Você está na página 1de 12

ANTONIO MANUEL HESPANHA

AS VÉSPERAS DO LEVIATHAN

INSTITUIÇÕES E PODER POLITICO


PORTUGAL - SÉC. X V I I .

LIVRARIA ALMEDINA
COIMBRA - 1994
I

INTRODUÇÃO

1. O tema da "centralização / descentralização" do sis-


tema político moderno na historiografia corrente

Tem sido, nos últimos anos destacado o tom "actualista", retros-


pectivo, de toda a historiografia europeia que, depois da revolução,
se preocupou com a história do sistema político do Antigo Regime
(v. Hespanha 1984, 24; Hespanha, 1986b, 191 ss.). Para além de
factores de política conjuntural, a que depois nos referiremos, ele
tem a ver com a j o r ç a com que então se impunha o modelo esta- ^ ArU ,, í v

dualista de organização do poder político e com o ambiente de exalta- ^ .


&

ção deste modelo edc residual polémica com os restos corporativos-


-feudalizantes. Todo este contexo político-cultural criava na reflexão
histórica uma pré-compreensão da evolução dos sistemas de orga-
nização do poder, ao mesmo tempo que fomentava uma certa
estratégia de investigação orientada para a ilustração e legitimação
dessa missão histórica da construção do Estado liberal, acúmen de
uma evolução no sentido da racionalização das relações sociais.
O que acaba de ser dito não tem propriamente a ver com uma
traição, dolosa e intencional, à deontologia da pesquisa histórica.
Mas antes com condicionamentos inevitáveis da prática historiográfica
(e, mais geralmente, de toda a actividade epistemológica), condicio-
namentos que a moderna teoria dos saberes vem descrevendo com
noções como as de "episteme", "paradigma", "filosofia espontânea
dos cientistas", "pré-compreensão" (Vorverstàndnis) ou "interesses
que dirigem o conhecimento" (erkenntnisleitenden Interessai).
22 As Vésperas do Leviathan Introdução 23

\ Toda a historiografia europeia do século passado estava, de facto^ tem chamado a questão da "centralização do poder" - os reflexos
i , demasiado próxima do advento da forma política "Estado" para^odw da aplicação retrospectiva do paradigma estadualista são facilmente
escapar à tentação de a aplicar à descrição e avaliação da evolução detectáveis.
u v
& ' Kí> histórica das formas políticasjÕ advento do Estado, separado da socie- Desde logo, constrói-se uma relação genealógica entre o r e i , ^ (im r

dade civil e pairando sobre ela coroo um elemento racionalizados a coroa e o moderno poder estatal. O rei passa, então, a protago- r s

um árbitro imparcial dos conflitos particulares de interesses, apare- nizar na história as funções que a ideologia liberal atribui ao Estado.
cia como um momento marcante da história humana, como um estádio Uma função, em primeiro lugar, de promoção e defesa do interesse , £

dccisiyãida modernização social 2


"nacional" e "patriótico" ( ) . Depois, uma função de contenção das es-
A centralização do poder político no Estado marcara a separa- forças particularistas e egoístas, concretamente, da nobreza (que, na >~° yc^c
t * ção radical entre duas esferas da vida social - a esfera da sociedade mitologia liberal, era o símbolo das forças centrípetas hostis à unidade Á-o
civil, domínio anárquico de confronto de interesses particulares, e a política); contensão que se realizaria com o apoio do terceiro Estado,
esfera do Estado, domínio da racionalidade, sede do interesse público, essa burguesia in ovo, a ciasse motora do progresso político e da
instância de composição neutral dos conflitos de interesse privados ('). racionalização social. Finalmente, uma função de instância arbitral
Ni
CHmpérijajlesta concepção do Estado - combinada com a in- K dos conflitos sociais e políticos, contrabalançando, nessa arbitragem,
fluência de outros elementos político-ideoiógicos conjunturais — dá as desigualdades políticas (v.g., apoiando o povo) e realizando, com
à historiografia da época um tom caracterizadamente escatológico, auxilio dos legistas, uma progressiva e progressista tarefa de raciona-
encarando a história política europeia como a progressiva preparação lização social. Nos países em que o rei desempenhava, dentro do
do advento do Estado, marcando por sucessos aquilo que fosse en- sistema constitucional do Estado liberal, um papel central e arbitral
tendido como uma facilitação desse advento e por recuos aquilo que n (como aconteceu entre nós no p e r í o d o cartista^na França orleanista
se entendesse ser-lhe prejudicial. Mas, mais do que isso, a lógica i n - ou na Alemanha bismarckiana^T o estabelecimento desta genealogia
terna dos sistemas políticos passados, nomeadamente do sistema era ainda mais fácil, tendo a história servido, ao mesmo tempo,
político do Antigo Regime, é desconhecida, pois cada um dos seus como rtisr-.iirsn.lgflitunadqr das soluções temperadamente monárquicas
elementos é isolado e encarado como antecedente dum elemento 3
ou mesmojcesaristas ( ).j
do Estado contemporâneo: a coroa é a forma larvar da soberania esta- O mesmo se passar depois, com as assembleias de estados que,
tal; as assembleias de estados, a antecipação dos parlamentos; as desde os fins do século X V I I I , são aproximadas, por políticos e por
comunas, os antecedentes da administração periférica delegada; os historiadores, dos órgãos representativos surgidos depois da revo-
senhorios, o eterno elemento egoísta que o Estado deve dominar e 4
lução ( ), ao mesmo tempo que as inovações por esta introduzidas
subordinar ao interesse geral.
2
( ) Sobre a historicidade da ideologia "nacional" ou "patriótica", J.-Y.
No domínio da apreciação dos equilíbrios mais gerais do sistema Guiomar 1969 e P. Legendre, 1976.
político do Antigo Regime - aquilo a que o jargão dos historiadores 3
( ) Paradigmáticas, entre nós, de uma intenção legitimadora do cartismo
são as análises de Herculano; já num sentido claramente apologético do cesarismo,
(') Para uma exposição de conjunto das relações entre Estado e sociedade algumas páginas de Oliveira Martins, nomeadamente O príncipe perfeito, Gomes,
civil no pensamento clássico oitocentista, E.-W. Boeckenfoerde, 1974 (sobre a 1896).
influência desta matriz na historiografia alemã do séc. XIX, E.-W. Boeckenfoerde, 4
( ) Para uma crítica da historiografia sobre as assembleias de Estados v.,
1961). Para uma crítica do pensamento liberal clássico, desvendando as suas as-
para Portugal, Hespanha, 1982 (e bibl. aí citada); para Espanha, Fernandez Alba-
sunções ideológicas, Chevallier, 1978, 183 ss.
ladejo, 1984.
24 As Vésperas do Leviathan Introdução 25

