uma determinada tarefa só adquire sentido dentro deste processo
produtivo submetido ao capital. Coexistem, com a utilização de ferra
mentas simples, maquinaria mais avançada, tal como a máquina a vapor
para a extração de sub-produtos (graxa, sabão, etc.).
Enquanto a criação detinha o controle da oferta do gado,a char
queada, juntamente com os frigoríficos estrangeiros, tinham o contro
le do preço.
No conjunto, é possível verificar que as condições internas da es
tância, conjugadas com a dependência em relação ao binômio charquea-
da-frigorífico, limitavam a acumulação.
A charqueada, por seu turno, que produzia, de forma arcaica e
com tecnologia precária, um produto de baixa qualidade e mau aspec
to, era a única forma de transformação da carne que restava em mãos
nacionais. Entretanto, tinha de enfrentar, internamente, a atuação dos
frigoríficos estrangeiros e, externamente, as conseqüências de produzir
um artigo de inferior qualidade para um mercado altamente competiti-

mentos saladeirís. Tratando-se o autor de uma pessoa que trabalhou num estabe
lecimento saladeiril, como contador, a falta de material documental mais pre
ciso permite empregá-lo como fonte de estudos. Maisuma vez, contudo, é um de
poimento "desde cima" sobre o trabalhador. Configura-se, novamente, a difi
culdade de reconstituir a história dos setores trabalhadores do campo, pela ausên
cia de testemunho escrito deixado, sendo as poucas referências encontradas
^enasaonível de uma conscientização da classe dominante do seu problema.
23 Marx, Karl. O capital Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. livro 1.
V. 1. cap. 12.

22
vo (concorrência nacional e platina do charque no mercado interno
brasileiro).
Os frigoríficos estrangeiros eram típicas empresas capitalistas, uti
lizando tecnologia superior, dotadas de grandes recursos financeiros e
tendo um controle do mercado. Utilizavam, dentro de uma produção
mais sofisticada, mão-de-obra assalariada por um período do ano maior
do que aquele compreendido pela safra saladeiril. Ofrigorífico, inclusi
ve, podia pagar maior salário, drenando mão-de-obra da charqueada
para si. Todavia, o conjunto da estância, que tinha fraca utilização da
força-trabalho, mais a charqueada e o frigorífico funcionando juntos
não absorviam toda a mão-de-obra excedente.
Os frigoríficos estrangeiros, com suas manobras baixistas, manti
nham a pecuária em permanente crise, ora elevando o preço do gado
até o ponto em que as charqueadas não podiam competir, levando-as á
falência, ora baixando o preço, comprejuízo para os criadores.
Globalmente, a economia gaúcha, como fornecedora nacional de
gêneros de primeira necessidade, tinhaparte do seuexcedente econômi
co produzido captado pelo centro do país, com ascasas comissionárias
que vendiam os produtos em consignação e obtinham lucro com asdi
ferenças de preço.A intermediação comercial agia comoum mecamsmo
de transferência de renda do Rio Grande para o centro do país. Em sín
tese, o poder de acumulação dapecuária sulina se achava truncado, tan
to no que diz respeito à produção (criação-charqueada), quanto no
plano do mercado.
A possibilidade de acumular mediante a redução dos custos de
produção pela via daintrodução decomponentes tecnológicos modemi-
zantes pressupunha uma certa disponibilidade de capital de giro para in
troduzir tais inovações, o que não se dava. O aumento da acumulação
mediante a intensificação da utilização da força de trabalho também en
contrava seus limites: a charqueada já estava operando com seu nível
máximo de exploração de mão-de-obra, enquanto que a criaçao, pela
sua peculiaridade própria, tinha uma fraca utilização de força-trabalho.
A obtenção de um preço maior pela mercadoria produzida nomercado
eralimitada, por umlado, pelas articulações de empresas monopolistas
estrangeiras de frigorificação de carnes e, por outro, pela presença dos
concorrentes do charque no mercado nacional e pelo baixo poder aqui
sitivo dos consumidores.
Quanto a esta questão, o interesse do centro do país era manter
uma política de preços baixos quanto aos gêneros de primeira necessi
dade. Os cafeicultores haviam impostoà naçãouma política de salvação
do café que tivera como um de seus resultados a desvalorização da moe
da e o encarecimento do custo de vida. Para contornar a tensão social

23
provocada, exigia-se a manutençâ:o dos preços dos gêneros alimentícios
de subsistência, com o que deixaram de lucrar os estados produtores
do mercado interno.
Dentro deste contexto, a principal atividade econômica do Rio
Grande apresentava-se descapitalizada, com uma série de entraves que se
antepunham à sua transformaçffo plena no sentido do capitalismo.
Assim como no restante do país, os 40 anos de República VeUia
haviam sido, no Rio Grande do Sul, uma fase de gestação do modo de
produção capitalista. Inclusive, pode ser dito que uma forma específica
de capitalismo ali se desenvolvia,aquele historicamente possível de cons
tituir-se dentro dos marcos de uma realidade brasileira de dependência e,
mais especificamente, de uma unidade da federação subsidiária do cen
tro do país.
Em síntese, o complexo pecuário rio-grandense apresentava está
gios diferenciados do capitalismo. O processo produtivo realizado na
estância apresentava uma forma geral não especificamente capitalista,
mas onde elementos de capitalismo se podiam fazer sentir. A charquea-
da, enquanto manufatura, era forma histórica de produção capitalista,
mas se encontrava sem maiores renovações desde a introdução da má
quina a vapor. Os frigoríficos, empresas nitidamente capitalistas, liga
dos a grupos multinacionais, atuavam como elemento de tensão dentro
do contexto geral.
Dadas, portanto, as condições básicas do complexo pecuário pre
dominante no Estado, cabe centrar a anáhse na classe que por ele res
pondia. Desde o surto de desenvolvimento do arroz, é possível classifi
car a classe dominante do Rio Grande como agropecuarista. Todavia,
dentro dela, o setor pecuarista ainda se comportava como o elemento
decisivo. Para fins desta análise, será, pois, tomado em consideração o
componente pecuário, aqui identificado como "classe dominante", ou
seja, aquela que possuía o predomínio da vida econômica. Neste mo
mento histórico de análise —o início dos anos 30 —esta classe predo
minante se apresentava também como hegemônica, ou seja, detinha o
controle do poder político e dos mecanismos de controle social (dire
ção intelectual, moral, ideologia).
No final da República Velha, ambas as frações em que se dividia
a classe dominante no Estado —criadores e charqueadores —se acha
vam reunidas em associações de classe, onde defendiam seus interesses
econômicos específicos e divergiam entre si quanto à preservação desses
interesses.
Durante o II Congresso de Criadores, em 1928, apareceu uma
proposta de criação de um Sindicato do Charque, ficando determina
do que a Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul

24
(FARSUL) deveria convocar os charqueadores para que, com o apoio
e incentivo do Governo do Estado, fimdassem uma organizaçâ^o desse
tipo.
Como interpretar a aprovação de uma moção dessa or
dem numa reunião de criadores? Antes de mais nada, convém
lembrar que, apesar dos pontos de oposição que pudessem ter
os interesses dos criadores e dos charqueadores, ambos eram
frações de uma mesma classe dominante, que vivia na explora
ção de atividades econômicas relacionadas com a pecuária e
que tinham como interesse primordial que os unia a defesa do
capital Ora, sendo a charqueada a forma de exploração da car
ne predominante no Estado, em mãos nacionais, era natural
que, da prosperidade da charqueada, derivasse a prosperidade
do próprio criador Mesmo que o criador identificasse que o
charqueador procurava pagar-lhe pelo boi o menor preço, a
charqueada, [. . . ] ainda era a forma prioritária de aproveita
mento do boi Face à debilidade de acumulação local, a ativi
dade charqueadora era a única forma nacional de industrializa
ção da came,^^
Em julho de 1928, foi convocado um Congresso de Charqueado
res, durante o qual ficou decidida a criaçffo de um Sindicato de produ
tores, com o objetivo de controlar e regularizar a exportaçâ^o do artigo,
afetado no momento pelo problema da superproduçâ:o e pelos concor
rentes nacionais. A proposta associativa para defesa da produção era in
centivada por Getúlio^^, que apontava esta como a melhor solução para
os problemas da economia gaúcha, permitindo maiores lucros, pela eli
minação do intermediário na exportação e pela possibilidade de contro
le da oferta e, conseqüentemente, do preço no mercado.
Desde o início do seu funcionamento, o Sindicato dos Charquea
dores, com sede em Pelotas, propôs-se, segundo seus estatutos, a congre
gar os saladeiristas para, em ação conjunta, promover a defesa dos inte
resses recíprocos de criadores e charqueadores^^. A prática, porém, re
velou a impraticabflidade destas intenções. Os pontos de atrito que sur
giram deram-se em tomo da data da matança e do preço imposto pelo
Sindicato aos estancieiros na compra do gado.
Segundo a visão dos criadores, o charqueador, alegando
que as matanças poderiam avolumar os estoques, deixou de
comprar o gado no momento certo, transferindo a data do aba-

^^Pesavento, Sandra Jatahy. República Nova Gaúcha: Charqueadas, frigoríficos


e criadores. Porto Alegre, Movimento/IEL, 1980. p. 266-7.
25 Mensagem presidencial de 1928. p. 8-9.
26 Sindicato dos Xarqueadores do Rio Grande do Sul. Estatutos. Pelotas, A Uni
versal, 1928.

25
te. Quando dis^s-se a comprar o gado, ofereceu por ele um
preçoirrisório.^^
Além de contar com o patrocínio do govemo para a sua constitui
ção, o Sindicato dos Charqueadores foi beneficiado com duas outras
medidas do Poder Público no sentidode beneficiar a pecuária gaúcha. A
primeira delas, que precedeu a formaçáo do Sindicato, foi a criaçáo do
Banco do Rio Grande doSul pelo Decreto n? 4.079, de 22de junho de
1928, o qual foi instalado a 12 de setembro do mesmo ano. Utilizando
os recursos advindos do empréstimo extemo de 42 milhões de dólares,
contraído pelo Estado com os banqueiros nova-iorquinos White,
Weld & Company, Getúlio constituiu no Rio Grande um estabeleci
mento de crédito destinado a conceder empréstimos a juro baixo e
prazo longo ao setor agropecuário do Estado.
Referindo-se ao valor do ato do Govemo estadual, Joaquim Luís
Osório mencionava em discurso por ocasifo da abertura do IV Con
gresso Rural, em 1930:

No auxilio à pecuária em geral na safra de 1929, o Banco


emprestou, aproximadamente, 80 mil contos de réis, sendo
que dessa soma cerca de 50 mil contos foram destinados ao fi
nanciamento direto do charque e 17.577 contos a empréstimos
hipotecários rurais a longo prazo. ^'
A outra medida govemamental que veio atender aos interesses
dos charqueadores no Estado foi o resultado da campanha levada a
efeito no Congresso pela bancada gaúcha, sob o estímulo de Getúlio,
para obter a chamada "desnacionalização docharque"^ '.
Através desta mèdida, conseguida em setembro de 1928, desarti
culou-se o contrabando do charque que se fazia com o recurso das cha
madas "guias falsas". O produto gaúcho, que escoava por Montevidéu
para ganhar o mercado brasileiro, ia acompanhado de uma guia onde se
certificava a sua origem nacional, fazendo com que, ao chegar nas al
fândegas brasileiras, nâo pagasse imposto de importaçáó. Mediante o
recurso das "guias falsas", conseguidas na fronteira, também o charque
uruguaio exportado junto com o brasileiro por Montevidéu se fazia
acompanhar de um atestado que afirmava a sua origem rio-grandense
ou mato-grossense. Desta forma, ao chegar nas alfândegas brasileiras,
não pagava imposto também, burlando o fisco e abarrotando o mercado
intemo.

27 Pesavento, op. cit., p.278.


28 Foi instalado ontem, na Biblioteca Pública, o IV Congresso Rural. Correio do
Povo, Porto Alegre, 25 maio 1930. p. 9.
29 Correio doPovo, Porto Alegre, jul.a set. 1928.

26
Segundo a lei da desnacionalização, foi considerado charque es
trangeiro todo aquele que transitasse por território platino na sua de
manda do mercado brasileiro. Forçava-se, assim, o escoamento da pro
dução gaúcha pelo porto de Rio Grande e desarmava-se o tradicional es
quema de contrabando praticado pelos uruguaios.
O fato do Rio Grande conseguir, pela primeira vez, enviar o char
que diretamente para Cuba, sem intermediação estrangeira, foi saudado
pela opinião pública.
Preocupado com o escoamento da produção das charqueadas, o
governo Vargas gestionou junto ao govemo central, obtendo um aba
timento de 50% nos fretes da Viação Férrea para o transporte do pro
duto.
Enquanto os charqueadores eram, desta forma, beneficiados com
as medidas tomadas pelo govemo estadual, os criadores, anegimentados
na FARSUL desde 1927^°, realizavam congressos onde debatiam seus
principais problemas.
As propostas levadas à discussão no IV Congresso Rural do Esta
do, reunido em Porto Alegre, em maio de 1930, mostram bem a per
cepção que os estancieiros —fração, por assim dizer, modemizante da
classe dominante gaúcha —tinham da problemática que viviam.
Já na própria convocação da FARSUL, entidade patrocinadora,
notam-se as idéias de afirmação do caráter rural do Rio Grande e da
necessidade da auto-suficiência pela derivação da produção e a união da
classe:

Dos rurais, da sua capacidade de trabalho, do bom êxito


de suas iniciativas e esforços, depende em primeiro lugar a pos
sibilidade da emancipação econômica de uma região. Cada ter
ra deve produzir de modo que se baste a si mesma, naquilo que
for possível, e para bastar-seé necessáriaa organização da pro
dução. Reunindo-se periodicamente a classe rural, em congres
sos, procurando estudar as suas necessidades, os meios de bem
produzir e de bem defenderseus interesses, ela terá curadode
modo eficiente do bem-estar doRio Grande.^ ^
Dentre os principais tópicos abordados, sobressaíram aqueles
relacionados com a decadência do charque e com a única solução
possível para o aproveitamento da came no Rio Grande do Sul: a for
mação de um frigorífico nacional.
Quanto ao problema da decadência dó charque, enfatizou-se a
questão da concorrência interna no fomedmento do mercado nacional,

30Esta seria a terceira fundação da FARSUL, que anteriormente já fora criada


em 1909 e em 1921.
31 Anais do IV Congresso Rural. Porto Alegre, Tipografia Thurmaim, 1930.p. 3.

27
o fato do Rio Grande oferecer um produto de baixa qualidade e a má
atuação do Sindicato dos Qiarqueadores, prejudicando os criadores^
No relatório das atividades da presidência da FARSUL, Ricardo
Machado enfatizava que o Sindicato vinha se revelando ineficiente para
dominar o mercado consumidor. Quando conseguia impor um bom pre
ço, quem disso se aproveitava eram os concorrentes. A política altista
dos preços era mantida artificialmente, mediante retençâò do estoque,
ocasionando saldos de charque que iam passando de uma safra para ou
tra. Sua ação vinha-se mostrando tão nefasta que fora até anunciado o
fechamento da Cooperativa Pastoril Sul-Rio-Grandense, fundada em
1928, em Pelotas. Esta cooperativa "tinha por fim congregar os criado
res e invemadores para, em ação conjunta, realizarem a regularização
dos negócios do gado, bem como melhorar e defender a indústria pecuá
ria no Rio Grande do Sul. Dentro desses objetivos, destacava-se o de
conseguir um bom preço pelo gado"^^ e proporcionar os meios de
promover a industrialização da carne.
O cooperativismo surgia no final da década motivado^
por um lado, pelo próprio acúmulo de crises que, no decorrer
do século, vinha enfrentando a pecuária gaúcha, e, por outro
lado, pela situação de agudização dos interesses divergentes de
criadores e charqueadores, tornados mais claros com o estabe
lecimento do Sindicato dos Charqueadores,
Prosseguindo na sua anáUse, o presidente da FARSUL citava o
conflito existente entre os interesses dos criadores e dos charqueadores,
uma vez que os fazendeiros não eram consultados sobreas questões re
lativas ao preço do gado e início ou fechamento da safra, que eram fi
xados arbitrariamente pelos saladeiristas, atendendo exclusivamente
aos seus interesses pessoais. Em síntese, os charqueadores resolviam
os seus interesses recíprocos com os criadores na ausência destes.
A solução para a questão pecuária gaúcha estava na constituição
de uma empresa frigorífica nacional, dirigida pelos criadores, para o
beneficiamento dos gãdos. No discurso de instalação do Congresso,
Joaquim Luís Osório colocou o problema da safra de 1930: conside
rando-se uma oferta de 1.000.000 de cabeças de gado, os frigoríficos,
segundo a previsão, abateriam 350.000 e os charqueadores 250.000
cabeças. Logo, odéficit seria de 450.000 a500.000 reses^^.
Os frigoríficos estrangeiros operavam no Estado com capacidade
ociosa e, transcorridauma década desde a sua instalação e funcionamen-

32 lbidem,p. 40-71.
33 Pesavento, op. cit., p. 281.
34 Ibidem.p.281.
35 Anais do IV Congresso Rural, op. cit., p. 16.

28
to, não abatiam mais que as empresas saladeiris. No ano de 1928, por
exemplo, para um abate de 142.423 cabeças de gado nos frigoríficos,
as charqueadas apresentavam luna matança de 753.577cabeças. Quanto
aos dados referentes à exportação, em 1928 o Rio Grande exportara
19.049.469 kg de carnes congeladas, no valor de 26.533:691 $000, en
quanto que as charqueadas remetiam 53.836.483 kg do seu produto,
num valor de 97.220:841 SOOO'®.
Para compreensão destes dados, deve-se ter em conta que , no
plano do mercado internacional, ascarnes frigorificadas de procedência
brasileira gozavam de menor aceitação e cotação que as platinas, que
atendiam às exigências do consumo europeu, no que diz respeito ao ní
vel de refinamento das raças. Por outro lado, os frigoríficos, atuando no
Rio Grande do Sul, em termosde matança, aquém de suacapacidade de
produção, voltaram-se também para a atividade da charqueada, contri
buindo para aquele abate tão significativo. Tal mudança de orientação
teria, no parecer de E. Silveira,^' correspondido a uma alteração na
estratégia de expansão das grandes empresas frigoríficas multinacionais.
Estas teriam penetrado no Brasil, em particular no Rio Grande do Sid,
por ocasião da Guerra, para livrarem-se de um ambiente sócio-político
contrário que estavam vivenciando na Argentina. Tendo, contudo, se
normalizado a situação política na Argentina, as potências frigoríficas
defrontaram-se com um problema de superprodução com relação ao
consumo mundial. A solução encontrada teria sido, pois,o encaminha
mento dos frigoríficos para a atividade charqueadora. Aexplicação pa
rece plausível, principalmente se se tiver em conta as tentativas do go-
vemo argentino de controlar a ação dos frigoríficos no período em
apreço.^®
Entretanto, para a entrada dos frigoríficos estrangeiros no Rio
Grande do Sul, contaram também as modificações nos padrões de
consumo do mercado internacional gerados pela Primeira Guerra:
face á elevada demanda para abastecimento dos exércitos, se oportu-
nizou a industrialização de carnes de mais baixa qualidade, permitin
do que as empresas estrangeiras buscassem aquelas áreas onde os reba
nhos não se achassem com alto grau de refinamento.®'
O projeto de um frigorífico no estado, formado com capitais na
cionais, já fora levado a efeito uma vez, por ocasião da guerra, com o
projeto do "Frigorífico Rio Grande", empresa que, mal instalada, não
36 Diretoria Geral do Tesouro. Dados sobre produção e exportação de charque e
carnescongeladas em 1928. Porto Alegre, 12 set. 1929. (manuscrito)
37 Silveira, Ênio. Empresa e satelitização no campo. Estudo de uma estância no
Rio Grande do Sul. São Paulo, USP, 1972. Ap.Projeto Evolução, op. cit. nota 12.
38 Smith, Peter H. Carne y política en IaArgentina. Buenos Ayres, Paidos, 1968.
39 Pesavento. Op. cit. nota 24.

29
conseguira encontrar condições de operar em larga escala e fora com
prada pelo grupo inglês Vestey Brothers, tomando o nome de Frigorífi
co Anglo em 1924. A idéia ressurgia novamente, não mais com o obje
tivo anterior de abastecer o consumo nacional de carnes. Para tanto,
alvitrava-se a necessidade de uma propaganda para intensificar o con
sumo intemo das cames frigorificadas.
Era lembrado o caso do Uruguai, onde, em 1928, fora criado o
" Rrigorífico Nacional", com o fim de impedir o monopólio estrangei
ro da industrialização de cames. Para entrar em funcionamento, o frigo
rífico oriental contou com os recursos de um empréstimo intemo lan
çado pelo govemo e cujas ações foram compradas pelos criadores e pelo
próprio Estado.
A idéia da criação de uma empresa similar no Rio Grande fora
apresentada por Marcial Terra em julho de 1928, por ocasião do Con
gresso que o Sindicato dos Charqueadores realizava em Porto Alegre.
Da mesma forma, a idéia aparecera no II Congresso Regional Serrano,
realizado em Tupanciretã de 22 a 24 de março de 1930.
Na opinião do destacado ruralista Marcial Tena, impunha-se a
criação de um frigorífico que fosse amparado pelo govemo do Estado,
com recursos do Banco do Rio Grande do Sul e contando com a co
operação de todos os criadores. Acrescentava ainda que não se podia
comparar o preço que um frigorífico podia pagar com aqueles que os
charqueadores ofereciam, pois grande era a diferença no aproveitamen
to da matéria-prima"*®.
Ficou decidido pelo IV Congresso Rural que uma comissão se di
rigiria a Getúlio Vargas para saber como o presidente do Estado encara
va a idéia da reorganização da indústria da carne e da fundação de uma
Sociedade Sul-Rio-Grandense de Carnes. Quanto ao resultado da entre
vista, relatava Ricardo Machado aos criadores reunidos na quinta sessão
plena, realizada em 28 de maio de 1930:
Sua excelência, depois de ouvir atentamente aqueles con
gressistas, declarou que receberia com a maior satisfação as su
gestões que fizessem ao Govemo do Estado e quefaria tudo
o que estivesse ao seu alcance. Entre o Dr. Getúlio Vargas e a
comissão ficou resolvido que se apresente um memorialao go
vemo do Estado, acompanhado de documentos precips, afim
de se escolher um meio de dar execução à Fundação da Socie
dade Sul-Rio-Grandense de Carnes,^*
Entre as questões menores apresentadas no IV Congresso Rural,
discutiu-se a necessidade da utilização de banheiros carrapaticidas, a
conveniência do uso do arame sem farpa no cercamento dos campos,
40 Anais do IV Congresso, op. cit, p. 326.
41 Ibidem, p. 344.

30
a utilização generalizada de balança para as negociações de compra e
venda do gado, a defesa da criação ovina, com utilização para corte e
fornecimento de lã, o incentivo à suinocultura, problemas relativos
à obtenção de uma maior valorização do couro e estudos compara
tivos entre as raças de corte.
O êxodo rural foi uma preocupação que também apareceu mani
festa nos debates do congresso. Embora preocupado mais com o traba
lhador empregado nas lides da agricultura, a tese de Nestor Fagundes (O
problema das máquinas agrícolas) alerta para o problema que estava
ocorrendo, falando da necessidade de conservar nas fazendas os operá
rios rurais, pois
O operário que abandona os trabalhos do campo e vem
para as cidades dificilmente volta às suas ocupações antigas.
Mais difícil ainda é contarmos com a atração dos operários
radicados nas cidades para a agricultura. Esses como aqueles,
depois de se habituarem nos centros populosos, preferem su
portar as mais duras misérias a abandoná-los; prova-o isto a
quantidade de operários sem trabalhos, que diariamente per
correm as ruas em busca de serviço.
O problema do trabalhador rural, completamente desamparado
pelas instituições, foi outro ponto de debate, para o qual os congressis
tas já começavam a se alertar. Umaproposta foi feita no sentido de que
fosse criada uma instituição que funcionasse tal como um instituto de
previdência do operário rural. Haveria uma contribuição básica de
1201000 anuais por empregado e que deveria ser suportada pelo pa
trão. A tese que apresentou tal idéia fazia, contudo, uma ressalva no
caso dos peões, que considerou como que á parte, estando mais pró
ximos dos patrões do que o comum dos trabalhadores rurais. Argumen
tava com a "convivência íntima das fazendas de criação" e a "bondade"
e "veneração" vigentes nas relaçõesentre empregadose estancieiros^^.
É claro que o IVCongresso Rural apresentava a visão que a classe
dominante tinha de si mesma e de seu relacionamento com a classe do
minada, vendo as coisas do ponto de vista do capitale não do trabalho.
De um modo geral, pode-se observar que os estancieiros reunidos
no Congresso experimentavam grandesexpectativas para com o governo
e mesmo reconhecimento pela sua atuação com relação à pecuária. Em
discurso de homenagem a Getúlio Vargas, o Cel. Vicente Lucasde Lima
referia:

[. . .] nota-se claramente, desde o iníciodo seu futuroso


governo, a vontade plena de transformar o Rio Grande do Sul
numa imensa usina de trabalho, em grandes realizações de ca-
42 Ibidem,p. 286.
43 Ibidem, p. 378.

31
ráter prático, No cumprimento de tão justo anhelo, ele tem
envidado todos os esforços, pró-aumento da capacidade de
produção, procurando também protegê-la intransigentemen-
te[, A pecuária principalmente tem sido o alvo predileto
de seu espirito reformador, em vista de ter ele procurado am
parar carinhosamente os seus principais produtos - charque e
banha, pelo auxílio desinteressado que deu à criação de sindi
catos para sua defesa. Os seus propósitos são cristalinos. Tudo
ele tem cuidado no sentido de normalizar os processos econô
micos do Estado, pelo amparo que vai dando aos elementos
capazes de efetuarem tais realizações. O Dr. Getúlio Vargas,
assim procedendo, levará ao posto de salvamento, tenho cer
teza plena, o nosso justjssimo desiderato, na reunião para a
vida ao tentarmos vencer as inúmeras dificuldades que se an-
tolham no caminho das nossas naturais finalidades econô
micas.^^
Respondendo às homenagens recebidas, Getúlio Vargas afirmava
que,

Quando uma organização como a Federação das Associa


ções Rurais, com o seu prestigio, com o seu valor econômico,
com a sua significação social para o desenvolvimento do Rio
Grande do Sul se acerca dos poderes públicos, constitui ao
governante um dever estimulá-la e ampará-la em sua finalidade.
Nestas condições, o que fiz, além de significar um especial
apreço, um prestigio ao valor de suas iniciativas, entendi con
tribuir com o meu esforço para a suaprosperidade, porque ela
representa uma classe que tanto contribui para a riqueza do
Estado.^ ^
Além das medidas já citadas que o governo do Estado empreen
deu no sentido da salvação da pecuária, pode serdestacada a criação da
Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio, através do Decreto n?
2.299, de 15 de abril de 1929. A nova instituição deveria constituir-se
num órgão promotor do desenvolvimento agrícola e pecuário no Esta
do. Através do seu Setor de Indústria Animal, o novo órgão destacou-se
por ter distribuído boletins e circulares, divulgando conselhos e instru
ções. Pelo Decreto n? 4.345, de 15 de julho de 1929, fora criada a po
lítica sanitária animal, que ficou subordinada à Secção Animal da Dire
toria de Agricultura, Indústria e Comércio. Entre as suas realizações,
contam-se a distribuição de 200.000 doses de vacinas, a criação de
cinco inspetorias veterinárias, a criação de um posto zootécnico em
Montenegro para suínos e aves e o desenvolvimento de pesquisas em
microbiologia para estudo de parasitas que atacavam os animais. Em
acordo realizado com o governo federal, a Diretoria ficou encarregada
44 Ibidem,p. 30-1
45 Ibidem, p. 32.

32
de realizar a distribuição de 100 reprodutores importados pelo Minis
tério da Agricultura.^®
Dentre as medidas tomadas pelo governo estadual, deve ser ressal
tado ainda o Decreto n? 4.551, de 31 de julho de 1930,que prorrogou
o prazo para a cobrança, semmulta, do imposto territorial no exercício
daquele ano.'*' Mediante o Decreto n? 4.555, de 2 de agosto de 1930, a
presidência do Estado mandava sobrestar, "ad referendum" da Assem
bléia dos Representantes, "a cobrança do imposto de viaçãoe de outras
taxas sobre a exportação pela fronteira uruguaia de gados de corte e de
invemar".
Atendendo diretamente, neste caso, aos criadores que,frente
ao declínio da safra, se apresentavam com as invemadas cheias, o gover
no, como saída de emergência, oportunizava a colocação do rebanho
no mercado oriental.
Ao mesmo tempo em que buscou ir ao encontro dasnecessidades
dos pecuaristas, Vargas procurou atender o conflito interclasse que afe
tava as duas frações da classedominante no Estado.
Considera-se que tal forma de atuação está relacionada com um
projeto maior, ou seja, aquele que, através da satisfação das necessida
des econômicas dos pecuaristas, buscava realizar a união política da
classe rural no Estado.
Getúlio Vargas tivera no Rio Grande uma carreira ascensional:
líder do Bloco Acadêmico castilhista em 1907, promotor público em
1908, deputado estadual nos períodos de 1909-1913 e 1917-1922, de
putado federal em 1924 e Ministro da Fazenda de Washington Luís em
1927. Dentro do esquema vigente da política dos governadores, con
templavam-se os estados chamados grandes eleitores com altos cargos
no govemo. Indicado pelo PRRpara substituir a Borges de Medeiros na
presidência do Estado no mandato que se iniciaria em 1928, Getúlio
concorreu só, sem que os libertadores lançassem um candidato.
Na postura de Mem de Sá, o Partido Libertador (PL) aceitou a
indicação de Vargas e não apresentou candidato porque só a perspec
tiva de ficarem livres de Borges de Medeiros os fazia sentirem-se gratifi
cados.^'
Já Assis Brasil, em discurso proferido no Congresso Nacional em
20 de agosto de 1929, declarava que, em 1923, seu pensamento era que,
uma vez afastado Borges de Medeiros do poder, era preferível que o pre-

46 o Rio Grande do Sul em revista. 1930.Porto Alegre, Globo, p. 14.


47 Leis, decretos e atos do Governo do Estado. 1930. p. 302.
48 Ibidem, p. 304.
49 Sá, Mem de. A politizaçSo do Rio Grande. Porto Alegre, Tabajara, 1973,
p. 73.

33
sidente do Estado não fosse dos libertadores, cuja agremiação ainda não
se achava suficientemente sedimentada.^®
Uma vez governador do Rio Grande, Getúlio Vargas representou
uma nova fase do governo do PRR no sul, utilizando novas técnicas no
sentido de um maior entendimento com a oposição. Ainda é Mem de Sá
quem relata a mudança de comportamento, que ia desde atos como o
convite aos libertadores para irem às recepções no palácio, até possibili
tar que a oposição conseguisse eleger Oscar Fontoura para intendente
de D. Pedrito, cidade tradicionalmente conhecida por ser reduto de ma-
ragatos e libertadores.^ ^
Outra atitude de Vargas que evidencia a mudança de orientação
do govemo quanto à oposição deu-se por ocasião das eleições para a
Assembléia Estadual em março de 1929. Batista Luzardo queixara-se
ao presidente do Estado que a propaganda dos libertadores havia sido
cerceada pelas autoridades de São Francisco de Paula. Em resposta â
reclamação da oposição, Getúlio demitira o delegado de polícia do mu
nicípio onde era intendente o Cel. Elisiário Paim, chefe republicano
prestigioso e irmão de Firmino Paim Filho, um dos líderes de destaque
do grupo que apoiava GetúUo.^ ^
Tais atos de conduta política, o recuo da ortodoxia positivista
após a saída de Borges, o atendimento dos problemas econômicos da
classe dominante pelo governo do Estado ou seu empenho em obter
concessões do govemo federal, o apoio aos órgãos de classe - foram
todos fatores que criaram um ambiente favorável para a aproximação
política das duas facções em que se dividia o Rio Grande.
Já por ocasião do banquete que a representação gaúcha ofereceu a
Getúlio no Rio de Janeiro, a 10 de dezembro de 1927, quando de sua
eleição para presidente do Estado, o líder Lindolfo Collor assim se
pronunciou, no discurso de saudação:

[. . . ] prezais, como todos nós prezamos, as belezas das


nossas convicções e sabeis respeitar, também, a inviolabilidade
das convicções alheias, E não vos atormenta, por isso mesmo, o
temor das lutas políticas da República [... ]Nascidos e forma
dos num ambiente de competições partidárias nós sabemos que
é, em grande parte, à presença do adversário que devemos a
nossa presteza, na luta, e que é a necessidade da luta que au
menta em nós o entusiasmo da arremetida e a constância na
50 Assis Brasil, Joaquim Francisco de. Atitude do Partido DemocráticoNacional
na crise da renovação presidencial para 1930-34. Porto Alegre, Globo, 1929.
p.68.
51 Sá, op. cit., p. 74.
52 Fontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e introd. de Hélgio
Trindade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. (Perfis Parlamentares 8) p.
168-9.

34
defesa do cendrio de civismo que é o Partido Republicano do
Rio Grande do Sul [. . . ] Combatemos porfiadamente pela vi
tória dos nossos ideais, mas não desejamos o extermínio dos
nossos adversários e nem quando com ele terçamos as nossas
armas lhes negamos a nossa consideração de homens. Será, por
isso, mesmo o vosso governo, Dr. Getúlio Vargas, dentro do
imperativo das nossas tradições, um exemplo de indispensável
firmeza nas convicções do vosso partido e de tolerânciaem re
lação a nossos adversários, ^^
O PRR acenava para a conciliação e a concórdia política, e Getú
lio Vargas, no seu discurso de agradecimento, fixou a necessidade de
''contar com o apoio de todos os rio-grandenses/' Apesar de candidato
de um partido, Vargas acentuava que governaria com este sem que os
compromissos partidários o fizessem esquecer sua tarefa de presidente
do Estado.^ ^ Está implícita, aqui, a preocupação de atenuar o sectaris
mo em função de princípios de concórdia, harmonia e mesmo uma
promessa de franquias públicas^ ^ e concessóes à oposição.
Por outro lado, o novo presidente do Rio Grande afirmava a sua
compreensão do papel do Estado, não mais se limitando "ao conceito
de Spencer de mantenedor da ordem e distribuidor da justiça", mas sim
um papel interventor, "amparando as indústrias, fomentando as rique
zas, estimulando a cultura, regulando o trabalho".^ ^
No discurso pronunciado por ocasião da instalação do II Congres
so de Criadores em Porto Alegre, a 28 de marçode 1928, Vargas enfati
zava que, para que os problemas econômicos fossem solucionados, era
preciso que houvesse paz e união no Rio Grande. Referia Getúlio:
As ideologias políticas que não tiverem por base de sua
organização a solução de problemas econômicos dificilmente
poderão subsistir. ^''
É preciso que se enquadre toda esta articulação de formação da
"Frente Única" nos marcos de um Rio Grande onde, em 1923, se de
monstrara a viabilidade política de oposição, não mais controlada in
questionavelmente pela situação. Dentro deste contexto, é possível en
tender que a divisão intema que existia desde o início da República en
fraquecia o Rio Grande do Sul, como grande estado, colocando-o fora
das pretensões ao poder central.
Os libertadores, por seu turno, haviam crescido em termos de

Correio do Povo, Porto Alegre, 10 dez. 1927. p. 1.


54 Ibidem.
55Correio do Povo, PortoAlegre, 11 dez. 1927. p. 1.
56 Correio doPovo, Porto Alegre, 10dez. 1927. p. 1.
57 Segundo Congresso de Criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 abr.
1928. p. 8.

35
prestígio e potencialidades de açffo desde 1923. Em 1927, Assis Brasil
colocara a Aliança Libertadora em coligaçâ:o com o Partido Democráti
co de São Paulo, formando um partido de oposição de âmbito mais
abrangente: o Partido DemocráticoNacional.^®
Tanto as articulações da oposição gaúcha, quanto a orientação da
facção política dominante no Estado, que desembocaram na formação
da Frente Única Gaúcha (FUG), em 1928, e na Aliança Liberal, em
1929, devem encontrar significância dentro do contexto, já anteriormen
te analisado neste capítulo, da crise da República Velha brasileira. A
queda da Primeira República foi marcada pelo esgotamento da política
agrário-exportadora de defesa do café, pela insatisfação social, pela ci
são das oligarquias regionais ligadas às economias do mercado interno
e pela introdução do elemento militar como grupo de pressão atuante e
contrário ao regime.
Na postura de Rowland, a alternativa que surgiu dentro do sis
tema para que a cisão das oligarquias se efetivasse e a situação se preci
pitasse foi a "pacificação do Rio Grande do Sul" após as eleições esta
duais. A partir daí, o Rio Grande do Sul tornar-se-ia o pólo de agrega
ção da dissidência oligárquica, facilitada a sua emergência no cenário
nacional pela formação da Frente Ünica.^ ^
Concluindo a análise, dentro da postura adotada, considera-se
ter sido essencial para a unificação política do Rio Grande a atuação
de Vargas com relação à pecuária gaúcha, indo ao encontro de suas ne
cessidades. Aliás, em todas as iniciativas de renovação, atitudes do go
verno e congressos realizados, ambas as facções políticas estiveram la
do a lado, defendendo o setor da economia que representavam.
Satisfeitos seus interesses econômicos de classe e acenando-se
para a sua integração aos quadros do poder instituído, a pacificação
política estava preparada.
Sendo, na realidade, integrantes de uma mesma classe
dominante, não haveria razão mais forte, de cunho ideológico,
que as separasse, uma vez que possuíam os mesmos interesses
econômicos.

Nesta medida, a FARSUL, na abertura do IV Congresso Rural em


1930, posicionava-se, assim como todos os órgãos de classe do Rio
Grande, em apoio à FUG e à candidatura aliancista.^ ^
A pacificação interna do Rio Grande, possibilitadora do seu in-

58 Love,Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo, Perspectiva, 1971. p. 242.


59 Rowland, op. cit., p. 13.
60 Pesavento, op. cit, p. 264.
61 Anais.. ., op. cit.

36
gresso na concorrência presidencial, foi louvada por parlamentares, li
bertadores e republicanos.
Em discurso proferido no Congresso Nacional em 20 de agosto de
1929, Assis Brasil refutava a apreciação que estava sendo feita aosliber
tadores rio-grandenses, que haviam-se unido aos republicanos em nome
de interesses regionais:
11

O argumento é grosseiro efraco. Não é o interesse regio


nal e muito menos a preferência pelo homem que ocasional
mente exerce a govemação do Estado o que explica a súbita
convergência de todos os rio-grandenses [. . . ] Os rio-granden-
ses uniram-se porque deparavam —todos ao mesmo tempo —
um ideal que era comum a todos, fossem quais fossem as apa
rências que os dividiam Onde a mesma circunstância não se
der, a conclusão tem de ser outra. A obediência ao ideal,
quando ele arranca dos mais profundos elementos da consti
tuição do povo e da raça, como é o nosso caso, domina todas
as considerações secundárias, E a tradição de culto à liberdade
política é a dominante da nossa história. Todos nascemos re
publicanos, ainda que eventualmente alguns se tenham disper
sado na teia superficial dos acontecimentos.
Encarando a Frente Única como uma verdadeira "fatalidade his
tórica", eivada da soUdez com que princípios políticos ficaram arraiga
dos na formação rio-grandense, Assis Brasil justificava a união pelapre
sença de um ideal mais forte. Damesma forma, encarava a participação
gaúcha na Aliança Liberal: no seu entender, os governadores dos estados
aliancistas ergueram-se em nome de princípios e do seupovo. "A esco
lha dos governantes, tal como vinha se dando, dava-se por designação e
não por eleição. Havia total desprezo à opinião pública, sendo pois um
método vicioso que prejudicava a vigência da democracia".
Por seu lado, João Neves da Fontoura, articulador político da re
volução, em agosto de 1922,no Congresso Nacional, também justificava
a união política do Rio Grande, identificando-a nos seus princípios,
com os anseios do povo brasileiro que se cristalizavam na candidatura
da Aliança Liberal.
Já não são dois partidos que se abraçam na ponteira de
suas idéias: são as famílias, as escolas, as usinas, as estâncias,
enfim, um povo inteiro, que fala pela minha palavra para dizer
que quer a candidatura gaúpha, se elafor a candidatura do Bra
sil Jamais fomos tão grandes como nesta hora histórica, em
que, obrigados e com as bandeiras das nossas idéias abatidas,
vimos diante da Pátria inteira, que toda ela merece o nosso res
peito acendrado (apoiados), dizer que há um Brasil maior, es-
62 AssisBrasil,op. cit., p. 80-1.
63 Ibidem, p. 10-22.

37
tranho às facções e às pessoas: é o Brasil das idéias, o Brasil de
amanhã.^
Prosseguindo no mesmo tom grandiloqüente, em setembro de
1929, João Neves complementava a sua idéia sobre a formação da FUG,
negando o seu conteúdo regionalista e enfatizando a presença de uma
grande causa como fator fundamental de união dos libertadores e repu
blicanos. O Rio Grande não se constituía no momento num só partido
organizado, mas sim numa aliança que abrigava duas correntes de prin
cípios, irmanadas em função de uma idéia mais alta. Iguahnente, nega
va a possibilidade dos libertadores apoiarem Getúlio por bairrismo, mas
sim por reconhecerem nele um liberal autêntico, homem capaz de gran
des atos políticos.^ ^
Na postura de João Neves, enquanto que o panorama político
brasileiro se degradava cada vez mais, sob a força da violência, da arbi
trariedade e da fraude, o Rio Grande do Sul, em contraste, apresenta
va-se dentro dos critérios do mais puro liberalismo, pretendendo ven
cer nas urnas mediante uma eleição honesta.
Fique a nação com estas palavras gravadas na sua cons
ciência: a Aliança Liberal nasceu de uma idéia. Vive não só
pelo apoio moral e político dos que a compõem [. . .] e dos
que, dia a dia, nela se alistam, senão também pelo conjunto
de objetivos doutrinários, que são a sua exclusiva razão de
existir.

Assumindo cada vez mais, em seus discursos, um tom inflamado e


revolucionário, no comício realizado no teatro Princesa Isabel, em Reci
fe, a 27 de janeiro de 1930, João Neves chegaria a afirmar as bases po
pulares da Aliança Liberal:

Ela não veio de cima, mas de baixo. Ela não se perde na


antipatia do individualismo estéril, mas socializa os seus rumos
e é, queiram ou não queiram, um movimento de nascentes
populares e de objetivos populares. Ontem, os políticos deixa
vam-se conduzir pela audácia dos improvisadores de soluções.
Hoje, os homens públicos já se contentam em refletir no pos
to de comando as imposições da periferia.
Complementando a visão que a classe dominante gaúcha apresen
tava de si mesma, do momento histórico em que vivia e de sua atuação,
a publicação O Rio Grande do Sul em Revista, no ano de 1930, apresen
tava-se muito rica como fonte de estudo.

64 Fontoura, op. cit, p. 55.


65 Ibidem, p. 159-70.
66 Ibidem, p. 202.
67 Ibidem, p. 237.

38
o momento histórico é identificado como uma verdadeira "cruza
da para dignificação do regime", nunca se descuidando o Rio Grande do
seu "amor à Pátria" e de suas tradições gloriosas, que o convertiam no
paladino do "liberalismo". Além do claro sentido ufanista e de atribuir
ao Rio Grande o papel de regenerador do regime, nota-se a idéia de fa
zer apagar o período de dissídio político para glorificar a obra de unifi
cação que permitira atingir o Catete:
Volta agora, depois de uma seqüência de embates que se
parou em correntes opostas a família rio-grandense, a quietude
conjuntora das energias da raça. Elementos ontem dispersos,
repulsivos pelo ardor dos ideais sustentados [.. . ] realizam ho
je, aqui e ali, pelos pontos mais diferentes do Rio Grande, esse
milagre de união de almas que vaiasarcofagando a série de dis
sídios de outrora e pondo em cada coração o ânimo resoluto
[. . . ] para a vitória de uma causa justa. Postas em linha assim
as energias de um povo trabalhado pelo mesmo espírito de
concórdia e lealdade, o Rio Grande caminha para a integra
ção do seu grande sonho, mais forte do que nunca, porque
leva consigo sob uma bandeira única [. . . ] não a sua histó
ria de lutas internas, pois que estas ficaram no passado [. . . ]
mas a sua própria alma que carrega também a alma do Bra
sil [. . . ] Rio Grande, chegou a hora do teu sonho; não recua
nem estaca - marcha para a concretização do teu destino
[...r
O Rio Grande do Sul era apresentado quase como que impelido
por um destino histórico, chamado a participar porque "as circunstân
cias atuais da política brasileira o arrastam"^^. Neste sentido, cumpria,
por assim dizer, uma tradição gaúcha de socorrer a nação sempre que
fosse preciso.
A figura de Getúlio Vargas, por seu turno, era elogiada como go
vernante :

Vendo no Rio Grande do Sul uma fonte inesgotável de


energia produtora, mas compreendendo que esse esplêndido
manancial de forças só seriaaproveitado num ambiente seguro
de ordem e de paz, deu início à grandiosa obra de pacificação
da família rio-grandense. ®
Em termos gerais, esta era a visão que o Rio Grande, segundo a
ótica de sua classe dominante, representava a si mesmo e de seus atos;
uma unificação baseada na existência de princípios mais altos; a vivên
cia histórica gaúcha apontando no caminho do dever de participar e
acudir a nação nos momentos angustiosos; a tradição política liberal do
68 o RioGrande do Sul emrevista. Ano 1930. PortoAlegre, Globo, p. 4.
69 lbidem,p. 58.
Ibidem, p. 147.

39
Rio Grande do Sul; Getúlio Vargas encarado pelos republicanos como
depositário das maiores reservas morais; reconhecimento dos libertado
res para com o elemento que garantira eleiçõeslivres.
Todavia, por trás da visão que a classe dominante fazia circular
pela sociedade, estava a inserção do Rio Grande do Sul no contexto his
tórico de sua época: dentro da crise da República Velha, um Estado de
economia subsidiária, voltado para o mercado intemo, zona de um ca
pitalismo incipiente que se encontrava em discordância com a orienta
ção da política econômica nacional e com a hegemonia do grupo ca-
feicultor paulista no poder. É, indiscutivelmente, pelo prisma das dissi
dências regionais das oligarquias periféricas que deve ser entendida a
participação do Rio Grande na Aliança Liberal. É ainda em função des
te processo que se consubstanciava num projeto político que se deve
compreender as medidas econômicas de Vargas preparando a unificação
do Rio Grande. Não se quer, em absoluto, fugir à percepção que outros
fenômenos influíram no processo, tais como a diferenciação internada
sociedade brasileira, o surgimento de novosgrupos de pressão, a insatis
fação militar, etc., mas foge ao esquemadeste trabalho uma análise mais
demorada dos mesmos.
Dentro da perspectiva exposta, o Rio Grande, junto às demais oli
garquias periféricas aliancistas, disputou nas umas a presidência do Bra
sil, opondo ao nome do candidato oficial Júlio Prestes a chapa Getúlio
Vargas - João Pessoa.
O programa da Aliança Liberal era de molde a atrair as oligarquias
agrárias, inclusive o setor paulista cafeeiro, ligado ao Partido Democráti
co: apoio ao nordeste, através das obras contra a seca, manutenção da
política de defesa do café, mas extensão da política nutricionista a ou
tros produtos. A este respeito se pronunciava Vargas:
Pelo conhecimento que tenho da economia nacional e
pela direta experiência que fiz, quando Ministro da Fazenda,
estou convencido da necessidade da política de valorização dos
nossos produtos e amparo eficiente ao produtor. Outra não
tem sido, como se sabe, a minha diretriz, no governo do Rio
Grande, onde o que se tem feito assemelha-se ao direito
corporativo ou organização das classes, promovido pelo re
gime fascista, no período de renovação criadora que a Itália
atravessa, Não será diferente, é claro, na administração supre
ma da República, se lá me levar o voto dos meus concidadãos,
observadas as exigências e necessidades do meio maior e as pe
culiaridades de cada Estado, ^

^1 Em importante entrevista, o candidato liberal Getúlio Vargas expõe os pontos


essenciais do seu programa administrativo. Correio do Povo, Porto Alegre, 11 ago.
1929. p. 7.

40
Além destasidéias, que se evidenciaram mais claramente no perío
do da República Nova, outras foram fixadas na plataforma da Aliança
Liberal, publicada em dezembro: reformajudiciária e eleitoral, represen
tação minoritária e voto secreto, anulação dalei do estado de sítio e da
censura, anistia aos revoltosos dos anos 20, legislação social, idéias de
reforma agrária, etc7^
Incluindo tão variados itens, o programa congregava as mais varia
das tendências. Realizadas as eleiçOes e derrotado o candidato da oposi
ção, ainda por algum tempo as lideranças discutiram a possibilidade ou
não da revolução. Com a adesão de altos comandos militares e o apoio
da oficialidade tenentista, venceu a tendência do grupo liderado por
Flores da Cunha, João Neves da Fontoura e Osvaldo Aranha, que pro-
pugnava pelo recurso às armas. Tanto Love^^ como João Neves da Fon
toura^"* enfatizam as hesitações de Getúlio, seu caráter dúbio e a sua
tendência à protelação. Dentro do ponto de vista adotado, importa con
siderar tais atitudes inseridas dentro do jogo político das oligarquias e
coerentes dentro do projeto mais amplo de conquistado poder central.
Apesar dos avanços e recursos do candidato liberal, suas atitudes aca
bam por se coadunar com as expectativas que a classe dominante gaú
cha esperavanaquele impasse da vida política do país.
A revolução, eclodida a 3 de outubro, conduziu o Brasil por no
vos caminhos para enfrentar realidades diferentes das até então vigentes
na República Velha que se extinguia.

