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CASALETRAS
2022
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Copyright ©2022.
Direitos desta edição reservados aos organizadores, cedidos somente para a presente edição à Editora Mundo Acadêmico.
Importante: as opiniões expressas neste livro, que não sejam as escritas pelos organizadores em seus capítulos, não representam ideia(s) destes. Cabe, assim, a cada autor a responsabilidade por seus escritos.
Capa e diagramação:
Luiz Henrique Torres
Editor:
Marcelo França de Oliveira
Conselho Editorial
Prof. Dr. Amurabi Oliveira (UFSC)
Prof. Dr. Aristeu Elisandro |Lopes (UFPEL)
Prof. Dr. Elio Flores (UFPB)
Prof. Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Prof. Dr. Francisco das Neves Alves (FURG)
Prof. Dr. Jonas Moreira Vargas (UFPEL)
Profª Drª Maria Eunice Moreira (PUCRS)
Prof. Dr. Moacyr Flores (IHGRGS)
Prof. Dr. Luiz Henrique Torres (FURG)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
A96 A Longa Viagem de um Relógio / Luiz Henrique Torres. [ Recurso eletrônico ] Porto Alegre:
Casaletras, 2022.
117 p.
Bibliografia
ISBN: 978-65-86625-46-2
1. Estados Unidos - 2. Imigração Alemã - 3. Rio Grande do Sul - I. Torres, Luiz Henrique - II.
Título.
EDITORA CASALETRAS
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - contato@casaletras.com
www.casaletras.com/academico-livros
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SUMÁRIO
A longa viagem/8
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Figura 2 Bandeiras dos EUA e do Império Brasileiro no século XIX. Figura 1 Bandeira do Império do Brasil, século XIX.
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“...queria compreender melhor a contradição que é procurar na realidade um quadro das memórias,
aos quais faltará sempre o encantamento que lhes advém da própria memória e de não serem
percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não existia mais. Os lugares que
conhecemos não pertencem apenas ao mundo do espaço onde os situamos por comodidade; a
lembrança de determinada imagem não passa da nostalgia de determinado instante. E as casas, ruas
e avenidas são, ai de mim, fugazes como os anos”. PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. No
caminho de Swann: nomes e lugares. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, vol. 6, p. 46.
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“Uma casa tem muitas vezes as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que
passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu
desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver
cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa,
dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e
verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia
de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como
dependerá de ti a absolvição da má escolha. Machado de Assis, Relíquias da Casa Velha (1906).
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Abstract
The Long Journey of a Clock follows the trajectory of the character Fritz from the United States
to the South of Brazil. References are made to episodes of American History, German Immigration
and The History of Brazil. The account has historical foundations, biographical elements and poetic
freedom in creation.
Resumo
A Longa Viagem de um Relógio acompanha a trajetória do personagem Fritz dos Estados Unidos até
o Sul do Brasil. São feitas referências a episódios da História Norte-Americana, da Imigração Alemã e
da História do Brasil. O relato tem fundamentos históricos, elementos biográficos e liberdade poética
na criação.
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A longa viagem
Na verdade, ele reflete apenas as minhas memórias, mas, ao escrever eu deixo que ele se
De fato, eu o “conduzi” a dar sentidos aos acontecimentos apesar de não ter nenhuma certeza
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Haverá um sentido para os acontecimentos que inesgotavelmente ocorrem pelo planeta?
Havendo ou não, descobri que nós podemos dar sentidos aos acontecimentos num conflito
Portanto, este livro apresenta sentidos objetivos e ocultos, mesmo que eles não consigam
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Tenho 150 anos de idade e nasci em 1872 em Winsted (Connecticut) nos Estados Unidos.
Apesar de uma idade tão longeva não sou um vampiro (como o Nosferatu da página seguinte), pois,
estes seres vivem sugando as energias (nos livros e filmes sugam até o sangue...) enquanto eu
E são muitas as memórias que guardo dos dias ensolarados e sombrios, dos verões e invernos,
da alegria e da tristeza, das noites escuras e silenciosas, da luz dos lampiões esfumaçantes.
Confesso que o meu grande temor é o silêncio das memórias e por isso busco deixar os relatos
registrados num livro (na Antiguidade grega, Heródoto, pai da História, disse escrever para que a
mimese -a memória-, não fosse perdida por não ter sido registrada!).
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Durante metade da minha vida conheço uma pessoa que gosta de mim: a Wali! Desde criança
ela me visitava e a mais de 60 anos me levou para sua casa e teve início uma etapa mais tranqüila de
minha vida, sem o assédio de seres devoradores de corpos (como em filmes de terror de Vincent
Price adaptados de histórias de Edgar Allan Poe). Estou me referindo a algo que não gosto que são os
cupins! Seres nefastos que podem comer o meu corpo material e apagar minhas memórias.
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Figura 3 Wali e seu pai Henrique, meu grande amigo.
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Quem também me admirava era Luiz Carlos, esposo da Wali e pai do escritor. Aqui eles estão
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Como afirmou Jean Paul Sartre no livro A Náusea, através da arte literária, poderia guardar parte
de mim num livro e me perpetuar da aniquilação material. E é isto que busquei nesta obra! Claro,
desde que cupins ou traças também não devorem o prolongamento do meu ser pensante: o livro que
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Qual a origem do meu nome? A filha da Wali, a Mara, é que desde criança começou a me chamar
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Por mais imaterial que sejamos, precisamos de uma materialidade para sermos algo: o corpo, a
madeira, a engrenagem mecânica, o livro. Afinal, nossa memória fica registrada naquilo que foi
gravado!
