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A grande estratégia dos Estados Unidos e os desafios estruturais externos para a

inserção internacional brasileira


Márcio Azevedo Guimarães
Doutor em Ciência Política
martiusorla@gmail.com

Resumo
O atual ciclo de acumulação sistêmico envolve a competição pelo domínio de novas
tecnologias na produção e favorece a concentração de capital, gerando, com isso, uma
crise econômica que impacta na grande estratégia dos Estados Unidos no sistema
internacional. Nesse sentido, a busca por maior eficiência do sistema de armas a um
custo econômico sustentável deve ser contextualizada a partir do processo de
concentração de capital. Portanto, no plano metodológico, um sistema de armas
desenvolvido é variável dependente da lógica econômica da acumulação de capital,
variável independente, no qual incide a variável interveniente dos interesses
geopolíticos do complexo militar e industrial estadunidense. Assim, o necessário
incremento de capacidades militares pode ser entendido como um efeito possível dos
ciclos de acumulação, trazendo como consequência, efeitos condicionadores sobre a
doutrina de política externa de segurança norte-americana em razão do impacto da
hipótese de guerra central sobre o equilíbrio internacional e os efeitos estruturais
externos e internos para o Brasil

Palavras – chave: ciclo sistêmico de acumulação, sistema internacional, grande


estratégia, complexo industrial militar, Estados Unidos, Brasil

Abstract
The present accumulation systemic cycle embrances the competition for the control of
new tecnologies on production which favours the concentration of capital, thus,
engendering a economic crisis that fall upon in the great U.S. strategy. Therefore, the
search of higher efficiency of the system weapons at a sustainable economic rate must
be understood in the contexto of the economic logico capital accumulation. So, in the
methodologic dimension, a weapon system should be considered as a dependent
variable whereas the economic logic of capital accumulation is its indepent variable at
the same time the geopolitical interests of the U.S. industrial-military complex is a
intervene variable. Hence, the necessary update of military capabilities should be
understood as a possible effect of accumulation cycles, bringing as a consequence, the
effects which impact upon the security foreign policy doctrine of the United States due
to the very impact of central war hypothesis on the international balance and the
structural effects upon the internal and external dimensions to Brazil.

Key-words: acuumulation systemic cycle, international system, industrial-military


complex, grand strategy, United States, Russia, Brazil.

1
Introdução

Se como bem afirmava Karl Marx, que gerações de mortos nos governam,
alguns governam mais do que os outros. A começar pelo próprio insigne pensador
alemão e seu amigo e parceiro intelectual Friedrich Engels, mas também um russo e um
inglês... Vladimir Illich Lenin e Halford Mackinder! Não há como compreender o que
está acontecendo entre Rússia e Ucrânia e seus desdobramentos sistêmicos sobre o
sistema no qual se insere a diplomacia brasileira sem antes refletir sobre a importância
do marxismo tanto nas relações políticas internas quanto nas relações internacionais em
termos estruturantes. Da mesma forma, e como num casamento cheio de indas e vindas
complexa e mutuamente ambígua, mas complementar, não se pode prescindir do
pensamento geopolítico tal qual formulado por Mackinder, cujos pressupostos
fundamentais se mantém mais atuais do que nunca.
Primeiramente só um pouquinho de teoria. De acordo com os postulados centrais
do materialismo histórico, a estrutura de poder interna às sociedades políticas desde o
advento da Revolução Industrial e da consolidação do modo de produção capitalista no
século dezenove, está condicionada pela luta de classes e pelo processo de acumulação
de capital que estrutura todo o jogo de poder político e institucional centrada na classe
burguesa detentora dos meios de produção (eixo do poder econômico) e do poder de
legitimação e de coerção política (eixo do poder político burguês). Em outras palavras,
infraestrutura e superestrutura, que operam entre si de forma dialética e complexa.
Nesse contexto, em essência o Estado e suas instituições formais políticas
(executivo, legislativo), administrativas (burocracia) e jurídicas deveriam ser o
instrumento de poder da classe dominante burguesa sobre o conjunto da sociedade,
formada em essência, pela classe trabalhadora e camadas médias (pequena burguesia).
A lógica econômica da acumulação permanente de capital (que exerce forte
condicionamento sobre as instituições políticas, militares e culturais, mas que não
significa de forma alguma um determinismo) traria consigo a precedência dos interesses
do capital sobre o conjunto da formação social a partir de então.
Com a interdependência complexa entre o modo de produção capitalista com a
lógica territorialista do poder de coerção extra-econômico (esfera da racionalidade do
poder político e militar), esta lógica do poder definido no plano interno transbordou
para a esfera das relações internacionais à medida que os países mercantilistas e na
etapa sucessiva, os capitalistas – em essência Estados europeus no início –
necessitassem constantemente de acesso a mercados consumidores e fontes de matéria –
prima para sua economia, na qual o poder de uso da força, via ameaça de guerra ou de
guerra propriamente dita, operasse como meio instrumental da lógica de acumulação de
capital das elites centrais que passaram a controlar os estados centrais do sistema. Nesse
aspecto, o casamento entre lógica econômica e lógica geopolítica e entre elites do poder
e sistema mundial não poderia ser mais perfeita....
Antecedentes de longo prazo: o sistema internacional contemporâneo e o
ciclo hegemônico estadunidense

2
As complexas relações entre poder político e econômico e a equação que encaixa
o poder militar (a guerra) se encontram em inúmeros e fascinantes estudos históricos e
sociológicos pelos quais Immanuel Wallerstein e Geovanni Arrighi se debruçaram no
estudo da dinâmica de longo prazo histórica que estão na origem da formação tanto do
Estado territorial europeu mercantilista (e depois capitalista) com sua feição vestfaliana
como no nascedouro das características econômicas globais do sistema internacional.
Ao estabelecerem a relação entre centro e periferia, demonstram a natureza assimétrica
do sistema mundial e o papel que nações como Rússia, China e Brasil deveriam ocupar
de acordo com as regras estabelecidas pelas principais potências do sistema
internacional capitalista: Reino Unido, França e posteriormente Alemanha, Japão e
Estados Unidos. Para uns a periferia, para outros o centro...
Assim, a partir da inspiração marxista da transposição da dinâmica interna da
luta de classes para o espaço das relações interestatais e igualmente da influência do
pensamento braudeliano da história dos longos ciclos temporais, chegamos à natureza
central do que Lenin irá denominar de imperialismo e de sua relação com as grandes
potências capitalistas a partir do final do século dezenove: a relação entre a necessidade
de acumulação de capital e a guerra.
Nesse diapasão, a permanente concentração de capital industrial e comercial na
forma de oligopólios irá consolidar a tendência do capital financeiro como força motriz
da lógica de competição e expansão das grandes potências no sistema, conduzindo aos
conflitos internacionais conhecidos como Primeira e Segunda Guerra Mundiais, cujos
resultados seriam a hegemonia estadunidense a partir de 1945, sob a égide da coalizão
de frações de elites1 nucleadas na complexa e interdependente relação de conflito e
cooperação entre capital e poder militar no que se convencionou denominar de
complexo militar e industrial ou as elites do poder 2. Este é o contexto estrutural,
histórico de longo prazo, tanto do que ficou conhecido como Guerra Fria como do
momento presente.
A Guerra Fria teve um duplo significado. De um lado, possuiu uma dinâmica
própria, caracterizada pela polarização com a extinta União Soviética (1922-1991) em
razão das disputas de caráter ideológico – de um lado o capitalismo e de outro o
socialismo real – e geoestratégico – o equilíbrio militar convencional e nuclear entre as
duas superpotências que emergiram vitoriosas do conflito contra a Alemanha nazista em
1945. Todavia, mesmo essa rivalidade geopolítica e ideológica não pode ser dissociada
de outro significado, na verdade muito mais amplo e profundo, condizente com a
própria natureza do sistema internacional e que inclusive revela que o atual sistema tem
muito mais de continuidade do que com a aparente ruptura que tanto a literatura
consagrou nos últimos trinta anos. De fato, este outro significado é a interdependência
estrutural entre o ciclo de acumulação de capital desde pelo menos o seu estágio
financeiro oligopolista que determinou a Segunda Revolução Industrial e que vem
igualmente definindo as revoluções tecnológicas ulteriores aplicadas na produção
econômica e a realidade geopolítica dos conflitos entre as grandes potências que foi
revelado de forma emblemática por Mackinder no começo do século XX3.