no plano constitucional são legitimadas como uma"regeneração" da importância, a um facto do plano da autonomia meramente adminis-
constituição histórica. trativa.
E, como a grande questão política da época - pela qual se É esta atenção exclusiva por u m conceito muito particular d»
1
afere a bondade e modernidade das soluções político-constituicionais centralização- por sua vez ligada a u m paradigma e p o c a l d a o r g a » • " 1

ClÓJAC,í'l (k/O
- é a questão das relações entre o princípio monárquico e o princípio nização do poder polítio - q u e explica algo que, se os dados histórij- <
í-y-
representativo, o problema dos equilíbrios do sistema político do cos fossem encarados na sua espessura própria, teria sido mais cedo , , ( r i

Antigo Regime - vulgo, o problema "da centralização" - irá ser problematizado. Refiro-me à imagem-que ainda hoje domina a his-
colocado sobretudo nestes dois planos: o da redução dos poderes toriografia menos exigente-de que a centralização do poder político,
periféricos e o das relações entre o rei e as cortes. concebida como reunião deste num polo ú n i c o - o Estado - , é algo
N a a n á n s e
fo\í> t i ox íLtn dos poderes periféricos, no entanto, a tónica ia sobre- que, na área europeia, se consuma substancialmente no início da época
'ofitflM, t u d
° p a r a
° e l e m e n t o
nobiliárquico-feudal. Era ele que, na mitologia moderna.
historiográfica liberal, teria constituído a principal contrariedade do Claro que este antedatar do aparecimento do Estado - hoje
rei nos esforços da centralização. Isso explica-se, porventura, pelo finalmente sujeito a^íma crítica generalizada, quer no plano insti-
facto de, na história então recente, as últimas resistências pluralistas 5
tucionaTT quer a p l a n o doutrinal ( ) - explica-se ainda por outros
terem sido, justamente, as das ordens privilegiadas (jurisdições dos factores, também eles enraizados naquilo a que se poderia chamar
donatários e senhores das terras, direitos forais ou senhoriais) e de, a teoria político-social espontânea dos historiadores.
portanto, serem estes últimos combates da gesta centralizadora Ò primeiro liga-se ainda, de alguma forma, ao paradigma do
que mais presentes estavam no espírito de todos. Estado liberal e ao modelo a que nele obedecem as relações entre ^ ^ .
Já o elemento comunal-concelhio sofrera uma usura menos política e administração. Na verdade, a teoria política liberal clás-
dramática em que os processos violentos da acção política vinham sica introduz uma separação nítida entre a actividade de eleição das
de há muito a ser coadjuvados ou substituídos por uma eficaz panóplia finalidades da acção do poder (política, consubstanciada na acti-
de instrumentos menos visíveis (nomeadamente, instrumentos cultu- vidade legislativa e de governo) e a actividade de realização destas
rais e simbólicos). Por ouiro lado, a teoria política liberal conseguira finalidades (administração, realização concreta da anterior), assi-
compatibilizar o monopólio do poder politico com a outorga aos nando a esta última um papel dependente e irrelevante da perspectiva
corpos políticos regionais eTõcãis de uma certa margem de autono- da análise política. Por outras palavras, a administração seria inca-
rnia^atrayés da distinção, surgida em Tocqueville e Pradier, entre paz, em si mesma, de dar ou tirar poder, de alterar os equilíbrio políti-
a descentralizaçãòpoÍítica,a que o listado liberai viera pôr termo, cos vigentes. O corpo administrativo do Estado não seria mais do
e a descentralização administrativa que, nos termos da "teoria da
delegação", autorizava os poderes periféricos a uma gestão autónoma 5
( ) Sobre o advento, em termos doutrinais e institucionais (centralização
dos seus interesses próprios, salvaguardada a unidade do Estado do poder político, territorialização, impessoalidade do poder - segundo a definição
e a preeminência do interesse geral. Ora foi precisamente através de P. Schiera, 197°, 151), do Estado e a problemática da sua datação, a biblio-
grafia é hoje vastíssima. Para além das páginas em que B. Clavero sintetiza o
desta concepção da "autonomia limitada" e desta teoria da dele-
estado actual da questão, de acordo com uma perspectiva teórica que vem defen-
gação que se encarou o equilíbrio político do antigo regime. Tendo-
dendo há já algum tempo (segundo a qual a aplicação do conceito "Estado''
-se assumido que o poder fora centralizado - contra a nobreza à realidade pré-revolucionária seria incorrecta, Clavero, 1981 e Clavero, 1982,
e contra as assembleias de estados - no início da época moderna, 142 ss., maxime 162-167), v. a Hespanha, 1984, maxime nas notas 56 a 59, Dios,
a persistência dos elementos comunais-concelhios é reduzida, na sua 1985 e, numa perspectiva menos historiográfica, Royo, 1980.
26 As Vésperas do Leviathan Introdução 27