E digo com convicção que não sou apenas madeira e engrenagem! Só não escrevo, por não ter
mãos para fazê-lo. Pedi ao escritor que assina o livro, que escrevesse por mim, mesmo sabendo que
ele não pode entrar em minha essência para expressar exatamente o que gostaria de dizer.
Mas sei que ele se esforça por me expressar mesmo que seja inconscientemente... O que faço
para isso? Enquanto ele dorme eu passo as informações para o seu cérebro e quando ele acorda
eclodem as ideias para a escrita. Entre sonhos e sugestões induzidas, estou perpetuando minha vida
na forma de um livro.
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Como tudo na vida, sou um ser único, e sei que existe uma memória para cada ser existente
que é diferente dos demais. E não pense que só os humanos tem memória! Para minha sorte, meu
atual amigo que foi colocado ao meu lado – um rádio Motorola de 1946 – teve uma válvula queimada
há vários anos atrás. Foi sorte, porque, vocês não fazem ideia o que fala um rádio!
O seu primeiro proprietário e grande amigo era o Henrique Weiss, que além de fazer a minha
limpeza e me concertar, adorava escutar as diferentes estações de rádio de todo o mundo, inclusive
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O rádio lembra com orgulho de todos os programas da Era do Rádio: das transmissões da BBC
de Londres; da Rádio Nacional do Rio de Janeiro; dos programas orquestrados com Mozart e
Bethoven; do melancólico blues de Robert Johnson; do jazz de Louis Armstrong e do big band de
Glenn Miller; da bossa nova de Tom Jobim; das rádios da Argentina (e o tango de Gardel); além de
inúmeras outras emissoras pelo planeta. Felizmente, a válvula do meu amigo queimou antes dele
conhecer outros ritmos musicais que hoje são muito difundidos. Seria muito difícil suportá-lo...
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Como cultuo as vozes do silêncio, aprecio muito a escuta atenta das ideias que emanam do
“autor”: espio as notícias da internet (quando a “banda larga” e o “wi-fi tupiniquim” conseguem
funcionar...); leio em papel (minha preferência antiecológica e celulósica que poderia ser
transmutada em formato digital) o jornal e as revistas de História; viajo em meio aos mais de quatro
mil volumes de sua biblioteca. Meu olhar vaga entre o sarcófago de Tutancâmon até reflexões sobre
o alemão Friedrich Nietsche, que afirmou com o seu característico sarcasmo: “O macaco é um animal
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Figura 4 Friedrich Nietsche.
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Da minha espécie de relógios existem as mais diferentes personalidades: o meu perfil é
observar e relatar as experiências e tive sorte de encontrar alguém que aceitou inconscientemente
inseridas em meios familiares, círculos de amigos, história local, histórias de países e processos de
globalização. E a história feita pelos humanos está na dependência dos processos do planeta e do
sistema solar: calor ou frio, vulcões ou furacões, ciclos solares e choque de asteroides. Nossas vidas
individuais existem numa esfera muito mais ampla de espaço e de tempo. Na dependência de
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Mas como começou a minha história?
Como todo mundo, tive um nascimento demarcado no tempo e no espaço. Como o texto que
mistura contexto histórico e ficção, a imaginação também será a condutora do relato quando não
consegui – nas pesquisas que fiz e nas lembranças mais apagadas de minhas vivências – recordar
“exatamente” como tudo se passou, até porque a história foi muitas vezes contada por terceiros que
já a escutaram de outras pessoas... Ao longo do tempo não temos uma totalidade do que aconteceu
Muitas vezes a memória é nítida nas emoções, mas, sei que as emoções nos afastam da
sobriedade da razão e podem criar ilusões. Mas diferente dos positivistas - tão atuantes no século
XIX em que vim ao mundo-, a racionalização absoluta não é possível! (para profunda tristeza de
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Para representar a importância de preservar os eventos sempre recordo da musa da História,
Clio. Esta musa grega traz em uma das mãos um livro de Tucídides (um dos primeiros historiadores)
e na outra uma trombeta para proclamar a importância dos acontecimentos históricos. Escrever os
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A mãe de Clio se chamava Mnemósine, a deusa da memória e da lembrança. As nove musas
gregas eram filhas de Mnemósine. A memória dos acontecimentos é indispensável para que não
ocorra o esquecimento das experiências pessoais e sociais. A memória é essencial para termos noção
acreditaram ser possível através do conhecimento científico domesticar a natureza e moldá-la aos
seus anseios de controle dos processos econômicos (liberalismo econômico) ou da descoberta das
leis de funcionamento da matéria (materialismo histórico). Frutos deste século continuam a ser
colhidos: um dos legados da Revolução Industrial é que entre a década de 1880 até o presente a
temperatura do planeta aumentou cerca de 1,2°C. A projeção é que pode aumentar para mais de 2°C
É o chamado Aquecimento Global que poderá colocar em xeque a permanência dos humanos
no planeta ou no mínimo, exigir profundas mudanças em sua forma de agir em relação à exploração
dos ecossistemas.
