Você está na página 1de 117

LUIZ HENRIQUE TORRES

A LONGA VIAGEM DE UM RELÓGIO

CASALETRAS
2022

1
Copyright ©2022.

Direitos desta edição reservados aos organizadores, cedidos somente para a presente edição à Editora Mundo Acadêmico.
Importante: as opiniões expressas neste livro, que não sejam as escritas pelos organizadores em seus capítulos, não representam ideia(s) destes. Cabe, assim, a cada autor a responsabilidade por seus escritos.

Atribuição - Não Comercial - Sem Derivadas 4.0 Internacional


(CC BY-NC-ND 4.0)

Capa e diagramação:
Luiz Henrique Torres

Editor:
Marcelo França de Oliveira

Conselho Editorial
Prof. Dr. Amurabi Oliveira (UFSC)
Prof. Dr. Aristeu Elisandro |Lopes (UFPEL)
Prof. Dr. Elio Flores (UFPB)
Prof. Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Prof. Dr. Francisco das Neves Alves (FURG)
Prof. Dr. Jonas Moreira Vargas (UFPEL)
Profª Drª Maria Eunice Moreira (PUCRS)
Prof. Dr. Moacyr Flores (IHGRGS)
Prof. Dr. Luiz Henrique Torres (FURG)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A96 A Longa Viagem de um Relógio / Luiz Henrique Torres. [ Recurso eletrônico ] Porto Alegre:
Casaletras, 2022.

117 p.
Bibliografia
ISBN: 978-65-86625-46-2

1. Estados Unidos - 2. Imigração Alemã - 3. Rio Grande do Sul - I. Torres, Luiz Henrique - II.
Título.

CDU: 900.981 CDD: 900

EDITORA CASALETRAS
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - contato@casaletras.com
www.casaletras.com/academico-livros
2
SUMÁRIO

A longa viagem/8

Como começou a minha história? /26

Voltando aos meus compradores alemães... /70

Foi uma longa viagem para um relógio? /105

3
Figura 2 Bandeiras dos EUA e do Império Brasileiro no século XIX. Figura 1 Bandeira do Império do Brasil, século XIX.

4
“...queria compreender melhor a contradição que é procurar na realidade um quadro das memórias,
aos quais faltará sempre o encantamento que lhes advém da própria memória e de não serem
percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não existia mais. Os lugares que
conhecemos não pertencem apenas ao mundo do espaço onde os situamos por comodidade; a
lembrança de determinada imagem não passa da nostalgia de determinado instante. E as casas, ruas
e avenidas são, ai de mim, fugazes como os anos”. PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. No
caminho de Swann: nomes e lugares. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, vol. 6, p. 46.

5
“Uma casa tem muitas vezes as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que
passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu
desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver
cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa,
dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e
verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia
de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como
dependerá de ti a absolvição da má escolha. Machado de Assis, Relíquias da Casa Velha (1906).

6
Abstract

The Long Journey of a Clock follows the trajectory of the character Fritz from the United States
to the South of Brazil. References are made to episodes of American History, German Immigration
and The History of Brazil. The account has historical foundations, biographical elements and poetic
freedom in creation.

Resumo

A Longa Viagem de um Relógio acompanha a trajetória do personagem Fritz dos Estados Unidos até
o Sul do Brasil. São feitas referências a episódios da História Norte-Americana, da Imigração Alemã e
da História do Brasil. O relato tem fundamentos históricos, elementos biográficos e liberdade poética
na criação.

7
A longa viagem

O autor que assinou este livro pensa que o escreveu!

Na verdade, ele reflete apenas as minhas memórias, mas, ao escrever eu deixo que ele se

engane pensando estar construindo o texto e dando um sentido para ele.

De fato, eu o “conduzi” a dar sentidos aos acontecimentos apesar de não ter nenhuma certeza

se existe realmente um sentido para tudo o que vivi...

8
Haverá um sentido para os acontecimentos que inesgotavelmente ocorrem pelo planeta?

Os pensadores da antiguidade greco-romana já se debruçavam avidamente sobre esta questão

e algumas religiões encontraram algumas respostas já prontas, chamadas de “dogmas da fé”.

Havendo ou não, descobri que nós podemos dar sentidos aos acontecimentos num conflito

continuo com outros sentidos dado pelas pessoas, instituições ou governos.

Portanto, este livro apresenta sentidos objetivos e ocultos, mesmo que eles não consigam

explicar ou fazer entender, em última instância, tudo o que acontece!

Inicialmente, quero me apresentar: sou um relógio chamado Fritz!

9
10
Tenho 150 anos de idade e nasci em 1872 em Winsted (Connecticut) nos Estados Unidos.

Apesar de uma idade tão longeva não sou um vampiro (como o Nosferatu da página seguinte), pois,

estes seres vivem sugando as energias (nos livros e filmes sugam até o sangue...) enquanto eu

apenas armazeno memórias!

E são muitas as memórias que guardo dos dias ensolarados e sombrios, dos verões e invernos,

da alegria e da tristeza, das noites escuras e silenciosas, da luz dos lampiões esfumaçantes.

Confesso que o meu grande temor é o silêncio das memórias e por isso busco deixar os relatos

registrados num livro (na Antiguidade grega, Heródoto, pai da História, disse escrever para que a

mimese -a memória-, não fosse perdida por não ter sido registrada!).

11
12
Durante metade da minha vida conheço uma pessoa que gosta de mim: a Wali! Desde criança

ela me visitava e a mais de 60 anos me levou para sua casa e teve início uma etapa mais tranqüila de

minha vida, sem o assédio de seres devoradores de corpos (como em filmes de terror de Vincent

Price adaptados de histórias de Edgar Allan Poe). Estou me referindo a algo que não gosto que são os

cupins! Seres nefastos que podem comer o meu corpo material e apagar minhas memórias.

13
Figura 3 Wali e seu pai Henrique, meu grande amigo.

14
Quem também me admirava era Luiz Carlos, esposo da Wali e pai do escritor. Aqui eles estão

num baile em 1958.

15
Como afirmou Jean Paul Sartre no livro A Náusea, através da arte literária, poderia guardar parte

de mim num livro e me perpetuar da aniquilação material. E é isto que busquei nesta obra! Claro,

desde que cupins ou traças também não devorem o prolongamento do meu ser pensante: o livro que

vocês estão lendo...

16
Qual a origem do meu nome? A filha da Wali, a Mara, é que desde criança começou a me chamar

de “Fritz” e o nome pegou!