1
Nicos Poulantzas, Poder Político e Classe Social (1977).
2
C. Wright Mills, A Elite do Poder (1981)

3
Tanto a criação de um complexo institucional orgânico dentro do aparato estatal
das grandes potências ligando os eixos político, militar e econômico quanto as etapas de
transição hegemônica a partir da decadência do primeiro ciclo realmente global do
capitalismo que foi o britânico (1780 a 1870) que puseram de um lado, as grandes
potências liberais anglo-saxônica e francesa e, de outro, o polo desafiante industrial
autárquico germânico e japonês e que redundaria na vitória do primeiro campo, liderado
pelo capitalismo estadunidense, são indissociáveis. Neste sentido, existe um processo
complexo circular, às vezes contraditório e que se retroalimenta mutua e dinamicamente
entre estrutura interna e internacional, dentro do estado norte-americano e dos demais
países centrais – França, Reino Unido, Alemanha e Japão – e que fornece carga
explicativa minimamente racional para o rearranjo de forças internas entre frações das
chamadas elites do poder em bases consensuais mínimas que definem a grande
estratégia de inserção dos Estados nacionais numa teia de disputas e alianças dentro de
um sistema igualmente competitivo, anárquico onde as dimensões econômica e militar
são complementares.
Dito de outra forma, a consolidação do complexo militar e industrial nos anos
1940 e 50 das administrações Roosevelt, Truman e Eisenhower representaram a um só
tempo o padrão de gestão estratégica de um ator estatal na condição de grande potência
do sistema internacional contemporâneo como também a criação de uma estrutura
voltada para garantir o sucesso e a sobrevivência do sistema capitalista como um todo.
Em razão disso, a partir da liderança inconteste do Estado norte-americano, a
garantia do processo de acumulação de capital para as burguesias estadunidenses e
associadas tanto no caso dos países desenvolvidos como no Sul Global estava garantida
de forme segura com a Guerra Fria. Estas são a elite do poder que tão bem Mills
examinou em relação aos Estados Unidos e que estão personificadas hoje no Pentágono
e que se internacionalizaram em um processo que se iniciou no entre guerras e que se
consolidaria na última metade do século XX.
Para estas elites o que interessa é a segurança e garantia de acumulação
progressiva de lucros a partir da extração da mais valia nacional e mundial das classes
trabalhadoras e a inexistência de obstáculos jurídicos, institucionais e militares a este
objetivo. Para tanto esta lógica do capital necessita de justificativas e de criar ou recriar
“fantasmas” que legitimem o uso da guerra para fins econômicos, mascarados de fins
políticos legítimos de defesa contra estados maléficos ou antidemocráticos (leia-se anti
democracia liberal...). Nesse contexto, o grande acontecimento histórico, político e
geopolítico que definiu o século XX foi a emergência do primeiro estado socialista da
história desde a Revolução de Outubro de 1917, no bojo do primeiro grande conflito
interimperialista mundial que foi a Primeira Guerra: o surgimento da União Soviética, a
partir da transformação do Império multiétnico e agrário russo num Estado
desenvolvido, industrializado, igualmente multiétnico mas pautado por uma democracia
popular e compromisso social com o combate às desigualdades sociais internas e a
melhoria das condições de vida da população.

3
MACKINDER, Halford. The geographical pivot of history (1904). Geographical Journal,
Vol. 170, No. 4, December 2004, pp. 298–321

4
Este se tornou o principal projeto político que ameaçava as grandes potências
capitalistas pelo seu exemplo que poderia ser seguido pela periferia do atual Sul Global
geopolítico4, composto por ex -colônias, estados subdesenvolvidos e em
desenvolvimento que caracterizam a periferia do sistema capitalista na Ásia, África,
América Latina e também da Europa do leste, nucleado inicialmente pelas potências
coloniais europeias e atualmente pela grande potência neocolonial estadunidense. E
dentro desta lógica que deve ser compreendido o sentido de combate ao socialismo que
virá a se consolidar com o discurso ideológico da Guerra Fria.
Assim, o chamado desafio socialista possuía um claro fator de desafio estrutural
ao capitalismo, uma vez que representava um modo de produção e um sistema político e
social alternativo. Por outro lado, toda uma cultura geopolítica de conflito e dissuasão
que caracterizou os estudos estratégicos militares entre 1945 e 1991 entre Estados
Unidos e União Soviética eram, em essência, o aprofundamento das características de
longo prazo e estruturais do sistema internacional em sua dimensão geopolítica ou
militar. E apesar de ter sua lógica própria e intrínseca – vez que a origem da lógica
territorial e militar é milenar e pré-capitalista como atestam os escritos de Tucídides
sobre a Guerra do Peloponeso – esta se relaciona de forma interdependente e como
instrumento de poder do capital desde pelo menos o advento do ciclo imperialista do
século XIX, conforme Ellen Wood assevera em sua obra Império do Capital. Desta
feita, a própria rivalidade ideológica que pautou a Guerra Fria não pode ser dissociada
da lógica estruturante do sistema capitalista como um todo. E é nesses marcos que
igualmente deve ser percebida a gramática de legitimidade do poder do capital – a
geopolítica!
Neste contexto acima é que deve ser compreendida a lógica da geopolítica como
se formou desde o último quartel do século XIX, em especial a anglo-saxônica. No
contexto da expansão neocolonial das potências europeias pela Ásia e África,
Mackinder defendeu, a partir da história da expansão naval e colonial britânica e de sua
condição insular e das disputas de poder entre as potências europeias continentais desde
a Espanha até a Rússia, que caracterizaram os séculos XVI a XIX, que cumpria às
potências insulares e navais de promover estratégias de contenção e divisão do poder
político, econômico e militar de estados que tinham sua localização geográfica na massa
continental eurasiana – Europa e o gigantesco continente asiático da qual a primeira
pode ser considerada como península.
Esta estratégia que se iniciara contra estados poderosos como Sacro Império,
França e Espanha atinge o seu ápice no século dezenove contra o Império continental
napoleônico e mais tarde na série de alianças da Inglaterra com França e Turquia contra
a expansão russa da qual a Guerra da Criméia em meados daquele século será
emblemática. Para a estratégia do capital – e isto é importante para entender a guerra
atual contra a Rússia (hoje capitalista) movida pelo Ocidente – importa evitar que
surjam não apenas estados rivais capitalistas (sejam imperialistas ou não) como também

4
Aqui o sentido é sublinhar que mesmo estando acima da linha do Equador, a maioria dos estados da
Eurásia (considerando principalmente na Europa as formações sociais da Europa oriental) tiveram um
passado histórico distinto do Ocidente europeu e norte atlântico e foram tratadas como colônias diretas
ou indiretas a partir do processo de expansão do mercantilismo e depois do capitalismo europeu
ocidental e norte-americano que conformou o mundo atual.

