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Bandung - espanhol
O espírito de Bandung permitiu criar um amplo consenso entre os principais líderes e os povos
da Ásia, África e América Latina em relação à afirmação da paz e aos princípios de coexistência
pacífica, em um momento em que o mundo vivia uma situação de extrema tensão, ameaças
permanentes de guerra e invasão e ocupação militar como instrumentos de dominação
econômica e política. Os cinco princípios de coexistência pacífica, elaborados pelo primeiro-
ministro chinês Chou En-lai e ratificados pelo primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru em
1954, foram declarados pela Conferência de Bandung como parte dos princípios gerais que
ligavam a liberdade à soberania dos povos. Inspirada nesse espírito, em janeiro de 1958,
realizou-se no Cairo a Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da Ásia e África, e
posteriormente ocorreu em Cuba a Primeira Conferência de Solidariedade Tricontinental.
Este legado histórico das lutas do Terceiro Mundo revela-se de grande utilidade para uma
estratégia contemporânea de afirmação de um sistema multipolar sustentado em processos
civilizatórios que hoje impulsionam uma diversidade de países, estados nacionais, movimentos
sociais e uma pluralidade de culturas e identidades. Movimentos clandestinos sob o fogo de
poderosas potências colonizadoras tornam-se atores políticos vitoriosos que constroem novos
Estados com crescente impacto econômico, político e cultural no sistema mundial.
Este é um cambio fundamental que desafia o pensamento e as forças progressistas e obriga a
romper com paradigmas e políticas voltadas principalmente para a denúncia, para assumir a
responsabilidade histórica na condução de seus povos e dos processos de transformação do
mundo contemporâneo, de onde emerge, inexoravelmente, uma nova ordem mundial.
Desde os anos 50, essas nações foram alvo de ações neocoloniais, mas tiveram a capacidade
de desestruturar paulatinamente essas ofensivas. Foi assim que o Movimento dos Não
Alinhados pôde construir instituições bem-sucedidas, apesar da resistência que enfrentaram,
como a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), a OPEP
(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e a Trilateral. A criação da Associação de
Economistas do Terceiro Mundo contribuiu para esse processo com elementos teóricos e
conceituais fundamentais.
Nesse contexto, destaca-se particularmente o papel da China, que conseguiu construir uma
economia gigantesca superando a fome e a miséria de sua população, afirmando-se como uma
potência industrial exportadora e avançando para a vanguarda científica e tecnológica do
mundo. Outras nações, como Índia, Indonésia e Egito, desenvolvem importantes processos de
afirmação nacional, reforçando o espírito de unidade dos povos inspirado na declaração de
Bandung.
Uma análise geopolítica razoavelmente informada não pode perder de vista um fenômeno
novo na dinâmica global: a crescente importância das economias do Sul na definição de uma
nova ordem econômica internacional e no estabelecimento de novas formas de convivência no
planeta. Essa tendência não pode ser analisada apenas como um fenômeno econômico, mas
como parte de um processo de afirmação dos povos do Sul a partir de suas raízes civilizatórias,
que se tornam instrumentos fundamentais na construção identitária para a elaboração de
formas próprias de desenvolvimento econômico e social. A humanidade se rebela contra as
tentativas de hegemonismo imperial e as concepções exclusivistas do processo civilizatório. A
riqueza de experiências culturais que moldam a história da humanidade deverá ser um dos
principais instrumentos para a construção de uma civilização planetária.
Nos últimos três anos, o PIB medido pelo poder de compra paritário (PPP) consagra a liderança
da China na economia mundial. Além disso, atrai para este novo centro seus aliados mais
próximos. De acordo com o Banco Mundial, as principais economias do mundo, medidas pelo
poder de compra paritário, serão em 2015 as seguintes (em bilhões de dólares): em primeiro
lugar, China (18.976); seguida pelos EUA (18.125); Índia (7.997); Japão (4.843); Alemanha
(3.815); Rússia (3.458); Brasil (3.259); Indonésia (2.840); Reino Unido (2.641) e França (2.634)
em décimo lugar.
Nesse novo contexto, a atuação da China torna-se mais audaciosa: no plano financeiro, a China
abre a perspectiva do Banco dos BRICS, com um capital de 100 bilhões de dólares para
investimentos e um capital semelhante destinado a fundos de contingência. Ao mesmo tempo,
cria-se o Banco Asiático, que disporá de um volume ainda maior de recursos e que já abriu a
possibilidade de parceiros ocidentais, além de parceiros asiáticos. Esse processo teve um
sucesso inesperado ao atrair 24 países, quase todos considerados parte da esfera de influência
norte-americana.