A Mara teve a inspiração de um

nome alemão para batizar um

norte-americano... Isto foi muito

tempo antes dos bonecos Fritz e

Frida (1987) como símbolo

germânico de Santa Cruz do Sul.

17
Por mais imaterial que sejamos, precisamos de uma materialidade para sermos algo: o corpo, a

madeira, a engrenagem mecânica, o livro. Afinal, nossa memória fica registrada naquilo que foi

gravado!

E digo com convicção que não sou apenas madeira e engrenagem! Só não escrevo, por não ter

mãos para fazê-lo. Pedi ao escritor que assina o livro, que escrevesse por mim, mesmo sabendo que

ele não pode entrar em minha essência para expressar exatamente o que gostaria de dizer.

Mas sei que ele se esforça por me expressar mesmo que seja inconscientemente... O que faço

para isso? Enquanto ele dorme eu passo as informações para o seu cérebro e quando ele acorda

eclodem as ideias para a escrita. Entre sonhos e sugestões induzidas, estou perpetuando minha vida

na forma de um livro.

18
Como tudo na vida, sou um ser único, e sei que existe uma memória para cada ser existente

que é diferente dos demais. E não pense que só os humanos tem memória! Para minha sorte, meu

atual amigo que foi colocado ao meu lado – um rádio Motorola de 1946 – teve uma válvula queimada

há vários anos atrás. Foi sorte, porque, vocês não fazem ideia o que fala um rádio!

O seu primeiro proprietário e grande amigo era o Henrique Weiss, que além de fazer a minha

limpeza e me concertar, adorava escutar as diferentes estações de rádio de todo o mundo, inclusive

os programas transmitidos da Alemanha.

19
O rádio lembra com orgulho de todos os programas da Era do Rádio: das transmissões da BBC

de Londres; da Rádio Nacional do Rio de Janeiro; dos programas orquestrados com Mozart e

Bethoven; do melancólico blues de Robert Johnson; do jazz de Louis Armstrong e do big band de

Glenn Miller; da bossa nova de Tom Jobim; das rádios da Argentina (e o tango de Gardel); além de

inúmeras outras emissoras pelo planeta. Felizmente, a válvula do meu amigo queimou antes dele

conhecer outros ritmos musicais que hoje são muito difundidos. Seria muito difícil suportá-lo...

20
21
22
Como cultuo as vozes do silêncio, aprecio muito a escuta atenta das ideias que emanam do

“autor”: espio as notícias da internet (quando a “banda larga” e o “wi-fi tupiniquim” conseguem

funcionar...); leio em papel (minha preferência antiecológica e celulósica que poderia ser

transmutada em formato digital) o jornal e as revistas de História; viajo em meio aos mais de quatro

mil volumes de sua biblioteca. Meu olhar vaga entre o sarcófago de Tutancâmon até reflexões sobre

o alemão Friedrich Nietsche, que afirmou com o seu característico sarcasmo: “O macaco é um animal

demasiadamente simpático para que o homem descenda dele”. Pois é...

23
Figura 4 Friedrich Nietsche.

24
Da minha espécie de relógios existem as mais diferentes personalidades: o meu perfil é

observar e relatar as experiências e tive sorte de encontrar alguém que aceitou inconscientemente

transformar estas memórias em palavras.

E as palavras acabam construindo/preservando um pouco da minha vivência e de minha

trajetória, aquilo que os historiadores chamam de “historicidade”.

Estamos em um planeta com quase 8 bilhões de historicidades. São trajetórias individuais

inseridas em meios familiares, círculos de amigos, história local, histórias de países e processos de

globalização. E a história feita pelos humanos está na dependência dos processos do planeta e do

sistema solar: calor ou frio, vulcões ou furacões, ciclos solares e choque de asteroides. Nossas vidas

individuais existem numa esfera muito mais ampla de espaço e de tempo. Na dependência de

processos geológicos e históricos muito amplos.

25
Mas como começou a minha história?

Como todo mundo, tive um nascimento demarcado no tempo e no espaço. Como o texto que

mistura contexto histórico e ficção, a imaginação também será a condutora do relato quando não

consegui – nas pesquisas que fiz e nas lembranças mais apagadas de minhas vivências – recordar

“exatamente” como tudo se passou, até porque a história foi muitas vezes contada por terceiros que

já a escutaram de outras pessoas... Ao longo do tempo não temos uma totalidade do que aconteceu

e sim fragmentos ou cacos da nossa trajetória.

Muitas vezes a memória é nítida nas emoções, mas, sei que as emoções nos afastam da

sobriedade da razão e podem criar ilusões. Mas diferente dos positivistas - tão atuantes no século

XIX em que vim ao mundo-, a racionalização absoluta não é possível! (para profunda tristeza de

Augusto Comte ou dos posteriores neopositivistas...).

26
Para representar a importância de preservar os eventos sempre recordo da musa da História,

Clio. Esta musa grega traz em uma das mãos um livro de Tucídides (um dos primeiros historiadores)

e na outra uma trombeta para proclamar a importância dos acontecimentos históricos. Escrever os

acontecimentos históricos permitiu preservar parte dos acontecimentos humanos.

Musa Clio. Pierre


Mignard, 1689.

27
A mãe de Clio se chamava Mnemósine, a deusa da memória e da lembrança. As nove musas

gregas eram filhas de Mnemósine. A memória dos acontecimentos é indispensável para que não

ocorra o esquecimento das experiências pessoais e sociais. A memória é essencial para termos noção

da historicidade e sabermos sobre nossa trajetória.

Figura 5 Mnemosine Dante Rosseti, 1876.


28
Os anos 1800, o século XIX, é o século da razão e do cientificismo. Muitos pensadores

acreditaram ser possível através do conhecimento científico domesticar a natureza e moldá-la aos

seus anseios de controle dos processos econômicos (liberalismo econômico) ou da descoberta das

leis de funcionamento da matéria (materialismo histórico). Frutos deste século continuam a ser

colhidos: um dos legados da Revolução Industrial é que entre a década de 1880 até o presente a

temperatura do planeta aumentou cerca de 1,2°C. A projeção é que pode aumentar para mais de 2°C

até o ano de 2100.

É o chamado Aquecimento Global que poderá colocar em xeque a permanência dos humanos

no planeta ou no mínimo, exigir profundas mudanças em sua forma de agir em relação à exploração

dos ecossistemas.