72 Love,op. cit., p. 249.


73 Ibidem, p. 254-60.
74 Fontoura, João Neves úsl. Memórias, Porto Alegre, Globo, 1963. v. 2.

41
2. O BRASIL PÓS-30: NOVAS DIRETRIZES NUM MOMENTO
DE TRANSIÇÃO

A crise política que se manifestou na década de 20 e se expressou


no movimento revolucionário de 1930 trazia, no seu bojo, uma situação
estruturalmente desequilibrada.^ O café, como base de sustentação da
economia brasileira, vinha experimentando crises sucessivas, que a po
lítica de valorizaçâ:o visava atenuar. Aos poucos, chegava ao fim a hege
monia absoluta do setor cafeeiro, na medida em que a estrutura monta
da ia alargando suas brechas. Demonstrava-se a inviabilidade da manu
tenção do modelo agroexportador que se esgotava como forma de
acumulação interna de capital. Em outras palavras, o desenvolvimento
econômico do capitalismo - entendido sempre como processo de acu
mulação privada de capital^ —cumpria uma etapa histórica no país. O
café fora capaz de internalizar o processo de acumulação, mas se obs-
taculizava em si próprio: seu funcionamento impedia a generalização
pelo país deste processo.
No meio dos acontecimentos revolucionários que acabaram
por fazer cair por terra a Primeira República, a crise de 29 atingiu o
Brasil. Na opinião de Fausto,

1 Fausto, Boris. A revolução de 1930. SãoPaulo, Brasiliense, 1972. p. 93-4.


^lanni, Octávio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. p. 6.
A crise não produziu a revolução, como uma espécie de
curto circuito em um sistema de pleno funcionamento e é
possível mesmo especular sobre a eventualidade da queda da
República Velha, independente dela. Mas as contradições da
economia cafeeira, das instituições que consagravam seu pre
domínio ganharam outra dimensão [...] A crise acelera as
condições que possibilitaram o fim da supremacia da burgue
sia do café, ao produzir o desencontro entre a classe e seus re
presentantespolíticos.^
Acentuando o papel da "Depressão Econômica Mundial" no mo
mento em que se dá a Revolução de 1930, lanni coloca:
Não só pelos efeitos ''catastróficos'* que ela provocou na
cafeicultura e, por conseqüência, no sistema político-econômi
co brasileiro, em conjunto, mas também pelo fato de que "pro
duziu** uma consciência mais clara dos problemas brasileiros.
Todas as classes sociais, inclusive a própria burguesia associada
à cafeicultura, foram obrigadas a tomar consciência - nova
mente e de modo mais completo - das limitações econômico-
-fínanceiras inerentes a uma economia voltada fundamental
mente para o mercadoexterno.^
Eixo de sustentação da economia nacional, gerador de recursos
que eram distribuídos pelo restante do contexto nacional, a crise do ca
fé desmantelava toda a vida do país, que se via flagrantemente à mercê
das oscilações do seu grande único produto lançado no mercado inter
nacional.
Referem Villela e Suzigan:
Quando a depressão econômica mundial atingiu o Brasil
em fins de 1929, a economia já se encontrava em crise. De fa
to, aos estoques de café acumulados nos anos imediatamente
anteriores pela política de defesa permanente daquele produ
to, veio juntar-se a perspectiva de uma safra recorde em 1929-
•30.Os preços começaram a cair, acentuando-se a queda com a
crise internacional de outubro. Embora fosse mantido o saldo
da balança comercial, a paralização da entrada de capitais au-
gurava dificuldades com o balanço de pagamentos. Na realida
de, o saldo da balança comercial nos últimos anos não chegava
sequer à metade dos pagamentos da dívida externa, sem contar
remessas de particulares e imigrantes. Era iminente a crise no
mercado cambial. ^
Evidencia-se aqui o fenômeno referido no capítulo anterior, me
diante o qual a intermediação comercial e financeira externa consumia
3 Fausto, Cp. cit, p. 97-8.
4 lanni, op. cit., p. 18.
5 Villela, Anibal Villanova & Suzigan, Wilson. Política do governo e crescimento
da economia - 1889-1945. Riode Janeiro, IPEA/INPES, [s.d.] p. 467.

43
todo o saldo da balança comercial.
As reservas de ouro que o Brasil possuía advinham da exportaçâò
e dos investimentos estrangeiros no país. Com a crise econômico-fínan-
ceira eclodida em 1929, verificou-se tanto a retração do mercado inter
nacional, com a conseqüente queda de preços e da exportação, quanto
o recuo dos investimentos estrangeiros no Brasil, determinando o fim
do crédito e das reservas/ouro da Caixa de Estabilização criada por
Washington Luís.
Carone fez uma análise das exportações de café do Brasil nos anos
de 1925 a 1937, verificando que a tonelagem e o valor em mil réis se
mantiveram praticamente os mesmos.Por uma quantidade de 13.482.000
sacas de café valendo 2.900.092 contos de réis em 1925, o Brasil passou,
em 1937, à exportação de 12.123.000 sacas no valor de 2.159.431 con
tos de réis. Já com relação ao valor da exportação em libras-ouro, a que
da foi surpreendente: tendo auferido a quantia de 74.032.000JC em
1925, passou para 17.887.000£em 1937! Refere o autor: "a explicação
está na desvalorização da nossa moeda e na queda do câmbio, o que dá
a ilusão interna de que o preçosemantém".®
Tal sistemática evidencia a encampação, por parte do govemo re
volucionário, da política de salvação do café. O Conselho Nacional do
Café foi criado em 1931 para a compra do produto, com o fim de esto
cá-lo ou jogá-lo ao mar, enquanto que, paralelamente, o govemo emitia
e realizava a depreciação cambial, para evitar o desestúnulo daquela ati
vidade que era a base da economia brasileira.
Desta forma, a produção continuava crescendo, a exportação se
mantinha mediante retenção do estoque e a queda do valor da moeda
brasileira atenuava, internamente, a baixa do preço do café no mercado
internacional.
A solução, contudo, tinha os seus problemas: com tais medidas,
mais a propaganda empreeendida pelo govemo para a conquista de no
vos mercados, mantinha-se a produção crescendo. A desvalorização da
moeda, por seu tumo, transferia para a coletividade o ônus da sustenta
ção do produto.
Instalado o Govemo Provisório pós-revolucionário, com Getúlio
Vargas na chefia, o problema econômico fundamental do novo regime
foi procurar contornar a crise que, partindo do setor agroexportador,
se propagava pelo país inteiro.
Realizada a revolução por uma coalisão formada pelas oligarquias
periféricas, exército e segmentos médios urbanos, havia uma gama varia
da de interesses a satisfazer.
Dentre eles a própria oligarquia cafeicultora, descontente com a
6 Carone, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo,
DIFEL, 1974. p. 25.

44
política econômica levada a efeito por Washington Luís, que, aferra-
do à sua política econômico-financeira de estabilizaçíTo cambial, negou-
-se a atender às solicitações dos cafeicultores, nffo emitindo e abando
nando a política do café. Os cafeicultores, sendo mantida uma taxa fi
xa de câmbio, recebiam cada vez menos, á medida em que, no exterior,
caíam os preços do produto. Recusando-se a tomar medidasque impe
dissem a execução das hipotecas dasfazendas, nem concedendo crédito
ao Instituto do Café de São Paido', os cafeicultores, em grande parte,
haviam deixado de apoiar o presidente e seu sucessor, que prometia
levar adiante sua política.
Às vésperas da Revolução, os cafeicultores paulistas se pronun
ciavam numa revista gaúcha:

A lavoura não pode ficar à mercê de valorizações efême


ras. É precisoque se lhe dê um aparelhode defesapermanente.
O problemado cttfé não pode ser indefinidamente um proble
ma administrativo, tem que ser mais: precisa ser um problema
mercantil [...] Dominadora como sempre, a políticaabsorve^
tudo. Quem pensa quem ordena, quem delibera é o gpvemo. E
ele o Instituto. A lavoura paga [. . .] É a única prerrogativa
que se lhe não arrebata [. . . ] Outra coisa tem que serfeita,
outros homens têm que ser postos na alavanca do comando,
o espírito mercantil tem que tomar o lugar do espírito polí
tico [. . . ] Ouçam-nos ou não nos ouçam, estamos cumprindo
o nosso dever de paulistas, amigos da lavoura, brasileiros cio
sos daprosperidade coletiva.^
Os interesses do café, realizada a Revolução, necessitavam ser
atendidos, não só porque ele representava a mola mestra da economia
brasileira, como porque se demonstrava ser impossível governar sem o
apoio dosetor econômico mais importante dopaís.'
O problema econômico da nação não se esgotava, contudo, com o
café. Havia as economias regionais e os interessesdas oligarquias perifé
ricas a serem atendidos. Cada região,entretanto, apresentavaproblemas
específicos, particulares à situação de cada área, afetada em maior ou
menor grau pela crise.
Nestas zonas periféricas, nenhuma das oligarquias se apresentava
com força suficiente para substituir-se à burguesia paulista como predo
minante e hegemônica no cenário nacional. Não se tratava, no caso, de

I Skldmoie, Thomas.Brasil de Getúlío Vargas a CasteüoBranco. Rio de Janeiro,


Saga, 1969. p. 30.
8 O principal produto do Brasil à mercê da política. O Rio Grande em revista.
Ano 1930. Porto Alegre, Globo. p. 62.
9 Rowland, Robert. Qasse operária e estado de compromisso. EstudosCEBRAP 8.
Rio de Janeiro, Brasiliense, jan. fev. mar. 1974. p. 15.

45
fazer substituir-se a hegemonia paulista pela gaúcha na condução do
poder central.
Porque nenhuma fração da classe dominante nacional se achava
com condições de exercer com desenvoltura o predomínio e a hege
monia no país, não se quer dizer que os interesses a ressalvar não fos
sem os da burguesia nacional, como um todo, classe dominante que
era.

Portanto, ligada à problemática econômica herdada pelo governo


recém-instituído —salvar o país da crise —, achava-se a questão de en
contrar uma estrutura institucional que resolvesse o problema político
principal: como assegurar o domínio da classe dominante, reconciliando
os seusinteresses divergentes.^ ®
O processo que se instalou pós-30 conduziu a expansão do capita
lismo no país sob a forma de um novo modo de acumulação, baseado
na estrutura produtora industrial. Tratando-se, pois, da continuidade
do capitalismo enquanto processo, isto implicava, necessariamente, a
manutenção da burguesia como classe dominante. É evidente que, veri
ficando-se o caso de um país de capitahsmo tardio, surgido dentro dos
marcos da dependência e com grandes diversidades regionais, em termos
de atividade econômica e nível de desenvolvimento, haviagerado varia
dos grupos dentro da classe dominante nacional, que se constituíram
nas oligarquias, base da estrutura de poder nos quadros da Velha Repú
blica.
Conforme a região e o tipo de atividade, estas oligarquias assu
miam uma maior ou menor feição burguesa, correspondendo ao maior
ou menor estágio do desenvolvimento do capitalismo. ^
No conjunto de todos estes interesses e problemas a atender, a ní
vel de classe dominante, impunha-se a constituição de uma nova estru
tura do poder. Nela, afastava-se do exercício direto do poder o setor ca-
feicultor, sem que isso implicasse a sua substituição automática por
outro.
Neste sentido é que ganha força a idéia da margem de autonomia
relativa do Estado, na medida em que, em determinadas situações histó-
rico-objetivas, nenhum setor se encontra em condições suficientes para
dominar e se sobrepor aos demais.
Os setores que ocupam o centro da estrutura de dominação, em
nome da própria preservação de sua domináncia, cedem espaço na estru
tura de poder a setores cuja extração social pode coincidir ou não com
aquele centro de dominação.
A situação até agora analisada aborda apenas os interesses da clas
se dominante. Todavia, contam neste processo as insatisfações das ca
io Rowland, op. cit, p. 19.

46
madas médias urbanas que haviam atuado como grupo de pressâò e do
proletariado que, já organizado, ameaçava como força desagregadora os
interesses capitalistas a manter.
Como se comportou, pois, o novo govemo com relaçá^o ao pro
cesso econômico em crise e às classes sociais envolvidas?
O Estado que se constituiu durante a chamada República Nova
tomou medidas concretas para atenuar os efeitos da crise de 1929 sobre
o café. Ao mesmo tempo, buscou diversificar a produção agrícola nacio
nal, para eliminar os efeitos desastrosos da dependência exclusiva de um
únido produto de exportação. Em especial, pode ser destacado o caso
do algodão, que ascendeu na pauta das exportações. Acordos foram fei
tos com outras potências tais como a Alemanha e o Japão, que passa
ram a comprar do Brasil. No que diz respeito à indústria, não parece ter
sido ela preocupação consciente, meta estabelecida do governo nesta
época. Foram tomadas medidas, inclusive, contra a indústria , tal como
a proibição da importação de máquinas em 1931, ou o ''Acordo de Re
ciprocidade" com os Estados Unidos em 1934, mediante o qual o
Brasil reduzia tarifas alfandegárias para os produtos norte-americanos,
desestimulando a indústria nacional, em troca da promessa dos Estados
Unidos em manter livres de direitos de entrada no país o café e a lavou
ra brasileira.^ ^ Preocupado em reter divisas ou com a manutenção de
mercados para os produtos de agroexportação, indiretamente, com tais
medidas, o governo prejudicava a indústria nacional. Ao longo do pro
cesso instalado p6s-30, particularmente após 1937, com o avanço do
desenvolvimento capitalista, a indústria se impôs como a nova forma de
acumulação de capital. A industrialização se imporia não por ser intento
do govemo, de forma plenamente configurada já na etapa da República
Nova, mas realmente por ser a única saída historicamente possível den
tro dos quadros do capitalismo^ ^, considerada a inviabilidade da restau
ração do modelo agrário-exportador de desenvolvimento vigente pré-30.
A expressão característica para explicitar este tipo específico de
Estado que se constitui —Estado de Compromisso —exprime uma si
tuação em que, na ausência de uma classe que sozinha empolgue o
poder, com absoluto predomínio sobre as demais, se constitui um
compromisso entre frações da classe dominante. Classes dominadas, no
caso, ficam à margem deste compromisso e, na realidade, o pacto que se
firma entre os setores dominantes é justamente para assegurar a sua su
premacia sobre o contexto social. Para tal, estabeleceu-se a necessidade

11 Bandeira, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro, Civi
lização Brasileira, 1973. p. 242-3.
12 Vianna, Luís Wemeck. Liberalismo e sindicato no Brasil Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1976.

47
de uma elite dirigente, mediante a qual elementos oriundos das diferen
tes frações da classe dominante ou elementos de outras classes sociais,
cooptadas pelo aparelho do Estado, exercem a funçâò política de pre
servar os interesses históricos da classe burguesa como um todo. É por
aqui que se deve entender a autonomia relativa do político em rela
ção ao econômico, mas tal autonomia, no caso, "não eliminava o fato
do Estado continuar sendo o guardião de uma classe econômica e so
cialmente dominante"^
Não se trata, em absoluto, de caracterizar um "vazio de poder":
o poder, no caso, é ocupado por setores da classe dominante, com par
ticipação de elementos da classe média, guindados ao aparelho de Es
tado, que se destinam a manter os interesses globais da burguesia e do
capitalismo.
É neste contexto que pode assumir um significado preciso a afir
mação de lanni^^, ao caracterizar o Estado que se constitui pós-30 co
mo um "Estado burguês": na medida em que proporcionará, ao longo
do tempo, a expansão do modo capitalista de produção no país e que
responderá às exigências de manutenção da burguesia como classe do
minante.
Vigorando uma nova estrutura política, a institucionalização do
novo papel do Estado seria, contudo, tarefa a construir e a impor sobre
toda a nação.
Durante todo o período do Governo Provisório, tratou
simultaneamente de criar os alicerces de uma nova estrutura
política, através dos interventores, e de neutralizar a oposição
que lhe poderia ser movida pelos antigos detentores do poder
político. Estes reclamavam providências para defender os seus
interesses na conjuntura econômica instável do início da déca
da, e a resposta compatível com a necessidade política de man
ter a independência do executivo foi a criação de órgãos espe
cializados no Estado I ..] A expressão de interesses regionais
ou estaduais através das bancadas no legislativo substitui-se a
expressão de interesses setoriais através de distintos órgãos do
executivo, que desta forma assumiu o papel de mediador en
tre os interesses divergentes de setores da classe dominante. ^^

A ênfase na proliferação dos "conselhos", "institutos" e "sindica


tos" encaminhava, deste modo, a resolução dos problemas e satisfação
de interesses dos diferentes setores da classe burguesa nas suas relações
com o poder público, bem como atendia á preocupação de diversificar a
estrutura econômica brasileira.

13 Vianna, op. cit.,p. 118.


14 lanni, op. cit., p. 13-4.
15 Rowland, op. cit., p. 17.

48
As camadas médias urbanas, por seu tumo, sentir-se-iam partici
pantes na nova estrutura montada na medida em que ingressavam nas
fileiras da grande ampliaçâ:o da máquina burocrática estatal. Quanto ao
operariado, foram institucionalizadas pelo Estado as relações capi
tal Xtrabalho, mediante a elaboração de uma legislaçâ:o social, que im
plicava a subordinaçâ^o e controle do trabalhador aos interesses da
acumulação capitalista.
Tanto o corporativismo como o trabalhismo devem ser, pois,
entendidos como elementos despolitizadores e, portanto, úteis para a
vigência de um Estado autoritário, com seu executivo cada vez mais
fortalecido.
O Estado, ao mesmo tempo em que desarma a possibilidade de
ação das classes trabalhadoras, contornando as divergências, assume a
posição da defesa do capitalismo e, por extensão, da burguesia como
um todo. Antes de 1930, apresentava-se o quadro de um governo oli-
gárquico e de uma fração das camadas dominantes agrárias; após 1930,
encontrava-se um governo para as "burguesias", no atendimento aos
problemas nacionais. À noção de um governo constituído segundo in
teresses de uma oligarquia substituiu-se a vigência de uma nova estru
tura política, onde a intervenção do Estado na Economia revelou-se
cada vez mais, regulamentando todos os fatores. No decorrer deste
processo, a indústria iria se afirmando como a nova e predominante
forma de acumulação de capital.^ ^
Dentro de um contexto onde se dava, cada vez mais, a projeção
do poder central em detrimento da estrutura oligárquica do poder e em
que se diversificava a estrutura econômica brasileira como um todo,
surgia a noção de integração do mercado nacional. A partir desta pers
pectiva, as economias regionais, baseadas em artigos de subsistência
agropecuários, eram chamadas a colaborar para suprir o abastecimento
interno do país, na sociedade urbano-industrial que se desenvolvia.^^
O Rio Grande do Sul, tradicional estado de economia periférica, for
necedor do mercado interno brasileiro, aparecia com um sentido pre
ciso, colaborando para a estruturação deste novo modo de acumula
ção de capital que se gerava e onde o setor agropecuário tinha o papel
de fornecer alimento a baixo preço.
É evidente que tal processo descrito não seconstituiu no estreito
limite de 1930 a 1937, marco escolhido para a efetivação deste traba
lho, nem tal projeto político ou programa de desenvolvimento econômi
co apareceu como forma consciente e acabada antes da instalação do

16 Oliveira, Francisco de. Critica da razão dualista. São Paulo, Brasiliense, Estu
dos CEBRAP 2, 1972. p. 9.
17 Ibidem, p. 15.

49
Estado Novo, mas é no bojo da estruturação desta nova forma de me
diação entre o político e o sócio-econômico que deve ser apreciada e
analisada a crise da pecuária gaúchae as articulações da classe doihinan-
te rio-grandense ao nível da política.

50
3. A CRISE DA PECUÁRIA GAÚCHA NO PERÍODO
DISCRICIONÁRIO (1930 - 1934)

3.1 —Asdimensões da crise (1930 -1932)

Ao se iniciar a República Nova, o Rio Grande do Sul ocupava a


posição periférico-dependente mais importante do país, com sua econo
mia fundamentalmente baseada na agropecuária abastecedora do merca
do interno nacional e, secundariamente, do comércio internacional.
Durante a República Velha, havia-se consolidado um tipo especí
fico de desenvolvimento para o contexto sulino, baseado na salvaguarda
dos interesses da classe dominante regional e na consagração do papel
de "celeiro do país" atribuído ao Rio Grande.
O governo instalado no Rio Grande do Sul pós-revoluçSo de 1930
mantinha a defesa desses interesses, ocupado o poder que fora por ele
mentos da oligarquia regional. Como interventor federal, ocupou o car
go o Gen. José Antônio Flores da Cunha, ficando com a Secretaria da
Fazenda José Antunes Maciel, ambos ligados ás atividades agropecuárias
no Estado. Não se repetiu, a nível regional, a relativa independência do
político com relação ao econômico, tal como no centro, na medida em
que a mesma classe que antes ocupava a hegemonia política e a predo
minância econômico-social conservou os seus postos, manifestando-se
apenas, em alguns casos, a ascensão de novos nomes.
Refere Müller que, dentro deste contexto econômico, a classe do
minante periférico-dependente tendia a reproduzir suas condições de
existência. Neste caso, os interesses fundamentais a serem preservados
eram os da agropecuária e, na opinião do autor, o modelo escolhido pa
ra a trajetória de desenvolvimento sulino operava como possibilitador e
inibidorao mesmo tempo.^
Oportunizava-se, no bojo do próprio modelo, a existência de uma
camada industrial, mas sempre submissa, no caso, aos agropecuaristas
que constituíam o grupo dominante no Estado. Tanto ao nível central
como ao nível local do país, verifícava-se,até então, uma tendência que
impelia ao capitalismo rural. A perspectiva histórica gaúcha se concen
trava pois, em encontrar saídas para a agropecuária.
Não cabe, nos limites deste trabalho, analisar o comportamento
da agricultura capitalista frente a crise pós-30 e sua busca de soluções,
ou as atribulações da agropecuária colonial, tradicionalmente fornece
dora do centro do país dos gêneros de subsistência.
O foco da análise é o setor ainda predominante no estado —a pe
cuária gaúcha, colhida pelos efeitos da crise de 29 nos anos iniciais da
República Nova.
O charque, forma arcaica mas ainda fundamental de aproveitamen
to da carne em mãos de rio-grandenses, experimentava um decréscimo
na exportação^:

Anos Tonelagem
Valor Preço por (]^uüo
(em cruzeiros) (em mil reis)

1927 61.411 73.530.323:00 1$397


1928 53.836 97.220.900:00 1$805
1929 45.879 104.713.680:00 2$283
1930 35.695 80.273.472:000 2$248
1931 32.385 61.670.330:000 1$694
1932 40.874 69.556.363:000 1$701

É possível observar o declínio do preço do charque nos mercados


do norte, apesar da atuação do Sindicato dos Charqueadores, que fora
criado com o intuito de estabilizar o seu preço, racionalizando a expor
tação.

1 Müller, Geraldo. Periferia e dependência nacional São Paulo, USP, 1972.


p. 127. (Tese de mestrado, mimeografada)
^ Dados retirados a partir de: Süva, Austriclínio G. da & Guerra, Aldrovando.
Exportação de charque no Rio Grande do Sul Porto Alegre, Secretaria de Admi
nistração, Departamento Estadual de Estatística, 1959. p. 9.
Pimentel, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos. [s.l.] Livraria Continente [s.d.]
p. 144.

52
o Sindicato dos Charqueadores, que figurou como segundo ex
portador do estado em 1929, num total de 42 exportadores, só suplan
tado pela firma Joâ:o Souza Mascarenhas & Cia., passou, nos anos de
1930 a 1932, a figurar em primeiro lugar. Enquanto para os anos de 30
e 31 a firma de Mascarenhas ocupava o segundo lugar na exportação, fi
cando o terceiro com a Cia. Swift do Brasil, no ano de 1932 o segundo
lugar foi ocupado pela Swift, o terceiro pela firma Luís Loréa, seguidos
porJ.S. Mascarenhas em quarto e Cia. Armour do Brasil em quinto.^
Importa atentar não só para o fato do Sindicato galgar o posto de
primeiro exportador, mas para o dado da elevada exportação das com
panhias estrangeiras estabelecidas no estado, que passaram a competir
com as charqueadas na fabricação do tradicional produto gaúcho.
Os frigoríficos no Rio Grande continuavam a operar com capaci
dade ociosa^ sendo ainda suplantados pelos estabelecimentos saladeiris'
no que toca à matança. É possível obter-se a comparação pelos dados
abaixo"*:

Matanças de bovinos Frio e conserva


Anos
para charque (em %) (em %)

1929 77,25 22,75


1930 57,26 42,74
1931 65,09 34,91
1932 82,44 17,56
1933 84,26 15,74

A crise de 29, marcando a retração mundial dos mercados e a que


da dos preços, iria ferir a fundo a indústria frigorífica. A manifestação
da crise na indústria do frio no estado pode ser observada através do
abate do frigorífico Armour, nos anos de 1930 a 1933, de bovinos e
ovmos

BOVINOS

Anos Novilhos Vacas Terneiros Gado cria Total

1930 140.848 38.863 35.545 _

215.256
1931 59.746 6.850 40.135 721 107.452
1932 64.546 15.178 31.009 1.822 112.555
1933 60.589 14.246 21.684 — 96.519

3 Sindicato dos Charqueadores do Rio Grande do Sul.Estatística de exportação


de charque pelos portos de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, anos de 1929
a 1932. Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes.
4 Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Departamento de Estatística.
5 Arquivo Swift-Armour S.A. Santana do Livramento.

53
OVINOS

Anos Capões Ovelhas Cordeiros Total

1930 19.281 640 125.422 145.343


1931 12.664 859 144.944 158.467
1932 212 300 80.837 81.349
1933 558 — 45.345 45.903

No conjunto, o Frigorífico Armour teria, nos anos de 1930 a


1933, demonstrado um acentuado declínio:
1930 —360.599 cabeças
1931 —265.919 cabeças
1932 —193.904 cabeças
1933- 142.422 cabeças
No que diz respeito à exportação de carnes frias de todo o Rio
Grande, os dados para a exportação de carne bovinacongelada e de car
ne bovina em conserva também atestam o declínio da atividade dos fri
goríficos^ :

CARNE DE BOVINO CONGELADA

Anos Quilos Valor (em Cr$)

1930 47.777.333 64.228.624,00


1931 21.597.339 27.846.952,00
1932 8.436.852 11.419.654,00

CARNE DE BOVINO EM CONSERVA

Anos Quilos Valor (em Cr$)

1930 5.319.796 9.341.480,00


1931 2.297.493 4.194.986,00
1932 1.890.668 3.411.753,00

Para o contexto global brasileiro, igualmente é visível o declínio


da exportação de carnes congeladas ('frozenbeef") e resfriadasC*chilled
beef")'':

Anos Toneladas Valor (em réis)

1930 112.150 163.351:358$000


1931 74.023 101.096:896$000
1932 45.985 54.085:710$000

6 Pimentel,op. cit., p. 172.


^ Ibidem,p. 225.

54
No que tange às carnes enlatadas ("corned beef'), que, junto com
o "frozen beefhavia tido grande exportaçâ^o durante o período da Pri
meira Guena Mundial, verificou-se uma queda no ano de 1932, como,
aliás, praticamente todos os artigos de origem animal. Enquanto este
produto atingia, em 1919, a exportação de 25.398 toneladas, no valor
de 42.243:491$000, no início da República Nova apresentou os se
guintes dados®:

Anos Toneladas Valor (em réis)

1930 6.598 17.307:340$000


1931 4.374 12.110:706$000
1932 3.248 9.258:770$000

Manifestando-se a crise no frigorífico e na charqueada, ou seja,


nas duas formas de aproveitamento da carne existentes no Rio Grande
do Sul, a criação foi imediatamente atingida, premida pela necessidade
de dar vazão à matéria-prima básica do estado. A conseqüência imediata
deste processo foi a baixa do preço do gado.
Referindo-se à população pecuária dos anos de 1931 a 1933, o re
latório do interventor Flores da Cunha apresentou os seguintes dados^:
1931

Espécies Cabeças Valor (em réis)

Bovinos 10.246.090 1.158.687:500$000


Ovinos 7.351.000 188.407:400$000
Suínos 5.417.870 216.319:130$000
Eqüinos 1.489.120 122.357:980$000
Muares 387.960 58.050:940$000
Caprinos 135.790 1.903:210$000

Total 25.027.830 1.745.726:160$000

1932

Espécies Cabeças Valor (em réis)

Bovinos 10.056.240 1.086.073:920$000


Ovinos 7.467.270 179.214:480$000
Suínos 5.435.580 206.552.040$000
Eqüinos 1.475.720 121.009:040$000
Muares 384.230 57.634:500$000
Caprinos 134.770 1.890:000$000

Total 24.953.810 1.652.373:980$000

8 Ibidem,p. 226.
9 Relatório apresentado ao Sr. Dr. Getülio Dornelles Vargas, Presidente da Re
pública, e lido perante a Assembléia Constituinte do Estado pelo então Inter
ventor Federal Jpsé Antônio Flores da Cunha em 15 de abril de 1935. Porto
Alegre, Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1935. p. 87-8.

55
1933

Espécies Cabeças Valor (em réis)

Bovinos 10.025.140 1.073.581:410$000


Ovinos 8.272.780 186.160:660$000
Suínos 5.178.350 183.512:710$000
Eqüinos 1.484.930 113.332:060$000
Muãres 382.030 56.665:450$000
Caprinos 134.370 1.762:140$000

Total 25.477.600 1.615.014:430$000

Igualmente, outros produtos da pecuária sulina se viram afetados


pela crise de 31-32 que abalou o mercado internacional.
No que toca à lã, o seu comércio sofreu uma grande queda em
1932, segundo os dados fornecidos por Pimentel^ ®:
Anos Toneladas Valor (em réis)

1930 7.362 44.078:573$000


1931 6.991 37.791:352$000
1932 1.772 6.277:050$000

O ano de 1932 iria também marcar um baque no comércio inter


nacional de couros e peles, como se pode ver^ ^:

Anos . Toneladas Valor (em réis)

1930 56.290 142.303:017$000


1931 56.603 158.427:538$000
1932 38.346 95.197:254$000

Estabelecido assim o enquadramento básico no qual se inseria a


pecuária gaúcha no início da Segunda República, como se situavam os
representantes da classe dominante local frente á crise e qual era a sua
forma de ação?
Já no final do ano de 1930, os charqueadores reuniam-se em as
sembléia geral do Sindicato, sob a presidência de Rodolfo Moglia, para
debater problemas tais como a regulamentação da exportação de char-
que, uma vez que havia grande estoque nos mercados consumidores,
estando baixa a procura do artigo. Um outro problema aventado foi o
de iniciar a safra mais tarde; os frigoríficos estavam pagando cerca de
600 réis pelo quilo do boi vivo, e com este alto preço os charqueadores
ficavam impossibilitados de iniciar suas matanças.
Segundo o ponto de vista do Superintendente do Sindicato, Emí-

10 Pimentel, op. cit., p. 214.


11 Ibidem, p. 216.

56
lio Nunes, os estoques se avolumavam cada vez mais deuma safra para
outra. Na sua opinião, isto se dava devido a várias causas: a paralisação
dos embarques em outubro devido à revolução e a precária situação
financeira dos mercados consumidores, aliada ao alto custo do fa
brico do charque, que o colocava no mercado a preços inacessíveis. No
que tange aos concorrentes, colocava o Superintendente que, no mo
mento, até a Bahia já se lançava, com êxito, na fabricação de charque.
O produto deveria ter o seu custo reduzido ui^entemente. Para isto,
deveria concorrer o governo, reduzindo os impostos sobre o sal de Cá-
diz e os fretes marítimos e terrestres, além de procurar implantar um
grande sindicato de todos os estados produtores com sede no Rio de
Janeiro, para controlar totalmente aexportação^ ^.
Na mesma reunião, a firma Osório & Terra, de Tupanciretã, fez
ver aos charqueadores o desacertç) da política valorizadora do produto
mediante a retenção dos estoques que estava sendo levada a efeito pelo
Sindicato:

As nossas matanças para charque, que chegaram a su


bir de um milhão de cabeças, decresceram progressivamente
para cifrar-se a 550,000 em 1929 e a 343.000 neste ano. E de
notar que mesmo assim as matanças foram excessivas e todos
nós sabemos o que nos custou em quebras de peso, juros
exorbitantes, aumento de despesas e diferenças de preço por
apresentarmos um produto demorado ou, corno se diz na
gíria, aferventado. A continuarmos nesta progressão, pouco
teremos que matar em 1931 e breve chegará o dia em que o
nosso charque será desnecessário para os mercados do norte,
que serão supridos exclusivamente pelos Estados Centrais,
pois é inegável que, à proporção que diminuirmos as nossas
matanças, aumentam as deles, Quem lucrou com isso? Os
charqueadores, acreditamos que não. Os exportadores que
tiveram os seus negócios reduzidos, cremos que também não,
Nem se diga que nesta exposição se defende exclusivarriente
os interesses da nossa classe, pois esta está tão ligada à dos
criadores que a crise de uma forçosamente refletirá sobre a
outra, Se as matanças para charque continuarem diminuindo,
o que se fará dos bois e vacas de desfrute do Rio Grande? Es
perar pelas compras dos frigoríficos? Mas, quem pode afirrmr
que eles procurarão os nossos gados na quantidade necessária
para descongestionar a superprodução que será fatal com a re
dução de matanças para charque?^
A postura defendida pelo grupo Osório & Terra representa uma
das correntes de pensamento da classe dominante, na medida em que

í 2 Interesses dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 dez. 1930.


D. 8.
Ibidem.

57
considerava que, enquanto se defendiam os interesses dos charqueado-
res, também se defendiam os da pecuária gaúcha como um todo.
Tais elementos s?o representativos do setor mais dinâmico da clas
se dominante local. Charqueadores e criadores atuavam nas duas frentes
no sentido da modernização, tendo luna visáo mais ampla da pecuária
como um todo. Em outra visâò, colocavam-se os charqueadores Pedro
Irigoyen e Joáo Mascarenhas, mais identificados com a satisfaçáo ex-
dusiva dos interesses da fração de classe dos saladeiristas. Mascarenhas,
inclusive, defendia a ação do Sindicato das acusações que lhe imputa
vam de ter feito elevar o preço do charque até acima das possibilidades
dos consumidores. Considerava correta a atitude do Sindicato de con
trolar a quantidade de charque que devia ser exportado. O problemase
verificava por terem alguns charqueadores burladoeste processo, expor
tando livremente desde que pagando um imposto de 100 réisao estado
por quilode charque^
A perspectiva assumida pela firma Osório & Terra revela-se , no
caso, dotada de um conteúdo mais modemizador, uma vez que demons
tra preocupação com o processo produtivo, efetivado de forma arcaica e
deficiente. Nesta medida,sua análise da situação vivida afigura-se a mais
coerente e consciente dos problemasda pecuária. Já a postura de Masca
renhas, no caso, restringe-se ao âmbito da circulação, demonstrando
grande apego ao processo instalado e não oferecendo alternativa de mo
dernização.
Além disso, a posição defendida por Mascarenhas fazia com que
fosse herdada da República Velha a divergência entre as duas frações
dos pecuaristas, considerando-se os criadores explorados pela atuação
do Sindicato.
Ehirante o IV Congresso Rural do Estado, realizado em Porto
Alegre em julho de 1930, a acusação dos criadores à ação nefasta do
Sindicato, controlando a oferta sem conseguir garantir preços e baixan
do internamente o preço do gado, foi uma constante.' ®
Quanto à própria orientação do Sindicato - controle das expor
tações ou remessa livre —como já se viu, os charqueadores não eram
unânimes. Enquanto Mascarenhas defendia o controle do envio do
charque mediante o sistema de quotas, outra corrente de saladeiristas
haveria de fazer passar, numa Assembléia Geral Extraordinária do Sin
dicato em 9 de março de 1931, a garantia de um período de exporta
ção livre, compreendido entre 1? de abril e 31 de maio. Como justifi-
situação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 14 dez. 1930.
p. 11.
Anais do IV Congresso Rural. Farml. Porto Alegre, Tipografia Thurmann,
1930. p. 50 a 71.

58
cativa, a proposta aprovada pela Assembléia do Sindicato argumenta
va:

Na atualidade o embarquede carnesestá subordinado às


resoluções de que de íentpo em tempo toma o Sindicato. Em
conseqüência disso, o charqueador não sabe, ao movimentar
as suas carnes, para que data deverá tê-las secas, quancUt po
derá despachá-las da charqueada depois de prontas, nem
quando serão remetidas do porto de embarque para os nter-
cados internos do pais, logo após a sua chegada ali ou retidas
no referido porto por tempo indeterminado. Tudo isso concor
re para aumentar os gastosprovenientes de elaboração e arma
zenagem, quebra de peso e, o que é pior, deterioração desse
produto. ^®
Num momento de crise, o Sindicato e seus membros oscilavam
quanto às medidas a serem tomadas, ora tentando solucionar o proble
mada pecuária como umtodo, oraatendendo seus interesses exclusivos.
Vivenciando uma situaçSo aflitiva, o Sindicato deddíu, em dezem
bro de 1930, que umacomissSb se dirigisse aointerventor federal do es
tado, Gen. Flores da Cunha, parainterceder, jimto ao Governo Provisó
rio, a concessáo dos seguintes favores:
1?)Abatimento de50% nosfretes da Viaçãó Férrea para
o transporte dos estoques de charque destasafra;
Abatimento de 20%para o transporte de charqueda
fiitura safra;
Revisão das tarifas da Viação Férrea para o transpor
te do gado em pé;
4?)Isenção de impostos para o salde Cádiz, importado
para o uso indistrial nas charqueadas;
^) Providências no sentido de serem empregadas as ba
lanças para osgados gordos ^'
Como se pode ver, a expectativa dos "industriais" da came se
concentrava na comercializaçío da mesma. Por outro lado, as esperan
ças se voltavam para as soluçOes que daria o governo, tanto na esfera
estadual como na federal. Flores da Cunha, entrevistando-se com os
charqueadores em comissSò, prometeu que tudo faria no que estivesse
ao seu alcance para atender os pedidos feitos.
Atendendo a algumas reivindicações dos charqueadores, o gover
no do estado baixou o Decreton? 4.713, de 26 de janeiro de 1931, me
diante o qual se reduzia de $200 para $100 a taxa fixa por quÜo de
charque examinado, quando destinado à exportaçSò. Na argumentaçfo
Sindicato dos xarqueadoies do Rio Grande do Sul. Pr(q>osta sob forma de su
gestão apresentada ao Sindicato dosCharqueadores pelo limo. Sr. Dr. AníbalLou
reiro e aprovada em Assembléia Geral Extraordinária de 9 de março de 1931.
Interesses de diarqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 dez. 1930.p. 8.

59
paia efetivaçfo do decreto, o interventor considerava a difícil sitnaçSb
da indústria pecuária, "em conseqüência da baixa do preço do charque
naspraças consumidoras".^ ^
Em 20 de fevereiro de 1931, o governo lançava o Decreto n9
4.722, que criavao Serviço de Balanças e Pesagem de gado gordo, e pelo
Decreto nÇ 4.742, de 19 de março de 1931, modificava-o, regulamen
tando o seu funcionamento. Defendendo a medida como sendo a mais
justa para compradores e vendedores, a adoção da balança seriafiscali
zadapor este novo órgão criado, que funcionaria anexo à Diretoria de
Agriculturaj Indústria e Comércio da Secretariade ObrasPúblicas.
No mesmo dia, o interventor criou uma taxa e^ecial sobre os
charques magros, de segunda qualidade, quando remetidos para o mer
cado central do país além dos limites previstos para a sua expoitaçãò'
Agindo desta forma. Flores da Cunha buscava controlar a exportação
do produtoem termos de qualidade e quantidade, tentandoassim evitar
a queda do preço.
Ainda no mesmo ano de 1931,por ocaàSb de sua estadano Rio
de Janeiro, Flores da Cunha conseguiu um aumento no preço do char
que, fato louvado pelo Sindicato
Mais tarde, em julho do mesmoano, em memorialao interventor,
o Sindicato solicitou que a cobrança sobre o excesso de percentagens
de charque magro só se desse após 31 de dezembro, face à deman
da que este tipo de artigo estava tendo no mercado. Igualmente, solici
tavam os saladeiristas que lhes fossem pagas as requisições feitas pelas
forças liberais da Revolução de outubro. Tal solicitação, contudo, não
teve atendimento.
No que toca ao problema dos fretes, os charqueadores argumen
tavam que seu produto era muito onerado com as despesas de embarque
e transportefenoviáiio, ficando de tal forma sobrecarregado que dificil
mente podia competircom artigos similares de outra procedência.
Quanto ao problema do sal,abordado pelos saladeiristas, este gira
va em tomo da utilização do sal estrangeiro ou nacional no fabrico do
produto.
A postura dos charqueadores era de que somente o produto de
Cádiz servia para ser utilizado nas charqueadas, enquanto que o nado-
nal poderia apenas alimentar o gado.

1^ Leis, decretos e atos do Governo do Estadodo Rio Grande do SuL 1931.p. 20.
19 Medidas de proteção à pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 fev. 1931.
5b Os Trabalhos no VCongresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 maio
1931. p. 7-8.
21a situação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1931.
p.7.

60
Colocando-se como porta-voz dos charqueadores, o conhecido sa-
ladeiiista Balbino Mascarenhas assimse pronunciava:
TSo incomeniente é o sal mdonal para o bom beneficio
do abarque, que todos os charqueadores rio^andenses sem ex
ceção, utilizam-se exclusivamente do artigo procedente de Câ-
diz, embora o adquiram por maior preço. Para que não se diga
existir nesta prática um fundo de prevençãocontra a mercado
ria brasileira e porque têm sido publicadas análises comprovan
do a excelência do sal ruicional, vamos citar um fato conclu
dente: os srs. Moreira Filhos, agentes de sal nacional e dos
maiores recebedores do artigo neste estado, são propri^rUjs
de uma charqu&ida onde trabalham só com o produto impor
tado daEspanha?"^
O alto imposto sobre o sal estrangeiro onerava o custo deprodu-
çfo do artigo rio-grandense. Feitos os cálculos, estesó poderiaser cdo-
cado a 2$600 no mercado, enquanto que o uruguaio, que nadapagava
pelo sal de Cádiz, conseguia colocar o seuproduto no mercado interno
brasileiro por 2$400 o quilo.
Embora contando com o apoio de Floresda Cunha,que procura
va atender náb só aos charqueadores, mas à pecuária como umtodo,os
saladeiristas reclamavam providências do Governo Provisório.
A posiçSo assumida por este, nSo abaixando osimpostos sobre o
sal estrangeiro e posicionando-se pelo consumo do artigo ámilar nacio
nal, desagradou os charqueadores gaúchos:
O governo federal fã indeferiu o nosso pedido. Venceu
o mal entendido e exagerado protecionismo. Cometeu-se uma
iniqüidade Se é preciso, mais uma vez sacrifique-se o Rio
Grande do Sul Mas saibam os nossos irmãos do Norte que,
encastelados em seu egoísmo, obtiveram a contiraução desse
nosso prejuízo, sem dele extraírem o menor lucro.
Quanto a este último item, argumentavam os saladeiristas, o im
posto podia elevar-se que sempre seria consumido sóo sal espanhol. Re
gionalmente, os charqueadores consideravam-se prejudicados em seus
interesses.
Fundamentalmente, o governo central aqui se posicionava pela
defesa do consumidor nadonái e da diversificaçflb da produçáó interna.
Numa épocaem que a inflaçSb, decorrente emparteda políticade sus
tentação do café, levava a um agravamento dascondições de vida e num
momento em que se buscava regularizar as relações capital x trabalho a
fim de promover a acumulação, eraimportante que se buscasse oferecer
Mascarenhas, Balbino de Souza. O charque e o sal. Correio do Povo, Porto
Alegre, 1? fev. 1931. p. 8.
23 Ibidem.

61
artigos de subsistência a preços baixos. No caso, a medida do governo
central tanto oportunizavaque o charque estrangeiroentrasse no merca
do a um preço mais conveniente, quanto obrigava o saladeirista rio-
•grandense a optar pelo uso do sal nacional.
Com o advento da República Nova, que, diga-se com
franqueza, tem feito muito mais relativamente em seus du
zentos dias de vida do que a dos nossos antepassados em um
longo período de quarenta anos, intensifica-se cada vez mais
o movimento nacionalista [. . . ] Ainda há poucos dias os
"Diários Associados" instituíram a semana da indústria na
cional, quando foram utilizados temas exclusivamente nacio
nais, Aqui o espírito empreendedor do General Flores da
Cunha iniciou um belo movimento de iguais fins. Não se visa,
cçm tal situação, isolar o Brasil do resto do mundo, fechando-
-se as suas fronteiras ao mercado estrangeiro. [...] O Brasü
não quer cortar as suas relações comerciais com os demais
países e nem o poderia fazer, sabido como é que a maior per-
centagem da sua receita está precisamente nos direitos de im
portação para consumo. O que ele deseja, o que interessa à
sua administração pública é sim o maior desenvolvimento nas
suas indústrias, nas suas fontes de receita pública eparticular.
Quer edeve equilibrar quanto possível a sua balança comercial,
maior índice dedesenvolvimento deum povo. Essas considera
ções vêm a propósito do aproveitamento do sal de Macau e
Mossoró na indústria saladeiril. A sua aplicação no charque
nao nos parece impossível diante dos exames químicos a que
ele se tem ^metido e onde se constata a sua superioridade
ao sal de CMiz. Compreendemos também que nenhum será o
resultado de tais argumentos, por isso que o emprego do sal
estrangeiro na charqueada é mais uma questão comercial, pelas
possibilidades que ele dá ao melhor mercado nos países da ve
lha Europa. Não deixamos de proclamar, entretanto, que éele
Igualmente umforte escoadouro do ouro parabs outros merca
dos no momento preciso em que o Brasil se bate coma maior
dificuldade econômica e financeira.^^
As perspectivas identificadas com a soluçãío de problemas nacio
nais começavam a chocar-se com aquelas mais exclusivamente voltadas
para os problemas regionais dos charqueadores. Neste sentido, a char
queada se revelava o setor mais retrógrado na região e mais em oposi
ção com a orientação nacional. Ai^éia de complementaridade com o
mercado aparecia acompanhada de divergências como centro.
Embora o Congresso Rural de 1931 afirmasse que o sal deCádiz
era o único a satisfazer as exigências para a perfeita industrialização da
came, para o que se requeria baixas taxas para a entrada deste produto
24 Fagundes, A A indústria do sal no Brasil. Correio doPovo, Porto Alegre, 13
mar. 1931. p. 3.

62
no país, alguns charqueadores desde esta época divergiam da opinião
majoritária da classe. Marcial Terra, por exemplo, foi um dos que mais
se bateu pela utilização do sal nacional para o fabrico do produto gaú
cho, empregando ele mesmo artigos brasileiros no seu estabelecimento
saladeiril.^^
No Congresso Rural de 1932, foi apresentada uma tese que, mais
uma vez, oportunizava o debate sobre a questão do sal. A proposta de
Franklin de Almeida era acabar com a padronização do sal nacional,
sendo aplicados preceitos de higiene industrial a fim de obter um pro
duto que pudesse ser utilizado nas charqueadas, com teor diferente da
quele sal alimentício. Opinando sobre a tese, o Congresso Rural salien
tou que os frigoríficos Swift e Armour se achavam empregando, com
sucesso, o sal nacional naelaboração desuas carnes.^ ^
Aos poucos, e principalmente pelo exemplo dado pelos frigorí
ficos estrangeiros no estado, a utilização do produto nacional foi se in
filtrando no meio saladeiril gaúcho. A substituição completa do pro
duto estrangeiro pelo nacional,contudo, só se dariamais tarde, durante
o Estado Novo.
Um outro problema que surgiu no início da República Nova,que
afetou o charque rio-grandense, foi a questão do livre câmbio com o
Uruguai.
Alvitrando o Govemo Provisório de realizar um acordo entre o
Brasil e o Uruguai, que implicaria o livre comércio entre os dois países,
o Sindicato dos Charqueadores pronunciou-se contra, argumentando
que a venda do charque platino para o mercado brasileiro, livre de im
postos, "importaria na ruína da indústria saladeiril e pastoril rio-
-grandense".^'''
O problema, aliás, tinha outras dimensões além da do charque, co
mo, por exemplo, o gado e o trigo uruguaio que penetrariam livremente
no Rio Grande, prejudicando os produtos gaúchos. Quanto aos produ
tos que o Brasil venderia no Uruguai (arroz, fumo, aguardente, álcool e
açúcar), a nação platina não tinha produção similar por cujos interesses
devia zelar. A preocupação se estendia ainda quanto a uma possível exi
gência do Uruguai de medidas que facilitariam o "trânsito pela Repúbli
ca vizinha deprodutos do Rio Grande do Sul com destino aos mercados
estrangeiros".^ ®Otemor dos gaúchos iamais além: era mesmo provável
que, na consulta feita pelo Governo Provisório à nação quanto à efetiva-

Pimentel, op. cit., p. 287.


26 ibidem,p. 288.
27 Interesses comerciais. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 jun. 1931. p. 8.
28o livre câmbio com o Uruguai. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jun. 1931.
p. 5.

63
çío do tratado, os demais estados dessem parecer favorável, uma vez
que não seriam prqudicados. Além do charque uruguaio, que chegaria
livremente ao norte do país, seriam levadas também, em iguais condi
ções, as carnes congeladas de frigoríficos platinos, dando com isso um
grande impulso à pecuária oriental em detrimento da produção gaú-
cha.2' Se esta era a perspectiva dos charqueadores, diversa era a dos
arrozeiros, que facilitavam, desta forma, a colocação do seu artigo no
mercado platino, desalqando o concorrente italiano.
Outras opiniões favoráveis também se faziam sentir em nome de
princípios livre-cambistas, como, por exemplo, a da firma Bastos, Car
valho &Cia. Criticando a baneira que se antepunha à livre entrada dos
produtos estrangeiros nopaís, sob a alegação de defender a indústria na
cional, esta visão registra bem o ponto de vista do comércio importador,
cujos interesses eram diferenciados daqueles dos charqueadores.^®
No tocante à livre entrada do sal de Cádiz, contudo, convergiam
os interesses dos charqueadores com osdos importadores.
A demora no acerto final do Tratado Brasil-Uruguai fazia surgir
as notícias mais desencontradas a respeito. Em março de 1932, circulou
a notícia de que o Govemo Provisório resolvera-se favoravelmente pela
entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio no mercado intemo
brasileiro. Tal medida implicava a produção de 45.000 cabeças que dei
xariam de ser abatidas no Rio Grande. Areação foi imediata. Os char
queadores, através do seu Sindicato, entraram em contato com Flores
da Cunha, enquanto que as opiniões correntes taxavam de "impatrióti-
ca" a medida elesiva aos interesses nãd só regionais gaúchos como de
todo ocontexto nacional. Aquestão, inclusive, ia mais além:
Que não sediga à margem do dissídio que está agitando
o atual momento nacional, que sua excelência quis fazer pi
cuinha aos amigos divergentes do glorioso estado meridional,
doPampa^^
O dissídio aludido dizia respeito às divergências que, no ano de
1932, iriam se tornar clarasentre o GovemoProvisório, sustentado pelo
interventor, e algumas oligarquias regionais, que conduziriam à Revolu
ção Paulista. Em última análise, o que importa reter neste momento é
que, como pano de fundo de uma disputa que se travaria no plano polí
tico, encontravam-se interesses econômicos não satisfeitos das oligar-

29o livre câmbio com o Uruguai. Correio do Povo, Porto Alegre, 2juL 1931.
Ç- 2-
3Ú0 livre câmbio com o Uruguai. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 jun. 1931.
•'t A entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio. Correio do Povo, Porto
Alegre, 13 mar. 1931. p. 12.