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Elevação da temperatura do planeta entre 1880-2021:
Figura 6 https://twitter.com/ScottDuncanWX/status/1483848577696866309/photo/1
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Outro legado (com ajuda do “saber médico” que permitiu reduzir a alta mortalidade no século
XIX) é a população do planeta que era, em 1800, de 1 bilhão de pessoas, quando nasci era de 1,5
bilhão e hoje é de 8 bilhões. Como gerenciar tantas pessoas, tantos conflitos e a diminuição dos
recursos do planeta frente à tamanha demanda de consumo? Espero estar vivo para saber como a
humanidade lidará com isso. Porém, espero não estar consciente quando o cenário virar a saga
profética do filme Mad Max com Mel Gibson ou algum remake de The Walking Dead...
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Meu nascimento recua ao ano de 1872 (ano em que Sheridan Le Fanu estava publicando o conto
vampírico Camilla) e a Revolução Industrial está mudando o perfil dos Estados Unidos da América.
1836 Samuel Colt fundou a famosa fábrica de armamentos “Colt”, sendo difícil pensar num bang-
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Em Connecticut, em 1839, Charles Goodyer descobriu a vulcanização da borracha
“arredondando” de forma mais sofisticada o dia-a-dia; na II Guerra Mundial a cidade foi um dos
principais produtores mundiais de armamento (aviões, navios, submarinos); o USS Nautilus, primeiro
submarino nuclear da Marinha Americana, foi aí construído na década de 1950; além de inúmeras
indústrias que garantiram uma forte diversificação econômica para este estado americano.
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No vilarejo de Winsted, neste industrializado estado de Connecticut na costa leste dos Estados
Unidos (entre os estados de New York e Massachussets) foi criada em 1871 a empresa de William
Lewis Gilbert (1806-1890). Sou um dos relógios/filhos de Gilbert que foram distribuídos por
inúmeros países e caíram na predileção de imigrantes alemães que rumavam para o Sul do Brasil.
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Não é à toa que sou especial: os relógios se tornaram essenciais para contar o ritmo dos
aos relógios contarem este tempo, que se acelera ou é moroso, frente ao ritmo das ações humanas.
A contagem do tempo associada aos eventos é fundamental para buscarmos uma lógica na
compreensão do acontecer histórico fundado num antes e num depois. O tempo, o evento, as fontes
acontecimentos e memórias!
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Modelo de relógio de bolso da década de 1840 com alusão ao Corvo de Edgar Allan Poe.
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Os relógios com formato retangular para colocação em parede começam a ser feitos entre
1806-1808.
No ano de 1808, Eli Terry inventou o primeiro método de produção em massa de relógios do
planeta, dando início a popularização dos relógios que até então, devido ao alto custo, eram
produtos elitizados. Em 1828, relógios Gilbert começam a ser fabricados em Winsted, porém a marca
criada pelo seu fundador William L. Gilbert se tornou uma referência com os grandes relógios
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A produção da Gilbert, diversificada em modelos, estendeu-se até a década de 1960. Os
relógios mais antigos levaram o nome Marsh, Gilbert and Company; ja o meu modelo, também muito
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Cartão-postal de 1912 (imagem de 1906) da Fábrica Gilbert em Winsted, Conn.
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Somente seis anos antes do meu nascimento havia encerrado a devastadora Guerra da Secessão
Americana (1861-1865) que trouxe grande destruição ao atualmente país mais poderoso do planeta
Terra. As cicatrizes da guerra permaneceriam por muito tempo e escutei várias histórias
assombrosas e assustadoras. Os “horrores noturnos” (nada haver com Monstros S.A.) pareciam muito
reais naquela época em que eu ainda era uma criança e o país estava dividido entre o Sul e o Norte,
Muito se falava sobre o presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln que fora assassinado
em 1865 e que permanece até o presente como um personagem em evidência na cultura pop
americana. Em 2012, Lincoln foi transformado, literária e cinematograficamente, até num caçador de
vampiros! O fato é que ele é uma referência essencial para entender a cidadania norte-americana e
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Guerra da Secessão em 1862. Harpers Weekly.
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Figura 8 Abraham Lincoln em 1863. In: http://www.britannica.com
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Materialmente posso me definir como um relógio colocado numa caixa de madeira feita de
pinho de Riga e nogueira laminada. Minhas dimensões são: altura 73 cm, largura 41 cm,
profundidade 11 cm, peso 6 kg (sem as pedras=blocos de metal). Sou composto por uma
engrenagem e no interior da caixa está escrito em inglês como o meu mecanismo funciona com a
batida integral em cada hora cheia e uma batida a cada 30 minutos. É o Eight Day o relógio que
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A imagem tem 20 cm de largura e 30 cm de altura. É uma litografia impressa na Herold Job
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Como era característica do meu modelo, a porta da frente era composta por dois vidros. O de
cima transparente para observar os ponteiros das horas e o vidro de baixo estampava alguma
imagem, especialmente flores ou natureza morta. Mais raramente algum espaço público era
retratado, como é o meu caso. Na parte interna ao fundo era colado o papel com a identificação da
empresa e do modelo.
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Aqui está o segredo
da Máquina do
Tempo de H. G.
Wells.
Nesta engrenagem
está a magia da
perpetuação física e da
memória.
Quem controla o
tempo domina a sua
passagem e o seu
passamento.
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Pintura a mão era feita no metal onde os numerais romanos e os detalhes florais eram
desenhados.