29
Elevação da temperatura do planeta entre 1880-2021:

Figura 6 https://twitter.com/ScottDuncanWX/status/1483848577696866309/photo/1

30
Outro legado (com ajuda do “saber médico” que permitiu reduzir a alta mortalidade no século

XIX) é a população do planeta que era, em 1800, de 1 bilhão de pessoas, quando nasci era de 1,5

bilhão e hoje é de 8 bilhões. Como gerenciar tantas pessoas, tantos conflitos e a diminuição dos

recursos do planeta frente à tamanha demanda de consumo? Espero estar vivo para saber como a

humanidade lidará com isso. Porém, espero não estar consciente quando o cenário virar a saga

profética do filme Mad Max com Mel Gibson ou algum remake de The Walking Dead...

31
Meu nascimento recua ao ano de 1872 (ano em que Sheridan Le Fanu estava publicando o conto

vampírico Camilla) e a Revolução Industrial está mudando o perfil dos Estados Unidos da América.

A industrialização marcou o estado de Connecticut: em 1810 surge a primeira fábrica têxtil; em

1836 Samuel Colt fundou a famosa fábrica de armamentos “Colt”, sendo difícil pensar num bang-

bang USA sem a presença destas armas.

32
Em Connecticut, em 1839, Charles Goodyer descobriu a vulcanização da borracha

“arredondando” de forma mais sofisticada o dia-a-dia; na II Guerra Mundial a cidade foi um dos

principais produtores mundiais de armamento (aviões, navios, submarinos); o USS Nautilus, primeiro

submarino nuclear da Marinha Americana, foi aí construído na década de 1950; além de inúmeras

indústrias que garantiram uma forte diversificação econômica para este estado americano.

33
No vilarejo de Winsted, neste industrializado estado de Connecticut na costa leste dos Estados

Unidos (entre os estados de New York e Massachussets) foi criada em 1871 a empresa de William

Lewis Gilbert (1806-1890). Sou um dos relógios/filhos de Gilbert que foram distribuídos por

inúmeros países e caíram na predileção de imigrantes alemães que rumavam para o Sul do Brasil.

34
35
Não é à toa que sou especial: os relógios se tornaram essenciais para contar o ritmo dos

acontecimentos numa sociedade de produção e consumo! Os eventos se passam no tempo e cabe

aos relógios contarem este tempo, que se acelera ou é moroso, frente ao ritmo das ações humanas.

A contagem do tempo associada aos eventos é fundamental para buscarmos uma lógica na

compreensão do acontecer histórico fundado num antes e num depois. O tempo, o evento, as fontes

e as interpretações: nisto reside a busca dos historiadores em tornar lúcida e compreensível a

ensandecida ação humana no planeta.

Portanto, um relógio não é apenas um artefato mecânico e sim um depositório de

acontecimentos e memórias!

36
Modelo de relógio de bolso da década de 1840 com alusão ao Corvo de Edgar Allan Poe.

Coleção Relógios Históricos, Planeta DeAgostini.

37
Os relógios com formato retangular para colocação em parede começam a ser feitos entre

1806-1808.

No ano de 1808, Eli Terry inventou o primeiro método de produção em massa de relógios do

planeta, dando início a popularização dos relógios que até então, devido ao alto custo, eram

produtos elitizados. Em 1828, relógios Gilbert começam a ser fabricados em Winsted, porém a marca

criada pelo seu fundador William L. Gilbert se tornou uma referência com os grandes relógios

americanos de parede a partir de 1871.

38
A produção da Gilbert, diversificada em modelos, estendeu-se até a década de 1960. Os

relógios mais antigos levaram o nome Marsh, Gilbert and Company; ja o meu modelo, também muito

antigo, tem o nome de W. L. Gilbert & Company.

Figura 7 William Gilbert.

39
Cartão-postal de 1912 (imagem de 1906) da Fábrica Gilbert em Winsted, Conn.

40
Somente seis anos antes do meu nascimento havia encerrado a devastadora Guerra da Secessão

Americana (1861-1865) que trouxe grande destruição ao atualmente país mais poderoso do planeta

Terra. As cicatrizes da guerra permaneceriam por muito tempo e escutei várias histórias

assombrosas e assustadoras. Os “horrores noturnos” (nada haver com Monstros S.A.) pareciam muito

reais naquela época em que eu ainda era uma criança e o país estava dividido entre o Sul e o Norte,

entre escravistas e não escravistas, grandes propriedades agrícolas e capitalismo industrial.

Muito se falava sobre o presidente dos Estados Unidos Abraham Lincoln que fora assassinado

em 1865 e que permanece até o presente como um personagem em evidência na cultura pop

americana. Em 2012, Lincoln foi transformado, literária e cinematograficamente, até num caçador de

vampiros! O fato é que ele é uma referência essencial para entender a cidadania norte-americana e

os princípios amplos da liberdade e da democracia.

41
Guerra da Secessão em 1862. Harpers Weekly.

42
Figura 8 Abraham Lincoln em 1863. In: http://www.britannica.com

43
Materialmente posso me definir como um relógio colocado numa caixa de madeira feita de

pinho de Riga e nogueira laminada. Minhas dimensões são: altura 73 cm, largura 41 cm,

profundidade 11 cm, peso 6 kg (sem as pedras=blocos de metal). Sou composto por uma

engrenagem e no interior da caixa está escrito em inglês como o meu mecanismo funciona com a

batida integral em cada hora cheia e uma batida a cada 30 minutos. É o Eight Day o relógio que

dando a corda máxima funciona por oito dias.

44
A imagem tem 20 cm de largura e 30 cm de altura. É uma litografia impressa na Herold Job

Press, Winsted, Conn.

45
Como era característica do meu modelo, a porta da frente era composta por dois vidros. O de

cima transparente para observar os ponteiros das horas e o vidro de baixo estampava alguma

imagem, especialmente flores ou natureza morta. Mais raramente algum espaço público era

retratado, como é o meu caso. Na parte interna ao fundo era colado o papel com a identificação da

empresa e do modelo.

46
47
Aqui está o segredo
da Máquina do
Tempo de H. G.
Wells.

Nesta engrenagem
está a magia da
perpetuação física e da
memória.

Quem controla o
tempo domina a sua
passagem e o seu
passamento.

48
Pintura a mão era feita no metal onde os numerais romanos e os detalhes florais eram

desenhados.

49
Detalhe da madeira do pinho de Riga de 150 anos na parte inferior da caixa:

50
Este é o meu pêndulo e a manivela para dar corda. Sou um relógio padrão 8 dias, este é o

tempo que minha corda mantém a máquina em movimento.

