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AS GRANDES POTÊNCIAS, AS TENDÊNCIAS DO SÉCULO XXI E

O BRASIL: O DEBATE ENTRE OS GRANDES PARADIGMAS


TEÓRICOS E OS TRAÇOS DE CONTINUIDADE NA MUDANÇA
ENTRE OS CICLOS DE HEGEMONIA

Márcio Azevedo Guimarães1


Gabriel Edelwein Silveira
Tamires Silveira

ABSTRACT

This article aims at reflections on the international system based upon the combination of three
perspectives of analysis: realist theory, world-system theory and the geopolitical approach which could
help us to bring about the essential core of strategic and nacional interests of the great powers in an
environment of conflitc and competition. In addition, a introduction of the role the military and economic
central elites of contemporary State is mentioned as a importante dimension to think about how the
political units do behave in an anarchical world.

Key-words: great powers, international system, elites, geopolitics.

RESUMO

Este artigo objetiva uma reflexão sobre o sistema internacional baseado na combinação de três
perspectivas de análises: a teoria realista, a teoria do sistema-mundo e a abordagem geopolítica de modo
que possam estas análises servir para explicar o núcleo dos interesses nacionais e estratégicos das grandes
potências num ambiente internacional de competição e conflito. Além disso, a introdução do papel das
elites econômica e militar centrais de um Estado contemporâneo são destacadas como importante
dimensão para se pensar como as unidades políticas se comportam no mundo anárquico.

Palavras-chave: grandes potências, sistema internacional, elites, geopolítica.

Apresentação

1
Advogado, Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Ciência Política, com concentração de
pesquisa em Política Internacional, pela UFRGS.
Desvendar as grandes tendências do cenário mundial para o século vinte e um
significa o mais relevante esforço de análise em política internacional. Mas quais seriam
as grandes tendências do sistema internacional? Quais os impactos que teriam para a
natureza das relações internacionais para as próximas décadas, de forma a caracterizar a
maior parte do século XXI? A fim de tentar problematizar estas questões, se faz
necessário quatro grandes movimentos que são interdependentes2.
Em primeiro lugar, quando se fala em grandes tendências da política mundial,
estamos falando no núcleo analítico da estrutura do sistema de estados, que o eminente
cientista político estadunidense e principal expoente do realismo estrutural, Kenneth
Waltz3 reconheceu como sendo as grandes potências em termos de suas capacidades em
um cenário anárquico e de características hobbesianas 4. Desta forma, sejam quais forem
os debates e discussões acerca dos futuros ciclos hegemônicos de poder que
hipoteticamente venham a suceder ao atual, uma coisa parece cristalina como a água: a
manutenção das duas principais tendências sistêmicas: a polaridade em termos de
grandes potências e a descentralização do poder político mundial.
Em segundo lugar, e de forma indissociada da primeira grande tendência, na
lição dos grandes pensadores da escola marxista do sistema-mundo, as concepções de
Immanuel Wallerstein e Geovanni Arrighi acerca do papel dos ciclos de acumulação de
capital como fenômeno que tem acompanhado, desde as origens do sistema capitalista, a
formação e institucionalização do Estado nação e de suas principais estruturas
institucionais internas (burocracias militar e diplomática) responsáveis pelas relações
2
Stephen Van Evera, em sua clássica obra sobre metodologia em relações internacionais “Guide to
Methods for Students of Political Science, trata da importância do estuo do fenômeno das relações
internacionais (importante sub-área da ciência política) a partir da análise das relações de causa e efeito
entre os fenômenos internacionais que são objeto de observação empírica. Sob este prisma é que se faz
relevante o emprego das categorias das variáveis (independentes, dependentes, intervenientes e de
condição). A complexidade dos fenômenos de ordem econômica, social, estratégica, cultural e política
para um campo interdisciplinar por natureza como a política internacional requer, portanto, o emprego de
análise metodológica com o aporte das variáveis, de acordo com a dimensão do estudo que se queira
fazer, como, por exemplo, o estudo das relações entre elites que decidem os interesses estratégicos do
Estado, o que requer estudo teórico do debate agente-estrutura, emprego das teorias de explicação
sistêmica e estrutural combinadas com as perspectivas dos estudos de elites e das dinâmicas do processo
decisório interno às estruturas política, militar e diplomática – centros decisórios do Estado na política
internacional.
3
Kenneth Waltz foi o criador do realismo estrutural, fundado na análise da terceira imagem, a do sistema
internacional, a partir de suas obras clássicas, o Homem, o Estado e a Guerra, de 1959 e Teoria da Política
Internacional, de 1979. É considerado um dos quatro grandes expoentes do realismo político juntamente
com Hans Morgenthau, Raymond Aron e John Mearsheimer e certamente o pensador mais influente do
realismo estrutural.
4
Thomas Hobbes, filósofo contratualista inglês do século XVII. Seu pensamento acerca do conflito como
inerente à anarquia e instabilidade do estado de natureza influenciou decisivamente o pensamento realista
em política internacional.
exteriores, na construção, manutenção e eventual declínio de hegemonias das formações
estatais nos marcos da liderança do processo de acumulação de capital.
Em terceiro lugar, a necessária investigação acerca dos grupos ou frações de
grupos dentro e fora do Estado (mas articulados a este) que definem os objetivos
estratégicos dos principais Estados que têm capacidade de influenciar e caracterizar a
política internacional em termos de relações de poder nas dimensões política,
econômica e securitária: as frações de elites econômica, militar, diplomática e política
das grandes potências. Aqui um retorno aos preceitos do realismo clássico e da
contribuição do neorrealismo clássico é de grande ajuda.
Em quarto lugar, cumpre descrever o padrão de relações ambíguas entre as
grandes potências, caracterizadas pela concomitância de cooperação pontual com
rivalidades tanto do lado das alianças quanto pelo lado do (s) polo (s) adversários. A
política internacional é a política de poder dos principais atores do sistema. O sistema
internacional, por sua vez, é caracterizado pelo comportamento das grandes potências e
tem sido pautado por padrões de conduta que possuem certa dose de previsibilidade de
acordo com as principais escolas sistêmicas de análise da política internacional, o
realismo estrutural, centrado na dimensão estratégico-militar e a perspectiva do sistema
mundo de acordo a escola marxista, fundada em análise de economia política. Salvo
melhor juízo, compreendemos que o pensamento geopolítico fornece um quadro de
síntese de como os grandes estados centrais e seus polos contestadores atuam no plano
sistêmico a partir das escolhas estratégicas delineadas por suas elites.
Uma análise enriquecedora para melhor entender as dinâmicas e os processos
pelos quais as nações atuam não podem prescindir da noção de que as dimensões
político-militar e econômica não existem de forma separada na vida real das disputas
sistêmicas entre Estados Unidos e o bloco ocidental, de um lado, e o bloco euro-asiático
nucleado pela China e pela Rússia, de outro.
Além disso, o debate em torno da famosa “caixa preta” do Estado, onde se
encontram seus entes subnacionais, estudados na seminal obra O Homem, o Estado e a
Guerra, a partir do conceito de ‘imagens’ formulado por Waltz (WALTZ,1959, p.15),
necessita ser trazido à tona. São afinal e ao cabo, as elites dirigentes que definem e
redefinem, para o bem e para o mal, os grandes interesses estratégicos de seus estados e
são elas as responsáveis finais pela ascensão ou pela queda de suas hegemonias.