que a "longa manus", dúctil e neutral, do poder. Donde, se a dis- E neste contexto teórico que tem que ser entendida a evolu-
persão social do poder se situasse em áreas que não fossem a acti- ção e o estado actual da historiografia europeia sobre o "apareai- Hi íi»*\, •
vidade de governo e a actividade legislativa (tal como era concebida mento do Estado moderno", formada ern_c]ue é habitual sintetizai
no séc. X I X - i.é, como actividade de formulação de normas gerais a>desçrição do processo de concentração do poder político num s ó
0*A
e abstractas, consubstanciando o "interesse geral") não estava em pólo.*
causa a ideia de centralização política. Que permanecessem nos órgãos
periféricos competências normativas particulares ou competências Até aos finais da década de cinquenta, a história do sistema
jurisdicionais, era facto que esta separação entre política e adminis- político foi dominada pelas concepções positivistas estadualistas, sis-
tração banalizava e que o uso combinado das teorias da "delegação" tematizadas nos finais do século passado por Jellinek e R. Sohm
e do "poder regulamentar" enquadravam com facilidade nos qua- e transpostas para o plano da história, entre outros, por Th. Mayer
dros duma interpretação centralizadora do Antigo Regime. 6
e H . Mitteis( ). O ênfase posto na "novidade" do sistema político
Mas, sobretudo, a historiografia oitocentista cria enfaticamente moderno, na integração política das nações europeias, no papel do
no carácter decisivo da vida política oficial. Transportando para rei na construção dos modernos Estados nacionais constituíam os
I a história uma certa unidimensionalidade do poder político no seu
( tópicos desta concepção (que, como não deixará de se notar, corres-
i tempo, os historiadores tendiam a reduzir a vida política do Antigo ponde, no plano político, a uma época de 'pathos' nacionalista e esta-
IA Regime aos actos formais do poder i.é., aos que decorriam sob o dualista).
império e regulamento do direito estadual. Tudo oresto - i.é, l u d õ Como no domínio da própria teoria político Ç), o "paradigma
o que decorria em contravenção com este ou à sua margem - não estadualista" no domínio historiográfico entra, sensivejmente^apartir
era relevante para a investigação. da última guerra, em crise. O ponto de partida foi, aqui, a obra de 6 c
'
Por fím, ojiendor idealista da historiografia clássica do libera-
6

lismo tendeu a valorizarexcessivamente os dados da doutrina política ( ) Para descrição e crítica do estadualisrao positivista, v. E. Kern, 1949,
14 ss., 31 ss.; O. Brunner. 1939, 111 ss.; E.-W Boeckenfoerde, 1961, 17 ss..
de.ujie^_p_or_outroJado fazia_uma leitura também retrospectiva e
L 7

or a ara a
( ) O primeiro tactor de crise foi constituído pela influência do pensamento
Jgi?í dg JP valorização dos "prenúncios" ou "antecipações" anti-posiíivista-legalista dos começos deste século na teoria política e na jus publi-
dos elementos que viriam depois a ser decisivos. Afloramentos pre- cística (sobretudo com H. Heller, A. Weber, C. Schmitt, M . Hauriou, L. Duguit e
coces de conceitos como "soberania", "razão de Estado", "ideia Santi Romano), destacando o carácter 'pluralista" da distribuição do poder e a
nacional" ou "interesse público/interesse privado" foram afanosa- sua radicação em 'instituições' autónomas em relação ao Estado. Sobre isto, Gilissen
"At 1971 e Shell, 1980. Mais tarde, conflui também neste sentido a influência de M .
mente buscados e - está-se hoje de acordo - unilateralmente valo-
Weber, ao destacar a historicidade da forma política "Estado". Um outro factor
rizados, destacando-os de corpos dogmáticos conflituais, onde muitas
de superação foi constituído por um alargamento do conceito de poder político
vezes desempenhavam uma função apenas tópica, e reconstruindo operado pela mais moderna ciência política. Já L. Althusser, do lado marxjsta,
a partir deles toda uma genealogia doutrinal da teoria oitocentista do alargou significativamente o campo do político ao estender a noção de "Estado"
Estado. Por outro lado, a distância entre a teoria e a prática e, sobre- a domínios crescentes da actividade social (cf. a noção de "aparelhos ideológicos
tudo, as intenções didácticas e programáticas das obras doutrinais, de Estado"). Mas os sectores teoricamente mais radicais têm, na esteira da "teoria
crítica da sociedade", avançado para posições que recusam um lugar institucional
bem como o carácter "imaginário" (P. Costa) dos seus "objectos"
fixo ao "político" e que, portanto, tendem para uma "pan-politização"das rela-
foram ignoradas, aceitando-se com uma certa leveza de espírito que ções sociais (cf. Chevallier, 1978, Fink-Eitel,1980, Dreyfus, 1984, Serrano Gon-
às proposições dos juspublicistas correspondiam ponto por ponto os zalez, 1987). Boa síntese da moderna reflexão (sobretudo francesa) sobre o poder
dados da realidade institucional-prática. em Chevallier, 1978a.
28 As Vésperas do Leviathan Introdução 24

IWKCA | O. Brunner que, em sucessivas intervenções ("), salienta ascontinw- ("Straffung") do poder central, através da superação de influências
^; ^(jL
w dades entre os sistemas políticos medieval e moderno e a persis» não centrais, ou seja, regionais e locais, mas não de uma sujeição
tehcia, nos níveis "interiores" dosjstema político — nomeadamenft dos poderes locais. Existia um pluralismo bem estruturado, mas
'V* no n i u n d õ " ^ c a m p o n ê s " —, de resistentes estruturas de vinculção não de poderes dependentes do poder central ou de direitos por ele ~.^^- t yf*
política irãoicionais marcadas pelo "patriarcalismo" e pelo ".senhja- delegados" ('•). "O processo — continua este autor - habitualmente
S. i
rialismo" e rei ativamente_p^uco_tocadas^ pelas novidades da teoria \ / C | , - . T W i C | t ,

descrito como centralização (entendendo-se a Ç^ntraJiza§|o, nosen- , ,


política e pelos desígnios de poder dos monarcas modernos Ç). t f

tido do séc. X I X , como a progressiva afirmação do poder estadual Jec..k«*í «.