51
Considero a minha estampa muito especial! Ela remete a um cenário histórico de uma

determinada cidade e conheço apenas mais um relógio com esta imagem (será que tenho mais

“irmãos pictóricos” ainda vivos?). Num site da internet é que conheci este irmão que mora nos

Estados Unidos, porém, não conheço mais detalhes de sua personalidade. Enquanto o meu desenho

é mais realista, em bico de pena, o do meu irmão foi pintado com cores fortes que podem ter lhe

dotado de uma personalidade mais extravagante...

52
A felicidade que tive em ter sobrevivido ao tempo, deve ter passado ao largo da maioria dos

meus outros irmãos replicantes. Mas ficarei contente o dia que encontrar outros com a minha

aparência, porém, com certeza, tendo outra personalidade já que ninguém é igual!

Vejamos novamente o meu desenho:

53
Detalhe da praça:

Bandeira hasteada e
movimentação de militares se
deve a ser o centro
administrativo municipal
(Câmara Municipal) de Nova
Iorque.

54
Detalhe romântico de um casal junto à fonte.

55
Durante muitos anos o escritor deste livro tentou decifrar a minha história. Esta gravura é o que

mais chamava a sua atenção. Instiguei para despertar o seu espírito de historiador desde criança e

acabou sendo a profissão que ele acabou seguindo. Ele descobriu que esta imagem é a Fonte Croton

(Croton Fountain) no City Hall Park, centro de Nova Iorque (NY).

Figura 9 Fonte Croton em 1871. In: New York Public Library.

56
Figura 10 Fonte Croton em sua inauguração em 1842. In: http:www.crotonhistory.org

57
Em minhas viagens já encontrei vários relógios produzidos na casa do mesmo pai (na fábrica

em Connecticut). Numa passagem por Santa Cruz do Sul, na parede de um hotel, estavam três

relógios. Em Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, um museu expunha aos visitantes outros três. Afinal,

quantos milhares foram criados por Victor Frankenstein naquela fábrica? (foi apenas uma liberdade

poética com a Mary Shelley e o seu monstro...).

58 Figura 11 Frankenstein, edição inglesa de 1831.


Esta imagem que ostento acabou sendo instigadora para a investigação do passado. Para saber

de onde vim recorri à pesquisa histórica já que todos temos uma história que está inserida num

momento do passado das sociedades. Acreditava que a chave para entender minhas origens estava

naquela imagem que observo há 150 anos sem me cansar ou esgotá-la. Com a pesquisa descobri

que a Fonte Croton fica num dos espaços mais privilegiados de Nova Iorque e sua história é a

seguinte: a Fonte Croton (1842–1870) recebia água pelo Aqueduto de Croton, fornecendo a Nova

Iorque o primeiro suprimento confiável de água potável. Este Aqueduto tinha uma extensão de mais

de 60 quilômetros. A localização era no centro de Nova Iorque, no City Hall Park.

Para celebrar a conclusão das obras do Aqueduto é que a fonte foi inaugurada, numa das

maiores obras públicas da primeira metade do século XIX. A bacia central da Fonte tinha 30 metros

de diâmetro e a projeção da água jorrava a 15 metros de altura. A fonte podia receber 132 milhões

de litros por dia.

59
A inauguração ocorreu no dia 14 de outubro de 1842. Ocorreram grandes festejos e a presença

do então atual e de dois ex-presidentes dos Estados Unidos.

Figura 12 Capa de uma partitura "Croton Ode".

60
As paisagens vão sendo modificadas frente às ações humanas, neste caso, ações de
remodelação urbana.

Nesta imagem vemos a Praça em 1812, portanto, 30 anos antes da construção da Fonte Croton:

Figura 13 City Park Hall em 1812. www.nyc.gov

61
Avançando no tempo vemos a praça no ano de 1911. Quase tudo mudou:

Figura 14 City Hall, New York, 1911. In: New York City Hall Livrary.

A espacialidade vai sendo lapidada conforme os avanços da técnica e do aumento populacional

que exige diferenciadas prestações de serviço frente à dinâmica econômica.

62
Um excelente acervo para o estudo da história é a pesquisa em jornais como no Dollar Weekly

que fez a cobertura dos festejos da inauguração.

63
As fontes imagéticas, as litografias reproduzidas no jornal contribuem para fazer um

esclarecimento: na minha imagem tem uma bandeira com seis estrelas, o que está incorreto! No

jornal são 26 estrelas e cada uma representa um estado americano no ano de 1842. Este é o número

correto de estados que constituíam os Estados Unidos naquele ano. Certamente, o artista que fez o

meu desenho optou por fazer seis estrelas maiores do que vinte e seis pequenas e quase invisíveis.

Figura 15 Dollar Weekly. 22-10-1842.


64
Assim como toda a História da humanidade sou feito de passagens fragmentadas e

descontinuidades. Através dos documentos e da memória vou juntando os cacos da minha trajetória.

E me questionei: se nasci na costa leste dos EUA e fui vendido no Porto de Boston, como fui

comprado por uma família de colonos vindos da Alemanha com destino ao Brasil?

Descobri que nasci para ser um produto fruto da industrialização e como tal uma mercadoria.

Neste que é considerado o século da História (o XIX) devido ao enfrentamento entre concepções

sobre o passado que buscavam a cientificidade e o afastamento das explicações sobrenaturais, foram

edificadas vertentes teóricas que defenderam ou foram antagônicas ao capitalismo. Realmente foi um

século de grandes confrontos e transformações cujo legado faz parte de nossas vidas até o

presente...

65
Afinal, a produção de mercadorias ampliou-se significativamente a partir da década de 1880 e

bateu recordes de consumo nestas duas décadas do século XXI. Para produzir é gerado poluição,

destruição de ecossistemas, esgotamento de mananciais de água potável, aumento do CO2 na

atmosfera e desencadeando antropicamente as mudanças climáticas etc. Com a expansão do

consumo e o enriquecimento dos países produtores como é um exemplo a China, se intensifica a luta

por mercados e se incrementa ainda mais a produção. Um ciclo que se chamaria de Imperialismo

quando envolvia potências capitalistas e hoje, com a economia de mercado globalizada, como

poderíamos denominar?

66
Figura 16 A Liberdade Guiando o Povo. Eugene Delacroix, 1830.

67
Vim ao mundo neste período de transformações ligadas ao mundo industrial que fizeram surgir

e consolidar o operariado e o empresariado. A expansão do sistema capitalista modificou a vida de

milhões de camponeses, promoveu uma rápida expansão urbana e reduziu os espaços rurais na

Europa. Os camponeses ou colonos alemães que constituíram minha primeira família, e que comigo

ficaram por cem anos, eram frutos deste grande processo de expansão do capitalismo que hoje

somos o resultado. Em busca de terras de onde tirar o sustento, a epopéia da navegação pelo

Atlântico trouxe milhões de pessoas para a América. Terra e trabalho, isolamento e sacrifícios,

sobrevivência conquistada no machado e na enxada. Outros milhões já haviam vindo em séculos

anteriores de forma compulsória da África para serem escravos neste Novo Mundo. Some a isso os

milhões de nativos da América, com sua diversidade cultural e política, para começar a entender a

dimensão e complexidade do processo civilizatório americano.

