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S A N D R A JATAHY
RESA\/ENXO

Editora
da Universidade
Uiiversidade Fedend do Rio Grstiâe do Sul

FAPERGS
Ao longo da segunda metade do
século XIX, uma questão esteve no
centro das preocupações da elite
brasileira: encontrar novas formas
de subordinação do trabalhador ao
capital frente à desagregação da or
dem escravocrata.
Processava-se no país a transição
capitalista, implicando, por um lado,
o assentamento das teses materiais
de um novo modo de produção e, por
outro lado, o estabelecimento de to
do um aparato político-administrativo
e também ideológico de legitimação
da nova ordem burguesa emergente.
Na conformação de um mercado
de trabalho livre, as elites se valeram
tanto de recursos instrumentais-le-
gais para o enquadramento do traba
lhador à nova ordem quanto difundi
ram conceitos e valores adequados à
também nova moral do trabalhador.
Dois abolicionistas, códigos de
posturas municipais, aparatos poli
ciais e judiciários remodelados e em
expansão foram instrumentos para a
normatização da vida para a discipli-
narização do trabalho e para o con
trole do acesso dos liberais ao mer
cado de trabalho em formação.
Às práticas de controle social
acrescentava-se a reelaboração
ideologizada do trabalho e da vaga
bundagem, pólos opostos de uma
mesma realidade capitalista em
construção. Tratava-se de construir
uma nova ética, que opunha o mundo
de trabalho, sede da sociedade civil
organizada, da ordem, da tranqüilida
de e do progresso ao mundo da ocio
sidade, do crime, do vício e da margi
nalidade que era preciso controlar e
punir.
|Eg|i
^bÉÁLTERNÒS
UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO SUL .
Reitor
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Tuiskon Dick

Pró-Reitor de Extensão
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EDITORA DA UNIVERSIDADE

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CONSELHO EDITORIAL

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Fernando Zawislak
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EDUNI-SUL

Filiada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU)


e participante do Programa Interuniversitário para Distribuição do Livro (PIDL)
SUBALTERNOS

S A N D R A JAXAMY
RESAVENTO
Trabalho livre
e ordem burguesa
Editora
da Universidade
Universidade Federai dcj Rio Grande do Sul

FAPERGS
© de Sandra Jatahy Pesavento
1." edição: 1989
Diieitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Caria Luzzatto


Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos,
Anajara Carbonell Closs e Mônica Ballejo Canto
Montagem: Rubens Renato Abreu

Sandra Jatahy Pesavento


Professora no Departamento de História da UFRGS. Mestra em História
pela PUCRS. Doutora em História pela USP. Autora de República
velha gaúcha: charqueadas, frigoríficos e criadores — RS 1889-1930
(1980); História do Rio Grande do Sul (1980); RS: a economia e
o poder nos anos trinta (1980); RS: agropecuária colonial e industriali
zação (1983); A Revolução Federalista (1983); A Revolução Farrou
pilha (1985); História da indústria sul-rio-grandense (1985); Pecuária
e indústria. Formas de realização do capitalismo na sociedade gaúcha
no século XIX (1986); Burguesia gaúcha. Dominação de capital e
disciplina de trabalho. RS: 1889-1930.

P472c Pesavento, Sandra Jatahy


A emergência dos subalternos : trabalho livre e ordem
burguesa / Sandra Jatahy Pesavento. — Porto Alegre : Edi
tora da Universidade/UFRGS : FAPERGS, 1989.

1. Mão-de-obra —Trabalho —Negros - Economia es-


cravagista —Rio Grande do Sul. 2. Trabalho livre - Eco
nomia capitalista - Rio Grande do Sul. 3. Mercado de tra
balho livre —Acumulação de capital —Rio Grande do Sul.
I. Título.

CDU 331.024(-96):330.342.12(816.5)
331.011:330.342.14(816.5)
331.5.011:330.146(816.5)

Elaborada por Zaida Maria Moraes Pressler CRB-10/203

ISBN 85-7025-183-1
SUMARIO

Brasil, século XIX:


a emergência de novos tempos 7

O Rio Grande no fim do século:


a especificidade da formação
do mercado de trabalho no sul 15

Os riscos da liberdade
e a compulsão ao trabalho 36

O caminho da cidade:
discriminação e integração 61
BRASIL, SÉCULO XIX:
A EMERGÊNCIA DE NOVOS TEMPOS

Ao longo da segunda metade do século XIX, uma questão esteve


no centro das preocupações das elites brasileiras: encontrar novas for^
mas de subordinação do trabalhador ao capital frente à desagregação
da ordem escravocrata.
Processava-se no pafs a transição capitalista, implicando, por
um lado, o assentamento das bases materiais de um novo modo de
produção e, por outro, o estabelecimento de todo um aparato político-
administrativo e também ideológico de legitimação da nova ordem
burguesa emergente. A questão nuclear deste processo em curso foi
a passagem da força de trabalho escrava para a força de trabalho
assalariada, trânsito este que implicava a conformação de um mercado
de trabalho livre e a elaboração de novas formas de dominação.
Neste contexto, era preciso tanto garantir o fornecimento de
mão-de-obra num volume adequado que permitisse a continuidade da
produção e a sua lucratividade, quanto disciplinar e organizar os limites
desse novo mercado que se definiria pelo assalariamento. Parao primei
ro problema — volume de mão-de-obra — a elite dirigente nacional
atuou através de duas formas: o abolicionismo, que protelou a libertação
dos escravos ao máximo possível, e o imigrantismo, que forneceu
ao café a quantidade de braços necessária. No tocante ao segundo
problema — conformação do mercado de trabalho livre —, a classe
dominante valeu-se de instrumentos jurídicos e de outras formas de
coerção ideológica para manter as rédeas da dominação. Tratava-se
de foijar um trabalhador dócil, adequado à preservação da ordem e
garantidor do progresso material. Para tanto, a eüte dirigente legislou,
interveio, normatizou, vigiou e pautou as condutas, os papéis e os
espaços a serem desempenhados e ocupados por este novo trabalhador
que surgia. Evidentemente, este foi um processo que se impôs, mas
uão sem encontrar resistência, e gerar atos de sabotagem e outras
formas de reação por parte dos subalternos.
A identificação da emergência do trabalho livre e da conseqüente
reelaboração das relações de dominação como fulcro da transição capi
talista remete, por sua vez, à análise das condições históricas objetivas
que deram concretude àqueles processos. Neste sentido, a abolição.
a imigração e a República são temas que têm sido alvo de numerosos
estudos, antigos e recentes.^
Colocando a questão em termos da produção científica mais atua
lizada que informa a análise destes temas, o processo teria se dado
da seguinte forma: o surgimento da indústria moderna instaurou um
mecanismo de acumulação que dispensava os elementos característicos
do período anterior, responsáveis pela acumulação primitiva, tais como
a escravidão e o monopólio comercial. Com a fábrica, possibilitou-se
a reprodução de forças produtivas capitalistas. A produção mecanizada,
ou de massa, combinando o uso da máquina com o trabalho assalariado,
possibilitou o aumento da produção e da produtividade, ampliando
a margem de lucro do capital. Redefiniram-se com isso as funções
das antigas zonas coloniais, mudando o caráter das relações de domina
ção/subordinação já picsaites na fase anterior. Numa nova divisão
internacional do trabalho, caberia às antigas regiões coloniais o forneci
mento de produtos alimentícios e matérias-primas a baixo preço, bem
como a ampliação do mercado consumidor para os produtos industriali
zados. Tais redefinições na periferia acarretavam, para as economias
centrais, o rebaixamrato dos custos de reprodução da força-trabalho
e dos componentes do capital constante, a absorção da produção indus
trializada em larga escala e, conseqüentemente, a reprodução ampliada
do capital e da sua maigem de lucro.
Em termos objetivos da realidade latino-americana, este processo
implicou, a curto e médio prazos, a ruptura do pacto colonial, desdobra
do na extinção dos monopólios e na abolição do trabalho compulsório.
Entretanto, o processo em si não foi mecânico e linear, obedecendo,
pelo contrário, às contradições dos interesses sociais em jogo e à
própria diferenciação interna que as regiões coloniais haviam sofrido
na fase precedente. Se, na passagem do séc. XVDI para o séc. XIX,
o fim do monopólio e a liberaliz;ação do comércio assumiram forma
concreta com a independência das nações latino-americanas, a elimina-

Cabe citar, entre outras, as seguintes obras:


COSTA, Emilia Viotti da. A crise do escravismo e a grande imigração, São Paulo,
Brasiliense, 1981.
GERARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil, São Paulo, Brasiliense,
1986.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil.
São Paulo, Brasiliense, 1987.
QUEIRÓZ, Suely R. Reis de. A abolição da escravidão, São Paulo, Brasiliense,
1981.
SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil — J888'1891, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1985.
SALLES, Iraci Galvão. Trabalho, progresso e sociedade civilizada, São Paulo, Huci-
tec/Promemória/INL, 1986.

8
ção do trabalho servil foi um processo lento, marcado por ajustes,
ações protdatórias e decisões políticas cautelosas.
A Inglaterra foi o epicentro destas transformações capitalistas,
concentrando o excedaite econômico produzido pelas colônias e extor-
quido mediante exclusivismo comercial produzido na etapada acumula
ção primitiva de capitais. Nação pioneira na concretização histórica do
modo capitalista de produção, a Inglaterra passou a difimdirinternacio
nalmente os princípios do liberalismo econômico como forma de des
truir os monopólios, ampliar o mercado consumidor para os seusprodu
tos e obter matéria-prima a baixo preço para suas fábricas.
Por outro lado, a adoção de formar assalariadas de trabalho,
quando postas em confinnto com a produção escrava, tendem a revelar
que o trabalho livre tanto se mostra mais eficaz em termos de produtivi
dade, quanto, grosso modo, implica liberação de capitais, uma vez
que a remuneração da força-trabalho se dá após o seu consumo. Além
disso, o trabalho assalariado permite à empresa recrutar mão-de-obra
de acordo com suas necessidades, adequando a oferta à demanda da
produção. Caberia lembrar ainda que a escravidão representa um fiieio
à maior especialização do trabalho e ao incremento tecnológico, uma
vez que é "totalmente irracional ao empresário elevar o grau de mecani
zação, 'sucateando' parte do 'equipamento' representado pelo mancípio
antes que se esgote a sua 'vida útil".^
Por todos estes motivos, a proposta da Inglaterra foi eliminar
a escravidão das Antilhas, como forma de rebaixar os custos de reprodu
ção da força-trabalho e aumentara lucratividade de uma região produ
tora sob seu controle. Entretanto, a existência de um Brasil escravo
crata se contrapunha a esse processo. Por seu lado, a Inglaterra tinha
a expectativa de ampliar o mercado consumidor brasileiro, onde desde
hámuitos anos possuía interesses significativos. Neste contexto, desen
cadeou uma campanha de combate ao tráfico negreiro, forçando o
Brasil a extingui-lo.
As pressões começaram em 1808, por ocasião da transferência
*^a Corte, prosseguiram em 1810, com a assinatura dos tratados de
comércio e navegação com a Inglaterra, sendo reforçadas em 1815,
por ocasião do Congresso de Viena, e continuadas em 1827, quando
da ratificação dos tratados de 1810 e da negociação do reconhecimento
externo da independência do Brasil, mediatizada pela diplomacia britâ
nica. Entretanto, os produtores escravocratas brasileiros não tinham
intenção de desfazer-se da mão-de-obra servil, uma vez que o café
se encontrava em fase ascensional, ocupando o nível de primeiro produ
to das exportações brasileiras. Como resposta â resistência brasileira

^MELLO, João Manoel Cardoso de. Ocapitalismo tardio. 2.ed. São Paulo, Brasi-
liense. 1982. p.75.
e também como revide à revogação em 1844 dos tratados de 1810,
a Inglaterra impôs, em 1845, o Bíll Aberdeen, ato que dava o direito
aos britânicos de patrulharem os mares, apreendendo os navios negrei-
ros com sua carga. Face às ações efetivas dos ingleses, o Brasil se
viu obrigado a promulgar, em 1850, a Lei Eusébio de Queiróz, pela
qual se extinguia o tráfico negreiro.
Estava criado o problema da mão-de-obra para os produtores
brasileiros, expressando-se na imediata alta do preço dos escravos
e na sua progressiva escassez no mercado. A situação se apresentava
tanto mais grave se se atentar para o fato de que nesta época se
encontrava em ascensão uma nova área cafeicultora — a do Oeste
paulista, favorecida pela extensão das estradas de ferro para o interior,
p^da fertilidade das terras da região {as terras roxas), pela introdução
de melhorias técnicas para o beneficiamento do café, aprimorando
a sua qualidade, e pela posição monopolística ocupada pelo Brasil no
mercado mundial.
Configurado o problema da mão-de-obra, foram tentadas estraté
gias para a sua superação. A possibilidade de preservação do contin
gente interno de escravos, através da sua reprodução natural para
o mercado ou da "poupança" de mão-de-obra, "economizando" força-
trabalho, revelou-se ineficaz. Poupar mão-de-obra servil implicaria re
duzir a duração e a intensidade do trabalho, o que se revelava incompa
tível com um sistema baseado na coerção e na violência para a extração
de um sobretrabalho. Impunha, pois, que o fazendeiro abrisse mão
de um lucro imediato em nome de uma lucratividade geral para a
economia escravocrata como um todo. Por outro lado, as próprias
características de compulsão ao trabalho pela violência e as extensas
jornadas de trabalho eram responsáveis por uma alta mortalidade infan
til. Além disso, a reprodução natural não asseguraria de imediato o
fornecimento da mão-de-obra na quantidade exigida pela expansão
dos cafezais.
Uma saída possível, tentada na época, era a migração interna
de escravos das regiões em estagnação ou decadentes, ou ainda desvin
culadas da exportação, para a zona cafeicultora. Entretanto, esta estra
tégia apresentava limites para o estabelecimento de um fluxo regular
e continuado de escravos de uma região do país para outra, tendo
em vista que, em última instância, não poderia implicar a venda total
de mão-de-obra servil das demais regiões para a cafeicultura.
A utilização da força de trabalho livre nacional apresentava,
por seu turno, dificuldades ponderáveis. No que diz respeito aos traba
lhadores livres da lavoura de subsistência, praticada nas granjas ou
nos interstícios do latifúndio, estes dependiam econômica, social e
politicamente do proprietário das terras. Sua liberação para o trabalho
em outra região estava, pois, pendente da aquiescência do "coronel",
que tinha naqueles elementos os "seus homens". Quanto aos trabalha-
'lO
dores livres dos centros urbanos de então, a opção pelo trabalho na
lavoura tinha o conteúdo de uma degradação social, uma vez que
se traduzia numa tarefa realizada por escravos negros e, como tal,
pejorativa e incompatível com elementos brancos e livres... Para estes
elementos, atingidos eles também pelo estigma da escravidão, a alterna
tiva válida seria antes o trabalho esporádico, o biscate ou mesmo
a vadiagem, mas não um trabalho em tudo similar ao compulsório
escravista.
Nas duas décadas que se seguiram à extinção do tráfico, configu
rou-se a inviabilidade da permanência* da escravidão enquanto sistema,
revelando que o problema da mão-de-obra desembocava numa questão
básica, nodal, que definiu a estratégia política da elite brasileira na
segunda metade do séc. XIX: a necessidade de organizar um mercado
de trabalho livre, garantindo a continuidade da acumulação. Não se
tratava, naturalmente, da regulamentação deste mercado por leis traba
lhistas, como se daria quase um século mais tarde, mas dasua estrutu
ração primeira no contexto da transição capitalista. Na verdade, esta
estratégia de superaçãoimplicaria umaalteraçãoqualitativados padrões
de acumulação, face à adoção de novas relações produtivas.
Esta questão central da formação de um mercado de trabalho
livre assumiu duas formas de solução: o abolicionismo e oimigrantismo.
Aboüção e imigração constituíram, portanto, formas de encontrar uma
saída para o mesmo problema —a organização de um mercado de
trabalho üvre no país —, derivado da crise de mão-de-obra, ou "crise
de braços", com que se defrontou a sociedade brasileira. Apresenta
vam-se, contudo, como forças paralelas e não necessariamente interliga
das, em termos dos seus agentes sociais. Ou seja, os abolicionistas
eram imigrantistas, nem estes eram forçosamente abolicionistas.
A rigor, os promotores da imigração foram os representantes
da burguesia cafeicultora do Oeste paulista, que viram na entrada
massa dos imigrantes europeus a alternativa mais barata, mais
^pida e mais eficaz para resolver a questão da mão-de-obra. Os cafei-
cultores paulistas, porém, posidonaram-se com muita cautela em rela
ção à abolição, procurando evitar atritos com outras frações da classe
dominante nacional desvinculadas da atividade agroexportadora cafeei-
ra e/ou com menos disponibilidade de capitais para promover a vinda
de colonos europeus. Enquanto os colonos imigrantes passavam de
formas intermediárias —parceria, colonato —ao assalariamento puro,
imigrantistas difundiram ideologicamente a noção da superioridade
do trabalhador europeu como mão-de-obra "regeneradora" e"sem mácu
la"» garantidora do progresso e construtora da riqueza nacional.
Quanto aos abolicionistas, seus agentes foram, por um lado, parte
dos próprios senhores escravocratas, que, convencidos da inviabilidade
econômica da manutenção da escravidão, adotaram a estratégia da

11
emancipação gradual, como forma de prolongamento da utilização do
escravo e da retenção da mão-de-obra junto aos locais de trabalho.
Por outro lado, abolicionistas tomaram-se também as classes médias
urbanas emergentes, descompromissadas em termos objetivos com o
regime servil, que, sob o influxo da onda romântica chegada ao Brasil,
foram responsáveis pela formação de uma consciência nacional favorá
vel à emancipação dos escravos. Diferentemente dos imigrantistas,
os abolicionistas falavam em incorporar o trabalhador livre nacional,
numa atitude típica de setores com menor capital e que se dispunham
a receber no mercado trabalhadores de "segunda categoria".
Finalmente — last but not least —, cabe citar, entre os agentes
do processo de emancipação e responsáveis diretos pela aceleração
final do mesmo, os próprios escravos. A resistência escrava e o incre
mento de fiigas foram, sem dúvida alguma, elementos que pesaram
no ato de extinção final da escravidão em 1888.
Enquanto foimas paralelas de encaminhamento de uma nova reali
dade — a do mercado de trabalho livre —, tanto o abolicionismo quanto
o imigrantismo se depararam com o mesmo problema: como garantir,
sob novas condições, a sujeição do trabalhador livre ao capital. Em
última análise, tratava-se não mais de utilizar as formas de coerção
típicas da realidade escravocrata mas de encontrar novas formas de
dominação/subordinação, a partir de uma outra realidade que se criava.
Na medida em que o imigrante europeu se apresentava como
um despossuído completo, livre para vender a sua força de trabalho,
tratava-se, em primeiro lugar, de impedir o seu acesso aos meios de
produção na nova terra. Este objetivo foi assegurado de pronto com
a Lei de Terras, de 1850, pela qual se estabelecia que a compra
passava a ser a única forma de acesso à terra. Não é por acaso que
este instrumento legal foi criado no mesmo ano em que se extinguia
o tráfico negreiio. Como refere Martins, "num regime de terras livres,
o trabalho tinha de ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra
tinha de ser cativa".^ Ora, os mecanismos da Lei de Terras impediram
o livre acesso à propriedade territorial aos imigrantes, libertos e traba
lhadores nacionais. Sem dúvida alguma, a medida impunha barreiras,
convertendo a terra em mercadoria. O que, contudo, cabe registrar
nesta medida legal e nas outras que se sucederam é o fato de comporem
parte de uma estratégia para garantir as condições de sujeição do
trabalhador ao capital, cumprindo a função de organizar e disciplinar
o mercado de trabalho livre, além de marcar a intervenção do Estado
neste processo."^ Saião vejamos: a Lei Rio Branco, ou do Ventre
^MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra, São Paulo, Ciências Humanas,
1979. p.32.
melhor estudo realizado a este respeito é, sem sombra de dúvida, o de
Gebara, op.cit.

12
1871, protelava a abolição, retendo junto ao fazendeiro
uma mão-de-obra emancipada, e criava um registro dos escravos, fixan-
do-os, assim como aos libertos, na área em que se encontravam, o
que possibilitava um maior controle social sobre os mesmos. Estabelecia
ainda mecanismos consensuais para a obtenção da liberdade frente
à popiüação servil, ao criar Fundos de Emancipação e Sociedades
Emandpadoras. A Lei de Locação de Serviços de 1879 colocava as
bases para os contratos de trabalho entre os trabalhadores livres e
os fazendeiros, criando atrativos para a vinda deimigrantes ouorecruta
mento de trabalhadores nacionais; A Lei Saraiva Cotegipe, ou dos
Sexagenários, de 1885, representou mais uma medida protelatória, re
tendo a mão-de-obra junto ao local de trabalho. Todas estas medidas
legais foram acompanhadas da elaboração de posturas municipais que,
em cada localidade, tiveram o objetivo de controlar e disciplinar os
escravos e a população livre no seu acesso ao mercado de trabalho.
Nos anos 70 e particularmente nos anos 80, o incremento das fugas
acelerou este processo de controle, ao mesmo tempo em que inviabili
zou progressivamente os princípios da emancipação consensual estabe
lecidos pela lei de 1871 e apressou o desenlace final de 1888. Em
última análise, a ocorrência das fugas ou mesmo a prática de atos
de violência praticados pelos negros põem em evidência a presença
dos escravos como agentes do processo em curso.
Todo este processo, que teve o seu núcleo fundamental no eixo
Rio-São Paulo, tanto no que diz respeito às suas formas políticas
de condução —abolicionismo ou imigrantismo —quanto no que toca
às estratégias legais de conformação e controle do mercado de trabalho,
foi acompanhado da difusão de novos valores e concepções. Na transi
ção do sistema escravista para aquele baseado na força de trabalho
livre, difundia-se a ideologia do progresso, da mobilidade social e
da riqueza. O trabalho braçal, não mais encarado como atividade perti
nente aos negros e, como tal, degradado pelo estigma da escravidão,
®ra visto como enobrecedor e construtor da riqueza. Proclamava-se
o princípio da solidariedade entre as classes, tão caro à sociedade
burguesa, afirmando-se que os homens são iguais perante a lei, mas
ocultando a evidência de que são desiguais frente à distribuição da
riqueza.
Neste contexto, os conceitos de progresso e civilização, ligados
ã nova moral do trabalho, ajustados aos interesses do capital emergente,
foram associados, de forma inequívoca, à idéia da República. Oendosso
úa causa republicana pelos fazendeiros do oeste paulista representava,
na realidade, a sujeição da máquina do estado e dos mecanismos decisó-
nos de poder e de controle social àqueles que representavam o setor
úe ponta da economia brasileira e da acumulação nacional. Ideologica
mente, a proposta repubücana apresentava-se como a forma política

13
que levaria mais adiante o conjunto das transformações ocorridas nos
"novos tempos".
Fundamentalmente, a República encarnava o regime político que
melhores condições teria para reelaborar as relações de dominação/su-
bordinação e para instaurar uma ordem jurídico-institucional legjtima-
dora daquelas transfom ações.

14
o RIO GRANDE NO FIM DO SÉCULO:
A ESPECIFICIDADE DA FORMAÇÃO
DO MERCADO DE TRABALHO NO SUL

A análise de transição capitalista, da emergência do trabalhador


livre e da instauração de uma ordem burguesa, legitimando novas
formas de dominação, tem se centrado no processo ocorrido no eixo
Rio-São Paulo. Evidentemente, esta concentração espacial do enfoque
temático obedece às próprias determinações do desenvolvimento do
capitalismo no país. Ou seja,trata-se do centro dinâmico da acumulação
nacional, onde esteve e está localizado o setor de ponta da economia
brasileira. Entretanto, não é possível generalizar para todo o país
os processos ocorridos naquela região ou, por exemplo, identificar
a industrialização brasileira com a paulista. Existe, no caso, uma proble
mática que é universal — a da estruturação do capitalismo —, que
encontra especificidade de realização na América Latina e no Brasil.
Todavia, se o confronto dialético universal/específico é válido para
todo o Brasil, não podem ser eliminadas as dimensões regionais do
processo.
É preciso, contudo, esclarecer o tipo de análise que se pretende
do regional: este enquanto espaço geopoKtico determinado, deve ser
ent^dido no meio caminho entre o conjunto mais amplo do sistema
capitalista no qual se insere e as condições históricas objetivas locais.
Isto posto, cabe considerar quais são, basicamente, estas variáveis
regionais históricas que dão especificidade ao processo ocorrido no
Rio Grande do Sul.
Basicamente, o Rio Grande do Sul ingressou na transição capita
lista a partir de uma base diferenciada de São Paulo. A indústria,
enquanto forma avançada de estruturação do capitalismo, não teve
os seus pressupostos básicos desenvolvidos no sul através da atividade
agrária não-exportadora que era dominante, mas a partir da comerciali
zação dos produtos da agropecuária colonial de base imigrante.
Esta característica é, em si, limitadora quanto às disponibilidades
de um capital mercantil que pudesse, sob determinadas condições,
transformar-se em capital industriaL Em última análise, numa fase
em que o desenvolvimento capitalista se dá sob a égide do capital
mercantil, este tem, no sul, dimensões reduzidas por ser desvinculado
do processo agroexportador para o mercado intemacionaL
Enquanto núcleo básico possibilitador do investimento industrial,
o capital comercial no Rio Grande do Sul apresentou condições menos
15
propícias de acumulação. Neste contexto, o surgimento da indústria
no Rio Grande do Sul também não teve a precedê-lo uma atividade
agrária já capitalista: o setor secundário surge e se desenvolve concomi-
tantemente à paulatina transformação do campo no sentido do capita
lismo, o que, mais uma vez, limita as suas bases originais de acu
mulação.
Se tais elementos são condicionantes desde o ponto de vista
da acumulação de capital, no que toca à formação de um mercado
de trabalho livre intervém no sul algumas variáveis específicas. Parte-se
do pressuposto de que o Rio Grande do Sul apresentava uma escassez
relativa de força-trabalho neste processo de transição para o capita
lismo, se comparado com o complexo cafeeiro. Neste sentido, os dados
levantados por Cardoso para o ano de 1872, no que toca à distribuição

DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DA POPULAÇÃO


TRABALHADORA POR PROFISSÕES EM PROVÍNCIAS
SELECIONADAS - BRASIL - 1972

Muni Rio
São Pernam
Discriminação cípio Bahia Grande Brasil
Paulo buco
Neutro do Sul

Profissões não manuais


28,1 3.4 4.5 4.8 3.1 33
urbanas

Costureiras 6^ 5.1 9.0 4.8 9.4 83

Proprietários, capitalistas
1,6 0,6 1,8 1,1 0.6 03
e empresários

Operários 9,9 4,8 3.8 2,6 13 4.7

Lavradores, criadores e
10 JO 62,0 56,2 61,6 75,8 563
pescadores

Jornaleiros e criados 14,1 6,6 4.8 64 13 73

Serviços domésticos 30 JO 17.5 19.9 19/) 83 18/1

TOTAL 100/) 100,0 100,0 100/) 100/) 100.0

População economicamente
66,5 67,9 61,8 51,5 673 58/)
ativa/população total

16
percentual da população trabalhadora sobre a população total do Brasil,
fornecem indicativos para algumas considerações sobre a posição do
Rio Grande do Sul.^
Basicamente, os dados revelam um percentual próximo para as
piovfiicias do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. As
variações se dão nas distribuições dos dados. O Rio de Janeiro se
apresenta como a província que concentrava o maior índice dos chama
dos estratos médios da população, classificados como profissões não-
manuais urbanas. Isto mostra que o Rio de Janeiro era, de fato, o
maior centro urbano da época, formado "por profissionais literais, buro
cratas, homens de letras, empregados do comércio, etc. São Paulo
e Rio Grande do Sul apresentavam fiidices próximos no tocante a
este item e iguais no que diz respeito ao número de proprietários,
capitalistas e empresários.
No que diz respeito ao número de lavradores, criadores e pescado
res, o Rio Grande do Sul tinha um percentual um pouco mais alto
que São Paulo, t«ido em vista o efeito da imigração estrangeira na
província, difundindo a pequena propriedade rural. Já São Paulo e
Rio de Janeiro apresentavam fiidices maiores que o Rio Grande do
Sul no tocante àquela mão-de-obra engajada no serviço doméstico,
criadagem, serviços eventuais e operários.
Este último dado indica que o Rio Grande do Sul possuía, perante
as províncias do eixo Rio-São Paulo, uma disponibilidade menor de
força-trabalho livre frente às novas condições de mercado que se estru
turavam. Uma afirmação de tal natureza parte, necessariamente, de
uma avaliação das possibilidades de oferta de uma mão-de-obra livre,
despossuída e passível de assalaiiamento.
A rigor, ao longo do séc. XIX, haviam se constituído no Rio
Grande do Sul dois complexos econômico-sociais, que correspondiam
a distintos processos de acumulação: o complexo colonial imigrante,
abrangendo as áreas de imigração alemã e italiana — vale do Rio
dos Sinos, encosta da serra e Porto Alegre —e o complexo da pecuária
tradicional, compreendendo a campanha, a região das Missões e o
litoral maiífrimn-lagunar. Evidentemente, esta distinção não elimina
a relativainterpenetração das regiões® ou o fato de que na serraexistis
sem estâncias de criação de gado.
Com relação ao complexo colonial imigrante, cate referir a parti
cularidade da imigração estrangeira no Rio Grande do Sul ter sido

CAREHDSO, Fernando Henrique. Dos governos militares a Prudente-Campos


Sales. In: O Brasil Republicano, São Paulo, DIFEL, 1975. v.l. t.3. pJ9. (Histdria
Geral da Civilização Brasileira)
®Como, por exonplo, o artesanato do couro da zona colonial que utilizava
matéria-prima da região da campanha.