O Realismo estrutural e as grandes potências


O realismo se divide em clássico, cujo principal expoente é Hans J.
Morgenthau5, e o neoclássico, cujo nome mais importante é Kenneth Waltz. Em suas
premissas básicas, ambas as escolas realistas partem do pressuposto da anarquia no
sistema internacional, centralidade da dimensão estratégico-militar e ênfase na
percepção de que o Estado é o ator central e que sua finalidade maior centra-se na busca
pelo poder e segurança.
Entre 1959, ano da publicação de sua primeira obra seminal, o Homem, o Estado
e a Guerra, e 1979, Teoria da Política Internacional, o cientista político Kenneth Waltz
definiu as premissas centrais do que se convencionou denominar de realismo estrutural:
a descentralização e ausência de hierarquia de poder da política internacional e o papel
das capacidades como condição para a definição dos polos e dos padrões de conduta
entre estes – as polaridades. O avanço das ciências sociais em termos de sofisticação de
análise metodológica nos Estados Unidos foi decisivo para dotar o realismo político de
instrumentos científicos para a identificação de padrões de recorrência em termos do
comportamento das principais unidades do sistema e, desta forma, desenvolver teorias
que explicassem os motivos das ações do Estado nas relações internacionais.
O autor, desta forma, ao longo de duas décadas, construiu e refinou seu
pensamento sobre o funcionamento das relações internacionais, tendo como marco
inicial e final, suas duas obras, num período rico da Guerra Fria, caracterizado pela
tendência à complexidade em que padrões de rivalidade passavam a coexistir com
padrões de coexistência pacífica.
Como ciência interdisciplinar por natureza, as relações internacionais têm como
objeto de estudo os complexos fenômenos sociais de natureza política, econômica,
estratégica e cultural, dentro de específicos contextos históricos e geográficos. Tais
fenômenos são as variáveis privilegiadas por diversos pensadores não apenas da escola
realista, mas de outras importantes escolas de pensamento (liberalismo, construtivismo,
marxismo, economia política, etc.) a fim de compreender os motivos de ação em
determinadas conjunturas e de sua relação com as características permanentes ou
estruturais do sistema como um todo.
Neste sentido, o padrão de relações entre as duas principais grandes potências do
período, os Estados Unidos e a União Soviética, evoluíram da rigidez da confrontação