68
Figura 17 Estados Unidos em 1874.http//www. Newyork.public.library

69
Voltando aos meus compradores alemães...

No século XIX, a partir de 1824 – para o Rio Grande do Sul, os alemães se lançaram na viagem

marítima em busca do Novo Mundo. O tempo das descobertas de Colombo e de Cabral já haviam se

perdido no tempo. Porém, navegar o Oceano persistia como uma premente necessidade de novos

horizontes de sobrevivência material ou de ares de liberdade. As frágeis cascas de ovo -as

embarcações-, desaparecem na imensidão do Oceano logo após sair do porto seguro (tantas vezes

inseguros para os que estão se auto deportando...). Novos ares, novas matas a serem desbastadas

para o plantio, novas chances de levar conhecimentos ainda precários aos portos de destino.

70
A insustentabilidade da permanência soma-se a esperança da persistência do sonho de

recomeço. Camões decantou tão bem este desejo que acabou construindo uma “alma portuguesa”

voltada ao ultramarino. Talvez os alemães não tiveram um tradutor tão competente, talvez se Goethe

tivesse se voltado a esta reflexão de forma persistente..., não obstante, as aspirações, os desejos e

as concretudes vão edificando almas marítimas.

Momentos de pesadelo frente aos medos da travessia marítima, contudo, também momentos

sublimes para pensar nos limites e sentir a necessidade da superação. Afinal, do outro da linha entre

os dois pontos terrestres preenchidos em seus limites pela água, está à vida que se renova ao

caminhar. Nas terras que se estendem para além do porto de destino adentrando nos espaços menos

conhecidos, haverá muito trabalho, muitas frustrações, poucas satisfações materiais, mas, em tudo

somado, após longas décadas, restará a caminhada entre o nascente e o poente: esta longa

caminhada é a trajetória de vida.

71
Navio de passageiros no século 19.

72
Esta trajetória iniciava em diferentes regiões da Alemanha em que a falta de emprego e as

dificuldades de subsistência no trabalho agrícola se agravaram com a Revolução Industrial.

A busca de novos horizontes se torna premente e a América é um sonho distante, porém,

almejado. Dos imigrantes alemães, 80% foram para os Estados Unidos enquanto 10% se deslocaram

para o Brasil, Argentina, Uruguai e outros países da América do Sul. O Porto de Bremen era bastante

frequentado. Contudo, o imigrante que falaremos, partiu pelo Porto de Hamburgo onde passaram

dois milhões e duzentos mil imigrantes alemães (entre 1850-1934). Entre eles estava o meu

comprador. Seu nome completo se perdeu nas brumas do tempo, mas, o sobrenome era Kehn.

73
Figura 18 Cartão-postal do Porto de Hamburgo em 1907.

74
Com aproximadamente 21 anos, Kehn embarcou para os Estados Unidos e me adquiriu em

Boston em 1872. Como tinha indicações de parentes no Brasil, não quis fazer América, e retomou a

viagem marítima num vapor que seguiu de Boston para o Rio de Janeiro e que tinha como destino o

Porto de Buenos Aires. A única escala foi no Porto do Rio Grande na Província do Rio Grande de São

Pedro, onde desembarcou e fez novos deslocamentos até chegar em Santa Cruz do Sul.

Helena Kehn, sua neta, é que ficou com o relógio que estava na família desde 1872. Nove

décadas depois, mudei de endereço quando Helena, com 70 anos de idade, me deu de presente para

sua amiga Wali em 1961. Mas esta segunda etapa de minha vida vou narrar daqui a pouco... Agora

quero falar da minha primeira etapa que se prolongou por um século. Foram muitas experiências que

vivi desde os Estados Unidos até meu estabelecimento em Santa Cruz do Sul.

75
Quero aproveitar para deixar minhas memórias divagarem sobre algumas sensações que tive

enquanto estive exposto à venda numa loja do Porto de Boston (no Estado de Massachusetts). Lá

escutei histórias de navegadores e marinheiros sobre os perigos do mar. Gostei muito da leitura feita

por um freqüentador da loja que recitava em voz alta os contos de um autor que foi encontrado em

delirius tremens e que morreu em Baltimore (estado de Maryland) e cuja verdadeira causa da morte é

uma polêmica inesgotável: Edgar Allan Poe.

Recordo de uma passagem de Poe publicada no livro Histórias Extraordinárias que muito

gostava de repetir em meus pensamentos: “Num dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso,

em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, passava eu, a cavalo, sozinho, por uma região

singularmente monótona – e quando as sombras da noite se estendiam...”. 1

11
POE, Edgar Allan. A queda da casa de Usher. Histórias Extraordinárias. São Paulo: abril Cultural, 1978, p. 7.

76
Estas frases melancólicas projetavam meus pensamentos para outros cenários em que eu sentia

fazer parte daquelas histórias. Numa delas um Corvo conversava com o depressivo escritor e repetia

incisivamente as palavras “never more”.

77
Também em Boston, escutei as poesias de um francês chamado Charles Baudelaire num livro

proibido na França e que circulou por outros países: As Flores do Mal. Baudelaire é associado ao

nascimento da poesia moderna e em seus escritos, estão presentes o homem urbano e os seus

conflitos, além de relatos insólitos dos paraísos artificiais. Prematuramente ele refletia sobre a

modernidade do mundo ocidental que apenas engatinhava.

Reconheço que Boston era uma cidade portuária muito bruta e repleta de marinheiros e

estivadores “pouco polidos”. Isto a diferencia da cidade atual, onde na região metropolitana de

Boston se encontra duas das melhores universidades do mundo: Universidade de Harvard e o

Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Boston também foi à localidade onde teve início, em

1775, o processo de Independência dos Estados Unidos que rompeu os laços coloniais com a

Inglaterra.

78
O que guardei daquela atmosfera de maresia e movimento de passos, foram momentos

sublimes da arte poética destes dois homens, um norte-americano e outro francês, que morreram

tão jovens. Nesta cidade marítima é que eu fui comercializado, pois, como já falei, eu era uma

“mercadoria”! Mas não esqueçam que as mercadorias tem historicidade e, portanto, memória. Em

cada sociedade, à produção e o consumo tem um sentido dado pelos homens e que ajuda a

compreender a forma e o sentido da vida dos próprios homens em sociedade.