5
estados que possuam suficiente poder militar, econômico e demográfico que não
estejam submetidos à lógica e à ação das grandes empresas que financiam seus Estados
rumo à extração da mais valia global.
Se a necessidade de garantir a sobrevivência do Estado insular a partir da
potência naval (e a partir do século vinte, aeronaval) via estratégia de contenção
combinada com divisão usando as táticas diplomáticas de balanço de poder com
militares como dissuasão estratégica foram a essência do que ocorreu na Segunda
Guerra Mundial e na Guerra Fria, isso também serviu (e serve) como justificativa de
retórica legitimadora de estruturas estatais a serviço do capital da mesma forma que a
teoria do realismo político e estrutural e os estudos de segurança internacional também
operam como sofisticados sistemas teóricos de ciências sociais a serviço do poder.
Tanto mais isto é verdadeiro quanto independentemente de modo de produção, tanto o
realismo quanto a geopolítica também tem uma lógica própria que se justifica ao longo
da história humana e também serviu para o interesse nacional e a sobrevivência da
Rússia soviética e da China maoísta ao longo do século vinte.
Assim se independentemente do capitalismo existir enquanto um sistema
hegemônico em si, tanto a escola geopolítica quanto as teorias do realismo em todas
suas vertentes podem ser aplicadas razoavelmente ao longo de sucessivos modos de
produção históricos e sistemas internacionais regionais prévios ao sistema vestfaliano,
não menos verdadeiro que tais teorias importantes são extremamente válidas e eficazes
instrumentos de legitimidade dos Estados capitalistas hegemônicos, cujo centro
decisório de poder se encontra na reação complexa de suas elites do poder (burguesia,
militares, diplomatas e políticos).
Portanto, se o desafio soviético foi o mais agudo e difícil obstáculo ao
capitalismo, não menos é a existência de estruturas políticas poderosas suficiente para
impedir o livre fluxo de capital, mão-de obra e extração de recursos minerais e
estratégicos para os centros do sistema econômico mundial. Tal sistema se formou com
os contornos atuais a partir do livre cambismo britânico e atingiu seu apogeu a partir do
século vinte com o imperialismo informal estadunidense e, nesse sentido, tanto a Guerra
Fria, com sua lógica específica (mas estruturalmente ligada ao imperialismo) como o
momento do Pós-Guerra Fria de 1991 para cá são parte de uma mesma lógica.
Assim a atual ofensiva norte-americana deve ser compreendida em seus termos
realistas e dentro da lógica das disputas inter-capitalistas. É por isso que a verdadeira
guerra que se trava e que não é da Rússia contra a Ucrânia, mas do Ocidente capitalista
contra a Rússia, na Ucrânia e que também atinge a China e o Sul Global e mesmo os
mais importantes estados capitalistas imperialistas como a Alemanha.
As elites do poder e a grande estratégia do Estado norte-americano: o realismo e os
ciclos sistêmicos
A construção de toda e qualquer unidade política na história foi o resultado, por
um lado, de um processo de luta pelo poder alternado pela negociação em bases
mínimas e necessárias de consenso entre determinados grupos com capacidade de
maximizar seus interesses sobre o conjunto de sua sociedade e, por outro, da imposição
destes interesses de forma homogênea no plano além-fronteiras em relação às demais
sociedades políticas.

6
Esta é a lógica inerente do sistema capitalista e foi nos últimos séculos
deste período, no ocidente europeu, que as condições para a maior complexidade do
fenômeno estatal e de suas relações com as elites e os ciclos sistêmicos de acumulação
de capital irão se desenvolver.5

Dessa forma, emerge, na transição da Idade Média para a Idade Moderna,


no seio da Revolução Comercial e do advento do mercantilismo, o processo de
centralização do poder político em um estado territorial, associado ao poder do capital
financeiro e comercial de uma burguesia associada e, por fim, a institucionalização de
uma burocracia civil diplomática e militar, nos níveis políticos do processo decisório
junto ao chefe de Estado.

Portanto, com a formação e o desenvolvimento do moderno Estado


territorial, emergem novos atores a ele associados e que irão estabelecer o que podemos
denominar de tríade na relação complexa entre atores políticos-burocráticos-
econômicos. Sua relação, ora de cooperação, ora de conflito, tem elementos de
subordinação hierárquica com subordinação política com econômica.

Esta relação envolve interesses setoriais em si mesmos relevantes para a


sobrevivência do conjunto do Estado, mas também que encontram a competição e
disputa de outros interesses igualmente relevantes para a garantia da sobrevivência da
unidade estatal. Essa relação, por outro lado, envolve uma contradição entre a
necessidade de cooperação em torno de negociar consensos mínimos para a garantia da
sobrevivência de cada grupo de poder e que concorre para a sobrevivência do todo (leia-
se: soberania do Estado) e a existência de disputas em razão de busca setorial pela maior
influência sobre o todo em razão da necessidade política, econômica ou estratégico-
militar de maximizar estes interesses faz parte da natureza humana, essência final de
toda e qualquer formação política institucionalizada, suprema criação humana.

Enfim, na dimensão da natureza do indivíduo, do ser humano, do ser


6
político , burgueses, estadistas, diplomatas e militares perfazem o núcleo fundamental
do moderno Estado territorial e a negociação dos seus interesses setoriais está na gênese
da edificação dos interesses geoestratégicos que estão associados de forma
interdependente aos interesses estratégico-econômicos.

São eles que definem o que se entende por interesse nacional em toda e
qualquer época. Não obstante, é no nível seguinte, o estatal, em se tratando da
superpotência em sua relação com os demais atores estatais que se definem a partir da
capacidade de atuar como grandes potências, que surge a interação complexa e de
variada intensidade, a depender de condições materiais (capacidade) e espirituais
(crenças, valores, vontade política), que estão na gênese dos grandes interesses
nacionais e estratégicos. Uma vez criados, como se tivessem vida própria, estes
interesses estratégicos definem os princípios e regras universais da dimensão seguinte, a

5
ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo: Unesp,
1996;
TILLY, C. Coercion, capital, and European states, A.D. 990-1990. Oxford, UK: B. Blackwell, 1990.

6
Aqui reside a visão greco-romana e aristotélica do homem, do indivíduo, essência da vida política em
comunidade.

7
do sistema interestatal ou internacional, escapando o seu controle do nível de tomada de
decisão individual.
Assim, este sistema, este terceiro nível, a partir do avanço da Terceira
Revolução Industrial, centrada na hegemonia norte-americana e caracterizada pela
disputa estratégica dos polos desafiante russo e chinês, ganha um nível de autonomia em
relação aos outros níveis que - sem descartar a relevância e a interação orgânica entre
eles - faz com que as características do sistema internacional, cada vez mais
institucionalizado, possua formidáveis linhas de condicionamento sobre os níveis estatal
e individual.

Dito de outra forma, o chefe de Estado, assessorado por seu staff


diplomático e militar, ao formularem e implementarem sua concepção de política
exterior, não podem agir de forma totalmente independente uns dos outros já que sob
todos imperam condições estruturais do sistema estatal fortemente institucionalizado
desde as revoluções industriais e institucionais dos dois últimos séculos e que
necessitam representar em algum nível, interesses econômicos e financeiros de grupos
sub –estatais que são privados.

Assim, as grandes potências, por sua capacidade política, econômica,


tecnológica e militar, tem maior capacidade de influir e modificar o sistema
internacional a partir de interesses nacionais negociados internamente pelos atores
políticos, burocráticos e privados que participam do processo de formulação e de
implementação de política externa à qual, a despeito de ser uma unidade de análise
teórica autônoma no plano da ciência social, não pode ser dissociada, no mundo real,
das condições sistêmicas.

No mundo atual, um chefe de Estado, seja de uma grande potência ou de


um Estado débil, sofre os efeitos de causas e regras políticas e econômicas já definidas
pelos níveis estatal e internacional. A interação é muito complexa, na medida em que
estes níveis gozam de autonomia e que o Presidente dos EUA, por exemplo, tem menos
espaço de manobra para agir na formulação de sua política exterior do que um líder de
uma nação pobre e fracamente institucionalizada.

No entanto, no nível da imagem do Estado, os Estados Unidos têm maior


espaço de manobra para agir em prol de seus interesses no sistema internacional, o qual
é fortemente condicionado por este país. Pode-se dizer que no nível da superpotência, a
relação de intensidade de causa e efeito com o sistema internacional é horizontal, ao
passo que a das grandes potências com o sistema é inclinada, onde convivem grandes
espaços de autonomia com certa subordinação em relação ao sistema (casos alemão,
japonês, francês e britânico, chinês e russo, por exemplo) ou fortemente inclinado, ainda
que não de verticalidade/subordinação total, mas relativa. E em relação às potências
menores, incluídas ai as médias e pequenas, a relação com o sistema é francamente
vertical.

Adotando uma abordagem teórica que possa integrar algumas


perspectivas teóricas podemos compreender o fenômeno Estado, as corporações e o
papel do poder militar na definição da competição pela hegemonia no quadro do sistema
de acumulação de capital que caracteriza o sistema internacional.