17
marcada pela pequena propriedade rural produtora de gêneros de subsis
tência agropecuários. Configurava-se assim uma situação diferenciada
de São Paulo, onde o imigrante viera como trabalhador livre para
as fazendas de café, faciUtando-se com isso a sua mobilidade e o
êxodo campo-cidade. Neste sentido, o complexo colonial tanto propi
ciou uma acumulação de capital através da comercialização de gêneros
agropecuários quanto um progressivo empobrecimento do pequeno pro
dutor rural. Para a ocorrência deste último fenômeno, foi decisiva
a ação monopólica-monopsônica do comerciante rural. Da mesma for
ma, o paulatino esgotamento do solo, devido tanto ao contínuo parcela
mento da terra quanto à não renovação de técnicas agrícolas, ocasiona
ram uma redução do rendimento do minifúndio. A estes fatores deve
ser acrescentado também o progressivo endividamento do colono com
o estado, tanto no pagamento da terra adquirida quanto no pagamento
do imposto territorial, instituído a partir de 1903.
O conjunto destes fatores contribuiu para überar mão-de-obra
do latifúndio colonial, mas num processo lento, que se estendeu ao
longo de décadas. Por outro lado, nem sempre a mão-de-obra excedente
demandou a cidade em busca de assalariamento nas indústrias nascen
tes. Parte significativa migrou para novas áreas rurais, dilatando a
ãx>ntetra agrícola do estado e reafirmando o apego do colono à proprie
dade da terra, sonho acalentado pelos imigrantes estrangeiros.
Cabe referir ainda que mesmo aqueles colonos que passaram a
trabalhar nas indústrias da zona colonial, nos centros urbanos de Caxias
do Sul e São Leopoldo, por exemplo, não se constituíam numa mão-de-
obra totalmente despossuída. Muitas vezes o assalariamento era sazo
nal, verificando-se nas épocas de safra — como na indústria do vinho
e da banha — com o que o colono não se desvinculava totalmente
da terra. O assalariamento na indústria era, no caso, mais um reforço
familiar ao insuficiente rendimento do lote coloniaL Logo, o imigrante
estrangeiro do complexo colonial constituía-se, em tese, num trabalha
dor livre, mas que percorreu uma demorada trajetória de engajamento
no mercado de trabalho em formação.
Esta constatação não invalida, no entanto, o fato de que algumas
indústrias nascentes buscassem na zona colonial os seus empregados,
tal como se tem notícia do estaleiro e fundição de Josep Becker
em Porto Alegre, na década de 50 do século passado.' No caso, a
tendência era recrutar trabalhadores entre elementos da mesma etnia
e que dispusessem de habilitação profissional, fator importante para
o estágio manufatureiro-artesanal das empresas que surgiam na época.

'dELHAES-GÜNTHER, Dietrich mod. IndustriaUskrun^ in Südbrasilien. Kôln, Boh-


lau, 1973. p.166-7.

18
Quanto ao complexo da pecuária tradicional, a grande propriedade
ganadeira sofreu, ao longo das duas últimas décadas do séc, XIX
e no decorrer das primeiras décadas do séc. XX, um lento processo
de transformação capitalista. As mudanças ocorridas, tais como o ceica-
mento dos campos, o coniinamento do gado, o refinamento do rebanho,
a criação de unidades zootécnicas e a formação de pastagens forragei-
ras, foram melhorias introduzidas muito lentamente para que se acele
rasse uma significativa liberação de mão-de-obra do campo para a
cidade. Além disso, os trabalhadores da estância —peões, posteiros,
agregados, capatazes, etc. —eram fundamentais no contexto da situação
militar-fronteiriça enj&entada pelo Rio Grande do Sul nos séc. XVIII
e XIX. Os numerosos conflitos impunham um esquema de população
em armas, onde cada estancieiro, com os "seus homens", garantia
a defesa da terra, do gado e da "nacionalidade", a serviço do governo
e de si próprio.
Em suma, os trabalhadores da estância, além da sua atividade
na produção, desempenhavam uma função político-müitar de importân
cia, da qual não podiam ser dispensados fadlmente pelo proprietário
das terras. Na verdade, na região da pecuária tradicional foi lenta
a mercantilização do trabalho, vigorando na prática formas de remune
ração não-monetárias, tais como casa, comida e cabeças de gado, ao
lado de pagamento monetário não sistemático. Tais elementos configu
ram uma situação na qual o trabalhador, embora não proprietário dos
meios de produção, não se encontrava privado dos meios de subsistên
cia. Não era,pois, um despossuído completo.
A conclusão a que se chega é que também o complexo da pecuária
tradicional não se encontrava com um excedente de mão-de-obra para
integrar o mercado de trabalho em formação. A análise das disponibili
dades de oferta de mão-de-obra no sul, contudo, não ficaria completa
sem a inclusão do contingente de negros escravos no seu processo
de transformação em trabalhadores livres. Como instituição presente
na sociedade brasileira, a escravidão também difundiu-se no Rio Grande
do Sul.^ Negros cativos acompanharam as tropas de lagunistas que,
na passagem do séc. XVII para o séc. XVin, desceram ao sul para
prear gado e vendê-lo para a região mineradora. Os relatos de viajantes
e cronistas, como Saint Hilaire, Robert Avé Lallemant e Nicolau Dreys,
que percorreram o Rio Grande no séc. XIX, relatam a presença de
escravos nas estâncias, na fiinção de peões, trabalhadores na roça

Para o estudo da escravidão no Rio Grande do Sul, consultan


CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional,
2.ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
MAESTRI, Mario. O escravo no Rio Grande do Sul; a charqueada e a gênese
do escravismo gaúcho. Porto xMegre, EDUCS/EST, 1984.
• O escravo gaúcho; resistência e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 1984.

19
ou piestando serviços domésticos. Mesmo na região da imigração alemã,
onde, por determinação legal,^ o uso de escravos era vedado, têm-se
notícias de transgressão destas determinações em zonas agrícolas, com
a compra de negros pelos imigrantes.^"
Todavia, em todos estes casos o escravo não se constituía na
força de trabalho por excelência de nenhuma destas atividades, âs
quais poderiam ser acrescidas as tarefas de curtimento de couros,
de biscates urbanos ou serviços artesanais diversos realizados pelos
negros de ganho para seus senhores nas cidades.'' É somente onde
a economia se toma mercantUizada que o escravismo passa a ser a
relação de produção dominante: a lavoura do trigo praticada pelos
açorianos e a charqueada. Como a agricultura tritícola teve, por divers^
razões,'^ duração relativamente efêmera, foi na atividade saladeirU
que a escravaria sulina concentrou-se. Na charqueada, responsável
pelo principal produto de exportação gaúcho, o grosso das atividades
era realizado pelos escravos, embora se registre, ao longo do séc.
XIX, um número crescente de tarefas desempenhadas por homenslivres.
Embora concentrados nas charqueadas, os negros chegaram a
representar, em 1814, 29% da população total do Rio Grande do
Sul, num montante de 20.611 escravos para 70.656 habitantes.'^ Dados
de 1817/1818 para o país indicam que oscativos representavam 5,05%
da população (1.930.000 escravos para uma população total de
3.817.900 habitantes).''' Por ocasião do recenseamento realizado no
Império em 1876, no país havia um escravo para 5,5 habitantes de
condição livre, sendo que no Rio Grande do Sul estaproporção atingia
a cifra de um escravo para cada 5,4 elementos livres.'^ Ou seja, o
referência é feita às leis imperiais nf 226, de 30 de maio de ®
514, de 24 de outubro de 1848, e à lei provincial n.° 183, de 18 de outubro
de 1859. Apud: BAKOS, Margaret Marchiori. O imigrante europeu e o trabalho
escravo no Rio Grande do SuL Veritas, Porto Alegre, XXVIIIi^^^)» dez. 1983.
^^ivro de Escritura de Escravos do 3° Distrito de São Leopoldo. Secretaria
da Câmara Municipal da Cidade de São Leopoldo. 1873. (Museu Histórico
Visconde de São Leopoldo)
^^HÔRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850; descrição da província
do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional. S.I., D.C.Luzzatto EdJEDUNI-SUL,
1986. p.78.
12
Para uma análise da questão, consultar CARDOSO, Capitalismo.;, op.cit.
^^CARDOSO. Capitalismo.; op.cit. p.81-2.
^^CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil —1880-1888. Rio
de Janeiro, .Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975. p.344.
^^Relatório de Trabalhos Estatísticos apresentado ao limo. e Exmo. Sr. Conse
lheiro Dr. José Bento da Cunha Figueiredo, Ministro e Secretário de Estado
dos Negócios do Império pelo Diretor Geral Conselheiro Manoel Francisco
Correia em 31 de dezembro de 1876. Rio de Janeiro, Tip. Hipóiito José Pinto,
1877. p^.

20
Rio Grande do Sul acompanhava a média nacional na relação entre
escravos e livres no contingente populacional.
Mesmo que os negros se concentrassem quase que só numa dnica
atividade —que era o setor de ponta das exportações gaúchas —,
tais percentuais configuram uma sociedade fundamentalmente escravo
crata. Ainda que neste cômputo geral deva ser levada em conta a
população da zona colonial, onde os negroseram escassos,o escravismo
era significativo no sul.
No que diz respeito ao número de escravos existentes no Rio
Grande do Sul com relação aos cativos das demais provfiicias do país,
tem-se os dados estatísticos apontando para um 10! lugar em 1864
e 6: lugar em 1874 e 1884.^® Ou seja, justamente no peiíodo ocupado
*^®sagregação da ordem escravocrata —segunda metade do séc.
^ o Rio Grande do Sul cresceu em suaposição deestado escravo
crata. Isto, contudo, é um dado relativo, pois não quer dizer que
c Rio Grande tenha feito fluir em seu favor o tráfico inteiprovincial
ou tenha desenvolvido intenso contrabando de negros: bastaria que
outros estados — do norte e do nordeste, por exemplo —tivessem
praticamente zerado os seus contingentes de cativos ao longo destes
unos para que a sua posição no conjunto do país se alterasse.
Entretanto, a população escrava do Rio Grande do Sul mais
que duplicou entre os anos de 1864 e 1874, passando de 40.000
escravos para 98.450.^' Como entender tal fenômeno?
A extinção do tráfico negreiro em 1850, estabelecendo a gradual
transição para o trabalho livre, teve o efeito de iniciar o caminho
para tomar o escravo antieconômico, mercadoria agora escassa e rara.
Esta determinação atingiu o Rio Grande do Sul no momento em que
o charque encontrava condições de expansão no mercado nacional,
00 que diz respeito ao incremento da demanda do produto e também
uo que toca à oferta da mercadoria pelos concorrentes.
Pelo lado da demanda, a expansão do café no centro-sul do
país proporcionava crescente procura do charque, alimento consumido
pela escravatia. Pelo lado da oferta do produto, o tratado de 1851
assinalou a derrota das forças do chefe blanco uruguaio Oribe, aliado
úo caudilho argentino Rosas, pelas forças do chefe uruguaio colorado
Artigas, aliado do Brasil e de Urquiza, governador de Entre-Rios.
Estetratado implicou a desorganização daatividade saladeiril uruguaia,
estabelecendo que o gado daquele país não pagaria impostos nas alfân
degas brasileiras, enquanto que o charque platino seria onerado com
taxas para entrar no país. Com isso, podiam beneficiar-se as charquea-

^^CONRAD, op.cit., p346.


^'CONRAD, op.ciu

21
das gaúchas» com a possibilidade de obtenção de matéria-prima a baixo
preço e com a eliminação dos obstáculos que se antepunham à entrada
dos concorrentes no mercado brasfleiro.
Se, contudo, havia estímulos à expansão do charque frente à
colocação da produção no mercado interno ou frente à aquisição de
gado, no tocante à obtenção da mão-de-obra a oferta de trabalhadores
escravos tendeu a se restringir. A Lei Eusébio de Queiróz, de 1850,
tanto proibia o tráfico quando passou a considerar livres todos os
afiicanos entrados no país por contrabando.
A situação tomou-se mais grave quando, na década de 60, restabe-
leceu-se a concorrência platina no fomecimento de charque para o
mercado interno. Os saladeros platinos passaram a experimentar uma
série de transformações no sentido de se tomarem verdadeiras empresas
capitalistas, tais como a generalização das relações assalariadas, o
uso da máquina a v^or, o incremento cada vez maior de especialização
do trabalho, a diversificação crescente da produção, mudanças estas
conjugadas com um melhor aparelhamento dos portos e a expansão
das vias férreas. Em suma, a charqueada sulina voltava a se ver prejudi
cada pela ascensão dos concorrentes no abastecimento do mercado
extemo justamente no momento em que escasseava a mão-de-obra.
Quais foram, no caso, as estratégias sulinas de superação da
"crise de braços" que se avizinhava para a principal atividade econô
mica do Rio Grande? Note-se que a crise afetava um setor do complexo
da pecuária tradicional —(na verdade, o seu setor de ponta —, pois
na zona colonial, particularmente após 1870, processava-se a ascensão
da agropecuária exportadora para os mercados do centro do país, ressal
tando o sucesso da colonização baseada na pequena propriedade imi
grante.
Como saída, a possibilidade de poupar mão-de-obra negra, através
da promoção de uma "reprodução natural planejada" ou de "viveiros
de escravos", teria poucas chances de vingar. Não se tem notícias
de iniciativas desta ordem. Além do escravismo ser, por lógica própria
de funcionamento, um sistema que se baseava na ampla coerção tísica
e na intensificação do trabalho para a obtenção de maior rendimento,
o tipo de atividade desenvolvida nacharqueada erademolde a desgastar
rapidamente a mão-^de-obra. O saladeiro operava sazonalmente, sendo
que, na época da safta, as jornadas chegavam a durar mais de 16
horas. ^ ^
Uma possibilidade efetiva de obtenção de força-trabalho escrava
era o contrabando, processo este que, contudo, apresentava riscos
e, naturalmente, tinha custo elevado.i^ Contudo, apesar destes obstâcu-
^^Signiticativo é o caso do um processo ocorrido na Subdelegacia de Polícia
de São Leopoldo, em 1861, e que chegou a ser enviado para solução ao
vice-presidente da província na época. Patrício Correia da Câmara. Todo
22
los, quer parecer que o tráfico ilegal de escravos foi praticado nas
costas do Rio Grande —particularmente entre as localidades de Traman-
daf e Estreito —, evitando, naturalmente, o porto de Rio Grande.
O contrabando era acobertado pelas populações da região e tinha
como promotores elementos importantes da sociedade local. Do litoral,
os afidcanos demandavam os caminhos desertos da serra e depois eram
distribuídos por alguns pontos da campanha. Naturalmente, não há
dados estatísticos e oficiais sobre o comércio ilícito, sendo preciso
rastrear sua existência através de processos e inquéritos policiais. Uma
correspondência recebida pelo chefe de Polícia da província em 1858,
a respeito de uma investigação sobre contrabando na região acima
referida, dava conta de notícia de um próximo desembarque de negros
na região entre o rio Tramandaí e o rio Araranguá, correspondendo
ao litoral norte do Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina.
Paralelamente à entrada ilícita de escravos, deve ser mencionada
a migração interna de força-trabalho escrava, ou o tráfico interprovincial.
Tomando-se cada vez mais difTcü, arriscado e oneroso o ingresso
no país de escravos afiicanos, passou a ocorrer uma circulação interna
de mão-de-obra disponível para as áreas que tinham maior necessidade
e que podiam pagar mais pela força-trabalho servil. Tem-se notícias
de que o Rio Grande do Sul importou escravos de outras regiões
para suprir a demanda de sua economia charqueadora, e os relatórios
dos presidentes da província fornecem informações a este respeito.
Particularmente o Relatório de 1864^° indica que entre os anos de
1859 e 1863 teria havido maior entrada de escravos de outras regiões

o processo teve como origem uma denúncia contra o fazendeiro capitão José
Joaquim de Paula, que havia submetido ã escravidão um negro de nome Manoel,
que havia sido contrabandeado do Copgo para o Brasil, Desembarcado em
Tramandaí e levado para o mato para ser vendido, Manoel havia fugido para
buscar asilo na Santa Casa. Encontrado pelo fazendeiro, este dissuadiu-o do
intento, convencendo-o a trabalhar para si por um prazo de 10 anos, após
o que lhe daria liberdade. O trato fora firmado num papel, com assinaturas
forjadas e com uma data que o fazendeiro alterava de acordo com o seu
interesse, para continuar se valendo do negro Manoel como escravo. O incidente,
pitoresco e cheio de detalhes de fraudes, acusações e depoimentos controversos
das diferentes pessoas envolvidas, é válido para caracterizar a ocorrência do
contrabando de escravos nas costas sulinas, bem como para evidenciar estratégias
para superação de escassez de mão-de-obra negra, mesmo através de flagrante
contravenção à lei (contrabando e sujeição de pessoa considerada livre ã escra
vidão).
POLÍCIA. Subdelegacia de Polícia. Maço 11.São Leopoldo, 1861. Arquive Históri
co do Estado do Rio Grande do SuL (manuscrito)
^^POLÍCIA. Chefatura de Polícia. 1858. Maço 14. Correspondência recebida
pelo Chefe de Polícia da Província. Tráfico ilegal de escravos, (manuscrito)
20
^^Relatório do Presidente da Província Esperidião Eloy de Ramos Pimentd.
Porto Alegre, Correio do Sul, 1864. p,47.

23
do país para o Rio Grande do Sul do que evasão de negros da provúicia
sulina para as demais, Fernando Henrique Cardoso, em seu já clássico
estudo sobre a questão, explica o fato pelo incremento das exportações
de dl arque neste perfodo.^^ A explicação, embora verdadeira no que
toca ao aumeato das exportações, deve ser atendida à luz do quadro
geral da concoixéncia platina no mercado interno brasileiro. Aumento
das exportações não implica aumento do preço do charque nos mercados
centrais mas, antes, revela que, para compensar um decréscimo no
valor das vendas, o Rio Grande do Sul procurava vender mais para
continuar ganhando o mesmo...^
O contrabando e o tráfico inteiprovincial eram, no caso, as duas
formas de aumento da população escrava na província até a década
de 70. Entretanto, no cômputo geral do tráfico interprovindal, o
Rio Grande do Sul mais vendeu do que comprou escravos, principal
mente a partir da década de 70, configurando a partir de então uma
verdadeira "crise de braços" na província. Entenda-se que se tratava
de uma crise para as charqueadas, tanto no que diz respeito a negros
escravos quanto a brancos livres que para aquela atividade pudessem
ser dirigidos.
Já no ano de 1857, o presidmte da província queixava-se de
que neste ano a evasão de negros superava a entrada de cativos,
afetando com isso a anecadação provincial, com a diminuição da co
brança da taxa de importação sobre escravos.^ Conforme os dados
apresentados por Conrad,^ entre 1874 e 1884 o Rio Grande do Sul
foi a província do país que apresentou maior perda de escravos através
do comércio interprovincial, num total de 14.302 negros, praticamente
a metade dos cativos perdidos pelo conjunto das oito províncias do
nordeste.
O Rio Grande do Sul perdeu mais escravos que as demais provín
cias neste tráfico interno, mas não foi a província que sofreu o maior
declínio em relação ao contingente de cativos que possuía. Na década
de 1874 a 1884 o percentual de decréscimo foi da ordem de 38,9%.

^^CARDOSO. Capitalismo»^ op.cií. p,208.


^^Consultar, para comprovação desta assertiva, os dados de tonelagem, valor
e preço do quilo do charque nos anos de 1859 a 1864 em; SILVA, Austriclínio
G. da & GUERRA, Aldrovando R. Exportação do charque no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, Departamento de Estatística da Secretaria de Administração,
1959. p.7. Houve, neste período, um aumento do preço do charque, mas o
aumento do valor das exportações se deveu mais ao crescimento do volume
das exportações. Um mercado muito competitivo não permitia que o Rio Grande
vendesse o seu produto a um preço muito alto.
^^Relatório do Vice-Presidente da Província Patrício Correia da Câmara. 1857.
Porto Alegre, Tip. do Mercantil, 1857. p.69.
^^CONRAD, op.cit.. pJ51.

24
índice alto, sem dúvida, mas que não desfigurou o contorno escravo
crata da provfiicia.
Havia um setor da economia gaúcha que não podia dispensar
a força-trabalho servil, mas que também não tinha recursos para reter
internamente aquele contingente que estava sendo vendido para fora
do estado por elementos não comprometidos com a atividade saladeiril.
Em suma, os charqueadores gaúchos não podiam competir com os
cafeicultores do centio-sul do país no pagamento de altos preços pelos
escravos sulinos e de outras regiões do país.
A partir da década de 70, a charqueada sulina tinha de enfrentar
a conconéncia platina, a crise de mão-de-obra servil e ainda os efeitos
do centralismo monárquico, que, atendendo aos interesses fiscais da
Coroa, aumentava os impostos sobre determinados insumos necessários
ao charque, tal como o sal. Frente a um mercado competitivo, com
um elevado custo de produção, a economia charqueadora se descapitali
zava. Por outro lado, tal como no restante do país, assinalava-se a
resistência escrava contra o regime servil. Fugas, quilombos e crimes
perpetrados pelos negros revelavam que o sistema se desagregava por
dentro.
Já no ano de 1847, por exemplo, a Delegacia de Polícia de
Rio Pardo dava conta do quilombo existente no município. Enfrentando
forças da cavalaria e de vaqueanos do local, arregimentados pelo capi-
tão-de-mato, os negros haviam resistido à força armada.^ Sabe-se
que este quilombo era bastante antigo^^ e que há tempos as autoridades
locais buscavam extingui-lo o que, contudo, só foi possível na expedi
ção organizada em 1847.
As fugas de escravos eram uma constante nos jornais na época,
evidenciando a contestação dos cativos ao regime servil. Nas décadas

Pelos interrogatórios feitos aos negros apreendidos no quilombo, pode-se


saber que os escravos, uma vez fugidos, iam para o quilombo por sua livre
e espontânea vontade, ou aliciados por outro fugitivo. As fugas eram por
vezes bastante antigas, como relatou uma escrava, dizendo andar pelo mato
há 15 anos. Uma das depoentes, a escrava Josefa, relatou que, fugida de sua
dona em Porto Alegre, fora levada para o quilombo por outro escravo evadido,
o negro Ramão. Os depoimentos revelam que a existência do quilombo não
era recente, funcionando como um ponto de atração para os fugitivos. Os
depoimentos revelaram ainda que o quilombo atacado possuía cerca de 20
escravos, entre homens e mulheres, e que nas proximidades havia outros qui
lombos.
POLÍCIA. Delegacia de Polícia do Rio Pardo. Maço 20. 1847.
^%a correspondência expedida pelo Delgado de Polícia de Rio Pardo, encon
tram-se instruções para destruição do referido quilombo e outros mais que
existiam na região já em 1842. (Delegacia de Polícia de Rio Pardo. Maço
20. Correspondência expedida por Joaquim José de Oliveira Lima, Delegado.
1842.) (manuscr.)