79
80
Ainda no ano do meu nascimento, em 1872, Kehn, o imigrante vindo da Alemanha recém-

unificada (Império Alemão dirigido pela Prússia), adentrou a casa comercial em que eu estava sendo

comercializado e me adquiriu. Este imigrante era um camponês pobre em busca de terra para obter o

seu sustento. Me considerou uma peça atraente ou sentiu atração pela marcação do tempo, não sei

explicar. O meu preço era “popular” para a época e o status em ter um grande relógio para marcar a

passagem das estações e dos eventos, de marcar a transitoriedade da vida, superou a apreensão

inicial com o custo financeiro.

A rota usual utilizada pelos imigrantes levava de portos da Europa para o Rio de Janeiro, na

grande viagem Atlântica em navios lotados e pouco salubres, que durava mais de 60 dias. Este navio

fez uma rota diferenciada, pois tinha produtos para descarregar no Porto de Boston e conduzia

imigrantes que rumavam para os Estados Unidos. Este não foi o caso de Khen que mantinha

correspondência com moradores da Picada Velha em Santa Cruz do Sul, nos confins do Brasil. Era

81
este o seu destino e ele seguiu com o navio que cruzou o litoral brasileiro e tinha como destino o Rio

da Prata.

Do Porto de Boston, após abastecer com muitos produtos para comercialização na América do

Sul, a embarcação rumou para o Rio de Janeiro, a eterna capital do Brasil em termos de definição da

brasilidade (contrasta opulência e miséria, beleza e fealdade, praias e insalubridade num mosaico

étnico e cultural complexo).

82
Figura 19 Interior de um navio cruzando o Oceano Atlântico.

83
No Rio de Janeiro (capital administrativa do Brasil entre 1763 a 1960), saltou aos olhos de Kehn

a miscigenação e o acentuado número de escravos. O escritor jesuíta-italiano Antonil, que viveu no

Brasil do século XVIII, escreveu que nada se fazia no Brasil sem a mão-de-obra do escravo africano.

O trabalho escravo representava o poder econômico e também o destaque social que poderia levar a

ocupar, após 1822, cargos de deputado ou senador do Império. Seria a realização máxima da prática

patrimonialista tão comum naquela época passada em que se confundia o público da Nação com os

interesses privados do grupo em que o político estava ligado. Felizmente, ironizando, é uma prática

já desaparecida na política brasileira...

84
Figura 20 Rio de Janeiro, 1875. George Leuzinger. Brasiliana Fotográfica.

85
Seguindo viagem, o navio fez breve parada em Santos e no Desterro (Florianópolis). A próxima

escala foi na Barra do Rio Grande, um dos momentos mais tensos da viagem marítima. Acessar a

Barra para adentrar no Porto Velho do Rio Grande era uma perigosa aventura devido ao calado ser

muito reduzido. O que escutávamos a bordo era que aquela área era um cemitério de navios que

afundaram devido aos fortes temporais. Com a baixa de profundidade ficava difícil acessar

rapidamente a Barra para encontrar um refúgio seguro. Era preciso esperar a orientação dos práticos

e guiar o navio entre os bancos de areia e com o ruído do casco roçando o fundo -que por vezes não

tinha nem dois metros de profundidade. Sendo inviável adentrar o canal de acesso era preciso ficar

ancorado ao largo da Barra e torcer para que não sucedesse violentos temporais que poderiam levar

ao naufrágio.

Tivemos sorte já que o pessoal da praticagem se aproximou com uma catraia e informou que

estava assumindo a pilotagem para percorrer a distância de cerca de doze quilômetros para lançar

âncora no cais do Porto.

86
Ao se aproximar era possível visualizar uma floresta de mastros (como registrou em seu diário

o Conde D’Eu em 1865) e observar muitas bandeiras de vários países que mantinham relações

comerciais com o Brasil. O Porto de Boston e Nova Iorque eram antigos parceiros que compravam

couro e charque da Província de São Pedro.

A chegada foi no Cais da Boa Vista e deste trapiche se observava a Rua Riachuelo, com o seu

forte comércio de exportação e importação e um frenético movimento de carga e descarga. A poucos

metros do Cais, se observava a Igreja do Carmo que obstruía parcialmente o Beco do Carmo em que

foi edificada. A primeira atividade em terra era ir até a Igreja e agradecer por ter sobrevivido aos

deslocamentos marítimos. Na sequência era ir até os barracões que recebiam os imigrantes na Rua

Barroso. Ali se podia ficar sem custo de estadia e recebendo alimentação, até embarcar num navio

que conduzia até Porto Alegre pela Lagoa dos Patos. O navio que me trouxe de Boston seguiu viagem

para Buenos Aires.

87
Vinte anos antes de minha chegada, um alemão chamado Hermann Wendroth, esteve na cidade
e pintou algumas aquarelas do Porto. Era este o cenário que os viajantes, como eu, observavam da
área portuária ao circularem por Rio Grande.

88
Numa rápida caminhada pelo centro percorri a Rua Riachuelo e a Rua Coronel Osório (que pode
ser vista na parte direita da fotografia). As três muralhas com abertura interna é o Mercado Público
onde observei a venda de uma grande variedade de peixes, verduras, legumes e produtos coloniais.

Figura 21 Praça da Alfândega (atual Xavier Ferreira) na década de 1870. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.

89
No dia seguinte, um veleiro partiu para Porto Alegre levando dezenas de colonos alemães,
alguns destinados a Colônia de São Leopoldo, outros para Novo Hamburgo e apenas cinco, incluindo
Kehn, para a Colônia de Santa Cruz.

A travessia da Lagoa dos Patos, 300 quilômetros, durava 24 horas se o tempo se mantivesse
bom e sem ventos intensos que formavam as “marolas” que podiam fazer embarcações menores
naufragarem. Imagem da Barra do Rio Grande com as águas agitadas, no ano de 1847.

Figura 22 Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.


90
A viagem pela Lagoa dos Patos foi ótima e a melhor paisagem nos aguardava ao se aproximar
do cais. A vista de Porto Alegre, a partir do porto, é diferente de Rio Grande que é uma cidade plana.
Aqui se evidencia uma paisagem de terrenos altos e baixos da capital da Província do Rio Grande. A
cidade se localiza num ponto estratégico que conecta economicamente a região colonial e a pastoril.
Aqui afluem um conjunto de rios que escoam para o Lago Guaíba, daí para a Lagoa dos Patos e
seguindo até a Barra do Rio Grande quando as águas adentram no Oceano Atlântico.

