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PONTO DE VISTA

O retrocesso da
grande estratégia
geopolítica
brasileira
Marcelo Viana Estevão de Moraes 26 Jul 2021
(atualizado 26 jul 2021 às 11h48)

FOTO: RAUL MARTINEZ CANDIA/REUTERS - 12.09.2018

O cenário atual impõe a retomada da


integração sul-americana no marco de
uma institucionalidade abrangente
como a Unasul

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A grande estratégia brasileira em termos


geopolíticos abrange projetar-se sobre seu
entorno em círculos concêntricos de
influência. O primeiro círculo e o mais
importante é a região platina, zona de
maior densidade econômica e
populacional. O segundo círculo incorpora
o resto da América do Sul, com destaque
para o arco amazônico; e o Atlântico Sul, no
qual transita mais de 95% do comércio
externo do país. O terceiro círculo agrega
toda a América Latina e o Caribe, bem
como a Antártica e a costa ocidental da
África. Os três círculos conformam o
grande entorno geoestratégico do Brasil,
onde sua presença ativa é vital para seu
desenvolvimento e sua segurança.

Na sua afirmação como ator geopolítico


global nos primórdios deste século, entre
outras iniciativas, o Brasil liderou a criação
da Unasul (União das Nações Sul-
Americanas). A Unasul foi uma organização
internacional integrada pelos 12 estados da
América do Sul, criada com o objetivo de
projetar o poder da região no redesenho da
ordem global e articular as ações dos
diversos países nos vários campos das
políticas públicas, funcionando como
instrumento de governança do espaço
regional bioceânico, em um contexto de
mudança do pólo político e econômico
mundial do Atlântico Norte para o Pacífico
Ocidental.

A destruição da Unasul significou um


retrocesso para o Brasil e uma derrota de
sua grande estratégia, que ocorreu
juntamente com a desarticulação da
política externa brasileira, de global player
e de global trader, mediante a
desorganização do Itamaraty, que sempre
funcionou como referência institucional
para a profissionalização da administração
civil.

A nova ordem
geopolítica mundial
impõe ao Brasil o
desafio de atualizar e
implementar uma
grande estratégia que
conjugue o seu
destino com o da
América do Sul

A nova ordem geopolítica mundial impõe


ao Brasil o desafio de atualizar e
implementar uma grande estratégia que
conjugue o seu destino com o da América
do Sul, articulando uma plataforma
regional de projeção de poder capaz de
assegurar os interesses nacionais e
regionais na nova conjuntura
internacional. É preciso garantir algum
controle sobre o entorno oceânico da
América do Sul, a segurança da extensa
fronteira terrestre brasileira e a
cooperação para o desenvolvimento
sustentável da Amazônia diante da crise
ecológica global.

A integração da América do Sul


dificilmente pode avançar sem o Brasil, por
suas dimensões territoriais, populacionais
e econômicas. Por ser multivetor do ponto
de vista geopolítico, o país conecta as
grandes bacias hidrográficas amazônica e
platina com o altiplano andino e tende a ser
o principal protagonista e beneficiário da
integração continental. Primeiro, porque o
projeto regional se articula com o objetivo
nacional brasileiro de consolidar sua
integração interna. Segundo, porque
viabiliza potenciais sinergias entre os
sistemas econômicos nas esferas
produtiva, comercial e logística, com
destaque para os corredores
interoceânicos. Terceiro, porque permite a
articulação de uma doutrina estratégico-
militar regional como ocorria por meio da
cooperação no Conselho de Defesa Sul-
Americano.

Houve uma campanha contra a Unasul


usando o fantasma de um suposto
bolivarianismo. Nada é mais falso. Todo o
processo recente foi fortemente
impulsionado pelo Brasil com lastro em
duas tradições fundamentais do
pensamento social brasileiro: por um lado,
o pensamento geopolítico com sua marcha
para o oeste, nas formulações de Mário
Travassos, do seminal Projeção
Continental do Brasil, até os escritos do
general Meira Mattos, nos anos 1990; por
outro, no pensamento econômico
desenvolvimentista, que sempre flertou
com a cooperação regional como dimensão
estratégica do desenvolvimento nacional.