64
quias periféricas.
No meio de todo o alarme dos charqueadores e também dos fazen
deiros, "A Federação" publicava que não havia sido confirmada a notí
cia da autorização do governo central da isenção de impostos para os
produtos uruguaios entrarem no país.^^
Assumindo a questão maiores proporções, o Itamarati distribuiu
à imprensa um esclarecimento em junho de 1932, alegando que, em
compensação, os produtos brasileiros também gozariam de isenção,
além de ser obtida a supressão do imposto de ausentismo sobre os bens
imóveis de pessoas não residentes no Uruguai, o que desde há muito o
Rio Grande desejava.
Como se mo bastassem tais compensações, obteve a de
legação brasileira que tanto o transporte do abarque como o
do sal só se faça por navios de um dos dois países, o que m
prática quer dizer por mvios brasileiros, e que esse contingente
de importação livre só se faça ms alfândegas dos estados do
norte do Brasil, a começar de Pernambuco, limitando a concor
rência uruguaia a um mercado que quase não interessa aos
charqueadores rio-grandenses - com a vantagem ainda de ir ba
ratear o custo da alimentação paraaquela zom do pais.^^
Invocavam-se razões de política intemacional no que tange á inten
sificação do comércio entre dois países. Mais do que tudo, porém,
duas coisas se estabelecem como claras: que o Governo Provisório se
achava empenhado em diversificação da produção nacional e coloca
ção destes produtos, equilibrando a balança comercial. Por outro lado,
que as economias subsidiárias passavam, tal como a gaúcha, a cumprir
um papel de baratear o custo de alimentação do trabalhador rural.
Vivenciando uma situação dramática, o Sindicato alvitrava, co
mo possibilidade de superação da crise, a formação de um grande sin
dicato que reunisse os produtores saladeiris nacionais, em especial Ma
to Grosso, Minas Gerais e São Paulo, proposta levantada em reunião e
levada até Flores da Cunha em 26 de junho de 1931, para que o inter
ventor intercedesse junto ao governo federal. A preocupação básica,
neste caso, era a estabilização do preço. Tendo o interventor se dirigido
ao Governo Provisório, em dezembro de 1931 ainda não obtivera res
posta, com o que se frustravam mais uma vez as expectativas dos char
queadores de solução governamental ao seu problema.
Uma questão novaainda se revelava para os saladeiristas: o proble-

A falada entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio. Correio do Povo,


Porto Alegre, 16 mar. 1932. p. 8.
33 A Exportação de carnes do Uruguai para o Brasil. Correio doPovo, Porto Ale
gre, 28 jun. 1932. p. 9.

65
ma dos salários dos trabalhadores das charqueadas. Em reunião do Sin
dicato, os proprietários dos estabelecimentos charqueadores colocavam
que os salários deveriam ser uniformizados, uma vez que a Swift, assim
como as firmas Irigoyen e Peró, de Uruguaiana, pagavammais. Contra-
-argumentava o frigorífico estrangeiro que, se assim agia, era porque
seus operários trabalhavam mais e produziam mais, ganhando por hora e
não por dia.^^ Superiores financeiramente, as empresas estrangeiras ti
nham o poder de canaUzar preferencialmente mão-de-obra para si e,
uma vez estabelecido o contrato de trabalho, obtinham do operário
maior produção.
Em síntese, a charqueada rio-grandense encontrava-se, nos primei
ros anos da República Nova, operandocom velhos processos, tecnologia
arcaica, produzindo um artigo de alto custo de produção, mas de baixo
valor de troca, num mercado altamente competitivo.
Ajustava-se muito mais ao caráter de uma manufatura do que ao
de uma indústria moderna. Enfrentando uma crise crônica, os saladei-
ristas não arregimentavam esforços para transformar o velho processo
produtivo, mas sim pressionavam o Estado para que este solucionasse
problemas surgidos na órbita da circulação. A comercialização fácil do
produto era a meta a atingir; os preços compensadores e a fácil coloca
ção no mercado o objetivo último. É bem verdade que a questão do sal
incidia sobre o custo da produção, mas nada era feito no sentido da re
novação tecnológica, permanecendo a produção nos mesmos moldes
desde hámuitos anos. Pelo que se pode constatar, setores poderosos dos
charqueadores estavam interessados namanutenção deste esquema.
Se estas eram as perspectivas dos charqueadores, os criadores
apresentavam-se, tal como na República Velha, a fração de classe mais
modernizante. Aconotação de modemizante referida aqui é tomada em
relação ao conjunto da classe dominante do Estadocomo um todo, ob
jetivando a renovação do processo produtivo na pecuária.
No imediato pós-30, a crise da pecuária se acelerou. De um lado,
os estancieiros se viam a braços com o problema da situação pericli-
tante das charqueadas; do outro, com a política baixista dos frigorí
ficos. Neste sentido, algumas medidas práticas foram tomadas pelos
pecuaristas.
A Associação Rural de Bagé dirigiu um memorial à FARSUL no
início de 1931, solicitando as suas providências no sentido de acionar
o governo estadual e federal para, de comum acordo, solucionarem a
crise da pecuária. Em especial, o fenômeno destacado era a crise pro
vocada pelo frigorífico Swift nas suasmaquinações baixistas. Enquanto
34 Interesses de charqueadores. Correio doPovo, Porto Alegre, 9 dez. 1930. p. 9.

66
que, na safra de 1930, o frigorífico pagara $ 700 reis pelo quilo do no
vilho vivo e $550 réis para vacas, no ano de 1931 estava oferecendo
$550 a $500 réis pelo quilo do novilho e de $450 a $ 350 réis para
as vacas.

As queixas contra a ação nefasta do frigorífico Swift não se limi


tavam a este aspecto. O jornal "O Libertador", de Pelotas, publicou em
fevereiro de 1931, uma nota de protesto dos fazendeiros de Herval, Ja-
guarão, Arroio Grande, Santa Vitória e Pelotas, reclamando contra a
atuação da companhia que uniformizara os preços para as compras de
gado, quando até então estes variavam conforme a distância da estação
do embarque. Referia a nota:
Se a Companhia Swift está, como apregoam os seus corretores,
animada do propósito , desmentido, aliás, pelas suas operações,
de pagar os mais altos preços, pelos nossosgados, não foi equi-
tativa na organização da sua tabela de preços, Porque, se o fre
te do boi, embarcado em Bagé, custa 29$220, e o embarcado
em Piratini 15 $640, há uma diferençada 13 $580 por animal.
Justo seria que 13$580 fçssem embolsados pelo criador.
[...] Outra reprovável deliberáção da companhia norte-ame
ricana foi a que suprimiu o negócio da carne congelada. Em
conseqüência dela, o fazendeiro que se especializou numa raça,
produtora de ótima qualidadede carne e abundânciade polpa,
invertendo não pequeno capital em aperfeiçoaro seu rebanho,
não pode vender o seu produto como de primeira ordem
Com relação ao frigorífico Armour, o preço que o mesmo estava
oferecendo pelo quilo do boi vivo era $600, preçomaior do que aque
le pago pelos frigoríficos uruguaios ao gado oriental na tablada de Mon
tevidéu^^. Comparativamente, pode-se daí tirar algumas conclusões:
primeiro, que a crise dos frigoríficos no Prata se revelava maior do que
aquela enfrentada no estado; segundo, que, embora na presente safra
o frigorífico Armour estivesse pagando um pouco mais do que a Swift,
ainda representava um decréscimo em relação ao preço que a Swift ofe
recia pelo gado na safra passada.
Dentro da situação que se apresentava, a reivindicação básica dos
fazendeiros era de que o governo estadual buscasse melhorar os preços
que tanto os frigoríficos quanto as charqueadas estavam oferecendo
pelo gado.
Conjugado a esta problemática de escoamento da matéria-prima
básica mediante um preço remunerador, encontrava-se o problema da
crise financeira que se ligava à crise econômica.
Em defesa dos interesses da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 jan.
1931. p. 7.
A Swift e os criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 fev. 1931. p. 18.
37O preço dogado. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 jan. 1931. p. 12.

67
Desde 1929 que o Rio Grande do Sul enfrentava uma crise ban
cária. O reflexo dos acontecimentos relacionados com o pânico da
Bolsa de New York, em setembro de 1929, teve sua repercussâò sobre
as finanças do estado, abalando inclusive a estabilidade do recém-cria-
do Banco do Rio Grande do Sul e do tradicional Banco Pelotense e
conduzindo à falência o Banco Popular em abril de 1930.
É evidente, contudo, que a crise bancária gaúcha não se deu ape
nas por efeitos externos da crise mundial, mas se conjugou a uma situa
ção de agudização das condições da vida econômica do estado, com a
queda do preço dos produtos pecuários. O Banco Pelotense, criado em
1906, fora formado com os capitais de criadores e charqueadores e mais
aqueles oriundos do comércio e indústria da área de imigração alemã e
italiana. Além do fornecimento de crédito aos pecuaristas do estado, o
Banco fora como que um instrumento do govemo Borges de Medeiros,
mantendo nele o Estado grandes depósitos e fazendo uso do capital
depositado no Banco segundo suasnecessidades.
O Banco do Rio Grande do Sul, fundado em 1928, fora criado
com parte de seu capital auferido de um empréstimo no exterior, do
grupo americano White and Weld, e parte proveniente do Tesouro do
Estado, Viação Férrea e outros departamentos do governo que tinham
depósitos no Pelotense na ordem de 300.000 contos, que foram retira
dos para a constituição do novo Banco. Criado principalmente para
atender à demanda de crédito dos pecuaristas do estado, a formação do
novo banco causou uma sangria no antigo.
Em parte devido a esta retirada de capital do Banco Pelotense pa
ra o Banco do Rio Grande, em parte pelo efeito externo da crise de
1929, aos quais se acrescentavam as necessidades dos pecuaristas, come
çou uma primeira corrida para o Banco Pelotense no ano de 1929, que
continuou no ano seguinte. A garantia semi-oficial do govemo do esta
do de que "o governo garantiria os depósitos nosbancos" evitou maior
repercussão da crise sobre os demais estabelecimentos bancários.^®
Tal processo, contudo, não evitou que o Banco Popular falisse em
1930, com reflexos sobre os demais.
O início da República Nova veio dar maior agravamento à crise
bancária iniciada anteriormente, pois a situação em que a pecuária sub
mergiu no pós-30 sócontribuiu parao agravamento das condições finan
ceiras do estado. Os "depósitos dos Charqueadores se encontravam abar
rotados e sem mercado", mas eram "amplamente financiados pelo Ban-

38 Oliveira, Alcibíades de. Um drama bancário. Porto Alegre, Globo, 1936.


p. 117.

68
CO Pelotense".'' O governo do estado, por seu turno, face ao malogro
do empréstimo externo de 1928/29, resultante da recessão econômico-
-financeira de 29, teve de imobilizar quase que de maneira total os re
cursos disponíveis no Estado, Viaçé^o Fénea e municipalidades deposita
dos no Banco do Rio Grande.
Neste sentido, o Banco Pelotense ficou sem amparo governamen
tal e anunciou oficialmente a paralizaçSò de suasatividades em 6 de ja
neiro de 1931.
Em suma, os bancos no Rio Grande do Sul encontravam-se em
crise e restringiam seus negócios justamente quando a demanda de
capital era maior, face à baixa do preço do gadoe à precáriasituação da
indústria do charque.
Tendo esta percepção da crise —atribulação da charqueada e cam
panha nefasta dos frigoríficos impondo baixospreçosao gado,conjuga
dos à falta de capital —os criadores de Bagé solicitaram que a FARSUL,
seu órgão de classe, conseguisse do governo do Estado as seguintes me
didas de emergência:
Exportação do gado em pé para fora do Estado, através
da frota mercantil do Lloyd brasileiro; redução de 80% do
frete cobrado pela Viação Férrea sobre o gado empée produ
tos manufaturados do boi e respectivos subprodutos, demons
trando que as taxas cobradas no Rio Grande erammaiores do
que aquelas de São Paulo; abolição de imposto intermunicipal
de exportação do gadodestinado às charqueadas efiigorificos;
isenção sobre o imposto do sal de Cádiz; promoverjunto ao
Banco do Estado e Banco do Brasil o financiamento da safra
saladeiril; promover a exportação do charque para Cuba, jun
tamente com outros cereais.*'^
Considerando os pedidos feitos, vê-se que a perspectiva destes
criadores era de que o governo solucionasse a crise da pecuária. Classifi
cadas como medidas de "emergência", os criadores esperavam que a so
lução do problema viesse "desde cima". A preocupação básicaera a co
locação de matéria-prima no estado ou fora dele. Se dentro do estado,
queriam que a charqueada e o frigorífico tivessem os preços. Entre uma
e outra atividade, posicionaram-se pela charqueada, encampandomedi
das que seriam objeto da solicitação dos charqueadores, tal como o re
baixamento do imposto sobre o sal de Cádiz. A sua perspectiva orienta
va-se não pela renovação do processo produtivo, mas pela dinamização
do sistema de circulação. A idéia de redução do custo de produção in-
39 Letti, Nicanor. A gravata grená. Correio doPovo, PortoAlegre, 12 mar. 1977.
(Caderno de Sábado)
^9Em defesa dos interesses da pecuária. Correto doPovo, Porto Alegre, 27 jan.
1931. p. 7.

69
ddia sobre atitudes governamentais de redução de impostos e fretes.
Os pecuaristas de Bagé solicitavam tais medidas quase que ao
mesmo tempo em que Flores da Cunha, considerando a difícil condi
ção dos negócios do gado, devido à falta de compradores e de obtenção
de umpreço razoável, facilitou a colocação do gado no Uruguai. Median
te o Decreto n? 4.707, de 24 de janeiro de 1931, suspendeu a cobrança
do imposto de viação e de outras taxas sobre a exportação de gados de
corte e de invemar, que demandava a fronteira uruguaia.^ ^
O caso analisado acima, contudo, não pode sergeneralizado para
todo o conjunto dos criadores gaúchos.
Frente à crise que atravessavam, parte dos pecuaristas buscava
uma saída que, para os efeitos deste trabalho, será considerada como
tendente à plenaimplantação do capitalismo rural.
Neste sentido, assaídas ditas ''avançadas" seriam aquelas que pre
tenderiam a transferência de fatores produtivos da pecuária para a agri
cultura e aquelas que, ao lado da luta pelo refinamento do gado e pas
tagens artificiais, colocariam empautaa formação de um frigorífico na
cional dirigido por estancieiros gaúchos.
Dentro desta última proposta, encontram-se não somente os
fazendeiros, mas alguns daqueles que acumulavam as duas funções es
tancieiros e charqueadores, tal como Marcial Terra. É sintomático,
porém, que o projeto de implantação do frigorífico fosse sempre deba
tido e pensado em termos de realização do órgão de classe dos criadores
(FARSUL) e, até o final da República Nova, não esteve nas metas do
Sindicato dos Charqueadores. Os estancieiros/charqueadores, no caso,
identificavam-se com a fração de classe majoritária e capaz de oferecer
um projeto modemizante: a dos criadores.
Nem todos os estancieiros, contudo, enquadravam-se dentro das
perspectivas acima expostas, que podemserconsideradas a "vanguarda"
da classe. Como se viu, boa parte deles ainda tentava soluções arcaicas,
tal como a constituição de sociedades de criadores para charquearem a
carne e venderem eles mesmos o produto final. Um grande setor ainda
se mantinha numa atitude de conformismo e refratariedade a inova
ções, aferrado à propriedade extensiva do solo e gado, sem beneficiar-
-se da onda renovadora. Não era, entretanto, apenas a exploração do
centro que os fazia agir assim, mas as razões encontram-se também na
estrutura da propriedade da terra, na descapitalização e na possibilida
de de, frente às crises, vegetarem muitas vezes num nível de mera sub
sistência.
No que tange àquela saída modemizante —forma capitalista de

41 Leis, decretos eatos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. 1931. p.17.

70
enfrentar a crise —da transferência dos fatores produtivos para a agri
cultura, vê-se que, de 1930 a 1933, ela foi uma constante nas metas do
governo e na preocupaçâfo dos setores de vanguarda, desde o governo
de Vargas no estado, em 1928.
Já no IV Congresso Rural de 1930, eram sentidas pelos criadores
as possibilidades que se descortinavam com o incremento da lavoura.
Em especial, destacou-se a necessidade de incentivar a cultura do trigo,
uma vez que grande parte das divisas era consumida na importação
deste cereal. Na opinião do ruralista Juvenal Pinto, o Rio Grande do
Sul oferecia condições por excelência para o plantio, tanto a fronteira
sul como a região serrano-missioneira.^^ Não somente o assunto come
çava a interessar os latifundiários gaúchos, como também o governo
estadual, que contratara agrônomos nacionais e estrangeiros para o es
tudo da agricultura tritícola e fizera passar para a esfera estadual as es
tações experimentais de administração federal que se achavam operan
do de forma improdutiva no Rio Grande. Ainda com o objetivo de in
crementar a lavoura, atuando de forma modemizante, o governo Var
gas, pelo Decreto n? 2.298, de 15 de abril de 1929, criara os "cam
pos de cooperação", que visavam difundir as sementes selecionadas,
bem como o ensino agrícola.^ ^ Complementando a medida, o Decreto
n? 4.356, de 9 de agosto de 1930, estabelecia a distribuição de semen
tes entre os agricultores.
Os latifundiários que estavam optando pela saída agrícola da crise
da pecuária voltavam-se para a necessidade da introdução de máquinas
para o beneficiamento da lavoura, que possibilitassem o "aumento do
lucro líquido das culturas" e a "diminuição do emprego da mão-de-
obra". Este grupo, dito moderno e avançado dentro dos quadros da
classe dominante, acusava o problema daqueles segmentos rotineiros
que relutavam em aceitar a máquina, não compreendendo a sua utili
dade. Consideravam ainda que, para prevenir a elevação do preço da
força de trabalho no campo, era prèciso dar maior expansão à intro
dução das máquinas agrícolas.^"*
Apesar do Decreto estadual n? 4.302, de 22 de abril de 1929, ter
regulamentado o fornecimento de máquinas agrícolas no estado, os la
tifundiários consideravam que, não produzindo a indústria gaúcha má
quinas, os aparelhos na agricultura eram estrangeiros, que a custo de
um preço muito alto vendiam muitas vezes aparelhos superados e de
qualidade inferior.

Anais do IV Congresso Rural, op. cit., p. 409.


43 Rio Grande do Sul em revista. 1930, op. cit., p. 14.
44 Anais, op. cit., p. 283-6.

71
Em especial a lavoura do arroz encontrava-se mecanizada. Consti
tuindo este artigo o terceiro produto de exportaçâ^o do govemo Vargas,
para ele convergiam as atenções. Seusprodutores, desde 1926, organiza
dos em sindicato, procuravam manter um controle da oferta para manu
tenção dos preços em nível alto. Em especial, este artigo enfrentava o
problema de concorrência do artigo italiano nos portos platinos e de ou
tros estados brasileiros que, como São Paulo e Bahia, estavam desenvol
vendo uma cultura própria.
Característica deste setor modemizante da classe dominante local
é a conhecida figura de Pedro Osório, adiantado pecuarista, charquea-
dor e arrozeiro.
Face à crise da pecuária, que se desenvolvia em 1931-32, opiniões
como esta surgiam entre os elementos ligados à criação:
Precisavam aproveitar melhor as grandes extensões de
campo, se a terra é boa. E, em tal caso, a agricultura, dentro de
áreas iguais, é certamente muito maiscompensadora que a cria
ção pastoril^ ^
Até aqui, a saída da pecuária para a agricultura em termos de con
centração dos fatores produtivos tem pressuposta a atuação de um mes
mo agente social, ou seja, o pecuarista quese tornou um agricultor capi
talista. Outro caso, contudo, ocorria: aquele do pecuarista que arrenda
va suas terras para que outro as explorasse, o que se podia dar em terras
de agricultura ou mesmo ainda de pecuária. Juvenal Pinto, escrevendo
em 1935 sobre o fenômeno do "abandono das coxilhas" que se veri
ficara no Rio Grande, manifestava que o êxodo rural não se restringia
apenas aos trabalhadores rurais:
E o que está emprestando a similar acontecimento uma
característica mais clamorosa e inquietante, ainda, é a circuns
tância, toda peculiar, de quea deserção mais se verifica e aden
sa, justamente, no seio daqueles que deviam demonstrar mais
carinho, rnais aferro e mais amor à terra alimentadora. Ponti-
Iham, pois, a dianteira dos retirantes: donos de chácaras, de
granjas, de fazendolas, de estâncias e, muito principalmente,
estes, detentores de latifúndios, donatários de vastidões in-
términas, monopolizadores do solo nutriz.^^
Prosseguindo nessa análise, o autor constatava que tal processo
se havia identificado após a revolução de 30, quando mais notório se
tornara o absenteísmo rural. Os fazendeiros, no caso, anendavam ou
vendiam suas terras, passando a viver nos centros urbanos. Escapa-lhe,
Silveira, Geraldino. A crise atual da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre,
14fev. 1932. p. 3.
Pinto, Juvenal José. Política rural Porto Alegre, Globo, 1935. p. 17.

72
em termos de análise, a constatação da falta de opção para uma pecuá
ria descapitalizada e em permanente crise, queleva como saídao arren
damento dos campos. Quanto ao trabalhador rural, o autor justifica, até
certo ponto, a sua evasão do campopara a cidade:
Mourejam, pois, fora, 12 horas exaustivas a fio, desde
queraiao solatéo entardecer, ganhando, na maioria doscasos,
um salário mensal, exíguo e ridículo, corri a percepção do qual
não é possível prover as necessidades próprias e as dos seus, e
que o traz, constantemente, atormentado de dívidas que não
podesaldar nunca,^'^
A proposta do autor era de que o governo e o latifundiário se in
tensificassem nessa tarefa de não abandono dos campos, tornando-os
produtivos. Não se posicionava contra o arrendamento, que, pelo con
trário, só contribuiria para intensificar o aproveitamento da proprieda
de, mas sim contra o absenteísmo do proprietário e o êxodo da força de
trabalho.
Mencionava, como exemplo a seguir a experiência do Dr. João
Dahne em Santa Rosa dasMissões, que facilitava ao"desafortunado mas
valente caboclo" o acesso à propriedade, tornando-a produtiva.
O arrendamento dos campos para a própria pecuária já era uma
prática que remontava à República Velha. Em 1913, a revista "A Es
tância" relacionava o aumento do imposto territorial proposto por
Borges de Medeiros com a desvalorização dos campos e a baixa do
preço nos arrendamentos. Onerado por impostos, sem numerário para
repovoar seus campos, só restaria ao estancieiro vender ou arrendar sua
terra, mas, sendo muito grande a oferta, produzir-se-ia a baixa do preço
do campo e, conseqüentemente, do arrendamento. Afirmava o então
presidente do órgão de classe União dos Criadores, o Gel. Alfredo Mo
reira:

[. . .] lembraremos que não serão poucos os proprietá


rios que, tendo dado seus campos em arrendamento na vigên
cia dos valores atuais do imposto territorial, terão de sofrer,
ao suportar uma sobrecarga deste imposto, urn embaraçoso e
irremediável desequilíbrio nas rendas que daí lhes provém e
com a qual, muitas vezes, somente contam parafazer face às
contingências da vida.
Embora a preocupação fundamental fosse, na época, preservar-
-se contra o aumento do imposto territorial, é possível vislumbrar a
idéia de que o arrendamento se afigurava como uma saída para o es
tancieiro em dificuldades, que, sem condições de, por si só, explorar a
Ibidem, p. 22.
A Estância, Porto Alegre, maio 1913. p. 94.

73
terra, a arrendava a terceiros. Todavia, mesmo esta renda lhe poderia ser
diminuída, uma vez que lhe cabia, como proprietário da terra, pagar im
postos em ascensão.
Os jornais da época fazem muitas referências a arrendamentos.
Em 1926, o "Coneio do Povo" noticiava o arrendamento de 65 quadras
de campo, situadas em Alegrete e pertencentes a Assis Brasil, pelos
fazendeiros de Livramento, Francisco e Assis Iruleguy.^^ Da mesma
forma, em 1928 o '^Correio do Povo" noticiava o arrendamento de uma
fazenda —a do Espinilho —em São Francisco de Assis, "inteiramente
tapada, dividida em invemadas, banheiro carrapaticida e outras benfei
torias".^ °
Todavia, muitos eram os campos que, paulatinamente, eram ar
rendados também para a agricultura. Em 1928, o "Coneio do Povo"
noticiava um anendamento em Santa Vitória do Palmar, com 66
quadras de sesmaria, aramada, aguadas permanentes, pastagens para in-
vemar e criar qualquer espécie de gado e onde se acenava para a possi
bilidade do plantio do arroz e outros cereais.^^
A ocupação dos latifúndios pecuaristas pela lavoura já era assina
lada em 1917 pela "Revista do Comércio e Indústria de São Paulo":
No Rio Grande do Sul, dilatadas estâncias se transfor
mam em campos de cultura variada, a pecuária dá lugar à la
voura e as colheitas, já abundantíssimas, bastando ao consumo
interno, permitem, do mesmo modo, larga exportação,^^
Num e noutro caso —permanecendo enquanto atividade pecuária
ou transferindo-se para a agricultura —ou ainda realizando as duas for
mas ao mesmo tempo, o arrendamento, por um lado, proporciona o me
lhor aproveitamento da terra e da sua produtividade. Neste caso, cons
tituiu-se num fator deimpulso ao capitalismo no campo. Por outrolado,
apresenta um aspecto conservador, na medida em que a propriedade da
terra em si não mudou, conservando-se nas mãos do latifundiário. Além
disso, o baixo rendimento da atividade criatória não estava atraindo
muito os capitais sobrantes que, preferencialmente, estavam deman
dando a indústria ou a agricultura.
Dentre as saídas propugnadas pelos criadores, estavam aquelas re
lacionadas com a qualidade da matéria-prima, ou seja, obtenção dame
lhoria do rebanho mediante o refinamento e a introdução de pastagens
forrageiras.
No que diz respeito ao rebanho, a problemática enfrentada era.
Correio do Povo, Porto Alegre, 15 jun. 1926. p. 4.
50 Correio do Povo, Porto Alegre, 21 out. 1928. p. 22.
51 Correiodo Povo, Porto Alegre, 23 dez. 1928. p. 14.
52 Revista do Comércio e Indústria, SãoPaulo, março 1917(27), ano III. p. 102.

74
no início da década de 30, a sua heterogeneidade, pois, ao lado de ani
mais de raças selecionadas, predominantemente na fronteira, na faixa
Uruguaiana-Jaguarão, a sena se achava com grande quantidade de gado
zebu. O problema do zebu estavarelacionado diretamente à perspectiva
de industrialização da carne, uma vez que o refinamento do gado objeti
vava a obtenção de um novilho tipo frigorífico. O zebu, no caso,recebia
uma menor cotação ao ser vendido para o frigorífico.^ ^ Por esta época,
o Rio Grande do Sul só tinha, para ser industrializado em frigorífico,
10% de gado puro e mestiço sobre o rebanho total.^^ O desfrute do
mesmo já era absorvido pela Swift e Armour no estado, de modo que,
ante a perspectiva de criação dé mais irni estabelecimento no gênero,
punha-se em pauta a necessidade de incrementar o processo de mestiça
gem.
Alvitrava-se, inclusive, que a condição mais acertada e de resulta
dos mais imediatos fosse a produçãoe venda de temeiros. Vendidos em
pouca idade, os temeiros tipo frigorífico, selecionados, permitiriam a
mais breve reposição de capital.^ ^
A questão do melhoramento dos rebanhos foi um dostemas deba
tidos no V Congresso Rural de 1931, quando foi ressaltada a ação con
jugada entre o Ministro da Agricultura, Assis Brasil, e o interventor fe
deral no estado. Flores da Cunha.
Assis Brasil mandara ceder aos fazendeiros do Rio Grande do Sul,
gratuitamente, cerca de 100 reprodutores bovinos. Ogovemo estadual,
por sua vez,importaraanimais para o Posto Zootécnico de Montenegro,
para onde Assis Brasil cedera um plantei normando. Flores da Cunha
projetava ainda criar lun posto zootécnico em Umguaiana e outro em
Tupanciretã, sendo que, para este último, o Ministério da Agricultura
destinara um plantei charolês, e Flores da Cunha adquirira animais de
tipo Hereford. Através do Decreto n? 4.813, de 15 de junho de 1931,
o governo estadual aprovara o regulamento do registro genealógico
do gado rio-grandense.
Enfatizando o apoio necessário que o govemo deveria prestar ao
criador. Marcial Terra apresentou um trabalho no V Congresso Rural,
no qual referia que o govemo federal deveria facilitar a importação de
reprodutores adquiridos no estrangeiro e que o govemo estadual deve
riaintensificar estacompra de animais puro-sangue.^ ^
53 Silveira, Geraldino. A carne. Correio doPovo. Porto Alegre, 17jan. 1931.p. 3.
54 Domingues, Hercílio. A construção de matadouros-frigoríficos. Correio do
Povo, Porto Alegre, 28 jul. 1931. p. 3.
55 Os grandes problemas da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 jan.
1931. p. 11.
56 Os trabalhos do V Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 maio
1931. p. 8.

75
Ligada ao problema da assistência governamental à pecuária, acha-
va-se a política de combate às doenças e distribuiçaio de vacinas, que o
governo estadual realizava através da Diretoria de Agricultura, Indús
tria e Comércio da Secretaria de Obras Públicas.
As doenças do gado, sua possibilidade de combate e a intensifica
ção do uso da vacina, soros e banheiros canapaticidas eram problemas
que afetavam os criadores e que eram enfatizados desde a República Ve
lha nos Congressos Rurais.
Com uma nova força, surgia agora a idéia das pastagens forrageiras.
O exemplo do Prata apontava, mais uma vez, o caminho a seguir,
tal como se dera com relação à mestiçagem do gado.
Embora Udando com uma realidade bem mais recente (década de
50), o trabalho de Paulo Shilling considera como um dos entraves do
desenvolvimento da pecuária gaúcha a carência de pastagens artificiais,
que sacrificava o gado no inverno. No seu entender, as pastagens artifi
ciais engordavam em um ano igual número de reses do que em cinco
anos em campos nativos.^^
Correspondendo à preocupação de parte dos fazendeiros, o gover
no estadual criou, em 1932, o Serviço de Agrostologia para dar início
ao melhoramento das pastagens no estado, procurando estudar, selecio
nar e difundir as forrageiras naturais. Os estudos começaram a ser reali
zados no Posto Zootécnico de Montenegro, devendo o Serviço de
Agrostologia realizar estudos e distribuir informações e sementes aos in
teressados.^®
Aproposta mais avançada em termos de pecuária, que implicava
um esforço dos criadores para penetrarem no terreno da industrializa
ção da carne nos moldes da frigorificação, seria colocada em pauta pela
vanguarda dos criadores durante o VCongresso Rural, realizado noes
tado, em maio de 1931.
Em especial, a nova idéia era defendida pelos criadores dazona da
serra, agremiados na Liga Pró-Engrandecimento de Cruz Alta e na Casa
Rural de Tupanciretã. Seu delegado, o destacado ruralista FortunatoPi-
mentel, apresentou, no V Congresso, um trabalho sobre a necessidade
de instalar-se uma empresa frigorífica nacional na região da serra, a fim
de abastecer mercados de consumo interno, inclusive Porto Alegre. O
Frigorífico Nacional Serrano poderia também valer-se do capital estran
geiro, mas desde que em igualdade de condições com o capital nacional
e tendo a dirigi-lo os próprios criadores. Objetivando suprimir a figura
dos intermediários na venda dos produtos, a forma de constituição da
57 Shilling, Paulo. Crise econômica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Difusão
de Cultura TécnicaEditoral, 1961. p. 92.
58Relatório..., op.cit.p. 62-3.

76
entidade seria o cooperativismo. Cada município teria a sua entrada de
capital na empresa garantida por ações. A nova indústria esperava ainda
encontrar apoio para asua efetivação no Banco do Rio Grande do Sul.^^
Ao lado da idéia apresentada por Pimentel, outras comunicações
apareceram no Congresso, indicando o caminho da indústria do frio co
mo a solução mais acertada. Joaquim Luís Osório, por exemplo, coloca
va o problema da instalação de um frigorífico nacional em termos de
exportação tanto para o exterior como para o mercado interno, haven
do necessidade de estarem as carnes isentas de tributação e de poderem
utilizar-se das empresas de navegação com câmaras frigoríficas. Na opi
nião de José Lopes Amoni, que apresentou trabalho sobre o assunto,a
criação de um frigorífico nacional oportunizaria a que as melhores car
nes que o Rio Grande doSul produzia pudessem deixar de ser colocadas
exclusivamente no estrangeiro, como até então se dava, e abastecessem
também o mercado interno. No que toca ao capital necessário para o
empreendimento, este criador de SantaVitória do Palmar lembrava que
recentemente fora fundado no estado um estabelecimento de crédito, o
Banco do Rio Grande do Sul, com o fim profícuo de atender à agricul
tura e à criação. Seu capital, contudo, não fora utilizado para a funda
ção de um frigorífico nacional, substituindo a charqueada por um mo
derno processo de industrialização das cames.^®
Na verdade, o Banco do Rio Grande do Sul concentrava seus re
cursos na salvação da safra do charque e na liberação dos criadores de
suas dívidas. Não se converteu, portanto, num instrumento que, naque
la instância, possibilitasse a renovação do processo produtivo dacarne,
mas sim como uma medida de emergência para sanar velhos problemas.
No que tange ao problema da qualidade da carne vinculada ao
problema do frigorífico, Gaudêncio N. Conceiçãoafirmava que o preço,
no momento, pago pela came era menordo que em 1914.Nãoera pos
sível que o frigorífico não pudesse pagar mais por carnes de boa quali
dade como asoferecidas pelo Rio Grande; o problema residia no fato da
baixa cotação da came brasileira ser atribuída em fimção da came que
São Paulo remetia aos frigoríficos, oriunda deMato Grosso e Goiás e de
baixa qualidade.
Na medida, porém, que tanto os criadores quanto os poderes pú
blicos se interessassem em manter um frigorífico com capital e adminis
tração nacionais, a situação se modificaria e o preçopago pela carne se-

O melhor passo em prol da indústria pastoril: o frigorífico nacional serrano.


Correio do Povo, Porto Alegre, 21 maio 1931. p. 3.
A situação do comércio de carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 5 jun. 1931.
P. 7.

77
ria compensador.^^
Armando Severo, delegado de São Francisco de Paula, colocava
que o gado do Rio Grande do Sul era mais mal pago que os platinos,
não pela sua inferior qualidade, mas devido à falta de concorrência, por
que as charqueadas não podiam concorrer com os frigoríficos no preço
pago à matéria-prima, ficando estes, portanto, livrespara agir. Isto ocor
ria "pela diferença para menos existente entre o rendimento que um
boi produz para charque e para carne frigorificada
Nesta medida, a formação de um frigorífico nacional traria tanto
a alta do preço do gado quanto incentivo para o estancieiro refinar seu
rebanho.
Outras sugestões apareceram quanto à localização do projetado
frigorífico, tal como a que propunha que o mesmo fosse instalado em
Porto Alegre.
O govemo do Estado, que se fizera representar no Congresso pelo
Dr. João Fernandes Moreira,Secretário de ObrasPúblicas, enfatizou aos
criadores que poderiamcontar com o apoio do poder público, destacan
do que sua maior preocupação até então tinha sido amparar a pecuária,
salvando-a da crise. Em discurso pronunciado posteriormente, numa
das sessões do Congresso, Flores da Cunha dissertou sobre a necessidade
da fundação de um frigorífico e do melhor aproveitamento da carne e
sua exportação para o resto do país.
Em parecer da FARSUL sobre o assunto, ficou estabelecido que
os criadores deveriam, através do seu órgão declasse, congregar-se para
fundar matadouros-modeio, sob a forma de cooperativas regionais liga
das através da entidade e amparadas pelo govemo doestado quanto ao
capital necessário. Além disso, seriam concedidos poderes à FARSUL
para organizar uma comissão para estudar as probabilidades de constm-
ção de frigoríficos no estado, elaborando umprojeto definitivo sobre os
mesmos.^ ^
Enquanto que a idéia do frigorífico posicionava-se como a propos
ta mais arrojada dos estancieiros, a da constituição de matadouros-mo-
delo implicava apenas a eliminação da figura do intermediário - char-
queador, no caso—sem alteração do processo produtivo.
Como tema adicional do Congresso, foi retomada a questão dos
transportes, sendo reiterada a tradicional petição ao governo em torno

61 Foi instalado, anteontem, o VCongresso Rural. Correio doPovo, Porto Alegre,


26 maio 1931. p. 8-9.
62Os trabalhos do V Congresso Rural. Correio doPovo, Porto Alegre, 28 maio
1931. p. 8.
63 Ainda o V Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 31 maio 1931.
p. 9.

78
do barateamento dos fretes da Viaçâiò Férrea e do aparelhamento dos
vagões para transporte das carnes frigorificadas.
A idéia da criaçâ:o de um frigorífico rio-grandense assumiu, neste
momento, o caráter de um empreendimento nacionalista, de preserva
ção de uma riqueza que estava sendo monopolizada pela indústria es
trangeira. A problemática em tomo do aproveitamento da carne fez,
neste início da República Nova, com que passasse para um segundo
plano o conflito intraclasse que opunha os charqueadores aos estan-
cieiros, aparecendo na primeira linha a acusação aos sindicatos estran
geiros que dominavam de forma absoluta o mercado da carne frigorifi-
cada. A discussão em tomo do tema atingiu, inclusive, o centro do
país, aparecendo no jornal "A Noite" um comentário sobre a situação
vivida pelo Rio Grande do Sul:
Ninguém mais do que nósprecisa do concurso do capital
alheio para criação e desenvolvimento de indústrias em geral,
mas é indispensável que esse concurso se apresente de maneira
a equilibrar os interesses dos capitais invertidoscom os da eco
nomia do país. No Rio Grande do Sul instalaram doisgrandes
frigoríficos Armour e Swift. Dispondo de recursosfinanceiros
sem limite, apossaram-se do mercado , onde ditam a baixado
gado em pé, que adquirem dos criadores, e a alta das carnes
preparadas, que entregam ao consumo público. Fica-lhes assim
uma exagerada margem de lucros, semprecrescentes, e que não
é possível limitardentrodo razoável, porquea nossa legislação
não oferece freios restritivos da especulação. Senhores do esta
do, sem outros concorrentes nacionais, os frigoríficosgpúchos
impõem aos criadores o preço que estipulam, abstendo-se de
aquisições sempre que a oferta saifora das tabelaspréviasque
organizam.
A idéia da implantação do frigorífico ressurgia, assim, com um
conteúdo nacionalista, adequado à problemática vivida pelos países de
pendentes após a grande crise de 29. O interesse fundamental do Rio
Grande do Sul, através da ação de sua classe dominante, eradefender a
agropecuária na sua integração ao mercado nacional. A idéia da indus
trialização da came adquiriu excepcional importância porque dava à
classe dominante a configuração de "setor industrial", promotor efeti
vo do desenvolvimento do capitalismo no sul. Além disso, possibilitava,
através de uma visão modemizante, uma indústria natural que não im
plicava a negação do modelo agropecuário instalado, mas antes o refor
çava. Tratava-se de dar dinamicidade ao processo de transformação da
matéria-prima mais importante do estado, a carne, na qual participariam

A situação do comércio de carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 3jun. 1931.


p. 5.

79
os mesmos agentes sociais ligados à criação de gado.
O reforço da idéia era dado na medida em que tal processo indus
trial se achava, no estado, em mãos estrangeiras. O monopólio exercido
pela Swift e pela Armourna frigorificação de cames e a manifesta explo
ração em que mantinham a pecuária sulina contribuíam para acentuar o
caráter nacionalista desencadeado, que procurava dar condições à reali
zação da capitalização interna.
Dentro da visão da classe dominante nas novas condições criadas
na República Nova, a idéia de nacionalismo adquiriu um especial signi
ficado, na medida em que se tomou uma força capaz de congregar ele
mentos de classe para defesa de seus interesses contra uma exploração
que, em conjunto, experimentavam com relação às empresas estrangei
ras.

Ao mesmo tempo, foi capaz de dar novo sentido à integração do


Rio Grande no mercado nacional, reforçando, com isto, a estmtura
agropecuária montada e, ao mesmo tempo, o esquema de dominação
instalado. Os criadores, no caso, não encontravam os mesmos atritos
que os charqueadores, na sua relação de subordinação ao centro.
Referindo-se ao modelo segundo o qual se realizava o capitalismo
no sul, Müller afirma que seu conteúdo básico achava-se
l,,] na expropriaçõo do valor do trabalho do trabalha-
dor rural em geral não proprietário, do pequeno agricultor pro
prietário e pequeno criador e dos assalariados urbanos, quer di
zer, a expropriação do valor criado assume outras formas nas
atividades que se prolongam aquelas do campo, nas indústrias
de beneficiamento dos produtos agropecuários como carne fri-
gorificada, enlatada e derivados, charque, lãpreparada, couros
e peles, arroz e trigo descascados e trigo em farinha, farinha de
mandioca, etc,^^

Quanto às relações da produção que se exerciam na criação e na


charqueada, já se viu que elas se revestiam de uma especificidade pró
pria, típicas à forma de atividade e à imprecisão das mesmas dentro de
uma conotação capitalista mais acentuada. Considerado como dado
aceito a superexploração do trabalho nestas atividades, a representação
que os elementos da classe dominante dos pecuaristas fazia do processo
era justificada mediante a idealização das relações entre patrão e empre
gado rural, com utilização de critérios tais como "cordialidade", convi
vência mútua", "estilo comum de vida", "devotamento", "proteção".
No caso da implantação de um frigorífico nacional, a idéia era
pensada, inclusive, em termos de oportunização de maior emprego e

Müller, op. cit., p. 128.

80
utilizaçâ:o de mão-de-obra local.
A comissão que se reunia para decidir quanto à nova empresa de
frigorificação^^ chegou à conclusão de que deveria se constituir uma
cooperativa dos criadores gaúchos, a fim de industrializar a carne, pro
movendo a construção de matadouros e frigoríficos nas regiões mais
apropriadas do Rio Grande. Sugeria a comissão que fossem construídos
matadouros-frigoríficos em Porto Alegre, Tupanciretã e Cacequi e câ
maras frigoríficas nos portos da capital. Rio Grande e mercados de con
sumo. Quanto ao capital necessário para o funcionamento das empresas,
seria cobrada pelo governo estadual uma taxa que incidiria sobre a pe
cuária. A importância da contribuição paga por cada criador ser-lhe-ia
creditada para participar nos lucros da sociedade. Tanto o governo do
estado como a FARSUL teriam representantes seus dentro da coopera
tiva.
A diretoria da FARSUL, a "comissão de carnes" e o governo do
estado mantiveram vários encontros para o acerto da constituição defi
nitiva da nova sociedade, participando os demais criadores, pela impren
sa, do debate em torno da questão. Como norma geral, divergiam quan
to à localização e o número de estabelecimentos a fundará ^
Em carta circular aos criadores, a FARSUL pediu o seu apoio à
fundação da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes, mandando também
ao chefe do Governo Provisório, identificado como pertencente à comu
nidade pastoril sul-rio-grandense. Na resposta endereçada à diretoria da
FARSUL, Getúlio Vargas solidarizou-se com os estancieiros gaúchos e
sua Federação Rural, louvando o empenho do interventor federal para
que a idéia do frigorífico vingasse no estado. Referia ainda Getúlio,
identificando-se como "membro da coletividade rio-grandense":
Para os criadores rio-grandenses, o passo mais dificulto
so e decisivo, no caso é, sem dúvida, o da obtenção do capi
tal necessário a esse importante empreeendimento, parecen-
do-me que a forma cooperativa é, realmente, a mais aconse
lhável ^
Além do apoio do governo central à iniciativa, os criadores conta
ram com a opinião favorável de Borges de Medeiros ao movimento,
além da do Gen. Ptolomeu de Assis Brasil, então interventor federal
A organização da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo,
Porto Alegre, 18 jul. 1931. p. 10.
A "comissão de carnes" estava formada por Joaquim Luís Osório, José Lopes
Arnoni, Marcial Terra, Gui^erme Tell Francisconi, Olímpio Guerra, Severino
Lessa, Jorge Porto, Normélio Ferreira, Armando Severo e João Aquino dos
Santos.
Correio do Povo, jun. a jul. 1931.
A organização da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo,
Porto Alegre, 18 jul. 1931. p. 10.

81
em Santa Catarina.
Em 24 de julho de 1931, na sede da FARSUL, os criadores reuni
dos instalaram a Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes, saudada co
mo "velha aspiração da classe".
O governo do estado hipotecou à nova entidade seu apoio moral e
material. Em nome do interventor federal, falou o Secretário de Obras
Públicas, Joâ:o Fernandes Moreira, colocando que o governo manifes
taria seu apoio lançando no orçamento de 1932 um imposto adicional
sobre a pecuária, que era cobrado pelos municípios. O imposto, calcula
do na base de uns 5.000 contos e que incidiria sobre as populações
ovinas, suínas e bovinas, constituiria um fundo destinado aos serviços
de juros e amortizações do capital a ser levantado pela Federação por
meio de empréstimo.^® Desta forma, o governo do estado teria uma
atuação direta na administração da cooperativa. Face às várias opiniões
para estabelecimento de frigoríficos no estado, o governo era de opinião
que, primeiramente, fosse estabelecido um entreposto na capital, sendo
após, na medida do possível, criados os demais.
Os estatutos da nova entidade foram aprovados no início do mês
de agosto de 1931, fixando a sua sede em Porto Alegre e tendo a socie
dade cooperativa a duração de 30 anos. Dentre seus objetivos, destaca
vam a perspectiva da defesa da produção pastoril gaúcha, sua melhoria
e desenvolvimento mediante a industrialização, para o que seriaminsta
lados matadouros-modelo, frigoríficos e entrepostos. A cooperativa
buscava ainda encaminhara vendados produtos e subprodutos da indús
tria pecuária do estado nos mercados, promovendo a centralização dos
negócios e a estandartização dos tipos. Entre outras coisas, a entidade
poderia também exportar gado em pé e frigorificar produtos agrícolas.
No que tange ao capital, este seria limitado quanto ao máximo e com a
quantia de cem contos de réis como mínimo. Admitiria, como sócios,
criadores, invemadores ou profissionais de indústrias conexas à pe
cuária.^ ^
Como presidente da nova entidade, foi escolhido o ruralista Mar
cial Terra, grande incentivador da idéia da frigorificação de carnes no
Rio Grande.
Recém constituída, a Cooperativa começou a enfrentar alguns
problemas, tal como o da destinação da futura produção. A nível de
mercado externo, a limitação se dava pela concorrência dos frigoríficos
estrangeiros e, no tocante ao mercado interno, notícias chegavam do

70 Uma velha aspiração dos criadores do Rio Grande do Sul. Correio do Povo,
Porto Alegre, 24jul. 1931.p. 8. j
71 Estatutos da Cooperativa Sul-RioGrandense de Carnes Ltda. Correio doPovo,
Porto Alegre, 2 ago. 1931. p. 10.

82
Rio de Janeiro e São Paulo que também as empresas de frigorificação
alienígenasestavaminvadindo a praça.
A ação das empresas estrangeiras contribuía para exacerbar o as
pecto nacionalista do problema, sendo apontados todos os malefícios
causados pelos frigoríficos alienígenas: monopolização do mercado,
manobras baixistas, descrédito ao processo de refinamento do gado, efe
tuando grandes compras de zebu. Propostas mais exaltadas sugeriam
medidas drásticas para regulamentação dos mercados nacionais de carnes:
1?) Reservar para os estabelecimentos explorados pelas
associações de classe a faculdade de venda no pais da totalida
de de suas produções.
2?) As firmas particulares, nacionais ou estrangeiras só
poderão vender no pais até 15%, no máximo, da totalidade
de cada espécie de mercadorias que tenham produzido; e isso,
na proporção em que tiverem exportado os 85% restantes em
cada classe.'^^
Nas empresas constituídas a partir das associações de classe, não
poderia haver mais do que 20% de capital estrangeiro em cada uma.
Opiniões mais cautelosas, contudo, também se faziam ouvir, con
siderando desaconselhável que o govemo se posicionasse contra o capi
tal estrangeiro. Este, com sua superioridade técnica e financeira viera
dar um impulso à produção pecuáriagaúcha, que, caso contrário, estaria
até então operando na base do charque. Uma vez recebendo privilégios
para estabelecer-se, era até natural que quisessem tirar partido, amplian
do seus lucros. Esta forma de encarar a situação aconselhava cautela: en
quanto os frigoríficos estrangeiros tinham capital, técnica e domínio do
mercado, o rio Grande estava dependente disso tudo . Era preferível
começar em moldes modestos, intervindo junto aos poderes públicos
para entrar em acerto com outros estados da união e até com as compa
nhias de navegação inglesas quanto ao transporte.^ ^
Outra questão continuavaainda pendente: aquela do número e lo
cal de frigoríficos, não chegando os criadores a um acordo.
No que diz respeito ao capital da Cooperativa Sul-Rio-Grandense
de Games, foi finalmente aprovado, em 25 de novembro de 1931, um
imposto sobre a população bovina, suína e ovina do estado. A taxa de
cooperação, como foi chamado, implicava na importância de 2% so
bre a receita ordinária do estado e na majoração do imposto pecuário
cobrado pelos municípios, montando a 300, 200 e 100 réis por cabeça
de gado bovino, suíno e lanígero.^^
72 Pecuária, aspectos de um problema. Correio do Povo, Porto Alegre, 10 out
1931. p. 3.
73Cooperativa de carnes. Correio doPovo, Porto Alegre, 22 out. 1931. p. 3.
74 A defesa da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 nov.
1931. p. 5.

83
Embora, aos poucos, fosse constituída a nova entidade, com
apoio do governo estadual e federal, a crise econômico-financeira dos
criadores não fora sanada ainda. A adoção da balança para pesagem
do gado, as facilidades para importar reprodutores, a suspensão da co
brança do imposto de exportação do gado de corte para o Uruguai, a
distribuição de vacinas, a criação de um serviçode agrostologiae mesmo
a redução para 4% dataxa de incidência sobre alãexportada do estado,^^
todas eram medidas de socorro às condições dos fazendeiros. Contudo,
não eram suficientes para renovar o processo produtivo e indicar um no
vo caminho para a pecuária que não o fornecimento de carne para a ob
soleta charqueada ou a empresa estrangeira. Em suma, dentro de uma si
tuação de crise, a pecuária manifestava-se descapitalizada e a problemá
tica do crédito para financiamento da safra estourou no final do ano de
1931. Com o apoio de Flores da Cunha e de Assis Brasil,então Ministro
da Agricultura, os criadores, através da FARSUL, pleitearam ao chefe
do Governo Provisório que autorizasse ao Banco do Brasil fazer contas
correntes com garantias hipotecárias e juros módicos aos fazendeiros do
estado. Argumentavam que São Paulo e Pernambuco haviam consegui
do, dessaforma, auxílio para o café, o açúcar e o algodão, e Minas Gerais
para as suas indústrias. A esperança dos criadores na ação de Vargas fun-
dava-se inclusive na "administrarão genuinamente econômica" que vi
nha imprimindo ao governo e na "solicitude e boa vontade invulgares"
com que atendia ás reivindicações das classes produtoras de então. Com
relação especificamente a Flores da Cunha, soUcitava-se que o mesmo
intercedesse pelos criadoresjunto às instituições bancáriasdo estado pa
ra que fosse facultado aos criadores saldarem seus compromissos apenas
depois da safra.^ ^
Argumentavam os criadores que o auxílio à pecuária redundaria
no auxílio à própria coletividade rio-grandense, uma vez que sobre a pe
cuária se assentavam as bases econômicas do estado. Era, em suma, a
atividade que mais concorria para os cofres públicos. Não cabia aosfa
zendeiros parcela de culpa pela aflitiva situação em que se achavam,
com total falta de crédito nos bancos. Antes, o que determinara isto
fora o seu zelo progressista, que os fizera imobUizar suas reservas no
aumento de rebanhos e propriedades, ao qual viera se sobrepor a crise
mundial.
Com o início do novo ano, os fazendeiros enfrentavam duas
sortes de expectativas: uma relacionada com o andamento dos traba-

Leis, decretos e atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. p. 193.


Decreto n? 4.873, de 14 de outubro de 1931.
76 A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 27
dez. 1931. p. 13.