25
de 70 e 80, os anúncios de jomais^^ procuravam detalhar as descrições
para facilitar a captura e ofereciam recompensa para incentivar a cola
boração da comunidade no s^resamento dos cativos,^^
A meta do negro fugido era geralmente o centro urbano, onde
mais facilmente passaria despercebido e onde encontrava maiores chan
ces de colocação, ou então o quilombo, refúgio e núcleo de resistência
dos cativos. Pode-se, contudo, perceber que a alternativa do quilombo
decresceu ao longo do séc. XIX, ao mesmo tempo que se incrementava
a demanda dos centros urbanos pelos fugidos. Há, contudo, registro
de escravos que fugiam para o Estado Oriental (Uruguai), onde se
generalizava o trabalho livre e assalariado e no qual, evidentemente,
os negros procuravam engajar^se, mesmo que fosse nas atividades sala-
deiris.^^
Da mesma forma que com relação às fugas, os jornais da época
são pródigos em relatar crimes de escravos contra seus senhores. Neste
sentido, a documentação referente à Delegacia de Polícia dos diferentes
municípios trazem testemunhos dos inúmeros crimes praticados por
negros, tais como o assassinato dos senhores ou de membros da família
destes, destacando-se neste caso o infanticídio. O infanticídio era prati
cado tanto em relação aos filhos do patrão quanto aos próprios filhos
do escravo, tendo o pai ou a mãe em questão preferido matar as
crianças a vê-las submetidas à escravidão.^^ A reação dos negros se

^^São numerosas as noticias de fugas de escravos em quase todos os periódicos


da época, tais como A Reforma e O Rio-grandense, de Porto Alegre; O Diário
de Pelotas e O Mercantil, de Pelotas; O Canabarro, de Santana do Livramento.
exemplo de uma destas notícias é bem significativo: "Pede-se muita atenção.
Fugiu desta cidade um escravo de nome Cândido, crioulo, estatura regular,
um pouco cheio de corpo, pescoço grosso, e tem três cicatrizes de talhos
do lado direito do mesmo pescoço (por este sinal só pode ser reconhecido),
potilha circulando o queixo, mas fina e falhada; tem o branco dos olhos muito
amarelos, pés grandes, fala com desembaraço e humildade; regula de 30 e
tantos a 40 anos. Levou alguma roupa, e pode variar na vestimenta, mas levou
ponche de pano, chapéu preto, paletó escuro e usado, e calças pretas. Intitula-se
ora como pedreiro, e ora padeiro. Consta que diz chamar-se Antônio Cândido,
e ser livre; e que traz um lenço amarrado à cabeça com as pontas caindo
para o lado direito, para envolver as cicatrizes do pescoço neste mesmo lado.
E veloz ao correr, e é preciso segurá-lo bem, e não haver descuido sobre
ele, que fará todo o esforço de escapar-se. Quem o agarrar e trouxer a esta
cidade a seu sr. na rua do Arvoredo n. 103 será bem gratificado*. A REFORMA.
Porto Al^re, 1° jan. 1870.
^^Delegacia de Polícia de Rio Grande. Maço 17. Relação dos escravos fugidos.
1849. (manuscrito)
^^Consultar, a propôsito> a documentação referente aos processos criminais
existente no Arquivo Histórico do Estado e que consta dos Relatórios da
Polícia e da Casa de Correção. No caso do infanticídio, é significativo o
exemplo da escrava Luduvina, "parda, escrava de José Joaquim Machado, conde-

26
manifestava ainda em tentativas de suicídio, como recurso extremo
de libertação da condição de cativos.^ ^
Revoltas de escravos também aconteceram ao longo do séc. XIX,
contestando as duras condições do trabalho servil. É o caso, por exem
plo, do levante ocorrido em 1870 na charqueada do major Joaquim
Rasgado, em Pelotas, uma das maiores da província na época. A pedido
do proprietário, os cabeças da sublevação haviam sido ''moderadamente
castigados, como para prevenir-se a repetição de futuras cenas''
Todos os exemplos citados de resistência negra à escravidão
não são específicos do Rio Grande do Sul, mas, no decorrer da desinte
gração da ordem escravocrata que ocorria no país a partir da segunda
metade do século passado, contribuem para acentuar aquele fator desta
cado como relevante na formação do mercado de trabalho no sul:
a relativa escassez de oferta de mão-de-obra. Neste contexto, é com
preensível a atitude da bancada gaúcha no Congresso Nacional, votando
contra a Lei do Ventre Livre, de 1871,^^ fato que mostra, além do
mais, que os representantes gaúchos não alcançavam o significado
daquela disposição legal: inaugurar o processo de extinção da escravi
dão no Brasil e organizar o mercado de trabalho livre, preservando
e disciplinando a mão-de-obra existente.
A alternativa da utilização da força de trabalho livre nacional
existente no Rio Grande do Sul era, como se viu, limitada. O aproveita
mento dos trabalhadores da estância encontrava dificuldades pelo pró
prio funcionamento da mesma enquanto unidade econômica e célula-
polftico-militar. Quanto à população livre nacional que habitava as
cidades, o estigma da escravidão operava como um fieio ao seu desloca
mento para uma atividade identificada com o trabalho servil. Com
relação aos colonos imigrantes, é dispensável considerá-los comofoiça-
trabalho passível de ocupar o lugar do negro nas charqueadas, uma
vez que vinham para serem pequenos proprietários.
nada à prisão perpétua em sessão do júri desta capital de 19 de outubro
de 1854 por ter assassinado a três filhos menores e tentar assassinar a um
outro maior, no Passo Grande, 3.® distrito dos Anjos d'Aldeia" (Casa de Correção
de Porto Alegre. Cadeia de Justiça. Minuta de Reclamação. 1875. Maço 01).
O caso mais freqüente, contudo, era aquele do crime praticado contra os
filhos do proprietário. É o caso da escrava Eva, "condenada à prisão perpétua
em sessão do júri desta capital de 14 de maio de 1851, por crime de morte
praticado contra três crianças, filhos de sua senhora moça" (Casa de Correção
de Porto Alegre, Cadeia de Justiça. Minuta de Reclamação. 1875).
^Weja-se o exemplo do pardo Júlio, escravo de José de Oliveira Portugal,
que tentara se suicidar com uma pistola, ficando gravemente ferido. (Delegacia
de Polícia de Pelotas. Maço 10. Correspondência expedida. 1870.) (manuscrito)
^^Ddegacia de Polícia de Pelotas. Correspondência expedida. 1870. Maço 10.
(manuscrito)
^^CONRAD, op.cit., p.116.

27
Neste contexto, confiima-se a caracterização de um mercado de
trabalho de relativa escassez na oferta de mão-de-obra, situação agrava
da pelo fato de que a debilidade da acumulação da classe dominante
local —estandeiros e charqueadores, responsáveis por uma economia
subsidiária à economia central exportadora —não permitira a importa
ção em massa de força-trabalho livre por ocasião da "crise de braços"
que marcou o fim da escravidão.
Como foi dito antes, os imigrantes que chegavam não vinham
para suprir as necessidades de força-trabalho do complexo da pecuária
tradicional mas sim para trabalharem para si, como minifiindiários.
A imigração estrangeira para o Rio Grande começou sob o patrocínio
do governo central e visava a atender aos interesses deste —ocupação
do território, abertura de estradas, formação de núcleos de subsistência.
Contudo, a partir do Ato Adicional de 1834, foi transferida às provín
cias a competência em matéria de colonização. Mais tarde, a partir
de 1874, o governo central voltou a responsabilizar-se pelo processo
imigratório. O que cabe enfatizar, entretanto, é que nem as iniciativas
do governo central nem as das províncias — nas quais o presidente
era alguém nomeado por se afinar com a política da Corte —responde
ram às necessidades da charqueada gaüdia.
A importação de trabalhadores livres estrangeiros em larga escala,
tal como fizera a cafeicultura para suprir as suas necessidades de
mão-de-obra, demandava recursos que o charque, principal produto
de exportação sulino, não proporcionava ao Rio GÍ^de. Tratava-se
de um Rio Grande pecuarista em crise face a um São Paulo cafeicultor
em ascensão; de uma economia subsidiária fiente ao setor de ponta
da economia agroexportadora nacional; de um produto que enfrentava
concorroites no mercado interno brasileiro face a uma situação de
quase monopólio do mercado mundial do café.
Ao que se sabe, alguns charqueadores tentaram, sem sucesso,
importar imigrantes bascos para trabalhar nos saladeiros, tal como
ocorria no Prata, tendo também procurado organizar um sistema de
trabalho misto, no qual se pagava ao escravo uma retribuição em
dinheiro por toda a tarefa excedente a um quantum estipulado.^ A
medida, necessariamente, tenderia a fracassar, uma vez que onerava
os custos, pois o proprietário, além de pagar adiantado o trabalho
do escravo no momento da sua compra, gastava um adicional por
tarefas excedentes.
Por outro lado, em outubro de 1887, o jornal O Canabarro.
de Santana do Livramento, noticiava que a "Sociedade Mercantil se
oferecia para trazer da Europa trabalhadores colonos agricultores para
substituir o elemento escravo, que é uma sombra, pelo braço livre.
^'^CARDOSO. CapitaUsmo.^ oç.cMl. p.228-9.

28
que é uma aurora",^^ instruindo também os fazendeiros sobie as vanta
gens que deveriam dar aos colonos através do sistema de parceria.
A firma se dispunha a cumprir todas as encomendas de importação
de colonos, máquinas ou sementes do exterior. Como se sabe que
a conversão do latifúndio pecuarista em grande propriedade agrícola
cultivada por colonos estrangeiros não se processou, deve-se convir
que os fazendeiros ou não tiveram interesse ou não tiveram recursos.
Em suma, a debilidade da acumulação local não favorecia nem
a promoção da vinda em massa de trabalhadores livres para suprir
a falta de negros, nem permitia que os charqueadores disputassem
com os cafeicultores a mão-de-obra cativa na sua migração interna
de uma região para outra. Pelo contrário, como foi visto, no cômputo
geral o Rio Grande do Sul mais exportou que importou mão-de-obra
escrava no contexto do tráfico interprovindal. E, se assim o fez,
foi pela incapacidade dos recursos locais de reter internamente a mão-
de-obra escrava não envolvida na charqueada. Desta forma, a reduzida
disponibilidade de recursos e a escassez de íbrça-trabalho no estado
limitaram as alternativas para superação da crise de mão-de-obra e
deram uma especificidade toda própria ao processo de transição da
força de trabalho escrava para a força de trabalho livre no Rio Grande.
Esta especificidade não isola o Rio Grande do Sul do processo
geral que ocorria no país e que, no decorrer das décadas de 70 e
80, evidenciava a impraticabilidade da permanência da escravidãocomo
base do sistema produtivo. Tal como no restante do país, a questão
essencial era como preservar mão-de-obra, garantindo a sua sujeição
face à inviabilidade do escravismo se manter, e como regulamentar
a constituição de um mercado de trabalho livre.
Nesta conjuntura é que se pode analisar o fenômeno ocorrido
na década de 80 no Rio Grande do SuL De 60.136 escravos existentes
na província em 1884, passaram a existir 8.442 em 1887.^ O declínio
da população escrava, de junho de 1885 a maio de 1887 foi de 69%.^^
Este decréscimo não pode ser atribuído aos efeitos da Lei dos Sexage
nários de 1885. Conforme relatório do Ministério da Agricultura, de
14 de maio de 1888,^^ os libertos com mais de 60 anos no Rio Grande
do Sul, registrados em 1886 e 1887, haviam sido em número de apenas
seis.
A redução progressiva da percentagem de cativos sobre a popula
ção total da província —24% em 1860, 15% em 1872, 8% em 1883

CANABARRO. Santana do Livramento, 6 out. 1987. p.l.


^^CONRAD, op.cit., p.346.
^"^CONRAD, op.cit.. p353.
^^Ibidem, p.349.

29
e 0,8% em 1887^^ —pode ser atribuída em parte ao já referido tráfico
interprovindal e, sobretudo, à libertação lenta e gradual que passou
a processar-se no Rio Grande do SuL Como estratégia política, medida
de efeito moral e recurso econômico para reter e controlar a mão-de-
obra, o Rio Grande do Sul adotou a fórmula da abolição antecipada
com a cláusula de prestação de serviços."^ A fórmula baseava-se no
artigo 4: da Lei Rio Branco, que estabelecia que o negro escravo,
para ganhar a liberdade, poderia alugar seu trabalho a uma terceira
pessoa por um período que, contudo, não deveria ultrapassar o limite
de sete anos.
O movimento abolicionista no Rio Grande do Sul, que culminou
com grandes festas de libertação em Pelotas e em Porto Alegre em
1884, estabelecia que os negros, deixando de ser escravos, permane
ceriam junto a seus senhores, prestando serviços por um período que
não excederia a dnco anos. Desaparecia o escravo, surgindo em seu
lugar o contratado. Na realidade, preservava-se a mão-de-obra num
processo em que se transfigurava a posição escravocrataem "emancipa-
cionista" e "libertadora". Como refere Pimentel, a propósito do movi
mento abolicionista:
Nossos charqueadores eram feitos barões, homenageados pela coroa pelo
altruísmo de darem, como alguns deram, em um só dia, alforria a 200
escravos.^^
Poderia ser acrescentado no relato: "...que continuaram traba
lhando na charqueada do barão..."
A fórmula, sem dúvida, tanto atendia aos reclamos das tendências
românticas e inflamadas de elementos urbanos descompromissados com
a escravidão e subitamente sensíveis a condenar a instituição, acompa
nhando o movimento geral do país, quanto respondia as condições
de escassez de mão-de-obra e baixa capitalização da província. Na
prática, os libertos — agora "contratados" —continuavam prestando
serviços no mesmo local de trabalho, com o que se mantinha a mão-de-
obra junto à produção. Além disso, a medida permitia tanto combinar
a retenção, por contrato, da mão-de-obra indispensável ao trabalho,
quanto optar pelalibertação completa —sem ônus, ou alforria—daquela

^^Apud BAKOS. Margaret Marchiori. RS: escravismo e abolição. Porto Alegre,


Mercado Aberto, 1982. p.18.
"^^Para uma análise detalhada do processo abolicionista no sul consultar CARDO
SO. Capitalismo... op.cit. e BAKOS, RS..., op.cit.
"^^PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos. Porto Alegre, Livraria Conti
nente, s.d. p.76.

30
que se revelasse imprestável —idosa ou danosa à produção por reinci
dência em atos de sabotagem.
Certas noticias, veiculadas na imprensa da capital e do interior,
revelam o verdadeiro caráter do movimento abolicionista no Rio Grande
do Sul, que combinava a ação de sociedades emancipadoras, que paga
vam pela liberdade do cativo, com a emancipação com prestação de
serviços.
Nas páginas do Cruzeiro do Sul, de Bagé, na sua edição de
3 de abril de 1884, relatava-se o seguinte:
A civiiizadora idéia da redenção dos cativos, vencendo as maiores dificul
dades, levanta-se com a impetuosidade de um tufão, de norte a sul do
Império, conquistando as mais legítimas e sinceras adesões. [...] Bagé
tem patenteado o seu espírito altamente abolicionista nas inúmeras cartas
de liberdade generosamente concedidas, sendo certo que a estatística
escrava tem diminuído consideravelmente Hoje que temos um nascen
te, mas prometedor Clube Abolicionista, em maior escala serão concedidas
manumissões. É preciso porém, que o Clube Abolicionista não se afaste
de certa norma de conduta, deixando-se levar por condescendências que
podem prejudicar os interesses da causa que representa [,,,] Entendemos
que um escravo, de bom e morigerado, não pode valer mais que 500$000
rs. Não compreendemos como certos senhores pedem por um escravo
que dizem ser preguiçoso e de maus costumes, liOOOSOOO rs. É isso
um abuso que não se conta. O Clube Abolicionista deve ter muito em
vista estas circunstâncias, não se sujeitado a exigências desordenadas,
que vão onerar os fundos da associação.

Apoiados na Lei de 1871, haviam-se criado tantos fundos de


emancipação como sociedades emancipadoras, que pagavam ao senhor
o pieço que o mesmo estipulava para libertar seu cativo. Todavia,
pieservava-se a identificação do negro como mercadoria, uma vez que,
no caso da libertação, deveria trazer ao seu senhor uma indenização.
O mesmo princípio estava presente na fórmula de 1884 da emancipação
como um preço estipulado a ser pago pela liberdade.
A Lei Áurea, de 1888, veio interromper a execução do prazo
estipulado de cinco anos para a prestação de serviços, motivando
uma série de consultas aos poderes públicos por parte de interessados
para esclarecimentos. O grande número de consultas neste sentido
levou inclusive à publicação de editais esclarecedores, como se pode
ver em O Canabarro, de Santana do Livramento:

Neste caso, O Mercantil, de Porto Alegre, noticiava em sua edição de 2


de abril de 1884, p.2, que até aquela data os charqueadores Francisco Antunes
Gomes da Costa dera liberdade sem ônus algum a 12 escravos e fizera contrato
com 60; o sr. Jacinto Antônio Lopez com 47, montando a 150 o número de
contratados.
'^^Apud TABORDA, Tarcisio A.C. Aabolição da escravatura em Bagé —281911884.
Bagé, Museu Dom Diogo de Souza, FAT-FUNBA, 1984. p.5.

31
o dr. Manoel Raimundo da Fonseca, Juiz de Órfãos do Termo de Livra
mento, etc—, faz saber a quem interessar possa, que, suscitando-se algumas
dúvidas neste termo acerca da lei de 13 de maio do corrente ano, que
aboliu a escravidão no Império, que por força da mesma lei cessaram
todas as obrigações de serviços dos ex-escravos e ingênuos: portanto
já não hâ mais escravos, nem contratados, nem libertos condicionais,
nem iqgênuos; todos entrarão no gozo da liberdade,^
Entre as camadas urbanas, o movimento abolicionista tomara gran
de força. Descompromissadas com a escravidão no que dizia respeito
à sua utilização como força de trabalho numa atividade econômica
de produção para o mercado, dispensavam contratados antes mesmo
da Lei Áurea, aproveitando para isso festas ou datas natalfcias, como
se pode ver na notícia extraída do jornal de cunho liberal O Canabarro,
a qual refere um incidente desta natureza, acontecido em Dom Pedrito
em dezembro de 1887:
o nosso amigo sr. capitão Manoel Cassio J. da Silveira em regozijo
pelo aniversário de sua interessante filhinha Orfila, desistiu dos serviços
do preto Vicente, seu contratado. Este louvável procedimento de nosso
amigo merece ser imitado.^^
Não podem ser exagerados, contudo, os efeitos da abolição anteci
pada de 1884. A dar crédito às notícias da imprensa da época, a
escravidão teria findado no Rio Grande do Sul em 1884. Entretanto,
às vésperas da Lei Áurea, A Federação publicava, em 9 de dezembro
de 1887, a ocorrência de um levante de escravos em Pelotas, no
estabelecimento saladeirU de Junius Brutus Cássio de Almeida, provo
cando um conflito entre abolicionistas e "amigos do industrial O
incidente teve termo com a intervenção do barão de Santa Tecla,
ficando resolvido que os negros seriam libertados mediante cláusulas
de prestação de serviços por três anos, compromisso este que teria
a sua observância fiscalizada pelos abolicionistas. O incidente é sinto
mático tanto para demonstrar a participação dos escravos como grupo
ativo de pressão no processo emancipacionista quanto para evidenciar
que, apesar do movimento ocorrido em 1884, nem todos os chaiquea-
dores a ele haviam aderido, persistindo a escravidão em muitos estabele
cimentos. Aliás, pelos dados existentes, em maio de 1887 ainda se
registravam 8.842 escravos no Rio Grande do Sul."^^
Ao dar apoio à fórmula abolicionista de 1884, conservadores
e libertos, em tese, não divergiram quanto à cláusula de prestação
de serviços, pela qual o negro pagava com trabalho a concessão da

CANABARRO. Santana do Livramento, 21 jun. 1988. p.2.


CANABARRO. Santana do Livramento, 15 dez. 1887. p.l.
''^^OS ESCRAVOS em Pelotas. A Federação, Porto Alegre, 9 dez. 1887. p.l.
4'7coNRAD, op.cit., p.353.

32
liberdade. Quanto mais progredia a década de 80 e se inviabilizava
a manutenção do regime servil, mais se acentuava o endosso da causa
abolicionista. Era vantajoso que os partidos endossassem esta causa,
uma vez que economicamente a escravidão estava condenada. O objeti
vo essencial do movimento era protelar a emancipação total. Paralela
mente às medidas abolicionistas, eram postas em prática medidas para
controlar o mercado de trabalho.
Posição diferenciada apresentaram os republicanos no sul. Endos
sando o ideário positivista, o Partido Republicano Rio-Giandense(PRR)
repudiou a cláusula da prestação de serviços como indenização paga
pelo escravo ao seu senhor pela liberdade obtida. Comte havia dado
uma explicação científica para a escravidão, entendendo que havia
desempenhado uma
[•••] função indispensável no progresso dacivilização, posto que substituiu
o canibalismo e o sacrifício humano e havia feito cumprir a disciplina
do trabalho regular e sustentado a homens que de outro lado teriam
sido governados pela paixão ou desejos imediatos.
O raciocínio comteano, contudo, se aceitava a escravidão como
elemento da "ordem natural das coisas" nas sociedades primitivas,
condenava-a como prática adotada nas sociedades avançadas. Comte
entendia o processo histórico como uma evolução natural de estágios,
na qual a escravidão fimcionava como um entrave para que a humani
dade pudesse atingir a etapa das sociedades científicas, baseadas na
indústria moderna e regidas pelos princípios da ciência.
No Rio Grande do Sul, as bases do programa dos candidatos
republicanos, definidas no congresso do partido de 1884, apresentavam
uma condenação à escravidão, considerada "melindroso assunto" e
"instituição bárbara"."^^ Em relação à proposta de abolição com presta
ção de serviços, que acabou vigorando «n 1884, o líder republicano
Júlio de Castilhos assim se referia em 16 de outubro de 1884 pelas
páginas do jornal A Federação: "não tem direito à indenização aquele
que, cedendo aos impulsos do dever, restitui o homem ao domínio
de si mesmo".^® Relevando o tom demagógico da oratória, importa
acentuar a preocupação republicana com o liberto e com sua integração
à sociedade, o que vem explicar muito mais o endosso de uma emanci
pação sem ressarcimento aos senhores de escravos do que uma possível
postura "humanista".

^^DAVIS, David Brian, El problema de Ia esclavitud en Ia cultura ocidental. Buenos


Aires, Paidós, 1968. p.27.
^^FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua época. Porto Alegre, Globo
1967. p.27.
^^A LIBERDADE vitoriosa. AFederação. Porto Alegre, 16 ago. 1984. p.l.
33
Em 4 de outubro de 1897, novamente através de A Federação,
Castilhos traçava considerações sobre as medidas que deveriam ser
tomadas pelo governo com relação ao ex-escravo:
o problema é complexo, dissèmo-lo: e ao vir tomar parte na comunhão
brasfleira a grande massa de libertos, faz-se mister cercá-los de cuidados
e garantias, a fim de que a liberdade consagrada na lei não continue
a ser iludida pela opressão sistematizada dos chefes práticos da indústria^
O grande perigo nesta questão está em que se prolongue o regime da
exploração do trabalhador. De um lado, a situação do proletariado liberto
em face das novas relações que o vão ligar ã comunhão; de outro,
a organização da indústria sob novas bases de harmonia com a sua
destinação social,, reclamam daqueles a quem incumbe a futura reorganiza
ção da nossa pátria a mais profunda meditação.^^
Toda esta preocupação, enquadrada no espírito comteano da^in-
coiporação do proletariado à sociedade moderna", revela o interesse
na constituição de um mercado de trabalho livre e adequado às exigên
cias da indústria.
Neste contexto, considera-se que os republicanos tiveram partici
pação no processo abolicionista a partir de uma proposta burguesa
diferenciada daquela do abolicionismo monárquico de 1884: enquanto
que para estes a emancipação gradual garantia o retardamento da extin
ção do regime servil e a preservação da força trabalho existente, para
os republicanos a libertação dos escravos engrossaria o conting^te
de população necessária para atividades econômicas pertinentes a uma
ordem uibano-industrial. Em suma, para os charqueadores do Império
interessava reter força-trabalho junto à tradicional empresa saladeiril
da província. Já os republicanos, que tinham entre as propostas de
seu partido o desenvolvimento global do Rio Grande, a partir dadiversi
ficação de sua economia, contemplando neste intento as industrias,
encaravam a questão sob outro prisma.
As distintas posturas, contudo, não eliminavam ou divergiam
de uma questão central: a de que se encontrava em curso um processo
de formação de um mercado de trabalho livre e, fosse qual fosse
o destino do liberto, era precisocontrolá-lo,cerceá-lo na sua mobilidade
e vigiá-lo na sua nova condição.
Retoma-se, portanto, àquela questão inicial: a da escassez relativa
na oferta de mão-de-obra frente à desintegração da ordem escravocrata.
Remontando ao processo aqui analisado, viu-se que de 1864 a 1874
o Rio Grande do Sul reagiu à restrição da oferta de negros escravos
através do contrabando e do tráfico interprovindal. De 1874 emdiante.

^^ORGANIZEMOS a vitória. A Federação, Porto Alegre, 4 out. 1987. p.l.


^^Para uma análise mais detalhada da proposta do PRR quanto à indústria
e operariado, consultar: PESAVENTO, Sandra Jatahy. A burguesia gaúcha; domina
ção do capital e disciplina do trabalho. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988.

34
a população escrava apresentou um declínio, em virtude da província
sulina se tomar grande fornecedora de negros para a região do café,
impossibilitada ela própria de competir no mercado face os preços
oferecidos pelos escravos por parte dos cafeicultores do centro-sul.
Na década de 80, o Rio Grande do Sul enveredou pela estratégia
da "abolição antecipada", com "cláusula de prestação de serviços",
como alternativa à aquisição de força-trabalho livre no volume adequa
do e em condições de custo compatíveis com os recursos locais. Era
preciso reter e fixar junto aos locais de trabalho uma mão-de-obra
que garantisse a continuidade da produção, bem como controlar a
ação dos libertos no seu acesso ao mercado de trabalho, através de
Uma série de procedimentos que implicavam a reelaboraçãodas relações
de dominação.

35
os RISCOS DA LIBERDADE
E A COMPULSÃO AO TRABALHO

No sistema escravista, a compulsão ao trabalho se dá pelo empre


go da coerção física e da eficácia dos meios de vigüância e repressão.
Dá margem, portanto, a um brutal processo de dominação/subordinação
que se baseia na violência para obter a sujeição do trabalhador direto
c a geração de um sobretrabalho. A desagregação do escravismo desarti
culou estas formas de coerção, levando as elites dominantes a repensa
rem os meios de compelir os subalternos ao trabalho.
No capitalismo, o que impele o indivíduo ao trabalho é a coerção
econômica, pois o mercado se depara com despossuídos, que são obriga
dos a vender sua própria força-trabalho para garantir sua subsistên
cia. Todavia, entre este enunciado de ordem econômica e as condições
históricas objetivas que dão margem a que ele aconteça há um longo
caminho a percorrer.
Era preciso encontrar, como diz Gebara, uma "alternativa ao
chicote",e esta foi a preocupação fundamental das elites no processo
de emergência de um mercado de trabalho livre que ocorreu no Brasil,
a partir da segunda metade do séc. XIX. Um passo fora dado pela
sucessão deleis e/ou fórmulas abolicionistas adotadas, ao nível nacional
e provincial, cujo sentido, como já foi dito, era inequívoco: retardar
a extinção da escravatura, reter a mão-de-obra junto aos locais de
trabalho e controlar o acesso do trabalhador livre ao mercado que
se formava.
Entretanto, tais procedimentos foram acompanhados por outros,
tanto instrumentais-legais e coercitivos como consensuais e ideológi
cos. Tratava-se, portanto, não só de providenciar e agilizar os meios
de acentuar a vigilância e a repressão sobre os trabalhadores através
da polícia, da justiça e dos códigos de posturas municipais como
também de difundir ideologicamente uma nova ética de valorização
do trabalho e condenação da vagabundagem. Deve-seconcordar, neste
sentido, com Kowarick, quando diz que a emergência do trabalhador
livre na sociedade brasileira tanto se deve a práticas de coerção e
violência quanto a uma transformação cultural.^ E também com Cha-

^^GEBARA, op.cit., p.59.