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Detalhe da madeira do pinho de Riga de 150 anos na parte inferior da caixa:
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Este é o meu pêndulo e a manivela para dar corda. Sou um relógio padrão 8 dias, este é o
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Considero a minha estampa muito especial! Ela remete a um cenário histórico de uma
determinada cidade e conheço apenas mais um relógio com esta imagem (será que tenho mais
“irmãos pictóricos” ainda vivos?). Num site da internet é que conheci este irmão que mora nos
Estados Unidos, porém, não conheço mais detalhes de sua personalidade. Enquanto o meu desenho
é mais realista, em bico de pena, o do meu irmão foi pintado com cores fortes que podem ter lhe
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A felicidade que tive em ter sobrevivido ao tempo, deve ter passado ao largo da maioria dos
meus outros irmãos replicantes. Mas ficarei contente o dia que encontrar outros com a minha
aparência, porém, com certeza, tendo outra personalidade já que ninguém é igual!
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Detalhe da praça:
Bandeira hasteada e
movimentação de militares se
deve a ser o centro
administrativo municipal
(Câmara Municipal) de Nova
Iorque.
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Detalhe romântico de um casal junto à fonte.
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Durante muitos anos o escritor deste livro tentou decifrar a minha história. Esta gravura é o que
mais chamava a sua atenção. Instiguei para despertar o seu espírito de historiador desde criança e
acabou sendo a profissão que ele acabou seguindo. Ele descobriu que esta imagem é a Fonte Croton
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Figura 10 Fonte Croton em sua inauguração em 1842. In: http:www.crotonhistory.org
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Em minhas viagens já encontrei vários relógios produzidos na casa do mesmo pai (na fábrica
em Connecticut). Numa passagem por Santa Cruz do Sul, na parede de um hotel, estavam três
relógios. Em Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, um museu expunha aos visitantes outros três. Afinal,
quantos milhares foram criados por Victor Frankenstein naquela fábrica? (foi apenas uma liberdade
de onde vim recorri à pesquisa histórica já que todos temos uma história que está inserida num
momento do passado das sociedades. Acreditava que a chave para entender minhas origens estava
naquela imagem que observo há 150 anos sem me cansar ou esgotá-la. Com a pesquisa descobri
que a Fonte Croton fica num dos espaços mais privilegiados de Nova Iorque e sua história é a
seguinte: a Fonte Croton (1842–1870) recebia água pelo Aqueduto de Croton, fornecendo a Nova
Iorque o primeiro suprimento confiável de água potável. Este Aqueduto tinha uma extensão de mais
Para celebrar a conclusão das obras do Aqueduto é que a fonte foi inaugurada, numa das
maiores obras públicas da primeira metade do século XIX. A bacia central da Fonte tinha 30 metros
de diâmetro e a projeção da água jorrava a 15 metros de altura. A fonte podia receber 132 milhões
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A inauguração ocorreu no dia 14 de outubro de 1842. Ocorreram grandes festejos e a presença
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As paisagens vão sendo modificadas frente às ações humanas, neste caso, ações de
remodelação urbana.
Nesta imagem vemos a Praça em 1812, portanto, 30 anos antes da construção da Fonte Croton:
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Avançando no tempo vemos a praça no ano de 1911. Quase tudo mudou:
Figura 14 City Hall, New York, 1911. In: New York City Hall Livrary.
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Um excelente acervo para o estudo da história é a pesquisa em jornais como no Dollar Weekly
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As fontes imagéticas, as litografias reproduzidas no jornal contribuem para fazer um
esclarecimento: na minha imagem tem uma bandeira com seis estrelas, o que está incorreto! No
jornal são 26 estrelas e cada uma representa um estado americano no ano de 1842. Este é o número
correto de estados que constituíam os Estados Unidos naquele ano. Certamente, o artista que fez o
meu desenho optou por fazer seis estrelas maiores do que vinte e seis pequenas e quase invisíveis.
descontinuidades. Através dos documentos e da memória vou juntando os cacos da minha trajetória.
E me questionei: se nasci na costa leste dos EUA e fui vendido no Porto de Boston, como fui
comprado por uma família de colonos vindos da Alemanha com destino ao Brasil?
Descobri que nasci para ser um produto fruto da industrialização e como tal uma mercadoria.
Neste que é considerado o século da História (o XIX) devido ao enfrentamento entre concepções
sobre o passado que buscavam a cientificidade e o afastamento das explicações sobrenaturais, foram
edificadas vertentes teóricas que defenderam ou foram antagônicas ao capitalismo. Realmente foi um
século de grandes confrontos e transformações cujo legado faz parte de nossas vidas até o
presente...
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Afinal, a produção de mercadorias ampliou-se significativamente a partir da década de 1880 e
bateu recordes de consumo nestas duas décadas do século XXI. Para produzir é gerado poluição,
consumo e o enriquecimento dos países produtores como é um exemplo a China, se intensifica a luta
por mercados e se incrementa ainda mais a produção. Um ciclo que se chamaria de Imperialismo
quando envolvia potências capitalistas e hoje, com a economia de mercado globalizada, como
poderíamos denominar?
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Figura 16 A Liberdade Guiando o Povo. Eugene Delacroix, 1830.
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Vim ao mundo neste período de transformações ligadas ao mundo industrial que fizeram surgir
milhões de camponeses, promoveu uma rápida expansão urbana e reduziu os espaços rurais na
Europa. Os camponeses ou colonos alemães que constituíram minha primeira família, e que comigo
ficaram por cem anos, eram frutos deste grande processo de expansão do capitalismo que hoje
somos o resultado. Em busca de terras de onde tirar o sustento, a epopéia da navegação pelo
Atlântico trouxe milhões de pessoas para a América. Terra e trabalho, isolamento e sacrifícios,
anteriores de forma compulsória da África para serem escravos neste Novo Mundo. Some a isso os
milhões de nativos da América, com sua diversidade cultural e política, para começar a entender a
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Figura 17 Estados Unidos em 1874.http//www. Newyork.public.library
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Voltando aos meus compradores alemães...