5
Principal nome do realismo clássico juntamente com Eric Carr e Raymond Aron entre os anos 1940 até
meados dos anos 1960. Autor do célebre clássico Politics Among Nations, publicado em 1948.
ideológica para um padrão mais complexo de convívio, de acordo e paralelamente às
próprias transformações históricas, sociais e econômicas do conjunto das demais
sociedades que compunham tanto o bloco capitalista quanto o socialista. Kenneth Waltz
viveu todas estas transformações e foi observador privilegiado dos grandes
acontecimentos que moldaram o relacionamento entre as duas superpotências na
segunda metade do século vinte e mormente, no período que se convencionou
denominar de distensão ou détènte, entre meados dos anos 1960 até o final do governo
Carter (1979-80)6.
Assim a transição das administrações Eisenhower para a de Kennedy 7, nos
Estados Unidos, e de Nikita Kruschev8 para a de Brejnev9, na União Soviética,
caracterizaram a primeira imagem, a dos estadistas. Da mesma forma, mudanças
estruturais dentro dos respectivos estados americano e soviético (padrão da segunda
imagem waltzoniana) foram a tônica que se seguiu nos tumultuados anos sessenta. De
um lado, a luta pelos direitos civis das minorias afro-americanas, a contestação
estudantil contra a Guerra do Vietnã e a contracultura; de outro, a consolidação da
estrutura burocrática do Partido Comunista da URSS 10, que se confundia com as
estruturas administrativas do Estado soviético, muito característico da era Brejnev e da
emergência de estratos de sociedade de consumo que se consolidava dentro da URSS e
da esterilização econômica e ideológica na sociedade soviética.
No plano da terceira imagem, por sua vez, a passagem dos anos cinquenta para
os sessenta irão caracterizar diversos acontecimentos nos campos militar, tecnológico,
econômico e diplomático e que serão importantes para mais adiante no texto ao
estabelecer um paralelo das transformações complexas que tem caracterizado o começo
da terceira década do século XXI, também caracterizada por uma nova Guerra Fria. É
nesta dimensão de análise que a obra de Waltz e da escola do realismo estrutural centra
suas análises sobre o Estado e a política internacional.
6
O objetivo do artigo não é o de fazer análise descritiva da história das relações internacionais do período
da Guerra Fria (1947 a 1991). Todavia alguns recortes históricos são necessários a fim de estabelecer um
padrão de comparação e demonstrar a recorrência de determinados fenômenos que se fizeram presentes
no ciclo de ascensão e consolidação da hegemonia dos Estados Unidos no sistema internacional e o atual,
de declínio relativo de Washington.
7
Respectivamente, presidentes dos Estados Unidos entre 1952 a 60 e 1961-63.
8
Líder soviético de origem ucraniana, governou de 1953 a 64.
9
Líder soviético de origem ucraniana, governou de 1964 a 82.
10
URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Foi o Estado socialista cujo núcleo de poder era a
Federação da República da Rússia, com capital em Moscou, criado por Vladimir Lênin, seu primeiro
líder. Foi a segunda superpotência militar do mundo. Surgiu em 1922 como resultado da Revolução
socialista russa de 1917 que derrubou o Império russo e durou até 1991, quando foi desmembrada, após
crises e revoluções resultantes das reformas da era Gorbachev, o último líder soviético.
Naquele momento histórico de vinte anos entre as duas obras waltzonianas, o
padrão de relações internacionais sofreria profundas mudanças dentro da ordem do
sistema bipolar. Da emergência da crise entre Leste e Oeste pautada pela crise dos
mísseis de Cuba em 1962, que quase levou o mundo à beira de uma confrontação entre
as forças da OTAN e do Pacto de Varsóvia até invasão soviética do Afeganistão, em
1979, o sistema passara por grandes transformações, tornando mais complexa a análise
de relações internacionais.
Dois fenômenos importantes nos anos sessenta, irão condicionar o padrão de
relações entre as superpotências a partir de então. No plano estratégico e militar, os
arsenais termonucleares e os vetores de longa distâncias a partir de plataformas
terrestres, aéreas e navais da URSS, os ICMB11, adquirem paridade de poder para com
os similares sistemas de armas dos Estados Unidos, consolidando o equilíbrio nuclear e
convencional em termos estratégicos entre as duas maiores potências militares do
planeta em meados da década de sessenta.
Além disso, no plano da economia das relações internacionais, o
aprofundamento do envolvimento militar norte-americano no conflito da Indochina, na
segunda metade dos anos sessenta, acabou por sobrecarregar financeiramente a
economia norte-americana. Tal fator não pode ser dissociado da dimensão militar uma
vez que a crescente complexidade dos sistemas de armas produzidos por empresas
privadas contratantes do Departamento de Defesa dos EUA (Pentágono) exigiam cada
vez mais recursos do Estado americano para financiar a produção bélica tendo as suas
forças armadas como principais consumidoras, num sistema que se desenvolvera no
curso da Segunda Guerra Mundial e se consolidara ao longo da primeira fase da Guerra
Fria nos anos 1950 e início dos 60.
Desta maneira, o núcleo central do denominado complexo militar-industrial era
sensível às questões de ordem econômica e na medida em que os custos do
envolvimento americano no Vietnã drenava recursos da sua economia, isso também
afetava a sua competitividade frente aos aliados competidores europeu e japonês que
passavam a competir pelos novos mercados emergentes do Terceiro Mundo, como
11
Míssil balístico intercontinental, com capacidade de atingir alvos em distâncias acima dos 5.500 km,
dotados de ogiva nuclear. Ao tempo da Guerra Fria, apenas URSS e EUA possuíam estas capacidades.
Atualmente, em nível estratégico, ou seja, a capacidade de entrega de bombas termonucleares em mísseis
hipersônicos como o Sarmat, ou o mais veloz existente, da ordem de 6.000 km/h o Kinzhal, capaz de
atingir alvos de até 2.000 km, tornando praticamente os sistemas de defesa russo virtualmente
invulneráveis ao passo que tornam os sistemas dos oponentes vulneráveis a um ataque. Esta capacidade
ofensiva de um sistema de armas estratégico, segundo analistas militares como Andrei Martyanov, teria
tornado a Rússia desde meados da década passada a primeira potência militar do mundo.
efeito da reconstrução econômica destes países que foram destruídos pelo conflito de
1939-45.
Isto implica reconhecer que as variáveis econômica e militar – a par das
especificidades reais de cada uma e de teorias específicas em ciências humanas para
com análises específicas – não podem ser entendidas separadamente quando tem-se em
conta as estratégias de competição e de luta pelo poder entre as grandes potências do
sistema, como será visto mais detidamente no tópico a seguir. De todo o modo, a junção
da lógica das duas variáveis – equilíbrio estratégico entre as duas superpotências e
aumento do polo competidor no plano econômico, como efeito tanto de relativo declínio
econômico da principal economia do mundo – os Estados Unidos – e da recuperação
dos chamados aliados-rivais europeu e nipônico, trariam novas tendências ao sistema
bipolar que caracterizava o sistema internacional desde a ascensão hegemônica dos
Estados Unidos à condição de líder do sistema e do ciclo de acumulação de capital
desde 1945.
Estas tendências, que permitiram no curso do final dos anos sessenta e começo
dos anos setenta desengajar os Estados Unidos do custoso conflito na Indochina, iriam
estar na base das primeiras mudanças estruturais que permitiriam por toda a década de
setenta a coexistência pacífica com o bloco socialista e na erosão do padrão fordista-
keynesiano12 de acumulação. As transformações operadas pelo fim da paridade entre o
ouro e o dólar e pelos aumentos dos preços do petróleo dos governos Nixon e Carter
estaria na origem da reestruturação econômica e financeira que caracterizariam o fim da
Guerra Fria como sistema e o próprio fim do bloco soviético.
Estas ações do Estado americano em consonância com as demandas de suas
corporações financeiras e do petróleo promoveriam o aprofundamento da globalização
econômica e financeira que passariam a ter contornos estruturais para a transição do
ciclo estadunidense para o ciclo de acumulação asiático que ora caracterizam os anos 20
do século XXI, pautados pela continuidade do declínio econômico norte-americano, de
consolidação da Revolução Tecnológica na Economia, de transição para a
multipolaridade, mas também sob a égide do neoliberalismo.