^^OWARICK, op.cit., p.lO.

36
lhoub, quando afirma que estas são práticas e mecanismos de controle
social da classe trabalhadora típicos de uma sociedade capitalista.^^
É preciso, portanto, desvendar os mecanismos de controle social
que presidiram ao laborioso parto do capitalismo no Brasil, particu
larmente em uma de suas províncias, o Rio Grande do Sul.
Ora, ao longo do tempo, as diferentes formas de resistência escra
va sempre haviam se constituído num alerta para as elites dominantes.
Quilombos, levantes, fugas, crimes e sabotagens no trabalho obrigavam
u uma reiteração contínua das práticas de vigilância e repressão para
conter os escravos e obrigá-los a trabalhar. Neste sentido, o chicote
do feitor, o pelourinho em praça pública e a forca estavam constante-
niente a relembrar, de forma clara, o que esperava os negros que
violassem as regras do cativeiro, que eram a submissão incondicional
c o trabalho duro. Que estas regras eram violadas com freqüência
o provam os inúmeros processos e registros de ocorrências nas delega
cias de polícia e casas de correção, onde os incidentes com escravos
aparecem com freqüência.^^ Não é por acaso que o primeiro a ser
executado no largo da forca em Porto Alegre tenha sido o preto
Joaquim, por haver assassinado a sua senhora, o segundo o mulato
Balduíno^^ e o último o pardo Florentino, que matara seu senhor.^®
Entretanto, nem só através de práticas coercitivas puras, como
a prisão, os castigos ou a condenação à morte se obtinha o controle
sobre a massa escrava. O viajante alemão Hõrmeyer, que visitou o
Rio Grande do Sul em 1850, registrou suas impressões sobre os meca
nismos de controle social sobre os escravos:
Os meios de conter uma tão numerosa massa de escravos quase perfazem
um terço da população, oferece-os a Igreja Católica. Os muitos dias
de festa, as procissões e fogos de artifício, ligados a isso, fazem dos
mesmos, sem que o entendam muito daquilo, os mais fervorosos adeptos

^^CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim, São Paulo, Brasiliense, 1986.


p.28.
^^O Mapa das Prisões de 1866, referente àDel^acia de Rio Grande, éeloqüente,
indicando a presença significativa de escravos entre os detentos, aprisionados
por motivo de furto, embriaguez ou desordem pelas autoridades policiais ou
então a mando do seu senhor (Del^acia de Polícia de Rio Grande. Maço
17. Correspondência. Mapa das Prisões. 1866). Da mesma forma, na relação
dos presos da Delegacia de Pelotas, registraní-se também entre eles escravos
que respondem por crimes praticados (Delegacia de Polícia de Pelotas. Maço
10. Correspondência Expedida. 1870).
CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre.
Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1983. p.24.
SANHUDO, Aiy Veiga. Porto Alegre, crônicas da minha cidade. Porto Aleere
DAC/SEC/IEL, 1979. p.24, ^ '

37
da Igreja unicamente salvadora e raras vezes o cortejo de um dos Santos
consta de menos de 2000 escravos de todas as matizes, a tagarelar e
a gritar.^^
O visitante alemão detectou, com argúcia, a força da religião
como veículo ideológico da acomodação e ajuste dos indivíduos às
posições que ocupam na sociedade, A Irmandade do Rosário, que
funcionava desde 1876, era aquela que agregava escravos e negros
livres. Todavia, a adesão dos negros às festividades religiosas se fazia
através de práticas próprias, num sincretismo que combinava os ritos
da Igreja Católica com outros nem tão bem aceitos pela comunidade.
Tome-se o caso dos batuques ou candomblés, onde os negros se reuniam
para dançar e cantar e ensaiavam os cocumbis (congadas ou moçambi-
ques). Por ocasião do Natal, nas festas de Nossa Senhora do Rosário,
os negros iam dançar e sapatear no corpo da igreja sede da Irmandade.
As antigas crônicas da cidade de Porto Alegre narram que tais práticas
foram proibidas, sendo os negros expulsos da igreja pelo vigário José
Inácio dos Santos Pereira.^ Ou seja, o controle social exercido através
da religião definia limites para as práticas, que precisavam ser preserva
das, e todo tipo de extravazamento tinha que ser coibido.
Mas, ao longo do séc. XIX, outras formas de coerção, mais
ou menos explícitas, foram postas cm prática pela elite dirigente através
dos códigos de posturas municipais. De uma certa forma, estas posturas
complementavam, ao nível municipal, o que a legislação previaao nível
provincial e nacional: preservar, fiscalizar e reter a mão-de-obra servil
que progressivamente ia se libertando da escravidão. Nas cidades se
concentravam as maiores oportunidades de trabalho. Os centros urbanos
da época, desde muito cedo, caracterizavam-se por serem os núcleos
aglutinadores do comércio e das atividades artesanais, realizadas majo-
ritariamente pelos escravos. Como refere Cardoso, para obter maior
rendimento do trabalho escravo nas cidades, "a sociedade escravocrata
transformou em artesão o escravo que até então era força bruta".^^
Por outro lado, o crescimento destes centros urbanos, ao longo do
séc. XIX, o aumento da sua população e a multiplicidade de serviços
e necessidades daí decorrentes fez com que se tomassem um foco
de atração tanto para os negros fugidos quanto para os alforriados.
Este se tomava, portanto, um espaço preferencial de regulamentação
para as elites dominantes ao longo de todo o processo de formação
do mercado de trabalho livre.
Tome-se o exemplo de Porto Alegre, capital da província que
se ampliara e modernizara ao longo do séc. XIX, desde que se tomara

59hÔRMEYER. op.cit., p.79.


^^CORUJA, op.cit., p.27.
^^CARDOSO. O capitalismo.., op.cit. p.l63.

38
o escoadouro dos produtos da região colonial alemã e, posteriormente,
itaüana.
Já em 1844, o regulamento interino do Registro das Posturas
Municipais de Porto Alegre estabelecia, em seu artigo 6!:
Os que admitiron, ou consentirem que pernoitem dentro de seus quartos
escravos sem licença da Câmara, que permitirem que nos mesmos quartos
hajam ajuntamentos de escravos, ou vadios, que converteram a sua habita
ção em casa de alcova, e outros semelhantes, de receptores, e os que
venderem bebidas espirituosas serão multados em 10$000 e terão 8 dias
de cadeia e na reincidência o dobro da multa e pena.^
Tais dispositivos indicam claramente a existência de fugas de
escravos e a possibilidade do seu acoitamento por membros da comuni
dade. Da mesma forma, há a ligação do escravo fugido com a figura
do vadio e a concepção de que o escravo que se evadia furtava-se
a seu dever e a sua razão de sen o trabalho. A fuga, ato condenável
em si, tanto por violar o diieito de propriedade do senhor sobre o
escravo quanto por negar a situação de trabalho forçado, resultava
num outro ato também condenável: a ociosidade. O vadio era aquele
que se recusava a ingressar no mundo do trabalho, segundo a concepção
ideologizada da época. Evidentemente, tal visão não levava em conta
que, numa sociedade baseada no trabalho servil, todas as tarefas braçais
tendiam a ser desempenhadas pelos escravos. Como refere Kowarick,^^
a mão-de-obra nacional livre, não sendo a força-trabalho por excelência
que movia a produção, teria sido relegada a um segundo plano, funcio
nando como uma mão-de-obra acessória naquelas atividades que não
dispunham de recursos para adquirirescravos. Neste sentido, configura-
vam-se como desclassificados no sistema os que preferiam o trabalho
ocasional e irregular, o biscate, o crime e o vício ao trabalho disci
plinado.
Outro indicativo explícito no documento é o que associa ao
escravo fugido a prática do roubo para sobreviver, prática igualmente
condenável. Em suma, a preocupação básica era inculcar na população
mecanismos de controle social sobre os escravos fugidos, incentivando
a delação, punindo os coniventes^ e gratificando os capitães-do-mato.^

^^Livro de Registros de Posturas Municipais de 1829 até 1888, Regulamento


Interino de 26 de abril de 1844. (manuscrito)
63cf. KOWARICK, op.cit.
^"^Como refere o artigo 15 do Livro de Registro de Posturas Municipais de
Porto Alegre: ''Os fiscais ficam autorizados a mandar pôr em custódia ã sua
ordem até a satisfação da multa, os infratores de Posturas que forem desconhe
cidos, suspeitos de fuga, ou escravos e assim mais, a mandâ-los soltar quando
no artigo violado não haja pena de prisão".
^^Livro de Registro das Posturas Municipais de 1829 até 1888. cap.40. (ma
nuscrito)

39
Tentava-se com isso controlar a movimentação das pessoas no
espaço, ficando as estalagens também obrigadas a registrarem devida
mente todos os dados possíveis a respeito dos seus hóspedes —moradia
fixa, nome, profissão, local de procedência e destino, etc. —, registro
este que semanalmente seria apresentado à autoridade policial.^^
O controle dos escravos fugidos era uma necessidade da ordem
instituída, uma vez que nos centros urbanos se concentravam, como
se viu, negros de ganho ou de aluguel, negros forros e escravos domésti
cos, no meio dos quais poderia se diluir ou passar despercebido aquele
que se evadisse. No intento de um controle mais eficaz, as posturas
municipais determinavam que:
Todo o escravo ou escrava que for encontrado de noite, depois do
toque do sino da Câmara, sem bilhete do seu senhor ou da pessoa
a cujo cargo estiver, será conduzido h casa do mesmo para se verificar
se vai a seu mandado, e quando não se verifique, será recolhido à
prisão até que o mesmo senhor solicite a sua soltura.^^
A multiplicidade de tarefas impostas pela vida urbana obrigava
as autoridades a regulamentá-las, principalmente porque nelas escravos
e libertos ocupavam um lugar de destaque. Tome-se o caso do comércio
ambulante. Para estabelecer uma melhor vigilância sobre esta prática,
as posturas municipais delimitavam o espaço de sua atuação às praças,
incorrendo em penalidade os livres ou escravos que praticassem contra
venção. Neste último caso, a multa seria paga pelo senhor ou pela
pessoa a cujo cargo estivesse o escravo.^
A venda de mercadorias nas ruas era uma tarefa por excelência
dos escravos, e para melhor vigiá-los proibia-se a circulação dos mes
mos de forma indiscriminada por ruas e becos, estabelecendo-se pontos
fixos de oferta de artigos ao público.
Apesar de tais determinações, as infrações persistiam, demons
trando que, com o crescimento da urbe, tomava-se difícil conter a
movimentação dos subalternos da maneira desejada. Veja-se o exemplo
das notícias de jornal na década de 70, envolvendo a ação das quitandei-
ras em Porto Alegre:
Pedimos à Câmara Municipal que mande o seu fiscal do mercado lançar
suas vistas para as quitandeiras que estabelecem seus negócios fora do
recinto do mercado, no passeio que vai do edifício ao chafariz da Praça
Conde (fEu [...]. Se há uma postura no código da Câmara para as

^^Livro de Registro das Posturas Municipais de 1829 até 1888. Artigo 2f.
(manuscrito)
^^Posturas policiais da Câmara Municipal da cidade de Porto Alegre, aprovadas
pelo Conselho Geral da Província. Porto Alegre, Tip. Comércio, 1847. cap.35.
p.9.
^^Ibidera, cap.15, p.5.

40
quitandeiras que se aboletam nas esquinas das ruas, no mesmo caso está
para aquelas que, desprezando um enorme edifício apropriado para este
gênero especial de negócio, vão se estender em linha de ativadores no
lugar onde todos os dias de manhã há imenso trânsito de pessoas que
vão ao mercado.^
O caso das quitandeiras negras ainda se airastaria pelos jornais
por mais tempo e as notícias denunciavam ampla contravenção das
posturas municipais: "a primeira por trancarem o trânsito e a segunda
por venderem fora do mercado, antes das horas marcadas no dito
código".^® A reclamação referia-se ao artigo 71 do Código de Posturas
Municipais da capital, que determinava que os gêneros alimentícios,
como legumes, frutas, aves, etc., poderiam ser vendidos no mercado
e no horário das 8h em diante no verão e 9h no inverno; nas ruas,
poderiam ser vendidos desde que não houvesse paradas nas esquinas,
ruas ou praças. Ou seja, na década de 70, as disposições da década
de 40 haviam retirado dos vendedores ambulantes a parada nas praças,
reservando como único local fixo para esta venda o mercado.
As determinações legais, contudo, teimavam em ser desobede
cidas, apesar das reclamações dos jornais. Meses mais tarde, voltaria
o jornal Mercantil a exigir uma ação mais ejScaz da mumcipalidade:
Perguntamos à ilustre edilidade se o mercado transferiu-se para a rua
da Igreja, esquina da de Bragança? O motivo desta nossa pergunta é
porque diariamente vemos ali não menos de 5 ou 6 pretas com os seus
competentes tabuleiros, colocados no passeio e estorvando o trânsito
público.^^
Em suma, o comércio ambulante foi um ponto importante de
regulamentação do trabalho. Pela sua característica, como atividade
de biscate, marginal a um mercado de trabalho mais definido (nas
lojas, nas manufaturas), possuía certa característica de independência
que, contudo, era preciso controlar por outras formas.
Uma destas formas seria obrigar os mascates que percorriam a
cidade com seu comércio ambulante a pagarem impostos. Mesmo neste
caso, os ambulantes se furtavam a este pagamento aos cofres munici
pais, obrigando a poUcia a ir no seu encalço.Na década de 80,
novos impostos recairiam sobre os vendedores ambulantes, respondendo
o governo municipal nesta sua ação aos interesses do comércio varejis
ta, que se considerava prejudicado pela concorrência dos mascates.

^^MERCANTIL. Porto Alegre, 7 fev. 1878. p.2.


"^^ERCANTIL. Porto Alegre, 8 fev. 1878. p.2.
"^ImERCANTIL. Porto Alegre, 6 abr. 1878. p.2.
"^^MERCANTIL. Porto Alegre, 11 jul. 1878. p.2.
^^Correspondência Passiva. 1887-1889. Livro n.41. Código de Postura. 7 dez.
1887. (manuscrito)

41
As formas de trabalho não regular, portanto, precisavam ser con
troladas, coibidas, reguladas. Quitandeiios e mascates eram exemplos
típicos destas atividades que ocupavam a mão-de-obra nacional, livre
ou liberta, ou mesmo os escravos de ganho, que possuíam maior mobili
dade. Os cambistas e vendedores de bilhetes eram outro caso a merecer
a atenção das autoridades. Tratava-se, como diziam os jornais:
[...] de indivíduos que abandonam ou antes não procuram o trabalho,
têm um lucro imenso na venda de bilhetes e convém, portanto, tributá-los
pesadamente, a ver se assim, em vez de percorrerem as ruas e estradas,
incomodando a todo mundo, procuram o trabalho, tornando-se úteis a
si e à sociedade.^"^
Era preciso compelir tais elementos ao trabalho regular, que garan
tisse maior controle sobre eles. Pedia-se à Assembléia Provincial que
tributasse tais elementos, uma vez que o imposto determinado pela
Câmara era baixo. Esta criara uma postura a este respeito, proibindo
especular com a venda de bilhetes de entrada, estabelecendo multas
para a contravenção.^^
Deve ser registrado o fato de que a posição do governo era
tentar enquadrar e, portanto, delimitar aquelas atividades à maigem
de um mercado de trabalho livre no seu sentido mais estrito, no qual
se pressupunha a pres^ça de um patrão e a de empregados a ele
subordinados. As atividades que se juntavam a este esquema eram
as mais difíceis de controlar. Daí o empenho fiscalizador e normativo,
compelindo inclusive a um cadastramento. Neste sentido, a Chefatura
de Polícia avisava pelos jornais de Porto Alegre, em 1878, que todas
as pessoas que viviam da caridade pública, esmolando nas ruas da
cidade, deviam comparecer ao órgão para serem matriculadas, provando
o seu estado de indigênda. Os não cadastrados e que não apresentassem
o competente cartão de registro seriam considerados vagabundos.
O Mercantil relatava, entre as notícias publicadas em agosto de 1878,
o recolhimento ao quartel do corpo policial de indivíduo que andava
esmolando sem a licença respectiva.^
Estas notícias eram freqüentes na imprensa e o sentido das medi
das anunciadas é, mais uma vez, inequívoco: era preciso ter sob controle
justamente aquelas tarefas que escapavam a uma fiscalização mais
rígida e que eram preferencialmaite exercidas pelos libertos.
A prática do cadastramento de mendigos deve ter sido abandonada
com a República. Constatando o aumento da mendicância na capital.

'74meRCANTIL. Porto Alegre, 29 dez. 1883. p.l.


'^^MERCANTIL. Porto Alegre, 7 abr. 1884. p.2.
'^^MERCANTIL. Porto Alegre, 25 maio 1878. p.l.
'7'7mERCANTIL. Porto Alegre, 21 ago. 1878. p.l.

42
o Jornal do Comércio, em janeiro de 1897, lamentava o fato dos
que esmolavam por invalidez não trazerem um distintivo qualquer,
conferido pelo poder competente, a fim de não serem confundidos com
os vagabundos, refratários ao trabalho e que exploravam a caridade
alheia. O periódico indicava como caminho certo para solucionar este
problema da mendicidade dar asilo para os reconhecidamente inválidos
e trabalho para os que apresentassem condições. Na opinião do articu
lista, a mendicidade era fruto da caridade mal entendida, que dava
margem a que parte significativa da população optasse pela esmola
e não pelo trabalho:
Somos nós os únicos causantes de esbarrarmos hoje em cada esquina
com um indivíduo a estender-nos a mão. Dois terços dos indigentes que
infestam a nossa cidade não passam de verdadeiros exploradores e muitos
deles gatunos, verdadeiros larápios manhosos.^^
Em suma, era preciso coibir a preguiça e os meios "fáceis"
de ganhar a vida, compelindo ao trabalho, de preferência regular.
Aos imprestáveis para o trabalho e classificados como os não produtivos
poderia ser aplicada a caridade pública ou o confinamento em asilos.
As atividades do trabalho regular e produtivo, honrado e dignificado
pela nova ética, passavam a ser, contudo, também regulamentadas.
Por exemplo, as posturas municipais desde muito cedo determi
navam que os proprietários de boticas, tabemas, botequins e bodegas
não poderiam ter escravos como empregados nestes estabelecimentos,
salvo se seus donosestivessem presentes."^^ Da mesma forma, era proibi
do que houvesse escravos parados, jogando ou conversando, comendo,
tangendo ou bailando nas referidas tabemas, botequins e bodegas.^
Deve ser notado, no caso, a proibição do uso do escravo em recintos
"condenáveis" —o botequim —ou na realização de tarefas das quais
poderiam resultar conseqüências imprevistas, com danos a terceiros.
Concebido como vicioso por natureza, o escravo deveria ser afas
tado de atividades de trabalho ou lazer naqueles locais que pudesse
favorecer a perturbação da ordem. Da mesma forma, como elemento
perigoso, necessitando de permanente vigilância, que decorrências não
haveria do seu trabalho numa botica? Que tipos de vinganças, desaten-
ções ou atos premeditados não resultariam da manipulação de drogas
e remédios voididos ao público?
Do controle do trabalho a censura das elites dominantes se esten
dia, como se viu, aos demais aspectos da vida dos escravos e libertos.
Uma das atividades urbanas na qual mais se via o trabalho dos negros.

70
'°JORNAL DO COMÉRCIO. Porto Alegre, 8 jan. 1897. p.l.
^^Posturas policiais da Câmara... op.cit. cap.20, p.6.
^®Ibidem, cap.21, p.6.

43
escravos e alforriados ou libertos com cláusula de prestação de serviço
era a do carregamento de mercadorias. Como tarefa na qual se concen
trava grande parte destes elementos, era preciso regulamentá-la, para
impedir a perturbação da ordem. As posturas policiais de Porto Alegre
proibiam que os cangueiros, libertos ou escravos, ou outros quaisquer
carregadores, assoviassem, fizessem algazarra ou motim nas ruas e
praças da cidade. Da mesma forma, eram vedados os toques de tabulei
ros (provavelmente a música ou batucada promovidas pelos negros),
além do chiar dos carros e carretas.Não se tratava, em absoluto,
de produzir uma cidade silenciosa, mas de conter a massa, refrear
impulsos, moldar comportamentos, gerar hábitos e garantir a submissão
dos subalternos. Circunscrevendo ou limitando as práticas de lazer
que propiciassem tropelias ou dessem margem a maior liberdade de
ação, as posturas policiais chegavam a proibir o jogo do entrado dentro
do município, apreendendo laranjas de cheiro e outros artefatos do
gênero. Para os escravos que se dedicassem a tais práticas, as penas
eram mais violentas que para os elementos livres.
À medida que, ao longo do séc. XIX, aumentava o número de
libertos, as posturas municipais se ampliaram para pautar o trabalho
naquele tipo de atividades nas quais ingressavam de preferência os
egressos da escravidão. Como se viu, uma das formas de controlar
o trabalhador era submetê-lo a um registro, quantificando e identifi
cando o seu local de atividade. A municipalidade avisava os proprietários
de cocheiras e os de quaisquer veículos de rodagem que deveriam
matricular na Chefatura de Polícia os respectivos condutores, devendo
os mesmos andarem sempre munidos dos cartões de registro, incorrendo
no pagamento de multa os infratores destas determinações.®^
Entretanto, as contravenções persistiam, assim como a manu
tenção das instruções regulamentadoras desta atividade. A Lei 1.433,
de 8 de janeiro de 1884, multava os cocheiros ou carroceiros em
serviço que não trouxessem consigo a respectiva matrícula. Esta dispo
sição foi ratificada em 17 de novembro de 1887®"^ e, posteriormente,
reafirmada em 5 de janeiro de 1891,®^ enfatizando sempre a necessidade
de cadastramento.
Havia ainda um espaço que era preciso regulamentar e que era
âmbito preferencial de acolhimento dos libertos: os serviços de criada-
gem. Naturalmente, entre os criados não havia apenas ex-escravos.

^^Posturas policiais da Câmara... op.cit., capw42, p.ll.


^^Ibidem, cap.53, p.l5.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 25 maio 1878. p.l.
^^Correspondência Passiva. 1887-1889. Livro ní 41.
^^Código de Posturas Avulsas. Ano 1891. (manuscrito)

44
mas também toda uma população livie composta de brancos e mulatos
que se empregavam neste tipo de serviço menos qualificado. Entenda-se,
no caso, que o ingresso no mercado de trabalho de indivíduos brancos
de origem européia imigrante causava, como se viu, um escalonamento
dos trabalhadores: primeiro, encontrava colocação e era considerada
mais habilitada, exercendo funções qualificadas, a mão-de-obra euro
péia, regeneradora; em segundo lugar, vinha a mão-de-obra nacional,
livre; por último, os libertos, de recente passado servil, herdeiros de
toda sorte de estigmas ligados à escravidão.
O primeiro regulamento aprovado suigiu em Pelotas, definindo
como criados "os indivíduos livres, de ambos os sexos, que mediante
salário mensal empregam-se como caixeiros, copeiros, cozinheiros, cria
dos de serviço, amas de leite e amas secas".®^
Estabelecia-se que a Câmara deveria ter livros especiais com
o registro do nome, idade, naturalidade, filiação e ocupação dos criados,
bem como dados sobre os contratos e o desempenho dos referidos
criados. É notória a ação fiscalizadora e a técnica de controle exercida:
de posse de tais dados, os patrões tinham informações sobre a conduta
e os possíveis vícios dos trabalhadores. Por outro lado, o cadastramento
impunha a vigilância sobre os trabalhadores e a conseqüente garantia
do seu desempmho dentro de uma ordem desejada.
A iniciativa pelotense foi referendada por Porto Alegre, tendo
a Câmara Municipal aprovado, em janeiro de 1888, o regulamento
dos serviços de criados^ e nomeado, em junho do mesmo ano, um
fiscal especial para o fim de regularizar tais serviços na capital da
província.^ A regulamentação do serviço de criados em toda a provín
cia obteve expressão final na Lei 1.645, de 4 de novembro de
1888, entregando a fiscalização às Câmaras Municipais. Em Porto
Alegre, haviam sido matriculados, até o final de 1888, 2.611 criados.®^
Já se viu, portanto, que a elite dominante ensaiava novas formas
de dominação sobre os subalternos no processo de transiçãocapitalista,
tentando regular o acesso do liberto ao mercado de trabalho livre. É
claro que os mecanismos de compulsão ao trabalho não buscavam
atingir apenas o ex-escravo. Contudo, doatro das condições específicas
em que se processava a transição do trabalho escravo para o trabalho

86
BAKOS, Margareth M. Regulamentos sobre o serviço de criados: um estudo
sobre o relacionamento Estado e sociedade no Rio Grande do Sul (1887"1889).
Revista Brasileira de História, São Paulo, Marco Zero, 7:97, mar. 1984.
Correspondência Passiva. 1887-1889. Livro n.41. Código de Posturas. 24 abr.
1888.

^^Ibidem, 7 jun. 1888.


89
LINS, Antônio de Azevedo. Sinopse geográfica, histórica e estatística do município
de Porto Alegre. Porto Alegre, Gundlach, 1890. p.l58.

45
livie no Brasil, a prática e o discurso da classe dominante não se
dirigiam objetivamente para a mão-de-obra imigrante. Já se viu que
esta era considerada como superior, adequada às novas condições e
predisposta ao trabalho. O alvo da elite, na sua tática de disdplina-
rização do trabalhador, era fundamentalmente a mão-de-obra nacional,
livre e liberta.
Às práticas de controle social acrescaitava-se a leelaboração
ideologizada do trabalho e da vagabundagem, pólos opostos de uma
mesma realidade capitalista em construção.
Distúrbios, ameaças e outras perturbações da ordem social ten
diam a aumentar no fim da década de 70. Os registros de incidentes
desta natureza em jornais e documentos oficiais, na capital e no interior,
tomavam-se mais freqüentes. A rigor, o crescimento da vida urbana
e a maior concentração populacional favoreciam o surgimento de confli
tos e impunham a necessidade do estabelecimento de regras para "har
monizar" o "viver em comum". Como refere Chevalier a respeito
do aumento do crime: trata-se de uma ameaça de uma outra natureza,
não exatamente como conseqüência addmtal e excepcional da existên
cia coletiva, mas um dos resultados mais importantes da expansão
urbana; não um fenômeno anormal, mas um dos aspectos mais normais
da existência cotidiana da cidade.^
Enfim, as emergentes classes trabalhadoras eram também clas
ses perigosas, que precisavam ser contidas. O que é marcante neste
processo é a repetida identificação de elementos negros e pardos,
escravos ou libertos, entre os promotores de desordens, os autores
de crimes ou os identificados como vagabundos. Sobre eles preferen
cialmente recaía a ação repressora da polícia, como referia o jornal
abolicionista A Voz do Escravo em julho de 1881,^' ou o Jornal
do Comércio em julho de 1887. Neste último caso, a denúncia de
que o chefe de polícia e outras autoridades policiais estavam detendo
e prendendo libertos ocorria quando o processo de desescravização
já chegava ao seu fim. Alertava o artigo que a ação policial devia
se restringir aos escravos, cabendo ao juiz de órfãos responsabilizar-se
pelos libertos com cláusula de trabalho.Ou seja, a polícia exercia
a sua função repressora sobre os ex-escravos mesmo por cima das
suas atribuições legais, num momento em que ocorria a expansão da
vida urbana e o número de egressos da escravidão aumentava.
Noticiando ocorrências da capital, o Mercantil relatava a freqüên
cia de distúrbios na rua da Aurora, aos sábados à noite ou às vésperas

^^CHEVALIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangereuses. Paris, Hachette,


1984. p.39.
VOZ DO ESCRAVO. Pelotas, 30 juL 1881. p3.
^^JORNAL DO COMÉRCIO. Porto Alegre, 20juL. 1887. p.2.