No século XIX, a partir de 1824 – para o Rio Grande do Sul, os alemães se lançaram na viagem
marítima em busca do Novo Mundo. O tempo das descobertas de Colombo e de Cabral já haviam se
perdido no tempo. Porém, navegar o Oceano persistia como uma premente necessidade de novos
embarcações-, desaparecem na imensidão do Oceano logo após sair do porto seguro (tantas vezes
inseguros para os que estão se auto deportando...). Novos ares, novas matas a serem desbastadas
para o plantio, novas chances de levar conhecimentos ainda precários aos portos de destino.
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A insustentabilidade da permanência soma-se a esperança da persistência do sonho de
recomeço. Camões decantou tão bem este desejo que acabou construindo uma “alma portuguesa”
voltada ao ultramarino. Talvez os alemães não tiveram um tradutor tão competente, talvez se Goethe
tivesse se voltado a esta reflexão de forma persistente..., não obstante, as aspirações, os desejos e
Momentos de pesadelo frente aos medos da travessia marítima, contudo, também momentos
sublimes para pensar nos limites e sentir a necessidade da superação. Afinal, do outro da linha entre
os dois pontos terrestres preenchidos em seus limites pela água, está à vida que se renova ao
caminhar. Nas terras que se estendem para além do porto de destino adentrando nos espaços menos
conhecidos, haverá muito trabalho, muitas frustrações, poucas satisfações materiais, mas, em tudo
somado, após longas décadas, restará a caminhada entre o nascente e o poente: esta longa
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Navio de passageiros no século 19.
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Esta trajetória iniciava em diferentes regiões da Alemanha em que a falta de emprego e as
almejado. Dos imigrantes alemães, 80% foram para os Estados Unidos enquanto 10% se deslocaram
para o Brasil, Argentina, Uruguai e outros países da América do Sul. O Porto de Bremen era bastante
frequentado. Contudo, o imigrante que falaremos, partiu pelo Porto de Hamburgo onde passaram
dois milhões e duzentos mil imigrantes alemães (entre 1850-1934). Entre eles estava o meu
comprador. Seu nome completo se perdeu nas brumas do tempo, mas, o sobrenome era Kehn.
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Figura 18 Cartão-postal do Porto de Hamburgo em 1907.
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Com aproximadamente 21 anos, Kehn embarcou para os Estados Unidos e me adquiriu em
Boston em 1872. Como tinha indicações de parentes no Brasil, não quis fazer América, e retomou a
viagem marítima num vapor que seguiu de Boston para o Rio de Janeiro e que tinha como destino o
Porto de Buenos Aires. A única escala foi no Porto do Rio Grande na Província do Rio Grande de São
Pedro, onde desembarcou e fez novos deslocamentos até chegar em Santa Cruz do Sul.
Helena Kehn, sua neta, é que ficou com o relógio que estava na família desde 1872. Nove
décadas depois, mudei de endereço quando Helena, com 70 anos de idade, me deu de presente para
sua amiga Wali em 1961. Mas esta segunda etapa de minha vida vou narrar daqui a pouco... Agora
quero falar da minha primeira etapa que se prolongou por um século. Foram muitas experiências que
vivi desde os Estados Unidos até meu estabelecimento em Santa Cruz do Sul.
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Quero aproveitar para deixar minhas memórias divagarem sobre algumas sensações que tive
enquanto estive exposto à venda numa loja do Porto de Boston (no Estado de Massachusetts). Lá
escutei histórias de navegadores e marinheiros sobre os perigos do mar. Gostei muito da leitura feita
por um freqüentador da loja que recitava em voz alta os contos de um autor que foi encontrado em
delirius tremens e que morreu em Baltimore (estado de Maryland) e cuja verdadeira causa da morte é
Recordo de uma passagem de Poe publicada no livro Histórias Extraordinárias que muito
gostava de repetir em meus pensamentos: “Num dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso,
em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, passava eu, a cavalo, sozinho, por uma região
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POE, Edgar Allan. A queda da casa de Usher. Histórias Extraordinárias. São Paulo: abril Cultural, 1978, p. 7.
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Estas frases melancólicas projetavam meus pensamentos para outros cenários em que eu sentia
fazer parte daquelas histórias. Numa delas um Corvo conversava com o depressivo escritor e repetia
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Também em Boston, escutei as poesias de um francês chamado Charles Baudelaire num livro
proibido na França e que circulou por outros países: As Flores do Mal. Baudelaire é associado ao
nascimento da poesia moderna e em seus escritos, estão presentes o homem urbano e os seus
conflitos, além de relatos insólitos dos paraísos artificiais. Prematuramente ele refletia sobre a
Reconheço que Boston era uma cidade portuária muito bruta e repleta de marinheiros e
estivadores “pouco polidos”. Isto a diferencia da cidade atual, onde na região metropolitana de
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Boston também foi à localidade onde teve início, em
1775, o processo de Independência dos Estados Unidos que rompeu os laços coloniais com a
Inglaterra.
