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da realidade, mais ajustada à expe-riência, mais instrutiva e fecunda.

Qualquer definição
que não reconhecesse o caráter específico das relações internacionais, devido à
legitimidade do recurso à força por parte dos atores, estaria negligenciando ao mesmo
tempo um dado constante das civilizações - constância cujos efeitos têm sido enormes no
curso da história — e a significação humana da atividade militar.
Os estatísticos que, como Richardson, contam os fatos de violência ou homicídio, sem
distinguir os assassinos dos soldados, são os primeiros a lembrar, com muita oportunidade,
que esses dados por si mesmos nada significam. Pode ser que alguns modernistas me
reprovem a afirmativa de que a definição teórica se aproxima por si mesma da experiência
vivida; que os estadistas, os juristas, moralistas, filósofos e guerreiros perceberam, através
dos séculos, a essência das relações internacionais justamente no ponto que considero
como a origem da teoria. Neste particular, não renego a tradição.

Capítulo 3
As relações entre uma teoria desse tipo e o contexto social (ou, se pre-ferirmos, a
sociedade global) não podem ser as mesmas que existem entre a teoria econômica
(walrasiana, paretiana ou keynesiana) e esse mesmo contexto. De fato, os economistas não
se põem de acordo sobre o melhor método de combinar a conceitualização econômica com
a sociológica. Não se passa sem alguma dificuldade de uma teoria da distribuição dos
fatores de produção para uma teoria da repartição da renda. Na Alemanha a escola
histórica e nos Estados Unidos a escola institucionalista procuraram definir, mais ou menos
rigorosamente, os contextos sociais (expressão inevitavelmente vaga) em que atuam os
mecanismos propriamente econômi-cos. Decreta-se que a guerra é um fator exógeno com
relação à conjuntura econômica. Mas a percepção do sistema econômico que incitava os
governantes europeus e norte-americanos a buscar o equilíbrio orçamentário nos períodos
de deflação será também um fator exógeno? As decisões monetárias ou orçamentárias
serão exógenas? A atual controvérsia sobre o sistema monetário internacional, e a
capacidade dos Estados Unidos de manter um déficit anual no balanço de pagamentos,
sem modicar sua política interna expansionista, ilustra a imbricação do subsistema
econômico no conjunto do sistema social, no seu funcionamento efetivo — em particular no
sistema político. As relações de força (o que não quer dizer de força armada) pesam nas
relações de produção e de comércio.
A teoria das relações internacionais não comporta, mesmo em abstra-to, uma distinção
entre variáveis endógenas e exógenas. Com efeito, a especificidade da conduta dos atores,
uns com relação aos outros, se relaciona com a ausência de tribunais e de polícia, que os
obriga a um cálculo de forças e, em especial, das forças armadas disponíveis em caso de
guerra.
Nenhum deles pode excluir a hipótese de que algum outro tenha intenções agressivas a seu
respeito; todos precisam, portanto, saber com que forças podem contar — suas próprias e
dos seus aliados — no dia do "pa-gamento à vista", como dizia Clausewitz: da prova de
força. Esse cálculo de forças comporta por si mesmo a referência ao espaço ocupado pelos
atores, à população e aos recursos econômicos de uns e dos outros, à natureza das armas,
ao sistema militar e ao coeficiente de mobilização de cada um. Por sua vez, a natureza das
armas e o coeficiente de mobilização refletem os sistemas políticos e sociais. Todo estudo
concreto das relações internacionais se torna portanto um estudo histórico e sociológico - o
cálculo das forças nos leva à consideração do número, do espaço, dos recur-sos, dos
regimes (regime militar, econômico, político e social). De seu lado, esses elementos
constituem os temas dos conflitos entre os Estados. Aqui também é a própria análise teórica
que revela os limites da teoria pura.
Empreguei voluntariamente os dois adjetivos sociológo e histórico. O primeiro deles se
opõe, conforme o caso, ao econômico, teórico ou histórico.
Pareto remetia à sociologia as ações não-lógicas, distinguindo, nas lógicas, objeto próprio
da ciência econômica, diferentes níveis de abstração ou de esquematização - a ciência
econômica seria tanto mais teórica quanto maior a simplificação ou esquematização.
Simultaneamente, a sociologia
—ciência das ações não-lógicas - se opõe à história porque busca relações gerais e não
visa compreender as singularidades ou narrar os aconteci-
mentos.
A meu ver todo estudo concreto das relações internacionais é socioló-gico, no sentido em
que Pareto opõe a sociologia à economia (não é possível isolar um sistema de relações
internacionais porque o comportamento dos atores, comandado pelos cálculos-de forças, é
determinado por variáveis ecortômicas, políticas e sociais). Em Paz e Guerra Entre as
Nações contrastei a sociologia com a história: a busca de regularidades e a compreensão
de conjunturas singulares. Henry Kissinger julgou paradoxal que tivesse chamado de
"história" a parte do meu livro consagrada à análise do sistema universal na era
termonuclear. Ao escolher esse título, talvez tenha tido uma intenção irônica. Não imaginei
que a oposição weberiana, clássica, entre a sociologia e a história parecesse paradoxal ou
ininteligível.
A intenção do historiador pode ser definida de quatro maneiras di-ferentes. Ou o historiador
se interessa pelo passado, e não pelo presente, ou se interessa pelos acontecimentos, e
não pelos sistemas, qu conta a his-tória, em lugar de analisá-la, ou então se prende às
singularidades, em vez de focalizar as generalidades. A primeira definição me parece, no
caso ex-tremo, desprovida de sentido: quando falamos, aquilo sobre o que fala- mos já