A renovação iniciada por O. Brunner é continuada, agora no
central até aos níveis mais baixos) só existe em teoria. Na realidade, tn ru u
plano da historiografia das ideias políticas, por uma reapreciação da 1 J u w
o poder monárquico tinha escassa incidência nos dois planos inferio- - f - ' ' ,
novidade e significado da teoria política moderna, cujos resultados
res, apenas em parte no sector depois conhecido como provincial,
têm sido, não s ó uma maior prudência na valorização dos seus ele- r i f o r f
quase nenhum ou mesmo nenhum na administração local, onde se -°
mentos "absolutistas" (v.g., dos contributos de J. Bodin e mesmo
conservou por muito tempo uma espécie de soberania territorial nos
de Th. Hobbes), mas uma maior atenção — restaurando certos pon-
assuntos de justiça, eclesiásticos, escolares, administrativos e m i l i -
tos^ de vista de O. Gierke — aos_pejnsadores " n ã o absolutistas",
tares. Estas limitações apenas serão superadas pelo absolutismo ilu-
desde os teóricos da Segunda Escolástica peninsular até aos "monar-
minado e reformador" (ibid).
c ó m a c o s " de inspiração luterana e calvinista, nomeadamente, J.
Idênticas restrições teriam que ser feitas, segundo o mesmo
Althussius ("').
autor, às ideias dominantes sobre o desenvolvimento do aparelho
burocrático pois, segundo ele, as estruturas burocráticas centrais não
No plano da história institucional, foram sobretudo importan-
tinham correspondência a nível local. N ã o só no sentido de que não
tes dois artigos, hoje clássicos. Um, de G. Oestreich, em que se cha-
existia uma cadeia funcional, dominada pelo princípio da hierarquia
mou a atenção para que, se se abandonasse uma perspectiva "de
delegação que unisse o centro à periferia (ibid. 188), mas ainda e
cima" do sistema político europeu da época moderna, se encontra-
sobretudo porque o oficialato_ moderno era, na sua maioria, de
ybáí* ria, até ao fim do antigo regime, uma extensa zona de autonomia
natureza patrimonial, tomando-se, assim, mais numa limitação do
IffCAÍ. ' política que o absolutismo doutrinário não conseguira reduzir - a zona
que num instrumento do poder da coroa.
^ das relações políticas regionais e locais, em que continuavam a vigo-
As últimas conclusões de Oestreich que, sem perderem um al-
rar, como O. Brunner j á referira, antigas estruturas políticas de tipo
cance mais geral, têm em vista, sobretudo, a Europa central, foram
patriarcal e senhorial e em relação às quais o poder central dispunha
confirmadas, para as zonas periféricas do sul da Europa pelos traba-
de reduzidos meios de controle político. Para Oestreich, o que se 12
lhos de F. Chabod ( ) que, na sequência de estudos sobre as estru-
verifica na época moderna é, então, "um lento potenciamento
turas do oficialato milanês, chamou a atenção para o modo como o
8
progresso do Estado moderno está ligado à evolução do corpo de
( ) Sobre a importância de O. Brunner, v., por todos, Lehman, 1974 e
Schiera, 1983.
oficiais, não só nos seus aspectos quantitaivos e de distribuição re-
9
( ) Obra principal Brunner, 1939; sobre o "patriarcalismo" sobretudo,
gional e local, mas ainda no que respeita à concepção dominante do
Brunner, 1968a; sobre o "senhorialismo" e as "liberdades corporativas", Brun- ofício público.
ner, 1949; sobre o mundo camponês, Brunner, 1968b.
10)
( Para a imensa bilbiografia (sobretudo acerca de Hobbes, Althussius e (") Oestreich, 1964.
Bodin) v. Wyduckel, 1979. 2
(> ) Chabod, 1967; Chabod, 1958a; Chabod, 1958b.
30 As Vésperas do Leviathan Introdução 31

Do lado da história social, a problematização do peso do Es- sobre o carácter "puro" (ou "absoluto") ou "limitado" (ou
15
tado no conjunto "círculos de sociabilidade" do Antigo Regime "mixto") da monarquia portuguesa ( ) e prosseguiu, já no séc. X I X ,
pode ser bem resumida na síntese recente de P. Chaunu: "num es- com toda a posterior discussão entre realistas e constitucionalistas.
tudo recente e em vias de edição dedicámo-nos, para a França, a A sede da discussão levou a que a problemática do absolutismo (e,
um certo número de cálculos ou, mais modestamente, de "pesagens" portanto, dos equilíbrios do sistema político do antigo regime) quase
globais que tentam situar o Estado em relação ao conjunto da econo- se limitasse à questão da existência ou não de órgãos "representa-
mia e do corpo social. Inútil denunciar a extraordinária fragilidade tivos" ao lado da coroa e da natureza deliberativa ou apenas con-
16
destes aparelhos. No início do séc. X V I , em França, na época do sultiva das suas atribuições ( ) .
advento de Francisco I , avalio, apoiando-me nas páginas de R. Desta perspectiva é subsidiária a maior parte da historiografia
Mousnier, em 0,4% a fracção do corpo social ao serviço do Estado oitocentista e novecentista sobre o tema, nomeadamente (embora
monárquico. Em 1665, depois da prodigiosa mutação quantitativa com uma abertura para os aspectos ligados à história das ideias políti-
do poder de Estado, 3,5% constitui uma ordem aceitável de gran- cas, a que nos referiremos adiante), a obra, publicada em 1922-23,
deza. Parece-me que talvez se possa estimar em 15% do produto bruto de M . Paulo Merêa, O poder real e as cortes (Merêa, 1923), deci-
a punção que é efectuada pelo Estado, após a grande revolução do sivamente influenciada pela oposição absolutismo/dualismo então
ministério de Richelieu e Mazarino neste Estado universalmente reco- dominante na historiografia política alemã. Nesta perspectiva, o ab-
nhecido pelos contemporâneos como o mais poderoso, digamos solutismo ou centralização do poder político consistira, antes de tudo,
melhor, o mais evoluído" ( ) .13
na redução ou aniquilação do poder das cortes, pelo que se tende a
Esta renovação teórica obrigou a uma revisão, ainda em curso, situar a sua consumação no séc. X V , época da última sua reunião
das histórias políticas nacionais no capítulo da chamada "centrali- considerada verdadeiramente importante (cortes de Évora de 1481).
zação política da época moderna". E aqui impossível fazer uma des- Claro que, como quase todos os autores então salientam, o de-
H
crição do percurso de cada uma dessas revisões ( ) ; mas importa clínio das cortes decorreria da perda de importância política dos
registar os traços gerais da evolução em Portugal. corpos ou ordens aí representados. De modo que a generalidade da
iiteratura explica a centralização do poder como um processo de quebra
Na historiografia portuguesa, a questão dos equilíbrios do sis- do peso político da nobreza ou dos concelhos. Exemplar, neste
tema de poder na época moderna tem-se arrumado em torno dos plano, é a obra do historiador brasileiro Eduardo d'01iveira França,'
tópicos do "absolutismo" e da "centralização do poder". Tópicos, O poder real em Portugal e jas j>rigens dojtbsqlutismo (França
tanto um como o outro, muito marcados pelos contextos políticos 1946, maxime 255 s.), em que se procuram na análise da sociedade
em que surgiram — no primeiro, o contexto da discussão sobre a portuguesa dos fins da épocajnoderna, as raízes do absolutismo real.
natureza do regime, dos finais do séc. X V I I I - inícios do séc. X I X ; A investigação das condições sociais que explicariam o declínio
no segundo, a polémica sobre os modelos de organização do Es- daquelas ordens e da sua expressão "constitucional" - embora
tado dos meados do século passado. baseada, por via de regra, em materiais já conhecidos - meiece uma
A discussão sobre o "absolutismo" foi aberta pela conhe- atenção inabitual. Ao lado de argumentos usuais, como o do vigor
cida polémica entre Pascoal de Melo e António Ribeiro dos Santos
5
C ) Sobre esta polémica v., por último, Pereira, 1983.
16
3
O ) Chaunu, 1974, 370. ( ) Sobre esta literatura v. as indicações que dei em Hespanha, 1982,
14
( ) Para uma descrição, com indicações bibliográficas, Musi, 1979a. 368 s. Para Espanha, Albaladejo, 1985.
30 As Vésperas do Leviathan Introdução