Pouco eficaz foi a reação dos EUA e seus esforços para impedir essa fuga para o Oriente.
Por outro lado, os países do Oriente Médio, que têm alta liquidez por meio de fundos
soberanos, estão buscando ingressar nesta nova arquitetura financeira mundial. Além dos
recursos já mencionados, o governo chinês está realizando novos investimentos diretos por
meio de suas empresas em vários países do mundo. É o caso dos 50 acordos assinados entre
China e Rússia e os recentes acordos com o Brasil, que envolvem um volume de investimentos
próximo a 53 bilhões de dólares, aos quais se somam cerca de 10 bilhões de dólares em
empréstimos à empresa brasileira Petrobras.
Esse enorme volume de recursos, fruto do maior excedente monetário do planeta (as reservas
da China chegam a cerca de 4 trilhões de dólares), coloca em xeque o FMI e o Banco Mundial,
principais instrumentos da hegemonia norte-americana desde o pós-Segunda Guerra Mundial.
Nos últimos anos, o Partido Comunista Chinês assumiu uma atuação mais ousada na dinâmica
mundial. Até três anos atrás, este país buscava minimizar sua intervenção na política e
economia mundial. No entanto, alguns fatores obrigaram a uma revisão dessa postura. Em
primeiro lugar, a pretensão dos EUA, de seu governo e de grande parte de sua opinião pública
de manter o mesmo nível de intervenção que tiveram, ou aspiraram ter, desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. Isso tem provocado situações políticas e econômicas totalmente
arbitrárias, com graves repercussões a nível mundial e um crescente processo de militarização
em escala global.
No plano econômico, é importante destacar a diferença entre um EUA que saiu da Segunda
Guerra Mundial com 47% do PIB global e 70% do ouro disponível internacionalmente, e os EUA
atuais, que representam apenas 15% do do PIB mundial e detém uma parte ínfima das
reservas internacionais de ouro.
Em terceiro lugar, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos emergiram cercados por
uma Europa destruída, Ásia gravemente afetada por guerras locais e revoluções, além de lutas
anticoloniais, junto com a África também em pé de luta contra a dominação colonial e a
América Latina disposta a buscar caminhos próprios. Nessas circunstâncias, a maior potência
do mundo precisava criar um inimigo mundial que lhe permitisse consolidar sua influência
sobre a maior parte do planeta. Assim, a partir da Guerra Fria, os EUA entram em conflito com
seu principal aliado contra o nazifascismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Os Estados Unidos foram atraídos por um projeto de suceder as potências coloniais europeias
diante do grande movimento nacional democrático mundial, anticolonial e antiimperialista.
Esse projeto foi parcialmente bem-sucedido no caso da independência da Índia e na primeira
fase do governo do Kuomintang. No entanto, a política da Guerra Fria levou, quase
imediatamente, à ruptura do frente nacional instituído na China, permitindo que o Exército
Vermelho assumisse o controle de toda a China continental, enquanto Chiang Kai-shek se
refugiava na ilha de Formosa com o apoio dos Estados Unidos.
Mais uma vez, os EUA rompem com um aliado da Segunda Guerra e conseguem que a
pequena ilha de Formosa represente a China como membro do Conselho de Segurança da
ONU. Dessa forma, a Guerra Fria leva a Ásia e às lutas anticoloniais para uma forte
radicalização, expressa, sobretudo, nas guerras da Coreia e da Indochina, criando condições
para a realização da Conferência de Bandung e o surgimento do Movimento de Países Não
Alinhados.
Em declarações recentes, o diretor executivo do Comitê Nacional Russo para os BRICS, Goergy
Toloraya, afirmou que os BRICS formam "uma aliança de civilizações que nunca se converterá
em um bloco militar", capaz de construir um "projeto intelectual orientado a formular novas
regras de coexistência global". Segundo o analista, trata-se de um bloco emergente com o
objetivo de salvaguardar seus interesses comuns por meio da cooperação e do princípio de
não intervenção nos assuntos internos de cada país.
Essas afirmações não são uma opinião isolada, mas sim um movimento cada vez mais amplo
em nível mundial que afirma a necessidade de uma aliança estratégica entre os países do Sul
para promover novas formas de convivência planetária. Isso se baseia no respeito mútuo, na
tolerância como princípio fundamental, na diversidade cultural e civilizatória como
possibilidade de enriquecimento e não de exclusão, e na cooperação Sul-Sul baseada no
princípio de benefícios compartilhados. Estamos testemunhando uma mudança profunda de
paradigma: do "choque de civilizações" para um novo enfoque de "aliança de civilizações".
O Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 2013, intitulado "O Ascenso do Sul: Progresso
Humano em um Mundo Diverso", publicado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), sustenta que "o Sul emergiu com uma velocidade e escala sem
precedentes", dando origem a uma "maior diversidade de opiniões na cena mundial". Isso
apresenta uma oportunidade para desenvolver instituições de governo que representem
plenamente todo o eleitorado e que poderiam usar essa diversidade para encontrar soluções
para os problemas do mundo. Segundo essa abordagem, trata-se de transformar a diversidade
do Sul em um instrumento de solidariedade.
Construir uma visão estratégica do Sul, pautada pela solidariedade e cooperação e orientada
para o desenvolvimento integral em benefício de seus povos, é uma das tarefas mais
importantes deste século.
A conjuntura contemporânea na América Latina, que apresentou grandes avanços nos projetos
e processos de integração regional, a partir de um novo ciclo de acumulação política das forças
progressistas e de esquerda na região, iniciado no século XXI, se revela hoje como um amplo
espaço de disputa entre dois projetos antagônicos.
Por outro lado, existem diferentes projetos de integração que, a partir de uma visão soberana,
estão desenvolvendo diversos mecanismos de integração política, econômica e cultural que,
apesar dos diferentes ritmos, conseguiram avançar na formulação de uma agenda latino-
americana. No entanto, essa agenda ainda carece de uma visão estratégica capaz de tensionar
todas as forças e potencialidades da região, permitindo-lhe desempenhar um papel mais ativo
e impactante nas mudanças profundas que ocorrem no sistema mundial.
À dinâmica complexa de integração de Estados e governos, soma-se a integração das nações,
dos povos e dos movimentos populares, que têm mostrado um crescente poder de pressão
social e participação na formulação de políticas públicas, refletindo a maturidade crescente do
movimento democrático.
Nesse contexto, a diplomacia regional assume uma densidade sem precedentes. Um conjunto
de novas articulações se traduz em instituições subregionais, regionais e continentais,
transformando o processo de integração em uma realidade complexa envolvendo Estados e
governos, acompanhados de um processo, às vezes paralelo, às vezes convergente, de
integração e unidade dos povos e movimentos sociais, incluindo sindicatos e movimentos
campesinos e estudantis que já tinham uma certa tradição de integração na região. A
afirmação da identidade dos povos originários faz parte desse novo cenário, tornando-se, ao
mesmo tempo, uma inspiração e um instrumento de mobilização política capaz de transformar
Estados e criar novos princípios constitucionais. Assim, redefinindo-se a relação com a
natureza, confere-se ao movimento ambientalista um sentido político e filosófico mais
profundo.
Um princípio que ganha cada vez mais centralidade é o da soberania, entendida como a
capacidade de autodeterminação de Estados, nações, povos e comunidades. Essa soberania
também implica a apropriação da gestão econômica, científica, social e ambiental dos recursos
naturais, permitindo o desenvolvimento de novas estratégias e modelos de desenvolvimento
em benefício dos povos.
A aproximação crescente da América Latina com a China, Rússia e os BRICS como um todo
representa uma oportunidade para desenvolver alianças estratégicas que rompam com o
modelo primário exportador e se orientem para o desenvolvimento integral de seus povos.
Isso requer uma ruptura profunda com a visão extrativista e os efeitos devastadores sociais,
econômicos e ambientais dessa prática, avançando em direção à reapropriação social da
natureza e dos recursos naturais como base para o desenvolvimento e bem-estar dos povos.
Torna-se necessária uma política regional de industrialização dos recursos naturais. Essa
política precisa apropriar-se da pesquisa científica e tecnológica, voltada para o
desenvolvimento de tecnologias de extração com o menor impacto ambiental possível, o
conhecimento profundo dos materiais e sua aplicação industrial, a inovação tecnológica e os
novos usos industriais. Esses objetivos exigem também a criação de instrumentos de análise
para uma gestão mais eficiente desses recursos.
Ao mesmo tempo, é necessário ter clareza sobre o crescimento da disputa por minerais como
uma das tendências dominantes globalmente. A América Latina aparece como uma das
grandes regiões em disputa. A diversidade de atores globais pode ser utilizada como
instrumento positivo para assegurar a soberania e aumentar a capacidade de negociação da
região.
A crescente aproximação entre as potências emergentes, os BRICS, o estreitamento das
relações entre a China e a América Latina, a nova dinâmica da cooperação Sul-Sul, abrem um
novo ciclo histórico de afirmação do Sul, baseado nos princípios de cooperação,
autodeterminação e soberania que inspiraram a declaração da Conferência de Bandung