84
lhos da organização da cooperativa, que entravam agora na fase do esta
belecimento das relações que a entidade manteria com o governo esta
dual em face ao imposto cobrado por este e pelas prefeituras; outra,
que se relacionava com os preços que seriam oferecidos pelos frigorífi
cos na próxima safra. Ao aproximar-se a época das matanças e estando
os rebanhos platinos desfalcados, esperavam os fazendeiros que as em
presas estrangeiras, com necessidade de utilizarem os gados de boa qua
lidade da fronteira, pagariam preços bemmelhores.^ ^
As perspectivas de bons preços não se efetivaram na safra de 1932.
Malogradas as expectativas dos estancieiros para com as compras dos fri
goríficos, restava a perspectiva de atendimento do governo às necessida
des de crédito para a pecuária. Em especial, a crise estava afetando so
bremaneira os arrendatários, face aos compromissos assumidos com os
arrendamentos e com os pagamentos do fisco. Pleiteavam estes o penhor
pecuário como único meio para obter dinheiro e saldar seus compromis
sos.'^®
No final do mês de março de 1932, foi finalmente assinado um
contrato entre o governo do estado e os Bancos do Brasil e do Rio
Grande. Através do contrato, ficou estabelecido que seria concedido
um empréstimo aos fazendeiros gaúchos até a quantia de 50.000 contos,
pelo Banco do Brasil, através do Banco do Rio Grande do Sul. O em
préstimo podia ser hipotecário ou de penhor pecuário, sendo o juro de
8% anual e mais 1,4% por semestre, no prazo de quatro anos e meio.^^
Iniciando o Banco do Rio Grande do Sul a movimentar a sua
carteira hipotecária, começaram os fazendeiros a reclamar, alegando que
o estabelecimento de crédito estava colocando a cotação dos bens pe
cuários muito abaixo do seu valor. Não satisfeitos com a orientação do
banco, os estancieiros foram a Flores da Cunha que considerou que as
reclamações eram procedentes, mas também a diretoria do banco era
digna de sua confiança. Prometeu, em suma, tentar encontrar uma solu
ção que agradasse a todos.® ®
Até o final do mês de maio, contudo, já haviam sido realizados
pelo Banco do Estado 34 negócios, no valor de 6.168 contos de réis,
que atingiram os municípios de Lavras, Alegrete, Cruz Alta, Tupancire-
tã, Júlio de Castilhos, Uruguaiana, Livramento e Cachoeira. Os pedidos
de empréstimos, entretanto, continuavam a afluir e já atingiam a soma
Em defesa da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 jan.
1932. p. 7.
'78 Auxílio à pecuária rio-grandense. Correio doPovo, Porto Alegre, 2 abr. 1932.
Ibidem.
80Os fazendeiros rio-grandenses e o penhor pecuário. Correio do Povo, 28
abr. 1932. p. 7.

85
de 70.000 contos de réis, excedendo o limite do crédito concedido que
havia sido fixado em 50.000 contos.
Em suma, na Nova República que se iniciava em 1930, o Rio
Grande consolidava o "modelo" agropecuário de desenvolvimento,
possibilitador da sua integração ao mercado nacional. Achando-se es
te setor da economia em crise (charqueada, frigorífico e críaçâü), a
classe dominante buscou saídas que implicavam, por um lado, a sua
articulação maior dentro dos órgãos de classe e, por outro, em deman
das crescentes de auxílio ao governo local e central. Neste contexto,
a fração charqueadora apresentava-se a mais retrógrada, com iniciati
vas que diziam respeito à área de circulação, enquanto que os criado
res, através de sua "vanguarda", apresentavam um projeto acabado
que implicava a implantação de um frigorífico nacional. Neste empe
nho, mobilizaram-se a FARSUL, o governo do estado e o Governo
Provisório, através de medidas que minorassem a classe e possibilitas
sem a efetivação do projeto. Instalada a CooperativaSul-Rio-Grandense
de Carnes, contudo, todos os problemas decorrentes da crise dificulta
vam a sua operacionalização em termos de efetivar a rápida montagem
de um frigorífico.
Em meio à crise da pecuária, às expectativas que se frustravam e
outras que se mantinham, teve lugar a cisão política ocorrida no estado,
relacionada com acontecimentos ligados à contra-revolução que reben
taria em São Paulo contra a orientação do Governo Provisório.
Na nova situação que se apresentava, os dados fundamentais a
contar eram, por um lado, a permanência da crise da pecuária que a to
dos afetava indistintamente; por outro, o fator novo, diferenciador do
processo ocorrido em 1930: a cisão política da classe dominante local,
posicionando-se parte dela ao lado do governo central e parte aderindo
ao movimento de reação brotado em São Paulo.

3.2 —A dsâo política: a "ala regional" e a "ala nacional"(1932)

O Governo Provisório, que se instalou pós-30, enfrentou toda


uma sorte de problemas numa das fases mais críticas da economia bra
sileira:falia o modelo de desenvolvimento baseado na exportação de um
único produto responsável pela entrada de divisas no país; por outro la
do, a crise financeira de 29 retirou do Brasil as condições de renovaras
fontes de financiamento extemo para a sustentação do produto. Afeta
da gravemente a zona central de economia do país, as regiões periféri
cas, também atingidas pela crise, reclamavam atendimento imediato
para seus problemas: açúcar, algodão, pecuária, madeiras, carne, mate,

86
enfim, todo o Brasil ressentiu-se gravemente do desequilíbrio que sofre
rá o sistema capitalista mundial.
A questão que demandava urgência de solução era, pois, o resta
belecimento do equilíbrio da economia brasileira, corrigindo as distor
ções de a mesma basear-se, quase que exclusivamente, na venda de um
único produto para o mercado internacional. Os demais setores da eco
nomia demandavam, também, pronto atendimento, não só apenas pela
situação específica que cada um atravessava, mas pela preocupação de
se obter outras formas de sustentação para o país, mediante a diversifi
cação econômica.
Tratava-se, em suma, da conservação do capitalismo, já vigente no
período anterior, que necessitava se expandir e encontrar novas formas
de acumulação. Na medida em que se preservava o capitalismo, pressu-
punha-se a conservação da burguesia como um todo, na função de clas
se dominante. Contudo, a crise sofrida pela economia brasileira não per
mitia que nenhum setor em especial se encontrasse em condições de
afirmar a sua predominância sobre os demais.®^ Ao mesmo tempo,
conservar a burguesia como predominante, a nível nacional, não sig
nificava fazer prevalecer a estrutura política do regime deposto, quan
do, através de um Estado oligárquico, se exercia o poder político in
contestável daqueles setores dominantes.
Em suma, a problemática básica — e origem fundamental do
conflito interclasse que se manifestaria —estava em assegurar, nas no
vas condições vigentes, a sobrevivência do capitalismo, a conservação
da burguesia como classe dominante, mas com a submissão política
das oligarquias regionais. É dentro desta perspectiva que se admite a
relativa independência do Governo Provisório, quando o Estado se
torna o agente capaz de fazer prevalecer esta acomodação ou com
promisso. Um Estado onde os segmentos sociais que o compõem,
oriundos da própria burguesia nacional ou de elementos cooptados
até a máquina administrativa para defender aqueles interesses, se
apresentam como uma elite dirigente capaz de fazer prevalecer este
esquema dado.
Esta situação implicava o atendimento das reivindicações das
oligarquias, mas daquelas reivindicações que atendessem aos problemas
econômicos das regiões periféricas, pois assim se contribuía para con-

®1 "Le fait que Vargas apparaisse comme se situant "au dessus" des classes, fac-
tions et partis, ce qui rappelle immédíatement le modèle du bonapartisme ou d'
une situation "D'équüibre binaire", comme disait Engels, indique effectivement
Texistence d'un équüibre de forces*'. Martins, Luciano. Politique et developpe-
ment économique, structure de pouvoir et système de décisionsau Brèsil (1930-
1964). Paris, 1977. (tese de doutorado, xerografada)

87
tomar a crise, estimular a produção e gerar condições de expansão à
economia nacional. Quando se tratou, porém, da articulação política
das oligarquias, ou seja, da possibilidade das mesmas exercerem direta
mente o poder político em fimção de seus interesses específicos, não se
tomou possível o entendimento de setores oligárquicos da periferia com
o Estado. Ante a pressão das oligarquias, o Govemo Provisório reagiu
favoravelmente nas suas reivindicações econômicas, porque a inter
mediação destes setores com o Estado, dentro da novaestmtura que se
pretendeu implantar, era através dos órgãos de classe, dos níveis seto
riais. Esta atitude implicava em despolitização da oligarquia, mantendo
uma margem de manobra do Executivo Central com relação às classes
dominantes, que, para continuarem a exercer a sua dominação, se viam
afastadas do controle direto do poder político.^^ Acontrapartida des
te processo era a submissão e desarticulação das classes dominadas, ar
ma com que contaria o govemo, acenando para os perigos da "questão
social" e do extremismo, para alarmar a burguesia e fazé-la concordar
com a despolitização e a marcha para o autoritarismo.
Este processo só se completou com a instalação do Estado Novo,
mas é possível acompanhá-lo desde os momentos iniciais da Segunda
República, tendo um momento importante de análise no caso da con
tra-revolução de 1932.
A postura do Govemo Provisório, embora não ainda plenamente
conscientizada e definida, é possível de ser surpreendida nas palavras de
Getúlio Vargas, em manifesto lido a 14 de maio de 1932 na Câmara dos
Deputados:
Dissertam, levianamente, os que acusam o Govemo Pro-
viário pela falta de diretrizes predeterminadas. Esquecem, po
rém, que tais diretrizes não podem ser traçadas arbitrariamen
te. Elas devem originar-se e distender-se, segundo os anseios do
povo e as infunções das necessidades nacionais. [. .. ] O Gover
no Provisório não fez política, no sentido de submeter-se aos
postulados e às solicitações dos interesses de partidos, de clas
ses ou facções. Todo seu esforço consistiu em firmar a ordem
material, para tomar possível a realização dos melhoramentos
e reformas exigidas peta nova situação do país. [. . . ] Entre
as aspirações em choque, o papel do Govemo Provisório não
pode ser o de parte interessada e contendora. Cabe-lhe, apenas,
coordenar esforços para tomar efetiva a obra saneadora da re
volução sob o seu duplo aspecto material e moral [. .. ] Com
efeito, triunfante a revolução, impunha-se extinguir a desor-

82 Cf. Rowland, Robert. Classe operária e estado de compromisso. São Paulo,


Estudos CEBRAP 8, Brasiliense, jan., fev., mar. 1974; Vianna, Luís Werneck.
Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

88
dem reinante, em todos os setores da administração pública,
para só depois cogitarda reconstrução política,®^
O Governo Provisório tentava, em primeiro lugar, solucionar os
problemas econômico-financeiros, tomando medidas para diversificar e
estimular a produção nacional. Profundamente marcado pela crise do
capitalismo, num contexto onde se revelou com maior clareza a vulne
rabilidade da economia brasileira, o Brasil da República Nova experi
mentava a percepção de uma problemática não apenas cafeicultora mas
nacional. A idéia de atendimento aos problemas locais, de necessidade
de desenvolvimento das forças produtivas do país, de molde a fazê-lo
sair do impasse em que se achava, a flagrante constatação de depen
dência em que o Brasil se achava do capital internacional, seriam todos
fatores que desembocariam numa idéia nacionalista ainda muito difusa
e imprecisa. Tal nacionalismo se expressaria fundamentalmente, neste
período, em idéias de integração nacional do mercado, preservação e
desenvolvimento da produção do país nos seus vários setores e desen
volvimento das "indústrias naturais", como forma única possível de en
contrar uma saída fora dos moldes da agroexportação.
A classe dominante era eliminada como oligarquia quanto ao
exercício direto do poder, satisfazendo-se, em contrapartida, as suas
exigências no nível econômico.
A questão política —que, na época, foi conscientizada pela fór
mula da "reconstitucionalização do país" —foi deixada pelo Governo
Provisório como que em segundo plano. O problema, contudo, tendeu a
agravar-se na medida em que, para manter o Poder Executivo com uma
independência relativa, foi usado o elemento tenentista.
Na opinião de Love,®^ as tendências demonstradas pelo Governo
Provisório de utilização dos tenentes nos postos-chaves de mando,
ocupando importantes interventorias, preocupavam os grupospolíticos
tradicionais, que temiam o desmantelamento das máquinas estaduais.
Parte das oligarquias periféricas começaram a experimentar um
processo de reversão de expectativas, na medida em que pensavamque
conduziriam a nação. Retoma-se aqui a noçãojá apresentada no capítu
lo 1 de que a Revolução tivera como ceme uma cisão oligárquica. Tais
grupos oligárquicos tradicionais pensavam muito mais numa mudança
de homens, ou de oligarquias dirigentes, do que numa substituição da
estrutura de poder vigente no país.
O que ocorreu pós-30, contudo, foi a vigência de uma estrutura

83 Rio Grande do Sul em revista. 1932. Porto Alegre, Tipografia Thurmann,


1932. p. 28-30.
84 Love, Joseph. O regionalismo gaúcho. SãoPaulo, Perspectiva, 1971.p. 270.

89
econômica mais diversificada, a maior integração do mercado nacional
e a afirmação maior do poder central sobre os estados.
Com relação específica ao caso do Rio Grande do Sul, a Revolu
ção não alterou a hegemonia e predominância do setor agropecuário,
embora imerso em crise. A reiteração do modelo agropecuário estadual
implicava a consolidação da noção de constituir-se o Rio Grande em
"celeiro do país", portanto integrado ao mercado nacional. Esta inte
gração consolidava a manutenção da dependência econômica, embora
tal idéia não estivesse consciente para os agentes sociais neste período.
O atendimento a problemas econômicos locais era feito à medida em
que a classe dominante local, incapaz de, por si só, solucionar seus
problemas, pressionava o Estado, a nível local e federal.
Anível estadual, a interventoria de Flores daCunha representou a
permanência dossetores ligados à agropecuária no poder. Neste sentido,
o Estado cumpria a suafunção básica de regulamentar o funcionamento
da sociedade e dar continuidade às relações que conservavam ossenho
res de terra e gado como classe dominante. Como foi visto. Flores da
Cunha procurou salvar o charque da crise e prestigiar o movimento de
renovação dos criadores que pretendiam montar um frigorífico, além
de outra série de medidas complementares para atender as exigências
da pecuária.
Quanto ao nível federal e à satisfação das necessidades da agrope
cuária sulina, viu-se que o atendimento aos problemas locais se dava na
medida em que não colidissem com os interesses ditos "nacionais". Isto
se dava não em função de um setor ser prioritário sobre osdemais, mas
porque realmente, no pós-30, o Govemo Provisório enfrentou uma pro
blemática de nível nacional, com variados pontos a atacar.
A cisão gaúcha se dará no nível político quando um setor daclas
se dominante, que neste trabalho será chamado de "regional", preten
deu, além da satisfação dos interesses econômicos locais, aspirar à he
gemonia política ou, pelo menos, resguardar a independência do poder
de mando das velhas oligarquias estaduais.
Como característico deste tipo de visão, é significativo o discurso
realizado porJoão Neves daFontoura aos paulistas em 1932:
Oriunda de umajornadagloriosa que sepropunha a aca
bar com o poder pessoal dos Presidentes e devolver à Nação^
por um ato de força, o gozo de sua soberania inviolável, a di
tadura é o sirnbolo do mais irritante e agressivo personalismo,..
A ditadura só tem atiçado o fogo dasdivisões e dos atritos en
tre os cidadãos e os Estados, Ingrata e amnésica, menoscaba os
gloriosos partidos do Rio Grande do Sul que tudo lhe deram,
desde os votos de março até os soldados de outubro, A criatu
ra, guindada ao poder, apunhala o criador, que apenas lhe re-

90
clama paz, sinceridade de propósitos, eleições livres e ordem
jurídica,^ ^
Os partidos políticos tradicionais, em suma, sentiam-se como que
traídos por Getúlio Vargas, homem saído das fileiras do PRR gaúcho,
que fora guindado ao poder central pelo apoio da FUGe que agoravol
tava as costas para o que eles consideravam "os ideais da Aliança Libe
ral". Na verdade, a oligarquia gaúcha tinha assim frustradas as suas
expectativas de substituir-se à oligarquia paulista no exercício do man
do do Executivo central.
Em carta escrita a Borges de Medeiros, em 20 de julho de 1932,
João Neves contribuiu para explicitar aindamaisa reversão de expecta
tivas sofrida pelos rio-grandenses na República Nova:
Quando, em 1928, vim para a Câmara, animava-se um
pen^mento p^andioso - dar à nossa terra o lugar queela me
recia na política do Pais, colocar um de seus filhos no Gover
no, trazer para a administração os nossos métodos [... ] de ho
nestidade impecável, economia e aplicação proveitosa e exata
das rendas públicas. Em suma - contribuirpara, *'abrasileiran-
do" o Rio Grande, **affluchar"o Brasil[... ] Vitoriosa a revo
lução de outubro, a conduta da ditadura, saída do Rio Grande,
feita principalmente pelo Rio Grande e por ele sustentado, era
o oposto dos motivos determinantes da campanha liberal Com
as atitudes do Governo Provisório, o Rio Grande marchava de
costas para o alvo que tinha em mira, quando aceitou a candi
datura Getúlio Vargas e,posteriormente, o desfecho armado}^
Esta parcela da classe dominante considerava-se, ao que parece,
como que dona da Revolução de outubro e de Getúlio Vargas, configu-
rando-se o chefe do Governo Provisório como um traidor da confiança
nele depositada e do movimento que o guindara ao poder.
Dentro das novascondiçõesreinantes no Brasil pós-30, porém, re
velava-se impraticável manter o esquema de complementaridade econô
mica com o centro, conjugado à aspiração de hegemonia política. A
orientação do Governo Provisório era realmente promovera integração
nacional mediatizada pela subordinação ao poder central. O desenvolvi
mento do capitalismo no Brasil iria, na situação pós-revolução de 30, ca
da vez mais acentuar o relacionamento centro-periferia. O Sul agrope
cuário assumiria um papel fimdamental de fomecer alimentos para o
consumidor nacional, permitindo, destaforma, que a acumulação pudes
se se exercer em função das novas formas produtivas que iriam se im-

Fontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e int de Hélgio Trin
dade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. p. 393-4.
^ Fontoura,João Neves da. Apud Silva, Hélio. 1932: aguerra paulista. 2.ed. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. p. 128-9.

91
pondo no centro. Tal processo, que iria se acentuar após o Estado Novo,
neste momento apenas se esboçava, mas já revelava a impraticabilidade
de vigência do esquema pretendido pelos grupos oligárquicos gaúchos
representados na FUG.
A visão de João Neves, tomada aqui como exemplo máximo, de
ve ser levada em conta com a ressalva de que o tribuno, logo no mo
mento da tomada do poder, desentendeu-se com Vargas, a propósito
de quem iria exercer o governo do Estado quando o presidente se
afastasse rumo ao centro do país. Tendo a escolha de Getúlio recaído
em Osvaldo Aranha e não em João Neves, vice-presidente do Estado e,
portanto, o candidato natural a ocupar o cargo, este último passou a
experimentar um grande ressentimento. Após ter cumprido o impor
tante papel político de articulador das forças que apoiaram a Aliança
Liberal, João Neves se tomaria o arregimentador das facções políticas
que se voltariam contra Getúlio Vargas em 1932.
Na postura de Hélgio Trindade:
Sua ação [. .. ] ajustava-se mais com o estilo dos regionalismos
daVelha República do que com a direção centralizada e nacio
nal difundida pelo Governo Provisório, sob a inspiração dos
tenentes e do Ministro da Justiça Osvaldo Aranha,
Tanto a visão particular de João Neves, como a da FUG, que se
posicionou contra o Governo Provisório, são limitadas na medida em
que se revelam incapazes de abarcar a transformação que se operava no
Brasil pós-revolucionário.®® Ora envolvendo ressentimentos pessoais,
ora considerando traídos os ideais políticos da campanha liberal, colo-
caram-se, na verdade, como defensores de uma estrutura oligárquica de
poder que se revelava impraticável de subsistir na nova realidade brasi
leira, pelo menos nos moldes vigentes da República Nova.
A questão política fundamental —o controle efetivo do poder —
assumiu uma forma prática na reclamação pela convocação de uma
assembléia constituinte, a fim de que fosse normalizada a vida política
do país. Neste processo, começou a dividir-se a opinião pública, haven
do os partidários da reconstitucionalização —São Paulo, FUG, grupos
de oposição mineiros —invocado os ideais liberais em nome dos quais
fora feita a Revolução de outubro. A corrente dita tenentista, englo
bando elementos de farda ou sem ela, identificados com o centralismo,
defendiam a permanência do Governo Provisório.
Dentro dessa discussão geral em torno da constituinte, assumiu
relevância o problema de São Paulo, onde Getúlio decidira entregar o
governo a um interventor — o tenente João Alberto —e não a algum
87 Fontoura, op. cit., nota 85, p. 39.
88 Ibidem.

92
elemento do Partido Democrático que havia participado da Aliança
Liberal. Aliado ao ressentimento da quebra de autonomia e hegemo
nia de São Paido, colocava-se em pauta também a luta pelo controle
da política do café. A fórmula de "um interventor civil e paulista para
São Paulo" revelava, antes de mais nada, um inconformismo com a no
va ordem política e mesmo contra as medidas de intervenção do Estado
na Economia, tais como a criação do Conselho Nacional do Café em
1931 ou a determinação do governo de não plantar novos pés de café.
Na opinião de Carone,
A situação do Rio Grande do Sul não chega a se tomar
tão grave como a paulista, mas sua realidade somada com a
paulista, é fundamental no processo de luta das oligarquias con
tra o tenentismo.^^
As proposições paulistas, que revelam um certo inconformismo
com a perda do poder, somam-se ás reivindicações das oligarquias dissi
dentes do Rio Grande e de Minas. Ao lado das idéias-chave de reconsti-
tucionalização, federalismo, interventor civil e paulista, reclamam por
maior poder das oligarquiasjunto ao governocentral e maior autonomia
política dos estados frente à União.
Segundo Rowland,
As hesitações de Vargas e de Osvaldo Aranha, diante do
''caso de São Paulo", confirmam esta intenção, assim como
mostram a fragilidade política do governo, cuja permanência
no poder dependia de sua capacidade de se manter como
árbitro dosconflitos que iam surgindo,^^
De um lado, impunha-se uma nova visão, que buscava a integração
nacional e a manutenção do executivo central com certa margem de ma
nobra frente às classes sociais. Tal visão implicava a aceitação de um
autoritarismo limitado vinculado à idéia centralista.
De outro lado, as oligarquias pressionavam pela volta ao Estado
legal, bradando por constituição e federalismo.
O movimento de cisão já começou a esboçar-se no próprio ano de
1931, embora só se concretizasse no seguinte. Durante o 2?Congresso
do Partido Libertador (PL), em abril de 1931, os democráticos de São
Paulo foram convidados a participar, recebendo a promessa do apoioli
bertador às suas reivindicações.^ ^
No decorrer do ano de 1931, o "Estado do Rio Grande", órgão
oficial do PL, começou a denunciar os erros do Governo Provisório:

Cafona, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo,


DIFEL, 1974. p. 294.
90 Rowland, op. cit., p. 17.
91 Carone, op. cit, p. 295.

93
Não combatemos, portanto, uma tirania que não existe
e, se existisse, seria a maior de todas as catástrofes. Combate
mos, sim, a dilação da ditadura, muito embora esta ditadura
seja benigna e tolerante, porque ela traz consigo males intrín
secos e inevitáveis, por mais bem intencionados que possam
ser os homensque a exercem^^
Condenando a permanência do regime discricionário, contudo, a
figura de Vargas era ainda respeitada, embora divergências fossem
apontadas com relação à orientação do Governo Provisório quanto ao
retardamento da volta ao estado legal.
Em novembro de 1931, João Neves realizou a tarefa política de
reunir em Cachoeira os grupos partidários tradicionais do Rio Grande
integrantes da FUG. Para a reunião, além dos dirigentes do PRR -
Borges de Medeiros —e do PL — Raul Pilla —, foi convidado também
o interventor Flores da Cunha. Desta reunião foi redigida uma adver
tência a Getúlio, alertando-o contra os males da influência tenentista no
governo.
A estes acontecimentos, seguiu-se a demissão coletiva dos gaúchos
dos postos que ocupavam no centro do país: Maurício Cardoso, Lindol-
fo Collor, Batista Luzardo, Barros Cassai e João Neves da Fontoura re
tomaram ao Rio Grande, rompendo com Vargas, após o empastelamen-
to do "Diário Carioca" por elementos tenentistas.
A dsão configurava-se cada vez mais clara: reimidos sob a orienta
ção de seus líderes, os gaúchos organizaram primeiro um heptálogo e
após um decálogo ao chefe do Govemo Provisório, pedindo, entre ou
tras coisas, liberdade de imprensa, abertura de inquérito sobre o "Diá
rio Carioca" e eleições para a Assembléia Constituinte.
Ante a política contemporizadora de Getúlio, os gaúchos rompe
ram como govemo central em 29 de março de 1932.^ ^
Até este momento. Flores da Cunha ainda se mantinha ao lado da
FUG, sem definir-se ostensivamente por Vargas, participando, inclusive,
do encontro doslíderes políticos gaúchos para lavrarem o heptálogo.
A publicação "Rio Grande do Sul em Revista", de 1932, legítima
representante da visão que a classe dominante local apresentava de si
mesma, defendia a postura assumida pelo estado sulino:
[. . . ] vem sendo, desde remotíssimos tempos, o Rio
Grande o pioneiro destemido e desinteressado das grandes
cruzadas em defesa da Pátria e das instituições republicanas.
Como, pois, acoimar o Rio Grande de egoista ou separatista?
Queremos ser, é verdade, os primeiros entre os estados da
União, para maior glória do Brasil [...]£*, se dúvidas houvesse
Ditadura e tirania. O Estado do Rio Grande, Porto Alegre, 26 mar. 1931. p. 3.
"3 Cf. Carone, op. cit.,p. 307-8.

94
quanto ao verdadeiro significado da atitude daqueles ilustres
riO'grandenses, essas dúvidas se dissiparam de todo no conda"
ve histórico de Cachoeira, em que o verbo oracular do ^ande
chefe Borges de Medeiros se faz ouvir, na memorial reunião em
que se encontraram os chefes dos dois grandes partidos que,
unidos por laços sagrados numa conformidade admirável de
vistas, traçaram o único caminho que o Rio Grande poderia e
deveria seguir: o caminho da honra e dos compromissos assu
midos, que outro não poderia ser senão o da volta breve ao re
gime da lei, pois outro escopo, outra finalidade não teve a Re
volução de outubro,^^
Ainda nesta hora, é possível detectar que a hostilidade contra
Vargas, o fato do Rio Grande ter sido traído por um de seus filhos não
era tão generalizado assim. Relatava o mesmo artigo, numa prova conci
liatória:

O Rio Grande que confia em Borges de Medeiros, Assis


Brasil [. . . ] não poderia deixar de ter confiança nos seus ilus
tres filhos Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha, S,S, Excelências
também são gaúchos, cheios de amor à sua grande terra e não
poderão ficar mudos à voz do Rio Grande, que mais uma vez
traduz fielmente o sentir unânime do Povo Brasileiro [. . .
Reaparece aqui a idéia de que, saído das oligarquias gaúchas, Ge
túlio não poderia trair sua terra...
Numa proposta conciliatória, o Governo Provisório marcou a data
das eleições para a constituinte, através do Decreto n? 21.402, de maio
de 1932.
Nesta conjuntura específica, a posição que o interventor federal
assumisse era de suma importância. Durante meses, contudo. Flores da
Cunha hesitou. Os elementos da FUG esperavam que, no momento
chave. Flores fechasse com os grupos tradicionais da política rio-gran-
dense^ O interventor oscilou entre reuniões com os membros da FUG
e protestos de apoio a Vargas.
Por exemplo, após ter participado do encontro de Cachoeira, e
mesmo de ter recebido no Palácio do Governo libertadores e republica
nos, criticando atitudes de Vargas, em 25 de maio de 1932, em nome
dos partidos do Rio Grande hipotecou solidariedade ao chefe do Go
verno Provisório desde que fosse dada uma solução satisfatória ao
caso paulista, onde se haviam dado mudanças no secretariado.
A ação do governo central, realizando substituição de homens em
postos-chave, recebeu o apoio maciço do Rio Grande.
94 Rio Grande doSul em revista, op. cit, p. 13.
95 íbidem.
96 Sá, Mem de.A politização doRio Grande, Porto Alegre, Tabajara, 1973. p. 88.
97 Silva, op. cit., p. 40.

95
Ao que tudo indica, a tática de contemporizaçáo se dava dos dois
lados. Enquanto agia desta forma, Getúlio procurava garantir-se con
quistando a adesâ^o de Flores. Parte da oligarquia regional gaúcha, por
outro lado, procurou pressionar, o governo central, exigindo que o mes
mo se afastasse dos tenentes.
Elementos "radicais" da oligarquia gaúcha, coordenados por João
Neves e com a adesão da oligarquia mineira, propuseram a Vargas a for
mação de um "gabinete de concentração", na intenção de imporem seu
controle sobre o Govemo Provisório. Em discurso pronunciado em São
Paulo, João Nevesjustificaria depois esta sua posição:
Desejando evitar a todo o transe a luta fratricída, empe
nhei o meu esforço animado para que a ditadura se convertesse
num govemo de concentração nacional - estuário de todas as
correntes da opinião brasileira - que assegurasse ao povo o
direito de escolher, num pleito livre, os artífices de sua vida
institucional Tranqüilidade pública e eleições próximas -
tal foi o binômio em que circunscrevemos o mínimo da vonta
de nacional^ ^
Não tendo demonstrado Vargas receptividade ao plano e realiza
do alterações no ministério consideradas incompatíveis com a proposta
feita, a Frente Única Gaúcha deu conhecimento ao Govemo Provisório,
em 29 de junho de 1932, que encerrava suas negociações, rompendo
com o Govemo.
A partirdaí, a FUG aderiu à conspiração paulista, desencadeando-
-se o movimento de 9 de julho de 1932.
Mais tarde, João Neves da Fontoura alegou que parte dos rio-gran-
denses aderira ao movimento de julho de32não pormotivos regionais,
mas tendo em vista a causa do Brasil e os compromissos assumidos.^ ^
Todavia, a atitude dos revoltosos demonstra a existência de uma forte
dose de regionalismo.
Indo até a contra-revolução, coadunava-se mais com um estilo de
comportamento políticovigente na velha República.
Ao eclodir a revolução, apósmomentos de dubiedade e hesitação.
Flores da Cunha hipotecou solidariedade a Getúlio Vargas, afirmando
que manteria a ordem no estado, custasse o que custasse. Controlou a
Brigada Militar e contou ainda com o apoio da 3? Região Militar. De
posse desses efetivos, pôde controlar com firmeza a rebelião no Rio
Grande.
Com o fim de manter o pacto firmado entre São Paulo e Rio Gran
de do Sul, alguns levantes ocorreram no estado, como o de Santa Maria,

Fontoura, op. cit., nota 85, p. 393.


Ibidem,p. 484-5.

96
liderado pelo capitão Martim Cavalcanti, o de Vacaria, com Otacílio
Fernandes, o de Soledade, chefiado pelo Gel. Carneiro, o de Júlio de
Castilhos, com Marcial Terra, e aquele que mais marcou, de Serro Ale
gre, onde figuravam os líderes Borges de Medeiros, Raul Pilla e Batista
Luzardo.^®®
A postura de Flores foi atacada pela facção dita "regional" da
classe dominante, alegando falta de lealdade aos compromissos assumi
dos, optando por um governo ditatorial e impopular.
O governo central, contudo, foi vitorioso. Getúlio Vargas, ou me
lhor dizendo, a elite dirigente que açambarcava o poder no Governo
Provisório, conseguiu impor a autoridade do governo central sobre as
oligarquias periféricas revoltosas, sem que com isso descurasse do trata
mento dado ao café ou mesmo à pecuária.^ ®^
Não se tratava de destruir as oligarquias, mas eliminá-las como
força política, a fim de justamente manter, nas novas condições pós-30,
a supremacia da classe como um todo e a defesa da estrutura produtora
montada. O relacionamento centro-periferia seria agora dado através de
órgãos criados especialmente com o fim de atenderem reivindicações se
toriais da economia. Eliminava-se, portanto, a figura da oligarquia como
um grupo regional de poder, influindo e pressionando o poder central.
Na medida em que o governo referia-se à integração econômica nacio
nal e falavaem diversificação da produção, pressupunha como elemento
básico a tutela do centro sobre a periferia. A tutela se exercia não ape
nas no plano político (centralismo político-administrativo), mas tam
bém no econômico, através de um esquema de exploração mediante o
qual o excedente econômico das regiões subsidiárias, fornecedoras de
gêneros alimentícios, era captado pelo centro do país. Preparava-se, no
bojo desse processo, uma nova forma de acumulação de capital que iria
se centrar na indústria, nucleada no centro do país. A acumulação de
capital tinha também sua viga mestra na utilização de mão-de-obra na
cional remunerada a baixo preço.
No sentido de harmonizar as relações capital x trabalho e propi
ciar a acumulação, foi criada a legislação trabalhista, que, contudo, não
chegou até o campo. A pecuária, portanto, não experimentou este me
canismo de controle, em parte devido à própria precariedade do caráter
capitalista das relações de classe e da vigência de formas de dominação
ainda marcadas pelo patriarcalismo.
100 Sá, op. cit, p. 91-2.
101 (. . .) *1es querelles entre les élites —qu'elles prennent ou non Ia forme de
''revolution'' - sont restreintes au niveau politique: à aucun moment. Ia faction
vainqueur n'essaie de liquider les sources de pourvoir de Ia faction vaincue. En
d'autres termes: les conflits entre les élites coalisées tendent à s'epuiser, par Ia
même, au niveau strictement poHtique.'' Martins, op. cit. nota 81. p. 112.

97
Identificada com a postura do centro do país, definiu-se no sul,
após a contra-revolução de 1932, uma facção que se poderia denominar
de "nacional", na medida em que se propunha a integração da econo
mia nacional ao mercado interno e dinamização da estrutura produtiva
local. A tutela do centro sobre a periferia não era entendida como do
minação / subordinação, mas como colaboração em prol do erguimento
de uma nova estrutura política, progressista e possibilitadora de maior
desenvolvimento nacional.
A vitória do govemo central implicou a extensão do poder do
governo Vargas sobre todo o país. No dizer de Carmut de Souza, com
referência ao caso paulista, as démarches para a revolução de 1932
[ . . . ] refletem os percalços e as ambigüidades de uma
elite econômica que, para enfrentar os problemas decorrentes
da crise econômica mundial, necessitava da força de um gover
no centralizador que não mais permitisse o monopólio do man
do paulista no processodecisório do pais,^
No Rio Grande, o fim da revolução de 32 fragmentou a estrutura
política gaúcha que estava unida desde 1928 na Frente Única. A vitória
do centro implicou o banimento dos cabeças que lideravam o movi
mento de adesão à revolta paulista. João Neves, Raul Pilla, Lindolfo
Collor e Batista Luzardo exilaram-se na Argentina, tendo Flores da
Cunha intercedido junto a Getúlio para que o velho chefe do PRR
fosse poupado da pena do banimento.
Encenado o episódio armado, partiu do interventor federal a
campanha pela "pacificação do Rio Grande", ainda no ano de 1932.
Clamando por anistia e pronta reconstitucionalização. Flores,
através de João Carlos Machado, começou a realizar dérmaches para a
efetivação de uma reunião em Porto Alegre, com o fim de fundar uma
nova agremiação política. Ao mesmo tempo em que promovia tal en
contro, Flores procurou entrar em contato com os líderes da FUG. Após
entendimentos com Maurício Cardoso, então na chefia do PRR, ficou
acertada a ida deste à fronteira para encontrar-se em Rivera com João
Neves da Fontoura. A proposta do interventor era no sentido de "não
fundar nenhuma agremiação partidária e compor, de novo, os seus
contemporâneos da Frente Única, sem quebra dos quadros dos velhos
partidos".^
A idéia que Flores transmitiu ao líder do PRR era a de reunir os
líderes de ambos os partidos para, num ambiente de concórdia, trazer
a normalidade de volta à vida econômica, social e política do Estado.
102 Souza, Caimut & Simões Neto, Teotònio. São Paulo e os outros. Isto é.
São Paulo, 83:46-8, 26 jul. 1978.
103 Fontoura, op. cit, nota 85, p.482.

98
Para que tal se processasse. Flores ofeteda a Maurício Cardoso a Se
cretaria do Interior. Cardoso garantiria, com o novo cargo, a honesti
dade das próximas eleições para a constituinte, ao mesmo tempo que
era incumbido pelo interventor de realizar um ministério de "apazigua
mento" ou "concentração", reunindo todos em função dos interesses
mais altos do Rio Grande e do Brasil.'
Ante a recusa dos exilados em participar de um ministério de apa
ziguamento, tiveram reinicio as articulações para a constituição do novo
partido.
Constituído a 15 de novembro de 1932, o Partido Republicano
Liberal (PRL) foi a concretização, a nível político-partidário, da cor
rente dita "nacional" que se constituíra no Estado.
No PRL, congregou-se a maior parte dos "coronéis" republicanos
e outros líderes políticos menores. Sua lealdade a Borges de Medeiros,
aos princípios castilhistas, desapareceuem favor de sua permanência no
poder pela ligação com o novo partido govemista. O PL, tradicionalmen
te o partido "de fora", sofreu uma deserção menos dramática. A perda
consistiu fundamentalmente em Antunes Maciel e a minoria dos liberta
dores que se opusera a Flores durante a revolução.'®®
Afluíram, pois, para a constituição do PRL elementos de ambos
os partidos políticos tradicionais do Rio Grande, que haviam apoiado
Flores da Cunha na posição assumida perante a revolução de 1932, ou
que, sem participaçãoostensiva no conflito, agpraoptavam pelo partido
do governo.
Por outro lado, muitos homens de negócios, fazendeiros, industria-
listas, comerciantes e profissionais liberais que se interessavam por esta
bilidade, paz e favores do governo, voltaram-se parao partido do inter
ventor.
O PRL recebeu a adesão ainda de um novo elemento —parte da
juventude gaúcha que se encontrava desencantada com o conservantis-
mo sódo-econômico dos partidos da FUG. O novo partido atraiu-os
com uma plataforma que atacava os problemas políticos e econômicos
do seu tempo, ao mesmo tempo que acrescentava reformas políticas, re
comendava mais envolvimento do Estado na esfera econômica, bem-es
tar social e educação.'®®
Em princípio, o PRL não visava apenas à realidade gaúcha, mas ao
contexto rio-grandense nas suas vinculações com o panorama nacional.
Implicava a aceitação da política do centro, preocupadacom uma rea-
104íbidem, p. 486.
105 Cortês, Carlos. Gaúcho politícs in Braztt. (s.l.] University of New México
Press, 1974. p. 49-50.
106íbidem, p. 50.

99
lidade nacional, mas onde o Rio Grande do Sul ocupasse um lugar de
destaque.
Na sessão inaugural de IS de novembro de 1932, o presidente da
Assembléia, João Carlos Machado, justificou as razões que teriam leva
do à formação da nova agremiação:
Chegamos a uma encruzilhada em que devemos optar
por uma das normas abertas: ou tomamos resolutamente o ca
minho da ordem social, política e administrativa, procurando
preservar da anarquia o Rio Grande e o pais, permitindo cur
so livre a todas as suas atividades, restaurando a confiança per
dida, visando o restabelecimento do ritmo de trabalho indus
trial e comercial, perdido no tumulto das paixões edosentre-
choques armados - ou abandonamos um e outro à aventura,
inspirada pelos ódios, pelos egoismos,pelos personalismos dis-
solventes, pelas ambições desenfreadas, cujas conseqüências
não precisamos apontar, visto que cada um de nós sabe perfei
tamente o que representa para o nosso povo como fator de
pressivo e perturbador, moral e materialmente.' ° '
Em última análise, solicitava-se a criação de um partido que resta
belecesse a ordem perdida, a fimde conseguir vencer a crise que afetava
não só o Rio Grande, mas toda a nação. Argumentava, inclusive, com
elementos muito caros à classe dominante:
Agora mesmo, o Sr. General Interventor Federal no Esta
do deseja realizar a construção de umfrigorífico e de vários ra
maisferroviários, velhasaspiraçõesdo Rio Grande do Sul e que
intimamente consultam os interesses impessoais da coletivida
de rio-grandense. Como fazê-lo, entretanto, no ambiente de
apreensões e de sobressaltos a cada morhento, formado por
quantos sob o império das paixões que irrompem a cada mo
mento, tentando subvertera ordem [... ]
Tratava-se de criar um organismo político que, pelo seuprograma
de ação, se propusesse a melhor desenvolver as forças produtivas do es
tado. A pecuária, a agricultura, o comércio, a indústria e as profissões
liberais necessitavam de uma ordem social estável, de organização da
vida material e pacificação política. Em suma, pelos seus propósitos, o
novo partido revelava-se capaz de atrair os interesses da classe dominan
te e de sua extensão, a elite culta dos profissionais liberais.
No tocante aos industriais gaúchos, estes haviam recebido uma
proposta do Rio de Janeiro, no sentido de organizarem um "partido
econômico". Todavia, os representantes da indústria rio-grandense
(A.J. Reimer, Alberto Bins, Sassi, Dahne, di Prinüo Beck), em en-

107 o Partido Republicano Liberal e o seu programa. Porto Alegre, Globo, 1933.
7.
íbi]-
' Ibidem, p. 18.

100
trevista com Flores da Cunha, preferiram hipotecar solidariedade
ao Partido Republicano Liberal, entâío em fase de organizaçâ:o. Dis
cursando por ocasião da fundação do novo partido, Alberto Bins en
fatizou que, no PRL, se congregariam todos aqueles que contribuíam
para o aumento da produção gaúcha (industriais, pecuaristas, agricul
tores):
O novo partido estaria à procura de um programa de
diretrizes fortemente econômicas, como, por exemplo, Hoover
e Roosevelt nos U,S,A, recentemente haviam feito. Destarte,
os produtores poderiam ligar-se a este partido sem dificulda
des, tomando supérflua a criação de um partido econômico
especial ^
O PRL recebeu ainda a adesão dos prefeitos municipaise coman
dantes de corpos de milícias. Em especial, o chefe do Governo Provisó
rio, em telegrama, hipotecou solidariedade à reabilitação da vida políti-
co-partidária no estado. Criticando os velhos partidos rio-grandenses
pelo seu "personalismo irritante" e louvando o patriotismo e integri
dade de Flores da Cunha, Getúlio incentivou o surgimento da nova
agremiação:
Uma vez que do Rio Grande parte o brado de alerta para
o fiat renovador da reconstrução política do pais, é natural
que apareçam no programa partidário estabelecido, dadas as
peculiaridades de sua situação geográfica e seu destino histó
rico, em fórmulas precisas, os ideais coletivos. Cabe-lhe progra
mar, como artigo de fé, o constante fortalecimento da unidade
nacional, o predomínio de amplo sentimento de brasilidade. A
par disso, é justo cogitar-se também da realização dos anhelos
próprios e das aspirações locais, que em nada afetam, ao con
trário, tomam mais sólidos os laços de fraternidade, quanto
tem em vista, entre outros, maior aproximação dos centros
consumidores nacionais, pelo desenvolvimento das cabotagens,
barateamento dos fretes, desdobramento do regime portuário,
distinção do sistema ferroviário e rodoviário, conjugados entre
si e intimamente ligados à navegaçãofluvial, pelo aproveitamen
to do nosso excepcional regime hidrográfico e estabelecimento
de rumos fixos e certos ao progresso industrial, principalmente
o agrícola-pastoril ^^®
Enfatizando a idéia de união e integração de mercados, e da posi
ção do Rio Grande como "cooperador do progresso nacional", Getúlio
Vargas manifestava o seu apoio à fundação do PRL, que vinha assim
ao encontro dos interesses do govemo central.

109 Fausel, Erich. Alberto Bins, o merlense brasileiro. São Leopoldo, Rottermund,
[s. d.]p.41.
110o Partido..op. cit, p. 48.

101
Após discussões entre os membros do Congresso, foram aprova
dos os itens do programa partidário. O PRL se apresentava como um
"partido estadual com finalidades nacionais", lutando pelo "regime li
vre e democrático", pela "ordem moral e social", "estabilidade e segu
rança econômica".^^^
Em termos políticos, apontava a forma republicana federativa e o
sistema representativo, gozando os Estados de autonomia segundo as
constituições que adotassem, sendo porém respeitados os princípios
constitucionais da União.
Afirmava a idéia de uma "realidade nacional", à qual se devia
manter conectado o Rio Grande, e admitia a intervenção do Estado no
terreno da economia. Na verdade, a remodelação do papel do Estado no
âmbito nacional foi tema de debates nas discussões do ante-projeto do
programa do PRL.^ ^^
Em termos de política econômico-ímanceira, admitia-se a arti
culação racional do orçamento: a discriminação exata das rendas e taxas
e de competência fiscal da União, dos estados e dos municípios: o con
trole da dívida externa e adoção de medidas para estabilizar a moeda;
a socialização gradual dos serviços públicos; a regulamentação dos regi
mes de aproveitamento da energia hidráulica e reserva das minas de in
teresse econômico ou militar para a propriedade do poder público fe
deral; a racionalização dos sistemas de colonização, concedendo facili
dades à agricultura.
Em especial, enfatizava-se a abolição dos impostos indiretos e sua
substituição pelos diretos, bem como a necessidade de reorganizar os
transportes no sentido de dar-lhes maior eficácia dentro de um sistema
de menores custos. Particularmente, requisitava-se o crédito fácil e am
plo em todas as suas dimensões: público, hipotecário (agrícola e pas
toril), industrial, etc.
Outro ponto muito enfatizado foi o do amparo às indústrias na
turais, ou seja, aquelas que no paísencontrassem condição de viabilida
de e resistência. Da mesma forma, acentuava-se a necessidade da criação
de conselhos técnicos e consultorias de assessoramento do governo no
plano econômico. O artigo XXIII do programa pressupunha ainda a
criação de entidades públicas autônomas para quaisquer finalidades de
ordem econômica, social, financeira e profissional.
Enquanto que estes eram os itens da parte econômico-financeira,
no plano da política social colocava-se a necessidade de precisar, em ter
mos harmônicos, a relação capital/trabalho, de modo a possibilitar a
conciliação do desenvolvimento econômico com a estabilidade social.

111 Ibidem,p. 157.


112Müller, op. cit.,nota 1,p. 136.

102
Nessa articulação, o Estado deveria gozar de um papel fundamental.
Acentuavam-se questões referentes à jomada de trabalho de oito horas
para manufaturas, comércio e minas, salário mínimo, assistência social,
como pensão, invalidez, assistência médica e hospitalar, seguro contra
invalidez e acidentes do trabalho,etc.^ ^^
Na posição de Müller, os debates para a elaboração do programa
do PRL evidenciam alguns aspectos importantes. Em primeiro lugar,
predominavam os interesses vinculados ao capital, mas que buscavam
conexão dinâmica em termos de mercado com o trabalho, concebendo
o Estado-Nação como o limitejurídico político de acumulação legítima
e básica. Dentro deste contexto, predominavam os interesses ligados à
agropecuária, indústrias de beneficiamento vinculadas ao govemo. Por
outro lado, o fator trabalho era incorporado à perspectivade expansão
do mercado interno regional e nacional, mediante uma harmonização
das relações capitalx trabalho, via mecanismo ideológico de uma idéia
nacionalista. Por último, o autor coloca a existência de uma ótica oti
mista com relação às perspectivas de desenvolvimento da formação
social.
Na verdade, o Partido Republicano Liberal era tendente a agrupar
os elementos da classe dominante no Estado, porque, pela dinamização
pretendida pelas forças produtivas, destinava-se a viabilizar a acumula
ção de capital. Neste sentido, é importante ressaltar a "abertura parti
dária" para outros setores da burguesia (industriais, comerciantes),
num processo de ampliação e diversificação de classe dominante, embo
ra sob a hegemonia do setor agropecuário.
A saída histórica vislumbrada pelo setor "nacional" da classe do
minante era dada pela integração econômica do sul ao mercado brasi
leiro, dentro de uma nova situação onde eram componentes fundamen
tais o nacionalismo e a intervenção do Estado na economia, como pos-
sibilitador do progresso. Nas palavras do próprio manifesto do PRL ao
Rio Grande e ao Brasil, a nova corrente política se propunhaa conciliar
os interesses das classes produtoras, do consumidor e do govemo. Quan
to ao fator trabalho, o manifesto especificava sua percepção do proces
so que ocorria:
O PRL não foi pedir sugestõesao proletariado, negocian
do filiação política. Preferiu sujeitar ao seu exame a esperança
que nutre de ver bem compreendidas as providências que se
propõe realizar, criando-lhes facilidades e compensações para
a vida áspera e extenuante em queseconsome. ^ ^

113 Ibidem,p. 158-63.


114 Ibidem,p. 146.
115 O Partido..., op. cit, p. 176.

103
Inserida na realidade brasileira do pós-30, a incorporaçâfo do pro
letariado dava-se "desde cima", nos moldes paternalistas que se afirma
riam como padrâfo de conduta da era de Vargas.
No que toca à questão da política social do programa do PRL,
quanto àjornada de oitohoras de trabalho, a opinião dos integrantes da
classe dominante do Estado foi de que este regime diário era impraticá
vel para a vida pastoril, bem como para a agricultura. As considerações
levantadas a este respeito por Alberto Bins foram aprovadas pelo Con
gresso, que só considerou a lei pertinente ao trabalho industrial, comer
cial e de minas.
Restabelecia-se, assim, a vida política no Estado pela constituição
de um novo partido, agremiação esta formada pelo contingente daclas
se dominante da "ala nacional". Recusando-se a participar da normali
dade da vida política do Estado que ainda se dava dentro do regime dis
cricionário, parte daclasse dominante —a ala "regional" mantinha-se de
lado, em ostracismo voluntário.
A classe dominante gaúcha cindira-se, mas o limite de compreen
são dos fatos ocorridos deve ser buscado ao nível da rearticulação políti
ca das oligarquias, ameaçadas com a perda de seu poder durante o- regi
me discricionário. Aliás, a essência de constituição do PRL não era a
ideologia, mas sim o próprio poder. ^^^
No geral, a orientação imprimida pelo Governo Provisório no to
cante à reorganização econômica brasileira, secundada pela atuação do
interventor ao nível estadual, vinha corresponder à necessidade de ele
mentos de uma e outra facção política. Da mesma forma, elementos
ditos modemizantes" ou mais retrógrados, sem distinção, buscavam
o apoio e os favores do govemo parasuas necessidades.
O fato de criadores e charqueadores, dentro da crise da pecuária,
experimentarem graus diferentes deaceitação dapolítica econômica do
Govemo Provisório (capítulo 3.1) é circunstancial. Em outras palavras,
apesar de reconhecerem a necessidade de integração ao mercado, na
medida em que a orientação do centro conflitava com um interesse re
gional, ao qual se sobrepunham "interesses nacionais", a dependência
esubordinação era sentida e apontada, como no caso dos charqueadores,
com relação ao sal. Quando, contudo, suas perspectivas e interesses se
coadunavam com a orientação geral do govemo pós-30, era a idéia de
complementaridade e vinculação com o centro que se revelava, solici
tando-se a colaboração com o poder público. A dependência, no caso,
não era então questionada.
A parte da classe dominante gaúcha que rompeu com Vargas e
116Cortes, op. cit., p. 50.