12
John Maynard Keynes, importante economista britânico que teve um papel político importante para a
retomada da economia dos EUA nos anos 30 quando o Estado passou a intervir na economia para a
partir de políticas sociais e de estímulo ao crescimento econômico pela demanda foram responsáveis
pela recuperação dos efeitos da depressão e abandono do receituário liberal clássico de não intervenção
estatal nos assuntos econômicos. Participou das medidas políticas econômicas do Presidente Franklin
Roosevelt (1933 – 45).
Tendo em conta este contexto internacional da época, a tentativa da teoria de
relações internacionais, como toda a ciência social, de promover a busca pela
generalização e abstração em termos de construção teórica acerca do comportamento
previsível do Estado no plano externo, independentemente de sua natureza jurídica ou
político-ideológica no plano interno, cumpriria determinadas características, a mais
importante delas a busca pela manutenção da sua existência.
Assim, a sobrevivência de uma unidade política é o maior objetivo estratégico a
ser perseguido por suas elites dirigentes por meios instrumentais variáveis e
complementares, a depender dos desafios apresentados pelo contexto: cooperação,
alianças, balanço de poder, uso da dissuasão militar (convencional e nuclear) e recurso
ao uso da força (guerras).
Nesse sentido, Waltz desenvolveu sua teoria a partir dos complexos fenômenos
acima descritos. Buscando no nível de análise sistêmico, o das relações entre os
Estados, a causa primeira para explicar a racionalidade dos resultados das ações em
política internacional, irá buscar tratar de como agem as grandes potências em termos da
distribuição de suas capacidades.
De acordo com a perspectiva de análise privilegiada por Waltz pode-se perquirir
acerca dos motivos da ascensão de Hitler ao poder nos anos trinta e de sua política de
alianças, balanceamentos e, afinal, anexações e guerras. Pode –se refletir acerca da
decisão de Roosevelt13 de entrar no conflito mundial em 1941 ou das razões de Stálin 14
em aderir aos aliados contra a Alemanha ou aos motivos de Churchill 15 de aceitar a
aliança temporária como socialismo soviético. Independentemente dos sistemas político
e ideológicos dos atores em questão, existe um padrão comum a todas estas grandes
potências: manter os recursos necessários à sua sobrevivência16.
A sobrevivência da unidade política em um ambiente anárquico é a condição
última sem a qual fenecem os interesses particulares de grupos e indivíduos internos a

13
Presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945.
14
Secretário Geral do PC e líder supremo da URSSS entre 1922 e 1953.
15
Sir Winston Churchill, primeiro ministro britânico de 1940 a 1945.
16
Hitler necessitava garantir, num primeiro momento, acesso da Alemanha aos recursos econômicos e
humanos para a indústria alemã e para isso necessitava ocupar militarmente a Europa como condição de
avançar no processo de acumulação de capital alemão, cujo principal rival era o capitalismo dos Estados
Unidos. Este assim como o Reino Unido estavam unidos na necessidade de garantir o equilíbrio europeu
formando aliança temporária com o gigante soviético contra o poderoso estado nazista. Cumpre lembrar
que a Alemanha e a Rússia soviética naquele momento representavam a precisavam estar separadas pois
sua aliança ou a absorção desta última pela primeira representaria o pesadelo geopolítico para os anglo-
saxões. Por fim, da parte das autoridades soviéticas, a aliança temporária para com os estados capitalistas
anglo-saxões representava uma necessária forma de balanceamento e contenção do agressor alemão, em
uma genuína luta pela sobrevivência.
cada tipologia de formação histórico-social, sejam quão distintas forem estas. Assim,
ainda que não fossem aqueles os líderes nomeados, mas outros e o tempo histórico fosse
outro, poderia se afirmar com boa base de segurança que na iminência de um conflito
militar ou de competição econômica, o resultado tenderia a ser similar.
A partir de uma rica análise erudita, o pensador alerta que, embora importantes
fenômenos complexos como sistema político, o papel dos estadistas e fatores
domésticos e de ordem econômica não eram o escopo de sua análise, dentro da grande
tradição realista17.
Assim, em essência, afirma Waltz, fossem quais fossem as características da
economia, dos líderes em questão e da ideologia ou do regime partidário ou político de
uma nação em particular, tanto Estados Unidos, como União Soviética agiriam de igual
modo em termos de perseguir o equilíbrio de poder e fazendo uso dos meios como as
alianças e formas de atingir o balanço de poder para preservar a segurança e a defesa
dos seus interesses geopolíticos centrais. Um exame racional acerca dos custos e
vantagens palpáveis, por exemplo, esteve nos cálculos do Conselho de Segurança
Nacional do Presidente Kennedy por ocasião da crise dos mísseis18.
O realismo estrutural de Waltz reconhece o terceiro nível de análise como aquele
que explica de forma mais abrangente e de forma racional o comportamento das
unidades que compõe o sistema interestatal. Para o autor, o nível sistêmico internacional
17
Waltz não nega a importância que por ventura possam ter os interesses particulares de estadistas, chefes
de estado ou de instituições permanentes como militares e chancelaria possuam na conformação do
núcleo duro dos interesses centrais. Apenas ressalta que existem interesses inquestionáveis quando se
analisa o plano sistêmico das relações internacionais, que é o de garantir a sobrevivência do ator estatal.
Assim, pode-se inferir que independentemente de como são decididos e formados os interesses em
determinadas conjunturas, ou das frações de elites que são hegemônicas na condução das relações
exteriores de um país, ao fim e ao cabo, estes dirigentes precisarão garantir a independência e a existência
de suas instituições que personificam o Estado no plano internacional, independentemente da ideologia,
dos interesses principais que são representados naquele dado momento ou da qualidade (ou falta) de
determinada liderança política.
18
Graham Allison, na clássica obra The Essence of Decision, descreve, sob a perspectiva do processo de
tomada de decisão os interesses em jogo e as demandas específicas dos sub-grupos dentro do centro
decisório do governo naquele momento, em especial, de um lado setores importantes do complexo militar
industrial representados pela Força Aérea e de outro, as demandas do Departamento de Estado, o
Secretário de Justiça Robert Kennedy (irmão do Presidente) e o próprio Presidente assim como o papel do
Secretário de Defesa Robert MacNamara. Apesar das diferenças de objetivos setoriais, o que fica claro é
que algum tipo de consenso e acordo sobre os interesses centrais acaba sempre prevalecendo. No caso a
constatação de que no perigoso jogo de disputa com os soviéticos, as vantagens estratégicas dos
americanos superavam os custos de uma guerra nuclear, na medida em que os soviéticos não possuíam
suficiente poder de retaliação naquele momento contra a segurança do território dos EUA, o famoso
missile gap. Além dos estudos de tomada de decisão, dentro mesmo da escola realista irão emergir novos
estudos ao longo das décadas trazendo à tona a contribuição da escola neorrealista clássica assim como a
escola da análise de política externa para a compreensão das dinâmicas para o que Waltz denomina de
primeira e segunda imagens das relações internacionais. Mas em todo o caso, o padrão de explicação
geral é em essência o mesmo: a aferição racional de custos, possibilidades e vantagens em termos sempre
de assegurar a sobrevivência e a estabilidade nas relações entre as potências.
de análise é um domínio singular e autônomo de outras dimensões de análise como a
econômica, a social, etc. (WALTZ, 1979, p. 79). Acima de tudo, o autor se preocupa em
demonstrar como as estruturas da política internacional são criadas e como afetam as
unidades, isto é, os Estados.
Conforme a lição de Waltz, a estrutura é um sistema compostos por unidades
caracterizadas pela polaridade que estabelecem entre si dado o sistema anárquico e as
capacidades que possuem (WALTZ, 79, p.114W). As capacidades são os atributos que
diferenciam as grandes potências das demais unidades do sistema. Da mesma forma que
o realismo clássico utiliza a noção de recursos de poder, o realismo estrutural entende
por capacidades os atributos e recursos econômicos, naturais, humanos, tecnológicos e
militares de que a unidade dispõe e que acabam por condicionar o padrão de polarização
ou relações pautadas nas dinâmicas do conflito e da competição entre as nações.
John Mearsheimer19, discípulo de Waltz, por sua vez, também afirma que a
busca pela sobrevivência deve consistir no objetivo central do Estado, no entanto, difere
ao afirmar que os atores estatais preferem estratégias de cunho ofensivo na disputa por
interesses. Assim, tanto pela manutenção do status quo quanto pelo lado das potências
revisionistas, o recurso à guerra ofensiva entre as grandes potências tem sido o padrão
histórico de competição. Além disso, a capacidade de promover, sustentar, suportar e
vencer guerras em larga escala caracterizaria um Estado como grande potência.