8
Assim, deve-se centrar a análise das características e tendências centrais
do sistema interestatal. Esquemáticamente tem-se o seguinte:
1- Ascensão do capital financeiro – financia a produção e o poder político
– desde os séculos XIV e XV - condiciona, com a necessidade de garantir o processo de
acumulação de capital, a formação de unidades políticas com grande extensão territorial
ou cada vez maiores, a fim de prover segurança para finanças, indústria e comércio; 2-
Relações entre poder político e econômico – uso do poder militar (guerra) para garantir
a segurança política (elites governamentais) e econômica (elites empresariais) = noções
de ordem, soberania, segurança, sobrevivência, independência, autodeterminação;.3-
Necessidade de formação de complexos industriais que integram as lógicas, política e
econômica, fazendo com que as noções de segurança e defesa sejam instrumentais para
a garantia do processo de acumulação e, em razão disso, da proteção do Estado
capitalista;
Por fim, 4-Interação das forças políticas (unidades estatais) e econômicas (progressiva
internacionalização das corporações financeiras, industriais e comerciais dos Estados
com maior capacidade de poder – hegêmona e demais grandes potências).

O resultado desta dinâmica é que variáveis como a guerra, a diplomacia


tradicional, a diplomacia secreta, a profissionalização e industrialização das forças
militares, a economia transnacionalizada, as táticas das grandes potências em termos de
uso do balanceamento de poder em busca do equilíbrio multipolar e a tentativa de
hegemonizar o sistema interestatal são intercambiáveis e que fazem parte do processo
de tomada de decisão que envolve políticos profissionais e burocracias especializadas
no núcleo de poder do Estado contemporâneo.

Existe a possibilidade real de que na origem das estruturas atuas de poder


do SI, a necessária interação entre fatores domésticos e externos, os quais irão definir os
contornos gerais da estrutura do sistema, assim como estabelecer limites nos quais se
enquadram fatores conjunturais. No entanto, a própria conjuntura da interação das
unidades afeta a própria estrutura do sistema internacional quando as dinâmicas
interdependentes e complementares do processo de acumulação e da maximização de
poder se tornarem maduras o suficiente para de maneira integrada lograrem uma nova
etapa de acumulação e, com isso, afetarem a estrutura do sistema.

Os ciclos hegemônicos de Arrighi associado com as análises do realismo


estrutural de Waltz (1979) e ofensivo de Mearsheimer (2001), complementados pelas
análises de Robert Gilpin (1981) e sua hipótese sobre a transição hegemônica e, por fim,
sobre o impacto sistêmico sobre o processo de tomada de decisão de políticos e
diplomatas. Vale ressaltar que, dentro de uma perspectiva realista mais tradicional, o
realismo clássico, Hans Morghenthau (2003) já antecipava algumas destas discussões
mediante seu estudo sobre o papel dos recursos de poder.

Para Morgenthau (2003) se poder econômico, financeiro e tecnológico se


traduzem em recursos de poder instrumentais para o poder militar e político que
caracteriza uma grande potência. Isto é crucial para a relação entre o estudo do sistema
econômico e sua instrumentalidade para o poder político de um Estado. Nesse sentido, o
complexo militar industrial é o eixo de conexão! Nesse sentido, o cerne da combinação
de teorias a serem empregadas= interdependência complexa entre as grandes potências
em razão das relações comerciais, financeiras e que envolvem fornecimento de
tecnologia de defesa para o complexo militar industrial.

9
As capacidades militares, econômicas e tecnológicas em Waltz (1979)
define a grande potência e, pelos seus objetivos de maximização de poder global ou de
disputar a hegemonia, se essa capacidade prorporcionar projeção de poder militar e
econômico além fronteiras, define o status de potência regional, grande potência ou
superpotência, associado ao grau de capacidade militar (sistema de armas) e econômica
em face do PIB, em Mearsheimer (2001).

As características do realismo político são a incerteza da intenção dos


outros atores - sugere padrão de conflito e competição; a anarquia (ausência de poder
político acima dos Estados); a distribuição das capacidades; a sobrevivência como
objetivo (intensidade é que define a maximização de poder enquanto ação militar
ofensiva ou o uso de poder suficiente para a defesa da sobrevivência); a natureza da
ação do estado, que é racional e as táticas de sobrevivência envolvem o uso de meios
como o balanço de poder e suas variações (balanceamento dos demais atores rivais e
formação de coalizões e alianças).
Para o realismo ofensivo (Mearsheimer, 2001) a melhor forma de
garantir a sobrevivência é ser o estado mais poderoso do sistema. A condição dos EUA
como potência regional significa que eles irão prevenir que surjam outras potências
regionais em outras regiões do mundo. A condição de hegêmona regional possibilita um
ator estatal se tornar uma grande potência com capacidade de projeção de poder global e
assim prevenir o surgimento de rivais com poder similar, o que pode ser atingido pelo
uso da guerra como forma de maximização de poder.

Os realistas estruturais, em especial os defensivos, tributários da teoria


de Waltz (Waltz, 79), a fim de manter sua capacidade de projeção bem acima dos
demais competidores deve utilizar as estratégias de balanço de poder através da
dissuasão (ameaça do uso da força), o que implica no uso do poder defensivo a fim de
evitar o surgimento de outras potências regionais, pois isto significaria uma capacidade
de projeção de poder que desafiaria a sua projeção de poder sobre as demais regiões,
afetando, com isso, seus interesses estratégicos.

Para estes realistas defensivos, o uso excessivo do poder militar mediante


a maximização de poder por estratégias ofensivas pode ser contraproducente e conduzir
a custos e prejuízos para a estratégia de segurança do Estado. Assim, além do balanço
de poder e da dissuasão, defendem com maior ênfase a construção de alianças e
sistemas multilaterais no campo da segurança, como os regimes internacionais de
controle de armas.
Evidências sobre o comportamento recente das administrações norte-
americanas republicana levam ao raciocínio de que os diferentes governos americanos
reagem de forma específica em contextos políticos e econômicos que são condicionados
pela natureza do ciclo de acumulação de capital e seus efeitos sobre as capacidades da
potência hegemônica no sistema sugerem que ambas as duas formas de realismo –
ofensivo e defensivo – são parcialmente utilizadas em graus diferenciados de acordo
com a conjuntura internacional e o tipo de crise enfrentada pelos Estados Unidos.

E, sob esta linha argumentativa, a atuação do país que pode ser


caracterizada como realista ofensiva ou defensiva, conforme a natureza da crise e a
capacidade e os meios de enfrentá-la, tem como referência cultural no campo dos
valores a legitimação daquelas duas formas de estratégias realistas a partir das linhas

10
mestras que definiram os princípios e todas as doutrinas estratégicas do país: o Destino
Manifesto e a Doutrina Monroe.
Não obstante, a atuação de uma administração ser diferenciada em
relação a outra, não afasta a hipótese de que ambas utilizam fundamentalmente
estratégias realistas de manutenção do poder hegemônico do país e que independente da
intensidade do uso do poder ser qualificado como ofensivo ou defensivo, eis que em
ambos os casos a preocupação fundamental da elite americana é com a manutenção de
seus grandes interesses estratégicos, cuja intensidade pode variar a partir do impacto
econômico dos ciclos de acumulação sistêmicos de capital.

É aqui que o realismo e a visão marxista do sistema – mundo se


encontram para explicar a atuação do Estado nas relações internacionais de forma
complementar. Dessa maneira, as condições para a manutenção das capacidades que
caracterizam uma potência regional que pode ser considerada uma grande potência no
sistema internacional- consolante os postulados teóricos do realismo ofensivo-
dependem de que estas capacidades políticas, econômicas, tecnológicas e militares
sejam garantidas pela liderança econômica e política do ciclo sistêmico de acumulação
de capital que atualmente é hegemonizado pelos Estados Unidos, por meio da existência
de um complexo militar industrial desde o fim da Segunda Guerra.

Essas são variáveis que, portanto, integram as capacidades estatais e são


interdependentes, cujo eixo central são pactos de elites mediadas pela institucionalidade
do Estado capitalista na luta pela transição hegemônica desse sistema, a partir da
condição indissociável entre capital privado e poder militar e político estatal. Em razão
disso, o fio condutor da presente análise está centrado nas obras de Arrighi e do papel
do sistema de acumulação de capital para a hegemonia na construção do Estado
capitalista o que explica e contextualiza as etapas de ascensão, desenvolvimento e
erosão do ciclo de acumulação de capital presidido pela hegemonia dos Estados Unidos.
É neste contexto que deve ser compreendido o papel cíclico das crises econômico-
financeira, a fase atual de financeirização da economia mundial, bem como o papel
crítico da relação de interdependência entre o ator estatal e o ente econômico.