104
Flores da Cunha, portanto, nâ^o o fez em função de divergências econô
micas, nem obedecendo a uma divisão das frações de classe,mas em fun
ção de níveis de aspiração do poder político e formas de concepção
deste poder ainda em termos oligárquicos, como quando da vigência da
Primeira República.

3.3 —A ""ala nacional" e as saídas para a crise da pecuária


gaúcha (1932 -1934)

Desarticulada a FUG e exilados os seus líderes, ficou a "ala na


cional", agora agrupada politicamente em tomo do PRL, a orien
tar o Rio Grande. O foco de rebelião paulista fora extirpado e o poder
central afirmara-se sobre os regionalismos locais exacerbados.
No plano regional, contudo, restava a necessidade de reabilita
ção moral de Flores da Cunha diante do povo rio-grandense, em parte
hesitante quanto à avaliação da atitude mantida pelo interventor nos
acontecimentos revolucionários. Após muitas oscilações. Flores posi-
cionara-se finalmente contra a FUG e pela defesa do Governo central.
Para tanto, a pedido do próprio interventor, foi organizado no
Rio Grande um "Tribunal de Honra", constituído pelo desembargador
Manoel André da Rocha, pelo presidente do Tribimal de Justiça, pelo
Arcebispo D. João Becker, pelo Prof. Dr. Annes Dias e pelo jurista
Dr. José de Almeida Martins Costa Jr. Em decisão tomada pública a 28
de abril de 1933, a comissão proclamou, "a face de Deuse dos homens",
que Flores da Cunha se conduzira sempre "rigorosamente, conforme os
ditames da dignidade pessoal e do cargo."^ ^
ReabiUtado e engrandecido perante o seu estado. Flores da Cunha
continuou a exercer o cargo de interventor federal e procedeu às elei
ções para os representantes do Rio Grande à Assembléia Constituinte,
no prazo afixado previamente por Vargas. A 3 de maio de 1933, as ur
nas consagraram a vitória dos candidatos do PRL.
A FUG conseguiu apenas a percentagem de 20%sobre o eleitora
do que compareceu para votar.^^®
O PRL, obtendo a maioria dos votos, dispunha-se, no plano polí
tico, a preparar o caminho para a reconstitucionaHzação do país. No
plano econômico, tratava-se de dar continuidade ao enfrentamento da
crise da pecuária, que se mantinha como uma constante neste final do
governo discricionário.

11^0 Rio Grande do Sul em revista. 1933. Porto Alegre, Tipografia Thurmann,
1933. p. 5.
118Ibidem, p. 8.

105
Finalmente, o govemo reconhecia a existência de uma "crise uni
versal", mediante a qual o Rio Grande sofrerá "asconseqüências inevi
táveis do retraimento geral das operações mercantis". Além desta causa
geral, o governo mencionava "os efeitos ruinosos" da rebeliíTo paulista
sobre a economia do Estado,
[...] provocando um verdadeiro colapso durante treze meses
em todas as esferas do dinamismo comercial do pais, revestin-
do-se entre nós de um aspecto maisgrave, emface dos diversos
levantes aqui tentados pelos aliados de São Paulo e das fre
qüentes perturbações da ordem dentro do nosso território. ^ ^
Com relação à crise como um todo, portanto,as correntes oficiais
remontavam a identificação de um fenômeno global de retração do mer
cado, decorrente da depressão econômica capitalista, àqual se conjuga
vam fenômenos circunstanciais, como a crise política advinda da revolu
ção de 1932. Restabelecida a ordem, a forma de "salvação" da econo
mia gaúcha estava na manutenção dos vínculos com o mercado nacio
nal brasileiro.
A ligação era dada não só através da técnica arcaica de transfor
mação da carne, que necessitava de amparo e controle, como através da
nova proposta de frigorificação.
Se o fim a objetivar era a integração ao mercado nacional, fosse
através do charque ou da carne frigorificada, o meio de obter este
desideratum" era pela prática do sindicalismo-corporativista.
Seguidora da orientação do govemo central, a "ala nacionalista"
da classe dominante local identificava-se com a postura adotada pelo
govemo g?tuliano.
A teoria associativa da defesa da produção já fora defendida por
Vargas antes de 1930. Na abertura do II Congresso de Criadores, em
1928, Getúlio já desenvolvera a idéia da forma associativa e do reagru-
pamento social através da categoria de classes, segundo a profissão ou
atividade econôntíca exercida.^ Na mensagem presidencial do mes
mo ano, era reafirmada a idéia, enfatizando-se que competia ao go
vemo estimular e amparar o associativismo, controlando-o mesmo. Es
pecificava Vargas:
A mais eficiente dessas organizações é a que assume a
forma dos^ sindicatos. Organizados para a defesa de interesses
comuns, têm uma dupla vantagem: para os associados, a união
toma-os mais fortes; para os governos, o trato direto com os

119 Relatório da Secretaria da Fazenda. Porto Alegre, Of. Gráf. d'A Federação,
1933. p. 2.
120 Segundo Congresso de Criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 abr.
1928. p. 8.

106
dirigentes da classe facilita, pelo entendimento com poucos, a
satisfação do interesse de muitos. ^^^
Se, antes da Revolução de Outubro, a tendência do associativismo
já era amparada pelo governo e praticada pelas classes interessadas
(FARSUL, Sindicato dos Charqueadores, dos Arrozeiros, etc.), após
1930 foi dado um novo caráter ao movimento.
Nos discursos de Vargas pós-30, o tom corporativista é muito
claro, assim como a necessidade da identidade de vistas entre as orien
tações das políticas estaduais coadunando-se com a federal.
Referia Vargas:
Estamos empenhados, como já foi dito, na reorganiza
ção econômico-financeira de todo o país, portanto, também,
dos Estados e municípios [. . . ] Entre o GovernoProvisório e
os interventores, entre estes e os prefeitos municipais, deve ha
ver identidade de diretrizes na ordem financeira, administrativa
e econômica}^^
Em outro discurso, proferido em 1931, o chefe do Governo Provi
sório afirmava a necessidade de uma revisão do sistema econômico me
diante uma "racionalização integral", afim de tomar possível um equilí
brio. Para tanto, fazia-se mister
[... ] congregar todas as classes, em uma colaboração efetivae
inteligente. Ao direito cumpre dar expressão e forma a essa
aliança, capaz de evitar a derrocada final Tal alevantado pro
pósito será atingido, quando encontrarmos reunidos numa
mesma assembléia plutocratas e proletários, patrões e sindi
calistas, todos os representantes das corporações de classe, in
tegrados assim no organismo político do Estado. ^^^
Era expressada aqui, com clareza, uma tendência corporativista
calcada evidentemente no modelo italiano. Sua utilização dentro do
contexto brasileiro tinha uma significação bem precisa: solucionar a cri
se econômica brasileira, atendendo a perspectiva de diversificação da
economia; mediatizar a relação entre as classes sociais e o Estado por
mecanismos que não os partidos regionais das velhas oligarquias; pro
porcionar uma forma de controle do Estado sobre as classes produtoras,
desarticulando-as enquanto possibilidade de se constituírem em força
política. Da parte das classes dominantes, impedia-se com isso o ressur
gimento do "Estado oligárquico"; da parte das classes dominadas, elimi-
nava-se o potencial da luta de classes. Em última análise, limitava-se a
121 Mensagem presidencial de 1928, p. 8-9.
122Vargas, Getúlio. A novapolítica do Brasil Rio de Janeiro, Ed. JoséOlímpio,
1944. p. 244.
123 Silva, José Pereira da. Os melhores discursos de Getúlio Vargas. Rio de Ja
neiro, Galvino Filho Editora, 1934. p. 73.

107
autonomia das classes, cerceando-se a sua capacidade de atuar a nível
político. Resguardava-se, contudo, como já fora explicitado, a preserva
ção de predominância da burguesia nacional em seus vários setores, atre-
lando-se ao mecanismo estatal como fonte de recepção de favores e pro
teção.
A nível de percepção que a classe dominante no Rio Grande tinha
desse processo, esboçava-se uma diferença entre o cooperativismo e os
sindicatos. Tinha-se como norma que as cooperativas de produção dis
pensavam o capital por princípio, uma vez que ele brotaria fatalmente
da cooperação. A cooperativa tinha como fim congregar interesses indi
viduais, a fim de realizar o interesse coletivo. No caso, a cooperativa de
produção era a mais correta para ser praticadapelosestancieiros, já de
tentores de um certo capital. Teoricamente, ela não pressupunha a con
centração de capital, nem visava à realização da capitalização, mas sim
a racionalização da produção e da comercialização mediante a conjuga
ção de esforços individuais. Caso diferente dava-se com relação às co
operativas de crédito, ideais para os pequenos proprietários, pois, neste
caso, o que se visava era a integralização de um capital necessário para
o incentivo da produção.
Pelo Decreto n? 22.239, de 19 de dezembro de 1932, o Governo
Provisório revogou a Lei n? 1.637, de 5 de janeiro de 1907, que regula
va o funcionamento dos sindicatos profissionais e sociedades cooperati
vas, por já não corresponderem às exigências do movimento. Estabele
ceu-se que as sociedades cooperativas seriam de pessoas (sete ou mais)
e não de capitais. Seria limitado o número de quotas partes de capital
social que cada sócio poderia deter. Os lucros seriam distribuídos pro
porcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo associado com
a sociedade. As cooperativas deveriam adotar obrigatoriamente estatu
tos que apresentassem normas para o seu regulamento.^
Um grande problema que as cooperativas experimentavam até en
tão era que a instituição pertencia a seus sócios e não à diretoria que a
administrava. A cooperativa, assim, desvirtuava-se do seu sentido precí-
puo e os seusmembros desinteressavam-se da organização.
Complementando estas medidas, o Governo Provisório, pelo De
creto-lei n? 23.338, de 11 de janeiro de 1933, criou a Diretoria do Sin
dicalismo Cooperativista, à qual se atribuiu o desenvolvimento da cam
panha pelo associativismo no terreno econômico. Em 30 de dezembro
de 1933, saiu o Decreto-lei n? 23.611, que estabeleceu que as classes
produtoras deveriam organizar-se sob a forma de consórcios profissio
nais cooperativos, dando origem às cooperativas de produção, consu-
124 Sul-Coop (cooperativismo). Secretaria dos Negócios da Economia. Porto Ale
gre, jan. fev. 1963, ano 16, "(78): 2.

108
mo e crédito, com o objetivo de defender os interesses dos associados.
Com relação aos Sindicatos, atribuía-se-lhes uma significação po
lítica, atuando junto aos poderes govemamentais como representantes
de classes e profissões que eram.
Referia a este respeito o '^Correio do Povo", apontando o cami
nho a ser seguido pelo Rio Grande do Sul:
Cooperativas têmchlas jà em número suficiente para pro
var a sua eficácia econômica, social e moral; mas sobre os gru
pos econômicos que se delimitam pelas regiões, convém esten
der o manto protetor do grande grupo de fins políticos, que se
delimita pela profissão e este, se quiserdes, sob o grupo maior
de classe que se delimita pela condição social Para que o qua
dro fosse completo, criaríamos pelas regiões do Estado coope
rativas de acordo com as necessidades econômicas de cada re
gião; sobre as cooperativas um sindicato de cada profissão,
com direito à representação política que vale pelos interesses
dessas profissões e sobre cada uma destas um sindicato de ca
da uma das duas classes existentes, também com representa
ções que valem pelos interesses respectivos do capital e do tra
balho. Com a representação política nos acenou o Governo
Provisório, em largo descortino, realizando com esse ato a
mais profunda revoluçãoporquepassouoBrasilaté hoje{...
É clara, no caso, a identificação da realidade regional com as me
tas do governo central.
Cabe, neste momento, analisar como este processo de desenvolveu
no Rio Grande do Sul, no setor da pecuária, ainda em crise, avaliando a
atuação da classe dominante em seus órgãos de classe e em seu relacio
namento com o poder local.
No que diz respeito ao valor da exportação, o charque conservava-
-se em primeiro lugar no Estado, com 75.217 : 214S 000 em 1933, segui
do pela banha, com o valor de 51.284 : 558SOOO, e em terceiro pelo ar
roz, com o valor de 44.982 : 1985000. Já quanto à tonelagem exporta
da, o charque era suplantado pelo arroz, com 79.262 toneladas, ficando
no segundo lugar com 40.875 toneladas e cabendo o terceiro lugar à ba
nha, com 35.683 toneladas.^
Tal colocação leva a fazer crer que o charque tinha um elevado va
lor para a sua produção. Comparando, contudo, a sua trajetória quanto
á exportação, verifica-se que, enquanto a tonelagem aumentava, o seu
valor decaiu nos anos de 1930 a 1934. Em suma, para uma expor
tação de 35.695 toneladas em 1930, com valor de 80.273:4725000,
o charque passou a exportar 54.954 toneladas em 1934, num valor de
69.519:5735000.
í25 Cooperativismo e sindicalizaçào. Correio doPovo, Porto Alegre, 28jul. 1933.
U Relatório da Secretaria da Fazenda. 1934. p. 28.

109
o preço do quilo do charque continuava a declinar nos mercados
do centro e norte do país. Comparativamente, por exemplo, ao ano de
1929, quando o quilo do produto atingia $2,30, o charque correspon
dia, nos anos de 1933 e 1934, ao preço de $1,50 e 1,30 o quilo, respec
tivamente.^^"^
A exportação dava-se regulamentada pela ação do Sindicato dos
Charqueadores, que, contudo, não conseguia estabilizar o preço do pro
duto nos mercados centrais. Acusações continuavam a pesar sobre o
Sindicato, tais como a de dificultar o escoamento da produção e o de
ter incentivado a expansão de charqueadas em outras unidades da fe
deração.
Defendendo a atuação do Sindicato, o superintendente interino,
João de Souza Mascarenhas, em entrevista ao "Correio do Povo", argu
mentava que a primeira acusação não tinha procedência, porque ora a
exportação se fazia livre, ora era regulamentada pelo Sindicato, tal co
mo se dera no ano de 1932. Acrescentava Mascarenhas:
Se no período de exportação regularizada os embarques
foram maiores do que durante o tempo em que a exportação
era livre, ninguém, com isenção de ânimo, pode afirmar que a
regularização haja cooperado para tolher o escoamento da nos
sa produção de charque. O baixo nível de preços nos mercados
consumidores é que produz o retraimento da exportação. ^^®
Quanto à segunda acusação, Mascarenhas rebatia dizendo que a
entrada dos produtores nacionais no mercado do charque era um fenô
meno que se dava desde há muito, antes da formação do Sindicato.
Quanto à grande elevação do preço do charque obtida em 1929, Masca
renhas argumentava com a retração do fornecimento, neste ano, dos es
tados centrais e a seca que nãopermitiu matanças elevadas.
Apesar da defesa feita pelo superintendente, as acusações contra
o Sindicato se avolumavam. No congresso regional dos criadores realiza
do em Bagé, os estancieiros acusavam o Sindicato de ser monopolista e
que o governo, ao ampará-lo, "construíra um dique para estagnar parte
das águas damaré crescente neste momento de baixa geral".^
Defendendo a atuação do Sindicato, Balbino de Souza Mascare
nhas, em palestra proferida na XV Exposição-Feira da Sociedade Agrí
cola de Pelotas, realizada a 11 de novembro de 1933, acusava os criado
res de inércia, vivendo longo tempo sem preocupação com a segurança

Í27 Silva &Guerra, op. cit., nota 2,p. 9.


Í28a situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 19
jan. 1933. p. 3.
129 Asituação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 mar.
1933. p. 18.

110
dos lucros. As acusações que surgiam davam-se em torno da crítica à
ação dos frigoríficos ou dos charqueadores. Contudo, segundo Balbino
Mascarenhas,
Condenar a indústria saladeiril por ser a mais velha e
a mais rotineira, condenar uma indústria que foi durante mui
tas décadas o estímulo e a salvação da nossa pecuária, condenar
uma indústria que ainda é o maior escoadouro dos nossos ga
dos, é o mais acabado dos contra-sensos [. . . ] parece que os
seus detratores [... ] guardam na retina aquelas charqueadas,
como infelizmente ainda os há em nosso Estado, aquelas char
queadas que podem servir de modelos de falta de higiene e
que, antes de as avistarmos, já o nosso olfato sente a sua proxi
midade. Existem, porém, e são a maioria, estabelecimentos
saladeiris compatíveis com quaisquer outras fábricas em que se
produzem gêneros de primeira necessidade. Se as infectas ainda
funcionam, a culpa não cabe à indústria, mas a quem tem o de
verde zelarpela saúdepública e não o faz. ^
Continuando a sua defesa do produto, Balbino Mascarenhas^
afirmava que, se o charque não duraria eternamente, pelo menos se re
velava improvável o seu desaparecimento próximo, como há tanto tem
po se vaticinava. O charque, além disso, ainda era a forma mais econô
mica de industrialização da came.
Configurava-se, pois, mais uma vez, o choque de interesses entre
os criadores e os charqueadores em torno de uma única forma de trans
formação da came de capital nacional existente no Estado.
Os próprios charqueadores, embora buscassem defender o seu Sin
dicato e encontrassem respaldo no governo do Estado, encontravam ra
zões de preocupação no que diz respeito às vendas de seu artigo. Em
junho de 1934, Francisco Flores da Cunha, então presidente do Sindi
cato, informou de Livramento que o "saladero" uruguaio '*Casa Blan-
ca" iniciara matanças de 7.000 cabeçaspara enviarao Brasil, segundoo
convênio Brasil-Uruguai acertado entre os dois países. O referido con
vênio estabeleceu a entrada de 2.000 toneladas de charque uruguaio,
distribuídos em cotas anuais, pelo prazo de três anos, a partir de 25 de
agosto de 1933.^^^
Quanto à baixa do preço do artigo nos mercados do norte, a no
va queda ocorrida no ano de 1934 motivou uma reunião do Sindicato.
Na opinião dos charqueadores, a baixado preço, que se dera em função
130 Mascarenhas, Balbino. Palestra proferida na XV Exposiçâo-Feira da Sociedade
Agrícola de Pelotas. 11 nov. 1933.Sindicato dosCharqueadores.
Filho de João de Souza Mascarenhas, pai e filho eram proprietários de uma
das maiores casas charqueadoras do Estado.
A situação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 jun. 1934.
P. 7.

111
da grande produção e da concorrência de outros estados, levaria a que
os saladeiristas não mais pudessem pagar pelos gados os preços que
vinham mantendo — de 150$000 a 2505000 —, implicando uma que
da de 505000 por cabeça.
Da mesma forma, providências foram tomadas em 1934 para que
se restringissem as matanças, e foi tomada a resolução para ser criado
um departamento comercial anexo ao Sindicato, com o objetivo de
criar entrepostos nos mercados de consumo.^
Com tais medidas, o Sindicato contribuía para agravar as relações
entre estancieiros e saladeiristas. No tocante à ação do poder público, o
Sindicato sempre contou, desde o início, com o apoio do governo do
Estado, que não só mantinha estreito contato com a diretoria como
dela constava o próprio irmão do interventor federal, "Chico" Flores.
A orientação do governo junto ao Sindicato prendia-se à perspec
tiva de manter a ligação da economia gaúcha com o mercado nacional.
Coadunava-se com a postura dos elementos saladeiristas que defendiam
a estrutura produtora montada.
Paradoxalmente a esta situação evidenciada de baixa do preço do
charque nos mercados do centro e norte do país e de incapacidade das
charqueadas continuarem a pagar os mesmos preços pelo gado, o ano
de 1933 assistiu a uma revivência do abate paracharque no Estado e de
melhoria interna dos preços alcançados pelo rebanho. O jornal "O Im
parcial", de São Gabriel, assinalava, para a safra de 1933,uma oscilação
no preço do gado invemado e no da arroba do charque em Rio Gran
de? O relatório do interventor, em 1935, acusou uma elevação no
abate no Estado para o ano de 1933: 953.299 cabeças contra 902.484
em 1932. Igualmente a produção pecuária, que vinha experimentando
um decréscimo desde 1930, sofreu uma recuperação em 1933:* ^^
Safra de 1930 - 115.566:9155000
Safra de 1931 - 102.850:0165000
Safra de 1932 - 98.787:6675000
Safra de 1933 - 122.340:0005000
A recuperação do abate, do preço do gado e do próprio charque
no porto de Rio Grande não se fez acompanhar da melhoria do preço
do charque nos mercados centrais. Isto evidencia o esquema de depen
dência da economia sulina, expresso através de um de seus setores, as-
A importante reunião de amanliâ no Sindicato dosChaiqueadores. Correio do
Povo, Porto Alegre, 1? abr. 1934. p. 18. A Reunião de ontem do Sindicato dos
Charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 3 abr. 1934. p. 11.
i ^ OImparcial, São Gabriel, 10 mar. 1933. Apud Ribeiro, Luís Dario Teixeira.
Modernização e concentração de capitalna economia pecuária gaúcha - o caso da
Cooperativa Rural Gahrielense. Porto Alegre, UFRGS, 1978. p. 53. (xerografado)
Relatório. . ., op. cit., nota 9, p. 88-9.

112
sim como as reduzidas chances do Rio Grande do Sul controlar o pre
ço de seus artigos no mercado nacional, apesar da realizaçâ^o de um es
forço interno neste sentido, dispendido pelos criadores e charqueadores.
Aliás, esta alteraçâ:o interna do Rio Grande, no tocante à matança e ele
vação de preços, deveu-se menos ao Sindicato dos Charqueadores e mais
à entrada dos criadores na atividade saladeiril, na prática de uma medida
já aventada anteriormente na época da República Velha —a da consti
tuição de charqueadas cooperativas em âmbito regional. Competindo
com as velhas charqueadas e os frigoríficos no mercado de gado, a nova
entidade ofereceu ao estancieiro uma saída altemativa para o escoamen
to do rebanho.
Exortando à união da classe rural, o charqueador Balbino Masca-
renhas referia em 1933:

Em vez de dmdirmo-nos em facções, unamo-nos, congre-


guemo-nos, porque, com frigoríficos ou charqueadas, ou expor
tação de gado em pé, todos nos dirigimos para a mesma meta,
todos buscamos o desafogo e a defesa da pecuária, e a questão
é dar saída aos nossos gados, sem importar a forma, desde que
seja lucrativa, [. . . ] Mesmo tendo em vista os frigoríficos na
cionais, não nos deixemos ofuscar pela sua miragem e organize-
mo-nos em charqueadas cooperativas. Colhendo os benefícios
da união, mais fáceis nos serão depois os empreendimentos de
grande monta,^^^
A idéia de montagem de "charqueadas regionais" pelos criadores
para abaterem e beneficiarem eles próprios seus gados já havia sido
aventada em 1914 pelo então pecuarista João Mascarenhas, pai do char
queador Balbino Mascarenhas, que agora se levantava na defesa da mes
ma idéia. João Mascarenhas, que depois se tomaria dono de grande
charqueada e figura de destaque com atuação na diretoria do Sindicato,
era na época apenas criador, identificado com os interesses dos fazendei
ros e denunciador das manobras levadas a efeito pelos saladeiristas. A
proposta de 1914 pretendia a criação de charqueadas regionais, molda
das nas packinghouses de Chicago, que visavam obter o salgamento da
carne em câmaras frias, além do cozimento e enlatamento da carne que
não se prestasse para a fabricação de charque e aproveitamento maior
dos subprodutos (velas, sabão, sabonete,manteiga, couros, etc.). Pressu
punha-se, ainda, a criação de um fundo de reserva para formar um capi
tal a fim de constituirum frigorífico no sul do Estado.^
A proposta, ressurgindo em 1933, apontava o exemplo das char-

136 Mascarenhas, Balbino, op. cit.


1^^Mascarenhas, João. O Centro dei Tasajo e os criadores. A Estância. Porto
Alegre, março 1914: 23.

113
queadas de criadores de Bagé e Livramento, onde os estancieiros haviam
se unido para manufaturarem a carne. Referia Balbino Mascarenhas:
Cada uma dessas cooperativas poderia constituir um
fundo especial destinado à construção do frigorífico e esses
fundos seriam anualmente arrecadados pela Federação Rural
Dessa forma, os criadores, ao contribuírem para o frigorífico,
já estariam auferindo as vantagens de se terem associado}
Dentro do contexto da crise pecuária no final do período discri
cionário, distinguia-se, ao nível das posturas assumidas pela classe do
minante, mais de uma diretriz: uma era a posiçáo dos charqueadores,
que se identificavam com a atividade saladeiril e endossavam a açffo do
Sindicato a que estavam filiados; para parte deste setor, a saída mais
correta para os criadores seria adotarem a charqueada como forma de
beneficiamento da carne, colocando o frigorífico como uma saída a
posteriori
Outra era a posiçâ:o dos criadores que assumiram esta alternativa
da formação de charqueadas cooperativas para beneficiarem seus gados
e eliminarem, ao mesmo tempo, a figura do charqueador como interme
diário. Esta solução foi adotada em parte pela orientação cooperativista
pregada pelo governo central no pós-30 e incentivada pelo poder regio
nal, e em parte como reação dos estancieiros ante a pressão exercida
pelos frigoríficos e charqueadores. Seria, é possível dizer, uma das for
mas pelas quais se exteriorizava o conflito de interesses entre charquea
dores e criadores. Esta alternativa assumida postergava a constituição
de frigoríficos para uma etapa maisalém.
A última saída para a crise da pecuária seria a daquele grupo de
criadores que objetivava a montagem imediata de um frigorífico para
a transformação da carne. Não se pretende retomar aqui as saídas pa
ra a crise, que buscam o caminho da agricultura capitalista do arroz.
De qualquer forma, as três propostas, no conjunto, visavam à
manutenção da articulação básica da economia sulina com o mercado
interno brasileiro. Encontravam, pois, respaldo na orientação política
do PRL, hegemônico no estado.
No que diz respeito às cooperativas de criadores para beneficia
mento da came sob a forma de charque, eram,apontados como exem
plo, na época, as de Livramento, Bagé e Alegrete.
Em Bagé, foi constituída em 1932 a Sociedade de Fazendeiros
Ltda. Surgiu, no dizer de Fortunato Fimentel,
[. . . ] num momento difícil para a pecuária rio-granden-
se, de uma reunião de fazendeiros com o fim de melhor apro
veitamento de seus gados e abaterem por conta própria, visan-
138Mascarenhas, Balbino, op. cit.

114
do o máximo lucro, colocando diretamente os seus produtos
nos mercados consumidores e evitando o mais possível a in
terferência de intermediários. ^
Tendo iniciado suas matanças na charqueada Santo Antônio,
logo arrendou a Charqueada Industrial, de propriedade do Tesou
ro do Estado. Iniciou suas atividades com 10 membros e capital de
10:000$000, abatendo 8.519 reses. No ano de 1934, a Sociedade
já contava com 56 membros, capital de 1.000í)00$000 e abate de
41.401 reses.
Arrendando uma charqueada paralisada, os criadores articularam-
-se numa cooperativa de produção, eliminando o intermediário e poden
do pagar assim melhores preços pelo gado. Na safra de 1933, enquanto
os charqueadores ofereciam 1855000 pelo boi, a Sociedade dos Fazen
deiros estava pagando, em média, 270$000.^
Em março de 1933, por intermédio da FARSUL, as associações
rurais do sul do estado, realizando um Congresso de Criadores em Bagé,
solicitaram que a Sociedade de Fazendeiros Ltda. ficasse isenta de im
postos municipais e estaduais. A isenção era solicitada em virtude da
natureza "não comercial da sociedade", que tinha por fim "a defesa da
produção", sendo um "estabelecimento propriamente de emergência,
como um meio de atenuar a crise" que afetava a pecuária.^ ^ ^ A Socie
dade dos Fazendeiros era apontada pelos criadores como exemplo de
cooperativa de produção, cuja medida do sucessoera dada pelo aumento
crescente do capital da empresa e pelaobtençãode melhores preços pa
gos pelo gado. Segundo dados do jornal "O Imparcial", de São Ga
briel, o preço que a Sociedade estava pagando pelo novilho na safra de
1933 (276$000) era superior mesmo àquele oferecido pelo frigorífico,
que pagava menos de 210$000.^
O apelo do Congresso de Criadores de Bagé revestia-se de particu
lar importância, uma vez que reuniu em assembléia representantes de
Alegrete, Arroio Grande, Bagé, Caçapava, DomPedrito, Herval, Pelotas,
Pinheiro Machado, Piratini, Rosário e São Gabriel, responsáveis por 35%
dorebanho gaúcho.^
Em 1934, a Sociedade dos Fazendeiros já aparecia como uma das
maiores entidades exportadoras de charque do estado, com uma soma
de 32.043 fardos de charque,^ superado pela Swift, com 79.609 far-
139 Pimentel, op. cit., nota 2, p. 94.
140 O Imparcial, SãoGabriel, 10 mar. 1933. Apud Ribeiro, op. cit, nota 134.
141 A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 19
mar. 1933. p. 9.
142o Imparcial,São Gabriel, jun. 1933. Apud Ribeiro, op. cit, nota 134. p. 55.
143 cfe. Ribeiro, op. cit, nota 134, p. 54.
144 Um fardo de charque = 100 kg (aproximadamente umarês gorda). (Instituto
Sul-Rio-Grandense de Carnes).

115
dos, e pela Armour, com 50.439 fardos.
Fora esta entidade surgida em Bagé, constituiu-se a S.A. Coopera
tiva Santanense, na cidade de Santana do Livramento. De 1931 a 1933,
abateu na charqueada "São Paulo". Em 1934, figurava entre os grandes
exportadores de charque do Estado, comum total de 16.719 fardos.^
Em 21 de março de 1933, foi fundada em Alegrete uma coopera
tiva —a Alegretense de Games Ltda. —, com o fim de realizar a produ
ção da came dos municípios de Alegrete, São Francisco de Assis, Itaqui,
Quaraí e Uruguaiana. Constituída inicialmente por 50 sócios, que aba
tiam na charqueada "São Miguel", em Alegrete, a Cooperativa exportou,
no ano de 1933, 15.181 fardos de charque. Tendo abatido neste ano
8.286 vacuns, passou, no ano seguinte, para uma matança de 14.194
animais.
Como coroamento desta alternativa cooperativista dos criadores
que optaram por charquear os gados, descartando os "industriais sala-
deiristas" do processo econômico, foi criado, em 14 de setembro de
1933, em São Gabriel, a Sociedade Saladeiril Gabrielense Ltda. Com os
objetivos de defesa da classe, estandartização do produto, melhoramen
to da embalagem e apresentação desta, a Sociedade começou a operar
neste mesmo ano.
Em 1933, abateu 2.199 cabeças e, em 1934, 5.950 animais, tendo
arrendado a charqueada São Gabriel.^
Em 1934, a Associação Rural de São Gabriel,então sob a direção
de Egydio Brenner e Adel Bento Pereira, criou o Consórcio Profissional
Cooperativo dos Agropecuários de São Gabriel, ao qual seseguiu a fun
dação da Cooperativa Rural Gabrielense Ltda.
Fundada em 20 de janeiro de 1935, pela incorporação dos mem
bros da Associação Rural de São Gabriel e daCooperativa Rizícola,^^^
a nova entidade se dispunha a charquear os gados provenientes de São
Gabriel e dos distritos limítrofes com os municípios de Santa Maria,
São Vicente, General Vargas, São Sepé, Lavras, Dom Pedrito e Rosário.
Iniciando a abater em 1935, ao arrendar uma charqueada em Aze
vedo Sodré, a Cooperativa Rural Gabrielense apresentou uma matança
de 10.126 cabeças, ficando em quarto lugar no abate do município. Pa
ra o ano de 1934, já se apresentaria em segundolugar no abate. A So
ciedade Saladeiril abateu pela última vez (1934) com uma matança
de 6.774 cabeças, ficando, portanto, abaixo da nova entidade que sur
gia escorada em capitais oriundos da agropecuária.
1"^^ Sindicato dos Charqueadores. Exportação do charque. Ano de 1934. Insti
tuto Sul-Rio-Grandense de Carnes.
1^6 Pimentel, op.cit, nota 2,p. 100.
147 O Imparcial, São Gabriel, 25 jan. 1935. Apud Ribeiro, op. cit., nota 134,
p. 59.

116
Na opinião de L.D. Ribeiro, propiciou-se a concentraçâfo de capi
tal do setor p^ário, constituindo-se a cooperativa num instrumento
de modernização e empresarialização da indústria da carne. Uma vez
realizada a concentração de capital, a Cooperativa comprou a charquea-
da Vacacaí, que, com a crise de 1929, passara a pertencer ao Banco do
Rio Grande, além de adquirir um engenho de arroz.Realizava,
assim, uma modernização da economia regional, que correspondia ao
projeto monopolizador e progressista dos criadores locais. Pelos esta
tutos da Cooperativa, previa-se o estabelecimento de charqueadas,
matadouros, fábricas e engenhos para beneficiamento da produção;
centralização da venda dos produtos dos cooperativados; melhoria e
padronização da produção; promoção, em conjunto com o Consórcio
Profissional Cooperativo Agropecuário de São Gabriel, "I) à propaga
ção do desenvolvimento da cultura dos campos e criação de colônias no
território dos municípios, ü) à criação de patronatos para formação de
operários aptos ao desempenho das funções agropecuárias
Evidencia-se uma preocupação modemizadora, que atingia não
só a diversificação da produção, como a preocupação com a mão-de-
-obra em termos de especialização. Embora a Cooperativa Rural Gabrie-
lense tenha sido, dentro dos moldes da República Nova, aquele exem
plo mais acabado e desenvolvido do cooperativismo dos pecuaristas,
a saída da crise ainda implicava, neste momento, a manutenção de
um esquema tradicional de industrializar a carne, sem maior alteração
no processo produtivo. Mesmo incorporando componentes inovadores,
como os acima citados, continuava o Rio Grande pecuário a produzir
um artigo de baixa qualidade, sem realizar o aproveitamento integral
do boi e destinando-se a um mercado altamente competitivo.
Ao lado destas cooperativas de pecuaristas, outras entidades simi
lares, atendendo à produção da lavoura e da agropecuária colonial, dis-
seminavam-se pelo estado durante a nova República.
Foram fundadas a Sociedade Cooperativa de LaticíniosPelotense,
em 23 de janeiro de 1932,e a Cooperativa Sul Rio-Grandense de Banha
Ltda., em 13 de maio de 1933, em Cruz Alta, além de outras vitiviníco-
las, madeireiras, ceboleiras, de fumo, etc.
Com relação a este surto, referia o pecuarista e comentarista de
assuntos rurais Dario Brossard:
Embora já tenhamos várias cooperativas no Estado, al
gumas em franco progresso, correspondendo perfeitamente à
finalidade que têm, embora a marcha do movimento coopera-
tivista tenha tomado um surto animador nestes últimos anos -

148Rjbeiro, op. cit., nota 134, p. 60-6.


1"^apimentei, op. cit, nota 2, p. 268.

117
sabemos das dificuldades encontradas na formação das nossas
cooperativas, principalmente pela falta de conhecimento dos
seus nobres objetivos [. . . ] Produzir melhor e mais barato;
eliminar a especulação; sanear o comércio; dignificar o braço
trabalhador; resolver, dentro dos princípios econômicos e da
moral, a luta do capital e do trabalho; ligar produtores e con
sumidores, operários e patrões nos mesmos laços de solidarie
dade —tais são algumas finalidades do cooperativismo, **movi-
mento que vaiimpregnado de moraV\ ^^®
Sem necessariamente se achar filiado ao PRL, o autor fazia uma
identificação do problema que se ajustava ao caso da corrente govemis-
ta, em apoio ao poder central: incentivo à produção, harmonizar a re
lação capital/trabalho. Em outras palavras, tratava-se de garantir a si
tuação de predominância da classe quecontrolava o processo produtivo.
Com relação à última das medidas levadas a efeito pelos pecuaris
tas—a busca da saída para o frio —ela também se encaixava dentro da
perspectiva cooperativista, pois se ligava à Cooperativa Sul-Rio-Gran-
dense de Carnes, constituída em 1931.
A frigorificação da carne continuava a preocupar o governo do
Estado, assim como o Govemo Provisório, que, em 29 de junho de
1932, havia baixado um decreto concedendo a redução de 30% sobre
os direitos de importação devidos à maquinaria destinada à indústria do
frio, uma vez importada pelas associações de classe constituída por
criadores, invernadores ou outros proprietários rurais que objetivassem
o desenvolvimento da indústria e comércio de produtos derivados da
came.^
Neste sentido, o decreto federal vinha ao encontro das necessida
des de importação de tecnologia, colaborando com propostas renovado
ras da estrutura econômica dapecuária, desde que propostas pelas asso
ciações de classe.
Preocupado com a problemática da frigorificação de cames, o
govemo do Estado enviou o Dr. Mário de Oliveira, diretor do Serviço
de Indústria Animal da Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio
do Estado, como representante do Rio Grande do Sul e, ao mesmo
tempo, delegado do Governo Provisório ao VI Congresso Internacional
do Frio em Buenos Aires. Dentre os problemas tratados e queo repre
sentante trouxe ao Rio Grande do Sul para estudo, esteve o do novo
processo denominado quick-freezing, ou da congelação rápida.
No VI Congresso Rural realizado em Porto Alegre, em julho de
1932, a tese apresentada por Franklin de Almeida enfatizou a necessi-

l^Ogrossard, Dario. Cooperativismo. Correio do Povo, Porto Alegre, 4 ago.


1933. p. 8.
151aIndústria dacarne. Correio doPovo, Porto Alegre, 20 jul. 1932. p. 8.

118
dade de conquistar os mercados nacionais, uma vez que, no internacio
nal,havia a competição dasfirmas estrangeiras.^ ^^
O mercado intemo brasileiro, contudo, já estava começando a ser
abastecido pelas carnes resfriadas, mandadas pelo Rio Grande pelas em
presas estrangeiras aqui estabelecidas, conforme noticiava o "Correio do
Povo" em outubro de 1932.*
A preocupação com o fornecimento ao mercado intemacioiuil e
as possibilidades de ingresso do Brasil neste setor foram objeto da preo
cupação do rundista Fortunato Pimentel no mesmo Congresso Rural.
Pimentel acentuou a importância da exportação de carnes congeladas
brasileiras para a França. Neste sentido, a zona da serra, possuidora do
gado francês (cbarolês e normando), era a região mais indicada para o
abastecimento daquele país, atendendo ao gosto do consumo local.*
Em termos àe abastecimento do mercado internacional, contudo,
uma quesfâo passou a preocupar o Rio Grande do Sul nos fins do ano
de 1932: a celebração da Conferência de Otawa determinou que os fri
goríficos do Brasil seriam orientados para a produção de conservas
(corned beef), enquanto que os da Argentina e do Uruguai fomeceriam
as carnes congeladas (frozen) e resfriadas (chüled). Colocava-se em pau
ta, portanto, a "fatia" de mercado que restaria ao Rio Grande, quando
da efetivação da indústria frigorífica com recursos locais.
Dentro deste contexto, processavam-se as reuniões da Cooperati
va Sul-Rio-Grandense de Carnes,mas diversos problemasse antepunham
ao andamento dos trabalhos: a Revolução de 1932 havia conturbado
a situação do Estado: o presidente da Cooperativa, Marcial Terra, in-
compatibilizado com o governo gaúcho, achava-se no exílio. No que
diz respeito à taxa de cooperaçãoe imposto sobre o gado a ser cobrado
pelas municipalidades, referia Marcial Tena, em carta , que haviam sido
regularizados por decreto desde dezembro de 1931, mas faltava acertar
[. . . 1 a situação jurídica da Cooperativa em face do
auxttio, isto é, a assinatura de um contrato em virtude do qual,
de um lado, o governo do Estado se comprometessea entregar
a importância arrecadada à Cooperativa, e do outro lado,a Co
operativa se obrigava a aplicar aquela importânciapela forma
que no tal documento ficasse explicitada. Da redação desse
contmto foi incumbido, mediante prévio assentimento do ge^
neral Flores da Cunha, o eminente advogado Joaquim Maurí
cio Cardoso, em maio de 1932. *®®

i52correiodo Povo, PortoAlegre, 6 ago. 1932. p. 5.


153correio doPovo, Porto Alegre, 5 out 1932. p. 7.
154correio doPovo, Porto Alegre, 27ago. 1932. p. 7-10.
155A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 24fev.
1933. p. 8.

119
Interpelado o governo pelos criadores a respeito dos problemas,
Flores da Cunha reafirmou a sua intençâ:o de construir frigoríficos na
cionais, "medida essa que se impunha como única solução à crise da pe
cuária rio-grandense" e que
[. . . ] não só os dinheiros arrecadados de taxa para o
fundo de capital se fazia cada vez com mais rigor, como
também estava pronto a entregá-lo para consecução do ob
jetivo uma vez legalizada a situação entre a Cooperativa e o
governo do Estado. ^^^
A questão da locahzação dos frigoríficos a serem montados pela
Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes fora ultimada em 26 de feve
reiro de 1932. A comissão,composta por Aymoré Drumond de Macedo
e Mário de Oliveira, representantes do governo do Estado, e B. Marchais,
pela Cooperativa, havia optado pela construção de três matadouros-fri-
goríficos, em Guaíba, Alegrete e Tupanciretã (ou Cruz Alta). Colocava
ainda que não devia serde todo afastada a hipótese dacolocação de um
frigorífico emSão Sebastião (Oom Pedrito).
Em Rio Grande e Porto Alegre, seriam construídos entrepostos-
-frigoríficos para depósito de produtosvindos do interior do Estado.^ ^
O VII Congresso Rural, realizado em julho deste ano, trouxe os
problemas da Cooperativa para a pauta das discussões. Félix Contreiras
Rodrigues, em trabalho apresentado no Congresso, afirmava que a Co
operativa de Carnes não passava de uma ilusão, criando arrecadação de
impostos numaépocacarente de capitais.^ ^^
A crítica à arrecadação, paga por todos os ruralistas indistintamen
te (criadores, charqueadores ou invemadores), fazia-se sentir também na
voz de Balbino Mascarenhas:
Fundada há mais de dois anos (a Cooperativa) e elabora
da em um concilio de que fazia parte o escol dos conhecedores
e estudiosos da matéria [. . .] só lhe sentimos os efeitos
quando vamos pagar qualquer imposto. Se dela dependesse a
salvação da nossa pecuária no transe que se estavapadecendo,
desnecessário é dizer qual teria sido o desenlace [. . . ] Tão
fracos eram os alicerces, tão pouco amadurecida estava a idéia
na classe pastoril, para uma construção eminentemente cen
tralizadora, que o seu capital está sendo realizado por meio de
um imposto. Um impostol Imposto, o próprio nome está
dizendo, é meramente um produto da coação governamental.
E, assim, essa sociedade terá acionistas entusiastas e acionistas
"úf muque". Bem sei, meus senhores, que a essaarrecadação se
deu o nome de taxa, mas, se não é imposto, é taxa imposta. E
l^^Ibidem.
157 a localização de frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 12 jul. 1933.
p. 10.
^58cooperativismo e sindicalização. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 jul. 1933.
p. 3.

120
uma imposição, tenha o rótulo que tiver, é sempre uma impo
sição. ^
A crítica, naturalmente, era facilitada na medida em que o indi
víduo acusador se posicionasse em facçao política oposta à orientadora
do PRL ou que pertencesse à fração de classe dos charqueadores não
identificados com o processo de renovação pelo frio.
Permanecia, contudo, como dado fundamental, a carência de ca
pitais entre os criadores e as suas reivindicações junto ao governo para
eliminação de impostos, temas estes intensamente discutidos durante
o VII Congresso Rural.
A tese apresentada por Ernani Frota trazia à luz as queixas dos
fazendeiros contra o imposto de renda. Até 1932, vigorava um decreto
mediante o qual não estavam incluídos os campos de pastagens. To
davia, em 20 de junho de 1932, o Governo Provisório baixou o Decreto
n9 21.554, determinando que entrasse no cômputo do imposto também
o valor dos campos de pastagens. Os estancieiros solicitavam ao inter
ventor federal no Estado que pleiteasse junto ao Governo Provisório a
solicitação de que o pagamento do imposto se desse sobre a renda
auferida e não sobre o capital.
Por outro lado, a Sociedade Agrícola Pastoril de Uruguaiana
solicitava redução do imposto territorial em 30% e que o prazo de
pagamento do mesmo fosse prorrogado até 30 de novembro, fim da
safra das lãs. Além disso, requeria-se que os pagamentos em atraso
pudessem ser pagos por quotas e isentos de multas. Com relação aos
cabanheiros, requeriam-se concessões especiais, tais como a isenção por
três anos do pagamento do imposto territorial e a isenção de todos os
impostos municipais que incidissem sobre seu negócio; sua dívida ativa,
quanto ao imposto territorial, seria paga por quotas anuais, sem multa.
Como justificativa, a Sociedade Agrícola Pastoril de Uruguaiana
apresentava o seguinte quadro^ que evidenciava a desvalorização da
pecuária no município:

DEMONSTRATIVO DA DESVALORIZAÇÃO DOS GADOS

Espécies Valor em 1928 Valorem 1933 Desvalorização (%)


Touros 1:000$ 600$ 40
Novilhos 280$ 130$ 55
Gado vacum de cria 150$ 60$ 60
Carneiros reprodutores 300$ 150$ 50
Capões 35$ 20$ 40
Ovelhas de cria 30$ 12$ 60

159Mascarenhas, Balbino, op. cit.


l^OOs Trabalhos do 7? Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 15 jul.
1933. p. 8.

121
DEMONSTRATIVO DA DEPRECIAÇÃO DOS PRODUTOS DOGADO

Preço por quilo


Espécies 1928 1933 Depreciação (%)
Carne de vaca - açougue 1$200 $600 50
Couros vacuns secos 5$500 2$500 60
Charque 2$800 1$500 50
Lã 6$000 3$000 50
Sebo 1$400 $900 35

DEMONSTRATIVO DA DESVALORIZAÇÃO DOSCAMPOS

Valores por quadra de sesmaria


Classificação 1928 1933 Desvalorização (%)
Campos superiores 20:000$ 14:000$ 30
Campos médios 14:000$ 11:000$ 20
Campos inferiores 11:000$ 8:000$ 30

DEMONSTRATIVO DA BAIXA DOS ARRENDAMENTOS

Valores do arrendamento por quadra de sesmaria


Classifícação 1928 1933 Baixa (%)

Campos superiores 1:400$ 800$ 43


Campos médios 1:000$ 600$ 40
Campos inferiores 700$ 350$ 50

RENDIMENTO DOS ARRENDAMENTOS DOS CAMPOS EM 1928

Valor do
Valor da terra Percentual de
Classifícação arrendamento
por quadra rendimento
por quadra
Campos superiores 20:000$000 1:400$000 7,0
Campos médios 14:000$000 1:000$000 7,0
Campos inferiores 11:000$000 700$000 6,5

RENDIMENTO DO ARRENDAMENTO DOS CAMPOS EM 1933

Valor do
Valor da tena Percentual de
Qassificação arrendamento
por quadra rendimento
por quadra
Campos superiores 14:000$000 800$000 6,0
Campos médios 11:000$000 600$000 5,5
Campos inferiores 8:000$000 350$000 4,5

122
Dos dados expostos, deduz-se que os gados foram desvalorizados,
no período de 1928 a 1933, em 51%, osprodutos do gado em49%, os
campos registraram em média uma queda de 27%, os arrendamentos
uma baixa de 44% e os rendimentos dos arrendamentos sofreram uma
desvalorização de um terço, baixando de 7%para 5%.
Quanto a este último tópico, revestia-se de singular importância
para o município de Uruguaiana, onde havia 1.400 proprietários loca-
dores e 800 proprietários locatários. Referia o memorial de Uruguaiana:
Se considerarmos que o imposto territorial absorve um
por cento do valor dos arrendamentos e que a conservação das
benfeitorias requer o dispêndio de outro meio por cento sobre
os mesmos, constatamos que o capital investido em campo dá
o reduzido prêmio de 4% não levando em conta o im
posto sobre a rendaf ^^
A ótica apresentada acima é, evidentemente, a do proprietário e
não a do arrendatário. Não é uma ótica nitidamente capitalista, pois
esta, na realidade, não investe muito. O "reduzido prêmio de 4%" refe
re-se ao rendimento do campo que se arrenda, e não do capital investido
no campo.. .
Todavia, as colocações feitas e os dados apresentados evidenciam
a vivência de uma situação crítica, justamente numa época em que aos
poucos se processava a melhoria do gado, das pastagens e demais ben
feitorias (cercas, banheiros carrapaticidas).
A situação pode parecer paradoxal, quando referida para o ano
de 1933, época em que jornais de São Gabriel noticiavam uma alta do
preço do gado motivada pela ação da Sociedade de Fazendeiros de
Bagé. Todavia, isto vem tornar claro que as cooperativas de produção
dos estancieiros tinham ação restrita ao âmbito municipal, sem conse
guir resolver a crise da pecuária como um todo.
No que tange à demanda por redução de impostos, a Sociedade
Agro-Pastoril de Uruguaiana afirmava que há dois anos a classe pecuária
vinha pedindo a sua diminuição. Todavia, "sua pretensão, conquanto
legítima, tinha que ser adiada porque o ambiente político (dúvidas, res
sentimentos) não propiciava a paz fraternal para a cooperação econô
mica indispensável".^ O que na verdade se reclamava era que a paci
ficação do Rio Grande fora feita, não havendo, pois, porque retardar
mais as medidas que poderiam atenuar a crise da pecuária.
No tocante aos impostos, o relatório do Secretário da Fazenda,
em 1934, referia que, para o ano de 1933, haviam acusado diferença
para menos as rendas provenientes das seguintes rubricas:*
161ibidem.
162ibidein.
163Relatório da Secretariada Fazenda de 1934. p. 2-3.