A perspectiva sistêmica marxista do ciclo de acumulação de capital e as


grandes potências

O estudo das relações de causa e efeito entre os ciclos de expansão e contração


do capital e a emergência e declínio de hegemonias no sistema internacional é o escopo
da escola de pensamento inaugurada por Immanuel Wallerstein e desenvolvida por
Geovanni Arrighi, a partir das contribuições da análise sociológica e histórica de
Ferdinand Braudel20 a partir da concepção de sistema-mundo. A partir de então aqueles
autores incorporam a análise do materialismo histórico marxista, pelo qual as forças de
19
John Mearsheimer, The Tragedy of Great Power Politics (2001).
20
Ferdinand Braudel, historiador francês e um os grandes expoentes da Escola dos Annales, lecionou nos
anos 1930 em São Paulo, na USP. Seus livros A Dinâmica do Capitalismo (BRAUDEL, 87) e o clássico
Civilização Material, Economia do Capitalismo, escrito em 3 volumes entre 1967 e 79, sobre a história
econômica europeia e o capitalismo dos séculos XVI a XVIII, exerceram enorme influência sob o
pensamento de Immanuel Wallerstein e Geovane Arrighi, com respeito à noção de ciclos de longa
duração, que inspirou a concepção de Wallerstein de sistema –mundo e dos ciclos de acumulação de
Arrighi.
produção lideradas pela classe capitalista buscariam maximizar o enriquecimento e a
busca de novos mercados dentro da lógica marxista de acumulação e reprodução do
capital em uma perspectiva histórica dos últimos 600 anos, que coincide com a
formação do Estado moderno territorial e do próprio sistema capitalista no plano
internacional.
Assim, burguesias nacionais, em associação com o poder político (Estado), une-
se de forma interdependente entre si e irão competir por mercados e acesso às matérias
primas, levando à expansão da presença política das grandes potências europeias pelo
globo em etapas sucessivas. Tais etapas, segundo os autores, seriam caracterizadas por
fases de expansão ou ascensão, consolidação ou apogeu e afinal, declínio ou
decadência. Neste processo ocorreriam sucessivos ciclos de acumulação de capital,
relacionados com o avanço da técnica e tecnologia aplicada às forças produtivas
capitalistas de cada sociedade política em particular, que caracterizaria maior ou menor
dinamismo em termos de competitividade para com os demais Estados europeus rivais,
tanto em relação ao líder do ciclo hegemônico anterior ou em crise quanto em relação
aos demais competidores pela sucessão de um novo ciclo.
Face complexa e mutuamente dependente entre si desta lógica, seriam os
interesses econômicos e políticos das frações de elites hegemônicas dentro de cada
Estado em dada conjuntura histórica. Sob este aspecto, a crise e sucessão de hegemonia
em novo ciclo de acumulação viria acompanhada de novos métodos, técnicas e
tecnologias aplicadas nas forças produtivas da economia e seria em regra, resolvida por
meio da eclosão de conflitos militares entre a potência declinante e a potência
emergente.
Immanuel Wallerstein (WALLERSTEIN, 2004, p.23) foi o pioneiro no estudo
da formação do capitalismo entre os séculos XV e XVIII a partir das noções de centro-
periferia, opondo o Ocidente europeu ao restante do mundo, no exame das sucessivas
hegemonias holandesa, britânica e norte-americana.
Geovanni Arrighi (ARRIGHI, 1996, pp.27, 42, 47 e 59), por sua vez, retrata esta
sucessão de ciclos entre as potências que se sucedem ao longo dos séculos desde o ciclo
das cidades Estados italianas, passando pelo ciclo holandês, britânico e norte-
americano. A partir de então, debate em suas obras principais a hipótese da substituição
do ciclo estadunidense pelo ciclo asiático, mas especificamente chinês.
Os ciclos de expansão britânico e norte-americano caracterizaram,
respectivamente, os séculos dezenove e vinte e suas elites políticas e militares
desenvolveram as teses geopolíticas clássicas das potências marítimas em face das
potências terrestres. Enquanto o ciclo britânico era caracterizado pelo capitalismo
liberal o ciclo norte-americano foi o ciclo oligopolístico financeiro-industrial, raiz do
fenômeno do imperialismo e da nascente indústria militar, que teria repercussões para a
consolidação de interesses orgânicos entre as frações de elites econômicas, militares e
políticas dos Estados nacionais dentro dos marcos das Segunda e Terceira Revoluções
Industriais, trazendo ao debate da relação entre estudos de economia política (ciclos de
acumulação), teoria de relações internacionais (realismo) e geopolítica, contornos
estruturais para a compreensão do mundo em que vivemos.
O ciclo britânico foi o primeiro a construir uma ordem hegemônica nos planos
político-estratégico e econômico, de abrangência efetivamente global e durou
aproximadamente cem anos. Fundado na Primeira Revolução Industrial, baseada na
tecnologia dos motores à vapor e na matéria prima do carvão.
O ciclo atual, o norte-americano, sucedeu ao britânico pela combinação de meios
diplomático-pacíficos, competitividade comercial, inovação tecnológica e guerra contra
o outro polo competidor e desafiante, o germânico. Como bem se depreende da análise
de Arrighi, a economia política presente na análise da evolução das etapas de expansão,
contração e competição entre novas formas de capitalismo não podia ser dissociada da
lógica geopolítica subjacente.
Interessante notar que entre o hegêmona do ciclo do capitalismo liberal e o do
capitalismo oligopolístico, malgrado a competição no campo econômico, ocorreu
verdadeira aliança estratégica no campo diplomático militar e simbiose no campo do
capitalismo financeiro e não o conflito entre os Estados britânico e norte-americano.
Formara-se ao longo do século vinte um condomínio de poder, caracterizado pela
transição da ordem britânica para a ordem estadunidense entre os anos de 1920 e 45,
enquanto que a afirmação e consolidação do ciclo hegemônico dos Estados Unidos se
fez paripassu ao estreitamento das posições ideológicas e geopolíticas entre Washington
e Londres, alçada à condição de aliado mais importante, em que pese o seu declínio
enquanto grande potência hegemônica do ciclo de acumulação anterior.
O ciclo hegemônico dos Estados Unidos, por sua vez, simbolizou o dinamismo
das forças produtivas de sua economia e resultou da vitória final sobre o imperialismo
alemão no curso das I e II Guerras Mundiais. Teve seu apogeu entre 1945 até 1971,
quando seu declínio relativo se inicia. Posteriormente, a partir da década de 1990 e
principalmente nos anos 2000, assiste-se à ascensão do ciclo de acumulação chinês,
como principal polo econômico e tecnológico asiático e alternativo ao ciclo capitalista
clássico de matriz anglo-saxã21.