46
de dias santíficados, provocados por "pessoas de ínfima classe e alguns
pretos, segundo nos consta, escravos".Da mesma fonna, outras notí
cias alertavam a polícia para um bando de escravos que, alta noite,
percorria o arraial do Menino Deus, em ações de vagabundagem e
causando tropelias.^"^ Para reprimir estas desordens, a poKcia concitava
voluntários para trabalharem, mediante remuneração, a favor da tran
qüilidade e da segurança piíblica^^ e na contenção dos desordeiros,
escravos ou não. Em suma, a cidade se transformara num local de
acoitamento de indivíduos sem patrão e sem trabalho —vagabundos,
portanto — que, além de fonte de mau exemplo,-eram uma ameaça
às "famílias de bem". Como referia o Mercantil chamando a atenção
da polícia para o fato: "Seria um relevante serviço prestado à causa
pública se a autoridade, pilhando-os, lhes impelisse a definirem a sua
posição".^^
Do interior também chegavam notícias que vagabundos infesta
vam as estradas e as fazendas, "vivendo às custas da propriedade
alheia".^ Os jornais da região da campanha referiam diferentes atenta
dos contra a vida e os bens dos cidadãos pela ação de bandidos
que percorriam os municípios.^®

Como relatava a Gazeta de Alegrete em 1884:


A vadiação se manifesta neste município de todos os modos. Osvagabundos
que infestam as estradas e as fazendas, carneando, furtando animais e
trazendo em constante sobressalto os moradores dos campos, são vadios,
que não tendo até aqui quem os obrigasse a tomar ocupação útil, adquiriram
a negação decidida pelo trabalho. Chegados a este ponto estão aptos
para tudo, e não vacilam ante o roubo e o assassinato, segundo as
circunstâncias em que se acham.^
Aos poucos, achava-se em construção umanova ética, que opunha
o mundo do trabalho, sede da sociedade civil organizada, da ordem,
da tranqüilidade e do progresso, ao mundo da ociosidade, do crime,
do vício e da marginalidade, que era preciso controlar.
No Relatório do Presidente da Província de 1885, o governo
se mostrava bastante preocupado com as questões relativas à tranqüi
lidade pública, à segurança individual e à propriedade. Nesse sentido.

^^MERCANTIL. Porto Alegre, 27 mar. 1878. p.2.


^"^MERCANTIL. Porto Alegre, 27 set. 1878. p.2.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 13 jul. 1878. p.2.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 2 dez. 1878. p.l.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 27 fev. 1884. pJ2.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 3 mar. 1884. p.2.
^^MERCANTIL. Porto Alegre, 7 abr. 1884. p.2.

47
louvava a adoção pela província da abolição mediante cláusula de
prestação de serviços, que "assegurava os direitos adquiridos pelo
patrono ou pelo liberto".^® Note-se que os direitos do patrão eram
aqueles da propriedade que tinha sobre o escravo-mercadoria e que
encontrava no contrato de trabalho uma forma de ressarcir-se. Quanto
aos direitos do liberto, seriam provavelmente aqueles que passava
a ter na sua nova condição: a possibilidade de realizar um contrato
de trabalho...
A preocupação do governo era confirmada pela dos proprietários,
que, através dos jornais, reclamavam das autoridades maior ação dos
poderes públicos. Referia o jornal Mercantil, reproduzindo um artigo
da Revista Gabrielense de 5 de março de 1884:
É lamentávd e altamente prejudicial aos interesses públicos e particulares
a falta de segurança individual e de propriedade que se nota nesta
província e especialmente neste município, onde o cidadão não encontra
outro apoio senão o que lhe vem da boa ou má índole dos indivíduos
que, sem nenhuma ocupação honesta, percorrem a província. [...] Em
nosso município, como em muitos outros, transitam constantemente diversos
indivíduos sem ocupação conhecida, e sobre os quais as autoridades
não querem ou não podem tomar qualquer providência, porque lhes faltam
os necessários elementos.^^^
Deve ser assinalado que o banditismo não era fato novo no
Rio Grande do Sul, onde as práticas de violência e arbitrariedade
haviam estado presentes desde os primórdios da sua formação histórica.
O Relatório Provincial de 1853, por exemplo, já chamava a atenção
para fatos desta natureza que assolavam a região da campanha.^^
O elemento novo que suige na década de 80 é o registro do aumrato
de crimes, de atentados contra a propriedade e do número de vadios
no momento em que se processava a desescravização do país. Assim,
estabelecia-se uma clara associação entre os libertos e a perturbação
da ordem pública.
No Relatório de 1886, num airolamento de crimes acontecidos
na província, aparece com freqüência a referência a ex-escravos ou
homens de cor como autores de assassinatos e agressões diversas

^^Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Miguel Rodrigues Barcellos, 2.® Vice-Pre-


sidente da Província do Rio Grande do Sul, pelo Exmo. Sr. Tesoureiro José
Júlio de Albuquerque Barros, ao passar4he a presidência da mesma província
no dia 19 de setembro de 1885. Porto Alegre, O Conservador, 1886. p.l27.
^^^FALTA de segurança. Mercantil. Porto Al^re, 18 jua 1884.
^^^Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul de 1883. p.5.
^^^Fala apresentada à Assembléia Legislativa Provincial do Rio Grande do
Sul pelo Presidente da Província, o Exmo. Sr. Desembargador Henrique Pereira
de Lucena, ao instalar-se a 2* sessão da 21.' legislatura, em 7 de março de
1886. Porto Alegre, O Conservador, 1887. p.103-20.

48
Esta identificação dos ex-escravos ou dos negros com a prática de
crimes, desordens e amiaças se tomaria uma constante nos jornais
e documentos oficiais da época. No Relatório de 1888, numa "resenha
dos fatos criminosos e acidentes mais notáveis" ocorridos na provín
cia, novamente grande parte dos indiciados eram indicados pela sua
cor — o pardo, o negro, o mulato — ou pela sua condição social
— ex-escravo ou liberto.
Enfim, o crime e a desordem passaram a ter cor e situação
social definidas. Visualizava-se um estereótipo de liberto que o apresen
tava ora como incapaz e despreparado, precisando por isso tutela e
amparo, ora como vicioso e de alta periculosidade, necessitando de
permanente vigilância e controle. Contribuía, evidentemente, para a
consolidação desta última imagem o acirramento da resistência escrava
nos anos que precederam à extinção final do regime servil.
Numa análise sobre as causas do elevado índice de criminalidade
na província, o Relatório Presidencial de 1887 tecia as seguintes consi
derações, entre outras:
[...] a falta de uma lei de recrutamento que contenha e sujeite a vadiagem
que é a matéria-prima de que se formam os grupos de 'criminosos' e
'bandidos', todas estas causas que vão ser agravadas com a emancipação
dos escravos, já próxima, e quando os ipgênuos já avesados na prática
de todos os vícios que lhes inoculou a servidão, entrarem no gozo da
liberdade plena, todos os fatores deste estado precário no presente e
temeroso no futuro, não podem senão em parte ser destruídos ou neutraliza
dos nas circunstâncias atuais.

O texto não dá margem a outra interpretação: o liberto é ligado


ao vício e ao crime, como herdeiro das práticas associadas à condição
servil. Nem as crianças escapavam, pondo a nu a questão central
que preocupava a classe dominante no fim do século: pôr em prática
medidas de compulsão ao trabalho para evitar os riscos da liberdade;
articular um discurso no qual a noção de trabalho, até então associada
à escravidão e sofrendo com isso toda uma carga pejorativa, passasse
a carregar uma valoração positiva.

^f^elatório com que o Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova passou
a administração da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul a S. Exa.
o Sr. Barão de Santa Tecla, 1.® vice-presidente, no dia 9 de agosto de 1888.
Porto Alegre, O Conservador, 1889. Anexo.
Relatório apresentado ao limo. e Exmo. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça,
3.® vice-presidente, por S. Exa. o Sr. l>r. Rodrigo de Azambuja Villanova, 2.® vice-
presidente, ao passaHhe a administração da Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul em 27 de outubro de 1887. Porto Alegre, O Conservador, 1888.
p.l5.

49
Numa curiosa inversão, aqueles que haviam sido a força-trabalho
por excelência de praticamente todo o sistema produtivo passavam
a ser identificados com o não-trabalho, com a vadiagem. O fato de
que o negro pudesse rejeitar estes mecanismos de compulsão, resistindo
a eles como resistira à escravidão, ou o de que, como mão-de-obra
considerada de categoria inferior, só fosse absorvido efetivamente no
mercado de trabalho quando escasseasse a mão-de-obra branca, prefe-
rentemente estrangeira, eram dados que só reforçavam a argumentação
da classe dominante.
O Relatório Provincial de 1888 ratificava esta linha de argumen
tação, sendo explícito na vinculação que tece entie a abolição e a
perturbação da tranqüilidade pública que ameaçavam a segurança indi
vidual e a propriedade na província:
[...] Mas se era precária nas condições normais a segurança individual
e de propriedade depois da promulgação da lei de 13 de maio do corrente
ano que declarou livres todos os escravos existentes, e como conseqüência
rotos todos os contratos e obrigações que se baseavam em leis que
mantinham o elemento servil, a vida e a propriedade do cidadão ficaram
quase sem amparo e defendidas antes pelos recursos pessoais de cada
um do que pelo poder social, a cuja sombra embalde procuram os ameaçado
res acolher-se pedindo garantias. O furto degado vacum e cavalar tornou-se
um fato de tanta freqüência que tem tomado assustadoras proporções,
e o que agrava ainda esse estado é que tais crimes são perpetrados
por grupos de libertos que vagueiam de uns para outros municípios
atacando a propriedade alheia para buscarem meios de subsistência que
não querem procurar no trabalho, e não recuando na prática da depredação
ante qualquer atentado contra a pessoa, o que constitui uma ameaça
permanente ã ordem pública. Daquela data para cá a estatística criminal
registra também alguns bárbaros homicídios de que eles são autores.
[•..] A vagabundagem nas cidades e vilas do interior cresce dia a dia
e as autoridades policiais não cessam de reclamar providências contra
os que se dão ostensivamente à ociosidade, e para cuja repressão é
importante a providência dos termos bem viver, jâ condenada por sua
ineficácia nos tempos normais.^®^

Assim, com o incremento da desescravização ao longo dos


anos 80, as preocupações da elite dominante se acentuaram com a
premente indagação: o que fazer com o liberto?
É bem verdade que uma série de medidas já vinham sendo postas
em prática desde há muito, através das leis abolicionistas, das posturas
municipais, dos registros estatísticos do número de escravos e de liber-

lO^Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova passou
a administração da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul a S. Exa.
o Sr. Barão de Santa Tecla, 1.° vice-presidente, no dia 9 de agosto de 1888.
Porto Alegre, O Conservador, 1889. p.5

50
tos^^ e mesmo da legulamentação dos serviços uibanos. Entretanto,
tais práticas, elaboradas em função de preocupações como a de J&xar
a mão-de-obra nos locais de trabalho, controlar a mobilidade dos liber
tos e fiscalizar e regulamentar o seu acesso ao mercado de trabalho,
deveriam ser complementadas com medidas penais específicas com
relação ao fenômeno que ocorria na sociedade brasileira da segunda
metade da década de 80: crescia o número de libertos, e com ele
a ameaça social.^^^
Mais de uma proposta foi levantada pelas elites dominantes da
época. Já em 1884, o deputado Itaquy pronunciava-se na Assembléia
Legislativa da província, alertando contra os perigos da vadiagem
c indicando qual o caminho a seguir:
[•••] Niqguém ignora a transformação por que passa a província, do
grande pastoreio para o pequeno, pelo farto retalhamento dos campos;
mas como o pequeno pastoreio só pode subsistir ajudado pela cultura
intensiva e a nossa população resiste a esse gênero de vida, eis a razão
por que cresce extraordinariamente o número de vadios, e os crimes
se vão reproduzindo em larga escala. Se a este fato acrescentar-se a
próxima libertação dos escravos, ficaremos equiparados ãquele período
da história da Inglaterra que sucedeu à queda dos Plantagenet. Houve
a grande libertação dos servos, a transformação dos campos de lavoura
em pastoreio, e esses servos que se tornaram livres afluíram para os
centros populosos, mas como já não tinham quem os sustentasse e os
protegesse, entregaram-se aos horrores da vadiação e libertinagem, a
tal ponto que foi preciso no domínio dos Tudores fazerem leis nimiamente
bárbaras para poderem conter estes libertinos. [.••] Açudamos enquanto
ê tempo; em uma sociedade policiada nipguém tem o direito de malbaratar
a sua liberdade. [...] Finalmente, a comissão arrematará esta exposição
dizendo que nobre, grande, generoso e político uma nação abrir os seus
cofres e suas terras à colonização estrangeira, porém que menos justo
e grande também não é a colonização dos próprios nacionais [...] só
pais descoroçoáveis deixam na miséria e ignorância a sua prole legítima,
para só cuidarem da adotiva!.

notória, neste caso, a determinação do Ministério da Agricultura aos


presidentes provinciais no sentido de organizarem um mapeamento da população
servil e alforriada no país, com indicação da idade, forma de obtenção da
liberdade (lei de 1871, lei de 1885, libertados por conta dos fundos de emancipa
ção ou por atos particulares, etc.). (Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. Joaquim
Jacinto de Mendonça, 3° vice-presidente, passou a administração da Província
do Rio Grande do Sul ao presidente, Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja
Villanova, em 27 de janeiro de 1888. Porto Alegre, O Conservador, 1888. p.30
et seq.)
108 O espectro do perigo negro, presente no imaginário das elites brasileiras
no séc. XIX, ê muito bem analisado na obra de Célia Maria Marinho de
Azevedo, *^Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites do século
XIX" (São Paulo, Paz e Terra, 1987).
109
Anais da Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul. 21." Legislatura. 2.' sessão. 4. abr. 1884.

51
o depoimento do deputado Itaquy é bastante significativo para
que se possa avaliar as condições da província na época. O deputado
alude claramente à transformação que se operava no Rio Grande do
Sul com a imigração estrangeira, através da agropecuária colonial no
contexto da pequena propriedade. O deputado reconhecia os benefícios
desta prática, presentes tanto na diversificação econômica da província,
até então predominantemente pastoril, quanto no aumento da produti
vidade da terra, expresso, a seu ver, pelo regime de pequena propriedade
e pela intensificação do uso do solo.
Entretanto, esta prática —diversificação agrícola e pequena pro
priedade — não era difundida por toda a província, ficando restrita
à área colonial ocupada pelos imigrantes estrangeiros. É claro que
o deputado não indica que haveria falta de interesse ou de recursos
dos grandes proprietários locais para realizarem transformações deste
gênero na zona do latifúndio pastoril. Prefere apontar como responsá
veis ou avessos a um trabalho mais produtivo os pobres. Neste ponto,
é sintomática a comparação que faz da situação inglesa no momento
em que se afirmava o capitalismo naquele país com a então situação
do Rio Grande do Sul... A saída alternativa para a província — e
particularmente para uma elite dominante sem os recursos da paulista,
por exemplo —seria o aproveitamento agrícola das terras da pecuária
pela colonização de nacionais. Resolvia-se, pois, o problema da falta
de recursos para importar mão-de-obra estrangeira e também dava-se
trabalho àqueles que, na vadiagem, representariam uma ameaça à "boa
ordem social".
O deputado Itaquy não era o único a ter tais preocupações.
Em 1887, o deputado Pereira Pinto, liberal, argumentavaque os libertos
soMam os horrores da misériae que os poderes públicos deviam propor
cionar-lhes colônias agrícolas, onde eles pudessem trabalhar e gozar
a sua liberdade.
Não apenas na Assembléia Legislativa provincial a questão das
colônias agrícolas foi aventada. Isto ocorreu também em âmbito munici
pal. Já em 1885, a Câmara Municipal de Alegrete, em seu relatório
apresentado à Assembléia Legislativa provincial, indicava uma solução
para o problema dos libertos. Propunha a criação de colônias agrícolas,
com a concessão de terra aos egressos da escravidão e aos imigrantes.
Deve-se notar, no caso, que a proposta se vinculava tanto à possibi
lidade de reorientar o aproveitamento da terra de um município eminen
temente pastoril quanto de resolver o problema dos libertos, conduzin-
do-os a um trabalho regular e, sobretudo, fiscalizado. A adoção desta

^^^Anais da Assembléia Legislativa Provincial da Província de São Pedro do


Rio Grande do Sul. 23.' Legislatura. 1.' sessão. 16 nov. 1887.

52
medida deveria ser complementada pela ação da polícia, reprimindo
os libertos que ameaçassem a tranqüilidade pública, e também
[...] por uma boa lei de locação de serviços, em substituição da que temos,
defeituosa e manca, regulada de modo que o liberto haja de trabalhar
incitado pelos benefícios do trabalho e pelos prejuízos da inação.^
Muito provavelmente, a referência a uma lei "defeituosa e manca"
diz respeito à Lei de Locação de Serviços de 1879, que se referia
à parceria agrícola e pecuária e tinha como destinatários os imigrantes.
Era a eles que se buscava atingir, procurando atraí-los com garantias
e proteção legal. Quanto aos libertos, a referida lei só seria aplicável
a eles após cinco anos de tutela governamental. Portanto, ao postular
uma nova lei regulamentadora do trabalho agrícola extensível ao liber
to, o projeto se propunha a incorporá-los também a este tipo de ativida
de, na ausência de recursos para aproveitar a mão-de-obra estrangeira.
Dois anos mais tarde, a Câmara Municipal de Alegrete voltaria à
carga, solicitando à Assembléia Legislativa provincial autorização para
emitir apólices com o fim de criar colônias agrícolas e construir um
mercado e um matadouro que seriam aproveitados para a localização
dos libertos.
Em 1888, novamente a proposta das colônias agrícolas seria levan
tada, desta vez por um grupo de Santana do Livramento. Encarada
como uma iniciativa altamente patriótica pela imprensa local, a pro
posta objetivava que os ex-escravos e demais "concidadãos pobres"
pudessem dedicar-se às atividades da agricultura e da pecuária, garan
tindo seu sustento através de "honrado labor".
Depois de geral emancipação de todos os escravos de nosso país, é
forçoso presumir-se que no Brasil (se não podem chamar ainda de vadios
e vagabundos) existem às centenas, de milhares homens desocupados,
sem recursos, aos quais é preciso facilitar meios honestos de trabalho,
sob pena de os vermos amanhã no exercício da pilhagem para se sustentarem
[...] Mais de um milhão de almas, entre libertos, ingênuos e libertados
pela lei de 13 de maio de 1888, existem no Brasil, atualmente, sem
ocupação definida; é uma necessidade que implica com o nosso futuro
nacional pensarmos como devam encontrar ocupação e honestos recusos,
tantas milhares de famílias.

^^^Relatério apresentado à Assembléia Legislativa provincial do Rio Grande


do Sul pela Câmara Municipal de Alegrete. 1885. Alegrete, Tip. da Gazeta
de Alegrete, s.d. p.l5.
112geBARA, op.cit., p.84-8.
D3Relat(5rio da Câmara Municipal de Alegrete apresentado na sessão de posse
dos vereadores eleitos para o quadriênio 1887-1890 pelo Vereador Presidente
Comendador Luis de Freitas Valle em 7 de janeiro de 1887. Alegrete, Tip.
da Gazeta de Alegrete, s.d. p.ll.
CANABARRO. Livramento, 8 jul. 1888. p.2.

53
A opinião expressa era "bondosa" com relação aos libertos, não
os considerando ainda vadios e vagabundos, embora não deixasse de
postular a necessidade de "prevenir, aplacar, conter estas forças".
Para os escravos, surgira com a liberdade o problema da "luta pela
vida", o que antes era providenciado pelos senhores... O exemplo
dos Estados Unidos era lembrado como o caminho a seguir para a
integração do negro ao trabalho. Para este fim, a comunidade santa-
nense arrecadava dinheiro para promover o estabelecimento das tais
colônias agrícolas onde poderiam trabalhar libertos e menores abando
nados. Entretanto, o humanitarismo da proposta tinha sólidas raízes
na economia local:
A agricultura é a fonte do nosso futuro, principalmente para o nosso
Rio Grande agora que nos escravos do norte, hoje libertos, perdeu os
únicos consumidores de seus produtos pastoris. Fundamos colônias agríco
las, criemos, por meio de leis provinciais e municipais, o trabalho obrigató
rio, na indústria fabril e na lavoura. Guerra à ociosidade.^^^
Ou seja, havia o temor de que, com a extinção da escravatura
o charque, que se destinava à subsistência da população servil, enfren
tasse sérios problemas. Daí a preocupação da região pecuarista em
reorientar a economia para a agricultura, valendo-se do trabalho obriga
tório dos libertos. Conciliava-se a consciência humanitária pelo elevado
fim expKcito da meta a atingir, o sustento dos desamparados. Aplica
vam-se novas formas de trabalho compulsório, não mais pelo chicote,
mas pela dignificação moral do próprio trabalho na nova ética burguesa.
Tranqüilizavam-se as famílias, pois o ingresso no trabalho produtivo
permitiria a vigilância e garantiria a dominação.
Inclusive era aventada a possibilidade de que, com a extinção
do regime servil, os operários, os artífices e os agricultores dos países
europeus afluíssem espontaneamente para o Brasil. Entretanto, para
isso era necessário que "leis brandas e proibitivas da ociosidade"
fossem aplicadas, estimulando o trabalho "honesto e produtivo". Argu
mentava o periódico:
o receio não é só nosso, é geral no país; magotes de 50 e até de
100, de homens que foram escravos, acompanhados de mulheres e crianças,
erram através dos bosques e campinas das províncias do norte. Em diversas
fazendas assassinaram os proprietários e capatazes, assaltaram muitas
para roubar e já se tem dado entre estes homens negros libertos e
a polícia de diversas localidades das províncias do Rio, Minas, Pernambu
co, Bahia, etc. centenares de conflitos.^^^

CANABARRO. Livramento, 12 jul. 1888. p.l.


CANABARRO. Livramento, 15 juL 1888. p.l.
CANABARRO. Livramento, 22 juL 1888. p.l.

54
o discurso da classe dominante tem, portanto esta dupla faceta:
de um lado, invoca-se o sentimentalismo cristão e o idealismo românti
co; de outro, aponta-se para a solução coercitiva.
Paralelamente a estas propostas levantadas na província, no Parla
mento tinha curso o projeto n° 33A, de "repressão à ociosidade":
Na verdade, não é somente na imigração estrangeira que devem fundar-se
as esperanças patrióticas de todos aqueles que desejam, pelo aumento
da produção nacional, o florescimento da agricultura, da indústria, do
comércio, a prosperidade do Brasil, A efetiva aplicação de braços ociosos,
refratários ao trabalho e a repressão de tendências à vadiação, ao parasi-
tismo, ã vagabundagem, ã meiidicidade e a ocupações desonestas — são
outras tantas medidas que podem contribuir de modo eficaz ao desenvolvi
mento da sociedade.^^^
Denunciava-se que os libertos não se sujeitavam ao trabalho
e só queriam o jornal e a vadiagem. Os que haviam ficado na companhia
de seus respectivos ex-senhores, mediante o pagamento de um salário,
trabalhavam de má vontade e procuravam pretextos para serem despedi
dos, preferindo o roubo ou a vagabundagem ao trabalho regular.
As propostas das Câmaras Municipais* da Assembléia e do Paria-
mento seriam complementadas pela própria exortação do governo pro
vincial. Partindo do pressuposto de que o liberto se encontrava despre
parado para a vida em sociedade, era preciso que ele se nobilitasse
pelo trabalho. A sugestão do governador Villanova (conservador) era
de que os proprietários de grandes áreas incultas parcelassem suas
terras e as cedessem aos libertos mediante venda, arrendamento ou
mesmo gratuitamente.Com tal prática, os libertos não se veriam
ameaçados pela miséria e poderiam permanecer com seus antigos "ben-
feitores", junto aos quais haviam sempre obtido as "mesmas vanta
gens" que seus senhores, e assim aproveitar sua "inteligência e expe
riência".
Deve ser notada, claramente, a intenção de reter mão-de-obra
junto ao local de trabalho. Descartadas as hipóteses de venda ou
arrendamento das terras aos escravos —por ausência de recursos destes
ou de condições reais de arcarem com um contrato de arrendamento
—, restava a hipótese de doação de terras incultas aos escravos. Na
verdade, esta proposta ocultava uma nova forma de trabalho compul
sório, embora mascarado. Argumentando que com tal prática se estaria
dignificando e garantindo o futuro do trabalho, o governo provincial
mencionava que havia solicitado ao governo imperial a criação de

lio

^^°Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro,


1888. v.III. p.67.
D9Relatório com que o Exmo. Sr. Dr, Rodrigo de Azambuja Villanova... op.cit.
nota 106.

55
colônias agrícolas com as duas últimas quotas do fundo de emancipação,
que não tinham sido gastas.
O que deve ser registrado é que tal proposta — a de criação
de colônias agrícolas — encontrou seu momento de formulação nos
anos finais da Monarquia. Com o advento da República, os novos
detentores do poder não deram continuidade a este projeto. Não se
trata, em absoluto, de negar a preocupação com o agro da parte dos
republicanos mas, sim, de identificar uma outra concepção. A proposta
republicana apostava no aumento do número de produtores rurais para
garantir o aumento da produção. Entretanto, seu propósito era o apoio
às comunidades de pequenos proprietários rurais de origem estrangeira
na zona colonial, investindo na infra-estrutura de transportes da região,
de molde a tomar atrativa a imigração e facilitar o escoamento da
produção para o mercado. Quanto à grande propriedade mral, o projeto
republicano tinha em vista a difusão da prática do arrendamento, com
o que se promoveria a intensificação do uso da terra e o aumento
da sua produtividade. Uma proposta, sem dúvida, que objetivava o
lucro, pela reorientação do investimento de capitais, pelo aumento
da produção e da produtividade e pela dinamização das exportações.
Contudo, não havia nada de muito específico com relação ao liberto
e à sua permanência no campo como mão-de-obra.
Ao referir-se à posição do liberto em face da propriedade rural,
o PRR argumentava que o que se fazia com relação aos imigrantes
estrangeiros não poderia ser negado aos libertos: a concessão da terra.
Entretanto, a proposta republicana de integração do escravo à sociedade
brasileira não passava pelo campo, mas pela sociedade urbano-industrial
e pelo engajamento daquele como operário, o que será analisado depois.
Assim, as propostas que dizem respeito ao aproveitamento do liberto
como força-trabalho nas atividades agrárias, reorientando a economia
provincial, coibindo a vagabundagem no campo e com isto impedindo
também a marginalização na cidade, são típicas do período imperial.
Outra preocupação, que se acentuou com a desescravização mais
rápida que se processava nos anos 80, dizia respeito às crianças —
os ingênuos, figura criada pela Lei do Ventre Livre de 1871. Nesta
questão se conjugavam argumentos morais, humanitários e de preserva
ção de uma mão-de-obra futura. Já em 1883, o deputado Itaquy, na
Assembléia Legislativa provincial, sugeria a criação de asiMs para
o recolhimento de crianças órfãs.Esta visão compartilhada pelo
governo provincial que, no Relatório de 1888, alertou para a necessi
dade de a criança liberta merecer atenção especial e os escravos pre
cisarem

120a federação. Porto Alegre, 4 out. 1887. p.l.