Do lado da história social, a problematização do peso do Es- sobre o carácter "puro" (ou "absoluto") ou "limitado" (ou
, s
tado no conjunto "círculos de sociabilidade" do Antigo Regime "mixto") da monarquia portuguesa ( ) e prosseguiu, j á no séc. X I X ,
pode ser bem resumida na síntese recente de P. Chaunu: "num es- com toda a posterior discussão entre realistas e constitucionalistas.
tudo recente e em vias de edição dedicámo-nos, para a França, a A sede da discussão levou a que a problemática do absolutismo (e,
um ceito número de cálculos ou, mais modestamente, de 'pesagens" portanto, dos equilíbrios do sistema político do antigo regime) quase
globais que tentam situar o Estado em relação ao conjunto da econo- se limitasse à questão da existência cu não de órgãos "representa-
mia e do corpo social. Inútil denunciar a extraordinária fragilidade tivos" ao lado da coroa e da natureza deliberativa ou apenas con-
16
destes aparelhos. No início do séc. X V I , em França, na época do sultiva das suas atribuições ( ) .
advento de Francisco I , avalio, apoiando-me nas páginas de R. Desta perspectiva é subsidiária a maior parte da historiografia
Mousnier, em 0,4% a fracção do corpo social ao serviço do Estado oitocentista e novecentista sobre o tema, nomeadamente (embora
monárquico. Em 1665, depois da prodigiosa mutação quantitativa com uma abertura para os aspectos ligados à história das ideias políti-
do poder de Estado, 3,5% constitui uma ordem aceitável de gran- cas, a que nos referiremos adiante), a obra, publicada em 1922-23,
deza. Parece-me que talvez se possa estimar em 15% do produto bruto de M . Paulo Merêa, O poder real e as cortes (Merêa, 1923), deci-
a punção que é efectuada pelo Estado, após a grande revolução do sivamente influenciada pela oposição absolutismo/dualismo então
ministério de Richelieu e Mazarino neste Estado universalmente reco- dominante na historiografia política alemã. Nesta perspectiva, o ab-
nhecido pelos contemporâneos como o mais poderoso, digamos solutismo ou centralização do poder político consistira, antes de tudo,
melhor, o mais evoluído" ( ) .13
na redução ou aniquilação do poder das cortes, pelo que se tende a
Esta renovação teórica obrigou a uma revisão, ainda em curso, situar a sua consumação no séc. X V , época da última sua reunião
das histórias políticas nacionais no capítulo da chamada "centrali- considerada verdadeiramente importante (cortes de Évora de 1481).
zação política da época moderna". É aqui impossível fazer uma des- Claro que, como quase todos os autores então salientam, o de-
14
crição do percurso de cada uma dessas revisões ( ) ; mas importa clínio das cortes decorreria da perda de importância política dos
registar os traços gerais da evolução em Portugal. corpos ou ordens aí representados. De modo que a generalidade da
literatura explica a centralização do poder como um processo de quebra
Na historiografia portuguesa, a questão dos equilíbrios ào sis- do peso político da nobreza ou dos concelhos. Exemplar, neste
tema de poder na época moderna tem-se arrumado em torno dos plano, é a obra do historiador brasileiro Eduardo d'Oliveira França/
tópicos do "absolutismo" e da "centralização do poder". Tópicos, O poder real em Portugal e as origens do< absolutismo> (França
tanto um como o outro, muito marcados pelos contextos políticos 1946, maxime 255 s.), j m i j j u e se procuram na análise da sociedade
em que surgiram - no primeiro, o contexto da discussão sobre a portuguesa dos fins da época moderna, as raízes do absolutismo real.
natureza do regime, dos finais do séc. X V I I I - inícios do séc. X I X ; A investigação das condições sociais que explicariam o declínio
no segundo, a polémica sobre os modelos de organização do Es- daquelas ordens e da sua expressão "constitucional" - embora
tado dos meados do século passado. baseada, por via de regra, em materiais já conhecidos - merece uma
A discussão sobre o "absolutismo" foi aberta peia conhe- atenção inabitual. Ao lado de argumentos usuais, como o do vigor
cida polémica entre Pascoal de Melo e António Ribeiro dos Santos
15
( ) Sobre esta polémica v., por último, Pereira, 1983.
6
(") Chaunu, 1974, 370. C ) Sobre esta literatura v. as indicações que dei em Hespanha, 1982,
4
C ) Para uma descrição, com indicações bibliográficas, Musi, 1979a. 368 s. Para Espanha, Albaiadejo, 1985.
32 As Vésperas do Leviathan Introdução 33