pertence ao passado. O sistema mundial, conforme o descrevi, não era mais o mesmo
quando minha descrição foi publicada. É verdade que o historiador do presente não tem os
arquivos e a perspectiva que afrouxa os laços entre o observador e seu objeto - sobretudo,
falta-lhe o conhecimento das sequelas. Uma história do presente' serve como documento
para o historiador futuro. A ciência histórica avança mediante a acumulação do saber, mas
também pela revisão incessante das interpretações pre-cedentes. A parte de
reinterpretação que encontraríamos na história do presente escrita dentro de um século, em
comparação com a que fosse escrita por um contemporâneo, seria provavelmente maior do
que a de uma história romana dos meados do século XX, em comparação com a história
romana de Mommsen. Uma diferença que me parece de grau, não de na-
tureza.
A segunda definição também não me parece válida. Com efeito, devido à formação que
recebeu, e a sua tradição, o historiador profissional presta mais atenção aos acidentes do
que o sociólogo ou o economista. Mas o historiador de hoje, que se interessa pelos dados
demográficos, econômicos e sociais, se esforça também por reconstruir os conjuntos
significativos que marcaram o curso do progresso humano, que se constituíram
gradualmente antes de se dissolver, uns após os outros. De fato, se o historiador se
interessa mais pelos acontecimentos do que o sociólogo, isso ocorre na medida em que
narra o que aconteceu - em outras palavras, quando focaliza os acontecimentos ou
sistemas concebidos como acontecimentos na sua ordem de sucessão e descobre nessa
ordem uma inteligibilidade que se perde em todos os outros métodos de reconstrução.
Chegamos, assim, às duas definições legítimas. O historiador narra ou busca a
singularidade de uma cultura, de uma sociedade, de um sistema internacional. Tucídides
conta a guerra do Peloponeso. J. Burckardt, que procura explicar o conjunto único do século
de Constantino, ou do Renascimento italiano, é também um historiador. A análise do
sistema universal na era termonuclear é histórica, embora não comporte uma narrativa.
Além da busca de generalidades e singularidades, tem um escopo sin-gular: a extensão a
todo o mundo, pela primeira vez, de um só sistema internacional; a existência de dois
Estados, os únicos a possuírem armas decisivas; as diferentes formas de heterogeneidade
que encontramos nos Estados.
A impressão dada (por minha culpa) é de que a investigação sociológica não chega a
nenhum resultado. Não era isso que estava na minha mente. Procurei refutar as
explicações unilaterais - geográficas, demo-gráficas, econômicas — dos fenômenos da paz
e da guerra, mas a consideração do espaço, do número e dos recursos é obviamente
indispensável a qualquer explicação das relações internacionais, da mesma forma que a
referência ao caráter próprio dos regimes políticos ou dos traços nacio-nais. Mais ainda: ao
refutar a "teoria" (no sentido de "explicação causal") demográfica ou econômica das
guerras, faz-se uma contribuição positiva ao saber: põem-se em evidência os dados
constantes da sociedade interna-cional, talvez mesmo da natureza humana e social, os
quais constituem as condições estruturais da belicosidade; dissipam-se as ilusões dos que
esperam pôr fim às guerras modificando uma só variável: a população, o estatuto da
propriedade, o regime político. Acima de tudo, passa-se a compreender em profundidade a
diversidade histórica dos sistemas internacio-nais, graças à discriminação entre as variáveis
que têm significação distinta em cada época e aquelas que, pelo menos provisoriamente,
sobrevivem intactas às transformações técnicas — por exemplo, a preocupação com a
não-dependência, a vontade de poder dos atores coletivos que rivalizam incessantemente
(de forma violenta ou não) pela sua segurança, glória ou ideologia.
Dentro de um sistema internacional historicamente singular pode-se estabelecer modelos (é
o que fazem todos os analistas da estratégia nu-clear); e alguns não distinguem os modelos
das teorias. Há lugar também para o equivalente do que Robert K. Merton chamou de
middle-range theory ("teoria de alcance médio"). Proposições como a seguinte, que
encontramos em vários autores, podem ser consideradas "teóricas": as alianças são
incompativeis com as armas nucleares (ou, numa formulação menos grosseira, os principais
possuidores de armas nucleares se recusarão dar garantias a seus aliados que exigirem
participar da decisão de usar tais armas). São previsões que a experiência histórica poderá
confirmar, infirmar ou, mais provavel-mente, retificar.
Sob certos pontos de vista a teoria da estratégia nuclear se assemelha a uma teoria
econômica, mais do que à teoria geral das relações internacio-nais. Ela se baseia em
axiomas implícitos: um governo "racional" não desencadeará intencionalmente uma guerra
termonuclear total; ou então só assumirá o grande risco da guerra termonuclear para
defender um interesse vital. O soberano "racional" da estratégia nuclear lembra o sujeito
econômico da teoria dos jogos mais do que o de Walras. Contudo, não há quantificação
rigorosa possível desse risco, ou dos interesses em jogo.
Uma tal teoria da estratégia nuclear não deixa de ser contudo ao mesmo tempo histórica e
particular. Não poderia ter surgido antes das armas cujas implicações procura explicar. Por
outro lado, só se aplica a um aspecto do comportamento dos Estados na nossa época;
aliás, ela própria expõe sua limitação: quanto maior a estabilidade, no nível superior das
armas nucleares, mas diminui o perigo de uma escalada aos extremos, e menos assustam
os conflitos armados sem recurso às armas nucleares. Essas proposições têm caráter

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