Os ciclos de acumulação alternariam períodos de restrição da liquidez de


capital privado disponível no mercado financeiro com o objetivo de ser aplicado em
investimento em pesquisa de descoberta e utilização de novas tecnologias, bem como
reforço de grandes instituições financeiras privadas e de alguns setores estratégicos da
estrutura estatal a fim de preparar-se para o domínio e aplicação na produção daquela
inovação tecnológica, num quadro de competição intercapitalista entre associações de
interesses entre o Estado e o capital privado. Esta etapa prepara a seguinte, caracterizada
pelo ciclo de expansão da produção e da liquidez no mercado de consumo.

Nesse caminho é que emergem as crises pela via dos capitais


especulativos recorrentes e se busca compreender a importância do complexo militar
industrial para este processo de acumulação de capital. Assim, parte-se do pressuposto e
da hipótese de que o complexo – militar industrial seria instrumental para gerar
demanda efetiva na alternância do ciclo de consumo/demanda ou para gerar um
processo de concentração de capital na mão dos agentes econômicos e especialmente do
próprio ator político central o Estado.

11
Disso resulta que o presente ciclo de concentração de capital tem
condicionado a crise econômica que vem caracterizando a globalização desde os anos
19907 e é favorecido pela doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos que
enfatiza a agenda de segurança sobre a agenda econômica. Isto ocorre com o uso da
ameaça do terror para justificar as hipóteses de guerras locais e limitadas a fim de
reverter em favor da retomada da hegemonia norte-americana nos campos militar,
econômico e político, em um sistema caracterizado pela tendência à multipolaridade e
transição hegemônica.

Assim, a partir da competição entre as grandes potências e o atual papel


do complexo militar industrial, que associa interesses corporativos privados e
institucionais do Departamento de Defesa emergem as condições do caos sistêmico e
que exerce grande poder de pressão sobre a formulação e a implementação da política
exterior estadunidense.
Como se dá o inter-relacionamento entre a política, a economia e a
guerra e o eventual impacto que as duas primeiras podem ou não ter sobre esta última é
a grande questão de que se ocupam os estudos estratégicos. Martins (2013) 8 propõe
denominar essa relação de sociometabolismo entre os níveis da política (instituições e
diplomacia), da economia ( mercadoria e dinheiro) e da guerra (competição militar) e
utiliza a abordagem teórica de Karl Deutsch, adotando o conceito da cibernética 9.

Para o autor, a hipótese de ocorrência de uma guerra (limitada, local,


regional ou central) depende mais da administração do sistema internacional
propriamente dito do que da diplomacia profissional em si mesma ou do impacto da
economia internacional ou interna sobre as crises internacionais e mesmo a quantidade
de polos ou número de grandes potências que definem os contornos estruturais
fundamentais de um sistema internacional.

Isto implica que as dimensões da política, da economia e da guerra tem


seus próprios canais de entrada por onde processam influências e impactos de cada
dimensão uma sobre a outra. Por esta lógica, cada dimensão pode ser encarada como um
subsistema do sistema internacional. Nesse sentido, cada subsistema tem uma condução
autônoma dos fatos de ordem doméstica ou internacionais que lhes venham impactar.
Nesse ínterim, há uma reelaboração desses fatos a partir da natureza do subsistema e sua
retroalimentação que significa um efeito sobre os demais subsistemas. Nisto podemos
compreender essa interdependência entre as respectivas dimensões10.
7
Todavia, as raízes dessa presente etapa se encontram no processo histórico que inicia-se com o custo
econômico da fase mais aguda do envolvimento militar dos Estados Unidos na guerra do Vietnâ (1965-
68), mas também caracterizado pela emergência da competição dos polos capitalistas rivais europeu e
japonês, bem como do equilíbrio geoestratégico e de grande desenvolvimento econômico da URSS.
Assim, o Estado de Bem Estar Social e a própria social-democracia, sustentadadas pelo modo de
produção keynnesiano irá sofrer sua crise e enfraquecimento a partir das reformas de Bretton Woods de
1973, com o fim da paridade dólar –ouro e com os choques do petróleo de 73 e 79 e, por fim com o
aumento das taxas de juros no começo dos anos 80 pelo Banco Central dos EUA (FED). Esta é a origem
da crise estrutural do ciclo de acumulação atual dos EUA e revela as contradições, disputas intra-elites e
a hegemonia da fração financeira do capital dos Estados Unidos bem como a articulação transnacional
entre estas elites tanto no centro quanto na periferia do sistema, afetando, assim, toda a geopolítica do
sistema.
8
Op. cit.
9
Emprego da teoria da comunicação para a análise do Sistema Internacional.
10
“ Esta incerteza deriva, entre outros fatores, do dinamismo característico do sociometabolismo da
política, da economia e da guerra. Estes três aspectos podem ser considerados como subsistemas

12
Os ciclos econômicos de acumulação de capital que moldaram o sistema
internacional foram analisados pelo eminente cientista político italiano Geovanni
Arrighi, em sua seminal obra “ O Longo Século Vinte”, por outro caminho teórico e
metodológico, constrói uma argumentação que se harmoniza com o raciocínio do
professor Martins e da análise de Deutsch, em certa medida.

Desde a Idade Média, com os ciclos de acumulação das cidades


mercantis italianas, passando pela formação do Estado Mercantilista dos séculos
dezesseis e dezessete e, finalmente, encontrando a maturidade a partir das etapas inglêsa
e norte-americana da Revolução Industrial, emerge um sistema econômico-financeiro
que será responsável pelo estabelecimento de uma estrutura na qual será criada o
moderno sistema internacional de Estados, a partir do clico de hegemonias de uma das
grandes potências estatais sobre as demais.

Sob esta perspectiva, é correto afirmar que a estrutura do sistema


internacional compõe-se de duas grandes forças motrizes, que não podem ser separadas,
nem tampouco corretamente compreendidas em seu todo sem que sejam encaradas em
termos de uma simbiose, eis que indissociáveis para a explicação do fenômeno da ação
estatal dentro desse sistema.

Partindo da hipótese de Geovane Arrighi e agregando as teses centrais do


realismo estrutural, chega-se à hipótese que demonstra a importância dos efeitos da
estrutura sistêmica centrada no balanço de poder e seus condicionamentos sobre o
processo de tomada de decisão dos governos que, ao buscarem definir suas ações,
negociam preferências ou demandas com as burocracias de estado (diplomatas e
militares), agentes internos e públicos nesse processo, e com agentes privados (grandes
corporações de defesa).

Assim, a estrutura internacional, formada pelo balanço de poder entre as


principais potências, em razão da anarquia do sistema, é fomentada pela lógica do
processo de acumulação de capital privado do qual participa de forma decisiva na
condição de gestor o Estado capitalista. Esta estrutura sistêmica, por outro lado, também
necessita da manutenção de capacidades militares de nível estratégico desde, pelo
menos, a ascensão do poder naval britânico e da formação do primeiro sistema
realmente global e unificado sob a égide de Londres.

Nesse contexto, o poder naval americano e seu papel para a manutenção


das capacidades dissuasórias que irão garantir um sistema de balanço de poder em que
os Estados Unidos permaneçam como o principal polo do sistema internacional
depende, em última instância, das condições estruturais que garantam a continuidade do
processo de acumulação de capital e o eixo desta lógica reside na criação do complexo
militar industrial, aqui visto dentro deste contexto maior do sistema de acumulação e do
balanço de poder.

com seus próprios inputs, processamento autônomo e retroalimentação independentes. Assim, o


Sistema Internacional sofre oscilações tanto em virtude das revoluções de 1848 ou da Primavera
Árabe – para efeitos do subsistema político – das variações demográficas, mudanças climáticas, da
oferta de matérias-primas ou commodities – no que tange ao subsistema econômico – ou ainda, das
transições tecnológicas, no caso da guerra”. (MARTINS, 2013)

13
Enfim, estes são os condicionamentos sistêmicos que, em um processo
circular, complementar e interdependente, definem as prioridades estratégicas dos
governos estadunidenses antes, durante e depois da era Bush, voltados a lidar com uma
crise de liquidez que gerou uma crise econômica para a qual a superextensão dos gastos
militares com a estratégia de intervenção no Oriente Médio contribuiu de forma
decisiva.