12lApud BAKOS, RS... op.cit.

56
de quem lhes prepare o espírito para a difícil prática da liberdade,
sobre o uso que dela deve fazer e sobre a vida que deve levar no
seu novo estado. A liberdade não tem a virtude de dar-lhes qualidades
que Deus negou-lhes ou que a sua degradação nativa não lhe permitiu
adquirir: deixar portanto o liberto entregue ao seu livre arbítrio, às
perigosas seduções de uma liberdade para que não estava preparado
e aos estímulos de suas paixões, tanto mais desordenadas por força
de suas condições.

Daí a preocupação com os ingênuos, para os quais seriam fundadas


colônias orfanológicas, asilos e escolas de ofício. Indicava-se, inclusive,
que os mesmos deveriam permanecer na casa onde haviam nascido,
caso contrário seriam presa fácil de todos os vícios. Havia um tom
acen tu adam ente moral ao serem lembrados os perigos que espreitavam
os menores, sobretudo as meninas, após a abolição:
A prostituição lavra de modo assustador daquele período para cá. Menores,
filhas de escravas que estavam no seio das famílias, ao abrigo das seduções,
foram entregues às suas mães, muitas de uma perversão moral sem nome
e pela influência do meio para onde foram transportadas, pelos maus
exemplos que diariamente tinham à vista, foram arrojadas à vida da
devassidão. Vivem vagando nas praças e ruas da capital e de outras
cidades do interior, como exemplo da miséria a que foram impelidas
pela brusca transição porque passaram sem que estivessem preparadas
para viver exclusivamente sob a tutela superior do poder público
A questão moral transparece nítida, assim como a vinculação
entre a escravidão e os vícios. Daí a preocupação com a criança,
que deveria ser retirada de um meio nefasto e moldada de acordo
com padrões desejados. Era preciso formar o bom indivíduo, o bom
cidadão e o bom trabalhador dócil, ordeiro, cônscio de seus deveres.
O problema do menor está claramente associado ao da instrução,
embora a educação não se restrinja às crianças. A questão da educação
dos libertos foi meta expKcita do Partido Liberal, identificando a
instrução do povo como a base da liberdade. A emancipação dos
escravos estava ameaçada por dois perigos, explanava o Relatório
Provincial de 1881;
[...] o instinto da ociosidade e o abismo da ignorância — diminuí o
segundo, tereis combatido eficazmente o primeiro.
[•••] o que haveis de oferecer a esses entes degradados que vão surgir
das senzalas para a liberdade? O batismo da instrução.
O que reservareis para suster as forças produtoras esmorecidas pela
emancipação? O ensino, este agente invisível que, centuplicando a energia
de braço humano, é sem dúvida a mais poderosa das máquinas do trabalho.

199
^'^'^Relatòrio com que o Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova... op.cit.
nota 106, p.70.
^-^"^Relatõrio com que o Exmo. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova... op.cit.
nota 106, p.6.

57
Ninguém mais ignora que da instrução é que nascem os bons costumes,
o amor ao trabalho e todas as virtudes que fazem a felicidade das
124
nações.

É claro o efeito esperado pelo esforço educacional: moldar o


bom cidadão e o bom trabalhador. Em suma, a educação cumpria
o papel de preparar o indivíduo para ingressar no mercado de trabalho
na forma desejada pela elite dominante. Não se trata, ainda, de um
ensino profissional, mas da formação de hábitos e atitudes, destinados
a ajustar o indivíduo a padrões de comportamento desejados.
A proposta liberal da instrução aos libertos se expressaria também
nos periódicos abolicionistas, como A Voz do Escravo, jornal de Pelotas,
mas com um cunho "redentor", nos quais a educação habilitaria o
ex-escravo a exercer os seus direitos de cidadão e eleitor. O exemplo
dos Estados Unidos era o novo parâmetro a ser seguido, retirando
a "raça africana" da "barbárie" e elevando-a ao estado de "civiliza
ção". No caso, não era colocado de forma expKcita o sentido do
processo educacional — a preparação para o trabalho. Invocava-se
a preparação para a vida no seu sentido mais geral, habilitando o
negro a sair de um estágio "inferior" para um mais alto, em termos
de cultura, e a partir daí, a participar como cidadão da vida política
do país. Já outros artigos do mesmo periódico, ao enfatizarem a superio
ridade do trabalho livre sobre o trabalho escravo, argumentavam com
a maior produtividade obtida com o assalariamento e a formação profis
sional. Da mesma forma, outros periódicos abolicionistas, como A
Luz, reforçavam a vinculação entre as novas condições de trabalho
livre e a educação.
Não basta que os deixemos banharem-se nas águas cristalinas do Jordão,
purificador da liberdade, é necessário também que lhes ensinemos o
que eles foram — escravos; o que são — cadadâos; o que devem ser
—laboriosos e honrados [...]. Que nossos inteligentes legisladores ditam
contra a falta de indústria e instrução dos preços, e encaminhem-nos
ao trabalho

Ou seja, havia uma associação em cadeia: liberdade-educação-


cidadania-trabalho. Os "novos tempos" seriam aqueles nos quais os
libertos, arrancados, pela educação, de um passado de ignorância
e violência, fossem convertidos em cidadãos trabalhadores e ordeiros.

^^^Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul de 1881. Porto


Alegre, A Reforma, 1881. p.23.
^^^A VOZ DO LSCRAVO. Pelotas, 16 jan. 1881. p.4.
^^^A VOZ DO ESCRAVO. Pelotas, U maio 1881. p.3.
^^"^A VOZ DO ESCRAVO. Pelotas, 17 ago. 1881. p.3.
^^^A LUZ. Rio Grande, 15 mar. 1884. p.2.

58 ^
A possível discriminação racial ou estigma da escravidão era
afastada: o escravo não era "figadal inimigo de sua instrução", mas
sendo privado desta na senzala, tenderia a enveredar pelo crime e
pelo desregramento da vida.^29 Seria, em síntese, a educação que possi
bilitaria a distinção entre o velho e o novo viver, permitindo o trânsito
da escravidão para a liberdade.
Passando da defesa de princípios gerais em tomo da educação
para medidas de caráter mais prático, o deputado liberal Rodrigues
Lima defenderia, em 1889, na Assembléia Legislativa provincial, a
implantação de um estabelecimento de ensino profissional no município
de Santo Antônio da Palmeira. Justificava o deputado sua proposta:
O escravo vai desaparecer, a grande propriedade, privada deste elemento
de vida, necessariamente vai dividir-se. O processo da lavoura, pelo
modo rotineiro de que até hoje se tem usado, parece que não se coaduna
mais com as necessidades de hoje, com o progresso da ciência, do comércio
e das indústrias, as idéias e costumes, bem como o caráter da população
vai ser alterado. O país mesmo já experimenta uma necessidade indispen
sável de procurar meios para a nova organização do trabalho.

O deputado Rodrigues Lima traçava um quadro de transformações


econômico-sociais que demarcavam a transição do trabalho escravo
para o livre. Argumentava que a imigração estrangeira, normalmente
apontada como a solução para este problema, desenvolvia uma econo
mia de subsistência e não influía sobre o restante da nação. Na verdade,
o deputado estava traçando a diferença básica entre o imigrante que
vinha para as lavouras do café, integrando-se ao eixo dinâmico da
economia brasileira, e o colono que vinha para o Rio Grande do Sul,
como pequeno proprietário e, portanto, não respondendo aos interesses
dos grupos dominantes locais. A estes restava a mão-de-obra liberta,
egressa da escravidão, pelo que concentrava nesta reserva interna de
força-trabalho as suas preocupações:
Não podemos também deixar aos acasos da sorte este sem número de
escravos que a sociedade vai lançar no seu seio, sem proteção, sem
recursos. Também o Estado não tira vantagem alguma de uma grande
parte da população empobrecida que está agregada nas matas nacionais,
a qual dificilmente obtém os meios de prover as necessidades de uma
família numerosa. Não é possível remediar este mal, a colonização estran
geira. Parece conveniente tratar-se de transformar o caráter moral da
população indígena pela educação agrícola, pela sua contração ao trabalho.
Não quero dizer com isso que a colonização estrangeira deve ser repelida;
não, quero demonstrar que ela não satisfaz todas as exigências da organiza
ção do trabalho.^^^

LUZ. Rio Grande, 15 out. 1884. p.l.


^^^Anais da Assembléia Legislativa Provincial da Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Sessão de 28 out. 1885.
^^^Relatdrio do Presidente da Província do Rio Grande do Sul de 1887. p.131.

59
A solução que cabia, pois, era instruir para o trabalho a reserva
local de mão-de-obra, habilitando-a a tarefas produtivas através do
ensino profissional. Aliás, a proposta educacional dos liberais precisava
de um reforço oficial, pois o Relatório Provincial de 1887 dava conta
de que diversos professores recusavam-se a matricular em suas escolas
crianças de cor preta...
O Relatório de 1888, por sua vez, recomendava que os menores
abandonados deveriam ser entregues às autoridades para que fossem
remetidos à capital com destino à escola de aprendizes marinheiros,
onde encontrariam ''abrigo, instrução e trabalho". Colônias agríco
las, asilos e ensino formal e profissional foram as medidas práticas
apontadas nos últimos anos da Monarquia e que acompanharam a
adoção de posturas municipais de regulamentação do trabalho, a aplica
ção de medidas coercitivas por parte dos órgãos policiais e a difusão
de uma nova ética burguesa de condenação do ócio e de valorização
do trabalho.
A proclamação da República veio dar uma inflexão a este quadro.

^^^Ibidem.
^^^Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul de 1888. p.71.

60
o CAMINHO DA CIDADE:
DISCRIMINAÇÃO E INTEGRAÇÃO

A base fundamental da nova aliança política que empolgou o


poder no Rio Grande do Sul com a República foi dada pela elaboração
de um projeto regional de desenvolvimento que atendesse os interesses
sociais envolvidos, possibilitando com isso a barganha política de apoio
partidário. O positivismo, endossado como matriz inspiradora de condu
ta política e administrativa, cimentou esta aliança, legitimando a atua
ção do governo autoritário e a do partido situacionista gaúcho.
O PRR se incumbiu da tarefa de dar respostas a velhos problemas
do Rio Grande do Sul que não haviam encontrado saída nos quadros
da Monarquia, para o que tratou de elaborar normas práticas de ação,
expUcando-as teoricamente à luz das idéias de Augusto Comte. Neste
sentido, o positivismo, encarado como conjunto de princípios orienta
dores de conduta, foi um agente legitimador de uma prática política
efetiva: justificou o grupo no poder, deu-lhe coesão e solidificou alian
ças no sistema hegemônico que se constituiu.
No contexto europeu do séc. XIX, onde surgiu, o positivismo
foi uma das correntes ideológicas de justificação do triunfo da socie
dade burguesa e do modo capitalista de produção. Por um lado, seus
princípios norteadores —Ordem e Progresso —estão diretamente rela
cionados com o processo em curso na sociedade: a ordem burguesa
era o elemento a conservar; o progresso econômico o objetivo a atingir.
Daí, pois, os lemas positivistas: "a ordem por base, o progresso por
fim" e "o progresso é a continuidade da ordem". Existe, assim, uma
clara vinculação entre a idéia de progresso e os começos do surto
industrial, aparecendo o empresário como uma dinâmica força da socie
dade na percepção comtista. Por outro lado, os princípios positivistas
se vinculam à transposição feita, no séc. XIX, das leis e noções das
ciências naturais para o campo humanístico.
A partir destes pressupostos, Comte divisava a possibilidade da
construção de uma sociedade racional, regida por leis tão científicas
quanto aquelas que norteavam a natureza. Desta forma, através do
conhecimento científico é que o homem se tomaria um agente transfor
mador da realidade, criticando a sociedade existente e fornecendo
as bases para sua estmturação mais racional. De certa forma, as teorias
da evolução da vida orgânica desde seres menos aptos até outros

61
mais aptos foram transportadas para o plano das relações sociais e
da política, justificando a supremacia burguesa e o domínio do capital
sobre o trabalho, legitimando assim uma sociedade hierarquizadá.
Nesta linha de raciocínio, a ordem social se fundamenta na ordem
intelectual. O grupo no poder, que detém o conhecimento teórico,
é o mais habilitado para proporcionar condições ao progresso econômi
co. Na prática, este grupo desdobra-se em dois: os empresários indus
triais e a elite de sábios, aos quais ficam afetas as tarefas de garantir
a ordem e assegurar o progresso, cada qual na sua instância. Em
termos mais simples, a concepção comtiana da realidade legitimava
a supremacia dos mais fortes e mais aptos — ou dos mais ricos —
sobre os mais fracos por considerá-la um fato da "ordem natural das
coisas".
Entretanto, entre o enunciado positivista e a realidade objetiva
ocorriam conflitos e antagonismos. Ou seja, a realidade era mais com
plexa do que a pressupunha — ou desejava — a teoria. A prova disso
era que os mais fracos rebelavam-se, resistiam, não se enquadravam
e, sobretudo, ameaçavam a boa ordem social e, conseqüentemente,
o próprio progresso material.
Aliás, a própria concepção comtiana da realidade já trazia em
si uma ambigüidade, pois, ao mesmo tempo que admitia uma visão
classista da ordem burguesa, negava o conflito social. Na postura
comtiana, a constituição "normal" da "indústria moderna" assenta
va-se na divisão entre os empresários e os trabalhadores. A sociedade
industrial se baseava, pois, na existência ou na "combinação" de duas
classes distintas, "desiguais em número, mas igualmente indispensá
veis":^^^ uma minoria de capitalistas, possuidores dos meios de produ
ção e do dinheiro, responsáveis pela direção da atividade econômica,
e uma maioria de operadores diretos, que por uma remuneração salarial
trabalhavam na transformação dos meios naturais de existência.
Portanto, na teorização burguesa sobre o real —da qual o positi
vismo era uma de suas vertentes — a questão social surgia como
um problema posto, decorrente da própria acumulação de capital. Daí,
pois, a preocupação de pensar o proletariado e limitar o seu agir
através do princípio da sua "incorporação à sociedade moderna", máxi
ma comtista invocada com persistência pelos republicanos rio-gran-
denses ao longo da I República.
Segundo o positivismo, a norma a seguir no programa social
de cooptação do operariado seria a da educação moral e do trabalho
regular. A transformação da sociedade, segundo a visão positivista.

^^"^COMTE, Augusto. Catecismo positivista. Rio de Janeiro, s.ed., 1934. p361.


1 "^5
COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivista. Iir Os Petisadores,
São Paulo, Abril Cultural, 1978. p.83.

62
requeria um esforço educacional sistemático, com vistas a formar uma
opinião pública adequada à manutenção da ordem. Neste contexto,
a moral joga um papel essencial: é através da educação positiva que
deve ser reforçado o componente moral da ação social. Neste sentido,
a ciência, a educação e a moral se convertem em instrumentos poderosos
de controle social e de veiculação ideológica de uma forma específica
de reorientação da sociedade, na qual os indivíduos devem se apresentar
despidos de seus interesses egoístas e particulares, neutralizando-se
assim o conflito em função da garantia da estabilidade social e do
chamado hein-coinum,
A função moralizadora da educação extrapolava, contudo, a sim
ples adequação da conduta do cidadão a normas condizentes com
o viver social. Ia mais fundo, dirigindo-se ao próprio âmago das ques
tões centrais do capitalismo. Para o positivismo, a necessidade de
uma educação universal baseada na moral apresentava-se como a solu
ção da luta de classes. Nas palavras de Comte:
!•••] A mais incontestável e perigosa destas recentes agravações dos
vícios radicais, inerente até aqui ao movimento industrial, consiste por
certo na oposição mais profunda que se estabelecia entre os interesses
respectivos dos empresários e dos trabalhadores, cujo deplorável antago
nismo mostra hoje o quanto a indústria moderna ainda está essencialmente
afastada de uma verdadeira organização.^^^
Quanto ao trabalho regular — norma a seguir na estratégia de
cooptação do proletariado —, este seria possibilitado pela aplicação
de um programa que permitisse a expansão capitalista a partir dos
seus setores mais dinâmicos, gerando empregos. Implicitamente, a meta
seria atingida pela viabilização dos interesses da burguesia na sociedade
civil e pela subordinação dos trabalhadores ao capital.
Nesta altura do raciocínio impõe-se a pergunta: em que medida
este conjunto de idéias, elaboradas a partir de um contexto histórico
diferente daquele do Brasil e, particularmente, do Rio Grande do Sul,
veio a ser incorporado pelos republicanos gaúchos e deu margem à
elaboração de um projeto regional?
Daquele ideário positivista, os republicanos rio-grandenses, grupo
minoritário mas muito ativo, empenhado numa trajetória de expansão
e proselitismo na sociedade rio-grandense, recolheram os princípios
que melhor se adequavam às aspiraçõese aos problemas locais, adaptan
do-os e incorporando-os à sua proposta política. Em teimos propria
mente econômicos, a idéia do progresso traduzia-se numa proposta
de desenvolvimento das forças produtivas da província que atendesse
a todos os setores da economia. Em outras palavras, o PRR oferecia
um projeto de constituir no Rio Grande uma base econômica alternativa
1
COMTE, Augusto. Sociologia. São Paulo, Âtlca, 1978.

63
ao predomínio absoluto da pecuária. Ao incorporar novas áreas e seto
res, procurava corresponder à satisfação de distintos interesses presen
tes na sociedade rio-grandense, que sofrerá uma diversificação signi
ficativa.
Como forma de conseguir este desenvolvimento global e equilibra
do da economia, o PRR dispunha-se a encarar como prioritária a questão
dos transportes e a eliminar os privilégios a este ou àquele setor
de produção em particular. Desta forma, tentando solucionar problemas
da órbita da circulação de mercadorias, o PRR ia ao encontro dos
diferentes setores produtivos da província, beneficiando a economia
gaúcha como um todo e respondendo aos variados grupos sociais nela
envolvidos. Por outro lado, para que o desenvolvimento harmônico
de todas as atividades econômicas do Rio Grande do Sul fosse atingido,
fazia-se necessária a conservação da ordem social. Neste ponto, o
PRR apresentava-se como defensor dos produtores, englobando nesta
categoria não apenas os detentores do capital como também os trabalha
dores diretos. Ao mesmo tempo em que procurava garantir a acumula
ção privada de capitais — postulando que o estado seria tão rico
quanto maior fosse a fortuna privada de seus cidadãos —, o PRR
afirmava ser da "ordem natural" das coisas a existência de ricos e
pobres. Empresários e operários, ambos produtores, contribuíam cada
qual à sua maneira para o progresso, e o trabalho executado pelo
produtor direto encontrava seu justo preço no salário liberalmente
concedido pelo patrão.
O entendimento da questão econômico-social é, eminentemente,
progressista-conservadora: ao mesmo tempo, postula o desenvolvimen
to econômico e pressupõe a defesa de posições adquiridas, negando
o conflito social. Diante desta proposta, toma-se compreensível a ade
são ao partido daqueles grupos detentores do grande capital —indus
trial, comercial e financeiro —, bem como dos colonos de origem
imigrante, interessados na preservação de seu patrimônio. Assim, esta-
belecia-se uma aliança entre frações não-agrárias e agrárias de uma
burguesia em processo de formação. Afirmava-se, na teoria, a solidarie
dade de interesses entre todos os membros do corpo social; na prática,
asseguravam-se os intereses econômicos dos detentores do capital.
Quanto ao operariado, a norma comtiana de "incorporação do proleta
riado à sociedade moderna" ficava clara, na prática, na emergente
questão de organização do mercado de trabalho livre.
Por ocasião do I Congresso Republicano de 1884, quando foram
lançadas as bases do programa partidário que deviam pautar a ação
dos seus candidatos às eleições provinciais, nada havia de mais especí
fico sobre a questão do trabalhador. Entretanto, considerando a formação
do mercado de trabalho no sul, a partir da imigração estrangeira e
também da liberação da mão-de-obra escrava que se processava, vê-se

64
que neste documento há tanto uma referência à ''imigração espontânea"
quanto uma condenação à escravidão, considerada "melindroso assun
to" e "instituição bárbara".
Pelo acima exposto e pelo que foi referido no capítulo 2, perce
be-se que os republicanos tinhamidéias bastante precisas, sedimentadas
por razões teóricas e por necessidades políticas, no tocante à escravi
dão. Ao nível teórico, isto se dava pela condenação de Comte a uma
instituição ultrapassada e não mais compatível com a sociedade moder
na, pautada pelo desenvolvimento da ciência e da indústria. Neste
sentido, a posição do republicanismo gaúcho, através de seu líder
Júlio de Castilhos, fora de repúdio à fórmula da abolição antecipada
mediante a cláusula de prestação de serviços, rejeitando a indenização
aos proprietários inclusa no projeto.Politicamente o PRR posiciona
va-se como a força progressista da sociedade, identificado com a dina-
mização da economia e com a adoção de formas mais avançadas de
estruturação do capitalismo: na cidade, a indústria; no campo, o arren
damento.
Assim, a preocupação do PRR com o liberto se dava em função
de possíveis indenizações aos senhores ou em razão de um difuso
sentimento romântico e humanitarista. A preocupação com o liberto
revelava, antes de mais nada, o interesse na constituição de um mercado
de trabalho livre e adequado às exigências da indústria.
Como referia Castilhos através de A Federação:
[...] a questão da abolição da escravatura que importa a transformação
do trabalho, é uma complexa operação social, cujos termos devem ser
cuidadosamente precisados, a fim de que ao desaparecer da lei o condenado
regime servil, não continue ele a subsistir vi^-tualmente na vida econômica
do país. a definitiva integração de nossa prática pela total incorpora
ção do proletariado escravo ã família brasileira supõe necessariamente
um regime anterior que prepare e encaminhe a constituição normal da
indústria. Donde o problema da abolição não é mais do que uma questão
preliminar no regime industrial moderno.^^^
Esta proposta de incorporação do ex-escravo a um novo meio,
que lhe permitisse outro desempenho, encontraria reforço nas teorias
de um outro evolucionista: Darwin. Curiosamente, a citação das pala
vras de Darwin se encontra num jornal abolicionista {A Voz do Escravo)
e não do periódico porta-voz do republicanismo gaúcho (A Federação),
Entretanto, serve como exemplo da concepção evolucionista que presi
dia a incorporação do proletariado à sociedade moderna através de
137
FRANCO, Sérgio da Costa. Júlio de Castilhos e sua ^oca. Porto Alegre,
Globo, 1967. p.27.
138
A LIBERDADE vitoriosa. A Federação, Porto Alegre, 16 ago. 1884. p.l.
^^^ORGANIZEMOS a vitória. AFederação, Porto Alegre, 4 out. 1884. p.l.

65
suas posições mais progressistas. Entenda-se também o sentido do
progressismo aqui tratado: identificado com o capitalismo, o avanço
da sociedade burguesa e as modernas correntes de pensamento euro
péias vigentes no séc. XIX e legitimadoras daquele status quo.
Referia Darwin que, sendo o homem fruto do meio biológico
em que vive, mesmo uma criança das raças mais avançadas (ianque,
inglesa, escocesa), uma vez criada na senzala, não se diferenciaria
de qualquer molequinho escravo. Entretanto, apesar de tudo isto, havia
pretos dirigindo máquinas a vapor e outros maquinismos aperfeiçoados
em tarefas que às vezes nem o branco conseguia realizar.Em suma,
Darwin, com este exemplo, procurava demonstrar a capacidade do
negro para o trabalho, capacidade esta que podia ser apreciada mesmo
em condições de um meio adverso, como a senzala. Urgia, portanto,
incorporá-lo e adestrá-lo ao trabalho livre, no qual ele sem dúvida
alguma renderia muito mais.
Neste ponto, caberia retomar as conclusões do capítulo 2, que
levanta a existência, no caso do Rio Grande do Sul, de uma relativa
escassez de mão-de-obra na formação do mercado de trabalho. A ten
dência básica, raciocinando em termos econômicos, seria a absorção
da reserva interna de mão-de-obra, sem discriminação. Ou seja, o
liberto, egresso do regime servil, seria facilmente engajado no mercado
de trabalho, suprindo a demanda de uma ordem urbano-industrial emer
gente na passagem do séc. XIX para o séc. XX. Qual foi, na verdade,
o destino do ex-escravo?
Diga-se de passagem que, com a República, os termos liberto
e ex-escravo desaparecem do vocabulário dos políticos e das páginas
de jornais e periódicos. A escravidão fora sepultada com a monarquia,
e os novos tempos republicanos tratavam agora do trabalhador. O
regime servil fora extinto, mas o estigma da escravidão acompanharia
seus herdeiros. Perseguir os egressos da senzala implicava agora acom
panhar a designação preto, pardo, negro, mulato.
Através deste atributo, é possível identificá-los a seguir sua traje
tória nestes anos iniciais da República. Entretanto, a ''classificação
racial" aparece em situações nas quais se destaca o indivíduo em
contravenções tais como distúrbios, processos criminais ou furtos: o
negro fíilano, o mulato sicrano, etc. Em situações "normais", não
há a referência discriminatória. Ou seja, quando uma notícia de jornal
descreve uma visita a uma fábrica, ou um relatório anual de uma
empresa fornece dados sobre os trabalhadores, não vem expressa a
identificação dos operários quanto à sua cor. Neste ponto é que ganha
força, como fonte de pesquisa reveladora do ingresso do ex-escravo
no mercado de trabalho, a fotografia. As fotos muitas vezes acabam

voz DÒ ESCRAVO. Pelotas, 15 maio 1881. pw4.