original do poder real em Portugal e o da inexistência de feudalismo, da época moderna, o que atiraria para muito mais tarde, já nos fins
ganham aqui relevo os factores de decadência da nobreza relaciona- do Antigo Regime, a época do advento de um verdadeiro absolutismo;
dos com a crise da economia rural dos fins do século X I V e com o embora alguns destes autores (v.g., Aires de Campos, obcecado em
próprio carácter revolucionário da crise política de 1383-1385, fac- denunciar a mais pequena traição à "boa doutrina"...) não deixem
tores que teriam possibilitado o êxito da política anti-nobiliárquica de anotar os germes individualistas e contratualistas já presentes nos
de D . João I I . Quanto aos concelhos, a decadência da sua autono- repúblicos seiscentistas por influência do nominalismo da escolástica
mia - concretizada na "generalização e difusão" das magistratu- franciscana.
ras concelhias de nomeação régia (juízes de fora), na reforma
A compatibilização, nos mesmos autores — v.g., em M . Paulo
centralizadora dos forais por D. Manuel I e na generalização da
Merêa - da coexistência de duas cronologias da centralização, con-
legislação real, que teriam provocado a sua aniquilação como cor-
soante se situasse o problema no plano político-constitucional ou no
pos políticos autónomos — radicaria na progressiva "proletari-
plano doutrinal, resolvia-se pela distinção entre a (precoce) "centra-
zação" das elites concelhias provocada pela crise da economia agrária
lização", que diria respeito à estrutura dos órgãos do poder político
dos finais de trezentos e, ainda, numa inversão da estratégia política
e às limitações "constitucionais" do poder real, e (o tardio) "abso-
nobiliárquica, cada vez mais voltada para a exploração económica e
lutismo", que se reportaria ao plano das limitações doutrinais do
política do mundo rural. Apesar da novidade e do brilho do quadro
poder real.
traçado, não são grandes as inovações quanto ao cnten^imjmk^do
Estes investimentos historiográficos nos planos "político-cons-
que tenha sido a centralização do poder nem quanto à sua cronolo-
titucional" e "doutrinal" n ã o foram, no entanto, acompanhados por
gia—a centralização do poder que conduzira ao absolutismo consis-
uma reflexão paralela no planojnsbtudonal^para além das referências
tira, anfès~de tudoT numa política real de contensão e progressiva
fugidias e, valha a verdade, bastante acTÍticas, que lhe eram feitas
aniquilação do poder senhorial, política apoiada pelos concelhos que,
como ilustração das anteriores discussões. Esta reflexão em sede
num segundo momento, são — de forma menos dramática e espec-
institucional não era, desde logo, fácil, em virtude das carências, nesse
tacular - expropriados, também eles, das suas prerrogativas políti-
domínio e para a época moderna, da historiografia portuguesa, já
cas. Saliente-se, ern todo o caso, a importância que neste quadro
que as obras de Herculano e de Gama Barros terminam muito an-
é atribuída aos juristas, quer enquanto obreiros das matrizes ideo-
tes. Concretamente, todo o regime senhorial, municipal, do oficialato,
lógicas que legitimaram o processo, quer enquanto suportes insti- lff
estiveram até há pouco sem qualquer tratamento de conjunto ( ). Daí
tucionais e beneficiários finais desse mesmo processo.
que não seja de estranhar que as condicionantes prático-institucionais
Uma outra sede da discussão foi, a partir dos anos vinte deste da centralização quase não tenham merecido atenção. Poderes sen-
século, a discussão sobre o pensamento político da segunda esco- horiais, autonomia municipal, desenvolvimento do oficialato régio
lástica peninsular e a sua influência nas doutrinas políticas e de d i - e existência ou não de órgãos periféricos da administração real, tais
reito público em Portugal, discussão lançada por M . Paulo Merêa algumas das questões que nunca foram devidamente averiguadas
com o seu estudo sobre os fundamentos doutrinais da Restau-
17
ração ( ) . Nesta perspectiva, os autores salientam, dum modo geral,
o fundo escolástico e "particularista" da doutrina política portuguesa ('") Pelo menos para o regime senhorial e para o regime dos oficiais, o pri-
meiro tratamento de conjunto foi o que lhe tentei dar há uns anos (Hespanha, 1982,
282 ss., 384 ss.). Surpreendentemente, uma história geral aparecida depois (Saraiva,
l7
( ) Merêa, 1923; na sequência, entre os principais, Moncada, 1948, Campos, 1982) continua, nos seus capítulos dedicados ao direito e às instituições (da autoria
1942, Albuquerque, 1978. de J. A. Duarte Nogueira), a não abordar estes temas, nem sequer a título remissivo.
36 As Vésperas do Leviathan Introdução 37