A partir disso surgiu a necessidade de revisar prioridades políticas e


militares no financiamento do complexo militar industrial para custear programas de
aquisição de sistemas de armas estratégicos vitais para a manutenção das capacidades
militares em um baixo custo político e econômico para lidar com o cenário restritivo no
plano financeiro, o que acabou condicionando toda a ação de política externa de
segurança dos governos Barack Obama rumo a uma política menos agressiva e mais
cautelosa, pois o verdadeiro jogo diplomático e estratégico poderá ter um desfecho em
um longo prazo e na Ásia Pacífico em relação à ascensão chinesa e a disputa por
Taiwan.

Está na obra de Kenneth Waltz 11a análise de que embora relevante para a
a compreensão e formação de uma política exterior, a dimensão estatal (relação entre
instituições do Estado) e individual (relação entre atores) não mudam a essência da
estrutura das relações internacionais cujo sistema é baseado no equilíbrio de poder em
função da forma como as capacidades político-militares, tecnológicas e econômicas
estão distribuídas no sistema.

A esta lógica pode ser harmonizada com a visão sistêmica da estrutura


econômico-política do sistema baseada na competição interestatal por recursos e
maximização de capital mediante o uso da guerra e, assim, fundada na relação entre
elites centrais para a formação do sistema com base no Estado capitalista: nucleado por
políticos/diplomatas, capital privado e militares. Nesse sentido, o surgimento do
complexo militar industrial nos Estados Unidos fornece justificativas para o estudo com
base nas teorias sistêmicas do realismo e de Arrighi (96)12.

Os Estados Unidos passaram a diminuir a intensidade de seu engajamento


direto em intervenções militares no sistema internacional após as guerras locais no
Iraque e no Afeganistão que, apesar de não caracterizarem guerras centrais, foram de
grande intensidade em razão do custo financeiro e da longa duração e pela intensidade
do emprego de força militar (caso iraquiano).

Estava em jogo a necessidade de utilizar o poder militar para garantir o


controle e acesso a insumos estratégicos (energéticos, no caso iraquiano) e garantir o
11
São as obras fundamentais do realismo estrutural do cientista político norte-americano Kenneth Waltz
que definem a relação entre o núcleo do processo decisório, onde se encontram as principais instâncias
decisórias e os atore individuais, dos níveis institucionais político e burocrático internos ao Estado e os
efeitos dinâmicos entre este nível interno e o externo, o da interação entre as grandes potências do
sistema internacional. No primeiro caso, temos a obra Man, State and War, de 1959 e no segundo,
Theory of International Politics, de 1979.
12
Geovanni Arrighi, em sua obra o Longo Século Vinte (1996), foi um cientista político norte-americano
que, a partir da inspiração da teoria do sistema –mundo do sociólogo norte-americano Immanuel
Wallerstein, desenvolveu a tese dos ciclos de acumulação de capital e o seu impacto sobre a estratégia
das grandes potências nos planos econômico, militar e diplomático no contexto da hegemonia sobre
cada momento histórico de desenvolvimento do capitalismo mundial.

14
balanço de poder regional ( tanto no caso iraquiano como no afegão) para que potências
médias e regionais tenham inviabilizadas formas de contrabalançar a presença global
norte-americana na Eurásia por meio de fortalecimento de alianças econômicas e
estratégicas como forma de contrabalançar o papel dos Estados Unidos como
balanceador externo.
Ocorre que a estratégia de segurança americana da era Bush comprometeu
economicamente a continuidade da agenda de segurança pautada pelos neocoservadores
que ficou caracterizada como de superextenção de natureza imperial e começava a
inviabilizar, no plano político estratégico, a grande estratégia de liderança norte-
americana estabelecida a partir da Segunda Guerra Mundial e consolidada ao longo do
sistema bipolar conhecido como Guerra Fria.

Tal estratégia inspirou-se no pensamento estratégico de Theodore


Roosevelt, o qual inseriu os Estados Unidos no sistema internacional de balanço de
poder enquanto grande potência e estava baseada no papel estratégico das organizações
privadas do capital articulado com a indústria armamentista e o núcleo de poder
decisório político-militar do Estado americano.

A consolidação institucional desta liderança dos Estados Unidos no


sistema internacional e o progressivo condicionamento que o país passou a exerger
sobre a agenda de segurança mundial a partir da segunda metade do século vinte em
diante, baseou-se em três variáveis indissociáveis: 1- a continuidade do processo de
acumulação de capital, relacionado com o controle de insumos estratégicos e aplicação
de novas tecnologias e gestão da produção (conhecido como Terceira Revolução
Industrial); 2- na sua aplicação sobre os sistemas de armas estratégicos convencionais e
não convencionais relacionados com a projeção de poder a fim de garantir a contenção
dos polos rivais eurasianos, o que justifica a ênfase nas capacidades nucleares (sistemas
de mísseis de longo alcançe) e convencionais a partir da sua marinha e força aéreas para
a garantia do equilíbrio de poder com as grandes potências chinesa e russa; 3- por fim, a
condição de sustentação dessa liderança, que foi a constituição do complexo militar-
industrial, como eixo orgânico entre as dimensões econômica e militar estratégicas que
informam os objetivos estratégicos permanentes da política externa de segurança dos
Estados Unidos.

A crise econômica de 2007-08 e a ofensiva iraquiana de 2003, todavia,


representaram uma ruptura com esta concepção estratégica e a continuidade da agenda
de segurança da era Bush, em que pese buscar a supremacia estratégica a nível global,
excederia as capacidades econômicas e suas vantagens, comprometendo, no longo
prazo, a capacidade militar de exercer o papel de árbitro do balanço de poder na Eurásia
e especialmente, na região da Ásia-Pacífico, caracterizada pela ascensão do poder
econômico e militar chinês, no que pode se configurar num desafio de novo ciclo de
acumulação e, com isso, o verdadeiro desafio estratégico estrutural para o atual ciclo
norte-americano de acumulação que justifica a posição estratégica de liderança da
grande potência americana.

Contudo, mais do que uma nova estratégia de doutrina de projeção e


manutenção de poder os Estados Unidos buscam, por via do esforço das suas elites
política, diplomática, militar e empresarial manter o consenso estabelecido desde a era

15
Truman13 para com a manutenção da posição hegemônica do país no sistema
internacional e que foi seriamente atingida pelos desvios de rumo ocorridos ao longo
dos dois mandatos de George W. Bush14, com sua estratégia de superextensão imperial
do poder militar e estratégico americano que nos faz lembrar o arquétipo ocidental de
império e seus limites: Roma.

Os Estados Unidos são a segunda grande potência hegemônica a liderar


um sistema efetivamente internacional desde seu surgimento com a hegemonia britânica
há dois séculos e necessitam novamente emular não Roma, mas Atenas para lograr a
manutenção de um segundo século americano, por meio de uma liderança consentida e
com o compartilhamento de custos financeiros e políticos (prestígio e legitimidade) em
um sistema multilateral pautado por grandes potências.

Como sua antecessora - a Grã-Bretanha - sua liderança não pode dissociar-


se de um ciclo de acumulação de capital que passa a caracterizar o sistema internacional
desde então e baseia-se na manutenção de um sistema de balança de poder. Todavia,
como num processo de natureza circular, este sistema, que foi estruturado para prover
segurança para os interesses do capital privado norte-americanos associados aos
interesses das elites burocráticas do próprio Estado, em última instância, para manter-se,
depende de que a economia americana consiga reverter seu enfraquecimento relativo,
mas contínuo na capacidade produtiva e comercial em face dos novos polos econômicos
mundiais.

Desta maneira, é imprescindível pensar o controle necessário sobre o


acesso às fontes de suprimentos de minerais e insumos estratégicos e energéticos, como
o petróleo, mas principalmente o silício, as terras raras e o alumínio, fundamentais para
assegurar a dianteira competitiva dos Estados Unidos na liderança da economia da
Terceira Revolução Industrial e, assegurar, com isso, o suprimento estratégico para a
indústria aeroespacial e de defesa do país, condições fundamentais para a manutenção
das capacidades militares estratégicas convencionais e não convencionais, que são o
sustentáculo do poder norte-americano.