O Realismo clássico e neoclássico, as frações de elites e sua relação com os


interesses estratégicos do ator estatal

O realismo clássico assim como o neoclássico centram suas análises na primeira


imagem waltsoniana, ou seja, os indivíduos e os grupos de interesse. Como se articulam
os interesses domésticos ou internos dentro do ator estatal e os interesses nacionais (ou
estratégicos) e o papel que líderes políticos e grupos de interesse desempenham neste
processo é o objetivo de estudo do realismo neoclássico.
Conforme Colin Dueck (DUECK,2009, pp.139-169)22,o autor estabelece uma
discussão sobre o interesse nacional a partir do papel desempenhado por chefes de
Estado, as influências da política interna e as intervenções militares no plano
internacional. O exame da história demonstra que existe certa relação entre prestígio
político, mormente em regimes representativos e performance eleitoral, assim como
determinados temas da agenda da política interna que tem decisiva interface com a
externa, como a política energética, em especial o petróleo.
Os casos mais emblemáticos desta relação são, respectivamente, os governos
Bush Pai e Filho, nas ações militares contra o Iraque, em 1990 e em 2003, movidos
tanto pelos interesses geopolíticos relacionados ao petróleo como também tendo
resultado as ações militares em sensível aumento de popularidade do governante em
ambas as ocasiões23.
Norrin Ripsman (RIPSMAN, 2009, pp.170-193)24, por seu turno, complementa a
análise no estudo sobre os grupos de interesse dentro do aparato institucional do Estado
assim como das elites não pertencentes ao aparelho de Estado mas com ele relacionadas.
Em ambos os casos os objetivos destas elites e sua relação com a política exterior são
analisados.
21
Ver ARRIGHI. Geovanni. Adam Smith in Beijing. Verso. London. UK. New York. USA. 2007.
22
DUECK, Colin. Neoclassical realism and the national interest: presidents, domestic politics, and major
military interventions. In: LOBBEL, Steven E.; RIPSMAN, Norrin M. & TALIAFERRO, Jeffrey W.
(Ed.). Neoclassical Realism, the State, and Foreign Policy. Cambridge University Press. UK. 2009.
23
Em seção anterior do artigo, foi tratado acerca do papel da contenção da potência eurasiana União
Soviética e de sua sucessora, a Federação russa, sob o prisma dos interesses de balanço de poder que
encontraram nas teorias geopolíticas anglo-saxã sua justificativa de ordem estratégica.
24
RIPSMAN, Norrin M. Neoclassical Realism and domestic interest groups. In: . In: LOBBEL, Steven
E.; RIPSMAN, Norrin M. & TALIAFERRO, Jeffrey W. (Ed.). Neoclassical Realism, the State, and
Foreign Policy. Cambridge University Press. UK. 2009.
Por fim, Collin Wight, (WIGHT, 2006, pp.62-89)25 faz uma profunda análise
iniciando pela origem do debate entre agente-estrutura a partir da sociologia clássica
com Durkheim e Weber26, para então entrar detidamente na discussão das explicações
de linha estrutural do realismo científico e como se coloca o debate entre as dimensões
sistêmicas ou estruturais e o plano dos entes subnacionais, onde se localizam os agentes,
os estadistas, militares e diplomatas considerados tanto no plano individual quanto no
plano coletivo-institucional, que gerou uma retomada dos diálogos entre os realistas
clássicos e os estruturalistas a partir da emergência do realismo neoclássico.
Pelos limites do texto, não será feita uma análise detida acerca das complexas
redes de acordos entre as elites centrais que controlam o processo político-decisório e as
forças de produção das respectivas formações estatais capitalistas estadunidense,
chinesa e russa. Cumpre, todavia, elencar os seus contornos basilares a partir do
tratamento teórico dado pela literatura no campo da ciência política e das relações
internacionais.
As elites centrais de todo e qualquer Estado moderno e contemporâneo, pelo
menos desde o advento do capitalismo na era moderna, gira em torno das burocracias de
Estado (em especial as instituições militares) e os detentores do capital financeiro,
comercial e/ou industrial, a depender da predominância política conjuntural ou mesmo
de longo prazo das frações de classe burguesa em uma sociedade27.
Em sua seminal obra sobre as elites norte-americanas, C. Wright Mills, (MILLS,
A Elite do Poder, 1981, pp.11-40) trata fundamentalmente do que são as elites do poder,
do conceito de elite e da tripartição clássica do que denomina de três ordens
institucionais: a política, a econômica e a militar). Ao longo da ascensão e consolidação
da hegemonia dos EUA se constituiu o núcleo duro da elite do poder naquele país, o
complexo militar-industrial, personificado no Pentágono, nas corporações financeiras,
do petróleo e da indústria armamentista. Em essência a construção do Estado americano
foi realizada sob a coordenação do núcleo político que, em sua origem, estava
fortemente associado pelo elemento militar 28, fator não apenas de segurança e
25
WIGHT, Collin. Agents, Structures and International Relations Politics as Ontology. Cambridge
University Press. UK. 2006.
26
Os fundadores da sociologia francesa e alemã, respectivamente.
27
Nicos Poulantzas, filósofo e sociólogo grego marxista que desenvolveu, sob influência do pensamento
do jornalista e filósofo marxista italiano Antônio Gramsci, os estudos das relações dentro do bloco
histórico de poder acerca das noções de frações de elites em situação conjuntural hegemônica, assim
como as hipóteses de autonomia relativa do aparelho burocrático estatal em relação à burguesia.
(POULANTZAS, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. 1977).
28
O estado norte-americano, em sua origem, teve como primeiro presidente um oficial do exército, o
General George Washington. Num fenômeno aparentemente universal e em várias épocas históricas,
independência da nascente república como também de sua futura expansão continental,
hemisférica e posteriormente extra-continental nas guerras assimétricas contra tribos
indígenas e mais tarde contra o estado mexicano, contra a Espanha e no Pacífico
oriental, bases da construção da hegemonia do país.
Nos casos russo e chinês, em que pese não dispormos de espaço para maior
descrição do fenômeno, cumpre, todavia, reafirmar que igualmente suas estruturas
institucionais de poder encontram-se assentadas em maior ou menor grau nesta tipologia
clássica, assentadas, no caso chinês nas estruturas burocrática do Partido Comunista e
no Exército Popular chinês e no caso russo, na liderança carismática de Vladimir Putin,
no Exército russo e na burocracia estatal e inteligência.