o que, com o resto, destruiria qualquer veleidade autonomista dos 2. Vias para uma renovação historiográfica da questão da
municípios i ). 23
centralização
O próprio brilho que a visão municipalista de Herculano em-
prestara aos concelhos na sua época áurea terá feito com que a orga-
Esboçado este panorama crítico da actual historiografia sobre
nização municipal da época moderna tenha parecido mesquinha e
o sistema político da época moderna, é altura de apontar as vias
apagada; sendo também certo que faltava, desde logo, para esta época
que uma renovação historiográfica deve, neste domínio, seguir.
o trabalho de investigação que aquele autor realizara para a idade
média.
a) A definição de "sistema político"
Seja como for, a imagem estava feita e historiadores e políti-
cos não tardaram a dar-se as mãos nesta (polissémica) explicação A primeira cautela metodológica deve ser a de tomar como
da decadência nacional através da ideia da centralização monárquica, ponto de partida uma definição adequada do objecto historiográfico.
ideia em que confluíam os pontos de vista críticos das correntes políti- Ou seja, definir correctamente o "político".
cas revivalistas (em nome duma edénica descentralização da cons-
N ã o é esta a ocasião para uma discussão alargada da moderna
tituição tradicional), libertários (em nome dum federalismo proudhoni- 25
problemática acerca da definição do poder político ( ) ; é, no en-
ano), anti-monárquicos (o absolutismo fora, antes de tudo, produto
tanto necessário precisar o sentido com que a expressão irá aqui ser
da monarquia) e jacobinos (lembremo-nos da aproximação, feita por
utilizada.
Antero, nas Causas da decadência dos povos peninsulares, entre
24 Na esteira de M . Weber, adoptou-se aqui, como ponto de par-
a centralização política e o espírito da contra-reforma) ( ) . Mas a
tida para a delimitação temática, uma definição de poder político
imagem historiográfica servia também o_establisàmmt cartista ou
que o distingue dos restantes instrumentos de dominação social pelo
mesmo os pontos de vista do cesarismo, estes últimos encarando de
facto de conter em si a ameaça de constrangimento. Trata-se, valha
forma positiva a tarefa de construção do Estado empreendida pelos
a verdade, de uma perspectiva teórica que - embora possa apoiar-
monarcas e valorizando o seu alegado papel de porta-voz de interes-
-se na necessidade analítica de distinguir entre si as várias formas
ses nacionais supra- classistas.
de poder (económico, cultural) - nos parece justificada sobretudo
por razões tácticas, nomeadamente pela necessidade de conter a
26
investigação dentro de limites razoáveis ( ). Mas temos hoje a cons-
ciência de que insistir muito no traço distintivo da coerção nos faz
73
í ) A lição é corrente. Alguns afloramentos: Rocha, 1861, 114 (luta anti- correr o risco de cair no erro, que M . Foucault denuncia como típico
-nobiliárquica e "absolutismo" do direito romano fazem esquecer as prerrogati- da história jurídico-institucional, de ignorar os mecanismos disci-
vas da nobreza e das cortes); Merêa, 1917, 285 (declínio das cortes, criação dos
juízes de fora, triunfo da lei geral); Macedo, 1963 (todo o poder político está nas
25
mãos do rei no séc. X V I ) ; Serrão, 1980, V, 194 (a centralização consuma-se com t ) Sobre a actual discussão acerca das relações entre poder político e domi-
o declínio das cortes e inexistência de órgãos centrais de controlo do poder real); nação social, concluindo num sentido próximo do aqui acolhido, Chevallier, 1978b,
Saraiva, 1957 (a centralização culminaria com a reforma dos forais); Langhans, 7 ss.; 1978a, 181 ss.; nomeadamente, sobre a recente "volta ao político ou "pan-
1938 (nomeadamente sobre a substituição do direito local pelo direito geral, a -politização" dos fenómenos de dominação social ( M . Foucault, P. Clastres, A.
partir do séc. X V ) . Touraine, F. Guattari, A. Glucksmann, etc.) com progressiva influência na análise
M
( ) Para a utilização destas ideias no plano da acção política v. Nogueira, sociológica e histórica (v. Hespanha, 1986c, 331 ss.; Hespanha, 1986b, 222 ss.),
26

1856, I I , e Ávila, 1874, 7 ss. ( ) No mesmo sentido, Chevallier, 1978a, 1,189/190.


34 As Vésperas do Leviathan Introdução 35

21
e que, como j á se deixou entender, são, todavia, decisivas para equa- e judicial em vigor na periferia do sistema estatal ( ) . Esta nova pers-
cionar a questão dos centros de poder político. Quando muito, f o i pectiva n ã o pode, naturalmente, deixar de ser tida em conta na
descrito o aparelho administrativo central, sendo o seu inegável de- análise do sistema político da época moderna.
|senvolvimentc durante os séculos X V I e X V I I algumas vezes apres- Neste contexto, não admira que o que tenha vindo a prevalecer
jsadamente identificado como um sinal de centralização do poder tenha sido a imagem de uma centralização precoce, preparada pela
19
i estadual ( ) ; sem que se tenha gasto muito tempo a averiguar em inexistência de feudalismo e pelo fortalecimento do poder real
que sectores se deu esse desenvolvimento e quais as relações entre consequente ao esforço guerreiro da reconquista. À D . João I I
órgãos da administração central e poderes periféricos. - para quem os pontos de vista estadualistas do século passado
Decisiva era, também, a questão da existência e regime dos recuperam a designação de "Príncipe Perfeito", cunhada por Lope
recursos contra os actos do poder; também essa questão tem sido de Vega - teria, finalmente, cabido consumar o processo, ao "for-
20
ighOTadáljelãliossarhlsloriografia ( ) e, apesar do ênfase com que talecer a auctoridade real, concentrando-a, e pondo termo, com o apoio
o ~ p õ m b a l i s m o ^ e n u n c i a (v.g. no alvará de 30.10.1751) a liberali- do elemento popular, à preponderância intolerável de uma nobreza
dade do anterior direito na atribuição aos particulares da faculdade tMj^v^a^^nrotada de privilégios, exercendo actos de jurisdição
de contestareme paralizaremas decisões do soberano, não faltajjuem com todo o carácter de soberania, paralysando por isso, senão an-
22
entenda que os meios de defesa dos particulares em relação aos ac- nulando mesmo, a auctoridade real" ( ) . A reforma manuelina dos
tos do poder eram inexistentes. forais e das Ordenações e o pathos organizativo e regulamentador
Por outro lado, até há muito pouco tempo ninguém pusera a do Venturoso teriam culminado a tarefa. Derrotada a nobreza, silen-
hipótese de o modelo da nossa autonomia local ter sido muito mais ciadas as cortes, imposta a legislação geral, o poder político estaria
radicai do que os modelos a que geiahnente_ se reporta ajnstoriografia concentrado.
tradicional. Õu seja, ó^jt^tojMmia pohlioo-jurisdicional dos cor- Claro que havia domínios senhoriais e que havia concelhos. Mas
pos políticos periféricos não se situar no plano da lei e do direito o relevo destes dois factos era decisivamente empalidecido por outras
oficial, mas à margem dessa lei e dessejdireito. ideias assentes na nossa historiografia. Em relação ao elemento senho-
Apesar de os estudos de Jorge Dias (v. infra) terem com- rial, o consabido e evocador argumento da inexistência de feudalis-
provado a existência de uma vidajiolítica local não oficial ainda nos mo em Portugal, acompanhado da ideia de uma anestesia da nobreza
meados deste século, os historiadores do direito e das instituições, pela política de palatinização, política que, em todo o caso, nunca
dominados pelo modelo positivista-estadualista, sempre tenderam foi muito bem explicada nas suas modalidades e consequências políti-
a encarar as manifestações de pluralismo — nomeadamente, as dis- cas e muito menos, comprovada, pois não existem estudos válidos
torções ou violações periféricas do direito oficial —Çoirtó produtos sobre a nobreza moderna. Em relação aos concelhos, o argumento
do "'abuso" ou da "ignorância". Recentemente procurei valorizar decisivo era o da criação e progressiva generalização dos juízes de
esta "rusticidade^ou_ justes "abusos" como sintomas de formas fora, apesar de ser sabido, j á desde o séc. X V I I I , que o número dos
alternativas e autónomas de organização político-administrativa concelhos que os tinham não representava, no séc. X V I , sequer 10%
do total. A o lado destas, fez curso, também, a ideia da completa
uniformização do direito pelos cânones do direito oficial e erudito,