O mapa de poder global foi redesenhado


nas duas primeiras décadas do século 21. O
século 20 terminou sob a supremacia dos
Estados Unidos, vitoriosos na Guerra Fria.
Vinte anos depois, a China emergiu como
potência terrestre desafiante, reeditando o
esquema básico do quadro mackinderiano:
uma potência terrestre que disputa o
controle da Ilha-Mundo (Eurásia) como
contraponto a uma potência oceânica
(visão mahânica) que controla o mundo por
meio do domínio dos mares (EUA). No
século 19, essa polaridade opunha a Grã-
Bretanha à Rússia, o que inspirou a
formulação original de Mackinder. Agora a
polaridade que se desenha é entre os EUA e
a China. Mas há elementos novos e
complexos.

Ao contrário da Rússia e da União


Soviética, a China é a maior economia
mundial, superando a economia americana
(2ª), se o PIB for contabilizado no critério
de PPC (paridade de poder de compra). A
China é um desafiante tridimensional:
compete com os EUA também nas
dimensões estratégico-militar e científico-
tecnológica. Das oito maiores economias do
mundo hoje (critério PPC), cinco estão na
Ásia e progressivamente articuladas em
torno da economia chinesa, em maior ou
menor grau, por força das novas rotas da
seda, terrestres e marítima, e da área de
livre comércio do Pacífico: Japão, Índia,
Rússia e Indonésia, além de outras
potências de médio porte.

A aliança estratégica entre China e Rússia


tem caráter complementar: o dinamismo
econômico chinês tende a se espraiar pela
Rússia por meio das novas vias terrestres
de comunicação e transporte que ligam a
economia chinesa ao coração da Europa,
com autonomia em relação aos meios
tradicionais marítimos. Por outro lado, a
China tem na Rússia um parceiro rico em
recursos naturais e energéticos, com um
sofisticado sistema industrial militar, que
potencialmente pode supri-la com
matérias-primas e, em parceria, equilibrar
o balanço estratégico. Aliados, exercem um
poder de atração sobre os demais países do
entorno, sobre a Europa e sobre o mundo,
por meio de arranjos de geometria variada.
A União Europeia, nucleada pela
Alemanha, tende a se integrar nesse eixo
por seu potencial econômico e pela
dependência energética em relação à
Rússia, apesar de seus tradicionais laços
com o ocidente.

Mesmo a Austrália e a Nova Zelândia que,


juntos com o Canadá e o Reino Unido,
integram a comunidade anglo-saxônica
cujo eixo está nos EUA, estão na RCEP
(Parceria Regional Econômica
Abrangente), área de livre comércio
hegemonizada pela China.

Considerado esse panorama sintético de


grandes tendências, a oitava economia
global (PPC), o Brasil, deve se organizar a
partir de sua circunstância geopolítica sul-
americana para negociar com esses
grandes blocos as melhores condições para
o desenvolvimento nacional e regional. O
Brasil estava estruturando a América do
Sul (por meio da Unasul) como interlocutor
geopolítico desses arranjos e buscando
maximizar as oportunidades
eventualmente derivadas dessas
rivalidades. Parafraseando o economista
Paulo Nogueira Batista Júnior, o Brasil não
cabe no quintal de ninguém e seu desafio é
liderar a retomada da Unasul como parte de
sua grande estratégia de inserção no
mundo.

Marcelo Viana Estevão de Moraes é


especialista em políticas públicas e gestão
governamental, doutor em ciências sociais e
autor do livro “A construção da América do
Sul: o Brasil e a Unasul”, lançado em 2021 pela
Editora Appris.

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