A geopolítica das grandes potências

A essência da geopolítica da grande potência estadunidense pode ser bem


resumida na principal obra, do britânico Halford Mackinder. Ao analisar e descrever os
grandes contornos dos objetivos estratégicos desenvolvidos pelo Império Britânico ao
longo do século de sua hegemonia, ficava claro o lugar da estratégia dos Estados Unidos
como hegemonia sucessora enquanto grande potência marítima mundial: a necessidade
de isolar e conter as grandes potências terrestres eurasianas da ‘ilha mundial’29.
As contribuições teóricas e práticas que pensadores norte-americanos deram à
geopolítica foram reveladoras para a compreensão das dinâmicas do sistema mundial.
Nesse contexto, Mahan, Spykman30 e Bzerzinsky31 deram, ao longo do século vinte,
tanto no ocidente quanto no oriente, os Estados emergem como produto da coalizão de elites políticas e
militares, quando não raro apenas deste último, nos casos das formações históricas pré-capitalistas. O
elemento econômico ganha relêvo enquanto fenômeno social e político de análise a partir da transição do
feudalismo para o capitalismo mercantil. Este é o contexto do estudo do sociólogo norte-americano
Charles Tilly, sobre a gênese do Estado moderno, em seu clássico Coerção, Capital e Estados europeus,
trata da formação dos interesses comerciais em aliança estratégica com as elites político-militares dos
Estados feudais e mais tarde, absolutistas modernos, sob o prisma dos interesses da coerção
(governantes/militares) e do capital (nascente burguesia, a elite econômica).
29
A Eurásia, na concepção de Mackinder que correspondeu em sua essência, ao território do antigo
império czarista russo e da extinta União Soviética.
30
Nicholas Spykman refinou a geopolítica de Mackinder e foi um dos primeiros teóricos a pensar o novo
papel que os EUA desempenhariam a partir da sua posição recém atingida enquanto superpotência a partir
de 1945. Sua concepção da Rimland como área intermediária e geograficamente adjacente à Heartland
eurasiana era de que deveria ser controlada pelas potências ocidentais de forma a isolar e conter as
grandes potências eurasianas. A expansão da OTAN para o leste, o papel estratégico para o Pentágono da
Turquia, da Índia e da Coréia do Sul, por exemplo, são expressões concretas desse pensamento
geoestratégico desenvolvido no começo dos anos 1940 e que influenciou gerações de estrategistas norte-
americanos.
31
Bzerzinsky foi assessor de segurança nacional do governo Jimmy Carter (1977-80) e principal defensor
da estratégia de desestabilização do espaço russo-soviético e que, mais tarde, teria influência sobre os
neoconservadores como Robert Kagan, defensor da fragmentação das grandes potências eurasianas.
apenas confirmam a lógica do pensamento do eminente pensador britânico e do papel
que a Guerra Fria exerceu de contenção tanto ao desafio geopolítico eurasiano russo
como ideológico soviético. Mesmo com o fim do chamado desafio socialista à ordem
capitalista estadunidense, a Eurásia representada decisiva ameaça à hegemonia dos
capitais anglo-americanos e do Estado norte-americano (ou seja, o complexo militar e
industrial em essência) pela aliança estratégica entre a potência militar russa e a
potência econômica chinesa tornam o pensamento geopolítico anglo-saxão mais vivo e
atual do que nunca.
O almirante Alfred Thayer Mahan elaborou seu pensamento geopolítico a partir
dos estudos da história naval em sua obra o Poder Naval na História (tradução livre do
original) e seu pensamento é uma espécie de continuação de Mackinder, detendo-se
mais nos aspectos da importância do poder naval que a Marinha dos Estados Unidos
deveria desempenhar no curso da segunda metade do século vinte, em apoio à
hegemonia econômica e política de Washington. A história da projeção de poder naval
das grandes potências europeias do século dezesseis em diante, em especial o poder
naval global exercido pela Grã-Bretanha – a potência hegemônica ao tempo em que
Mahan viveu – desempenhou papel importante em suas reflexões teóricas.
Neste contexto, a atual guerra entre a Rússia e os Estados Unidos/OTAN
mediante a proxy war32 no território ucraniano revela a mais perfeita personificação da
natureza anárquica das relações entre as principais potências do sistema. Revela,
outrossim, o entrelaçamento entre os interesses geopolíticos das matérias primas
energéticas como petróleo e gás, a busca pela disputa dos mercados da Eurásia, os
limites do ciclo de acumulação norte-americano em face do chinês e parece demonstrar
a importância da dimensão do poder militar no caso russo de forma combinada com a
probabilidade de maior integração política e comercial com o parceiro chinês.
Fica claro que a aliança estratégica com a China concede respaldo pela
cooperação diplomática e pelos acordos comerciais na zona econômica da nova rota da
seda chinesa, que já estão equilibrando os aspectos negativos das sanções ocidentais
contra a economia russa em razão do conflito na Ucrânia, assim como podem
aprofundar os laços de cooperação e de desenvolvimento econômico russo com Beijing.
Tendo em conta os objetivos de natureza geopolítica das três grandes potências
do sistema de maneira breve e sintética é possível estabelecer as tendências gerais do