Estes recursos e insumos estão em disputa no mercado internacional por


parte dos Estados Unidos e da China, que pela necessidade de retomada do crescimento
da primeira e pelo dinamismo da segunda, necessitam para a manutenção do
crescimento econômico e da manutenção da lucratividade do capital de suas empresas
investidos em setores econômicos estratégicos, de garantia de acessos a novas fontes
produtoras dessas matérias primas, localizadas nos países da periferia do sistema e em
geral da imensa região eurasiana, em cujas áreas geográficas se encontram os interesses
geopolíticos e econômicos da Rússia e da China, enquanto potências regionais e dos
Estados Unidos, enquanto potência global.

13
Harry S. Truman, presidente dos Estados Unidos por dois mandatos, de 1945 a 1953, sob cujo governo
se estruturou o complexo militar e industrial, o departamento de defesa e a força aérea dos Estados
Unidos
14
Presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009. Sob seu governo emergiram os atentados de 11 de
Setembro de 2001 às Torres Gêmeas, a formulação de uma expansão global sustentada
ideologicamente pela guerra ao terror e as invasões militares ao Afeganistão (2001) e Iraque (2003) num
entrelaçamento de interesses geoeconômicos (petróleo) e balanço de poder na Ásia Central visando
afetar a aproximação estratégica entre Rússia e China.

16
Adicione-se a isso a fato de que em face do potencial russo em seu
território, o que faz com que a Rússia tenha os recursos disponíveis para manter-se
como grande potência e caso haja uma retomada do seu crescimento econômico, o que
se prefigura indispensável para a manutenção de suas capacidades estratégicas, a disputa
por recursos naturais e energéticos estratégicos dar-se-á entre as três principais grandes
potências do sistema, ou ao menos, a aliança estratégica das duas grandes potências
eurasianas em disputa com a grande potência marítima, em que interesses econômicos e
de segurança se entrelaçam por serem interdependentes .
A característica desse sistema internacional, assim, é dada pela natureza
desse ciclo sistêmico de acumulação e que implica no uso de novas tecnologias a partir
das etapas de Revolução Industrial que redundam na necessidade de concentração de
capital a partir da associação estratégica entre o Estado e suas corporações
transnacionais produtivas e financeiras. É precisamente a garantia da continuidade deste
ciclo que envolve a necessidade de criação de um poder militar que respalde a estratégia
de manutenção e competição estatal pela hegemonia entre as grandes potências.

A transição entre a hegemonia britânica e a norte-americana, a primeira


transição global sistêmica, foi um alerta sobre a competição entre as grandes potências
que se processou pela primeira vez em escala mundial. Isso assim ocorreu em razão da
difusão da tecnologia, da organização empresarial e de seu impacto na produção
industrial e sua aplicação no sistema de armas industrializando as formas de combate.

Os Estados Unidos, aprofundando e redimensionando a grande estratégia


desenvolvida pioneiramente pela Grã-Bretanha, construiu, pela primeira vez na história,
uma presença econômica, política, cultural e militar em escala global nunca antes vista
em um cenário completamente novo, em que todos os povos se organizam na forma de
Estados soberanos. Seu poder militar foi, desde o final da Guerra Fria em 1991,
incontrastável no plano estratégico convencional e não-convencional até pelo menos
2014, quando a Rússia demonstrou sua capacidade missilística de longo alcance 15. No
campo naval, permanece ainda o único capaz de garantir a projeção de poder e
provimento de segurança para os interesses econômicos e políticos do Estado e de suas
companhias desde o início do ciclo sistêmico mundial com as grandes navegações e a
formação do Estado westfaliano16.

Mesmo assim, sua hegemonia, em que pese para muitos analistas


caracterizar a consolidação um império informal, este se encontra em bases precárias
em razão do alto custo das ações militares no Oriente Mèdio no século XXI e em razão
da lógica destrutiva da base industrial norte-americana que a hegemonia da fração das
elites do capital financeiro neoliberal exercem sobre o ciclo decadente estadunidense de
acumulação de capital, o que acarreta a insuficiência de recursos financeiros que
15
De acordo com o experiente analista militar Andrei Martyanov, a Rússia entre 2010 e 2022 procedeu
a um processo de modernização militar que a fez ascender à condição de maior potência militar em
termos qualitativos, condição que a sua antecessora, a União Soviética, obteve entre os anos 1940 a
começo dos 80, pois na prática tornou-se a mais poderosa das duas superpotências, o que sempre foi
enfatizado pelos melhores estrategistas militares da Guerra Fria.
16
Ainda que permaneça quantitativamente e por recursos financeiros, a primeira potência militar do
planeta, os esforços de projeção aeronaval da Rússia e da China – respectivamente tidas pelos institutos
ocidentais de estudos estratégicos como SIPRI de Estocolmo (Suècia) – estão diminuindo o hiato
tecnológico e quantitativo em relação aos EUA, o que poderá em poucos anos, tendo em conta a aliança
russo-chinesa, realmente estabelecer uma paridade estratégica no campo convencional, uma vez que no
campo nuclear a Rússia já possui tal paridade com o ainda hegêmona militar estadunidense.

17
sustentem a pesquisa científica e tecnológica para dotar seu sistema de armas
indefinidamente superior em relação aos seus principais competidores estratégicos, as
outras duas grandes potências do sistema- a Federação Russa e a República Popular da
China.

Este fenômeno se dá em razão do impacto da difusão da tecnologia de armas


convencionais e não convencionais estratégicas que a Terceira Revolução Industrial
favorece com a sua etapa de digitalização e seu impacto na horizontalização das
capacidades militares ofensivas de projeção de poder, favorecendo, com isso à
tendência à multipolaridade do sistema internacional. Assim, o atual ciclo de
acumulação sistêmica envolve a competição pelo domínio de novas tecnologias na
produção e favorece a concentração de capital, gerando, com isso, uma crise econômica
que impacta na grande estratégia dos Estados Unidos de engajamento militar.

Desafios estruturais externos ao estado brasileiro


Os desafios estruturais externos são o outro lado da moeda, uma vez que a
dependência econômica e militar externa encontram raízes no interesse das diversas
frações de elite econômica, política e militar em manter os laços de dependência
histórica dos centros dinâmicos do capitalismo, os quais não por mera coincidência são
as principais grandes potências no campo militar e geopolítico. E são aquelas frações de
elites internas as mesmas que vêem no polo eurasiano, na ascensão chinesa e dos
BRICS, no reerguimento da Rússia sob Putin e no projeto sul-americano de autonomia
da política de integração e da política externa altiva e ativa de Lula e Amorim uma
ameaça aos interesses geoeconômicos da grande potência hegemônica ora em relativo
declínio.
Concorrem para a permanência desta equação a alta lucratividade que setores
primários e comerciais ligados à exportação e ao capital rentista auferem com a
manutenção da matriz macroeconômica, que afeta diretamente a percepção das elites
econômicas que em razão disso não possuem vantagens mas prejuízos imediatos caso a
política externa brasileira estivesse sustentada por um projeto de desenvolvimento
industrial, o que sem um Estado forte e interventor e sem alianças alternativas no campo
internacional, representaria enorme dificuldade em reverter a matriz econômica interna,
sem a qual nenhuma política externa soberana apta a romper os laços de dependência do
centro capitalista é possível.
Como em toda a formação política, seja antiga seja moderna, seja em que
espécie de regime político for, a garantia mínima de governabilidade e de estabilidade
assentam-se em dois pilares fundamentais estudadas por Nicolau Maquiavel– poder da
coerção e legitimidade social – o apoio político das Forçar Armadas e da maioria da
população a um projeto de política externa só é sustentável na medida em que este
mesmo projeto tiver profundas repercussões em termos de vantagens materiais legítimas
para estes dois grupos, na forma de rendimentos econômicos quanto da própria
sobrevivência institucional ou de classe social. Uma ação de política exterior sem que
tenha mínima base política e social interna, não se sustenta no médio e longo prazo.
Dentro da lógica do capitalismo industrial e financeiro desde pelo menos o
final do século dezenove, as relações entre desenvolvimento econômico industrial,