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O que guardei daquela atmosfera de maresia e movimento de passos, foram momentos
sublimes da arte poética destes dois homens, um norte-americano e outro francês, que morreram
tão jovens. Nesta cidade marítima é que eu fui comercializado, pois, como já falei, eu era uma
“mercadoria”! Mas não esqueçam que as mercadorias tem historicidade e, portanto, memória. Em
cada sociedade, à produção e o consumo tem um sentido dado pelos homens e que ajuda a
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Ainda no ano do meu nascimento, em 1872, Kehn, o imigrante vindo da Alemanha recém-
unificada (Império Alemão dirigido pela Prússia), adentrou a casa comercial em que eu estava sendo
comercializado e me adquiriu. Este imigrante era um camponês pobre em busca de terra para obter o
seu sustento. Me considerou uma peça atraente ou sentiu atração pela marcação do tempo, não sei
explicar. O meu preço era “popular” para a época e o status em ter um grande relógio para marcar a
passagem das estações e dos eventos, de marcar a transitoriedade da vida, superou a apreensão
A rota usual utilizada pelos imigrantes levava de portos da Europa para o Rio de Janeiro, na
grande viagem Atlântica em navios lotados e pouco salubres, que durava mais de 60 dias. Este navio
fez uma rota diferenciada, pois tinha produtos para descarregar no Porto de Boston e conduzia
imigrantes que rumavam para os Estados Unidos. Este não foi o caso de Khen que mantinha
correspondência com moradores da Picada Velha em Santa Cruz do Sul, nos confins do Brasil. Era
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este o seu destino e ele seguiu com o navio que cruzou o litoral brasileiro e tinha como destino o Rio
da Prata.
Do Porto de Boston, após abastecer com muitos produtos para comercialização na América do
Sul, a embarcação rumou para o Rio de Janeiro, a eterna capital do Brasil em termos de definição da
brasilidade (contrasta opulência e miséria, beleza e fealdade, praias e insalubridade num mosaico
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Figura 19 Interior de um navio cruzando o Oceano Atlântico.
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No Rio de Janeiro (capital administrativa do Brasil entre 1763 a 1960), saltou aos olhos de Kehn
Brasil do século XVIII, escreveu que nada se fazia no Brasil sem a mão-de-obra do escravo africano.
O trabalho escravo representava o poder econômico e também o destaque social que poderia levar a
ocupar, após 1822, cargos de deputado ou senador do Império. Seria a realização máxima da prática
patrimonialista tão comum naquela época passada em que se confundia o público da Nação com os
interesses privados do grupo em que o político estava ligado. Felizmente, ironizando, é uma prática
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Figura 20 Rio de Janeiro, 1875. George Leuzinger. Brasiliana Fotográfica.
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Seguindo viagem, o navio fez breve parada em Santos e no Desterro (Florianópolis). A próxima
escala foi na Barra do Rio Grande, um dos momentos mais tensos da viagem marítima. Acessar a
Barra para adentrar no Porto Velho do Rio Grande era uma perigosa aventura devido ao calado ser
muito reduzido. O que escutávamos a bordo era que aquela área era um cemitério de navios que
afundaram devido aos fortes temporais. Com a baixa de profundidade ficava difícil acessar
rapidamente a Barra para encontrar um refúgio seguro. Era preciso esperar a orientação dos práticos
e guiar o navio entre os bancos de areia e com o ruído do casco roçando o fundo -que por vezes não
tinha nem dois metros de profundidade. Sendo inviável adentrar o canal de acesso era preciso ficar
ancorado ao largo da Barra e torcer para que não sucedesse violentos temporais que poderiam levar
ao naufrágio.
Tivemos sorte já que o pessoal da praticagem se aproximou com uma catraia e informou que
estava assumindo a pilotagem para percorrer a distância de cerca de doze quilômetros para lançar
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Ao se aproximar era possível visualizar uma floresta de mastros (como registrou em seu diário
o Conde D’Eu em 1865) e observar muitas bandeiras de vários países que mantinham relações
comerciais com o Brasil. O Porto de Boston e Nova Iorque eram antigos parceiros que compravam
A chegada foi no Cais da Boa Vista e deste trapiche se observava a Rua Riachuelo, com o seu
metros do Cais, se observava a Igreja do Carmo que obstruía parcialmente o Beco do Carmo em que
foi edificada. A primeira atividade em terra era ir até a Igreja e agradecer por ter sobrevivido aos
deslocamentos marítimos. Na sequência era ir até os barracões que recebiam os imigrantes na Rua
Barroso. Ali se podia ficar sem custo de estadia e recebendo alimentação, até embarcar num navio
que conduzia até Porto Alegre pela Lagoa dos Patos. O navio que me trouxe de Boston seguiu viagem
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Vinte anos antes de minha chegada, um alemão chamado Hermann Wendroth, esteve na cidade
e pintou algumas aquarelas do Porto. Era este o cenário que os viajantes, como eu, observavam da
área portuária ao circularem por Rio Grande.
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Numa rápida caminhada pelo centro percorri a Rua Riachuelo e a Rua Coronel Osório (que pode
ser vista na parte direita da fotografia). As três muralhas com abertura interna é o Mercado Público
onde observei a venda de uma grande variedade de peixes, verduras, legumes e produtos coloniais.
Figura 21 Praça da Alfândega (atual Xavier Ferreira) na década de 1870. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.
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No dia seguinte, um veleiro partiu para Porto Alegre levando dezenas de colonos alemães,
alguns destinados a Colônia de São Leopoldo, outros para Novo Hamburgo e apenas cinco, incluindo
Kehn, para a Colônia de Santa Cruz.