123
Diferença
Renda dos impostos Orçada Arrecadada
para menos

1.Taxa de expediente 10.000:000$000 7.794:854$000 2.205:145$000


2. Imposto de consu
mo 11.000:000$000 10.978:205$466 21:794$000
3. Imposto sobre gado
abatido 180:000$000 178:229$800 1:770$200
4. Imposto de indús
tria e profissões . . 9.500:000$000 8.529:142$700 970:857$300
5. Imposto territorial 10.500:000$000 9.434:899$500 1.065:100$500
6. Imposto de trans
missão sobre inter-
vivos 8.000 K)00$000 6.295:951 $990 1.704:048$010
7. Imposto de trans
missão sobre **causa
mortis" 3.500:000$000 2.129:337$900 1.370:662$100
8. Imposto Judiciário 1.200:000$000 958:138$200 241:861 $800
9. Imposto de consu
mo para consolida
ção rodoviária . . . 3.000:000$000 2.974:925$800 25:074$200
10. Imposto escolar e
hospitalar de 15% 6.347:250$000 5.814:555$719 532:694$281
11. Imposto profissio
nal de 8% 1.684:000$000 1.454:665$999 229:334$001
12. Imposto de coope
ração de 2,5% . . . 1.000:000$000 948:154:350 51:845$650
13. Imposto por quilo
de erva-mate expor
tada 70:000$000 13:642:300 56:357$700

Vê-se, pelos dados expostos, que alguns, que incidiam sobre a


pecuária —como o sobre o gado abatido, territorial e cooperação —ha
viam decrescido. Note-se ainda que, fora o imposto de consumo, era
o territorial o que mais arrecadava para o estado.
O governo atribuía esta diminuição à crise mundial da economia,
ao decréscimo da exportação gaúcha para o exterior, á desvalorização
da moeda e à crise política interna. Por outro lado, uma das diretrizes
mais proclamadas do governo Flores da Cunha, desde 1931, fora uma
política de desagravação fiscal. O PRL acentuava que o interventor
federal, preocupado em devolver a dinamicidade às atividades econô
micas, realizava inúmeras reduções nas taxas e impostos. No tocante à
pecuária, convém recordar e acrescentar novas medidas levadas a efeito
pelo governo em seu favor: redução de 4% para 3% das taxas sobre
couros vacuns e cavalares, secos, verdes e salgados, destinados á expor
tação; redução de emergência do imposto sobre a lã; isenção do imposto
de exportação para as carnes enlatadas ou em barris, da carne verde a

124
granel; redução da taxa sobre exames de charque.
Todavia, apesar de tais medidas, elas se revelavam incapazes de
remover obstáculos estruturais de uma pecuária descapitalizada, que se
mantinha em crise com uma criação sem condições de auto-renovar-se
de forma completa (refinamento completo do rebanho, pastagens arti
ficiais, criação intensiva), destinando sua matéria-prima ou a uma char-
queada sem perspectivas de renovação e em perene instabilidade ou uma
indústria estrangeira de carne frigorifícada que a submetia a constantes
manobras baixistas.
Enquanto esta era a situação que se mantinha no Rio Grande, São
Paulo já apresentava maior distância dos gaúchos. Em entrevista conce
dida aos jornais. Marcial Terra referia suas impressões sobre a pecuária
paulista. São Paulo apresentava-se como o primeiro estado brasileiro em
exportação de carnes frigorificadas. Com seus quatro grandes frigorí
ficos — Armour, Anglo, Continental e Frigorífico de Santos, com ma
tança de 480.000 novilhos —possuía ainda charqueadas e matadouros
no interior do estado, que abatiam 400.000 cabeças anuais. São Paulo
podia ainda invemar, por ano, 2.000.000 de novilhos em seus campos
artificiais, rebanhos estes vindos dos estados de Minas Gerais, Mato
Grosso e Goiás. Só o exemplo das pastagens artificiais já basta, como
se vê, para avaliar o distanciamento da situação paulista com relação à
gaúcha. Além das facilidades de transporte (estradas de ferro e de ro
dagem), o estado possuía uma próspera indústria de laticínios.^
No final do ano de 1933, Flores da Cunha, na sua perspectiva
de incentivar a pecuária e condizendo com a orientação nacionalista
do Governo Provisório, revogou, pelo Decreto n9 5.497, de 27 de
dezembro de 1933, as Leis n9 206, de 25 de novembro de 1916, e
n9 233, de 25 de novembro de 1917, que haviam concedido favores aos
frigoríficos estrangeiros estabelecidos no Estado pelo prazo de 30 anos.
O referido decreto passou a fixar a taxa de expediente de 2,5% sobre
a exportação de carnes congeladas. Najustificativa para este ato. Flores
da Cunha argumentava que, longe de atender aos interesses da pecuária,
principal fonte de riqueza do Estado, as empresas estrangeiras haviam
prejudicado estes interesses, uma vez que contribuíram para o desapa
recimento de charqueadas sem que passassem a abater em seus estabe
lecimentos as cabeças necessárias para restabelecer o equUíbrio entre a
produção e o desfrute dos rebanhos gaúchos. Além disso, considerava
o governo que os frigoríficos estrangeiros haviam abusado das prerroga
tivas e favores concedidos pela legislação, tornando-se lesivas aos in
teresses do Estado. O governo lembrava que o principal objetivo das

164a pecuária nacional. Correio do Povo, PortoAlegre, 23 nov. 1933. p. 16.

125
Leis nÇS 206 e 233 fora o de substituir a indústria do charque pela
da carne frigorificada, finalidade esta que não fora alcançada, uma
vez que a exportação da carne frigorificada em 1932 tivera o valor de
12.358:022$000, em 9302 toneladas, inferior à exportação do char
que no ano de 1917, que representara um valor de 42.845:253$874
por 49.249 toneladas.^ ^^
A medida, contudo, causou apreensão a setores de pecuaristas.
Dario Brossard, por exemplo, criticava a atitude do governo, argumen
tando que uma leve reação no preço do boi fora anulada pelo ato do
interventor. Afirmava o ruralista que a conseqüência imediata seria fa
talmente a baixa do preço dos gados, justamente no momento em que,
mais do que qualquer outra medida, o que a pecuária precisava era
de uma safra boa. Concluía D. Brossard:

Não discutimos as razões de ordem moral e econômica


que levaram o governo do Estado a assinar o decreto cassando
os favores concedidos aos frigoríficos, queremos reconhecer,
mesmo, neste ato governamental, uma finalidade elevada e
patriótica, mas não se poderá fugir ao efeito depressivo que
essa medida vai exercer sobre a safra, que se iniciara com tão
animadoras promessas [. .. ] neste caso, o governo terá assu
mido a obrigação moral de promover, de qualquer modo, uma
compensação ao criador rio-grandense que será, no final do
ajuste, o único sacrificado. ^^^
Incansável batalhador da idéia do cooperativismo, Brossard exor
tava o desenvolvimento do espírito associativo como caminho necessá
rio a trilhar para a defesa dos interesses da classe. A crise ora vivida, no
caso, era um momento propício para estimular o movimento coopera-
tivista. Cabia, contudo, ao Estado estimular e auxiliar os criadores.
A questão do cooperativismo dos estancieiros através da entidade
já constituída —a Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes- e as suas
relações com o governo chegariam a seu termo no ano de 1934.
O governo, escorando-se num grupo de pecuaristas, enviou à
FARSUL, em maio de 1934, um projeto de transformação da Coope
rativa em Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Reunidos os fazen
deiros em Porto Alegre para opinarem, Dario Brossard, então presidente
em exercício da entidade, aprovou o gesto de Flores da Cunha, quali-
ficando-o de "sã e elevada política administrativa", merecedor de "lou
vores e aplausos". Acentuou ainda que a FARSUL era uma entidade
social e a Cooperativa de Carnes uma entidade comercial. Ambas

165 Os favores aos frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 29 dez. 1933.
P.9.
^66oassação de favores aos frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 5 jan.
1934. p. 10.

126
tinham finalidades paralelas, mas não entrelaçadas.
Opinião contrária representou o ruralista Joaquim Luís Osório,
velho republicano, argumentando que, se o Rio Grande possuía matéria-
-prima e transportes (através do Uoyd Brasileiro e da Navegação Brasi
leira) com câmaras frigoríficas, a Cooperativa só viria trazer benefícios,
eliminando o intermediário que absorvia 50% dos ganhos. Sendo, con
tudo, uma instituição privada, a própria classe rural possuía membros
capazes para dirigi-la, sem precisar do governo para isso. Criticando o
sistema tributário, que considerou elevado, lembrou que o imposto
arrecadado pelo governo para constituir o capital da sociedade coope
rativa já devia estar bem alto, mas do qual não se sabiam notícias.i^'^
A opinião de Joaquim Luís Osório marcou uma vertente da opi
nião dos estancieiros quanto à questão, posicionando-se contra a tutela
do governo sobre os pecuaristas com a transformação da Cooperativa
em Instituto.
Uma posição intermediária da forma de encarar o problema da
transformação da Cooperativa para Instituto foi aquela assumida por
Anibal Di Primio Beck (PRL). Falou em nome da Cooperativa, na presi
dência da qual se achava, em caráter provisório, desde a renúncia do
Gen. Assis Brasil. Relatou que a Cooperativa vinha lutando com os pro
blemas de integralização de capital: dos seus 444 acionistas, só 223 ha
viam cumprido sua promessa de tomada de ações. Por outro lado,
dificuldades legais se antepunham à reversão da tributação arrecadada
em ações: o Decreto n9 22.239, de 19 de dezembro de 1932, havia
proibido as cooperativas de constituírem o seu capital por subscrição
ou emissão de ações. A direção da Cooperativa, então encabeçadapelo
Gen. Assis Brasil, propôs ao governo do Estado uma nova solução para
o caso da entidade em 9 de junho de 1933: a legitimidade do imposto
seria reconhecida, mas o seu montante, em vez de reverter aos associa
dos, passava a constituir o "Fundo de Patrimônio da Cooperativa". Em
face da recusa do governo, a diretoria havia-se demitido.
Citava, ainda, Di Primio Beck que Marcial Terra afirmara haver
muitas firmas estrangeiras interessadas em entrar com o numerário
preciso para integrar o capital, desde que fosse fiador o Estado, tal
como a do Sr. Arthur Wood & Cia. Arrematava dizendo:
Temos motivos para crer que a projetada ''encampa
ção** que se promove virá trazer dolorosas decepções. As
sunto do interesse peculiar da classe rural, entendo que não
deve ser resolvido neste ambiente estreitíssimo, em que a
maioria das sociedades não está representada diretamente,
mas por meio de delegados nesta capital, o que tira a autorh
1^7 A grande reunião de ontem dos fazendeiros rio-grandenses. Correio doPovo,
Porto Alegre, 16 maio 1934. p. 5.

127
dade das decisões. Em breve, em julho, deve reunir-se o VIII
Congresso Rural Não vejo por que deliberar hoje, por que opi
nar pela criação do Instituto em substituição à Cooperativa
fora do Congresso Geral [... ] Estamos no fim da safra A prin
cipal causa que retardou os trabalhos da Cooperativa foi a
anormalidade do país, que afastou da Cooperativa importantes
elementos. Esta anormalidade persiste. A política absorve
todos os espíritos. Não há calma para deliberar ^®
A posição assumídã por Dl Primio Beck é importante na medida
em que alerta para uma espécie de tática levada a efeito pelo governo
que implicava um "retardamento propositado" na definição do caso da
taxa de cooperação, acompanhado de uma "pressa intencional" de fazer
a transformação da Cooperativa em Instituto, antes mesmo da normali
zação completa da vida política do país.
A solução era apressada para antes da ultimação dos trabalhos
da Constituinte no cenário federal e da próxima reunião da classe rural
que realizaria em julho, como de praxe, o VIII Congresso Rural.
Enquanto os criadores e o govemo estadual propunham a imedia
ta transformação da entidade, outros setores de ruralistas ou nega
vam totalmente a proposta ou procuravam protelar a decisão para
quando estivesse reunida toda a classe rural.
As opiniões favoráveis à transformação da Cooperativa em Insti
tuto, emitidas pelo Dr. Egídio Hervé, são fundamentais para a compre
ensão do processo que se instalava.
O Dr. Egídio Hervé considerou ser o Instituto maiscompletoque
a Cooperativa e de mais fácil manejo, situando-se como o mais apto
para defender os interesses daclasse rural. Naconstituição do Instituto,
o govemo, de acordo com a classe rural, lançaria os impostos e criaria
um aparelho de direito público. O Instituto iria, pois, exerceruma par
cela do poder público. O governo nomearia uma parte dosmembros da
diretoria, dos membros do conselho de administração e do conselho
fiscal, e a classe rural a outra metade. Não haveria necessidade de
contrato entre o govemo e o Instituto, pois este próprio seriauma par
cela do governo. Uma vez organizado o Instituto, seus diretores ime
diatamente deveriam receber os produtos das taxas e impostos, além
de terem facüitados ostrâmites para a efetivação deempréstimos.
Corroborando com a postura do governo estadual, Gastão Englert
afirmava que deveriam os pecuaristas aceitar a proposta do Estado: se
este achara que não era possível realizar o contrato e se a necessidade
do frigorífico se impunha, era preciso que serecorresse ao governo para
que este desse o dinheiro para a suainstalação.
Em carta, o presidente da FARSUL, Ricardo Machado, aconse-
168ibidem.

128
lhou que não deveriam os criadores lutar contra a nova instituição; ape
nas era preciso que a FARSUL preservasse a sua autonomia e que toda
decisão deveria ser considerada provisória até que se reimisse o pró
ximo Congresso Rural.
Apesar disso, foi formada uma comissão composta por Guilherme
Tell Francisconi, Clarimundo Veríssimo, Homero Fleek, Alberto
Pasqualini e Irio do Prado Lisboa, para decidir sobre a transformação
ou não da Cooperativa em Instituto.
A assembléia dos criadores deu o seu parecer favorável à criação
da nova entidade, assim como a comissão designada para este fim.
É importante verificar aqui o processo de cooptação que se veri
ficou. Acenando com vantagens, o governo conseguiu a adesão da maior
parte dos criadores, que optaram pela tutela do Estado sobre a enti
dade, para ficarem ao lado do poder constituído, da ala "nacionalista"
vitoriosa que dominava o Rio Grande. Anibal di Primio Beck, por
exemplo, colocou que a Cooperativa, sem o apoio do governo, não
podia resolver a situação da pecuária, restando o Instituto como única
solução. Di Primio Beck, no caso, mudou de opinião, aderindo ao pro
jeto do governo.
Aqueles que fechavam com a idéia do Instituto, é claro, bene-
ficiar-se-iam mais. O momento dado é rico em análise, constatando-se
a manobra de um grupo, indiscutivelmente aqueles que tinham mais
capital e que se preocupavam com a sua ampliação.
O governo do Estado, identificado com a orientação do governo
central, aplicava o princípio do intervencionismo na economia, criando
instituições onde o Estado se fizesse presente ao lado dos representantes
de classe. Para fazer sua proposta ser aceita, tanto se utilizara de mé
todos tal como abreviar a sua resolução o mais cedo possível, antes do
Congresso que reuniria toda a classe rural e permitiria a melhor orga
nização das opiniões opostas, quanto se valeu de outros recursos, como
acenar com a pronta entrega da taxa e impostos arrecadados.
Foi acentuado que a criação do Instituto em nada desmerecia a
criação da Cooperativa de criadores ou a atuação da FARSUL. As
cooperativas, inclusive, poderiam se amparar no próprio Instituto, dan
do-se o mesmo com os sindicatos. O Instituto não só apoiaria como
ainda fomentaria a criação das cooperativas.
O parecer da comissão afirmou a diferença entre uma e outra
entidade:

A Cooperativa era uma corporação de caráter privado,


destinando-se à realização dos serviços públicos, mediante
concessão e controle do Estado, O Instituto é uma derivação
diretamente estatal, uma diferenciação do próprio aparelho

129
administrativo, com autonomia e personalidade jurídicas pró-
prias, uma criação, enfim, suigeneris, ainda não tentada e nem
sequer definida na nossa legislação. Como organização autô
noma, é o Instituto absolutamente independente do poder go
vernamental que nele só interfere nos casos e pela forma taxa
tivamente previstos na respectiva lei constitucional De acordo
com o sistema estatutário projetado, prepondera o voto da
classe rural ou dos contribuintes do imposto pecuário no órgão
de direção e administração, reservando-se o Estado a maioria
representativa no órgão de fiscalização.
Foi formada, a seguir, uma outra comissão pela FARSUL, a fim
de opinar sobre o projeto dos estatutos da nova instituição a ser criada,
integrada por Egídio Hervé, Alberto Pasqualini, Manuel Luís Pizarro,
Guilherme Tell Francisconi e Dario Brossard. A comissão, conforme
especificou, trabalhou no sentido de harmonizar as disposições esta
tutárias, dando maior eficácia à representação e atuação da classe rural
e assegurar a autonomia do Instituto.
Com a preocupação expressa de ''salvaguardar os interesses má
ximos da classe rural, sem perder de vista os da coletividade em geral",
a entidade se propunha a defender a indústria agropecuária do Estado,
melhorar as suas condições, organizar a industrialização e a venda dos
seus produtos e subprodutos. Para tanto, o Instituto deveria "estabe
lecer a colaboração entre o estado e os produtores", "construir mata
douros, estabelecimentos frigoríficos, fábricas para o beneficiamento,
elaboração, transformação e conservação dos produtos e subprodutos
da lavoura e da pecuária". Além disso, deveria "exportar a matéria-
-prima beneficiada", "prestar assistência aos agricultores e criadores",
"organizar serviços de estatística e informações", "pugnar pela cele
bração de convênios comerciais internos e externos paraincremenar a
exportação", lutar "pelo melhoramento dos rebanhos, dos campos, dos
processos de produção", "fomentar a organização das classes rurais em
cooperativas", etc.
No que diz respeito à representação da classe rural na entidade,
estabelecia-se que asassociações rurais já existentes e filiadas à FARSUL
seriam consideradas entidades representativas da classe nos municípios
e teriam a prerrogativa de se representarem no Instituto. Os órgãos re
presentativos da classe rural elegeriam três entre cinco diretores do Ins
tituto e cinco dentre sete membros do conselho consultivo. No que
tange à aplicação dos lucros, 60% seriam levados ao fundo de garantia,
30% distribuídos como bonificação aos produtores que houvessem for
necido matéria-prima ao Instituto e na proporção de seu valor, e 10%
169 Foi resolvida a transformação da Cooperativa em Instituto Rio-Grandense de
Carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 17 maio 1934. p. 9.

130
distribuídos sob a forma de prêmios aos produtores de matéria-prima
superior.^
Durante a realização do VIII Congresso Rural, foi baixado o De
creto n9 5.648, de 13 de julho de 1934, criando o Instituto Sul-Rio-
-Grandense de Games. No ato de criação, o governo argumentava que, a
par das dificuldades que a pecuária rio-grandense vinha enfrentando há
longos anos e a penúria a que estavam reduzidos os estabelecimentos
pastoris e indústrias correlatas, acrescentava-se a impossibilidade dos
pecuaristas resolverem, por si mesmos, os problemas da classe. Consi
derando ainda ser impraticável a mudança imediata da atividade pastoril
por outra e tendo em vista ser
[... ] função das públicas administrações ir ao encontro
das iridústrias fundamentais dos Estados, quando não possam
estas, por si mesmas, se desvencühar das peias que as oprimem,
sufocam e como que aniquilam, o poder público adotava uma
'^moderna forma de cooperação entre o Estado e as classes
produtoras.^
Em discurso pronunciado por ocasião da inauguração do Con
gresso (10 de julho de 1934), o Dr. Francisco Rodolfo Simch, Secre
tário de Obras Públicas e representante do interventor federal, acen
tuou o interesse de Flores da Cunha pelo progresso do Rio Grande do
Sul e, mais especificamente,por aquelespertinentes à classe à qual tinha
orgulho de pertencer. O interventor acompanhava com interesse os
trabalhos realizados pelos criadores para resolver o problemamagno de
sua classe, mas que, apesar desse interesse, não fora possível atender
tudo aquilo que se propusera realizar:
É que os superiores interesses do Estado não compor
tavam soluções unilaterais, que viriam romper o equilíbrio
producional do Rio Grande em detrimento de suas indústrias
tomadas em conjunto e, pois, com sacrifício de todos. ^ ^
Argumentando com essa problemática mais vasta do que o pro
blema da pecuária —a economia gaúcha como um todo imersa na crise
do pós-30 —e com múltiplos interesses a satisfazer —tarefa específica
do Estado — o governo se eximia de uma responsabilidade maior no
atendimento às necessidades dos pecuaristas constituídos na Coope
rativa Sul-kio-Grandense de Carnes. O que lhe competia —a taxa
de cooperação — estava, contudo, sendo arrecadada, como demons
travam os dados fornecidos^

l^Oinstituto Sul-RioGrandense de Carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 23


jan. 1934. p. 1.
l^lLeis, Decretos e Atos do Governo Estadual 1934.
f ^^Anais doVIII Congresso Rural. FARSUL. Porto Alegre, Globo, 1934. p. 12-3.
l'73lbidem, p. 13.

131
1932: Prefeituras 1.747:477$600
Estado 946:747$110 2.724:224$7I0
1933: Prefeituras 1.960:467$681
Estado 948:154$350 2.908:622$031
1934: Prefeituras 112:928$010
Estado 356:582$600 469:510$610
6.102:357$351

Tal soma se achava em mãos do governo e seria entregue á enti


dade que fosse criada para chamar a si a solução do problema maior da
pecuária gaúcha; se o Instituto de Carnes se propusesse a tal, o governo
imediatamente lhe entregariaesta quantia.
Além de tais considerações, o representante do interventor salien
tou outras medidas estatais no tocante ao problema da pecuária: o en-
treposto-frigorífico do porto da capital, cuja construção já se iniciara.
Conjuntamente com o aparelhamento do cais, seria tratada a conexão
com a Viação Férrea a fim de conectar Porto Alegre com as zonas
produtoras do interior. Da mesma forma, o matadouro-modelo da
capital se achava em fase de concorrência.
Enquanto o interventor se fazia assim manifestar, nesta postura
otimista quanto às realizações feitas e por fazer, identificando-se como
pertencente à mesma classe dos criadores, o discurso do orador oficial
da FARSUL, José Lopes Amoni, exortava á união da classe, sempreo
cupação com dissenções políticas:
Devemos reconhecer que a Federação Rural, em sua vida
de atividade, preencheu um vácuo, mas é necessário também
confessar que ainda não está aparelhada de todo para corres
ponder às apremiantes necessidades de defesa do criador rio-
.-grandense [...] isto devido à ausência de espirito associativo
'da classe em geral, que não a assiste resoluta com seu apoio
decidido numa firme união de esforços [... ] Para entrarmos
no domínio das realizações práticas, não é necessário abdicar
de nossos direitos políticos. Os partidos, na dura experiência,
nos fazem conservadores, sem por isso deixarmos de ser cons
trutores e acompanhar e concorrer para o progresso do país
[...] Permaneçamos nós, dentro de nossas Uléiasdoutrinárias,
mas rmo seja nunca a questão política um obstáculo para a
formação da defesa da nossa classe . .\É necessário não con
fundir os problemas políticos com os problemas econômicos
da nossa vida rural Procurando os poderes públicos estabelecer
uma íntima colaboração com a classe para a solução dos nossos
problemas, cumpre-nos irmos ao seu encontro, marchando pa-
relhos para essa realização. ^
174ibideni,p. 18-9.

132
Evidenciava-se, por trás de uma situação de desinteresse, falta de
espírito de cooperação, solidariedade de classe, etc., a condição funda
mental de uma pecuária descapitalizada, geradora de atitudes apáticas,
notabilizada pela ausência de um sentido renovador.
Os pecuaristas, carentes de capital, em geral tinham necessidade
do apoio governamental para a consecução de seus interesses e concre
tização das metas a atingir. A "ala nacionalista", que empolgava o
poder, por outro lado, punha em prática um novo padrão de conduta
do Estado na realidade de pós-30. A tutela do Estado sobre a esfera
econômica, coordenando, disciplinando, orientando, protegendo, in
centivando as atividades produtoras em geral, não visavam apenas
à salvação de uma economia nacional em crise, mas a própria reorien-
tação das relações entre os produtores e o Estado.
A legislação social cumpriu o papel de submeter o trabalho ao ca
pital. A formação de cooperativas, sindicatos de produtores e institutos
atrelou o capital (ou os diferentes setores da burguesia nacional) ao
mecanismo estatal.
Quanto à transformação da Cooperativa em Instituto, justifi-
cava-se que a Cooperativa não era a forma mais adequada para solu
cionar o problema das relações entre o Estado e a classe rural, permi
tindo a conciliação entre os interesses privados e os coletivos.^
A "vanguarda" dos pecuaristas retomava agora, com maior ímpe
to, a preocupação de instai^ um frigorífico nacional no Rio Grande.
Além deste tema, muito debatido no VIII Congresso Rural, e do apoio
à fórmula cooperativista como meio que devia complementar a orga
nização das classes rurais, paralela à criação do Instituto, foi enfatizada
pelos pecuaristas a medida do Governo Provisório de criação de um
Banco Rural. A notícia da assinaturado decreto de criação da nova ins
tituição, que coincidiu com o Congresso, foi saudada pelos pecuaristas,
que viam na medida mais uma forma de amparo da administração pú
blica a seus problemas.
No artigo 69 de seus estatutos, publicados no Diário Oficial de
7 de maio de 1934, especificava-se:
O Banco terá, como um de seus objetivos principais, o
financiamento das organizações econômico-profissionais dos
agentes da atividade rural em Consórcios Profissionais Coope
rativos municipais, em federações estaduais e na confederação
nacional desses consórcios, e realizaráoperaçõespara o auxilio
à lavoura, à pecuária e das indústrias rurais, inclusive as extra-
tivas,^'^^

nSibidem, p. 73.
176ibidem, p. 276.

133
Como se vê, o governo central abria possibilidades justamente
aos produtores cooperativados, ao mesmo tempo que correspondia ao
antigo anseio de crédito de uma pecuária descapitalizada, carente de
recursos numa época de crise e com propostas de renovação.
Ora através de medidas como esta, ora através da imposição do
Instituto, extensão do poder público na área de produção, o Governo
Provisório e com ele a "ala nacionalista", hegemônica ao nível regional,
contribuíam para a rearticulação das relações entre o Estado e a socie
dade, disciplinando as classes dominantes para que estas preservassem
a sua predominância.
Processava-se, por um lado, o avanço da esfera governamental
sobre o plano econômico, demonstrando, no pós-30, a inviabilidade
do capitalismoviver ainda na etapa liberal. Por outro lado, regulamenta-
va-se a forma de atuação das classes dominantes, através das associações
de classe, no seu relacionamento com o governo, dando-lhes um con
teúdo mais econômico-reivindicatório do que político propriamente
dito, no sentido da luta pelo poder.
No tocante ao pólo trabalho, a questão da sua regulamentação
começou a preocupar os pecuaristas rio-grandenses. Já em outubro de
1932, a "Frente Sindicalista" (operária) de Pelotas, comentando a
"má vontade de alguns interessados" em não cumprir a lei social, que
especificava o regime de 8 horas por jornada de trabalho, acrescentava:
**Desde já, é necessário que se defina claramente que a
recente lei só excluiu os trabalhadores dos campos, para o que
o governo está elaborando uma legislação à parte.
O Ministério do Trabalho, objetivando regular a duração do tra
balho rural, elaborou um anteprojeto, publicado no "Correio do Povo"
de 24 de fevereiro de 1934 e marcou um prazo de 60 dias para receber
emendas antes de sua execução. Antes que a lei fosse posta em exe
cução, a Diretoria de Fomento Agrícola recomendou à Inspetoria Agrí
cola Federal que, no tempo mais breve possível, recolhesse sugestões de
emendas para ver se a lei era ajustável ao meio rural. O Inspetor Agrí
cola Federal do Rio Grande do Sul, Dr. Luís Gomes de Freitas, enca
minhou então à FARSUL uma cópia do anteprojeto para exame. Em
resposta enviada tanto ao inspetor quanto ao Ministério do Trabalho,
a FARSUL fez as seguintes considerações:
19) a naturezado nossotrabalhorural, naforma atual de
produção extensiva, não pode ficar fechado dentro de um de
terminado horário, e os mais importantes trabalhos da cam
panha, principalmente da zona pastoril, ficariam grandemente

177interesses operários. Opinião Pública. Pelotas, 11 out. 1932.

134
prejudicados com as disposições de qualquer regulamen
tação; [. ..]
29) a harmonia existente entre os empregadores e empre
gados em nosso meio rural, onde não apareceu ainda, nem de
leve sequer, a luta entre o capital e o trabalho;
39) o atraso com que vivem ainda os nossos homens do
campo, onde campeia o analfabetismo numa porcentagem
verdadeiramente assombrosa, abrangendo a quase totalidade
dos empregados e grande número dos próprios empregadores
- razões que impossibilitariam a justa execução de medidas
que têm um alcance social completamente afastado da men
talidade do meio para o qualforam criadas;
49) o hábito tradicional do nosso '"peão*' de estância
que, na falta de qualquer outro divertimento ou **passa-tem-
po*\ aproveita todo descanso para dar uma chegada ao 'bo
liche'', cujas conseqüências nunca serão favoráveis ao seu aper
feiçoamento moral;
59) a necessidade de se fazer, no verão, os mais impor
tantes trabalhos de gado pela madrugada ou à tardinha, en
trando **noite a dentro", com o fim de se evitar as horas quen
tes de sol, que muito sacrificam os gados;
69) e, finalmente, o encarecimento que a regulamen
tação trará ao salário rural, justamente numa ocasião de crise
intensa em que as condições da nossa produção rural não com
portam maiores despesas;
São razões que obrigam esta Federação Rural a consi
derar, atualmente, prematura toda e qualquer iniciativa no
sentido da regulamentação do nosso trabalho rural ^ ®
Fica clara, pela exposição feita pelo 39 vice-presidente em exer
cício, Dario Brossard, e pelo secretário geral da FARSUL, Normélio
Ferreira, a perspectiva do não-enquadramento do trabalhador rural
dentro da legislação social, proposta esta que foi reafirmada por ocasião
do VIII Congresso Rural. A problemática é encarada desde o ponto de
vista do capital, julgando que não somente a regulamentação do tra
balho rural viria onerar o estancieiro, pela determinação dos salários
pagos, quanto viria em prejuízo da própria produção, ao fixar a jornada
diária de trabalho. Como argumentos ponderáveis, eram colocados a
não-existência de conflito na relação capital x trabalho, perspectiva
esta adequada à visão que, nesta época, a classe dominante tinha de si
mesma, posta a circular através de idéias tal como "democracia gaúcha".
O encurtamento do tempo de trabalho, favorecendo o descanso, era
considerado como prejudicial ao proletário do campo, contribuindo
para a sua degenerescéncia moral e de costumes (o "bolicho" com a sua
seqüência de jogo e bebida), além do analfabetismo ser considerado
como fator de inexeqüibilidade da aplicação das leis.
l^Sibidem, p. 43-5.

135
É, no caso, uma visão característica da classe dominante pecua
rista, que analisa "desde cima" a problemática do trabalho, encarando-a
da perspectiva do capital (capital encarado dentro da ótica e condi
cionamentos sulinos, bem entendido).
No que diz respeito aos trabalhadores rurais da pecuária (peões),
não se conhece movimentação alguma dos mesmos no sentido de uma
tomada de posição quanto à legislação social. Vivendo em extrema de
pendência econômica, social e política dos estancieiros, desinformados,
sem canais de expressão e trabalhando mediante relações não-capita-
hstas de produção, é fácil de compreender sua ausência de participação
e organização. Já com relação aos trabalhadores de charqueadas e os
barraqueiros (trabalhadores em barracas de lã), o jornal pelotense
"Opinião Pública" publicava a notícia de que, na primeira semana de
outubro de 1932, haviam-se organizado o "Sindicato dos Trabalhadores
em Indústrias Saladeiris" e o "Sindicato dos Trabalhadores em Bar
racas,^ sem que se conheça, contudo, a sua atuação posterior.
Neste caso, a maior capacidade de organização e de auto-identi-
fícação com o operariado, devem estar ligadas à presença de relações
assalariadas mais nítidas e à existência de uma forma histórica de pro
dução capitalista (charqueada), embora ainda na etapa de submissão
formal do trabalho ao capital.
Como norma geral, o ano de 1934 findou —e com ele o governo
discricionário de Flores da Cunha —com uma renovada esperança para
a classe dominante na possibilidade de solução para a crise da pecuária,
consubstanciada na constituição do Instituto Sul-Rio-Grandense de
Carnes.
Em setembro, o Partido Republicano Liberal organizou o seu
19 Congresso Bienal, que visou, por um lado, um balanço retrospectivo
da atuação do partido desde a sua fundação, e, por outro, o encaminha
mento da candidatura de Flores da Cunha para governador do Estado
na volta ao regime constitucional que se processava.
O discurso de João Carlos Machado, representante do interventor
federal, na sessão de instalação do Congresso, a 7 de setembro de 1934,
constituiu-se num retrospecto laudatório de todas as realizações de
Flores da Cunha e precedido por um breve histórico da Constituição
doPRL.
Neste ponto, J. C. Machado acentuou o ambiente de liberdade
de expressão com que fora debatido o programa do partido e o fe
cundo período de paz que se seguiu à revolução de 1932, favoráveis ao
desenvolvimento da produção gaúcha. Ao mesmo tempo, atacou o
esvaziamento de princípios e a falta de expressão dos velhos partidos,
179opiniãoPública, Pelotas, 11 out. 1932.

136
que até o momento não estavam conseguindo conciliar seus interesses
nem realizar um conclave definitivo para precisar a sua linha de atuação.
Criticando os que se diziam republicanos, mas sem coragem de
pronunciar o nome de Júlio de Castilhos, ou de assumir as idéias parla
mentaristas dos libertadores, João Carlos Machado atacava ao mesmo
tempo os libertadores que haviam abjurado dos seus sólidos postulados
para fazerem concessões aos republicanos.
Com a redemocratização em marcha nos anos de 1933 e 1934,
vários líderes da FUG haviam retornado do exílio, articulando-se para
as eleições, sem, contudo, chegarem a um consenso sobre a orientação
que nortearia os trabalhos partidários.
Para enfatizar a supremacia e o bom desempenho da "ala naciona
lista" na chefia do Rio Grande, o orador desfiou uma série de realiza
ções do governo Flores da Cunha, destacando seu empenho no desen
volvimento da instituição pública, saúde, criação do Instituto de Previ
dência do Estado (IPE), construção de estradas de rodagem, reparação
de pontes, prolongamento das vias férreas, demarcação de lotes colo
niais, início da construção do frigorífico da capital, estando já assina
lados os lugares do matadouro-modelo e do entreposto do leite de
Porto Alegre. Além disso. Flores da Cunha empenhara-se numa polí
tica de desagravação fiscal, comprimindo, ao mesmo tempo, os gastos
públicos. Seu governo, enfim, havia adotado medidas de amparo e
estímulo "às forças de trabalho e de capital" no Rio Grande do Sul.
Terminava o líder a sua oração dizendo que, enquanto a FUG saía da
[...] desordem material para a desordem moral e men
tal, quebrando vínculos com o passado [...] sem idéias, sem
programa, sem norte, trepidante de rancores e de anseios de
extermínio,.. [...] consolidamos nós a nossa ação severa
e fechada, ... cooperando com o governo do Sr. General
Flores da Cunha, no trabalho ingente de prover o Estado de
recursos e construções necessárias ao desdobramento inces
sante do seu progresso material, moral e cultural ^®®
Destacando a ação da bancada liberal na Assembléia Nacional,
o discurso pronunciado pelo deputado Augusto Simões Lopes enfatizou
que, na Constituição promulgada em 16 de julho, viu-se que 85% dos
postulados do PRL ali se encontravam consagrados. Na sua opinião,
isto demonstrava "o sentido renovador e brasileiro" da ideologia po
lítica do PRL e consolidava "no mundo da doutrina e da ordem jurí
dica a vitória da maioria rio-grandense, já insofísmavelmente revelada
nas umas".^®^
180o Partido Republicano Liberal. 1? Congresso Bienal. Porto Alegre, Selbach,
1934. p. 59.
181lbideni,p. 67.

137
Num confronto entre o programa do Partido Republicano Liberal
e a Constituição^®^ apresentado em congresso, é possível constatar
a veracidade de tais afirmações, tendo sido adotada a maior parte dos
postulados referentes a temas tais como a forma de organização do
poder, autonomia dos estados, sufrágio universal, uniformidades dos
princípios básicos de direito processual, organização dajustiçaestadual
e federal, temporariedade de mandato, regulamentação do exercício
das profissões liberais, discriminação das taxase rendas de competência
da União, estados e municípios, articulação racional dos orçamentos,
controle das dívidas externas da União, estados e municípios, pro-
pugnação de medidas tendentes à estabilização monetária, desenvolvi
mentodo crédito, socialização gradual dosserviços públicos, regulamen
tação dos regimes de aproveitamento de energias hidráulicas e reservas
minerais para o poder público federal, criação de conselhos técnicos e
consultivos, criação e fomento de entidades públicas autônomas para
quaisquer fins de ordem econômica, social, financeira ou profissional,
racionalização do sistema de colonização, reorganização dos trans
portes internos, equiparação de jornaleiros e operários do estado aos
funcionários de quadro, pensões, aposentadorias, seguros e assistência
médica aos funcionários públicos e suas famílias, seguro social e assis
tência social, fomento e reconhecimento de sindicatos, cooperativas de
consumo e produção e das associações profissionais, criação de tribu
nais e assessorias para a solução de conflitos entre patrões e operários,
regime de oito horas para trabalho industrial, comercial e mineiro,
salário mínimo, estímulo aoensino técnico-profissional, etc.
Em síntese, a Constituição de 1934representaria a corporifícação
da maioria dos postulados propostos pelo PRL. Sob outro ponto de
vista, representaria a grande identificação entre a "ala nacionalista" da
política gaúcha com as perspectivas do Governo Provisório. Consi
derado, pois, como importante base de apoio do poder central na Re
pública Nova, foi também o voto unânime da bancada liberal que elegeu
Getúlio Vargas como presidente da República, no dia imediato ao da
promulgação da Constituição, por 175 votos, ou seja, mais de dois
terços dos sufrágios apurados.
Além do princípio corporativista expresso e ^ preocupação
social, a Constituinte de 1934 estabeleceu maior poder para o governo
central e menor poder aosestados da federação. Quanto a estaquestão,
a bancada do PRL, em declaração conjunta de voto, aclarou que,
embora tivesse se manifestado pela corrente federativa, aceitava a cen
tralização aprovada no corpo da Constituição. Reconhecia a neces-

182ibidem,p. 97-125.

138
sidade do fortalecimento da autoridade do governo da União, sem
que com isso precisasse desprestigiar ou enfraquecer os outros poderes
da nação^ ®^.
Em suma, diante das necessidades do centro, o PRL abdicava da-
quflo que considerava mais ''de acordo com as tradições e inequívocas
tendências do espírito de nossa gente", para oportunizar a integração
essencial do contexto gaúcho à nova realidade brasileira do pós-30.Isto
revela a ambigüidade do poder de Flores da Cunha, contraditório entre
os interesses das oligarquias regionais e o seu enquadramento às perspec
tivas de Getúlio Vargas de organizar, ao nível regional, o sistema, fa
zendo-o novamente funcionar.
Uma moção de solidariedade foi remetida a Getúlio Vargas e a
seu governo, enfatizando-se que o mesmo, dentro do período discri
cionário, não agia como um ditador, o mesmo valendo para Flores da
Cunha na interventoria do Rio Grande.
O Congresso postulou que, no pleito eleitoral que se realizaria a
14 de outubro (eleições presidenciais), o PRL deveria vencer, tal como
fizera por ocasião das eleições para a Constituinte em maio de 1933.
O nome de Flores da Cunha foi colocado por Antônio Veríssimo
Ribeiro e por José de Oliveira, indicando-o para primeiro presidente
constitucional do Rio Grande na Segunda República. Todavia, sua can
didatura foi formalmente apresentada no discurso do Cel. Antenor
Amorim, ao mesmo tempo em que foi proposta a lista de nomes para
integrar a Comissão Geral do Partido.
Embora fosse ponderado que Flores da Cunhahouvera se pronun
ciado a respeito do problema, dizendo não desqar permanecerna chefia
do governo, preferindo retirar-se para sua vida privada ou ocupar um
posto no Parlamento Nacional, o 29 Congresso do PRL lançou-o como
candidato ás eleições para governador do Estado. Além das suas quali
dades pessoais, muito exaltadas, foi considerado o mais indicado para
executar o programa do PRL no Rio Grande do Sul.
O discurso de Flores da Cunha, no encerramento do Congresso,
marcou a aceitação de sua candidatura,justificando sua atitude em ter
mos de continuidade a uma poHticaque vinha mantendo há quatro anos,
além de não querer desertar seus correligionários em plena jornada.
Vencendo as eleições indiretas para o governo do Estado, Flores
da Cunha seria empossado em 15 de abril de 1935.
Os últimos meses do governo discricionário no Rio Grande foram
marcados pela confiança na obra de constituição do Instituto Sul-Rio-

183ibidein,p. 68.

139
-Grandense de Carnes, que o interventor declarou entrar agora na sua
fase definitiva^
No plano do mercado internacional, boas perspectivas se descor
tinavam para as carnes frigorificadas, pois, em dezembro de 1934,
o Itamarati concluíra negociações com o governo italiano para a aquisi
ção de 1.500 toneladas de carnes brasileiras^ ®^.
Circulou, ainda no início do ano de 1935, que era intenção do
governo britânico estabelecer um plano a longo prazo para regulamentar
as importações de carne, o que implicaria uma tendência para o desen
volvimento das exportações brasileiras de carnes em conserva.^ Man
dada a Londres pelo governo brasileiro, a missão Souza Costa fora tratar
da importação britânica de carnes congeladas, assunto que interessava
ao Rio Grande do Sul.
Enquanto boas perspectivas se descortinavam no comércio inter
nacional de carnes frigorificadas, internamente, no Rio Grande do Sul,
os frigoríficos faziam com que tais alterações não repercutissem favora
velmente sobre os estancieiros. Notícias publicadas no "Correio do
Povo" indicavam que, na safra em curso, o frigorífico Swift estava pa
gando menos pelo g^do em 1935 do que o fizera na safrade 1934^ :
Novilhos: 1934 - 500 réis a libra; 1935 - 450 réis a libra
Terneiros: 1934 - 330 réis a Ubra; 1935 - 300 réis a libra
Referia-se, inclusive, que, com relação a novilhos de tipo chilled,
os frigoríficos uruguaios pagavam mais que os seus congêneres do
estado gaúcho. No Rio Grande, este gado selecionado ou era aprovei
tado pela charqueada ou pelos frigoríficos, que pagavam bem menos
do que o seu preço real. Desta forma, o frigorífico estrangeiro esta
belecido no Rio Grande do Sul não estimulava o fazendeiro gaúcho no
seu processo de refinamento do rebanho, contribuindo pois para a não-
-renovação da pecuária.^ ®®
Com relação ao charque, a situação não se evidenciava favorável
na nova safra, uma vez que os mercados do norte e centro do país
se achavam abarrotados com as carnes nacionais no momento em
que o Uruguai se preparava para encher o mercado brasileiro, com as
suas quotas asseguradas pelo tratado comercial entre o Brasil e aquele
país em 10 de outubro de 1933.

184o Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo. Porto Alegre,


30 nov. 1934. p. 10.
ISScorreio do Povo, Porto Alegre, 25 jan. 1935. p.10.
ISbBrossard, Dario. Carnes congeladas. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 dez.
1934. p, 10.
187 Apecuária brasileira e ocomércio internacional. Correio do Povo, Porto Ale
gre. 25 jan. 1935. p. 10.
l88o Chilled Beef brasileiro. Correio do Povo, Porto Alegre, 8mar. 1935. p. 10.

140
Em síntese, preparavam-se o Rio Grande do Sul e o Brasil para
entrarem na segunda fase de vivência da Nova República, no período
constitucional que se estenderia até o golpe de 1937.
A pecuária gaúcha continuava sufocada, tendo a sua matéria-
-prima básica asfixiada, por um lado, pela atuação dasempresas estran
geiras e, por outro, pela situação sem saída das charqueadas tradi
cionais. O governo eleito, em comum acordo com a orientação do poder
central, visava reafirmar a integração do Rio Grande ao mercado nacio
nal. No tocante à pecuária, a postura fundamental colocada era a de
rápida instalação de um frigorífico nacional que visasse ao abasteci
mento do mercado interno, sem, porém, perder de vista o mercado ex
terno, fonte geradora de divisas para o país. A nova proposta estava
sendo levada adiante pelo organismo que reunia o setor modemizante
da classe rural, tutelada pelo governo do Estado.
A "ala nacionalista" preparava-se, assim, para cumprir a impor
tante tarefa de renovação da estrutura pecuária gaúcha, dotando-a de
uma forma capitalista plenamente configurada.

141
4.0 período CONSTITUCIONAL: ECONOMIA E PODER
(1935-1937)

Em 15 deabril de 1935, Flores daCunha foi empossado como go


vernador constitucional do Rio Grande. No seu discurso perante a As
sembléia, Flores acentuou que, como chefe do Governo Provisório
no Estado, "nenhum preceito legal" lhe impunha a obrigação de prestar
contas de seus atos perante a Assembléia, mas que, dada a consideração
que mereciam os representantes do povo rio-grandense, vinha até o le
gislativo para fazer um retrospecto de seu governo. Enfatizou que,
após realizada a revolução de 1930, vários problemas haviam ameaçado
o novo governo.

Nessa luta quotidiana, coube ao Rio Grande, como res-


ponsável principalpela revolução de outubro, a função defiel
do equilíbrio político do governo revohicionário e garantia
máxima da sua segurança e da ordempública. ^
O papel do Rio Grande foi destacado pelo governador como
essencial para a manutenção da ordem, bem como a posição política
assumida por ele fora a de garantir a reconstitucionalização dentro da
lei e não fora dela, pela revolução, enfatizando que os governos discri-
^Anais da Assembléia Constituinte do Estado do Rio Grande do Sul. Sessão de
15 de abrü de 1935.Porto Alegre, Imprensa Oficial, 1935.v 2. p. 73.
donários deveriam ser encarados como ''fase transitória e de reggusta-
mento e preparo das condições para a restauração da ordem jurídica."^
Como governante, Flores da Cunha apresentou-se como despido
de ressentimentos contra os adversários políticos, procurando realizar
o congraçamento de todos no serviço da causa rio-grandense. Neste
sentido, considerava Flores ser o programa do PRL, majoritário na As
sembléia, aquele que mais condições apresentava para promover a pros
peridade gaúcha.
Na Assembléia Constituinte rio-grandense, o PRL se fez repre
sentar por 21 deputados, enquanto que a FUG por 11.
Na opinião de Carone, Flores da Cunha representava no Estado
uma forma de "domínio ambíguo", oscilando "entre tenentismo e oli
garquia tradicional."^
Na verdade, oligarcas eram tanto os elementos agrupados na FUG
quanto os do PRL. A distinção possível de ser feita entre eles, como se
evidenciou por ocasião do levante de 1932, configura um apego maior à
forma tradicional de mando oligárquico do grupo denominado aqui de
"ala regional", que constituiu a FUG, enquanto que os seguidores de
Flores, agrupados no PRL, constituíram o setor "nacionalista", que
apresentava maior identificação com a orientação do Governo Provi
sório. Tal aceitação não implica, todavia, em negação da perspectiva
de constitucionalização por parte deste setor da oligarquia, mas sim na
realização desta dentro da manutenção da ordem e do regime, impli
cando no reconhecimento de um poder executivo central regulador. No
plano econômico, a orientação básica do PRL de auxílio aos diferentes
setores produtivos mediante a intervenção do Estado, concomitante
com a formação de sindicatos, institutos e cooperativas, enquadrava-se
com a perspectiva do Governo Provisório de proporcionar uma nova
mediação entre as oligarquias e o poder do Estado, através das corpo
rações de classe. Na orientação do poder central, tais desempenhos im
plicavam a submissão política das oligarquias regionais. Esta conseqüên
cia final do processo, porém, estava ausente na aceitação política da
intervenção do poder central dentro da relidade brasileira, seguida
pela "ala nacional" desde 1932 e só ao longo do período constitucional
se tomaria mais clara. Ou seja, o PRL, ao propor uma aceitação do
poder central e do seu programa de governo, não abria mão, implici
tamente, de suas prerrogativas de mando ao nível regional.
Por outro lado, a perspectiva modernizante e de renovação da es
trutura produtora local, encampada pelo PRL, tinha também o apoio

^Ibidem.
^Carone, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo,
DIFEL, 1974. p. 320.

143
dos setores de classe dominante que constituíam a FUG. Neste caso,
a perspectiva progressista não obedece a um critério de divisão polí
tica no Estado.
Os níveis de aspiração econômica eram, por sua vez, atendidos
pelo centro, e tanto agropecuaristas da FUG como do PRL precisavam
do apoio do Estado para sair da crise. Todavia, o apoio do governo
central aos problemas econômicos do sul tinha um limite, que eram
os interesses ditos nacionais: diversificação econômica do país, esta-
tização, integração do mercado brasileiro, acumulação de capital,
tutela política sobre as oligarquias. O desenvolvimento do capitalismo
no Brasil pressupunha a subordinação das regiões periféricas ao centro
do país, onde se realizava primordialmente a acumulação. Este era um
limite ao pleno desenvolvimento do Rio Grande como "celeiro do
país". Embora o problema fosse sentido desde muito antes de 1930,
ao longo da República Velha, e pudesse adquirir maior relevância na
República Nova, ao nível de consciência da classe dominante o proble
ma de subordinação política aparecia em primeiro plano.
É, pois, dentro desta gama variada de cortes, separações e con
junções, que se travavam no seio da classe dominante no Estado, que
teve início o primeiro governo constitucional rio-grandense de pós-30.
Embora as mensagens governamentais de 1936 e 1937 apontas
sem uma recuperação para a pecuária nos anos de 1935 e 1936 como
um "momento de ressurgimento econômico", este setor da economia
continuava a apresentar problemas. Mesmo nas palavras do deputado
classista Homero Fleck, na Assembléia Constituinte, situações de crise
eram configuradas. O deputado lembrava ser a pecuária o setor da eco
nomia gaúcha que potencialmente mais demonstrava valor: 1.800.000
contos em terras, 1.200.000 contos em vacuns, 120.000 contos em
ovelhas, 300.000 contos em porcos, 90.000 contos em eqüinos, 40.000
contos em muares, 1.500 contos em caprinos, perfazendo a cifra total
de 3.551.150 contos. Todavia, acrescentava o deputado, embora
seu valor fosse grande, seu rendimento era extraordinariamente baixo,
estando praticamente inexplorado. Na opinião de Homero Fleck, o
lucro da pecuária orçavaem torno de 1% sobre o capital empatado, e os
males que a afligiam se relacionavamcom a grande incidência de impos
tos (territorial, taxa de cooperação, imposto de vendas mercantis) e o
custo da produção muito alto (aquisição de reprodutores, carrapati-
ddas, vermífugos, sal, benfeitorias variadas e remuneração da força de
trabalho). Enquanto que a indústria do charque permanecia no Rio
Grande tal como era "na época da Revolução Farroupilha", o criador
progredia, mas sem que pudesse obter proveito disso com a venda de
seu produto. Na sua opinião, de nada estava valendo refinar o rebanho

144
se o Rio Grande do Sul continuava a produzir exclusivamente o char-
que. Para enfatizar a necessidade da frigoriflcação, o deputado apresen
tou dados de comparação do rendimento de um boi de 500 kg, trans
formado em charque ou industrializado pelo frio:
Paracharque — 110 kg de charque a 2$300 253$000
30 kg de couro a 1$800 54$000
28 kg de gordura a 1$400 39$200
Subprodutos 7$000
Total 3535200

Menos custeio 75 $000


2785200

Frigorificado — 230 kg de carne a 105700 3915000


30 kg de couro a 35000 905000
30 kg de gordura a 25000 605000
Subprodutos 165000
Total 5575000
Menos custeio 1165000
4415000

Temos assim que um boi transfomado em charquevale


278$200, ao passo que daria 441^00 ao seu criador, se ti
vesse sido industrializado pelo fiio. Diferença a favor da
carne - 162$800. Pelo estudo destas cifras, em 1.000.000 de
bovinos abatidos, tem o Rio Grande um pr^izo anual de
162.800 contos.^

Além das eloqüentes conclusões tiradas pelo deputado, é possível


observar-se o maior aproveitamento da carne em si no frigorífico (230
kg num boi de 500kgpara 110kgna charqueada), além do maior valor
obtido pela mesma quantidade de couro trabaÚiado pelas duas uni
dades. Da mesma forma, o frigorífico foi capaz deextrair mais gordura
e obter um duplo valor pelos subprodutos. No que diz respeito a cus
teio, que se pressupõe constar de salários, manutenção de maquinaria,
combustível, reposição de implementos, etc., evidencia-se o maior custo
na empresa capitalista tipicamente configurada, que compensa, porém,
em maior lucratividade.
Corroborando a persistência da crise, notícias de jornal apontam a
depreciação dos campos e gados. Em entrevista concedida ao "Correio

4Anais, op. cit., sessão de 31 dez. 1935. p. 457-8.