Figura 23 Porto Alegre em 1852. Hermann Wendroth.

91
De Porto Alegre, pegamos um veleiro de menor porte que nos levou pelo Rio Jacuí até a cidade
de Rio Pardo. Localidade que se destacava como entreposto comercial que atraiu pecuaristas e
nobres que edificaram casarões coloniais que notabilizaram a cidade no cenário provincial. Durante a
Guerra do Paraguai recebeu a visita de D. Pedro II no contexto dos esforços do conflito. Os
imigrantes que rumavam para lotes coloniais, passavam por Rio Pardo para seguir para Santa Cruz
ou outras colônias mais distantes.

Figura 24 Rio Pardo em 1852. Hermann Wendroth.

92
Esta é uma vista da Rua da Ladeira em Rio Pardo com a Igreja Matriz do Rosário.

Figura 25 Panorama de Rio Pardo na década de 1860.

93
Depois de percorrer milhares de quilômetros de oceano, laguna e rios, a viagem segue por terra

por mais 35 quilômetros até chegar ao destino. Foram mais dois dias de deslocamento.

O meio de transporte passou a ser a carroça e fui enrolado numa manta para não ficar

danificado nas sacudidas causadas pelos buracos da péssima estrada. Próximo a Rio Pardo,

cruzamos por Rincão D’El Rey e vimos alguns colonos alemães ali radicados.
Planta alemã de 1905.

Colonos alemães em carroças.

94
Seguimos até o centro de Santa Cruz, entretanto, ainda não era o ponto de chegada. Subimos

por cinco quilômetros a serra que leva em direção a atual Venâncio Aires. O lote obtido por Kehn

ficava na Picada Velha (área do atual Restaurante Nevoeiro). Ali que fiquei morando e assisti as

gerações se sucederem. Acompanhei a tensão das lutas entre chimangos e maragatos (1893-1895)

quando ocorreram fuzilamentos em área próxima; os respingos da Primeira Guerra (1914-1918) e as

políticas antigermânicas; e da Segunda Guerra (1939-1945) quando não se podia falar em alemão e,

inclusive, o meu amigo Henrique, por receio de ser preso, cavou um buraco e enterrou uma Bíblia.

Figura 26 Santa Cruz, Passo do Rio Pardinho no início do século XX.

95
O tempo transcorreu e muitas pessoas passaram enquanto eu fiquei. Escutei conversas dos

vivos e sobre os mortos. Sobre a temida gripe espanhola e sobre a falta de chuva que secava as

plantas e trazia o espectro da fome para a comunidade.

Dias de chuva, dias de sol, dias de frio e dias de calor. Nos dias encobertos pela neblina a

realidade parecia escapar da percepção e formas fantasmagóricas se misturavam com as formas

humanas. Inúmeros cenários góticos vislumbrei nos dias nublados e chuvosos do inverno. E a cidade

foi crescendo... Uma vista de Santa Cruz por volta de 1910.

96
Hoje esta área onde se plantava batata, mandioca e milho, está repleta de videiras para a

produção de vinho artesanal/familiar e está tomada por condomínios residenciais evidenciando uma

agregação de valor as terras e garantindo qualidade urbana e ambiental (na contramão de tanta

miséria habitacional que ronda o Brasil de norte a sul). Aquelas terras “no fim do mundo” ou no

“extremo sul do Brasil” continuam a gerar frutos positivos para a qualidade de vida.

Desde criança (cerca de 1910), Helena Khen, uma neta que passou a vida no local, passou a me

fazer companhia e me levava para o Henrique me lubrificar e concertar. Ao lado de Helena,

inesgotáveis horas se passaram entre o mate doce, os pães caseiros e o trabalho na roça com a

enxada. A base do trabalho do colono imigrante era a policultura com mão-de-obra familiar sem

discriminação de masculino ou feminino. Todos trabalham.

97
Foi Helena, que me deu de presente para Wali em 1961 quando esta morava em Santa Cruz. Em

1973 a família Torres se mudou para Santa Maria. Parti da Picada Velha em Santa Cruz, num

poderoso fusca/1968/1.0 azul que ronronava na estrada de chão com aquele motorzão de 46 hp.

Aquele azul do fusca, assinalava o céu de brigadeiro que viveria nos próximos anos.

98
Minha longa estadia em Santa Maria da Boca do Monte foi muito agradável. É claro que o calor

de Santa Maria no verão era sufocante, no entanto um banho mental nos rios Verde (Vacacaí-mirim),

Ibicuí e Toropí compensavam a transpiração excessiva.

Figura 27 Centro de Santa Maria nos anos 1970.

99
A cidade era o centro de confluência rodoviária e ferroviária, o chamado “coração do Rio

Grande”. O caminho para a campanha e o planalto estava aqui na Depressão Central. Dinossauros

eram moradores habituais desta região (claro que a milhões de anos atrás...). Evidentemente

encontrei a família Flintstone convivendo com os dinossauros (mas só no desenho animado...).

No cartão-postal são muitos fuscas no centro de Santa Maria nos anos 1970.

100
Em tempo: já havia andado num carro na década de 1940 (“viajei” a partir das histórias que

escutei desta aventura...). Era o Chevrolet Ramona do amigo Henrique que viajou com os Kehn até a

distante São Jerônimo. Entre porteiras e campos, linguiça e cuca, dores latejantes na coluna pela

dureza da suspensão, foram vários dias de aventuras numa distância que hoje é feita em duas horas.

Era um passado em que a noção de tempo, distância e conforto era outro...

*O Chevrolet AC Internacional (lançado em 1929) foi apelidado no Brasil de “Ramona” em

brincadeira ácida dos admiradores da Ford em relação a este modelo da Chevrolet que produziu 2,1

milhões de carros. Ramona seria a música que tocava no navio Principessa Mafalda quando

naufragou na Bahia em 1927 e também a música tocada por uma orquestra em cinema do Rio de

Janeiro quando teve início um incêndio. Ou seja, a brincadeira é que o carro seria uma catástrofe...

De fato, Ramona é o nome de um romance da norte-americana Helen Hunt Jackson (1830-1885)

publicado em 1884 cujo tema é a tragédia dos índios americanos em guerras contra os brancos. A

vida da autora foi repleta de tragédias familiares e uma música foi composta com este título. Até

hoje, difunde-se a lenda da maldição da melodia de Ramona.