A travessia da Lagoa dos Patos, 300 quilômetros, durava 24 horas se o tempo se mantivesse
bom e sem ventos intensos que formavam as “marolas” que podiam fazer embarcações menores
naufragarem. Imagem da Barra do Rio Grande com as águas agitadas, no ano de 1847.
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De Porto Alegre, pegamos um veleiro de menor porte que nos levou pelo Rio Jacuí até a cidade
de Rio Pardo. Localidade que se destacava como entreposto comercial que atraiu pecuaristas e
nobres que edificaram casarões coloniais que notabilizaram a cidade no cenário provincial. Durante a
Guerra do Paraguai recebeu a visita de D. Pedro II no contexto dos esforços do conflito. Os
imigrantes que rumavam para lotes coloniais, passavam por Rio Pardo para seguir para Santa Cruz
ou outras colônias mais distantes.
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Esta é uma vista da Rua da Ladeira em Rio Pardo com a Igreja Matriz do Rosário.
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Depois de percorrer milhares de quilômetros de oceano, laguna e rios, a viagem segue por terra
por mais 35 quilômetros até chegar ao destino. Foram mais dois dias de deslocamento.
O meio de transporte passou a ser a carroça e fui enrolado numa manta para não ficar
danificado nas sacudidas causadas pelos buracos da péssima estrada. Próximo a Rio Pardo,
cruzamos por Rincão D’El Rey e vimos alguns colonos alemães ali radicados.
Planta alemã de 1905.
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Seguimos até o centro de Santa Cruz, entretanto, ainda não era o ponto de chegada. Subimos
por cinco quilômetros a serra que leva em direção a atual Venâncio Aires. O lote obtido por Kehn
ficava na Picada Velha (área do atual Restaurante Nevoeiro). Ali que fiquei morando e assisti as
gerações se sucederem. Acompanhei a tensão das lutas entre chimangos e maragatos (1893-1895)
políticas antigermânicas; e da Segunda Guerra (1939-1945) quando não se podia falar em alemão e,
inclusive, o meu amigo Henrique, por receio de ser preso, cavou um buraco e enterrou uma Bíblia.
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O tempo transcorreu e muitas pessoas passaram enquanto eu fiquei. Escutei conversas dos
vivos e sobre os mortos. Sobre a temida gripe espanhola e sobre a falta de chuva que secava as
Dias de chuva, dias de sol, dias de frio e dias de calor. Nos dias encobertos pela neblina a
humanas. Inúmeros cenários góticos vislumbrei nos dias nublados e chuvosos do inverno. E a cidade
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Hoje esta área onde se plantava batata, mandioca e milho, está repleta de videiras para a
produção de vinho artesanal/familiar e está tomada por condomínios residenciais evidenciando uma
agregação de valor as terras e garantindo qualidade urbana e ambiental (na contramão de tanta
miséria habitacional que ronda o Brasil de norte a sul). Aquelas terras “no fim do mundo” ou no
“extremo sul do Brasil” continuam a gerar frutos positivos para a qualidade de vida.
Desde criança (cerca de 1910), Helena Khen, uma neta que passou a vida no local, passou a me
inesgotáveis horas se passaram entre o mate doce, os pães caseiros e o trabalho na roça com a
enxada. A base do trabalho do colono imigrante era a policultura com mão-de-obra familiar sem
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Foi Helena, que me deu de presente para Wali em 1961 quando esta morava em Santa Cruz. Em
1973 a família Torres se mudou para Santa Maria. Parti da Picada Velha em Santa Cruz, num
poderoso fusca/1968/1.0 azul que ronronava na estrada de chão com aquele motorzão de 46 hp.
Aquele azul do fusca, assinalava o céu de brigadeiro que viveria nos próximos anos.
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Minha longa estadia em Santa Maria da Boca do Monte foi muito agradável. É claro que o calor
de Santa Maria no verão era sufocante, no entanto um banho mental nos rios Verde (Vacacaí-mirim),
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A cidade era o centro de confluência rodoviária e ferroviária, o chamado “coração do Rio
Grande”. O caminho para a campanha e o planalto estava aqui na Depressão Central. Dinossauros
eram moradores habituais desta região (claro que a milhões de anos atrás...). Evidentemente
No cartão-postal são muitos fuscas no centro de Santa Maria nos anos 1970.
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Em tempo: já havia andado num carro na década de 1940 (“viajei” a partir das histórias que
escutei desta aventura...). Era o Chevrolet Ramona do amigo Henrique que viajou com os Kehn até a
distante São Jerônimo. Entre porteiras e campos, linguiça e cuca, dores latejantes na coluna pela
dureza da suspensão, foram vários dias de aventuras numa distância que hoje é feita em duas horas.
brincadeira ácida dos admiradores da Ford em relação a este modelo da Chevrolet que produziu 2,1
milhões de carros. Ramona seria a música que tocava no navio Principessa Mafalda quando
naufragou na Bahia em 1927 e também a música tocada por uma orquestra em cinema do Rio de
Janeiro quando teve início um incêndio. Ou seja, a brincadeira é que o carro seria uma catástrofe...
publicado em 1884 cujo tema é a tragédia dos índios americanos em guerras contra os brancos. A
vida da autora foi repleta de tragédias familiares e uma música foi composta com este título. Até
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Chevrolet Ramona 1929. Colina- São Paulo. Também se observa uma bomba de gasolina.