('*) Tentativa de síntese, em que os aspectos institucionais continuam a mere- 21

c e i escasso relevo, em Mauro, 1975. ( ) Cf. Hespanha, 1983a, 1983b.


22

(•'") Cf. Hespanha, 1982,310. ( ) Oliveira Martins, O Príncipe perfeito, cit., 36.
36 As Vésperas do Leviathan Introdução 37

o que, com o resto, destruiria qualquer veleidade autonomista dos 2. Vias para uma renovação historiográfica da questão da
a
municípios ( ) . centralização
O próprio brilho que a visão municipalista de Herculano em-
prestara aos concelhos na sua época áurea terá feito com que a orga-
Esboçado este panorama crítico da actual historiografia sobre
nização municipal da época moderna tenha parecido mesquinha e
o sistema político da época moderna, é altura de apontar as vias
apagada; sendo também certo que faltava, desde logo, para esta época
que uma renovação historiográfica deve, neste domínio, seguir.
o trabalho de investigação que aquele autor realizara para a idade
média.
a) A definição de "sistema político"
Seja como for, a imagem estava feita e historiadores e políti-
cos não tardaram a dar-se as mãos nesta (polissémica) explicação A primeira cautela metodológica deve ser a de tomar como
da decadência nacional através da ideia da centralização monárquica, ponto de partida uma definição adequada do objecto historiográfico.
ideia em que confluíam os pontos de vista críticos das correntes políti- Ou seja, definir correctamente o "político".
cas revivalistas (em nome duma edénica descentralização da cons-
N ã o é esta a ocasião para uma discussão alargada da moderna
tituição tradicional), libertários (em nome dum federalismo proudhoni- 5
problemática acerca da definição do poder político C ); é, no en-
ano), anti-monárquicos (o absolutismo fora, antes de tudo, produto
tanto necessário precisar o sentido com que a expressão irá aqui ser
da monarquia) e jacobinos (lembremo-nos da aproximação, feita por utilizada.
Antero, nas Causas da decadência dos povos peninsulares, entre
24
Na esteira de M . Weber, adoptou-se aqui, como ponto de par-
a centralização política e o espírito da contra-reforma) ( ) . Mas a
tida para a delimitação temática, uma definição de poder político
imagem historiográfica servia também o establisJucamL cartista ou
que o distingue dos restantes instrumentos de dominação social pelo
mesmo os pontos de vista do cesarismo, estes últimos encarando de
facto de conter em si a ameaça de constrangimento. Trata-se, valha
forma positiva a tarefa de construção do Estado empreendida pelos
a verdade, de uma perspectiva teórica que - embora possa apoiar-
monarcas e valorizando o seu alegado papel de porta-voz de interes-
-se na necessidade analítica de distinguir entre si as várias formas
ses nacionais supra-classistas.
de poder (económico, cultural) - nos parece justificada sobretudo
por razões tácticas, nomeadamente pela necessidade de conter a
26
investigação dentro de limites razoáveis ( ) . Mas temos hoje a cons-
ciência de que insistir muito no traço distintivo da coerção nos faz
a
( ) A lição é corrente. Alguns afloramentos: Rocha, 1861, 114 (luta anti- correr o risco de cair no erro, que M . Foucault denuncia como típico
-nobiliárquica e "absolutismo" do direito romano fazem esquecer as prerrogati- da história jurídico-institucional, de ignorar os mecanismos disci-
vas da nobreza e das cortes); Merêa, 1917, 285 (declínio das cortes, criação dos
juízes de fora, triunfo da lei geral); Macedo, 1963 (todo o poder político está nas
25
mãos do rei no séc. X V I ) ; Serrão, 1980, V, 194 (a centralização consuma-se com i ) Sobre a actual discussão acerca das relações entre poder político e domi-
o declínio das cortes e inexistência de órgãos centrais de controlo do poder real); nação social, concluindo num sentido próximo do aqui acolhido, Chevallier, 1978b,
Saraiva, 1957 (a centralização culminaria com a reforma dos forais); Langhans, 7 ss.; 1978a, 181 ss.; nomeadamente, sobre a recente "volta ao político ou "pan-
1938 (nomeadamente sobre a substituição do direito local pelo direito geral, a -politização" dos fenómenos de dominação social ( M . Foucault, P. Clastres, A.
partir do séc. X V ) . Touraine, F. Guattari, A. Glucksmann, etc.) com progressiva influência na análise
M
( ) Para a utilização destas ideias no plano da acção política v. Nogueira, sociológica e histórica (v. Hespanha, 1986c, 331 ss.; Hespanha, 1986b, 222 ss.),
26

1856, I I , e Ávila, 1874, 7 ss. ( ) No mesmo sentido, Chevallier, 1978a, I , 189/190.

Você também pode gostar