101
Chevrolet Ramona 1929. Colina- São Paulo. Também se observa uma bomba de gasolina.

102
Minha última escala nestas viagens entre os Estados Unidos e o Brasil foi quando Wali me deu

para o seu filho que já me conhecia desde que nasceu em 1962. Ele também estava no fusca azul

que me levou para Santa Maria. Em 1998 fui morar com ele em Rio Grande, a cidade que brevemente

conheci em 1872, e desde então tenho aprendido muito já que ele é historiador. E a ideia de falar de

minha história foi amadurecendo. Vou pular este período que se estende até 2022, afinal, rendeira

inúmeros livros.

103
Local onde estou atualmente:

104
Foi uma longa viagem para um relógio?

105
Contar um pouco da trajetória é muito especial. Afinal, quantos outros relógios tiveram a sua

historicidade preservada? Eu sei que muitos estão em museus e que tem uma ficha técnica

descrevendo as suas dimensões e o ano aproximado de fabricação etc. Porém, a historicidade deles

não foi contada (com certeza da maioria) ainda permanecendo em silêncio sepulcral. Mas que fique

assinalado e comprovado: um relógio pode ser o pretexto para escrever inesgotáveis histórias! Basta

juntar fontes orais, escritas e muita imaginação...

E imaginação distópica não falta em “Blade Runner, o caçador de androides”, um filme cult, com

uma trilha sonora maravilhosa de Vangelis “Blade Runner Blues” e “Love Theme”. No final do filme a

frase associada ao personagem de Harrison Ford é marcante: “Tudo o que ele queria eram as

mesmas respostas que o resto de nós quer. De onde foi que eu vim? Para onde eu vou? Quanto

tempo eu tenho? Tudo o que eu podia fazer era sentar lá e vê-lo morrer”. Ou seja, são inesgotáveis

as questões metafísicas que envolvem os pensamentos de nosso corpo físico que é um passageiro da

temporalidade...

106
107
Estou quase encerrando o meu relato e vocês devem continuar questionando que de fato sou

apenas um relógio e as memórias são criações exclusivamente humanas! Que de fato, este que

assina o livro é o verdadeiro autor.

Neste momento quero recordar os momentos, escutando o som que produz a lenha quando

queimada pelo fogo; o som da chuva ao cair batendo no telhado e na terra; as cores de um dia de sol

e a grama coberta de branco com as geadas. O calor e o frio são forças marcantes da natureza, um

relâmpago clareando a noite faz os olhos se arregalarem e pode até assombrar e criar os mitos do

medo, da segurança ou do acalento...

108
Não é novidade os humanos registrarem suas memórias. Também sei que cadernos já contaram

histórias como na música Aquarela de Toquinho. Que em A Bela e a Fera os móveis e utensílios

ganham vida, inclusive um relógio. A trilogia Toy Story da Pixar já é um clássico onde os brinquedos

estão vivos e se esforçam para manter a sua condição de inanimados. É óbvio que a memória está

para além dos humanos!

Porém, me embaça os olhos pensar no esquecimento destas memórias e do meu ser. É como se

um incomensurável vazio sufocasse esta tentativa em me definir como um ser pensante que possui

um sentido para o existir. A arte literária quer ser o meu último refúgio para perpetuar-me quando o

meu amigo sucumbir ao tempo e tornar-se apenas pó dispersado pelo vento numa praia imensurável

no extremo sul do Brasil, ou sendo menos poético, apenas uma lápide num cemitério esquecido ou

um punhado de cinzas produzidas pelo calor do fogo. No futuro não há certezas ou garantias,

apenas um fluxo contínuo de eventos finitos cuja hora de acabar é uma incógnita...

109
Meu último olhar será dirigido aos cupins? Ou ficarei jogado em um canto qualquer de um lixão

de segunda classe?

Seria muito pedir um final digno num antiquário de uma cidade que busca sobreviver num país

que agoniza na busca de sentidos?

Ou me aguarda um destino voltado às imagens do expressionismo alemão como em F. W.

Murnau?

110
Figura 28 Cena do filme Nosferatu, de Murnau, 1922.

111
O fato concreto é que só tenho o presente como cenário. Falei do passado e me apavoro com o

futuro, mas é no presente que escrevi este livro e que estou construindo amigos, que são vocês

leitores. E na solidão que é a vida de cada um, a escrita permitiu dialogar com tantas pessoas

diferentes e com tantos destinos desconhecidos. As apreensões que também fazem parte de mim se

universalizaram frente à condição humana: todo ser pensante e portador de memória questiona

sobre sua existência e sentido. Ao fazer isto se encontra com a vida a qual está em todos os

episódios que a memória ainda consegue recordar do passado.

112
Vocês não acham que foi uma longa viagem para um relógio?

Sinto que vivi uma noite estrelada que perdura por 150 anos...

113
Vamos ocupar o tempo do futuro com outras histórias além das minhas? Por que vocês não me

contam ou escrevem a trajetória da história de vida de vocês? Afinal, não sou feito apenas de

memórias do passado, mas também da escuta das vozes do presente.

Enfim! Agora estou revestido de profundo silêncio e somente as vozes mentais de vocês é que

vão ocupar os espaços do momento presente...

114
AO LEITOR

Este é um ensaio de meta-ficção historiográfica destinado ao público infanto-juvenil.

Conjunturas e personagens aqui relatados foram livremente adaptados ao fluxo redacional sem um

rigor de veracidade. Portanto, datas trabalhadas na identificação da trajetória do relógio são

aproximações cronológicas e os personagens, que realmente existiram ou existem, também tiveram

uma liberdade poética em suas abordagens e em suas historicidades (sucessão de eventos no

espaço-tempo).

Há, o Fritz não é ficção. Ele realmente existe!

115
Referências
Acervo documental e imagético da Biblioteca Rio-Grandense.
Acervo de cartões-postais de Luiz Henrique Torres.
Coleção de aquarelas de Hermann Wendroth.
Coleção de cartões-postais de Walter Albrecht.

Sites:
https://santamariafoto.blogspot.com.br/
https://www.loc.gov/ Library of Congress.
http://www.nyc.gov
http://bndigital.bn.gov.br
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/
https://www.familysearch.org/pt/wiki/Alemanha,_Hamburgo,_Lista_de_Passageiros
https://www. crotonhistory.org
https//www. newyork.public.library
https://twitter.com/ScottDuncanWX/status/
https://historiaehistoriografiadors.blogspot.com/
http://www.colinassp.blogspot.com
https://www.amherst.edu/museums
Wikimedia Commons

116
Livro dedicado à minha irmã Mara (1959-1996).

117

Você também pode gostar