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Minha última escala nestas viagens entre os Estados Unidos e o Brasil foi quando Wali me deu
para o seu filho que já me conhecia desde que nasceu em 1962. Ele também estava no fusca azul
que me levou para Santa Maria. Em 1998 fui morar com ele em Rio Grande, a cidade que brevemente
conheci em 1872, e desde então tenho aprendido muito já que ele é historiador. E a ideia de falar de
minha história foi amadurecendo. Vou pular este período que se estende até 2022, afinal, rendeira
inúmeros livros.
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Local onde estou atualmente:
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Foi uma longa viagem para um relógio?
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Contar um pouco da trajetória é muito especial. Afinal, quantos outros relógios tiveram a sua
historicidade preservada? Eu sei que muitos estão em museus e que tem uma ficha técnica
descrevendo as suas dimensões e o ano aproximado de fabricação etc. Porém, a historicidade deles
não foi contada (com certeza da maioria) ainda permanecendo em silêncio sepulcral. Mas que fique
assinalado e comprovado: um relógio pode ser o pretexto para escrever inesgotáveis histórias! Basta
E imaginação distópica não falta em “Blade Runner, o caçador de androides”, um filme cult, com
uma trilha sonora maravilhosa de Vangelis “Blade Runner Blues” e “Love Theme”. No final do filme a
frase associada ao personagem de Harrison Ford é marcante: “Tudo o que ele queria eram as
mesmas respostas que o resto de nós quer. De onde foi que eu vim? Para onde eu vou? Quanto
tempo eu tenho? Tudo o que eu podia fazer era sentar lá e vê-lo morrer”. Ou seja, são inesgotáveis
as questões metafísicas que envolvem os pensamentos de nosso corpo físico que é um passageiro da
temporalidade...
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Estou quase encerrando o meu relato e vocês devem continuar questionando que de fato sou
apenas um relógio e as memórias são criações exclusivamente humanas! Que de fato, este que
Neste momento quero recordar os momentos, escutando o som que produz a lenha quando
queimada pelo fogo; o som da chuva ao cair batendo no telhado e na terra; as cores de um dia de sol
e a grama coberta de branco com as geadas. O calor e o frio são forças marcantes da natureza, um
relâmpago clareando a noite faz os olhos se arregalarem e pode até assombrar e criar os mitos do
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Não é novidade os humanos registrarem suas memórias. Também sei que cadernos já contaram
histórias como na música Aquarela de Toquinho. Que em A Bela e a Fera os móveis e utensílios
ganham vida, inclusive um relógio. A trilogia Toy Story da Pixar já é um clássico onde os brinquedos
estão vivos e se esforçam para manter a sua condição de inanimados. É óbvio que a memória está
Porém, me embaça os olhos pensar no esquecimento destas memórias e do meu ser. É como se
um incomensurável vazio sufocasse esta tentativa em me definir como um ser pensante que possui
um sentido para o existir. A arte literária quer ser o meu último refúgio para perpetuar-me quando o
meu amigo sucumbir ao tempo e tornar-se apenas pó dispersado pelo vento numa praia imensurável
no extremo sul do Brasil, ou sendo menos poético, apenas uma lápide num cemitério esquecido ou
um punhado de cinzas produzidas pelo calor do fogo. No futuro não há certezas ou garantias,
apenas um fluxo contínuo de eventos finitos cuja hora de acabar é uma incógnita...
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Meu último olhar será dirigido aos cupins? Ou ficarei jogado em um canto qualquer de um lixão
de segunda classe?
Seria muito pedir um final digno num antiquário de uma cidade que busca sobreviver num país
Murnau?
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Figura 28 Cena do filme Nosferatu, de Murnau, 1922.
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O fato concreto é que só tenho o presente como cenário. Falei do passado e me apavoro com o
futuro, mas é no presente que escrevi este livro e que estou construindo amigos, que são vocês
leitores. E na solidão que é a vida de cada um, a escrita permitiu dialogar com tantas pessoas
diferentes e com tantos destinos desconhecidos. As apreensões que também fazem parte de mim se
universalizaram frente à condição humana: todo ser pensante e portador de memória questiona
sobre sua existência e sentido. Ao fazer isto se encontra com a vida a qual está em todos os
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Vocês não acham que foi uma longa viagem para um relógio?
Sinto que vivi uma noite estrelada que perdura por 150 anos...
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Vamos ocupar o tempo do futuro com outras histórias além das minhas? Por que vocês não me
contam ou escrevem a trajetória da história de vida de vocês? Afinal, não sou feito apenas de
Enfim! Agora estou revestido de profundo silêncio e somente as vozes mentais de vocês é que
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AO LEITOR
Conjunturas e personagens aqui relatados foram livremente adaptados ao fluxo redacional sem um
espaço-tempo).
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Referências
Acervo documental e imagético da Biblioteca Rio-Grandense.
Acervo de cartões-postais de Luiz Henrique Torres.
Coleção de aquarelas de Hermann Wendroth.
Coleção de cartões-postais de Walter Albrecht.
Sites:
https://santamariafoto.blogspot.com.br/
https://www.loc.gov/ Library of Congress.
http://www.nyc.gov
http://bndigital.bn.gov.br
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/
https://www.familysearch.org/pt/wiki/Alemanha,_Hamburgo,_Lista_de_Passageiros
https://www. crotonhistory.org
https//www. newyork.public.library
https://twitter.com/ScottDuncanWX/status/
https://historiaehistoriografiadors.blogspot.com/
http://www.colinassp.blogspot.com
https://www.amherst.edu/museums
Wikimedia Commons
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Livro dedicado à minha irmã Mara (1959-1996).
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