32
Guerra por procuração. É quando uma grande potência, a fim de diminuir os custos econômicos,
políticos e militares, opta por se utilizar de um terceiro ator num conflito com seu oponente estratégico.
padrão de relações entre elas. A previsibilidade no campo das ciências sociais sempre é
problemática em razão do relativo grau de certeza que o histórico de padrões de
conflitos entre as nações tem revelado no curso das décadas e mesmo dos séculos.
Afinal, sempre é lembrado que ninguém pareceu perceber o fim da União Soviética em
1991, fato que, à época chocou historiadores, sociólogos e cientistas políticos. Da
mesma forma, toda a análise acerca do debate acerca do declínio americano e a
ascensão chinesa, por mais que seja baseada em dados cientificamente analisados,
sempre pode surpreender.
Todavia, deve ser assinalado que o que é difícil prever é o grau de intensidade
do declínio do ciclo norte-americano paripassu ao avanço do ciclo chinês. Paralelamente
e interdependente desta lógica, deve ser apontada a importância da aliança estratégica
da China – terceira potência militar e em vias de se tornar a principal potência
econômica do mundo - com a Rússia que, conforme os estudos de Andrei Martyanov
(MARTYANOV, 2018, pp.14-40), analista militar russo-ucraniano que vive nos
Estados Unidos e que pesquisa as forças armadas russa e norte-americana se prefigura
como a principal potência militar do sistema, além de possuir o maior potencial
estratégico energético em termos de gás e petróleo do mundo 33. Assiste-se, no campo
geopolítico aos ventos da mudança que parecem soprar na direção leste, da Eurásia...

Conclusão

O diálogo entre a escola realista da teoria das relações internacionais com o


marxismo sistêmico dos ciclos de acumulação e com as doutrinas da geopolítica
demonstram de forma cabal que apesar das mudanças dos séculos e de períodos
históricos, existem padrões de recorrência que explicam qual peças de um quebra-
cabeças, como agem e se comportam os Estados e suas estruturas internas.
Em primeiro lugar, o dinamismo econômico e financeiro da coalizão de elites
pública e privada de um ator estatal está diretamente ligado à emergência deste
enquanto polo de poder político, militar, tecnológico e econômico nas relações
internacionais.
Desde a emergência do Estado vestfaliano e do capitalismo, ainda em sua fase
mercantil, assistiu-se ao sucessivo ciclo secular de ascensão, maturação, declínio e
33
BOLT, Paul J. & CROSS, Sharyl N. China, Russia and Twenty-First Century Global Geopolitics.
Oxford University Press. 2018.
contestação de hegemonias, caracterizadas por novos padrões mais sofisticados de
acumulação de capital, competição econômica e afinal, militar, conduzindo-se à eclosão
de guerras centrais ou guerras hegemônicas, das quais os dois conflitos mundiais do
século vinte foram os últimos (e os maiores) em escala e que consagraram a ordem
norte-americana vigente.
A crise financeira mundial de 2008 que teve sua origem nos Estados Unidos e
em seguida atingiu o mundo guarda seus elos com a já longínqua desregulamentação da
ordem de Bretton Woods (1944) a partir de 1971 e com a tendência à
transnacionalização do capital financeiro e sua atual predominância no ciclo de
acumulação estadunidense.
Este fenômeno de igual modo não pode ser analisado isoladamente da estratégia
dos Estados Unidos de aprofundar a guerra ao terror e aos enormes gastos financeiros
que os interesses coincidentes entre o capital financeiro, as grandes companhias anglo-
americanas do petróleo e a indústria armamentista tiveram nas guerras locais do Iraque
e do Afeganistão no início do século XXI. Tal estratégia se coadunava com objetivos
geopolíticos de que variavam da contenção à pressão e mesmo fragmentação do que
restara do antigo espaço soviético, em estratégia esboçada pelo antigo assessor de
segurança nacional do governo Carter, Zigbnew Bzerzinski, quando foi renovada a
Guerra Fria contra o polo soviético.
Este é o grande cenário em que se jogam o prestígio e os interesses geopolíticos
e geoeconômicos em disputa na Guerra da Ucrânia, entre Rússia e Estados Unidos,
como um capítulo importante da rivalidade entre o polo declinante atual, capitaneado
pela Casa Branca contra o polo sino – russo liderado por Beijing, o grande desafiador a
partir do seu ciclo de acumulação asiático.
O conflito na Ucrânia, nesse sentido, é apenas o começo de uma estratégia de
guerra permanente para evitar a todo o custo a emergência de um novo sistema
multipolar em que embora continue sendo ainda uma grande potência econômica e
militar, os Estados Unidos tenderão a perder a atual posição de primazia e ter que
conviver com novos polos de poder. Infelizmente, a guerra ainda faz parte da lógica de
disputas de poder entre as grandes potências e não pode ser dissociada da dimensão
econômica do ciclo de acumulação nem tampouco dos interesses setoriais das elites ou
suas frações em coalizões dentro dos respectivos núcleos decisórios dos Estados que se
prefiguram as principais potências do ainda incerto século XXI: China, Estados Unidos
e Rússia.
É, portanto, no contexto da transição que se acelera rumo a uma nova ordem que
o Brasil, candidato natural por sua posição geográfica continental recursos humanos e
naturais, a ser mais um polo de poder enquanto grande potência e que pode contribuir
com um papel estabilizador e mediador em uma futura ordem multipolar. Todavia, as
elites política, econômica, diplomática e militar brasileiras precisam negociar suas
demandas e atingir objetivos minimamente consensuais em torno de um projeto
estratégico de desenvolvimento nacional e soberano para lograr sua ascensão ao topo da
hierarquia do poder mundial.
Para tanto, quatro condições inseparáveis uma das outras são necessárias:
abandono das deletérias políticas neoliberais, pacto entre suas heterogêneas elites,
desenvolvimento com igualdade para o conjunto da sociedade brasileira, eliminando as
assimetrias sociais agudas e a integração consensual e mutuamente benéfica para com as
demais nações sul-americanas.

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