145
do Povo", o presidente da Sociedade Agrícola de Pelotas, Sílvio Eche-
nique, apontou o fraco interesse na exploração dos campos:
Anos atrás, havia sempre animada procura de campos,
tanto para comprar como para arrendamentos, realizando-se
com facilidades, negócios avultados, a preços satisfatórios.
Atualmente, mesmo com a deprimente redução de 40%, difi
cilmente se encontra quem queira aventurar-se a inverter ca
pitais e consagrar atividades na exploração dessa indústria ^
Acrescentava o ruralista que não havia melhorado o preço dos
gados apesar do aviltamento da moeda e do câmbio livre que gozavam
as companhias frigoríficas estrangeiras do Estado. Estas mantiveram
preços baixos para o gado, enquanto aumentavam assim a margem de
lucros que já gozavam com a isenção cambial para exportação. O gover
no central, que agia desta forma para beneficiar o comércio externo,
não fizera com que a liberação atingisse outros produtos da pecuária,
tais como os couros, as lãs e os sebos^.
Em tentativa de solucionar este problema, a FARSUL dirigiu-se
ao Conselho Federal do Comércio Exterior a fim de que a liberação
cambial fosse estendida a outros produtos da pecuária. Atendido este
pedido pelo governo central, conseguiu-se maior vazão para os artigos
sulinos,em especial os couros e graxas*^.
Da mesma forma, a FARSUL empenhou-se em salvaguardar os
interesses de outro artigo pecuário gaúcho. Tendo recebido a denúncia
de que o Sindicato dos Industriais Têxteis de São Paulo havia pedido
ao Conselho Federal de Comércio Exterior que permitisse a entrada das
lãs estrangeiras, alegando que a produção gaúcha era vendida de ime
diato, em dois meses, a FARSUL interferiu junto ao poder central. No
impasse criado, o governo de Getúlio Vargas atendeu os interesses dos
ovinocultores gaúchos, sendo negado o pedido dos industriais de São
Paulo por deliberação do Conselho®.
Nos dois casos citados, a FARSUL louvou a atitude patriótica do
presidente da República, atendendo os interesses econômicos do Rio
Grande. A política do governo central, de amparo à produção nacional
em termos de diversificação, no vácuo causado pela crise do café, vinha,
neste momento, ao encontro das necessidades básicas da economia
gaúcha.
Os problemas da criação, contudo, não se esgotavam aí. Processa-
5A crise da pecuária. Correio doPovo, Porto Alegre, 26 jul. 1935. p. 9.
6A liberação cambial e a produção rio-grandense. Correio doPovo, Porto Alegre,
3 maio 1935. p. 10.
^Anais do X Congresso Rural da FARSUL. Porto Alegre, Of. Gráf. Publicidade
Americana, 1937. p. 46.
^Ibidem.

146
va-se o abandono dos campos, fato apontado por Juvenal Pinto, para o
ano de 1935, e que se referia não somente ao proletariado rural como
também aos donos de terra, que ou passavam a viver nas cidades ou
transitavam para uma atividade agrícola mais compensadora^.
No que toca à matança de charque no Estado, este, após um pe
ríodo de crescimento entre os anos de 1929 e 1933, decaiu no período
em apreço, enquanto se elevou o abate para frio e conserva:^ ®
Anos Charque Frio e conserva
1934 81,86% 18,14%
1935 82,78% 17,22%
1936 72,56% 27,44%
1937 71,24% 28,76%

Em termos de exportação do produto, este se comportou da se


guinte forma, no mesmo período^ ^:

Anos Qualidade
(em toneladas)
Valor
(emcruzeiros)
Preço do quüo
(emcruzeiros)
1934 54.594 69.519.573 1,30
1935 69.775 99.758.243 1,40
1936 54.294 83337.924 1,50
1937 61.448 136.931.593 2,20

Os dados, no caso, parecem conflitar (diminuição do abate, nos


anos de 1935 a 1937, e aumento da tonelagem, no ano de 1937). To
davia, o aumento da tonelagem exportada pode se enquadrar dentro de
uma linha de diminuição de matança, desde que diminua também o
consumo interno no estado, dados que, contudo, faltam. É apreciável,
porém, verificar a ascensão do preço nosmercados centrais do país.
O Sindicato continuava a configurar-se como o primeiro expor
tador do Estado. Sua atuação era louvada por alguns como instituição
digna de aplauso.
Relatava o Boletim do Ministério do Trabalho, Indústriae Comér
cio, no ano de 1935, que havia sucesso na matança para charque no es
tado (700.000 reses). Valendo-se das matanças referentes ao ano de
1932 até 1935, o artigo concluía que não tinha sentido dizer que a

^into, Juvenal José. Política rural Porto Alegre, Globo, 1935. p. 17-23.
lOMaterial do Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes.
1ISilva, Austriclinio G. dá ât Guerra, Aldrovando. Exportação do charque no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, Secretaria da Administração, Departamento Esta
dual de Estatística, 1959.

147
indústria do charque declinava no Rio Grande do Sul. Isto, em parte,
devia-se ao fato do Rio Grande possuir a associação de classe melhor
organizada no país: o Sindicato dos Charqueadores. Acrescentava que
os seus presidentes, embora pudessem ser políticos, não levavam cor
política na sua direção. Unidos, levando uma orientação em conjunto,
permitia-se a colocação de toda a safra do ano dentro deste período.
Concluía o artigo:
Finalmente, de um lado, a grande safra de gado, no Rio
Grande do Sul, além da sua expansão regional, propriamente,
tem uma expressão maior, regionalmente: - éo poder de com
pra que, nas carnes, confere ao Rio Grande do Sul, para poder
importar dos outros Estados, como, por exemplo, o açúcar
de Pernambuco e as manufaturas da indústria fabril de São
Paulo. ^ 2
Parece estar aqui configurada a perspectiva do centro da divisão
nacional do trabalho, ou, quando muito, o da especialização das regiões
dentro de um esquema de diversificação produtiva, impHcando a acei
tação, por parte do Rio Grande, do papel de produtor de gêneros ali
mentícios e comprador de manufaturados. Embora exportando mais
seu artigo principal, a contrapartida era o atrelamento do estado sulino
ao desenvolvimento capitalista do centro do país.
A melhoria do preço do charque contribuiu para incrementar o
movimento cooperativista já instalado no período discricionário e me
diante o qual os criadores associavam-se para charquearem seus gados,
eliminando com isso a dependência do saladeiro e do frigorífico. No
final do ano de 1936, mais duas entidades desta natureza surgiram.
Em 8 de novembro de 1936, era criada a Industrial Pedritense
de Carnes Ltda., e, em 26 de novembro do mesmo ano, a Cooperativa
Bageense de Carnes. Esta última iniciou suas atividades em fevereiro
de 1937, abatendo na charqueada São Domingos, de propriedade do
Banco da Província do Rio Grande do Sul.
Entretanto, o aumento das exportações gaúchas de charque não
significava o controle rio-grandense do mercado nacional. São Paulo, no
caso, além da produção industrial, passara na frente do Rio Grande
na exportação de carnes congeladas e resfriadas de bovinos, além de
competir na produção de charque.
Pelos dados a seguir, é possível constatar a superioridade paulista
com relação ao Rio Grande do Sul:^ ^

I^Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio de Janeiro,


Departamento de Estatística e Publicidade, nov. 1935, ano 2(15):193.
13pimentel, Fortunato. O Rio Grande do Sule suas riquezas Porto Alegre, Li
vrariaContinente, [s.d.] 67.

148
Ano de 1936 Rio Grande do Sul São Paulo
Carne congelada de bovino 13.099.061 kg 17.073.711 kg
Game resfriada de bovino 9.971.586 kg 84.855.446 kg

Embora exportando mais charque e obtendo por ele um maior


valor, os saladeiristas gaúchos se veriam afetados novamente pelo "caso
do sal".
A desvalorização da moeda brasileira, encarecendo o sal estran
geiro, e o emprego do sal nacional pelas charqueadas dos estados cen
trais haviam obrigado os charqueadores rio-grandenses a utilizá-lo.
Os primeiros exemplos do seu emprego haviam sido dados pelos
frigoríficos estrangeiros Swift e Armour, além da Cooperativa Santa-
nense. Da mesma forma, charqueadores de nome, como Pedro Osório
e Evaristo Lopes dos Santos, utilizaram o sal de Mossoró com bom
proveito. O uso do produto nacional intensificou-se a partir de 1931,^ ^
mas, só no Estado Novo é que seu consumo estava realmente difun
dido.
As casas de comércio importadoras do Rio Grande faziam intensa
propaganda, indicando que o produto de Mossoró era preferido pelos
"grandes frigoríficos e charqueadores de São Paulo", além de ser ven
dido com sucesso no Uruguai. No seu uso pelo Prata, concorrente do
Rio Grande do Sul, pode ser visto o anacronismo da situação dos
gaúchos, arraigados a um costume secular.
A reclamação dos saladeiristas rio-grandenses, contudo, incidia
sobre a falta de sal no Rio Grande no fim da safra, no que acusavam os
importadores, e no seu alto preço. Denunciavam, ainda, que se genera
lizava no Rio de Janeiro uma campanha contra os charqueadores
gaúchos, porque eram contra o sal nacional, reclamação esta que partia
também de outros estados como Minas Gerais e São Paulo.
Apontando que a quantidade necessária de sal no estado, por ano,
era de 125.000 toneladas, o Sindicato dos Charqueadores solicitou ao
governo federal providências no sentido de que não faltasse o artigona
safra de novembro de 1935 a maio de 1936, que o mesmo tivesse as
mesmas propriedades do sal de Cádiz e que seu preço não ultrapassasse
240$000 nos portos gaúchos. Na hipótese de não ser possível, solici
tavam os charqueadores que fosse concedida a redução dos direitos de
importação sobre o produto de Cádiz.
Em resposta, o governo central, tomando em consideração o pe
dido dos rio-grandenses, prometeu providenciar para a entrada do sal
estrangeiro^ ^.
A questão do sal. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 ago. 1935. p. 9.
15A questãodo sal. Correio doPovo, Porto Alegre, 24 ago. 1935. p. 9.

149
A questão, contudo, permaneceu sem solução, e, em julho de
1936, por ocasião da II Conferência Nacional de Pecuária no Rio de
Janeiro, a FARSUL, em ação conjunta com o Sindicato dos Charquea-
dores, apôs entendimentos com os salineiros, acertou com a presidência
da República de que fosse criada a "Junta Controladora do Sal", órgão
formado por representantes das entidades de classe estaduais, que teria
o fim de controlar a distribuição deste artigo entre os criadores e char-
queadores, de acordo com o preço estabelecido para os diversos es
tados.^ ^
Todavia, como só o Rio Grande do Sul possuía as tais entidades
de classe, precisando que as mesmas fossem criadas nos demais estados
pecuaristas, as medidas sugeridas pelo estado sulino não foram imple
mentadas.
O governo central, agindo desta forma, só contemporizava, pois
tinha outros fins em vista. Como já foi colocado anteriormente, sua
preocupação era, antes de mais nada, com a diversificação econômica
do país, com a proteção à produção nacional e a integração do mercado
interno, numa dinâmica substitutiva de importação que permitisse re
tirar o Brasil da crise, dando continuidade ao processo de acumulação
de capital.
Se o caso do sal era um problema que afligia os charqueadores, os
criadores consideravam-se onerados em demasia com os impostos.
Tanto o Sindicato Agro-Pecuário de Bagé como a Sociedade Agrí
cola de Pelotas solicitaram ao governo a eliminação do imposto de
vendas mercantis. Argumentavam que não se tratava de um pedido de
isenção, uma vez que os produtos naturais (couro, gado, lã) iriam pagar
necessariamente este imposto após manufaturados ou revendidos.^
Sua pretensão foi atendida pela Assembléia Legislativa do Estado, que,
em 3 de agosto de 1936, aprovou a isenção do imposto de consignação
e vendas mercantis para os produtos da pecuária.
Outra taxação que originava reclamações era a taxa de coopera
ção, criada pelo governo com o intuito de arrecadar o capital necessá
rio para renovação da produção pecuária.
Na crítica do ruralista Dario Brossard, a demora na instalação
do Instituto de Carnes não se justificava:
Já lá se vão quase dois anos, sem que nada mais se tenha
feito. Apenas a taxa de cooperação, que continua de pé, indi
ferente à sorte das organizações que lhe deram razão de ser,

16Anais do X Congresso Rural da FARSUL. Porto Alegre, Of. Gráf. Publicidade


Americana, 1937. p. 58.
l^Brossard, Dario. A pecuária e o imposto de vendasmercantis. Coneio do Povo,
Porto Alegre, 17 abr. 1936. p. 10.

150
Ora, isso não está certo. Ou instale-se o Instituto ou desapa
reça a *'taxa'\ ^®
Na verdade, a problemática fundamental, que se arrastava desde
a República Velha, atravessara a fase do Governo Provisório e se arras
tava ainda no período constitucional, continuava a ser a da renovação
da pecuária.
Convocado em outubro de 1935 um Congresso Rural Extraordi
nário pela FARSUL para a reforma dos seus estatutos, o tema dos fri
goríficos tomou-se o objeto central das discussões.
A questão revestia-se de nova atualidade, na medida em que o
Conselho Federal de Comércio Exterior fez saber que a Inglaterra tinha
intenção de estabelecer um plano a longo prazo de importação das
carnes em conserva brasileiras.^^ Por outro lado, descortinavam-se
amplas perspectivas para o abastecimento do mercado italiano, cujo go
verno interessava-se na compra de 22.000 toneladas de carnes brasi
leiras.^® Dentro da política seguida por Vargas de relacionamento co
mercial com novas potências, como a Itália, a Alemanha e o Japão, o
intercâmbio se faria em bases privilegiadas e específicas. Na postura
de Carone,
A diminuição, em valor, das importações e exportações,
com existência de um pequeno saldo favorável às últimas,
leva o governo ao uso de meios comerciais ilícitos, ou fora
das normas para intensificar o intercâmbio com determinados
países.'^ ^
O governo federal tinha em mente não perder nenhuma chance
de penetrar em mercados, aplicando, para o caso da Alemanha e da
Itália, o esquema do marco e da lira "compensados", ou seja, troca de
mercadorias sem utilização de pagamento em ouro.
Em 1937, a política do governo central se complementaria com as
articulações para o fornecimento de carne brasileira, conservada e con
gelada, para o Japão^^. Uma missão econômica brasileira dirigiu-se a
este país com produtos pecuários nacionais, inclusive sulinos, que
determinaram visitas de representantes do governo japonês ao estado
para efetuarem compras. O Japão já estavacomprando algodãopaulista
e, agpra, se interessava por charque e produtos bovinos congelados.
Face a estas condições, criadas dentro da orientação da política
l^Brossard, Dario. A taxa de cooperação. Correto do Povo, Porto Alegre, 27 maio
1936. p. 10.
I^Correio do Povo, 25jan. 1935, p. 10; 22fev. 1935, p. 10.
^Ocorreio do Povo, 2 ago. 1935, p. 11;3 ago. 1935, p. 7;6 ago. 1935,p. 7.
21Carone, op. cit., p. 65.
22 o comércio de carnes com o Japão. Correio do Povo, Porto Alegre, 24 abr.
1937. p.5.

151
econômica nacional, ganhava força a idéia de frigorifícação de carnes,
que ressurgia no pós-30 com o objetivo imediato de abastecimento
apenas do mercado nacional. Por ocasião do Congresso Rural Extraor
dinário, o Gel. Marcial Terra passou a presidência da Cooperativa ao
Dr. Protásio Vargas, deputado classista e acionista da entidade. Deci
diram os ruralistas, em conjunto, representantes da FARSUL e da
Cooperativa, ir em comitiva á presença do governador do Estado, a
fim de tratarem de assuntos relativos aos destinos da Cooperativa e à
instalação do Instituto de Carnes.
Na ocasião. Flores da Cunha expôs a razão da demora para a
concretização do Instituto. Pretendia, antes, dotar o estado de uma
infra-estrutura que o capacitasse a receber o funcionamento da nova en
tidade. Para tal, realizavam-se as construções do entreposto-frigoríflco
do cais do porto e do matadouro-modelo, a compra de vagões frigo
ríficos e o prolongamento da estrada de ferro do Riacho até o arra
balde de Espírito Santo, de modo que o novo matadouro pudesse
ser servido por estradas de ferro e de rodagem,estando esta última obra
a serviço da Brigada Militar.^^
No que diz respeito ao entreposto-frigorífico do cais do porto, o
mesmo já se achava concluído e objetivava ^arelhar Porto Alegre para
as atividades de importação e exportação de produtos perecíveis, em es
pecial os oriundos dazonacolonial. O entreposto frigorífico possuía 33
câmaras, com uma área total de 3.249 m^. Concluída a sua construção
pela firma Gruen & Bilfinger, foi o entreposto entregue à direção do
portodacapital, que iniciou a sua exploração comercial.^"*
Quanto ao matadouro-modelo, através da Lei n9 5.980, de 26 de
junho de 1935, a Secretaria da Fazenda ficara autorizada a emitir
12.467 apólices no valor de 500$000 cada, aojuro de 8% ao ano, para
atender às despesas paraa construção do matadouro dePorto Alegre. O
projeto original previa câmaras de refrigeração a +4°C, mas, na intenção
de dotá-lo de melhores condições deutilização, prqjetou-se transformar
uma das câmaras previstas em câmara decongelação, para o quefoi assi
nado um termo de aditamento ao primitivo contrato com a firma
Dahne, Conceição & Cia.
A modificação introduzida importou numa mqoração
de 832:253$150, conforme foi autorizado em lei rfí 620, de
28 de agosto de 1935, que, somando à importância do con
trato anterior de 5A76:801$553, elevou o custo daquele
estabelecimento a 6.309:054$703^^
23 A industrialização das carnes rio-grandenses. Correio do Povo, Porto Alegre,
8out. 1935. p. 12.
24Mensagem dogovernador, 1936. p. 225.
25p^entel, Fortunato. Oiarqueadas e frigoríficos [s.l] Livraria Continente,
[s.d.] p. 243.

152
Face a estas alterações técnicas, o matadouro-modelo de Porto
Alegre ficou com a capacidade de fornecer 52.000 kg de carne res-
friada em dois dias e 30.300 kg de carne congelada em quatro dias. Sua
capacidade de matança por hora era de 90 bovinos, 75 suínos e 75 ovi
nos. Ficava habilitado a atender às necessidades de Porto Alegre e de
exportação.^ ^
Com relação à exploração do matadouro, seria aberta uma con
corrência para o que o governo esperava que a Cooperativa, a FARSUL
ou o Instituto apresentassem propostas. Além, disso, o governo enco
mendara cinco navios frigoríficos.
O governo estadual fixava a sua postura, desta forma, na prepa
ração das condições infra-estruturais que, a seu ver, deveriam preceder
o funcionamento do Instituto de Carnes. No tocante á construção de
frigoríficos pelo Estado, o governo afirmou não acreditar na sua cons
trução contando apenas com a iniciativa privada, relembrando o desas
tre do "Frigorífico Rio Grande" de 1917, comprado pela Anglo, que
o adquirira para depois fechá-lo.^
Concluindo suas idéias. Flores da Cunha acrescentou que dese
java, para a consecução destes fins, a colaboração de todos os ruralistas,
enfatizando:

Com o auxílio dos senhores, sem os senhores ou mesmo


contra os senhores, o Governo do Estado resolverá o problema,
organizando o Instituto de Carnes, pois desqa, se até lã estiver
àfrente dogoverno, deixá-lo, pelomenos, encaminhado.^^
Frente á declaração taxativa do governo de processar a renovação
da pecuária sob os auspícios do Estado, ambos os líderes ruralistas,
Protásio Vargas e Marcial Terra, concordaram com a postura assumida,
reafirmando a sua aceitação e boa vontade. Retoma-se aqui, como
lembrança, que Marcial Terra pertencia à Frente Única e Protásio Var
gas aos quadros do PRL. Em se tratando da realização de interesses eco
nômicos comuns à classe, a oligarquia rural esquecia mais uma vez as
divergênciaspolíticas.
Complementando estas medidas de amparo e fomento da ativi
dade pecuária no estado, o governo gaúcho criara, emjunhode 1935, a
Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio, que, já em 1936, se
^^Mensagem do governador, 1937.p. 38^9.
27o projeto do "Frigorífico Rio Grande", levado a efeito pela União dos Cria
dores, foi proposto em 1914, sendo fundado em 1917 e entrando em funciona
mento em pequena escalaem junho de 1920. Em janeiro/fevereiro de 1921, foi
adquirido pela Anglo, assumindo o nome de "The Rio Grande Meat Company"
e de "Frigorífico Anglo" em 1924.
28congresso Rural Extraordinário. Correio do Povo, Porto Alegre, 8 out. 1935.
p.12.

153
lançava à execuçfo de um programa que implicava a contrataçâío de
técnicos (agrônomos, veterinários, engenheiros de minas, químicos,
economistas, etc.), além da realização de exposições-feira, participação
em certames nacionais e publicação de obras orientadoras da produção
agropecuária.
Foi assegurada assistência técnica através das inspetorias e de
agrônomos itinerantes, assim como foram criados laboratórios, que, a
serviço da Secretaria, tinham por fim colaborar com o aperfeiçoamento
dos métodos de produção e defesa sanitária animal.
Na V Exposição Nacional da Pecuária realizada em 17 de julho
de 1936, no Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul conquistou 37 prê
mios, dos quais dez foram conquistados por reprodutores descendentes
de animais importados pelo governo do Estado e criados no posto
zootécnico das colônias.^ ^ O Rio Grande do Sul levou a dianteira sobre
os demais estados em termos de classificação dos animais de raças de
corte e de leite.
Nesta questão do selecionamento de raças, o governo do Estado
adquiria reprodutores importados e os colocava nos postos de monta
permanentes mantidos nos postos zootécnicos do estado, que se locali
zavam na colônia (Montenegro), na fronteira (Uruguaiana) e na serra
(Tupanciretã). O governo cedia, a título de empréstimo, os reprodu
tores de seus plantéis, atendendo às solicitações dos criadores de dife
rentes pontos do estado.
A mensagem do governador de 1937 apontava o número de 1.246
animais de raças registrados. Não há referência se este dado (referente
a animais de pedigree, animais puros por cmzamentos e animais mes
tiços, entre bovinos e ovinos) reportava-se aos anos de 1935, 1936
ou 1937.
Considerando, contudo, que o Rio Grande do Sul contava, em
1935, com 10.129.000 bovinos e 8.273.000 ovinos, perfazendo, no
conjunto, 18.402.000 cabeças, esta proporção de gado refinado tor
na-se, na realidade, insignificante em termos percentuais, mesmo se a
ela acrescentar-se o número de bovinos (349) e de ovinos (35) de raça
que os plantéis do estado possuíam (dados da mensagem de 1937).
Secundando a ação do Estado, a FARSUL empenhou-se numa
propaganda intensa para que os criadores gaúchos adquirissem repro
dutores bovinos paramelhorarem seus rebanhos. Paratanto, empenhou-
se na consecução de um crédito de até 5.000:000$000, aberto no Banco
do Brasil e no Banco do Rio Grande do Sul a fim de atender caba-
nheiros e criadores.^®

29Mensagem dogovernador, 1937. p. 71-2.


30Anais do XCongresso Rural, op. cit, p. 75.

154
Da mesma forma, o governo do Estado, em concordância com o
governo central, oportunizou um empréstimo do Banco do Brasil com
garantia do Banco do Estado de 44.529:2005000 para auxílio da pe
cuária.
No ano de 1935, foram aplicadas, em empréstimo especial à pe
cuária, as somas de 335:0005000 no primeiro de 148.0005000 no
segundo semestre.
Além deste serviço, o governo empenhava-se na questão das pas
tagens artificiais. O serviço de agrostologia desenvolvia-se especial
mente em Tupanciretã, onde, em 16.130 m^, experimentavam-se es
pécies gramíneas e leguminosas forrageiras.^ ^
Em julho de 1936, realizou-se ainda no Rio de Janeiro a II Con
ferência Nacional da Pecuária, tendo sido o Rio Grande do Sul repre
sentado pelo então presidente da FARSUL, Anibal Di Primio Beck.
No seu discurso, Di Primio Beck destacou o grande apoio de Ge-
túlio Vargas, criador também, à classe mral e realizou a defesa das
atividades agrárias, base da indústria. No caso, o mralista, que também
era industrial (Cia. Fiação e Tecidos P.A.), fazia a defesa das "indústrias
naturais", complemento indispensável à continuidade da 'Vocação agrí
cola" do estado gaúcho.
Acrescentava o ruralista:

A agricultura é a indústria mater, a indústria restaura-


dora da existência. Não há trabalho humano que supere o do
ruralista, compreenda-se como tal todo aquele que retira da
terra o produto do seu esforço. Com o melhoramento da
agricultura, cresce a riqueza de um pais, as indústrias pros
peram e o comércio se expande cada vez mais. Compete, pois,
ao Estado, facilitar, promover e tomar mais racional e produ
tiva a agricultura. ^^
Fixando as relações entre os produtores e o Estado, o ruralista
afirmou que aqueles deveriam tomar parte ativa na discussão dos ne
gócios públicos, pedindo e exigindo dos governos aquilo a que tinham
direito.

Se os governos, para o bem geral da coletividade, têm a


faculdade de controlar as atividades econômicas, aos produ
tores não deve ser negqdo opinarem sobre os atos e os agentes
da administração política [...] A administração dos negócios
públicos não deve ser privilégio dos políticos ou letrados.
Quem melhor do que nós, se acha preparado para a dire
ção e gestão da economia pública? [...] Não quero, com
JlMensagem do governador, 1936. p. 259.
J^Anais da Assembléia Legislativa do Estado. Sessão de 20 de julho de 1936.
p. 469.

155
isto, dizer que deve fazer parte do nosso programa a disputa
dos altos cargos administrativos do pais, pois não é de se con
cluir, do que disse acima, que os produtores ocupem, incon-
tinenti e sem transição, o exercício das funções públicas ou
políticas, quero apenas ressaltar a necessidade dos produtores
também interferirem na vida política da coletividade com seus
conhecimentos práticos [...] Por mais de uma vez tenho dito
e afirmado ser essencial entre as atividades privadas e os
poderes públicos, o estabelecimento de um sistema de cola
boração recíproca que se poderá desenvolver sob uma multi
plicidade de formas e aspectos, na defesa da economia e do
bem-estar do país. ^^
Fica aqui expressa, nas palavras de Di Primio Beck, a identifi
cação entre as orientações da política de Vargas com as da "corrente
nacionalista" do contexto gaúcho, à qual aderia a FARSUL ou, pelo
menos, parte representativa dela, expressa pela palavra de seu presi
dente.
Despqjavam-se as oligarquias agrárias do seu conteúdo político
para conferir-lhes um novo e preciso significado econômico: os produ
tores da terra, responsáveis pelo desenvolvimento do país. Através de
sua dimensão econômica é que se realizaria a sua ligação com o Es
tado, que se configurava como o órgão técnico-administrativo que de
veria amparar as forças produtoras. A colaboração das classes produ
toras com o governo seria responsável pelo desenvolvimento do país.
Homero Fleck, em discurso de saudação a Anibal DiPrimio Beck
no seu retomo a Porto Alegre, complementaria esta posição, afirmando
que "a economia não deve ser dirigida através da política, masa melhor
e mais sólida política é aquela orientada através da economia."
A despolitização das oligarquias rurais, como meta do governo
central, inclusa na proposta, ainda não era plenamente conscientizada
no Rio Grande. A intervenção do Estado na economia, admitida como
elemento condutor e removedor de entraves, foi, porém, aceita. Outro
sentido, aliás, não tinha o apoio da FARSUL às medidas do governo do
Estado gaúcho em termos de renovação da pecuária sulina. Naverdade,
sem condições de vencer, por si própria, os obstáculos que se ante
punham, a pecuária descapitalizada continuava,tal como o fazia na Re
pública Velha, a recorrer ao Estado para a solução de suasdificuldades.
Por outro lado, a idéia da criação do Instituto de Carnes, brotada
de setores da própria classe rural, é uma prova de que a perspectiva de
intervenção do governo na esfera econômicaera bem aceita por amplos
setores da classe rural.
33ibidem, p. 470-1.
34Homenageni prestada, ante-ontem, ao presidente da FARSUL. Correio do
Povo, Porto Alegre, 29 set. 1936. p. 9.

156
Nesta instância, a divisão política da classe dominante em dois
blocos (PRL e FUG) não ganhou a força necessária para dar-lhes uma
visão diferenciada da condução do processo econômico. A idéia da
constituição do Instituto, como foi vista, mereceu a aprovação e o
apoio das duas correntes políticas básicas do Rio Grande.
A solução dos problemas da pecuária, conduzida pelo governo
central na sua perspectiva de diversificação do processo econômico e
pelo governo gaúcho na intenção de salvaguardar as atividades agrope
cuárias dominantes do estado, dava-se no Rio Grande através da hege
monia da "ala nacional", capaz de, nesta instância, responder ás necessi
dades de pecuaristas de ambas as facções políticas do estado.
Esta posição, contudo, não era homogênea. Por exemplo, logo ao
serem iniciados os trabalhos da Assembléia Constituinte gaúcha, em
1935, os dois agrupamentos políticos defrontaram-se na discussão das
relações entre o Estado e o processo econômico.
O deputado Edgar Luís Schneider, da Frente Ünica, argumentou
que a forma adequada do governo proteger a economia era dotá-lo de
liberdade econômica, não bastando a liberdade política. Acusando que,
no estado, o "uso e abuso das intervenções governamentais nos setores
da produção e da circulação" haviam atingido um grau intenso, o de
putado oposicionista lembrava a petição encaminhada à Assembléia
pelo IV Congresso das Associações Comerciais, onde, além da supressão
dos impostos sobre vendas, exportação, territorial e transmissão inter-
-vivos, as classes econômicas do Estado pediam a inclusão, no texto da
constituição que ora se elaborava, da cláusula da liberdade de indús
tria, de comércio e de concorrência.^^
O deputado afirmava que, apesar de contar com defensores no
Rio Grande do Sul, o estatismo na economia ia em "franca derrota"
no mundo. Neste ponto, o deputado oposicionista não estava fazendo
a devida correlação com a crescente interferência do Estado no plano
da economia, não somente ao nível nacional, mas também mundial,
fenômeno difundido após a crise de 1929.
Na sua defesa do liberalismo econômico, o deputado da FUG não
negava totalmente ao Estado qualquer interferência na vida econômica,
reservando-a para o caso das obras púbUcas, ensino especializado e pro
fissional, transportes, estações experimentais, laboratórios técnicos,
etc., além de ser o garantidor da ordem e paz social. Fora desta função
policial, só se admitia a ingerência do Estado nos casos em que o bem
da coletividade demandasse a sua presença.

35Anais da Assembléia Constituinte. Sessão de 7 dejunho de 1935.


36ibidem. Sessão de 11 dejunho de 1935.p. 55.

157
A veemência da defesa do liberalismo econômico deve ser devida
mente enquadrada dentro da extração social do deputado. Edgar Luís
Schneider era originário do Partido Libertador (PL) e representava os
interesses do Sindicato dos Comerciantes Atacadistas. O conteúdo de
classe, no caso, encontrava ocasião propícia de manifestar-se no seu
posicionamento nos quadros da FUG, minoria política dentro do
Estado.
Portanto, numa identificação com os interesses do grupo econô
mico ao qual era ligado, Schneider apontava os efeitos negativos da in
terferência governamental na economia através do exemplo das tarifas
protecionistas, que ocasionaram o encarecimento dos produtos brasi
leiros, com prejuízo do consumidor, da balança comercial e do fisco.
Sua postura, contudo, não deve ser abrangente de todo o pensamento
da FUG.
O Estado deveria intervir só para o benefício da coletividade e
não para criar privilégios. Acrescentava o deputado da FUG, criti
cando o governo:
A pretexto de amparar e proteger os principais artigos de
exportação, entrou o governo do Estado a patrocinar, aberta
mente, a formação de grandes institutos. Surgiram e se multi
plicaram, dessarte, os chamados sindicatos, em cujo beneficio
foi instituída a isenção de taxas, que deviam recair sobre os
não-sindicalizados, Todos conhecem, naturalmente, as orga
nizações criadas e mantidas, assim, à sombra dos favores ofi
ciais, Abraçados pelos tentáculos dessas entidades universal
mente condenadas estão os produtos básicos da economia
rio-grandense: a banha, o charque, o vinho, a cebola e ou
tros, [. ..] Onde, porém, os objetivos que induziram o gover
no do Estado a intervir, desse modo, nos domínios da econo
mia rio-grandense? Tanto que se pode deduzir de conhecidas
manifestações oficiais, cifravam-se os intuitos do governo:
a: I —concentração da massa dos interessados; II - standarti-
zação do produto; III - estabilização dos preços; e IV —regu
larização das exportações, ^
Posicionando-se claramente contra as entidadessindicais que usu
fruíam de privilégios, Schneider classificava-as de verdadeiros "mono
pólios", constituídos de intermediários que lucravam em prejuízo dos
consumidores e dos produtores. Dando força a esta idéia, a Frente
Única argumentava com a derrota sofrida pelo PRL justamente nazona
em que havia protegido os produtores.^®
Fazendo uma ressalva específica ao Sindicato do Arroz, consi-
^^Anais daAssembléia, op.cit., p. 65.
38nos debates subseqüentes, é possível identificar esta zona como sendo a co
lonial.

158
derando o único que não tinha finalidades mercantilistas e que pro
tegia os produtores, Schneider acusava, entre outros, o Sindicato do
Charque, que gozava de isenções, tal como a da taxa bromatológica.
Em revide às acusações da FUG, o PRL argumentava que, num
período de crise, o Estado não podia cruzar os braços, mas sim intervir
no sentido de "amparar e desenvolver as forças econômicas".
Na opinião do deputado Romeiro da Silva, liberal, a crise das
exportações rio-grandenses se dava pela concorrência de São Paulo
na conquista do mercado interno, que havia diversificado sua capaci
dade produtiva, ao mesmo tempo que gozava de bancas tarifas e proxi
midade geográfica de mercados de consumo. A criação de sindicatos,
controlados pelo governo do Estado, tinha o objetivo ^enas de orga
nizar a produção e conquistar os mercados de consumo.^ ^
Corroborando com a posição do PRL, o deputado Moysés Velli-
nho acentuou que a crise da indústria e do comércio vinha de longa data
e encontrava raízes profundas no liberalismo econômico. A interven
ção do Estado na economia vinha, portanto, sanar este mal. Neste
sentido, apontava que os produtos amparados pelo governo estavam
obtendo preços compensadores.^®
Enquanto o setor econômico do comércio, através da FUG, ba-
tia-se pelo liberalismo econômico e acusava o sindicato, amparado pelo
governo, de ser mero intermediário entre o produtor direto e o consu
midor, isolando-os uns dos outros e impondo o preço, o PRL defendia a
intervenção do Estado no terreno econômico como a única forma capaz
de fazer o Rio Grande vencer a crise econômica em que vinha se deba
tendo. Neste sentido, enquadrava-se com a política oficial do governo
central.
Ao mesmo tempo em que era aceita, no seio dos pecuaristas, a
idéia da frigorificação por intermédio do Instituto de Carnes, tal como
se aceitava, aos poucos, a interferência do Estado na economia, a fração
de classe dos charqueadores atingiria, no final da República Nova, uma
nova fase na sua atitude quanto ao problema pecuário.
O preço do gado se elevava, tendo em vista o contrato de forne
cimento de carnes frigorificadas para a Itália e o conseqüente aumento
do abate nos frigoríficos estrangeiros, que começaram a pagar bom
preço aos criadores. Um boi de seis arrobas, na safra de 1935, custara
ao charqueador 175$000.
O preço do boi, acrescido do custo da produção do charque (mão-
-de-obra, transporte dentro do estado) e das despesas de fora do Rio
Grande (fretes marítimos, comissão do agente embarcador, despesas
39Anais, op. cit., p. 72.
40Anais, op. cit, sessão de 15 dejunho de 1935.p. 104.

159
portuárias, danos, etc.), faziam com que, em 1935, um boi transfor
mado em charque importasse em 281 $000.
Fazendo os mesmos cálculos para o ano de 1936, o boi ficava,
com todos os gastos correspondentes, em 402$000. Em outras pala
vras, uma diferença para mais de 121$000 sobre o mesmo boi para o
ano de 1935.
Mesmo considerando a melhoria do preço do charque de um ano
para outro, assim como a do couro, o charqueador ainda perdia, con
forme especificava o vice-presidente do Sindicato, João Fiori:
Aumento do custo do charque 121$000
Melhoriado preço 5d$000
Venda do couro 27$000
81$000
Abatendo-se esta importância dos 121$000, há a dife
rençade 40$contra o charqueador.*^
A grande demanda de gado no Rio Grande estava sendo efetivada
pelos frigoríficos e não pelas charqueadas. Aqueles haviam, de 1935
para 1936, duplicado a sua matança; de 200.000 cabeçaspara 400.000.
Diante de tal situação, João Fiori explicitava o pensamento do
que o Sindicato iria fazer:
Instalar frigoríficos e abandonar o charque. Dá mais re
sultado. E acredito que, dentro de cinco anos, as atuais char
queadas do Rio Grande estarão reduzidas a um terço. Não
podemos continuar a explorar uma indústria em situação tão
precária.*^
A perspectiva de renovação do processo produtivo, atingindo
agora a fração de classe dos charqueadores, foi surpreendida com a di
vulgação da Circular n9 1.550, de 26 de agosto de 1936, do governo
federal, onde se impunha a remodelação das charqueadas. Até o início
da safra de 1937, deveriam ser cumpridas determinadas formalidades
higiênicas nos estabelecimentos, tais como o exame daágua e a adoção
de rede de esgotos subterrânea. Até o inícioda safra de 1938,exigia-se
o cumprimento de outras providências, tais como o isolamento das de
pendências para elaboração de produtos industriais (graxaria, triparia,
salga, depósito de couro, seboe subprodutos), mediante o levantamento
de paredes de alvenaria, o mesmo ocorrendo com as dependências para
elaboração de produtos comestíveis (sala de matança, espostejamento,
salga e ressalga de carnes, local paratratamento de miúdos), impermea-

'11Vai declinar a produção de charque. Correio doPovo, Porto Aleere, 12 mar.


1936. p. 9.
'l^lbidem.

160
bilização a cimento dos pisos das dependências da sala de matança, área
de tendais internos, locai de salga e ressalga das carnes, graxaria, tri-
paria, locais de salga e depósito de couros, depósitos de sebo e subpro
dutos, bases das pilhas de inverno, providas estas de canaletas circun-
dantes e fossa retentora de salmoura. Os cunais deveriam ser convenien
temente calçados e as áreas de tendais de seca de charque impermeabi
lizadas e gramadas.
Pelo nível de exigência feita, vê-se a precariedade das instalações
da charqueada, sua falta de higiene e de condições apropriadas de tra
balho. O resultado final deste processo era a obtenção de um pro
duto de baixa qualidade, impuro e de "mau aspecto", como referiam
os jornais.
As charqueadas que, pela precariedade de instalações, não pu
dessem ser ajustadas ás novas condições, não teriam seu registro revali
dado, mas poderiam contiriuar funcionando por dois anos, a contarde
15 de agosto de 1936, independente de qualquer reforma, desde que
seus proprietários requeressem autorização para iniciar, dentro de seis
meses, a construção de novas charqueadas, conforme planta padrão
(item 4 da circular).
Em dezembro de 1936, contudo, novas instruções chegaram do
Ministério da Agricultura, determinando que as charqueadas que não
tivessem legalizado sua situação conforme o item 4 da Circular n9
1.550 não poderiam funcionar na próximasafra. A situação foi consi
derada alarmante, uma vezque foi orçada a remodelação pretendida em
200 contos por charqueada."*^ Considerando o funcionamento de
40 charqueadas no estado em 1936, a soma de capitais que se inver
teria seria de 3.200 contos.
Da parte do Governo Federal, a medida revelava uma preocu
pação de modernização no planodas imidades produtoras. Daparte das
charqueadas rio-grandenses, a impossibilidade de atender às exigências
feitas evidenciava a debilidade de acumulação de capital desta empresa
manufatureira. Uma vez solicitadas para a projetada remodelação, de
monstravam não possuir um capitalsuficiente que pudesse, igualmente,
ser aplicado na reforma e, ao mesmo tempo, manter a empresa emfun
cionamento (remuneração de pessoal, compra de gado, etc.).
Mais uma vez, revelava-se a precariedade da acumulação local, a
descapitalização da pecuária sulina. A situação,por paradoxal que possa
parecer à primeira vista, conduzia a uma reviravolta nas per^ectivas do
"Sindicato dos Charqueadores", que se voltava para a idéia do frio. É

Indústria do charque ameaçada de grave exigência. Correio do Povo^ Porto


Alegre, 4 dez. 1936. p. 7.

161
lógico que, colocando a questão de outro ponto de vista, pode-se pensar
que, se o capital era pouco para remodelar as charqueadas, menor seria
ainda para a montagem de frigoríficos. Todavia, a tomada de cons
ciência da inadequação de charqueada enquanto processo de trans
formação de carne, não oportunizando maior lucratividade, levava,
neste final de República Nova, a um esforço na busca de novos rumos.
De momento, contudo, a preocupação prioritária era tentar pro
telar ou contornar a medida do governo central.
Tendo em vista que a safra deveria iniciar-se dentro de um mês,
movimentaram-se os pecuaristas, liderados por Aníbal Di Primio Beck,
que assumira a pasta de Agricultura após a saída de Raul Pilla. Ao assu
mir a direção da Secretaria, Di Primio Beck promoveu uma reunião de
todas as "forças econômicas do Estado", a fim de poder delinear seu
programa de ação em face dos problemas existentes.
Na reunião, da qual participarama FARSUL, a Federaçãodas As
sociações Comerciais e o Centro da Indústria Fabril, Di Primio Beck
disse que, após já ter assentado o encontro das classes produtoras
do estado, recebera um telegrama de Getúlio Vargas, propondo uma
reunião daquele gênero a fim de saber quais os problemas econômicos
e pensar nos meios de solucioná-los.
Transparece, neste momento, a ação conjunta, no plano econô
mico, entre as chamadas "classes produtoras", o governo central e o
governo estadual, que apoiara esta reunião.
Durante a reunião, foi enfatizada "a organização do sistema re
presentativo de classe, uma das mais brilhantes e expressivas conquis
tas da civilização contemporânea.'"*^
Com referência ao problemado charque,foi especificado que Ge
túlio Vargas havia determinado ao ministro da Agricultura para trans
ferir tudo para a próxima safra, salvando, assim, a pecuária gaúcha de
uma situação de falência.
Como se pode constatar, neste momento era possível observar
um enquadramento entre à ação do governo central, do PRL e dos
interesses econômicos e necessidades das oligarquias, inclusive da FUG.
Todavia, o atendimento às reivindicações sulinas não implicava identi
dade total: como zona periférica, fornecedora de gêneros alimentícios
para o mercado interno a um baixo preço, o Rio Grande via seus pro
blemas solucionados até o momento em que interesses regionais não
conflitassem com os interesses mais amplos da acumulação ao nível
nacional. Toda vez, porém, em que o enquadramento se dava, a subor
dinação econômica tendia a ser esquecida, ou, pelos menos, passava
44Mbviinentam-se as forças econômicas do Estado. Correio do Povo, Porto
Alegre, 11 dez. 1936. p. 7.

162
para um segundo plano. O processo econômico, no caso, é realmente
contraditório em si mesmo, pois tanto o centro tinha necessidade do sul
quanto este almejava uma integração. As condições de relacionamento
é que se dão em bases desiguais, assim como é, em essência, desigual o
desenvolvimento do capitalismo.
No momento, pois, em que há mais condições de acerto entre os
interesses econômicos do centro e as reivindicações da periferia, mas-
carando-se a dependência, é que a classe dominante conscientiza com
mais clareza os problemas que surgem ao nível político.
Portanto, na medida em que, no plano econômico, estavam coin
cidindo tais interesses, ao nível político inúmeras cisões e rearticulações
se processavam.
Na vigência da fase constitucional da Nova República, o esquema
governamental de Getúlio Vargas apresentava-se sustentado politi
camente pelas oligarquias dominantes dos estados e pela maioria parla
mentar na Câmara Federal, que faziam frente comum de ação. Na
oposição, constituíra-se a minoria parlamentar, coordenada pelo tri
buno gaúcho João Neves da Fontoura, que sistematicamente fazia a
crítica da orientação governamental, qualificando-a de "ditadura sem
rumo" e "traidora da revolução de 1930".
O ano de 1935 foi todo ele marcado pela ação anticomunista e
antiliberal do governo central, tendo o movimento repressivo seus pon
tos altos no fechamento da Aliança Nacional Libertadora, em julho, e
na desarticulação da Intentona Comunista, em novembro. Alertando
enfaticamente o país contra o perigo extremista, o governo federal fez
passar medidas de cunho autoritário, que implicavam o comprometi
mento do jogo democrático representativo, tais como a Lei de Segu
rança Nacional, o estabelecimento do estado de sítio, sua prorrogação
e equiparação ao estado de guerra, etc.
Acenando com o perigo do comunismo, Getúlio Vargas pôde con
tar com o apoio para as suas medidas das oligarquias tradicionais, tais
como o Partido Republicano Paulista, o Partido Democrático e o PRL.
No dizer de Carone, Getúlio Vargas, para convencer Flores da Cunha
a apoiá-lo no início de novembro de 1935, mandara-lhe um relatório
de Filinto Müller sobre as atividades comunistas no Brasil."*^
Frente à intentqna de 1935, Flores da Cunha afirmou que suas
forças estaduais seriam capazes de reprimir qualquer revolta e pôs à
disposição de Vargas 2.000 homens.
A minoria parlamentar, liderada por João Neves, combateu as
medidas repressivas do governo, apontando o perigo do regime derivar
novamente para um esquema discricionário.
^^Carone, op. cit., p. 90.

163
No Congresso, João Neves da Fontoura criticaria o fechamento
da Aliança Nacional Libertadora, alegando que não se tratava de uma
entidade comunista, segundo seu programa. O governo, que pretendia
com seu ato garantir a sobrevivência do regime democrático, fazia uma
política destinada a excitar os extremismos políticos, incitando-os uns
contra os outros.^ ^
A atuação combativa da oposição, contudo, permitiu ao governo
central melhor abafá-la, conduzindo á prisão, inclusive, de parlamen
tares.
Apreensivos quanto ao crescente poder central e temerosos do
comunismo e do integralismo. Flores da Cunha e a FUG realizaram ne
gociações no Rio Grande do Sul.'*''
Na postura adotada por Carone, o fato da eleição de 14 de outu
bro de 1934 para a Assembléia Estadual Constituinte não ter dado ao
PRL uma vitória tão esmagadora, quando por ocasião das eleições para
a constituinte federal em 1933, teria obrigado Flores a fazer acordo
com a FUG^®. Inclusive, para aeleição indireta de governador do Es
tado pela Assembléia, em 1935, os integrantes do PL e doPRR teriam
aceitado votar na candidatura de Flores da Cunha, desde que lhes fos
sem cedidas duas secretarias.
Não descartando nenhuma das duas opiniões a respeito da nova
'pacificação do Rio Grande", que se processou entre janeiro e outu
bro de 1936, torna-se importante analisar ambos os lados da questão.
A FUG, que com os acontecimentos revolucionários de 1932 e a
formação do PRL se via excluída do governo do Estado, divisava, atra
vés da fórmula conciliatória de uma gestão conjunta, uma forma de re
tornar ao poder.
O PRL e o governador do Estado, por seu turno, viam na unifi
cação política do Rio Grande o fortalecimento do Estado sulino, pers
pectivas de maior progresso econômico pela acomodação política dos
três partidos, sob a liderança dos liberais, e, muito provavelmente, in
tençõeshegemônicas dentro do quadro político nacional.
A questão da origem da idéia pacificadora dividiu as opiniões.
No Congresso, o deputado liberal João Carlos Machado afirmava
que Flores, desde março de 1935, havia tomado a deliberação de tratar
com os membros da FUG a possibilidade de uma "reconciliação da fa
mília rio-grandense".^^
^êpontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e int. de Hélgio Trin
dade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. p. 474.
47 Cortes, Carlos. Gaúcho politics inBrazü. [s.l.] University of New México Press
1974. p. 69.
48carone,op. cit, p. 329.
49Fontoura, op. cit, p. 492.

164
Na Assembléia Legislativa do Estado, o deputado do PRL, Simões
Lopes, acentuava que a idéia partira de Caio Pedro Moacyr, que a con
fiara ao governador, o qual apoiara o movimento de pacificação, que
objetivava unir para o trabalho e defender-se contra os inimigos da de
mocracia liberal. Na sua opinião, Getúlio ignorava os démarches, en
quanto que Batista Lusardo, no Rio de Janeiro, afirmava que a idéia
partira do Catete.®®
Tendo sido citado na Assembléia como artífice da pacificação,
Raul Pilla afirmou que nunca lhe passara pela cabeça promover a apro
ximação do governo com a oposição. A iniciativa coubera ao gover
nador, uma vez que Mem de Sá, seu correligionário, fora chamado para
tratar deste assunto pelo líder governista João Carlos Machado.^'
Em entrevista concedida á imprensa carioca em julho de 35,
Flores afirmou ter sido sua a iniciativada "pacificação", sem ter havido
comunicação com Vargas, inspirando-se apenas nas "tendências natu
rais" de seu temperamento e no "sentimento máximo do povo gaúcho",
que desejava a pacificação de seus partidos políticos tradicionais. Por
outro lado. Flores negou que adotava tal medida por conveniência par
tidária ou por pretender, com isso, facilitar a sua candidatura á presi
dência na sucessão da Vargas.^ ^
Apoiando esta versão, o governador substituto do Estado, Darcy
Azambuja, relatava, na mensagem de 1936, que os propósitos de Flores
haviam sido a pacificação e a "coordenação das forças políticas em
tomo dos altos interesses do Rio Grande".^ ^
As articulações entre os líderes do PRL com os do PRR e do PL
estenderam-se até dezembro de 1935. A chamada "fórmula Raul Pilla"
para o acerto partidário implicava em que o governorepartisse os cargos
administrativos (secretarias de Estado, principalmente) com a qposição.
Raul Pilla propunha ainda a união de todas as forças democráticascon
tra o extremismo.®*
Ainda tendo em vista a preocupação com as idéias extremistas,
realizou-se uma aproximação do PL com Getúlio Vargas. O encontro
girou em torno da fórmula apresentada por Pilla e José Maria Santos,
jornalista carioca, que objetivava formar um gabinete de concentração
nacional, formado por todas as correntes oposicionistas do Brasil. Tal
idéia, de amplitude nacional, era apoiada por Flores, que, no âmbito
regional, estava tratando de realizar, com Pilla, um "modus vivendi"
^ÚAnais da Assembléia Legislativa, sessão de 29 dejulho de 1935.p. 83.
^1Anais daAssembléia Legislativa, sessão de 30 dejulho de 1935. p. 92.
52a palavra do Sr. Flores da Cunha à imprensa carioca. Correio do Povo. Porto
Alegre, 30jul. 1935. p. 1.
53Mensagem do governador, 1936. p. 206.
54correiodo Povo, Porto Alegre, dez. 1935.