18
geração de empregos e inserção social das massas trabalhadoras não pode vir dissociada
de mercado de consumo e do papel do Estado e das indústrias estatais e privadas na
produção em escalas de tecnologia sofisticada com valor agregado, o que também
impacta positivamente o comércio internacional e as relações econômicas
internacionais. Todavia, tais circunstâncias passam a depender e ser mais eficazes
dentro da lógica da constituição de um complexo militar e industrial autônomo que visa
não apenas garantir a defesa e a soberania, mas também é a principal viabilidade de
sustentabilidade econômica para nações que chegaram atrasadas à industrialização e
necessitam contar com o rápido crescimento e desenvolvimento para diminuir as
vulnerabilidades internas e internacionais.
Ocorre que as forças militares brasileiras já se encontram estruturalmente
entrelaçadas com os interesses ideológicos e geoeconômicos da potência hegemônica
desde que o aprofundamento das políticas neoliberais alienou as mesmas dos governos
de centro-esquerda, por estes carecerem de projeto de nação de longo prazo. Da mesma
forma, as mesmas políticas econômicas que estruturalmente beneficiam apenas as
cúpulas da burocracia civil e militar, alienando as bases de qualquer benefício social que
advenha de políticas públicas dos governos de esquerda, associada aos limites
estruturais de incorporar na produção da imensa massa de pobres excluídos pelas
mudanças no processo produtivo nas últimas décadas e que avança igualmente sobre as
diversas faixas da chamada classe média/pequena burguesia, acabam igualmente
alienando o apoio político aos governos democráticos de centro-esquerda de quaisquer
políticas externas que por mais acertadas que sejam, não encontram eco e conexão real
com a economia uma vez que os valores do liberalismo econômico persistem.
Por fim, a manutenção da política externa em base não confrontacionista com
as regras centrais do sistema internacional acaba sendo o corolário de uma base social
que da sustentação justamente a este perfil mais ligado à retórica diplomática
acertadamente autonomista mas sem condições políticas e materiais de alçar vôos mais
altos rumo a uma soberania de fato e de construção de um entorno estratégico
integracionista sul-americano e desenvolvido, pois que acaba não repercutindo no plano
interno por falta de recursos que advém da manutenção dos acordos políticos com os
interesses internos de frações hegemônicas das elites comprometidas com a manutenção
das relações econômicas estruturais que prendem o país a sua condição histórica
periférica ao sistema internacional.
Com a grande probabilidade de vitória militar russa na guerra contra a Otan
e o gradual e futuro refluxo estadunidense da Eurásia, ainda que isto possa demorar
alguns anos, a tendência estrutural do sistema internacional em suas dimensões
interdependentes geoeconômica e geopolítica terão implicações de longo prazo sobre as
condições estruturantes no qual se enquadram toda a América do Sul.
Conclusão
A busca por maior eficiência do sistema de armas a um custo econômico
sustentável, favorece tanto o processo de concentração de capital como condiciona, de
forma cíclica, a ocorrência de hipóteses de guerra central assimétrica, na lógica do
sistema de balanço de poder entre as grandes potências.

19
Dessa forma, o complexo militar-industrial norte-americano pode ser o nexo
entre o entrelaçamento de interesses do capital privado e da estratégia de poder do
Estado, usando o desenvolvimento científico e tecnológico na produção e
competitividade da economia, que interessam tanto às grandes transnacionais dos
Estados Unidos quanto à própria economia do país. Com isso, sistemas de armas
sofisticados comissionados às forças militares dos Estados Unidos são capazes de
respaldar os interesses estratégicos de manutenção do status quo de liderança da grande
potência no sistema internacional.

Assim, a singularidade do sistema internacional atual e as especificidades


da estrutura de poder que condiciona o sistema político interno norte-americano
definem em grande medida as linhas mestras da ação diplomática exterior da
superpotência que permanece como o centro hegemônico do sistema internacional.

Nesse sentido, são os condicionantes sistêmicos e institucionais que


afetam em termos de limitar ou definir os contornos pelos quais o processo decisório em
política exterior, nucleado pelo chefe de Estado e seus assessores mais próximos -
qualquer que seja sua origem ideológica, sua classe social e o contexto de sua ascensão
política – e do qual participam a cúpula com poder de decisão das burocracias civil e
militar, às quais sofrem as influências do ambiente externo ao Estado pela ação de
atores subnacionais relevantes como os grupos de pressão que representam o capital
privado associado ao complexo industrial militar.

Isto não significa dizer que o contexto não importe. Pelo contrário, o
contexto é fundamental e interage dinamicamente sobre a estrutura do sistema
internacional, em especial da atual potência hegemônica do sistema. Destarte os
elementos centrais dos interesses estratégicos de um Estado definem os contornos
estruturais que limitam ou condicionam a ação política e econômica interna num
processo interdependente e mútuo de causa e efeito.

No entanto, em face da crescente interconexão complexa e até mesmo


contraditória entre interesses financeiros, comerciais de Estados e suas corporações
públicas e privadas, tanto norte-americanas, como de outros países desenvolvidos
(grandes potências) e em desenvolvimento (potências regionais ou potências médias,
situadas na periferia) conduz à necessária reflexão sobre a relação profunda entre
corporações e Estado (burocracia civil e militar e atores políticos) na definição das
características e tendências do sistema internacional e da competição internacional dela
decorrente condicionada pelas grandes potências e pela superpotência.

Assim, a hipótese desta obra supõe uma relação de causa e efeito que tem
sua origem no ciclo sistêmico de acumulação de capital e que pode afetar a distribuição
de poder no sistema internacional que é sustentado pela capacidade militar, econômica e
política das grandes potências ou polos. Dessa forma, o sistema internacional, cuja
característica intrínseca são a distribuição das capacidades que definem o poder em
termos de polaridades, sofre a interferência da natureza do ciclo de acumulação de
capital, o qual se caracteriza como a variável interveniente que contém dois fenômenos
– o primeiro é a transição tecnológica que tende a horizontalizar as capacidades
militares e econômicas e que necessita da concentração de capital para investir em
novas tecnologias, o que reduz a liquidez na economia disponível para investimento
massivo e permanente em capacidades militares.

20
Esta relação de causa e efeito no segundo fenômeno gerado pelos ciclos
de acumulação uma vez que redunda na necessária diminuição dos gastos militares e
traz implicações para a revisão da doutrina estratégica em relação à política externa de
segurança dos Estados Unidos, o que afeta decisivamente o processo decisório à nível
individual, trazendo implicações para a segurança internacional. Em que medida esta
característica dos ciclos sistêmicos tem o condão de alterar a polaridade do sistema
internacional que tende a uma tripolaridade no horizonte predizível de eventos para o
século vinte e um entre as três maiores potências militares, econômicas e com recursos
tecnológicos formidáveis do sistema de Estados – Estados Unidos, China e Rússia –
ainda é prematuro afirmar.

É dentro deste contexto da definição da grande estratégia da potência


hegemônica declinante que se definem as medidas de cunho político, econômico e
militar de resistência à afirmação do mundo multipolar representado pelo polo russo-
chinês e pelo protagonismo do Sul Global e, como um dos seus mais relevantes atores, o
Brasil e a América do Sul. Em razão disso, a multiporlaridade só será possível na
medida em que a Eurásia e o Sul Global desenvolverem estratégias de concertação
multidimensional no campo da política externa, cobrindo as agendas securitária,
econômica, ambiental, geopolítica e humanitária.

Mas além disso, devem agir a partir da premissa de que o sistema ainda é
definido em suas estruturas fundantes, pelas regras e pela lógica do capital, que
condiciona o ambiente geoestratégico rumo à instabilidade e aos conflitos militares
como meios de assegurar a continuidade do ciclo estadunidense.

Somente a partir de uma estratégia que reconheça a persistência do sistema


internacional fundado na tendência à anarquia, ao conflito, às crises econômicas
recorrentes e à busca pela maximização de poder é que os estados e organizações
internacionais contra-hegemônicas poderão alterar a estrutura do sistema rumo a uma
ordem mais justa, pacífica e igualitária.

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