66
suprindo a falta do texto escrito que detecte a presença dos negros
nas diferentes atividades. Valendo-se deste recurso, foi possível investi
gar as condições de acesso ao trabalho dos egressos do regime servil.
As charqueadas tinham sido, desde o seu surgimento, os maiores
núcleos de concentração de escravos. Já se viu, inclusive, qual a
postura adotada por charqueadores escravocratas na transição do regi
me: a abolição antecipada, com a cláusula de prestação de serviços,
retendo a força-trabalho disponível junto aos locais de produção. Assi
nada a Lei Áurea em 1888, e proclamada a República em 1889, signifi
cativo contingente de ex-escravos ali permaneceu, no desempenho das
mesmas atividades. Testemunhos desta permanência dos mesmos locais
de trabalho não faltam.
Comentando a Revolução Federalista de 1893-1895, no Rio Gran
de do Sul, os Anais do Congresso Nacional registravam que os revolu
cionários iam buscar nos saladeiros do Prata gente para lutar, da mesma
forma que, no Rio Grande, armavam os negros trabalhadores das char
queadas para as necessidades da guerra.
Anos mais tarde, em 1918, os Anais da Câmara dos Deputados
registrariam que a maioria dos trabalhadores das estâncias e das char
queadas gaúchas eram crioulos.Da mesma forma, é possível acompa
nhar pelas fotos antigas das revistas da época a presença dos descenden
tes de escravos nos trabalhos da charqueada e da criação de gado.
Revistas como Á Estância, por exemplo, que circulou de 1913 a 1926,
trazem inúmeras fotos de trabalhadores rurais. Os negros e mulatos
predominam nas tarefas das charqueadas, mas também se fazem presen
tes como peões de estância.Outras revistas rio-grandenses, como
O Progresso e Kodack, assim como obras fartamente ilustradas sobre
as atividades econômicas do estado,dão conta da presença majoritá
ria de negros e mulatos entre os trabalhadores das ch^queadas.
Entretanto, esta permanência do liberto nas atividades da char
queada e da estância, trabalhando em tarefas já consagradascomo perti
nentes ao escravo no regime servil, não representa nenhuma alteração

^^^Anais da Câmara dos Deputados. 1895. v.VI. p.448.


^'^^Anais da Câmara dos Deputados. 1918. v.IX. Rio de Janeiro, Imprensa Nacio
nal, 1919. p.551.
^^^A ESTÂNCIA. Porto Alegre, anos I a X, 1913-1926.
^^KODACK. Porto Alegre, ano III, n® 2, jun. 1918. O PROGRESSO. Porto
Alegre, ano VI, n.® 60, set. 1918.
^^^BLANCATO, Vicente. As forças econômicas do Estado do Rio Grande do Sul
no 11 Centenário da Independência do Brasil, 1822d922, Porto Alegre, Globo,
s.d. MONTE DOMECQ et Cie, L'État du Rio Grande du Sud, Barcelone. Établisse-
ment d'Arts Graphiques Thomas, 1916.

67
do quadro existente. Reforça, evidentemente, as metas do abolicio
nismo gaúcho, de preservação da mão-de-obra junto aos locais de
trabalho, garantindo a dominação sobre os subalternos. Além disso,
eram atividades consideradas como pertinentes aos negros, como é
o caso do trabalho na charqueada.
O que caberia analisar é justamente a possibilidade de acesso
dos ex-escravos em outras atividades do mercado de trabalho em forma
ção. Que o leque destas outras atividades estava se ampliando não
resta a menor dúvida, uma vez que na transição capitalista que o
país atravessava emergia uma ordem urbano-industiial, trazendo consi
go toda uma gama de novas exigências e serviços.
Estas novas oportunidades de trabalho relacionavam-se basica
mente com a cidade, centro administrativo, político, comercial, indus-
trial-manufatureiro, cultural, etc. Além disso, é pela perspectiva urba-
no-industrial que se caracteriza o novo enfoque, progressista-conser-
vador e claramente burguês da nova administração republicana. A
modernização do Rio Grande não se circunscrevia ao campo, tradicional
base de sustentação da província, mas apostava no desenvolvimento
capitalista global do estado, o que, necessariamente, passava pelas
atividades centradas na urbe. É, portanto, por este prisma que se
pode apreciar a propalada ''incorporação do proletariado à sociedade
moderna". Seu alvo era basicamente o proletariado urbano, a quem
cabia controlar, disciplinar e integrar a uma ordem burguesa.
Todavia, este processo de integração não pode ser desvinculado
daquelas constatações feitas ao longo do capítulo 2: a de que o Rio
Grande do Sul apresentava, na passagem do sistema servil para aquele
baseado no mercado de trabalho livre, uma relativa escassez na oferta
de mão-de-obra.
Inclusive esta escassez deve estar na base da ocorrência de salários
mais altos pagos aos trabalhadores do Rio Grande do Sul do que
em outros estados. Os dados coletados nacionalmente em 1919 e referi
dos no censo econômico brasileiro de 1920 indicam que, na classifi
cação regional dos salários diários dos operário adultos do sexo masculi
no, o Rio Grande do Sul aparece em 1; lugar, seguido pelo Distrito
Federal em 2° e ficando São Paulo em 6l lugar,^"^ o mesmo ocorrendo
com os trabalhadores menores de 16 anos do sexo masculino. Uma
possível explicação pode ser o fato de existir no estado um mercado
de trabalho de menor dimensão que São Paulo. Um outro dado que
poderia ser agregado a este seria o de que no estado predominavam
empresas menos tecnificadas que em São Paulo, sendo portanto ainda
valorizado um saber artesanal do operário. O rebaixamento da força-tra-

l^^MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, Indústria e Comércio. Recenseamento do


Brasil; salários, 1920, Rk) de Janeiro, Estatística, 1928. v.V. 25 parte.

68
balho na grande unidade de produção tecnificada, que permite a incor
poração de contingentes mais significativos daquela mão-de-obra de
mais baixa remuneração, ficava por conta de um número reduzido
de empresas. Exemplo típico é o ramo têxtil, setor que apresentava
maior tecnificação, mas que não figurava entre os que pagavam salário
médio mais alto. Este ficava por conta do setor metalúrgico, no qual
prevaleciam as pequenas unidades de produção, frente a um reduzido
grupo de grandes empresas, cuja característica era o uso concomitante
de máquinas conjugadas às ferramentas operárias.
Recolhendo ambas as hipóteses explicativas do maior salário pago
no Rio Grande do Sul, teríamos configurado um mercado de trabalho
caracterizado pela escassez da força-trabalho e pelo uso de uma mão-de-
obra de nível técnico artesanal, paralelamente ao emprego de máquinas.
Raciocinando em termos puramente econômicos, a lógica seria
que o ex-escravo, tomado livre, tendesse a ser absorvido com facilidade
no mercado de trabalho, suprindo a demanda de mão-de-obra na nova
ordem urbano-industrial que se erguia na passagem do séc. XIX para
o séc. XX.
Este processo teria realmente se efetivado? Os negros teriam
tido acesso às fábricas, sem uma discriminação advinda de cor ou
da situação de escravidão? tome-se o caso de Porto Alegre, capital
do estado e maior centro urbano da época. Dados estatísticos referentes
à população do município em 1888 indicam a existência de um contin
gente de 6.903 pardos, 5.231 pretos, 221 índios e 26.462 brancos,
perfazendo um total de 38.817 habitantes.Ou seja, os ex-escravos,
de alforria mais antiga ou mais recente, perfaziam 31,2% da população
total da cidade. Em 1890, a população de Porto Alegre atingiu 52.186
habitantes, alcançando 73.274 em 1900. Além do incremento vegeta-
tivo da população, deve ter contribuído para este crescimento de quase
100% em 12 anos a atração natural que o maior centro urbano da
época devia exercer, em termos de maiores oportunidades de emprego,
possibilidades de ascensão social, etc.
Não há um êxodo rural significativo da campanha para a cidade,
nem uma imigração estrangeira que se dirija especificamente para a
urbe em vez de ir para a zona colonial. E inegável, contudo, que
a população cresceu também por estes meios, o que porém não implica
que o acréscimo tenha se dado majoritariamente pelo êxodo rural,
com a imigração dos despossuídos no sentido campo-cidade. Em suma,
nem a pecuária nem a agricultura colonial estariam liberando força-tra-

^^^AZAMBUJA, Graciano A. Anuârxo da Província do Rio Grande do Sul para


o ano de 1891. Porto Alegre, Gundlach, 1890. p.205. LIMA, A.A. op.cit. p.27.
^^^LIMA, Olímpio de Azevedo. Dados estatísticos do município de Porto Alegre,
organizado em 1912. Porto Alegre, Livraria do Comércio, 1912. p.33,

69
balho num contingente tão significativo para explicar este crescimento,
É preferível creditá-lo ao próprio crescimento do setor terciáiio, típico
da urbe que se toma o centro comercial, administrativo, financeiro
e industrial e que demanda uma série de serviços para o seu funciona
mento. Não há também uma estatística industrial que aponte dados
precisos sobre o contingente operário das fábricas e oficinas de Porto
Alegre neste período. Referências de periódicos da época indicam
que, em 1896, havia mais de 5.000 operários em Porto Alegre.
A rigor, não há estatísticas sobre o percentual de estrangeiros
no contingente operário, ou dados classificatórios dos mesmos quanto
à cor. Desta forma, referências relativas à etnia ou cor da pele devem
ser buscadas em informações eventuais que abordam as condições de
trabalho nas fábricas ou os movimentos reivindicatórios nos quais
se envolviam os trabalhadores urbanos. Por exemplo, na greve ocorrida
entre os tecelões da Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense,
em julho de 1895, os grevistas haviam se dividido em duas turmas,
de italianos e de polacos, o que vem indicar a presença majoritária
de elementos de origem estrangeira entre os trabalhadores daquela
empresa.^^^ Da mesma forma, sabe-se que a fundição Becker, também
de Porto Alegre, mandava buscar seus trabalhadores na zona colonial.
Dados referentes a outras empresas confirmam o uso preferencial de
elementos estrangeiros nas fábricas, mesmo que para isso fosse preciso
mandá-los vir do exterior.
Em 1897, a Companhia de Tecelagem Ítalo-Brasileira principiava
a operar em Rio Grande, com operários italianos mandados vir da
Europa. Nesta mesma época, a fábrica de charutos Poock, também
de Rio Grande, tinha parte do seu pessoal de procedência estrangeira,
notadamente alemães e cubanos. Da mesma forma, a Companhia
Industrial Bageense utilizava para o preparo de carnes, na época da
safra, operários mandados vir de Montevidéu.
Portanto, as fábricas locais optavam por importar mão-de-obra,
entrando a força-trabalho nacional de forma eventual e sazonal, quando
não existissem recursos e/ou possibilidades de utilização da mão-de-
obra de origem estrangeira, ou quando o volume dos trabalhos exigisse
a incorporação temporária de um contingente maior de operários. É
o caso, por exemplo, da fábrica de conservas de carnes, peixe, frutas

l^^^CLASSE Operária. Gazetinha. Porto Alegre, 27 set. 1896. p.l.


l^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 9 juL 1895. p.2.
I^IdELHAES-GÜNTHER. op.cit. p.166-7.
^^^RODRIGUES, Alfredo Ferreira (org.). Almanaque Literário e Estatístico do Rio
Grande do Sul para 1897, Porto Alegre, Livraria Americana, 1897. p.253.
^^^RELATÓRIO da diretoria da Companhia Industrial Bageense. 1892. Bagé,
Quinze de Novembro, 1892. pj6.

70
e doces e banha Leal Santos, de Rio Grande, que incorporava trabalha
dores adicionais na época da pesca,ou da fábrica de velas e sabões
Lang, de Pelotas, que utilizava como matéria-prima os resíduos da
charqueada (graxa) e operava com os trabalhadores daqueles estabeleci
mentos no período da entressafra, quando os mesmos eram dispensados
pelos saladeiros.
Em suma, fosse através da busca de trabalhadores na própria
zona colonial, fosse através da importação direta de uma mão-de-obra
estrangeira, as empresas industriais da época demonstravam uma prefe
rência nítida pelo operário-imigrante. Este uso preferencial revela, no
caso, um preconceito arraigado que, como se sabe, não era exclusivo
do Rio Grande do Sul. Difundido em todo o país, a mão-de-obra
imigrante era considerada superior, regeneradora, sem a mácula da
escravidão e melhor habilitada para o desempenho das tarefas fabris.
Ao referir-se aos operários de uma fábrica de tecidos da capital,
na sua maioria com experiência em estabelecimentos europeus do gêne
ro, o jornal Gazetinha, de tendência socialista, afirmava:
Convém explicar que o fato destes trabalhadores serem em sua totalidade
europeus não significa exclusivismo algum em desabono de nossos patrícios»
pois sendo muito nova no Brasil aquela indústria é lógico ser impossível
já haver operários nacionais habilitados para exercê-la. Necessária se
torna esta explicação a fim de evitar aqui, neste caso, os mal entendidos
de que a má fé exploradora e a estupidez sabem aproveitar-se com
o perverso intuito de estabelecer distinção de raças ou nacionalidades
entre operários, que sob o céu da Europa ou da América são sempre
os mesmos irmãos pela sorte, são sempre igualmente vítimas
A afirmativa do periódico operário deve ser analisada por partes.
Em primeiro lugar, há o reconhecimento explícito de que a habilitação
para o trabalho fabril é pertinente ao operário estrangeiro. Ou seja,
haveria uma incapacidade do trabalhador nacional em relação ao de
origem imigrante, o que, contudo, depois é negado pela afirmação
de que entre proletários não deveria haver distinção de raças ou nacionali
dades... Ora, pelo exposto, conclui-se que não haveria critérios raciais
ou nacionais para estabelecer diferenças entre os trabalhadores, mas
sim distinções advindas de uma maior habilitação técnica de estrangei
ros, tendo em vista uma vivência fabril ou artesanal anterior.
Em parte, este argumento pode ser considerado como aceitável,
tendo em vista que vários dos imigrantes entrados no Rio Grande
do Sul eram artesãos ou operários na sua terra de origem. Os dados

^^^RODRIGUES. op.cit. p.254.


^^^CATÁLOGO da Exposição Estadual de 1901. Porto Alegre, Gündlach &Becker.
1901.

^^^GAZETINHA. Porto Alegre, 6 jun. 1897. pJ2

71
referentes à entrada de colonos queconstamnosrelatóriosdospresidentes
de província apontam para a presença de vários artesãos ou operários
entre os imigrantes.
Analisando os dados referentes à entrada de estrangeiros entre
1870 e 1890, vê-se que, com especificação da profissão, chegaram
4.768 agricultores e 2.684 cadastrados, como diversos,^^^ Mesmo sem
os dados referentes ao período 1875-1888, nos quais consta apenas
o número de imigrantes sem especificação da profissão, é possível
concluir que, entre os chamados diversos, deveriam estar incluídos
os artesãos. Já nos levantamentos da Diretoria de Obras Públicas,
Terras e Colonização, os mapas demonstrativos do movimento de imi
grantes no estado são mais precisos na especificação dos dados. Por
exemplo, em 1898, teriam entrado 1.458 colonos, 87 operários e 61
diversos; em 1899, a entrada seria de 1.676 agricultores e 280 operários
(sem referências a diversos)', para 1900 1.268 agricultores e 235 di-
159
versos.

Não há provas de que aqueles elementos identificados como ope


rários tenham vindo diretamente para assalariar-se nas fábricas, mas
sem dúvida alguma apresentam uma reserva potencial de força-trabalho
qualificada, seja pela sua vivência fabril anterior, seja pelo conheci
mento técnico, que habilitava a um trabalho manufatureiro. O contin
gente, contudo, não é significativo de molde a suprir demandas de
mão-de-obra, mesmo porque tais elementos, dirigindo-se para a área
colonial, tomavam-se proprietários de terra. A partir daí, a liberação
de força-trabalho no sentido campo-cidade processava-se de maneira
lenta.
Por outro lado, julgar o ex-escravo como elemento imprestável
ou incompatível com o uso de máquinas nas empresas é fruto de precon
ceito ideológico, estigma derivado de 300 anos de regime servil. Como
refere Cardoso de Mello, "o progresso técnico é próprio do capitalismo,
enquanto está praticamente excluído da indústria escravista". Ou
seja, o regime servil é que tomava, pela sua lógica própria e pela
sua razão de ser, dispensável a técnica face ao uso do 'Tnstmmento
de trabalho escravo". É próprio do capitalismo o uso da tecnologia
como ingrediente necessário e possibiütador da extração da mais-valia
relativa e de subsunção real do trabalho ao capital. Conseqüentemente,
a técnica desempenha aí um papel fundamental na acumulação e repro-

^^^Como, por exemplo, no Relatório do Presidente da Província de 1870.


l^^PELLANDA, Ernesto. Colonização germânica no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, Globo, 1925.
^^^DIRETORIA de Obras Públicas, Terras e Colonização. Mapas demonstra
tivos do movimento de imigrantes no estado. Anos de 1898, 1899 e 1900.
l^^MELLO. opucit. p.75.

72
dução do capital, bem como na dominação sobre os trabalhadores.
Já o escravismo não requer o progresso técnico como um mecanismo
para a sua reprodução de forma permanente.
Pela sua lógica própria, o aumento da produção no regime servil
se dá pela incorporação dos reais fatores produtivos (mais terra, mais
mão-de-obra) e pela intensificação do próprio trabalho, mediante dilata-
ção da jornada, eficácia dos mecanismos de vigilância e repressão,
etc. O fato de os documentos da época atestarem que alguns estabeleci
mentos no séc. XIX apresentavam escravos operando com máquinas
vem demonstrar a própria desagregação do escravismo enquanto sistema
econômico, na fase de transição, e o óbvio fato de o trabalhador
negro não ser incompatível com o manuseio da técnica.
Sobre estas evidências, contudo, se impunha a força do precon
ceito, que se estendia ao trabalhador livre nacional, em termos globais
e, mais especificamente, ao negro. Como referia um articulista da
Gazeta da Tarde, de Porto Alegre, em julho de 1895, ao manifestar-se
sobre a maior vantagem da agricultura sobre a industria no tocante
ao futuro do Rio Grande do Sul:
Eu, quando escrevi sobre operários, não tinha em vista o rio-grandense,
homem indolente, não por índole mas por vício de educação, o que
há de terminar quando as necessidades da vida o coagirem a buscar
um meio de ganhar seu pão. Referia-me à importação de operários, de
imigrantes, distraídos de um futuro seguro na agricultura para serem
empregados numa indiSstria que tem vida efèmera.^^^
Na sua defesa de um projeto agrário para o Rio Grande, o articu
lista tocava num ponto fundamental: a importação de operários do
exterior para as empresas locais, face ao preconceito e à escassez
de oferta de mão-de-obra local. Esta presença de elementos de origem
imigrante, ou eles próprios vindos do exterior, nas fábricas rio-gran-
denses do final do século é atestada pelas próprias páginas do jornal
proletário A Gaze tinha, incentivador da organização da classe. O perió
dico alertava para as dificuldades desta iniciativa, pois um grêmio
que congregasse operários de diversas nacionalidades — brasileiros,
alemães, italianos — precisaria forçosamente de intérpretes, pois uns
não entendiam o idioma dos outros, convertendo-se numa verdadeira
Babel.
Preferível seria que os operários se reunissem em clubes conforme o
idioma que falam, isto é, os brasileiros e o portugueses em um clube
brasileiro, e os alemães e os austríacos em outro alemão, e assim os
italianos.

l^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 17 jul. 1895. p.l.


^^^GAZETINHA. Porto Al^re, 10 maio 1896. p.l.

73
Aliás, esta prática de agremiações operárias por nacionalidade
comprova-se pela existência da Allgemeiner Arbeiter-Verein,^^ que
reunia trabalhadores alemães e agia em conjunto com a Liga Opertóa
Internacional, de orientação socialista.Apesar das exortações em tomo
da união do proletariado mundial e da condenação dos preconceitos
de raça, as diferenças lingüísticas se mantinham. Referia A Gazetinha
a respeito de uma atividade conjunta das duas entidades operárias:
'falou então, em alonão, o Sr. W. Koch, afirmando a perfeita harmonia
de vistas entre a Arbeiter-Verein e a Liga Operária".
Por outro lado, tem-se dados de 1891 a respeito de uma agremia
ção de trabalhadores de cor, em Rio Grande. A Sociedade Coopera
tiva Filhos de Trabalho se compunha exclusivamente de pretos e pardos,
sem distinção de classe, nacionalidade, sexo ou idade. Não especificava
se os associados deveriam ser artesãos independentes ou operários-
artesões de algum estabelecimento. Sendo uma sociedade de auxflio
mútuo e se propondo a fins assistendais, estabelecia que para ser
sódo o indivíduo deveria ter bons costumes, não estar envolvido em
processo ou crime e gozar de boa saúde. Todavia, estes são dados
esparsos e ainda insufidentes.
Como, porém, identificar os ex-escravos entre o contingente de
operários ditos brasileiros? Mesmo que considerados como "reserva
de segunda linha", teriam eles estado presentes nas fábricas gaúchas
no final do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX?
Neste sentido, mais uma vez a iconografia vem em auxílio da
pesquisa, como fonte reveladora de uma situação na ausência de refe
rências escritas. Uma série de fotos antigas das empresas gaúchas
revelam a presença de negros operários nas fábricas do estado, inclusive
naquelas de propriedade de alemães e italianos e seus descendentes.
Este dado inclusive desfaz o tradicional entendimento que as empresas
de origem imigrante não aceitavam operários senão da mesma etnia.
Na verdade, o recrutamento preferencial de mão-de-obra por parte
de tais empresas se dava entre contingentes daqueles de mesma etnia,
indo até às colônias buscar força-trabalho para a empresa. Entretanto,
mesmo nestas empresas, aparecem negros entre os operários brancos.
Os exemplos se sucedem. Havia elementos negros e mulatos entre
os trabalhadores do Moinho Rio-grandense, de Rio Grande, assim como
entre os operários da Poock, tradicional fábrica de charutos da mesma
cidade. Eles tambàn podem ser identificados entre os empregados
da empresa de Tertuliano Borges, de fumo e café, sediada em Porto
Alegre, ou na fábrica de espartilhos e gravatas Pabst, também da
^^^GAZETINHA. Porto Al^re, 10 dez. 1896. p.2.
l^GAZETINHA. Porto Al^re, 25 fev. 1897. p.2.
^^^Estatutos da Sociedade Cooperativa Filhos do Trabalho. Rio Grande, 1891.
74 '
capital.Da mesma forma, aparecem mulheres negras na seção de
lustração da fábrica de móveis de madeira vergada de Walter Gerdau,
em Porto Alegre, ou homens na secção de envergamento. Operários
negros aparecem posando entre os trabalhadores de uma cervejaria
de Porto Alegre,^^^assim como também entre os trabalhadores da fábrica
de tijolos de Trápaga & Rheingantz, de Pelotas. Negros podiam
ser encontrados ainda entre os trabalhadores da Viação Fénea^^^ ou
entre os operários das minas de carvão.
Entretanto, a presença de negros entre os operários das fábricas
não pode ser superestimada. Ela é indicativa de que o negro também
esteve presente como operário fabril, mas não serve para destacar
sua presença como marcante entre o proletariado industrial. O que
deve ser ressaltado é que, tal como no eixo econômico central do
país, onde havia maior oferta de mão-de-obra, o negro no sul foi
também preterido em favor do trabalhador livre branco e, particu
larmente, de origem imigrante.
Ou seja, no sul a discriminação tendeu, portanto, a ser mais
forte. Mesmo em situação de escassez, as indústrias nascentes preferi
ram optar pela importação de operários estrangeiros do que empregar
negros. A argumentação dos empresários era a de que mão-de-obra
mais qualificada só era encontrável entre os operários saídos do meio
colonial imigrante ou vindos do exterior diretamente para o trabalho
na fábrica.
A destreza manual, a ''virtualidade técnica", não seria encontrada
nos egressos da escravidão mas nos elementos de origem estrangeira.
Este entendimento da superioridade técnica do estrangeiro encontrava
campo propício no caso das empresas que operavam com um nível
técnico artesanal, ainda muito baseadas na íeiramenta do trabalhador
ou em máquinas mecânicas, que funcionavam como uma extensão do
braço do trabalhador. Mas mesmo nos casos em que a empresa começava
a empregar uma tecnologia mais avançada, a argumentação encontrava
outro reforço: somente técnicos especialistas, de preferência estrangei
ros, estavam habilitados a lidar com as modernas máquinas.
Portanto, num e noutro caso, o preconceito operava como um
fteio à incorporação da mão-de-obra egressa do regime servil. Tratava-

l^^ONTE DOMECQ. op.cit. 88, 91, 98, 99, 101, 105, 180.
^^'^BLANCATO» op.cit.
1 ^8
Acervo de fotos do Núcleo sobre Industrialização e Movimento Operário
do Departamento de História do IFCH-UFRGS.
^^^Ibidem.
1 nn
Foto da capa da obra de Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva, Histórias
de operários negros (Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço
de Brindes, 1987).

75
se, possivelmente de um caso no qual a barreira ideológica da discrimi
nação se revelava mais forte que a própria necessidade econômica,
impedindo uma maior absorção do negro pelo mercado de trabalho
livre. Na verdade, o preconceito contra o negro e areelaboração ideolo-
gizada do trabalho, associada ao imigrante europeu, eram noções que
se difundiam no BrasU como um todo. Particularmente, em São Paulo,
com a grande massa de imigrantes que se dirigiu para as lavouras
do café, esta nova valorização do trabalho teve uma base de sustentação
muito forte. No Rio Grande do Sul, contudo, esta nova visão encontrava
outros argumentos: o sucesso do trabalho imigrante materializava-se
na diversificação da economia do estado e no aumento das suas exporta
ções para o mercado interno brasileiro, o que, em termos da economia
gaúcha como um todo, em parte atenuava os problemas enfrentados
pela área da pecuária tradicional. Por outro lado, a acumulação de
capital comercial obtidapela vendados produtos daagropecuáriacolonial
tanto dava margem à modernização capitalista da economia sulina
—indústrias, grande comércio, bancos, companhias de seguros —quanto
fornecia ao PRR uma importante base de sustentação. Afinal, a aliança
republicana que sustentou o partido por 40 anos de República Velha
era formada por parte dos pecuaristas e pelas diferentes frações não-a-
grárias da burguesia. Coroando este processo, o sul oferecia, com
a sua "comunidade de pequenos proprietários rurais bem sucedidos",
o exemplo vivo da superioridade do trabalhador estrangeiro e branco.
De uma certa forma, a prática social efetiva reformulou e adaptou
a proposta do PRR, que via nos libertos um contingente de subalternos
a incorporar ao mercado de trabalho. O essencial, todavia, manteve-se:
enquanto subalterna, a massa ex-escrava precisava ser controlada e
enquadrada na ordem, se não pelo trabalho regular, pelo menos através
de todo um conjunto de práticas disciplinadoras que visavam pautar
o comportamento das classes populares urbanas.
Dentre estas práticas disciplinares, estendidas não só em relação
ao negro mas à classe trabalhadora em geral, destacava-se a da educação
formal, profissionalizante ou não. Como já foi referido, o PRR recolhia
do positivismo comteano esta prática ressocializadora do indivíduo,
que moldava o bom cidadão e o trabalhador dócil e habilitado tecnica
mente. Acerca desta meta expKcita do governo republicano, cabe referir
que, de uma certa forma, uma parcela da comunidade negra contribuiu
para reforçar esta idéia. O jornal O Exemplo indicava que o caminho
para o negro integrar-se era o da educação. A habilitação formal e
a instrução proporcionadas pela escola operariam, segundo o periódico
negro, como uma forma de ascensão social.