165
entre os três partidospolíticosgaúchos.^ ^
A idéia do governo central de aproximação com as oposições,
sob o pretexto do extremismo, continha a preocupação de dividir as
oligarquias, enfraquecendo-as politicamente. Com relação às articu
lações rio-grandenses, embora ^laudisse diretamente o acordo, reser-
vadamente o presidente da República incumbia seu irmão. Benjamim
Vargas, deputado pelo PRL, a se opor ao "modus vivendi" dentro do
partido. Da mesma forma, Getúlio acenava com postos federais aos
membros da FUG caso o pacto falhasse.^ ^
Dentro da própria FUG e do PRL, contudo, alguns obstáculos se
antepuseram às negociações.
Enquanto certos libertadores criticavam a união, lembrando
a oposição a Flores no campo de batalha, velhos republicanos de
nunciavam, em nome de ra&es castilhistas, a aceitação de princípios
parlamentares presentes no acordo. Quanto à ala jovem do PRL,
"increasingfy fmstrated by Flores' mtocratic party contrai, felt the
pact would sacrifice the youthful PRL in favor of an aUiance of old
cronies"J''
No plano federal, João Neves da Fontoura não aceitava o "modus
vivendi" rio-grandense^^, assim como Batista Lusardo, acusando que
todos os trâmites para a pacificação do Rio Grande traziam consigo a
"possibilidade material de ascender aos postos de governo"^'. Neste
caso, a postura assumida por Neves, ^esar de combatida pelos parti
dários da conciliação, aproximava-se mais da realidade política gaúcha,
onde parte da classe dominante buscava formas de retomar ao poder.
Por seu lado, a parte da oli^quia que controlava o aparelho de Estado
via vantagem nesta acomodação, tanto pelo reforço político do Rio
Grande quanto pela possibilidade de continuar a exercer a hegemonia.
A tramitação, no caso, era possível tendo em vista tratar-se de acertos
intradasse, dos interesses econômicos vitais estarem sendo aos poucos
atendidos pelo Estado e da perspectiva de fortalecerem-se contra o ex
tremismo.
Em 15 de novembro de 1935, realizou-se o congresso do PL para
tratar do acerto com o governo do Estado e, na mesma época, reimia-se
o congresso do PRR, com o mesmo objetivo.
A 17 de janeiro de 1936, foi firmado o "modus vivendi" entre os
trés partidos, sendo então fixada uma nova modalidade administrativa

5Sconeio do Povo, Porto Alegre, 6 out 193S. p. 12.


Sécortés, op. cit., p. 69.
57ibidem.
SSpontoura, op. cit., p. 493.
^^Anais da Assembléia Legislativa, sessão de 29 de juDio de 193S. p. 83.

166
com a colaboração das minorias. Em cerimônia realizada na Assembléia
Legislativa, Flores da Cunha travou um pacto com o velho chefe repu
blicano Borges de Medeiros e o libertador Raul Pilla.
O governador do Estado atendia a uma série de pedidos da FUG,
tais como garantia de liberdade de imprensa e assembléia, recontra-
tação dos empregados públicos que tinham sido removidos por razões
políticas e estabelecimento deum efetivo sistema civil de serviços.^**
Basicamente, as reformas pretendidas pelos políticos dos partidos
de fora do governo abrangiam apenas questões políticas. Isto vem con
figurar a problemática básica presente na negociação entre as oligar
quias e a circulação do poder político.
Em troca de tais concessões, a FUG passou a participar do secre
tariado; Raul Pilla ocupou o cargo de secretário da Agricultura e lin-
dolfo Collor, republicano, preencheu a pasta da Fazenda, alterações que
se deram em fevereiro de 1936.
Um Rio Grande do Sul unido sob o comando de Flores era um
dado que se antepunha à meta do governo central de desarticulação
política das oligarquias, impedindo a volta a um esquema de poder si
milar ao da República Velha.
Nessa medida, Vargas começou uma tática de minar o "modus
vivendi", solapando tanto pelo lado da I^G quanto pelo próprio PRL.
Quanto à FUG, Vargas promoveu encontros com os líderes Mau
rício Cardoso, João Neves e Batista Lusardo, todos eles contrários ao
acerto político-administrativo que se dava no Rio Grande. A título de
promover uma "política de pacificação nacional", tal como havia feito
aproximações c(»n o PL, o presidente comissionou Maurício Cardoso
para organizar um "ministério de compromisso", no qual a FUG de
sempenharia o maior papel. Com relação ao PRL, a ação de Vargas se
encontra na raiz da "dissidência liberal", que, em abril de 1937, haveria
de abalar o partido governista no Rio Grande do Sul. Encabeçados por
Benjamim Vargas, imúío do presidente, e pelo jovem deputado José
Loureiro da Silva, os dissidentes liberais acusaram o "modus vivendi"
de ser wn acerto entre políticos da República Velha para controlar o
poder, além de se oporem ao comando autoritário de Flores na chefia
do partido. Finalmente —e este é um dado muito importante —tais ele
mentos optaram por uma aliança com o poder central, politicamente
mais vantajosa do que o apoio ao governador do Estado.^ *
Tal forma de agir, dividindo politk;amente as oligarquias locais,
apoiando as oposições e enfraquecendo os governos estaduais, acabaria

éOcortés, op. cit, p. 70.


éllbidem.p. 70-1.

167
por abater as classes dominantes regionais, submetendo^ ao poder
central.
Tais aproximações e transações de Vargas, ocorridas entre abril
de 1936 e abril de 1937, tiveram duas conseqüências políticas funda
mentais para o Estado. A primeira delas foi a conscientização do go
verno do Estado rio-grandense das intenções do governocentral quanto
à marcha para o fediamento polítrco, resultando em preparativos béli
cos de Flores da Cunha. Contando com o apoio do comando militar do
Paraná, Flores arquitetou, inclusive, a possibilidade de um plano ofen
sivo contra o governo central. Falhando, contudo, o suporte militar do
Gen. João Guedes da Fontoura, que voltou atrás. Flores ficou na de
fensiva, resguardando o contexto político sulino.^^
Mais tarde, em discurso proferido por ocasião de uma homenagem
que os estudanteslhe prestaram em Porto Alegre, Flores deu a entender,
justificando sua atitude, que o Rio Grande não tinha nenhumaintenção
sq>aratista, pois estava perfeitamente integrado ao "seu maior e melhor
mercado, que é o Brasil", mas uma vez que tentassem ofender e dimi
nuir o Rio Grande, todos os gaúchos "partiriam para a defesa do seu
torrão natal".*'
A outra resultante básica das articulações do governo central foi
o desmantelamento do "modus vivendi" em outubro de 1936, quando
entrou em ação a dissidência liberal. Falecendo o segundo vice-presi
dente da Assembléia, coube a Flores da Cunha escolher seu substituto
dentro dos quadros do PRL. Com a colaboração de membros da FUG,
a dissidência liberal apresentou seu próprio candidato. A atitude da
FUG obrigou CoUor e Pilla, defensores do "modus vivendi", a exone
rarem-se de seus cargos em 13 de novembro de 1936, em razão da fi
liaçãopartidária.O restante do PRL, fechandoem tomo do governador,
permitiu que um imp&Khment contra Flores não passasse na Assem
bléia.
No final de 1936, em fimção da crise política, o líder da dissi
dência, Beigamin Vargas, começou a criticar violentamente o governo
de Flores da Cunha, não só quanto à forma ditatorial de mando e os
conchavos políticos entre personalidades da Velha República, como
também no plano econômico.
Ao mesmo tempo em que o novo secretário da Agricultura Di
Primio Beck enfatizava ligações com o governo central para a solução
do caso do charque, tendo a seu lado líderes pecuários de todas as
orientações políticas. Benjamim Vargas criticou com veemência a ad-
ministraç%) de Flores, acusando a situação da economia gaúcha como
é^Cortés, op, dt., p. 72.
é3o Estado deSãoPaulo, SãoPaulo, 11 maio1937. p. 1.

168
de completo desmantelamento. Considerando que o Estado tinha um
governo sem programa e sem orientação definida, o deputado pergun
tava que fim fora dado à taxa de cooperação, em quanto montava e*
quando o governo faria uma prestação de contas pública.
No início do ano de 1937, a situação precipitou-se com o desmo
ronamento do "modus vivendi".
Entrando em cena as dérmaches para as eleições presidenciais,
Flores posicionou-se pela candidatura de Armando Salles de Oliveira,
ex-governador de São Paulo e antigo membro do Partido Democrático
e, no momento, do Partido Constitucionalista. Se, por um lado, pode
parecer paradoxal o acerto entre ambos, passados poucos anos da revo
lução de 1932, por outro lado é compreensível a junção dos dois líderes
neste momento da vida política nacional, em que, desmascarada a inten
ção do governo de fechamento político, as oligarquias realizavam uma
tentativa de recuperação do domínio político do país.
Armando Salles de Oliveira, dando apoio à reação contra Vargas,
enfatizava a necessidade de organização democrática dentro dos marcos
de uma república presidencial. O Estado deveria ser forte, mas a solução
não se encontrava nos extremismos. No contexto de pós-30, segundo
Salles, o federalismo havia-se tomado mais adiantado e o "sentimento
de autonomia dos Estados, vivificando-se nos embates das lutas in
ternas, constitui mais do que nunca o fundamento político, a condição
de equilíbrio e de bem-estar do Brasil."^"*
Fruto das oligarquias, seu pensamento reflete traços de perma
nência e de renovação, mas neste momento o que une Flores a Salles
é a preocupação das oligarquias que se dão conta da ameaça que pesa
sobre elas quanto à perda de seu poder político.
O PRL, por unanimidade de votos do seu diretório, adotou a
candidatura de SaUes Oliveira à sucessão. Ao mesmo tempo, João Carlos
Machado recebeu instmções de Flores da Cunha para que a bancada
liberal gaúcha no Congresso prestigiasse a candidatura do paulista An
tônio Carlos para a presidência da Câmara.^ ^
A postura assumida por Flores e pelo PRL, na questão sucessória
à presidência, precipitou a separação formal da dissidência liberal, que
se formalizou em abril de 1937, com o desligamento do partido do
governo de nove deputados estaduais e um senador, que passaram a
reforçar a oposição. Tal cisão determinou a perda do controle do PRL
(que era mqoritário) no legislativo estadual, possibilitando à dissidência
liberal e á FUG fazerem passar leis que cercearam relizações do governo.

64carone, op. cit., p. 94-5.


65o Estado de SãoPaulo,SãoPaulo, 18 abr. 1937. p. 2.

169
Na Assembléia Legislativa do Estado, o deputado Alberto de Bri
to, liberal, acusou a bancada da dissidência de também justificar seu
rompimento pela não-concordância com a política econômica seguida
pelo governo do Estado. Paralelamente, enfatizou que o PRL apoiava
administrativamente Getúlio Vargas "até o seu último dia de governo",
mas não politicamente.^^ Esta afirmação, no caso, é fundamental para
a comprovação da idéia de que o PRL "fechava" com Vargas quanto à
direção da política econômica e administrativa, enquanto que não se
coadunava com o rumo que os acontecimentos políticos iam tomando,
tanto na condução do problema sucessório, quanto na evidente trilha
para o autoritarismo.
Em "Manifesto Político" ao Rio Grande e à nação, publicado
em "A Federação", Flores da Cunha criticou a maneira como estavam
se desenvolvendo os trabalhos para a sucessão presidencial, coordenados
por Getúlio, que mantinha em segredo o candidato de sua predileção e
trazia com isso, ao país, um clima de insegurança. Justamente para dar
tranqüilidade ao país é que o PRL, juntamente com o Partido Consti-
tucionalista, lançara a candidatura de Salles de Oliveira à presidência.^ ^
Na Assembléia Legislativa gaúcha, a crítica da dissidência afir
mava-se não quanto à intervenção do governo na economia, mas à
má direção desta intervenção, notoriamente na questão dos sindicatos,
acusados de serem órgãos protegidos do governo, tendo em vista as isen
ções de imposto que gozavam. A esta crítica uniu-se a do deputado da
FUG Raul Pilla, que agora acusava o governo de não defender os inte
resses dos produtores rio-grandenses, mas sim os dos sindicatos, aos
quais os produtores se mantinham escravizados. Por outro lado, o go
verno estava onerando a produção com muitas taxas, como a broma-
tológica, a de assistência, etc.
A rigor, a dissidência liberal haveria de continuar acusando Flores
de "não querer ou não poder" resolver problemas econômicos do Rio
Grande, e mesmo de não estar seguindo os princípios a que se propunha
o PRL. Na realidade, o que deve ser levado em conta é que a classe
dominante não tinha conscientizado integralmente o que se ocultava
por detrás da aparente identidade entre as metas de Vargas para com
a periferia e as possibilidades reais que a periferia tinha para desenvol
ver-se no contexto de pós-30. A acentuação da subordinação econô
mica, o aumento dos desníveis regionais, os problemas estruturais de
uma economia descapitalizada não estavam sendo conscientizados e só
uma compreensão errônea do processo vivido permitia identificar que
o problema básico da economia gaúcha era a "má direção" de Flores
no govemo do estado.
66Anais da Assembléia Legislativa, 8?sessão, 23abr. 1937. p. 164.
67o Estado de SãoPaulo, SãoPaulo, 11 maio 1937,p. 1.

170
Dentro deste princípio, unindo-se em termos de votação a dissi
dência liberal mais os membros da FUG, a Assembléia declarou incons
titucionais atos do governo do Estado, tal como o seu veto á Lei n9
158, de 11 de janeiro de 1937, que instituía prêmios aos produtores de
álcool, aguardente e erva-mate. Pretendiam assim os deputados, que san
cionaram a lei, devolver, sob a forma de prêmios aos produtores, o di
nheiro que lhes fora arrecadado nas taxas.^® Posteriormente, a Assem
bléia Legislativa declarou sem efeito, pelo Decreto n9 16, os atos do go
verno do Estado que haviam criado os Institutos Sul-Rio-Grandense da
Banha, do Álcool e Aguardente e de Produtos Agrícolas, bem como os
direitos que os Institutos do Álcool e Aguardente e de Erva-Mate
tinham de cobrar e aplicar as taxas incidentes sobre os respectivos
produtos.
Enquanto tais divergências ocorriam quanto a questões econô
micas no Estado, provocadas pela dissidência liberal, com o respaldo
da FUG, esta última também sofria defecções.
O PRR, com o fim do "modus vivendi", havia se cindido, com
uma ala liderada por Maurício Cardoso (pró-Vargas) e uma liderada por
Lindolfo CoUor ^pró-Flores). Posteriormente, num congresso que reu
niu "jovens e progressistas republicanos", Collor formou o Partido Re
publicano Castilhista (PRC).
Por seu turno, o PL também sofreu uma dissidência, quando uma
ala, liderada por Bruno de Mendonça Lima, formou a União Democrá
tica Nacional (UDN), enquanto que outro grupo de libertadores formou
a Ação Libertadora (AL).
Na luta final dos políticos da República Nova, a classe dominante
achava-se extremamente fracionada no Estado, estando agrupada, con
tudo, em dois grupos principais: o grupo varguista, apoiado pelo PRR,
PL e dissidência liberal, endossando a candidatura de José Américo de
Almeida, e o grupo pró-Flores, apoiado pelo PRL, PRC, AL e UDN.®^
No final da Segunda República, o ataque a Flores da Cunha foi,
pois, possibilitado pela cisão política gaúcha, propiciando a que parte
da oligarquia rio-grandense fizesse alianças com o governo central.
Politicamente, a cisão se manifestara clara, em termos de compro
metimento de parte da classe dominante gaúcha com o poder central,
no novo esquema político que se avizinhava. Numa conjuntura política
importante, as oligarquias realizavam barganhas, buscando nova aco
modação.
Deixara de ter sentido a "ala nacional", liderada pelo PRL. Em
bora no plano econômico suas realizações ainda se coadunassem com
^^Anais da Assembléia Legislativa, 19? sessão, 21 maio 1937.
"^Cortês, op. cit., p. 78-81.

171
as perspectivas de Vargas quanto à produção nacional, seu fomento,
renovação e diversificação, ao nível político, exigia-se a aniquilação
do exercício direto do poder pelas oligarquias nacionais.
Em acerto com o governo central, quanto às direções a serem
dadas ao processo econômico, o PRL deixou de ser um colaborador de
Vargas para tomar-se uma ameaça, quando, unindo-se à FUG, descor-
tinou-se a possibilidade de fortalecimento político da oligarquia gaúcha.
As críticas à orientação econômica do govemo de Flores da
Cunha, cristaüzadas na ação contra os sindicatos e os institutos promo
vida pela dissidência (que, paradoxalmente, era instigada por Vargas),
não atingiam, porém, o caso do Instituto de Carnes, encarado como
formade realização dos interesses dos pecuaristas no estado.
Na situação em que se achava, por um lado, dependente da ação
do govemo quanto à entrega da taxa de cooperação para a efetivação
do Instituto de Carnes e, por outro, das possibilidades de rearticulação
da charqueada, a classe mral, como um todo —charqueadores e cria
dores, independentes de filiação partidária —concentrou-se na idéia da
frigorificação. Em reuniões conjuntas com a Secretaria da Agricultura,
ambas as frações de classe dirigiram-se aospoderes públicos.
Ao governo do Estado soHcitaram que, de uma vez por todas,
fosse o Instituto instalado. "Seriam amparados nãosó oscriadores, mas
os próprios charqueadores, hoje integrados perfeitamente nesta clas
se''7o Pqj lembrado o caso da Cooperativa Pelotense de Carnes, que
solicitara ao governo do estado que lhe fosse entregue a taxa de coope
ração arrecadada pela prefeitura local, sob forma de empréstimo ou
doação, pedido este que fora bem acolhido pelo governador do Estado.
Ficou resolvido, pois, que a única solução que harmonizaria definitiva
mente os interesses de ambas as frações de classe, com vantagens para
a pecuária, seria a rápida instalação do Instituto, uma vez que era uma
instituição que se enquadrava dentro da orientação econômica adotada
pelo governo na organização das classes produtoras.
Além disso, ficou assente, entre a FARSUL e o Sindicato, que a
higienização das charqueadas deveria ser feita paralelamente com a
remodelação das mesmas para o aproveitamento integral do boi."^^ Em
telegrama oficiado ao Ministro da Agricultura, as duas entidades rurais
comprometeram-se de, no próximo Congresso Rural que se reaUzaria
em julho, estudarem as formas de tornarem exeqüível este projeto.
Entre 14 e 18 de julho de 1937, realizou-se, em Porto Alegre,
o X Congresso Rural da FARSUL. O discurso oficial, proferido pelo
^Olmportante reunião de criadores e charqueadores. Correio do Povo, Porto
Alegre, 2 maio 1937. p. 24.
71Anais doXCongresso Rural, op. cit., p. 47.

172
republicano Joaquim Luís Osório, enfatizou o apoio que a FARSUL
vinha recebendo dos governos estadual e federal e da Secretaria da Agri
cultura. Como de praxe, foi acentuado o papel primordial da agrope
cuária na riqueza econômica do estado, o que lhe permitia um "equi-
li'brio e estabilidade". Tal perspectiva de afirmação da vocação agrí
cola e pastoril do rio Grande foi uma constante no estado de p6s-30.
Como dizia Renato Costa:

Não seremos nunca um concorrente das atividades in


dustriais assombrosas de São Paulo. Nem devemos aspirar a
esse paralelo se, dentro dos recursos poderosos que nos oferece
a pecuária e a agricultura, pudermos emparelhar em riqueza
e em bem-estar material com a mais rica e a mais opulenta das
unidades da federação. O ideal, mesmo, seria a especialização
produtora das regiões do país. A cada província brasileira a
sua indústria primaz, apoiando-se os elementos que a consti
tuem e facüitando-se, dentro do território, o intercâmbio das
produções regionais.' ^
É dentro desta medida que é possível entender a interligação, o
entendimento e o protecionismo entre a classe produtora pecuária
sulina, seu governo estadual e as perspectivas da União, valorizando a
atividade dominante local e possibilitando a sua renovação dentro dos
limites de descapitalização da área ao nível regional e da distribuição
dos recursos em termosde prioridade pelaUnião.
A contrapartida da possibilidade de renovação era a "paz nos
campos", com um proletariado rural dócil. Lembrava Osório da neces
sidade de assisti-lo com legislação protetora, tal como fora sugerido
no III Congresso Rural em 1929, com a idéia de criaçãode uma "Caixa
de Assistência dos Operários do Rio Grande do Sul".
Afirmava o pecuarista em seu discurso:
Desnecessário será por em destaque os serviços e glórias
do nosso gaúcho, na guerra e na paz, pela defesa da integri
dade ck honra e liberdades públicas, para justificar o dever
de <misti-lo na doença, na invalidez e na velhice e às suasfa
mílias ao desamparo. Basta dizer que o gaúcho é a própria
alpta do Rio Grande do Sul, o fator principal da sua imensa
riqueza pastoril, que sobrepuja, no Estado, pois a indústria, o
comércio e o banco tem por baseo rude trabalho compesinoP^
Retoma-se aqui uma visão idealizada do gaúcho —guerreiro, he
róico, glorioso —porém, como proletário, merecedor da legidação tra
balhista, e, portanto, sob controle. Tal posição representa um avanço,

72costa, Renato. Os problemas da produção agrícola e pastoril do Rio Gran


de. Correio do Povo, Porto Alegre, 31 dez. 1936. p. 5.
'3Anais do XCongresso Rural, op. cit., p. 18.

173
contudo, sobre as conclusões do Congresso Rural de 1934, quando se
recusou a extensão da legislação rural ao campo. Mas deve ser ressal
tado que o autor do discurso, falando em "saúde, educação e assis
tência social" aos trabalhadores rurais, assegurando "os benefícios
das aposentadorias e pensões de que já gozam os operários das cidades",
não especificou a proveniência dos fundos da tal "Caixa de Assistência
dos Operários do RGS".
Por outro lado, esta idéia, lançada por Joaquim Luis Osório no
discurso inaugural do X Congresso Rural, não foi retomada para dis
cussão nem foi objeto de nenhuma tese ou moção no decorrer do Con
gresso.
Enfatizando suas raízes rurais. Flores da Cunha discursou, colo
cando ser a questão máxima da economia gaúcha a de dar solução ao
problema dos fazendeiros. Acrescentou que, se tal problema não ficasse
solucionado de todo em seu governo, haveria de, pelo menos, ficar com
a sua solução encaminhada. Flores da Cunha, ao fazer um retrospecto
da sua atuação neste sentido, frisou que procurava agir com a maior
imparcialidade. Tendo o presidente escolhido para o Instituto de Car
nes, Protásio Vargas, se demitido do cargo por motivo de saúde. Flores
escolhera para substituí-lo o nome de Marcial Terra, que não era seu
correligionário político e que até já lhe combatera.
No que tange ao problema das charqueadas, ficou decidido no
Congresso que não seriam construídas novas charqueadas, senão com
plantas de acordo com o padrão estabelecido peloMinistério da Agricul
tura. Os trabalhos de higienização seriam obrigados à conclusão dentro
do prazo de três anos a partir de 1938. Da mesma forma, seguir-se-ia
á higienização o remodelamento das charqueadas, tendo em vista a
racionalização da indústria e a sua iniciação como empresas frigorí-
ficas.'''*
A partir dejulho de 1937,aceleraram-se os trabalhos para o breve
encaminhamento do Instituto de Carnes. Presidido por Marcial Terra,
o Conselho do Instituto reuniu-se para deliberar a respeito da cons
trução de matadouros-frigoríficos localizados em Tupanciretã, Bagé,
Alegrete, Lajeado, Pelotas e Rio Grande, embora os municípios de
Cruz Alta, Rio Pardo, Júlio de Castilhos, Dom Pedrito e outros também
se manifestassem pedindo a instalação de frigoríficos.
Para tanto, discutia-se a abertura de um crédito para a construção
de vários frigoríficos em diferentes pontos do estado. Realizaram-se
entendimentos entre o Instituto de Carnes e o governo estadual, ficando
decidido que este abriria um crédito especial na proporção da taxa de

74ibidein, p. 141-50.

174
cooperação arrecadada, assim como entregaria ao Instituto de Carnes
o frigorífico do cais do porto e o matadouro-modelo da Secretaria. O
Instituto, por sua vez, deveria fazer um levantamento estatístico para
avaliar as quotas de suprimentos que deveria receber cada associação
municipal, conforme suas necessidades.'' ^
Dentre todas as possibilidades de construção de frigoríficos em
vários lugares, começou a tomar corpo a idéia, desde há muito pleiteada
pelos criadores da serra, de montagem de uma empresa em Tupanciretã,
o Frigorífico Senano.
Em 4 de setembro, o governo do Estado fez entrega, ao Instituto
de Games, da quantia de 4.000 contos, proveniente da taxa de coope
ração arrecadada aos pecuaristas e recolhida ao Tesouro do Estado. A
segunda prestação, também de 4.000 contos, ficou marcada para ja
neiro de 1938, enquanto que a terceira, também da mesma quantia,
seria entregue em junho do mesmo ano.'' ®
Em 1937, realizou-se a 24? exposição de produtos pecuários e
derivados em Bagé. O ato foi presidido por Flores da Cunha, e, na
mesma ocasião, reuniu-se um congresso regional, convocado pela
FARSUL. Na ocasião. Marcial Terra, ao fazer o discurso oficial, deta
lhou o programa de ação do Instituto de Carnes e abordou três grandes
problemas da pecuária: o da matéria-prima, o da industrialização e o
da distribuição.
O problema da matéria-prima dizia respeito ao melhoramento dos
rebanhos, que, por sua vez, dependia tecnicamente do melhoramento
das pastagens. Tais medidas, conjugadas, permitiriam a compensação do
capital investido.''''
Já anteriormente. Marcial Tena havia entrado em contato com a
diretoria da FARSUL no sentido das duas entidades colaborarem para a
obtenção, o quanto antes, da renovação artificial das pastagens. A
FARSUL, por sua vez, já estava providenciando —e, portanto, cola
borando com o Instituto de Carnes —na distribuição aos criadores de
arame liso para tapumes,vacinas para uso veterinário,sementes e outras
utilidades.''® O tema do II Congresso Regional de Bagé, que se reahzou
concomitantemente com a 24? Exposição, tratou exclusivamente do
melhoramento das pastagens.
Ainda dentro deste espírito, foi apresentado e aprovado, na As
sembléia Legislativa do Estado, em 23 de setembro de 1937, um pro-
75Encerraiain-se, ontem, os trabalhos do Conselho do Instituto deCarnes. Diário
de Noticias, Porto Alegre, 14 ago. 1937.
76Diário de Notícias, Porto Alegre, 5set. 1937.
''Soveral, Antônio. O Rio Grande do Sul em todos os seus aspectos. Porto Ale-
rae, Globo, 1937. p. 44.
'^Diário de Notícias, Porto Alegre, 19 set. 1937.

175
jeto de lei que reduzia de 50% e isentava de pagamento do imposto
territorial as áreas cultivadas com pastagens artificiais.'^^
Quanto ao segundo problema identificado para a pecuária —o da
industrialização — Marcial Terra afirmava que racionalizar a indústria
implicava "praticá-la de acordo com os preceitos da ciência e da técnica,
de modo a melhorar o produto, diminuir-lhe o custo e obter da ma
téria-prima o máximo rendimento."®® Para tanto, o Instituto não
se propunha a abandonar abruptamente o fabrico do charque, pois,
apesar dos conhecidos problemas, o mesmo ainda tinha mercado. Era
preciso, contudo, que se realizasse o aproveitamento integral da ma
téria-prima, especialmente dos subprodutos, dentro de um preparo
racional. Ao mesmo tempo, iniciar-se-ia com a fabricação de conservas,
evoluindo a técnica industrial até a frigorificação completa.
Passando ao problema da distribuição, ou colocação da matéria-
-prima industrializada nos mercados, a perspectiva básica era assegurar
os mercados já dominados e conquistar novos. Paraisso, o Instituto pre
cisaria contar com uma rede comercial com entrepostos, agências e
sucursais, de cuja eficiência dependeria a venda dos produtos gaúchos.
Para solucionar todas estas questões, o Instituto necessitava do integral
apoio das sociedades cooperativas de criadores, sempre, contudo, em
conexão com o poder público.
Na mesma ocasião em que se realizava a feira de Bagé, Flores da
Cunha discursou, explicando porque demorara em entregar ao Instituto
a taxa arrecadada, agora montando em $12.000 contos de réis ao
todo: "Relutei em entregá-la [...] porque não desejava prometer nada
do que não pudesse realizar".® ^
Após retomar a enumeração de todos os seus empreendimentos
no sentido de auxílio à renovação da pecuária. Floresconcluiudizendo:
"Se há um ponto de que nunca me afastei foi este: em se tratando dos
interesses do Rio Grande, as divisas partidárias naH^ devem significar."®^
Retomava-se aqui a noção de que, para problemas econômicos, o
Rio Grande encontrava-se sempre unido, sem distinções de credo polí
tico, pelo que Flores comparecia e prestigiava um congresso promovido
pelo município que, tradicionalmente, lhe era adversário.
Relembrava ainda o governador do Estado que a união política
do Rio Grande, congraçando todos os rio-grandenses na sua obra admi
nistrativa, era o único objetivo que o havia movido por ocasião da pro
moção do "modus vivendi", e não o interesse pela presidência da Re-

"^^Anais daAssembléia Legislativa, 89? sessão, 23 set. 1937. p. 340-1.


SOsoveral, op. cit., p. 144.
SlDiário deNotícias, Porto Alegre, 13 out. 1937.
S^ibidem.

176
pública, como se propalara. Fazer com que os gaúchos de todas as or
ganizações políticas colaborassem para o progresso do Rio Grande era
e continuava sendo o seu desejo maior.
Paralelamente a este movimento do Instituto de Carnes, a fírma
Carlos H. Oderich & Cia., de São Sebastião do Caí, projetou a constru
ção de um frigorífico em Gravataí, a fim de dar novo incremento à
indústria suína regional. Os "Frigoríficos Nacionais Sul-Brasileiros",
inaugurados em 1937, visaram a perfeita industrialização da carne
suína, bem como de seus subprodutos, em função da grande demanda
do mercado consumidor nacional e estrangeiro.®^ Tratava-se, pois, de
uma empresa construída com capital nacional, proveniente da agrope
cuária colonial, que, como se constatava, se revelava capaz de uma acu
mulação possibilitadora da constituição de frigoríficos.
Reforçando esta idéia de que o capital oriundo da zona colonial
se mostrava mais dinâmico, tem-se a notícia de que, em setembro de
1937, a fábrica A. J. Renner & Cia., de Montenegro, contratara com
a firma Byington & Cia. a instalação, em suas fábricas de banha e con
servas, de um moderno sistema de refrigeração e ar condicionado, pela
York Ice Machinery Co.®**
Simultaneamente, enquanto o estado todo era agitado pelo pro
blema da frigorificação, o Sindicato dos Charqueadores reunia-se para
deliberar a respeito da possibilidade de sua transformação em Instituto.
Marcial Tena, criador e charqueador também, opinava que, com o fun
cionamento do Instituto de Carnes, as atividades do Sindicato ficariam
prejudicadas. João de Morais Fiori, presidente do Sindicato dos Char
queadores, declarou que ainda não havia recebido resposta do Ministro
face às resoluções do X Congresso Rural no tocante ao problema da
higienização das charqueadas. Por sua vez, considerava ser grave a si
tuação do Sindicato, tendo em vista que a decisão do legislativo esta
dual fora de privar os Sindicatos do seu funcionamento.
Frente a este impasse, o Instituto de Carnes apresentava a se
guinte proposta: desaparecia o Sindicato dos Charqueadores,"cabendo
ao Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes o controle sobre todos os
assuntos que se relacionam com a indústria do charque".®®
Em 25 de agosto, realizou-se uma assembléia extraordinária do
Sindicato dos Charqueadores para decidir a transformação do Sindicato
em Instituto ou a sua filiação ao Instituto de Carnes. Embora sendo
também charqueador e membro do Sindicato, Marcial Terra compare
ceu à reunião como representante do Instituto, dizendo que esta enti-

83Diário de Notícias, Porto Alegre, 19 ago. 1937.


I^Diário de Notícias, Porto Alegre, 26 set. 1937.
85Diário de Notícias, Porto Alegre, 17 ago. 1937.

177
dade estava com o propósito de solucionar o grave impasse criado no
seio da classe rural com a decisão do legislativo.
Contra a continuidade do funcionamento do Sindicato, posicio-
nava-se João de Souza Mascarenhas, alegando ter esta entidade falhado
na sua missão, não conseguindo alcançar os fins de seus estatutos e
atuando de forma perniciosa aos interesses pastoris. Na verdade, acusa
o charqueador, o Sindicato só cuidavada confecção de estatísticas, nem
sempre certas, às quais não fornecia a todos os charqueadores. Por
exemplo, através de dados, João Mascarenhas afirmava que o consumo
do charque continuava a declinar. O consumo mensal do primeiro se
mestre de 1935 fora de 79.466 fardos, 75.548 fardos em 1936 e 70.554
fardos em 1937. Por outro lado, as exportações para o centro do país
não se faziam de forma regularizada, não conseguindo a diretoria do
Sindicato evitar o congestionamento e a queda de preços. Acusando o
Sindicato como instituição e a uma "minoria de aventureiros" que
através dele lucravam, Mascarenhas posicionava-se pela defesa dos
charqueadores. Concluía:
Sou pela defesa da indústria pastorü, e pela conciliação^
dos interesses desta indústria com a da indústria saladeiril É
cpie estes if}teresses podem ser conciliados [...] Agora, o Ins-
timto Sul-Rio-Grandense de Carnes, ele abrange, ele engole o
Sindicato dos Charqueadores, porque o charque é uma moda
lidade de carne. Cessem as rivalidades . .]0 Sindicato teráde
ser agora um Departamento, sem dúvida o mais importante do
Instituto de Carnes, e os charqueadores devem sentir-se ufanos
de poderem colaborar para o bem do Rio Grande do Sul ®^
Atrás da posição defendida por João Mascarenhas, vê-se o ataque
que o mesmo lança ao velho conflito que dividia charqueadores de
criadores.
As negociações, contudo, fracassaram no sentido de incorporação
do Sindicato dos Charqueadores ao Instituto de Carnes,e optou-se pela
sua transformação em Instituto, sendo enviados seus estatutos à Assem
bléia Legislativa.
Essa resolução do Siridicato teria sido tomada diante da
resposta do Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes aos itens
do questionário formulado pelo Sindicato dos Charqueadores,
resposta esta tornada impraticável à incorporação do Sindicato
ao Instituto.^
Na sua resposta ao Instituto, o Sindicato oficiou que, "tratando-
-se de assunto de relevância e complexidade, carecia de bases concretas

86correio doPovo, Porto Alegre, 10set. 1937. p. 10.


87Diário de Notícias, Porto Alegre, 27 ago. 1937.

178
e mais elucidativas para uma solução favorável aos desejos da novel
corporação."®®
Todavia, as Cooperativas de Alegrete, Bagé, Dom Pedrito e São
Gabriel, filiadas ao Sindicato, requereram a declaração de seu voto,
favorável à incorporação, especificando o seguinte:
a) as sociedades cooperativas são essencialmente orga
nizações de produtores e, como tais, têm como função pre-
cipua a defesa dos interesses econômicos de seus associados,
industrializando e vendendo a respectiva produção e elimi
nando os ônus e os inconvenientesda intermediação;
b) as finalidades do Instituto de Carnes são em tudo
harmônicas e coincidentes com os objetivos das sociedades
cooperativistas, empregando para a sua realização a colabo
ração do Estado e a utilização de meios que não estão ao al
cance das organizações privadas. Constituem, igualmente, fi
nalidades do Instituto prestar assistência aos produtores e fo
mentar a sua organização em sociedades cooperativas;
c) confrontando-se, assim, os objetivos das organizações
cooperativas e do Instituto, verifica-se a perfeita identidade
defim, embora realizados sobformas e meios diversos, ®^
Considerando, pois, identidade de fins entre associação de pro
dutores e uma entidade que se dispunha a defender os interesses destes
produtores, as cooperativas decidiram aderir ao Instituto.
Aliás, a problemática que se desenvolvia no legislativo em tomo
dos Sindicatos e das Cooperativas identificava justamente os primeiros
como grupo de intermediários privilegiados pela ação do governo, com
prejuízo dos produtores cooperativados.
Enquanto a maioria da Assembléia (agora não mais controlada
pelo PRL) fazia passar leis que cerceavam o poder dos Sindicatos, o
legislativo estadual pusera em andamento um projeto de lei que con
cedia às cooperativas favores fiscais, isentando-as dos seguintes tributos:
imposto de indústrias e profissões, imposto sobre consignação e vendas
mercantis, taxas de fiscalização a produção, imposto de transmissão
inter-vivos, etc.^®
Não implicava tal posicionamento uma negação ao papel do Es
tado na economia —mesmo porque, se tal fosse, não era possível a
aceitação da transação feita com o governo central —mas, fundamen
talmente, a direção imprimida por Flores às atividades econômicas
do Estado,criando órgãos privilegiados.
O Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes, no caso, tinha aceitação
de todas as alas políticas do estado, encarada como suprema realização
SfiDiário de Notícias, Porto Alegre, 28 ago. 1937.
o9pimentel, op. cit, nota 25, p. 275.
90Anais da Assembléia Legislativa do Estado, 61? sessão, 2 ago. 1937. p. 351-2.

179
dos interesses econômicos da classe rural.
Pelo caminho de sua conversão em Instituto, também envere
daram os charqueadores. Reunidos em assembléia extraordinária a 5 e 6
de novembro de 1937, com a presença do Secretário da Agricultura, foi
aprovada a denominação de "Instituto dos Charqueadores do Rio Gran
de do Sul" para a nova entidade.
Foram submetidos à discussão e aprovados os estatutos do Ins
tituto, ficando acertado que o cargo de diretor-presidente fosse de livre
escolha e nomeação do governo do Estado. Pelos estatutos, o Instituto
dos Charqueadores deveria ser uma entidade autônoma, que encamparia
e assumiria toda a responsabilidade do ativo e do passivo do Sindicato.
Propunha-se a congregar os industrialistas de produtos saladeiris para,
em ação conjunta, realizar os seguintes fins:
Promover a defesa da indústria do charque, em harmonia
com os interesses dos criadores; promover a defesa das indús
trias pastorü e saladeiril, em colaboração com a FARSUL e o
Instituto de Carnes, sempre que houver harmonia de vistas.^^
Note-se a expressão "sempre que houver harmonia de vistas", pos-
sibilitadora de integração com os criadores. Como outros fins, a enti
dade também se propunha a criar entrepostos nos mercados de con
sumo, estudar os teores analíticos do sal nacional, promover a regula
rização dos embarques, incentivar a instalação de balanças para os ne
gócios de compras de gados (decretos que datavam de 1931 e 1933),
estudar os processos de melhor aproveitamento dos subprodutos nas
charqueadas, incentivar a higienização e remodelação das charqueadas
para melhor aproveitamento dos produtos saladeiris, pleitear, junto aos
governos estadual e federal, a criação do "Instituto Nacional dos Char
queadores", única entidade capaz de regular a industrialização e o
comércio nacionais de charque.
A par desta questão, prioritária para os charqueadores, foi discu
tido o caso da organização da "Frota Rio-Grandense", em face da in
tenção do governo do Estado em não ter interferência direta no assun
to. A questão foi discutida na sede da Associação Comercial, tendo o
Sindicato se feito representar. Na ocasião, foi proposta por Waldemar
Thiessen "a organização de uma entidade particular, completamente
autônoma, porém fiscalizada pelo Estado, com o capital inicial de
5.000:000$000, subscrito por particulares, com exclusão completa do
governo."^ ^ A perspectiva dos comerciantes, neste caso, mantinha-se
como uma constante, negando a interferência do governo no processo
econômico. Dos fretes cobrados pela empresa, 20% seriam devolvidos
91 Ata n9 33 da reunião de 5 de novembro de 1937. Sindicato dosCharqueadores.
92ibidem.

180
ao embarcador em ações comuns.
A respeito do problema, o Sindicato se pronunciou pelas vanta
gens que adviriam para os produtores com a efetivação da Frota, em
bora, pela fórmula proposta, em pouco tempo os embarcadores se tor
nariam os maiores acionistas da companhia, em detrimento dos produ
tores das mercadorias.
Em assembléia realizada em 7 de novembro, discutiram-se outros
problemas relativos à indústria do charque, bem explicitativos das con
dições de dependência da economia gaúcha, exportadora do mercado
nacional. Foi dado o alerta para o caso da firma Joaquim Coelho & Cia.,
de Recife, que estava provocando uma campanha baixista no preço
do charque.
Evidenciava-se, mais uma vez, a situação de dependência em que
se achava este setor da economia rio-grandense, das manipulações das
casas comerciais que controlavam os mercados brasileiros.
Outro tópico abordado na reunião foi o projeto de lei que se en
contrava tramitando na Assembléia Legislativa a respeito da isenção
de impostos às cooperativas, tornando-as entidades privilegiadas. O
Sindicato, no caso, deveria procurar impedir a sua aprovação. Vê-se,
mais uma vez aqui, a problemática em andamento, sindicato x coopera-
tivismo.
No que diz respeito á questão da Frota rio-grandense, o Sindicato
pronunciou-se pelo aproveitamento dos navios no serviço de cabo
tagem.^^
Enquanto se davam tais articulações no plano econômico, nestes
momentos finais da República Nova, no plano político a situação se
precipitava no estado.
A 14 de outubro, fora decretada pelo Ministério de Guerra a
federalização da Brigada gaúcha, sendo Flores da Cunha notificado da
medida dois dias depois pelo novo comandante do III Exército, Gen.
Daltro Filho.
Já tendo sido retirado de Flores o controle político-partidário da
situação no Rio Grande, face às decisões ocorridas, a federahzação da
Brigada, sob o pretexto de que esta era auxiliar do Exército e de que se
fazia necessário combater o comunismo, foi o golpe definitivo contra
os últimos resquícios de autonomia do governador gaúcho.
A 19 de outubro de 1937, Flores da Cunha renunciava e fugia
para o Uruguai, ficando Daltro Filho como interventor no Rio Grande.
A 10 de novembro de 1937, findava o período constitucional da
República Nova, com o golpe que instalou a ditadura estadonovista
93Ata n9 34 da assembléia de 7 de novembro de 1937. Sindicato dosChaiquea-
dores.

181
no país.
No Rio Grande, embora a tendência oficial fosse de considerar
os anos de 1936 e 1937 como de ressurgimento econômico, a perma
nência da crise na pecuária foi uma constante. Os pecuaristas, através
de seus órgãos de classe (FARSUL e Sindicato dos Charqueadores),
voltaram-se para o governo central e estadual, na sua costumeira atitude
de reivindicarem e esperarem soluções decisivas para atenuar a crise.
No tocante ao governo central, a perspectiva básica deste era
manter a orientação de diversificação econômica como forma de con
tornar a crise e dar seguímento ao processo de acumulação capitalista.
Nesta medida, um Rio Grande do Sul agropecuário deveria ser atendido
na proporção em que se apresentasse com condições de fornecer pro
dutos alimentícios ao mercado nacional.
No plano do governo local. Flores da Cunha e o PRL trataram de
promover a renovação da pecuária sob a tutela do Estado, com o que
suas metas se coadunavam com a orientação do centro de intervenção
do Estado no processo econômico.
No tocante aos pecuaristas, estes aceitavam, neste momento, a
ação econômica do governo central e do regional, porque em ambos se
incluía a integração do Rio Grande do Sul no mercado nacional, parti
cipação esta que implicava um reforço domodelo agropecuário local e,
implicitamente, a sua predominância como classe.
Todavia, o que passa, neste momento, para um segundo plano na
conscientização da classe dominante sulina é a subordinação e depen
dência que o relacionamento e a integração com o centro envolviam.
Assume relevância principal a questão política do Rio Grande do
Sul não participar das decisões centrais do país e estarsendoesvaziado
o poder de mando das oligarquias regionais. Esta separação entre os
níveis econômico e político dentro de um mesmo processo, presente
ao nível da consciência das oligarquias, é, na realidade, uma das mani
festações contraditórias da subordinação. O alinhamento econômico
subordinado do Rio Grande do Sul a realidade nacional não é colocado
em contradição, mas sima participação política do estado,bemcomo a
perda de poder das oligarquias regionais.
Neste "momento chave" de transição nacional, assume importân
cia a rearticulação das classes dominantes locais, quando parte delas
transacionam com o poder central, facilitando a passagem para a
ditadura.
Politicamente, na correlação de forças que se estabelecia. Flores
era o ponto mais fraco.
Nesta hora, a ala que rompe com Flores passa a criticar a orien
tação econômica e política do governador do Estado, mas não em fun-

182
ção de uma oposição entre esta linha e aquela seguidapelo governo cen
tral; o contexto todo conduz à conclusão de que se trata apenas de uma
manobra para enfraquecer o PRL no Rio Grande do Sul, entrave que se
apresentava à marcha para a instalação do golpe.
No novo período que se iniciaria com o Estado Novo, quando o
Brasil transitaria em definitivo para um novo padrão de acumulação ba
seado na indústria, mais se acentuou o desnível regional entre o centro e
um Rio Grande agropecuário, descapitalizado e periférico.

183
5. CONCLUSÕES

Considerando a preocupação com as linhas de análise propostas,


concluiu-se:

1. Crise de economia pecuária


A crise da economia pecuária sulina revelou uma situação de des-
capitalização (criaçao e charqueada) que tornava a vanguarda de classe
dominante incapaz de, com recursos próprios, renovar a estrutura
produtiva local no sentido de um capitalismo rural pleno. Global
mente, esta economia se apresentava como que atrelada ao centro do
país, em termos de subordinação, o que dava reforço ao modelo de
desenvolvimento agropecuário proposto, valorizando as "indústrias
naturais" e a "integração ao mercado nacional". A pecuária se revelou
sempre dependente de medidas governamentais de apoio. No tocante
ao seu envolvimento com o poder central, a subordinação econômica
tendeu a ser mascarada na medida em que as aspirações locais de de
senvolvimento se coadunavam com a orientação do governo central de
"diversificação econômica nacional", "mercado interno integrado",
etc. Os choques se davam na medida em que o atendimento a um
problema regional era suplantado por um interesse nacional.
2. No que toca às cisões internas da classe dominante:
a) A fração de classe dos criadores demonstrou ser a mais pro
gressista, partindo dela as propostas mais avançadas, tais como re
finamento das raças, pastagens artificiais, transição para a agricultura
capitalista do arroz e —a mais progressista em termos de pecuária —a
montagem de um frigorífico nacional. A fração de classe dos charquea-
dores, embora se mantendo, ao longo de quase toda a sua história, agar
rada ao velho processo produtivo, manufatureiro, retrógrado e arcaico,
no final do período tendeu a uma união com os criadores, voltando-se
para a idéia do frigorífico. Com isso, atenuava-se o conflito intraclasse
que fazia colidir interesses dos estancieiros com os dos saladeiristas, em
bora não se verificasse uma integração, expressa num projeto único de
montagem de um frigorífico ou associação das duas entidades de classe
representativas dos criadores e charqueadores.
Ambas as frações de classe, reunidas em órgãos específicos, esta
vam equacionando a solução do problema econômico básico debaixo da
tutela do Estado, sob a nova forma que se generalizou no pós-30: o ins
tituto.
b) No plano político, a proposta do governo central foi a desmo-
bilização política das oligarquias, em função da constituição de uma
nova estrutura de poder, na qual o exercício direto do poder político
fosse retirado das classes dominantes nacionais em função da preser
vação de sua domináncia e da continuidade do processo capitalista.
No plano local, os momentos de 1932 e 1937 são dois marcos
fundamentais. Em 1932, acontece a cisão política gaúcha: a ala re
gional, tendo em vista a ameaça de perda do poder das oligarquias re
gionais, rebela-se contra o governo central, enquanto que a ala "nacio
nal", mais tarde consubstanciada no PRL, identifica-se com a orien
tação do Governo Provisório, posicionando-se pela ordem e pelo desen
volvimento econômico nacional, no qual o Rio Grande do Sul cum
priria seu papel de "celeiro do país".
A perspectiva de integração do Rio Grande do Sul ao centro,
economicamente, não estava ausente da percepção das duas correntes
políticas; porém, nenhuma conscientizava claramente, neste momento,
a subordinação econômica presente na relação centro/periferia.
Para a ala regional, a demora na reconstitucionalização era en
tendida como perda de poder oligárquico, enquanto que, para a ala
nacionalista a tutela do centro era compreendida como colaboração e
não como subordinação.
Em 1937, a nova cisão das oligarquias gaúchas, dada num mo
mento crucial de transição do poder ao nível nacional, evidenciou um
momento básico de barganha política: a ala de Flores, centralizada no

185
PRL, toma consciência do rumo para a ditadura e da impossibilidade,
imposta pelo centro, das oligarquias participarem do poder político.
Já os elementos da FUG e da dissidência liberal, que transacionavam
com Vargas, optam por uma coalisão mais vantajosa, aceitando a perda
do poder político.
A subordinação econômica, presente em ambos os momentos,
não é conscientizada como fator possível de ser o motivo da ruptura
com o centro. Embora muitas vezes vivenciada e sentida a exploração
econômica, ela passa para um segundo plano, mascarada, e a proUe-
mática política assume a relevância principal.

3. No tocante ao problema do trabalhador rural:


Evidenciou-se, ao longo da pesquisa, a dificuldade em reconstituir
sua história como classe dominada. As poucas referências encontradas
se situaram sempre no plano da visão da classe dominante sobre os pro
blemas sociais e das condições de trabalhono campo. O chamado "pro
letariado rural", em especial os peões, vivendo em dependência econô
mica, social e política, sob relações de produção não especificamente
capitalistas, achava-se sem organização e nempossuía formas de expres
são escrita. Já o trabalhador de charqueada, atuando dentro deumpro
cesso manufatureiro e posicionando-se como "proletário", organizou-se
em sindicato, sem que, contudo, se tenha notícias de sua atuação de
forma mais concreta.

186
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Dr. Anibal Loureiro e aprovada em Assembléia Geral Extraordinária de 9 de
março de 1931.

ARQUIVO
Arquivo Swift-Armour —Santana do Livramento.

190
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Embora sendo um período crucial na realidade
brasileira, marcado pelo processo revolucionário de
1930, os "anos 30", conhecidos como o momento da
"República Nova", é tema ainda pouco estudado pela
historiografia gaúcha.
Estado periférico, dependerfte do mercado na
cional do país, pecuário por excelência, com forte
tradição guerreira e acentuado nível de politizaçãô,
foco da dissidência oligárquica que conduziu à Revo
lução de 30, como teria se comportado o RS na
República Nova?

A ECONOMIA
&
OPODERNOS
ANOS 30

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