^^^Conforme citações do jornal O Exemplo, reveladas por Cardoso em sua


obra Capitalismo e escroi^idão no Brasil Meridional (op.cit).

76
Portanto, há um ponto de confluência entre as práticas ressociali-
zadoras levadas a efeito pelo estado e as aspirações também de nessocia-
lização da comunidade negra, ou pelo menos de uma parcela da mesma.
Naturalmente, os motivos de ambos os movimentos não são os mesmos,
mas confluem para um marco integrador, pautando condutas e canali
zando o caminho dos subalternos para o estabelecimento da ordem
e do progresso, Esta é, contudo, uma prática que pode ser apreciada
no Rio Grande do Sul, na passagem do século, mas que não reverteu,
em si, o difícil engajamento dos libertos no trabalho fabril, mesmo
em condições de escassez de oferta de força-trabalho.
Qual foi, portanto, a trajetória preferencial dos egressos da
escravidão, se a sua incorporação ao trabalho regular nas empresas
deu-se de maneira não muito significativa, salvo naqueles estabeleci
mentos que já anteriormente primavam pelo uso quase exclusivo da
força-trabalho negra? Seu destino foi basicamente o trabalho irregular
nos centros urbanos, em atividades de biscate, e serviços eventuais
que não demandavam qualificação, embora algumas fontes antigas re
gistrem o desempenho de tarefas artesanais independentes por parte
dos libertos.
Refere a este respeito Ericksen:
Os negros preferiram, nos povoados, vilas e cidades, quando libertos,
os ofícios de marceneiros, pintores, pedreiros, assim como as atividades
ligadas ao comércio de couro e lãs.^'^

Outros cronistas antigos reportam-se à presença de negros em


atividades tais como capina de ruas, limpeza de calhas, auxiliares
de igreja, venda ambulante de água e mercadorias no caso dos homens;
quanto às mulheres, eram parteiras, domésticas e quitandeiras,desta
cando-se as famosas negras minas, vendedoras de doces e frutas. Por
outro lado, fotos antigas, da passagem do século, retratam os libertos
como carregadores, assentadores de ruas, acendedores de lampiões,
lavadeiras, estivadores, gaiteiros, condutores de veículos de tração
animal e condutores de bondes.^^"^
Eram todas elas tarefas inerentes à vida urbana mas marginais
ao mercado de trabalho regular. Exército de reserva, a força-trabalho
dos libertos se inseria nas atividades pior remuneradas e que demanda
vam esforço físico, não exigiam habilitação técnica e não se constituíam

^^^ERICKSEN, Nestor. O negro no Rio Grande do Sul; subsídios para a história


da escravidão no Brasil. Porto Alegre, Globo, 1941. p.20.
^'^^AZAMBUJA, op.cit. CORUJA, op.cit LIMA, OA. op.ciU MAZERON, Gastou
Hasslocher. Reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre, Selbach, s.d. PORTO-A-
LEGRE, AchyDes. História popular de Porto Alegre. S.I., s.ed., 1940.
^^^Acervo de fotos do Museu de Porto Alegre.

77
em empregos estáveis. Naturalmente, os negros e negras egressos da
escravidão se engajavam ainda naquelas tradicionais tarefas domésticas
nas quais já se achavam desempenhando os mais diversos serviços:
cozinheiras, copeiras, amas-de-leite e amas-secas, moleques de recados,
etc. Disfarçada ou não, insinuada ou implícita, contra eles pesava
a discriminação, pautando o seu acesso ao mercado de trabalho.
Como se viu, há referências sobre operários negros nas fábricas,
sobre negros eirtesões que ofereciam seus ofícios de forma independente
ou sobre trabalhadores de cor não qualificados que desempenhavam
as mais diversas tarefas na cidade. Muito mais numerosas, contudo,
são as notícias sobre o contingente de ex-escravos presentes em contra
venções e perturbação da ordem social. Nestes casos, a identificação
do liberto é mais fácil, pois a indicação dos atores sociais é sempre
precedida de um qualificativo: o preto, o negro, o pardo, o mulato,
o crioulo... O negro toma-se assim personagem muito presente, indica
do ora como agressor, ora como agredido, mas sempre comparecendo
nos distúrbios urbanos.
Nos inúmeros episódios de violência, ocorridos nas zonas habita
das por gente de baixa renda, os indivíduos de cor geralmente se
encontram entre os desclassificados que o corpo policial tinha em
mente reprimir. Nas suas batidas, a polícia freqüentemente espancava
os negros. Identificados pela sua cor, eram, na maior parte das
vezes, acusados como os agressores, agindo em conjunto com outros
elementos ou praticando atos de violência individualizados contra ter
ceiros. A sua classificação como contraventor ou marginal era assumida
mesmo por aqueles jornais proletários marcados por um profundo mora-
lismo, como a Gazetinha:
Urge também não fazer mão leve sobre esta malta desbragada de alguns
homens de cor, sem ofício definido, que de dia se ap^am ao nojento
balcão das tascas, até a hora de se trancarem as portas.^^
Na sua defesa da classe operária, o periódico socialista defendia
o trabalho regular do proletariado, opondo-o ao contingente de indiví
duos que, sem ofício algum, eram os responsáveis por tropelias e
desassossego para as famílias, além de serem os autores de roubos
e assassinatos. Assim, era preciso distinguir o trabalhador honrado,
que lutava por seus direitos, da coija de desocupados, marginais ao
mercado e à vida regrada. De uma certa forma, esta concepção reforçava
a discriminação contra os libertos e, neste sentido, as notícias são
copiosas e constantes nos periódicos do fim do século:

^'^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 7jua 1895, p.l;8 jun. 1895, p.l.
^^^GAZETINHA. Porto Alegre, 8 mar. 1898. p.l.

78 '
Io..] a preta Eva Maria da Conceição,conhecida como desordeira, praticou,
anteontem, mais uma de suas costumeiras falcatruas. Às 2 horas da tarde
desse dia, no campo da Redenção, a mencionada preta deu 2 facadas
no braço esquerdo do menor Marcflio Fanfo, de 17 anos de idade

[...] Ontem à tarde, na rua do Arroio, esquina do Arvoredo, se travaram


de razões, chegando às vias de fato, duas crioulas, que por motivos
de ciúme, brigaram a valer. Uma chama-se Dionísia e a outra Ondina,
sendo esta a que pior partido tomou na refrega, pois ficou com o rosto
muito maltratado e as vestes ensangüentadas [ 178
[,.. ] na noite de 4; feira próxima, cerca das 9 hs da noite, foi atacado
e agredido o sr. Claudino Silveira de Lima, na rua da Margem, próximo
da ponte de pedra. Aos gritos da vítima acudiu uma patrulha da Brigada
Militar que socorreu-o e prendeu o agressor que reconheceu-se ser o
preto Primo Pinto Ventura

Tais incidentes ocorriam basicamente naquelas zonas habitadas


pela população pobre, como a Cidade Baixa, onde se localizavam
as referidas ruas do Arroio e da Margem, área que, durante a época
da escravatura, era conhecida por Emboscada, por ser esconderijo de
negros fugidos e enfrentamentos com os capitães-de-mato.
Da mesma forma, outros locais tidos como perigosos eram o
arraial da Baronesa, entre a Cidade Baixa e o início do arrabalde
do Menino Deus, famoso por seus becos, onde se açoitavam vaga
bundos, bêbados e prostitutas. Também a rua Santana, na época conhe
cida como rua dos Pretos Forros, alagadiça e habitada pela população
pobre, era outra zona onde se concentravam os negros.
Todavia, mais do que qualquer área da capital, a chamada Colônia
AMcana era célebre pelos distúrbios e crimes que lá ocorriam. Referia
a Gazetinha a respeito:
A corte do crime — a-ssim. devia chamar-se o sinistramente célebre arrabalde
desta cidade e que é conhecido pela denominação de Colônia Africana.
[... ] Ao princípio,notabilizou-se pelas agressões noturnas que ali sucediam-
se às pessoas que por lá incautamente caminhavam; depois essas agressões,
que em sua origem não tinham o caráter de tentativas de assassinato,
foram assumindo feição mais grave, chegando fazer daquele bairro um
ponto de perigoso trânsito, à noite.^^^

Os protagonistas dos crimes praticados eram basicamente indiví


duos de con pretos, pardos e mulatos, e os periódicos reclamavam

^'7'7gAZETA da tarde. Porto Alegre, 9 set. 1895.


^^^Ibidem.
1'79gaZETINHA. Porto Al^re, 18 juL 1897. p.l.
l^^SANHUDO. op.cit. p.208.
^^^GAZETINHA. Porto Alegre, 12 mar. 1896. p.l.

79
providências enérgicas contra o sem número de roubos, assassinatos,
estupros e agressões diversas que lá ocorriam diariamente. Entre
tanto, nos numerosos incidentes que perturbavam a vida dos cidadãos
da capital do estado, o negro nem sempre era o criminoso, ocupando
também o papel de vítima. A vítima, no caso, também se identificava
pela sua cor o preto José Ferreira Bello, assassinado em estado de
embriaguez; o pardo Aldino, apunhalado no ventre por um praça
da artilharia quando se encontrava em sua residência, um casebre
da rua Santana; o preto João Paulo, cozinheiro que apanhou de
palmatória e foi obrigado a pedir perdão de joelhos a seu patrão,
a quem queria deixar face a uma oferta de emprego com melhor remune
ração...;^^ ou o operário José Luiz Timotheo que, além de ser chamado
de negro pelo indivíduo a quem emprestara dinheiro, não recebeu
a quantia que lhe era devida e foi preso pelas autoridades policiais.

Como seria de supor, tais denúncias não são facilmente encontrá-


veis nos jornais oficiais, conservadores e comprometidos com o situa-
cionismo gaúcho da época, tais como A Federação. Neste periódico,
o negro aparece nas ocorrências policiais como arruaceiro e agressor.
A sua identificação como vítima ocorre por conta da imprensa alternati
va, na qual há a identificação explícita de uma discriminação contra
os indivíduos de cor. Note-se, no caso, que, mesmo assumindo a defesa
dos negros, tais jornais não deixavam de sempre identificar os indiví
duos pela sua cor, como era praxe. Deve ser lembrada a posição
da Gazetinha, anteriormente citada, a respeito dos distúrbios causados
por marginais de cor. Essa postura controversa não deve, contudo,
obscurecer o fato de que o periódico assumia a condenação do racismo.
Vem, antes, demonstrar que, enquanto prática ideológica difundida,
o estigma da escravidão atinge também os subalternos. E coerente tam
bém a duplicidade de comportamento: quando indivíduos de cor amea
çam a dignidade da classe trabalhadora, acentuando a idéia de que
"pobre é perigoso" ou o "proletário é desordeiro e não afeiçoado
ao trabalho", o estigma vem à tona, identificando os "verdadeiros"
marginais. Quando, contudo, o indivíduo de cor é um operário, um
trabalhador oprimido, a denúncia à discriminação aparece, sufocando
a herança estigmatizada.

^^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 10 jul. 1895. p.l.


l^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 11 jul. 1895, p.2.
l^^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 5 ago. 1895. p.2.
I^^gaZETINHA. Porto Alegre, 7 jun. 1896. p.l.
l^^GAZETINHA. Porto Alegre, 14 jaa 1897. p.l.

80
No referido caso **João Paulo", a Gazetinha identificava a causa
da agressão:
João Paulo é homem de cor, é preto, e quem sabe se há entre nós
alguma autoridade tão estupidamente vaidosa que entenda ser justo seguir
a norma pregada embora pelos mais desumanos de todos os proprietários
de escravos e que era esta: — negro não tem direitos?! Quem sabe?^^^

Neste sentido, o periódico operário não deixava passar incidentes


nos quais a polícia realizava desmandos contra os pobres em geral
e os pretos em particular. Em reclamatória ao intendente José Montaury
denunciava-se a inadequação do policiamento:
[...]a igualdade de direitos, sob a intervenção da polícia, é ilusória;
prova-o o pouco caso da mesma, quase sempre quando lhe cumpre intervir
em favor de um pobre desapadrinhado e mais acentuado se torna isso
se esse pobre é negro ou mulato mal vestido.^^^
A associação é clara: os negros eram pobres e, como tal, sobre
eles recaía duplamente a desigualdade da aplicação da lei, em função
da cor e da miséria. À discriminação social, que identificava o indivíduo
pobre como perigoso e suspeito, acrescentava-se a discriminação racial,
que só acentuava aqueles atributos.
Na defesa de sua posição, o periódico operário afirmava que:
Ninguém por ser de humilde condição social deve ficar sujeito a vexames
impunes, perante a lei. O rico e o pobre, o branco e o preto têm
os mesmíssimos direitos e iguais deveres.^^^
Não somente periódicos proletários denunciavam situações de
preconceito, mas também o jornal dos negros porto-alegrenses, O
Exemplo, criado em fins de 1892. Dedicado à causa da denúncia do
racismo e a dar orientações sobre a conduta a ser seguida pelos negros,
o jornal é pródigo nas referências de arbitrariedades cometidas pela
polícia e pela justiça contra os homens de cor nas mais diversas situa
ções, que iam do trabalho à escola e da religião à^recreação.i9o
Outras qualidades negativas e práticas condenáveis eram atribuí
das aos negros, tais como a prostituição e o aliciamento de menores
para estes fins. Condenando violentamente o Íenocínio e o caftismo,
a Gazeta da Tarde denunciava: "Negras há que se incumbir de seduzir
menores, entregando-as a quem bem as paga".^^^ As denúncias neste
sentido referem-se à famosa crioula Fausta, que arrastava meninas

^^"^GAZETINHA. Porto Alegre, 7 jun. 1896. p.l.


^^^GAZETINHA. Porto Al^re, 13 jua 1897. p.l.
^^^GAZETINHA. Porto Al^re, 24 jua 1897. p.l.
^^^Apud CARDOSO. Capitalismoop.cit.
^^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 18 set. 1895. p.ll.

81
para a prostituição,ou a caftina Marcolina, crioula amasiada com
um português, a qual se dedicava aos mesmos misteres.
A mulher negra, no caso, era protagonista preferencial de atos
desta natureza, sendo ela a prostituta ou a aliciadora de menores
para tal fim, incorrendo às vezes em atos mais condenáveis, como
a referência a uma mãe desnaturada, que estrangulara com suas mãos
a criança a que dera a luz.^^ Não parava aí a passagem dos indivíduos
de cor pelos jornais: roubo e embriaguez eram práticas nas quais os
pretos e pardos compareciam com freqüência, sempre nomeados pela
s u a cor.
Da mesma forma, há uma nítida associação dos indivíduos de
cor preta com práticas de feitiçaria e magias e outras formas de seduzir
os incautos. Referia a Gazeta da Tarde sobre um caso desta natureza;

Na rua Sá Brito, em uma casa sob iu° 9, vive um preto, verdadeira


celebridade nas artes da magia negra. Popular entre o crentes e os
supersticiosos, o seu antro é visitado diariamente por infinidade de
pessoas que para ali corre em busca de remédios.[,„]Realmente é triste
ver-se no meio de uma sociedade civilizada como a nossa, que ainda
há gente que tem superstição, etc. Muito bem anda a polícia batendo
nos tais covis e acabando com esta súcia de africano que explora a
credulidade dos néscios.

O chamado Caso do tio Pedro teve amplos desdobramentos pela


imprensa, uma vez que as investigações apontaram para o funciona
mento de uma sociedade secreta com caráter religioso que atuava
no mesmo local, e que teria implicação com alguns assassinatos ocorri
dos na cidade. Na descrição do periódico, tio Pedro era um negro
africano que tinha
[...]na fisionomia uma expressão de malvadez que o torna repelente.
Quem o olha adivinha logo que ali está um mau sujeito e não pode
deixar de dizer com os seus botões: — Este negro tem muitos crimes
na consciência.'^
Assaltantes, prostitutas, assassinos, bêbados, desordeiros, bruxos,
agressores e agredidos, encerrar-se-ia por aí a passagem dos ex-escravos
pelos jornais do fim do século? Resta ainda um papel: o daqueles
que, não absorvidos pelo mercado de trabalho, marginais ao sistema,
recorriam à mendicância.

'92gaZETA da tarde. Porto Al^re, 30 abr. 1895. p.l.


'93gaZETINHA- Porto Al^re, 9"set. 1898. p.l.
194gaZETINHA. Porto Al^re, 15 maio 1895. p.2.
'95gaZETA da tarde. Porto Alegre, 11 maio 1895. p.2.
'^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 15 maio 1895. p.2.

82
Alertando para os enganos da falsa caridade, os jornais chamavam
a atenção para o preto velho que, apoiado num bordão, pedia esmola
para o público. Muitas vezes, embolsado o dinheiro, corria rápido
e seguro em busca de outro óbulo que um incauto lhe daria. 197
Aliás, a caridade para com os mendigos tinha os seus altos e
baixos, principalmente nas noites frias de inverno em Porto Alegre:
se às vezes os jornais noticiavam o recolhimento de pedintes de cor
à Santa Casa,i98 não raro era referido que algum deles morrera de
frio na madrugada, após ter sido repelido da porta daquela instituição,
onde buscara abrigo. Desalojados do mercado de trabalho, conside
rados inúteis para a produção, a mendicância aparecia para os mais
velhos como a alternativa para o crime ou os biscates, para os que
não possuíam mais idade e vigor.
Em suma, os egressos da escravidão, como parte das classes
subalternas, eram alvos das estratégias de dominação da ordem burgue
sa que se impunha. Como tal, os despossuídos precisavam ser enquadra
dos, controlados e ter o seu comportamento pautado e vigiado. As
classes trabalhadoras, em síntese, eram potencialmente perigosas e
delas se esperava obter um comportamento ordeiro e pacífico, inculcan-
do nelas hábitos de trabalho.
Neste contexto, os libertos eram os verdadeiros despossuídos
no processo de constituição da força de trabalho livre no sul, conside
rando que a imigração estrangeira no Rio Grande se orientava preferen
cialmente para a constituição da pequena propriedade rural e que a
população subalterna da campanha, nesta época, ainda não fora privada
totalmente dos meios de subsistência.
Os egressos da escravidão, como negros, agregavam a este quadro
o estigma do qual eram portadores: eram visualizados ideologicamente
como uma foiça-tiabalho inadequada para o trabalho regular, avessos
à nova ordem que se impunha. Em condições de um mercado e trabalho
relativamente escasso no que diz respeito à oferta de mão-de-obra
Uvre, a discriminação ideologizada contra os libertos no sul tendeu
a ser muito forte, superando inclusive uma necessidade real de integra
ção do ex-escravo na ordem urbano-industrial que se erguia. Foi capaz,
inclusive, de readaptar a proposta republicana positivista do período
pré-abolição, segundo o qual o liberto deveria integrar-se como foiça-
trabalho nas tarefas industriais.
Embora, como se viu, o negro tenha estado presente nas fábricas,
mesmo em situação de escassez as indústrias nascentes preferiram

^^^JORNAL DO COMÉRCIO. Porto Alegre, 8jan. 1897. p.6.


^^^GAZETINHA. Porto Alegre, 3jun. 1898. p.2. GAZETA DA TARDE. Porto
Alegre, 26 set. 1895. p.2.
^^GAZETA DA TARDE. Porto Alegre, 17 jul. 1895. p.2.

83
optar pela mão-de-obra de descendência estrangeira. Aos ex-escravos
restou aquela atividade já identificada na sociedade escravocrata
como tarefa de negro —o trabalho nas charqueadas —, o engajamento
nas atividades à margem do mercado regular de trabalho — biscates
—, aqueles serviços urbanos que não demandavam qualificação —capina
e limpeza de ruas, carregamento de mercadoria, condutores de veículos
de tração animal — ou, ainda, os tradicionais serviços de criadagem
doméstica.
Fora deste mercado de trabalho, regular ou irregular, rejeitado
como força-de-trabalho ou resistindo integrar-se a ele, o negro aparece
no contingente dos incapazes ou indesejáveis para a produção: mendi
gos, assaltantes, contraventores diversos, bêbados e arruaceiros.
Subalternos, em suma.

84
Nova Séri© a Nova Série Livro-Texto, da Editora da Universidade,
Livro-Texto traz de volta a idéia de que os professores não dispõem, muitas
I 1 vezes,de obras condizentes com suas necessidades específicas
' ^ de sala de aula. À ausência de bibliografia especializada, soma-se
a pequena quantidade de textos específicos para uso pedagógico. O objetivo desta série
é preencher um vazio editorial, enriquecendo o processo de aprendizagem com livros
que atendam as carências das múltiplas áreas de conhecimento.

BASIC para jovens: introdução à informática / 1


Magda Bercht e Newton Braga Rosa
Este livro foi escrito de forma coloquial, direta e simples, visando facilitar o auto-
aprendizado da linguagem BASIC pelos não-iniciados. BASIC para jovens foi projetado
para ser usado junto com um microcomputador. Conforme a experiência dos autores,
o estudante pode progredir no seu próprio ritmo, dispensando a presença constante do
professor. Em 12 horas de trabalho, em média, vencerá todo o conteúdo, se sentirá
seguro para elaborar pequenos programas e motivado para estudos mais avançados.
Dance aprendendo, aprenda dançando / 2
Morgada Cunha
A dança criativa possui características, valores e finalidades eminentemente educativas,
por isso ela deveria integrar currículos escolares desde a prc-escola ate a universidade.
Seus conteúdos típicos são perfeitamente adaptáveis a qualquer nível de ensino, o que
viriaa complementar as atividadesginásticas,lúdicas, esportivas e recreativas, que via de
regra integram a disciplina de Educação Física ministrada em nossas escolas.
Introdução à lógica elementar (com o símbolo de Hilbert) / 3
Rejane Carrion e Newton C.A. da Costa
A teoria dos operadores que formam termos ligando variáveis de fórmulas tem sido muito
desenvolvida e encontrado aplicaçõesdiversas. O caráter não trivial das técnicas para se
estudaro símbolo de Hilbert torna patente o significado profundo das noções da lógica
hodierna. Achamos então que uma introdução à lógica fundada no símbolo de Hilbert
associado à lógica elementar afigura-se conveniente.
Manual LOGO / 4
Lucila Maria Cost! Santarosa (coord.), Maria Eunice Garrido Barbieri,
Rosângela Kisiolar Machado e Renato Albano Petersen Filho
Trabalho desenvolvido pela equipe de pesquisadores, professores e monitores do Projeto
EDUCOM, da Faculdade de Educação da UFRGS. Tem como propósito suprira falta de
um manual que facilite a aprendizagem pela criançada linguagem LOGO.
Como ajudar a criança no seu desenvolvimento:
sugestões de atividades para a faixa de Oa 5 anos (6.ed.) / 5
Euza Maria de Rezende Bonamigo, Vera Maria da Rocha Cristóvão,
Heloísa Kaefer e Berenice Walfrid Levy
Nesta obra o que se fez foi uma sistematização daquilo que, instintivamente, algumas
mães fazem com seus filhos, sem se preocuparem com a função que estão estimulando e
mesmo sem saberem que si^ificado tem isto no processo evolutivo infantil.
A estimulação proposta é dirigida à criança normal, dentro de um padrão global e
integrado de desenvolvimento. Sua aplicaçãodeve ser regular e gradativa, isto é, os
estímulos devem ser oferecidos em quantidade, qualidade e na oportunidade certa,
de forma simples e natural.
Farmacologia médica: abordagem de solução de problemas (4.ed.) / 6
FIávio Danni Fuchs e Lenita Wannmacher
Os autores questionam sobre a real necessidade de um tratamento medicamentoso,
avahando a relação custo/benefício desse uso; correlacionam os conteúdos farmacológicos
à aplicação clínica; discutem os parâmetros que fundamentam a prescrição medicamentosa;
analisam elementos que permitem a leitura criteriosa da informação disponível; listam
referências bibliográficas atualizadas e preparações comerciais de fármacos.
síntese
universitária

A série Síntese Universitária apresenta


de forma clara e acessível ao público universitário
os grandes temas da Ciência, da História, da Cultura e da Arte.

Cenas médicas
(pequena introdução à história da medicina) / 1
Moacyr Scliar
Nossos adolescentes / 2
Ronald Pagnonceili de Souza
Segunda guerra mundial
(história e relações internacionais/1931-45) / 3
Paulo G. Fagundes Vizentini
História e literatura / 4
FIávio Loureiro Chaves
Cultura brasileira (das origens a 1808) / 5
Luiz Roberto Lopez
Cinema brasileiro (idéias e imagens) / 6
Carlos Diegues
O nazismo (breve história ilustrada) / 7
Voltaire Schilling
Biologia, cultura e evolução / 8
Francisco M. Salzano
Caderno de notas (um repórter na América Latina) / 9
Eric Nepomuceno
Evolução social do Brasil / IO
Nelson Werneck Sodré

A descoberta da América (que ainda não houve) /II


Eduardo Galeano

Cultura brasileira (de 1808 ao pré-modernismo) / 12


Luiz Roberto Lopez
O romance na América Latina / 13
Márcia Hoppe Navarro
Guerra do Vietname (descolonização e revolução) / 14
Paulo G. Fagundes Vizentini
O anarquismo (promessas de liberdade) / 15
Luiz Pilia Vares

A legalidade (último levante gaúcho) / 16


Joaquim Felizardo
A inconfidência mineira / 17
Luiz Roberto Lopez
A república (uma revisão histórica) / 18
Nelson Werneck Sodré
1 I'

Av Plinio Brasil Milano 2145


Fone 41-0455 - P. Alegre • RS

Composição:
K&M - Composição. Arte e Revisão Ltda.
Av. Vicente Monteggia, 1505 - Fone: 4ÍF7071
Porto Alegre-RS
Neste contexto, cabe indagar co
mo se teria definido o mercado de tra-
baltio livre no Rio Grande do Sul fren
te à emergência de uma ordem bur
guesa e quais as especificidades
deste processo, tendo em vista as
condições objetivas presentes no
Sul. Em suma, trata-se de investigar
qual teria sido a trajetória dos ex-
escravos no mercado de trabalho em
formação e quais as técnicas de
compulsão executadas pelas elites
da época.
Entretanto, as generalizações não
resgatam as condições históricas es
pecíficas de realização de um pro
cesso mais amplo. Existe-, no caso,
uma problemática que é universal —
a de estruturação do capitalisn-.o em
termos mundiais —e uma especifici
dade latino-americana e nacional —
a emergência do trabalho livre e da
ordem burguesa no bojo da internali-
zação do capitalismo em temas ame
ricanos. Entretanto, se o confronto
dialético "universal-específico"é vá
lido para o resgate da conscientiza
ção histórica daqueles processos no
Brasil, não se pode diminuir a inclu
são das dimensões regionais deste
mesmo processo.
Aformação do mercado de trabalho livre
no Rio Grande do Sul se insere no processo
de transição capitalista e de constituição
de uma ordem burguesa que passou a se instaurar
no país no decorrer da segunda metade do século XIX.
As condições específicas de existência
do escravismo no Sul, a imigração estrangeira
e a presença do positivismo endossado
pelos republicanos dariam um contorno peculiar
à emergência dos ex-escravos como subalternos
da nova ordem burguesa.

O Editora
da Universidade
Universidade Federal do RioGrar>de do Sul
I » '

Li

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